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Introduzindo
Portanto, se nos foi solicitado falar sobre presente e futuro da etnomusicologia (2),
importa também saber do seu passado. É a este que me refiro nas páginas que seguem,
pois é o passado que nos faz entender melhor o presente e, quem sabe, prever algo para
o futuro.
Antecedentes
Musicologia Sistemática
a) acústica (harmonia, ritmo e melodia),
b) estética (o “belo musical”),
c) pedagogia e didática musical e
d) “musikologie”, ou seja a “investigação e comparação (dos produtos musicais,
'Tonproducte'), para fins etnográficos” (Adler 1885).
“... a escala musical não é apenas uma, não é natural, nem mesmo necessariamente
fundamentada nas leis de constituição do som musical, (...) mas muito diversificada,
muito artificial e muito caprichosa” (Ellis, 1885).
Ellis conclui o seu artigo comentando que uma nova área de pesquisa deveria se
estabelecer através de longas e cuidadosas observações por parte de físicos com noção
de música. Com isso, Ellis aponta para a dificuldade inicial que membros de uma
cultura musical específica têm de ouvir e de reconhecer com propriedade outros
sistemas de afinações (1885:527), sugerindo, pois, que músicos (ou musicólogos) do
Ocidente não seriam os profissionais mais adequados para o estudo da música não
ocidental.
Apesar de submetidas posteriormente a certas correções (Schneider, 1976), as medições
acústicas de Ellis puderam dar uma primeira explicação detalhada do slendro javanes
como sendo uma escala pentáfona temperada. Provaram também a existência da escala
heptafônica temperada (pelog), igualmente de Java.
Pesquisas científicas como as de Ellis e a sistematização de Adler não bastaram para
vermos nascer uma nova disciplina. Adler permanecia fiel à musicologia histórica e
Ellis contribuía à física acústica e à psicologia, primeiramente. No entanto, já se percebe
uma nítida ampliação do campo musicológico, definida mais adequadamente como
quebra ou ruptura. Esta ruptura na musicologia, essencialmente epistemológica, resume-
se em dois pontos:
(1) a descoberta de que a música ocidental não obedece a leis universais e, por
conseguinte,
(2) o fato de a cultura musical do ocidente não ser única e tampouco representar modelo
obrigatório sine qua non para toda e qualquer prática musical do globo.
Em Viena estas metas permanecem em pauta durante todo o Século XX. A música,
portanto, somente é uma entre três grandes áreas de documentação sonora. Hoje soam
curiosas as observações de 1899 da comissão fundadora do arquivo, quando sugere que
no caso de falas de povos “selvagens, porém cristãos”, o pesquisador faça
primeiramente o registro de uma versão do Pai Nosso, afim de facilitar a comparação
linguística e fonológica posterior.
Em breve os pequenos cilindros de cera do fonógrafo de Edison chegavam à Europa na
bagagem de antropólogos e de viajantes, com registros de sons, melodias, cânticos e
falas de todos os continentes, fazendo crescer os recém instituidos arquivos de Viena, de
Berlim e de Paris. É significativo estes arquivos terem sido criados por pesquisadores
não-musicólogos. As áreas de investigação diretamente interessadas no novo tipo de
registro fonográfico, que agora era tanto acústico quanto cultural, pertenciam às ciências
exatas, à fisiologia, à psicologia e às ciências sociais. No entanto, o arquivo que mais se
destacaria, justamente por dirigir seu foco principal sobre a música, é o
Phonogrammarchiv de Berlim. Este arquivo pôde em breve reunir importantes
pesquisadores, nomes que logo estariam entre os pioneiros da musicologia comparativa.
O Berliner Phonogrammarchiv cresce rapidamente e se torna uma importante instituição
de pesquisa e de produção de saber. Por três décadas consecutivas exerceria influência
sobre pesquisadores e instituições afins em todo o mundo.
