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Livro de Filosofia Do Direito
Livro de Filosofia Do Direito
Josemar Soares
2010
© 2010 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por
escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais.
ISBN: XXX-XX-XXX-XXXX-X
CDD 340.1
Justiça e Direito 53
no teatro grego: tragédias e comédias
Introdução | 53
Ésquilo | 54
Sófocles | 56
Eurípedes | 62
Conclusões sobre a tragédia | 64
A comédia de Aristófanes | 65
75
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Introdução | 75
Escola Jônica | 76
Os pluralistas | 78
A Escola Atomística | 79
A Escola Pitagórica | 81
A Escola Eleata | 83
Heráclito de Éfeso | 85
Os sofistas | 88
A formação do homem 97
e da sociedade grega em Sócrates e Platão
mário
Introdução | 97
Sócrates e a importância do autoconhecimento | 97
A Justiça como paideia em Platão | 102
121
Justiça em Aristóteles
Introdução | 121
Justiça e Ética | 122
Justiça na polis: a Política | 129
Conclusões | 134
143
Helenismo e Idade Média
Introdução | 143
O pensamento filosófico no período helenístico | 143
Santo Agostinho | 148
Tomás de Aquino | 151
Duns Scott | 155
Guilherme de Ockham | 156
235
Direito e Política na Dialética de Hegel
O sistema hegeliano | 235
As linhas fundamentais da Filosofia do Direito | 240
Considerações finais sobre a Filosofia do Direito e o sistema hegeliano | 249
Habermas | 290
Miguel Reale | 292
307
Anotações
Apresentação
Que o mundo como conhecemos hoje é resul-
Filosofia do Direito
tado de uma intensa evolução histórica, isso é
algo que não se pode negar, mas o que pouco
se sabe é o quanto o pensamento filosófico con-
tribuiu para essa evolução.
Os grandes fatos que marcaram a história e as
principais decisões que alteraram os rumos da
humanidade sempre tiveram como fundamen-
to um determinado modo de compreender o
mundo e de agir tendo em vista esse entendi-
mento. Ora, a busca incessante pela compre-
ensão do mundo e o anseio por encontrar a
verdade das coisas é justamente o objetivo da
Filosofia. Foram essas grandes mentes da his-
tória que pensaram, idealizaram e discutiram
aquilo que se tornaria realidade após anos, dé-
cadas, ou até mesmo séculos da publicação de
suas propostas.
Esse gradativo processo não pode ser ignorado
na atualidade, em especial no mundo do bu-
siness, onde o conhecimento das bases pelas
quais está construída a sociedade e o Direito,
entendido como o sistema lógico-racional de
determinação de conduta daquela sociedade,
revela-se essencial quando tratamos do desen-
volvimento de uma organização e de sua res-
ponsabilidade social.
Portanto, o conhecimento dos principais enten-
dimentos da ideia de Justiça, da ordenação da
conduta humana, seja no seu aspecto individu-
al (Ética), seja coletivo (Direito, Política) são de
suma importância, porque além de direcionar a
relação de uma organização com a sociedade,
beneficiam ao próprio businessman na cons-
trução de sua vida pessoal e de sua carreira
profissional.
Tendo em vista a importância desse tema e a ca-
rência de obras nesse sentido, a proposta deste
curso é apresentar de maneira simplificada, sem
perder a profundidade do conteúdo trabalhado,
Filosofia do Direito
as principais concepções de Justiça, tanto em
seu aspecto particular quanto geral, bem como
a disciplina do agir humano, demonstrando a
importância do conhecimento das ideias desses
pensadores para o líder de hoje, percorrendo
desde os primeiros filósofos na Grécia até os
pensadores contemporâneos.
Trata-se de uma obra que interessa não somen-
te às lideranças organizacionais, mas também
àqueles que buscam uma compreensão mais
profunda sobre a posição do homem na socie-
dade e sobre o papel das organizações da socie-
dade civil e do Estado na criação de uma socie-
dade livre, justa e igualitária.
Introdução ao pensamento
filosófico
Introdução
A Filosofia do Direito é uma parte da Filosofia. Assim, para se entender
adequadamente o movimento dos pensadores que articularam conceitos
e ideias referentes à categoria Justiça, é importante antes esboçar algumas
considerações preliminares acerca da Filosofia, para depois ser possível
entrar com mais segurança no terreno da Filosofia do Direito.