Em Berlim é o aluno e sucessor de Stumpf, Erich Moritz von Hornbostel (1877-1935)
que amplia a coleção iniciada por Stumpf no instituto de psicologia. Hornbostel não era
musicólogo, tampouco psicólogo tal qual seu professor Carl Stumpf. Era químico,
orientando de Robert W. Bunsen, o que explica a forte filiação da musicologia
comparativa da escola de Berlim, de um lado à psicologia e, do outro, aos métodos das
ciências biológicas e exatas.
A música gravada representava o material de trabalho que era estudado, fornecendo as
informações necessárias para que, com o tempo, pudesse surgir uma visão global de
todos os estilos musicais do nosso planeta. O essencial para isso era a coleção
sistemática das fontes sonoras. Para ampliar o mais rapidamente esta coleção
Hornbostel fazia, em 1905, o seguinte apelo:
Novos paradigmas
Me pergunto muitas vezes, quais as vantagens que a nossa “boa” sociedade tem sobre
aquela de “selvagens”. Chego à conclusão que quanto mais observo seus costumes,
menos temos o direito de olhar de cima sobre eles (...). Esta viagem me fortaleceu
(enquanto pessoa que pensa) o ponto de vista da relatividade de todas as maneiras de
trato cultural (Bildung). (Citado em Jonaitis, 1994:122)
Este respeito perante a cultura “do outro”, mesmo que completamente diferente dos
princípios da própria sociedade, espelha-se também em muitas das abordages de
Hornbostel, que independente de opiniões contrárias, por vezes ferozes, vindas da
musicologia histórica, mantinha-se convicto da validade de suas descobertas e teorias. É
o próprio Boas que o convida a fazer suas primeiras (e únicas) pesquisas de campo nos
EUA com indígenas norte-americanos.
O Zeitgeist dos primeiros anos do Século XX, portanto, é propício para o surgimento da
etnomusicologia. Não pode ser coincidência, então, a disciplina se apresentar moderna,
avançada e arrojada desde o momento dos seus primeiros passos. Ela é moderna na
mesma acepção dada ao termo pelos modernistas, movimento que se fortalece
rapidamente neste início de século. Como estes, também a etnomusicologia prevê o
final das convenções tradicionais de certas linhas de pesquisa, ou se opõe a opiniões
estéticas onde as artes são vistas unicamente em consequência do seu meio natural. É o
momento para se abrir ao mundo desconhecido – fala-se em “exotismo” – e abandonar
convenções ultrapassadas. Surgem obras emblemáticas das artes plásticas, inspiradas no
descobrimento deste exotismo, como “Les Demoiselles d'Avignon” de Pablo Picasso.
Independente de alguns de seus representantes, como Curt Sachs, que ainda se prende
ao evolucionismo histórico, a musicologia comparativa em si também expressa esta
renovação, não se submetendo à tradição oitocentista, basicamente filológica, das
ciências humanas de seu tempo e representada pela musicologia histórica. Esta nova
musicologia comparativa já demonstra ser aliada dos recursos tecnológicos, dos quais se
beneficia desde o início. Assim, a sua abertura e vontade de inovar é a mesma das
descobertas tecnológicas; a sua independência de um locus geográfico e temporal fixo é
semelhante ao da física da Teoria da Relatividade, seu credo estético dialoga com
aquele dos modernistas, deixando para trás tudo aquilo que pouco antes parecia único e
incontestável.
Incontestável ainda se pretendia a idéia do mais célebre dos teóricos da música deste
inicío de século, Hugo Riemann, quanto ao “edifício sonoro da humanidade”. É
Riemann, precisamente, que mais se incomoda com o “relativismo musical” dos
comparativistas:
Surge a disciplina
Nos anos de 1904 e 1905 são publicados alguns textos que, metaforicamente, podemos
chamar de “certidões de nascimento” da etnomusicologia, pois anunciam claramente o
incipiente campo de estudos, situado epistemologicamente entre a musicologia e a
antropologia. Mesmo filiada, a partir deste momento, a ambas as ciências, esta pesquisa
de “músicas exóticas” ainda permaneceria, por um bom tempo, sem o devido
reconhecimento pleno por nenhuma das duas.