14
Introdução ao pensamento filosófico
ou com dogmas essenciais que somente eram dominados pela classe sa-
cerdotal. Os principais escritos que fundamentavam sua religião eram os de
Homero e Hesíodo, donde extraíram seus modelos de vida, matéria de refle-
15
Introdução ao pensamento filosófico
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Introdução ao pensamento filosófico
as essências dos seres e seus acidentes, aquilo que especifica qualquer coisa,
individuando-a ante as demais, bem como os acidentes, os elementos que
qualificam essa substância individuada. Trata-se da mais abstrata, porém mais
17
Introdução ao pensamento filosófico
profunda das áreas da Filosofia, pois estuda os elementos que constituem toda
a realidade, estando além dela. Por tal motivo, a Ontologia ocupa-se também
do estudo das causas dos fenômenos, até encontrar um princípio primeiro, de
onde partem todos os demais, sendo chamada, assim, de Filosofia Perene.
18
Introdução ao pensamento filosófico
O Direito examina e formula suas leis, suas normas jurídicas. Mas a Filoso-
fia examina esse exercício, a Filosofia busca o conceito de Direito, contextu-
alizando sua função ao movimento social e cultural da humanidade. A Filo-
sofia tem prerrogativa para afirmar se uma lei é justa ou injusta, porque sua
crítica não parte de um dado posto, mas do universal, ela entende o Direito
como um enorme processo histórico, que se adéqua de modo diferente a
cada espaço e tempo. O direito positivo, o direito natural, o ordenamento
jurídico, a necessidade, função, surgimento e conceito do Direito, tudo isso é
temática da Filosofia do Direito.
Desde Sócrates não há mais como separar o Direito da Ética. A Ética está
acima das normas e leis jurídicas, ela é o exame das ações humanas. A Ética
tem prerrogativa para analisar o Direito, porque a Ética estuda a natureza
humana, e tenta formular princípios para que o indivíduo se desenvolva e
se realize tendo em vista essa natureza humana. Com efeito, o Direito deve
prestar atenção à Ética, pois ambos trabalham com o agir humano e todas as
consequências que advêm disso para a sociedade.
19
Introdução ao pensamento filosófico
Filosofia e business
Se a Filosofia pode examinar criticamente e universalmente o Direito,
dando contribuições diferenciadas através da Filosofia do Direito, é certo
que ela pode realizar o mesmo em outros campos da vida humana, e aqui
incluímos o mundo do business. Os filósofos, quando buscam entender a na-
tureza humana, dando princípios para a sua realização existencial, em geral
não se esquecem de um importante aspecto: o econômico. Da poesia ho-
mérica aos contemporâneos, os pensadores colocam a questão econômica
como essencial para o indivíduo conduzir bem a sua vida. Nesse sentido,
este livro pretende trazer implicações ao business de cada pensador, ou seja,
quais ideias formuladas pelos filósofos podem contribuir com a atividade do
empresário e do empreendedor no aspecto tanto da Ética quanto da funda-
mentação do Direito, que tenha relação com as questões que envolvem o
mundo dos negócios.
Essa paixão pela verdade se torna uma incansável busca por encontrar as
causa primeiras de todas as coisas, aquelas causas que respondem os gran-
des questionamentos e ainda geram todos os outros questionamentos.
Talvez nenhuma frase seja tão ilustrativa para essa condição humana
como aquela empregada por Aristóteles para abrir a obra que, para ele,
era dedicada ao conhecimento do saber supremo: a Metafísica. “Todos os
homens, por natureza, tendem ao saber”21. 21
ARISTÓTELES. Metafí-
sica. p. 3.
A filosofia grega
A admiração pelo saber tornou-se maior, sobretudo, com os gregos an-
tigos, que viviam um período de profunda busca pelo saber. Da Teologia à
Política, passando pelas várias artes e ciências, tudo era objeto de grandes
investigações e reflexões. Fervilhava o espírito crítico, reflexivo e investiga-
21
Introdução ao pensamento filosófico
22
Introdução ao pensamento filosófico
Entre essas ideias ousadas está a alta estima dada tanto pelos poetas
como depois também pelos filósofos acerca dos conceitos de Direito e Jus-
tiça, e a atribuição da importância dessas categorias para a organização da
comunidade. A grande novidade trazida pelos gregos está no fato de conce-
ber a comunidade como uma organização essencialmente humana, tendo
suas concepções e determinações político-jurídicas como materialização da
vontade de seus próprios cidadãos.