Sem dúvida, esta é uma constatação que se tornará verdadeiramente programática para a
disciplina a partir das décadas seguintes. Importante notar, também, que a observação
denota um distanciamento da musicologia histórica, e uma subseqüente aproximação à
antropologia cultural, dentro da linha de Franz Boas.
O que (...) se realizou neste campo faz prever, desde já, que dentro de pouco tempo a
musicologia comparativa se tornará uma das mais importantes e interessantes
disciplinas da antropologia” (Luschan, 1904:201).
Vemos então que, rejeitada inicialmente pela musicologia e acolhida pela antropologia,
a etnomusicologia se constitui e logo ganha o perfil que lhe é próprio: “duplo” e
“dividido” (4).
Como este início de século é de contestação artística, de renovação tecnológica e de
reorientação conceitual em muitas ciências, o momento não poderia ser melhor para
uma nova disciplina que busca entender o que é estranho, que valoriza o que é
desprezado, além de essencialmente preocupada em aumentar o próprio horizonte do
saber, através do re-conhecimento de um mundo cada vez mais moderno, e, por isso
mesmo, cada vez mais diversificado e múltiplo em seus sentidos.
Tabela
Notas
1. Bruno Nettl faz menção a algo como uma celebração de 120 anos da
etnomusicologia, partindo de 1885, ano em que Alexander J. Ellis publica o resultado de
suas pesquisas acústicas (Ellis, 1885). Na verdade Nettl inclui o período que antecede o
nascimento da etnomusicologia conforme busco argumentar neste ensaio. Nettl toma os
50 anos da “Society for Ethnomusicology” como ensejo para refletir sobre as datas
importantes da disciplina (Nettl, 2005).
2. Uma versão reduzida deste texto foi apresentada na mesa redonda “Presente e futuro
da Etnomusicologia no Brasil” (2º Enconcontro Nacional da ABET em Salvador,
novembro de 2004). Ainda estavam presentes à mesa Manuel Veiga e Rafael José de
Menezes Bastos. A mesa foi presidida por Salwa El Shawan Castelo-Branco.
3. Para uma discussão mais aprofundada sobre a complexa relação entre a musicologia
histórica e sistemática, vide Menezes Bastos, 1995.
Referências bibliográficas
Adler, Guido
1885 “Umfang, Methode und Ziel der Musikwissenschaft”, Vierteljahrschrift für
Musikwissenschaft, vol. 1: 5-20
1924 Handbuch der Musikgeschichte. Frankfurt a. Main
Ellis, Alexander J.
1885 „On the Musical Scales of Various Nations“, Journal of the Society of Arts, vol.
33: 485-527
Graf, Walter
1972 “Das ethnologische Weltbild im Spiegel der vergleichenden Musikwissenschaft”,
Wissenschaft und Weltbild, vol. 25 / 2: 151-158
Hornbostel, Erich M. von
1905 “Die Probleme der vergleichenden Musikwissenschaft”, Zeitschrift der
internationalen Musikgesellschaft, vol. 7 / 3: 85-97
1909 “Über einige Panpfeifen aus Nordwest-Brasilien”, Theodor Koch-Grünberg: Zwei
Jahre unter den Indianern – Reisen in Nordwest-Brasilien 1903/1905. Berlin, 378-423
1923 “Musik der Makuschi, Taulipang und Yekuaná”, Theodor Koch-Grünberg: Vom
Roraima zum Orinoco. Stuttgart, 397-423
Jonaitis, Aldona
1994 From the Land of the Totem Poles. The Northwest Coast Indian Art Collection at
the American Museum of Natural History. New York, Seattle
Menezes Bastos
1985 “Esboço de uma teoria da música: para além de uma antropologia sem música e de
uma musicologia sem homem”, Anuário Antropológico, vol. 93:9-73
Merriam, Alan P.
1964 The Anthropology of Music. Evanston
Nettl, Bruno
2005 “A Year of Anniversaries”, SEM Newsletter, 39 / 3: 5
Riemann, Hugo
1904 Handbuch der Musikgeschichte, vol. 1. Leipzig
Stangl, Burkhard
2000 Ethnologie im Ohr. Die Wirkungsgeschichte des Phonographen. Viena