23
Introdução ao pensamento filosófico
23
JAEGER, Werner Wi- todos, grandes e pequenos”23. Nesse processo, os grandes porta-vozes da vio-
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego. lência causada pelos magistrados foram justamente os poetas, em particular
p. 134.
Hesíodo. A luta pela diké seria então a luta pela aplicação do Direito, o que
envolveria inclusive a luta de classes. “Hoje, como outrora, podem continuar a
ser os nobres, e não os homens do povo, os juízes. Mas estão submetidos no
24
JAEGER, Werner Wi- futuro, nas suas decisões, às normas estabelecidas na diké”24. Contudo, inclu-
lhelm. Paideia: a Formação
do Homem Grego, p. 134. sive antes de Hesíodo, a vontade de conceber a Justiça como uma fonte indis-
pensável para a organização social já se via nos poemas homéricos.
27
sua validade e aplicabilidade a todos os cidadãos, a diké se refere à sua pró-
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma- pria aplicação. Na themis observa-se muito mais um princípio primeiro da
ção do Homem Grego, p.
134-135. fundamentação jurídica, da qual se provém a legitimidade para imposição
da lei, enquanto que na diké se vê o próprio movimento de realização do
Direito, e por isso abrange na mesma palavra as ideias de processo, sentença
e pena. Ademais, a aproximação da diké a uma ideia de equidade, em que o
Direito se reparte de forma justa a todos os cidadãos, tornou-se o fundamen-
to principal para as lutas de todos em nome de seus direitos. Como cada um
possui parte nessa ideia de Justiça, possuem também o direito de lutar por
seu direito. Dessa forma, a diké representa também o direito de cada cidadão
a lutar contra a hybris, que por sua vez equivale à ação contrária ao Direito.
Significa que há deveres para cada um e que cada um pode exigir, e, por isso, significa
o próprio princípio que garante essa exigência e no qual se poderá apoiar quem for
prejudicado pela hybris – palavra cujo significado original corresponde à ação contrária
ao Direito. Enquanto themis refere-se principalmente à autoridade do Direito, à sua
legalidade e à sua validade, diké significa o cumprimento da Justiça. Assim se compreende
28
que a palavra diké se tenha convertido necessariamente em grito de combate de uma
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
época em que se batia pela consecução do Direito a uma classe que até então o recebera
ção do Homem Grego, apenas como themis, quer dizer, como lei autoritária. O apelo à diké tornou-se de dia para
p. 135. dia mais frequente, mais apaixonado e mais premente.28
24
Introdução ao pensamento filosófico
pende do princípio de que todos são iguais perante a lei. “Procurava-se uma 33
Ésquilo narra em
Prometeu Acorrentado a
‘medida’ justa para a atribuição do Direito e foi na exigência de igualdade, história do furto do fogo
dos deuses por Prometeu,
implícita no conceito de diké, que se encontrou essa medida”32. que entregou aos mortais,
assim como na Ode a De-
méter vemos o relato do
A delimitação de medidas foi essencial para a construção do Direito, rapto de Perséfone por
Hades, e inclusive a con-
não somente no sentido positivo, da produção e aplicação de normas, mas clusão do Direito como
uma medida justa, em que
também na própria esfera moral, na delimitação e fixação de condutas que a vítima permaneceria
metade do ano na Terra e
a outra metade no mundo
não poderiam ser praticadas. Desde os tempos primitivos encontram-se na dos mortos, gerando as
quatro estações. Percebe-
literatura e na mitologia menções a delitos, como o assassínio, o adultério, o -se como as noções de
medida e delimitação já
furto e o rapto.33 Essa delimitação de condutas, de limites às ações humanas, estavam desde sempre
presentes na mentalidade
inclusive anteriores à fixação de normas, provém de um conceito ligado à grega.
ideia de diké, o termo díkayosine, que não possui uma tradução moderna
25
Introdução ao pensamento filosófico
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Introdução ao pensamento filosófico
-se como sinônimos. Pela Ética, o Estado tinha a garantia à educação de seu
Direito, de suas leis; e pelas leis, pelo Direito, o Estado garantia também a
formação do seu ideal de homem, cultivado naquelas virtudes que sua Ética
consagrou. Nessa comunidade ética, o cidadão vivia conforme a vida políti-
ca, cívica, em que o cidadão existia no Estado e participava do bem comum,
dos interesses gerais da polis. Essa existência pública e política imprimia no
espírito do cidadão um dever ético de realizar e viver também para a evolu-
ção do Estado, da comunidade. Como o Estado lhe concedia inúmeros direi-
tos, oriundos da antiga diké e o seu princípio da igualdade, entre eles a edu-
cação pública, era seu dever contribuir com o crescimento do Estado. Dessa
necessidade resultou o crescimento intelectual, profissional e espiritual do
homem grego. Em sentido prático, isso inclui a grande transformação na so-
ciedade grega, a passagem da antiga sociedade rural dos tempos hesiódicos
27
Introdução ao pensamento filosófico
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Introdução ao pensamento filosófico
29
Introdução ao pensamento filosófico
Para esse autor, seria um período histórico em que o homem ainda se mara-
41
Sintaticamente o vilhava com o mundo que o rodeia, entusiasmava-se por participar dele.41
objeto (ira, o herói, Ílion)
precede o sujeito. A aten-
ção, tanto a do poeta Isso não significa que contornos psicológicos e pessoais não estejam pre-
como a do ouvinte, está
presa no objeto. O objeto sentes na obra. Por exemplo, a epopeia inicia e termina com a ira de Aqui-
mantém o sujeito oculto.
Vive-se num período em les, a emoção que lhe impulsiona e dá a tônica dos relatos. A arrogância de
que o homem ainda não
tomou inteira consciência Agamemnon nos primeiros cantos desperta preocupação e resistência em
de si mesmo. Entusiasma-
-se pelo grande espetácu-
lo do mundo. Fascinam-no
seus próprios aliados, ao verem como ele enfrentou e permitiu facilmente
as obras dos deuses e dos
heróis. Sente prazer em
que o valente Aquiles se retirasse do combate. Até mesmo os deuses, como
nomear o mundo rico que
se desdobra diante de seus
já é frequente nas lendas gregas, não escapam de questões psicológicas, opi-
olhos. E não se apercebe
de si. Não lhe ocorrem suas
niões e preferências que por vezes os aproximam dos humanos. Logo no início,
dúvidas, dores ou conflitos
pessoais. Não olha para Apolo, o deus Sol, lança epidemia aos gregos, devido à rejeição de Agamemnon
dentro de si mesmo. O
mundo o absorve intei- em devolver sua escrava Criseida, filha de Criseis, sacerdote de Apolo.42 Depois,
ro. Na cultura em que o
homem só tem olhos e ou- vendo Aquiles, seu filho, sendo humilhado perante os gregos, Tétis implora a
vidos para o mundo e para
o outro, nasce a epopeia Zeus que dê a vitória aos troianos, até que se arrependam e peçam perdão a
com as estupendas faça-
nhas dos heróis e deuses. Aquiles.43 Também por várias vezes Atena é enviada ao campo de batalha, ora
(SCHÜLER, Donaldo. A
Construção da Ilíada: aconselhando um ou outro guerreiro. Logo no canto II, inclusive, vemos Zeus
uma análise de sua elabo-
ração. 2. ed. Porto Alegre: tendo dificuldades para dormir diante das reflexões que lhe vinham à mente,
LP&M, 2004. p. 13.)
provocadas pelo inesperado pedido de Tétis.
42
“O coração indignado,
se atira dos cumes do
Olimpo; atravessado nos Contudo, é somente na Odisseia que se verão sinais mais evidentes dos
ombros leva o arco e o
carcás bem lavrado. A cada dilemas humanos, vestígios de aspectos psicológicos que circundam aquela
passo que dá, cheio de ira,
ressoam-lhe as flechas nos obra; na Ilíada, não obstante, ainda se presencia tão somente o fascínio do
ombros largos” (HOMERO.
Ilíada. 5. ed. Tradução de: homem pela descoberta de si mesmo e do mundo. Na Ilíada não se pensa
NUNES, Carlos Alberto. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1996. em limites para a ação heroica, mas na vontade e no ato de conquistar por
Canto I, versos 44-46, p.
44.). inteiro esse mundo. É nesse cenário que surge a figura do herói, a clássica
43
“Se já algum dia, Zeus imagem da poesia homérica. Num primeiro momento, como o próprio Schü-
pai, te fui grata entre os
deuses eternos, seja por ler observou, é importante notar que no proêmio, o objeto principal da nar-
meio de ações ou pala-
vras, atende-me agora: ração da Ilíada, a causa primeira da história heroica, é a ira de Aquiles, e so-
honra concede a meu
filho, fadado a tão curta
existência, a quem o
mente secundariamente aparece como causa a vontade de Zeus. O homem
Atrida Agamemnom, rei
poderoso, de ultraje ino-
ainda não havia olhado para dentro de si completamente, de forma que seus
minável cobriu: de seu
prêmio, ora, ufano, se
limites não estavam completamente estruturados. Não tão dependente de
goza. Compensação lhe
concede, por isso, Zeus
Zeus, o homem aparecia a si mesmo como ilimitado, e nisso consistia a faça-
sábio e potente; presta aos
Troianos o máximo apoio, nha heroica. O significado de colocar a causa principal do ciclo da Ilíada na
até quando os Acaios
distingui-lo retornem e de ira humana, e não na vontade divina, revela que o destino, ainda que existen-
honras condignas o cer-
quem”. (HOMERO. Ilíada, te na cultura helênica, não absorvia completamente o homem, de forma que
Canto II, versos 503-510,
p. 54.) suas ações e resultados eram responsabilidades suas.
Também situa-se aqui o episódio do Canto II, em que Zeus envia um sonho
a Agamemnon, na forma do confiável Nestor, no qual este aconselha o herói
30
Introdução ao pensamento filosófico
homem nesse mundo que serve de palco e cenário para conquistas. E é por 47
Posteriormente, na
República, Platão direcio-
isso que a figura que se glorifica é a do herói, que não pode temer o destino, nará diversas críticas a
esse consenso de Homero
nem enfrentar a ordem natural das coisas, mas adentrá-la, e ali criar a história. como absoluto educador
da Grécia. O argumen-
Homero cria um mundo limitado, mas que permite atitudes ilimitadas nesse to platônico baseia-se,
essencialmente, na dis-
círculo, ainda que o homem não possa tudo fazer, pode dentro do seu possí- sociação entre Estética e
Ética na poesia homérica.
vel atitudes heroicas. Homero “[...] louva e exalta o que no mundo é digno de Para Platão, a arte jamais
poderia perder de vista
elogio e de louvor. Assim como os heróis de Homero reclamam, já em vida, a seu objetivo pedagógico
ligado à Ética, e as diver-
devida honra e estão dispostos a conceder a cada um a estima que tem direi- sas passagens tanto da
Ilíada como da Odisseia
retratando heróis em seus
to, assim todo o autêntico feito heroico é sedento de honra”46. Como se vê, momentos de comidas,
bebidas e sexo não seriam
Homero enaltece e louva a atitude heroica, porque esta é digna de honra, de louváveis eticamente
falando. Platão argumen-
forma que o herói passa a constituir o ideal de homem para o grego em geral. ta colando trechos dos
poemas. Para maiores
As palavras de Homero ecoaram por toda a história helênica, transformando-o aprofundamentos na crí-
tica platônica à estética
num educador de toda a Grécia. E a educação homérica47 baseava-se justa- homérica, ver: RODRIGO,
Lidia Maria. Platão contra
mente na educação do herói, de sua honra e coragem, da sua nobreza de es- as pretensões educativas
da poesia homérica. Re-
pírito ao deixar-se guiar pelas virtudes e atitudes de louvor, que somente o vista Educação e Socie-
dade, v. 27, n. 95, maio/
homem ativo e criador é capaz de realizar, ao contrário do herói passivo, que ago. 2006.
31
Introdução ao pensamento filosófico
Para Homero, como para os gregos em geral, as últimas fronteiras da Ética não são
convenções do mero dever, mas leis do ser. É na penetração do mundo por esse amplo
sentido da realidade, em relação ao qual todo “realismo” aparece como irreal, que se
baseia a força ilimitada da epopeia homérica.51 51
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a Forma-
ção do Homem Grego,
Há uma ligação do humano com o divino que permeia os poemas homé- p. 78.
ricos, tanto nas inúmeras interferências dos deuses na Guerra de Troia como
nas inspirações provocadas por Atena na viagem de Ulisses. Homero não
está preocupado em invadir o mundo interior de suas personagens, explo-
rando suas emoções, mas as ações, os movimentos do mundo exterior que
constituem a realização heroica. Cada ação, mesmo a cólera de Aquiles, tem
dois lados: um humano, a motivação psicológica da personagem, e outro
divino, que em geral se baseiam em vontades dos deuses ou na causa pri-
meira de tudo, a vontade de Zeus, o deus supremo. Há, portanto, uma ordem
estável, que na Ilíada chega inclusive a ser descrita na forma de concílios
entre os deuses, que, ainda que em alguns momentos se revele conflituo-
sa entre as próprias figuras divinas, demonstra como além do protagonista
existe sempre uma outra ordem a julgar e decidir o futuro.
Tal situação poderia parecer ao leitor contraditória, pois para quê Posêi-
don provocaria tantos problemas se Ulisses estava destinado a triunfar?
Porém, foi somente quando alcançou o limite de seu sofrimento existencial
é que Ulisses compreendeu que era sua soberba quem lhe provocava tantos
problemas. Ao realizar a passagem de humildade tornou-se novo homem,
mais preparado para os novos desafios. Há uma justiça superior em Homero,
que liga o humano ao divino, e inclusive apresenta consequências além dessa
dimensão. Tal Justiça surge ainda em sua mais profunda acepção, aquela em
que a Ética se preocupa com a formação do homem.
divino, nos limites éticos da ação humana que, embora motivada a expandir-
-se ao infinito e à arete do herói, chega sempre a um momento que a ordem
natural e superior das coisas, a lei universal, põe um fim. A ação Ética não
pode ser separada do movimento natural do Universo, da fluidez do mundo
exterior. O homem grego cultuado por Homero é aquele que dentro desse
cenário aparentemente limitado é capaz de, através das virtudes do herói,
realizar e construir uma vida sublime. A Justiça está nesse agir ético, é uma
concepção de Justiça que se define a partir de um ideal de homem formado
pelo cultivo das virtudes do herói, tendo a coragem como cerne. Nesse sen-
52 tido, a Justiça é uma virtude interna, e sua prática não é uma obediência às
Na mitologia grega, as
Musas eram as nove filhas
da união de Zeus com
leis, mas o ato de se guiar pelas virtudes éticas do herói e do ideal de homem
Mnemósina, que personi-
fica a Memória. Nasceram
grego, do homem nobre.
logo após a grande vitó-
ria dos deuses olímpicos
contra os titãs, para justa-
Hesíodo
mente cantar as enormes
façanhas dos vencedores.
“As musas são apenas as
cantoras divinas, cujos
coros e hinos alegram
o coração dos Imortais,
Depois de Homero houve outro grande poeta que influenciaria bastante
já que sua função era
presidir ao pensamento
a formação do ideal grego de homem justo e ético: Hesíodo. Contudo, havia
sob todas as suas formas:
sabedoria, eloquencia,
diferenças marcantes entre os dois. Hesíodo vivia em um tempo que não
persuasão, história, mate-
mática, astronomia. Para era tão dourado quanto o de Homero. Se em Homero era essencial cantar
Hesíodo, são as Musas
que acompanham os reis as façanhas dos heróis, em Hesíodo era mais importante cantar mensa-
e ditam-lhes as palavras
de persuasão, capazes gens que ajudassem o povo agricultor e trabalhador a levar uma vida mais
de serenar as querelas e
restabelecer a paz entre digna. Em Hesíodo se vê o segundo grande educador, agora não dos heróis
os homens. Do mesmo
modo, acrescenta o poeta e nobres, mas do povo e dos cidadãos comuns. O ideal de heroísmo trazido
de Ascra, é suficiente que
um cantor, um servidor por Homero persiste, mas agora não revelado apenas as lutas e guerras gran-
das Musas celebre as faça-
nhas dos homens do pas- diosas, mas também no árduo trabalho cotidiano.
sado ou os deuses felizes,
para que se esqueçam as
inquietações e ninguém
mais se lembre de seus so-
De Hesíodo nos chegaram duas poesias: a Teogonia e Os Trabalhos e os Dias.
frimentos. [...] Embora em
Hesíodo já apareçam as
A primeira narra em forma de mitos a origem genealógica dos deuses, desde
nove Musas, seus nomes
e funções variam muito, os deuses primordiais, que participaram da criação do Universo segundo a
até que, na época clássi-
ca, seu número, nomes visão religiosa da Grécia Antiga, e depois as gerações seguintes de deuses, até
e atributos se fixaram:
Calíope, preside à poesia os deuses olímpicos, como Zeus, Posêidon, Hades, Hera, Atena, entre outros.
épica; Clio, à história;
Érato, à lírica coral; Euter- Também apresenta a lenda que dá origem aos humanos: o roubo do fogo sa-
pe, à música; Melpômene,
à tragédia; Polímnia, à grado por Prometeu e a criação de Pandora, a primeira mulher.
retórica; Tália, à comédia;
Terpsícore, à dança; Urânia,
à astronomia”. Etimologi- Já Os Trabalhos e os Dias possui conotação bastante diversa. Aqui, é o pró-
camente, Música significa
“o que concerne às Musas”
e Museu é o “templo das
prio poeta, falando em primeira pessoa, com o dom da palavra e da verdade
Musas”, ou o local onde
alguém se adestra nas
inspirados pelas Musas52, que procura dizer algumas verdades ao seu irmão
artes. (BRANDÃO, Junito.
Dicionário Mítico-Etimo-
Perses, com quem o poeta discute alguns bens a serem distribuídos em su-
lógico. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1997. v. II. p. 150-
cessão. Hesíodo procura demonstrar ao seu irmão como Zeus deseja a Justi-
151.)
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terrenas como meros fatos existenciais humanos. Hesíodo se põe como in-
terlocutor das Musas, e não o autor propriamente dito, de forma que em
várias partes de seu poema acompanha-se prodigiosas preces a Zeus e ar-
gumentos tentando convencer Perses da condição divina da justiça, por ser
esta obra do senhor do Olimpo.
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mildade, pois ao reconhecer não ter muitas ideias sobre que decisões tomar
em determinadas situações, ouve seus companheiros. Ulisses não é o líder
rígido e autoritário, mas um líder que sabe usar o conhecimento dos demais.
O conhecimento, aliás, é ponto fundamental nessa história. Em várias oca-
siões, por falta de conhecimento, Ulisses tem sua viagem atrasada, causando
diversos problemas à tripulação, como ao não saber das dificuldades envol-
vendo o canal a qual protegiam os monstros Cila e Caribdes. Também sua
falta de conhecimento em relação às ilhas que se situavam entre Troia e Ítaca
lhe causaram estorvo, como ao parar no palácio de Circe. A falta de conhe-
cimento, aliada à falta de estratégia, são situações idênticas àquelas vividas
pelos empresários que possuem domínio técnico de algumas atividades, ou
não elaboram planejamentos consistentes a médio ou longo prazos. Não
basta vontade, coragem, atitude, é preciso ter inteligência também. Embora
Ulisses fosse homem bastante corajoso, lhe faltavam demasiados aspectos
técnicos, que se fossem diferentes certamente resultariam numa viagem de
volta muito mais rápida e tranquila.
Por fim, outro ponto importante e que merece ser destacado em Homero
é seu respeito pelo direito positivo e pelos critérios convencionais. Ulisses
implementou instituições de direito positivo para sua ilha, de forma que ele
sabia que ao retornar poderia encontrar pretendentes para sua esposa Pené-
lope. Ulisses enfrentou esse problema com inteligência, utilizando primeiro
42
Introdução ao pensamento filosófico
de disfarces, para melhor conhecer seus inimigos. Também seu filho Telê-
maco precisou conhecer as regras para evitar que os pretendentes se apro-
ximassem de sua mãe. Igualmente o empresário é obrigado a conhecer as
regras da sociedade, tanto as convencionais como aquelas próprias do direi-
to positivo, ou então terão problemas em várias questões. Não conhecer as
regras da sociedade pode significar erros tanto de aspectos morais, como ir
contra os costumes daquele povo, até problemas mais graves, como alguns
de ordem tributária ou trabalhista. Diversos empresários sofrem sérios abalos
financeiros simplesmente por desconhecerem as nuances das leis trabalhis-
tas, que possuem inúmeros casos específicos, e em geral defendem a figura
do empregado contra o empregador.
43
Introdução ao pensamento filosófico
44
Introdução ao pensamento filosófico
Mas quando se fala de religião grega é preciso operar uma nítida distinção
entre religião pública, que tem o seu mais belo modelo em Homero, e reli-
gião dos mistérios: entre a primeira e a segunda há uma divisão claríssima: em
mais de um aspecto, o espírito que anima a religião dos mistérios é negador
do espírito que anima a religião pública. Ora, o historiador da Filosofia que
se detenha no primeiro aspecto da religião dos gregos, veta a si mesmo a
compreensão de todo um importantíssimo filão da especulação, que vai dos
pré-socráticos a Platão e aos neoplatônicos, e falseia, portanto, fatalmente a
perspectiva de conjunto. E isso aconteceu justamente com Zeller e com o nu-
meroso grupo dos seus seguidores ( e, portanto, com o grosso da manualísti-
ca que por longo tempo reafirmou a interpretação de Zeller).
Mas quem são esses deuses? São – como há tempo se reconhece acertada-
mente – forças naturais diluídas em formas humanas idealizadas, são aspectos
45
Introdução ao pensamento filosófico
Portanto, como bem diz Zeller, o que a divindade exige do homem “não é
de modo algum uma transformação interior da sua maneira de pensar, não
uma luta contra as suas tendências naturais e os seus impulsos; porque, ao
contrário, tudo isso, que para o homem é natural, é legítimo também para a
divindade; o homem mais divino é aquele que desenvolve do modo mais vi-
goroso as suas forças humanas; e o cumprimento do seu dever religioso con-
siste essencialmente nisso: que o homem fala, em honra da divindade, o que
2
Zeller-Mondolfo, I, 1, P. é conforme com a sua natureza”2.
105.
Assim como foi naturalista a religião dos gregos, também “[...] a sua mais
antiga Filosofia foi naturalista; e mesmo quando a Ética conquistou a preemi-
3
Zeller-Mondolfo, I, p. 106. nência [...], a sua divisa continuou sendo a conformidade com a natureza”3.
Quanto Tales disser que “tudo está cheio de deuses”, mover-se-á, sem
dúvida, em análogo horizonte naturalista: os deuses de Tales serão deuses de-
rivados do princípio natural de todas as coisas (água). Mas quando Pitágoras
falar de transmigração das almas, Heráclito, de um destino ultraterreno das
almas, e Empédocles explicar a via da purificação, então o naturalismo será
profundamente lesionado, e tal lesão não será compreensível senão remeten-
do-se à religião dos mistérios, particularmente ao orfismo.
Mas antes de dizer isso, devemos ilustrar outra característica essencial da religião
grega, determinante para a possibilidade do nascimento da reflexão filosófica.
46
Introdução ao pensamento filosófico
Os gregos não possuíam livros tidos como sagrados ou fruto de divina re-
velação. Eles não tinham uma dogmática teológica fixa e imodificável. (Nessa
matéria, as fontes principais eram os poemas homéricos e a Teogonia de Hesí-
odo). Consequentemente, na Grécia não podia haver sequer uma casta sacer-
dotal que custodiasse os dogmas. (Os sacerdotes na Grécia tinham um poder
muito limitado e uma escassa relevância, uma vez que, além de não terem a
tarefa de custodiar e comunicar um dogma, não tinham nem mesmo a exclu-
sividade de oficiar os sacrifícios).
Atividades de aplicação
1. Em Homero todos os personagens recebem contornos heroicos, no
sentido de que uma vida ativa, ainda que de riscos, é mais válida que a
vida passiva. Relacione essa questão às problemáticas atuais, refletin-
do sobre o papel do cidadão de hoje na sociedade.
47
Introdução ao pensamento filosófico
Gabarito
1. O cidadão atual tende a levar uma vida sem grandes participações
políticas e sociais, preferindo a passividade. Comparando com o herói
Aquiles, em geral as pessoas se recusariam a entrar na batalha quando
soubessem dos riscos. Essa passividade gera redução de criatividade,
e por consequência do desenvolvimento do potencial.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4. ed. Tradução de: BOSI, Alfredo.
Revisão da tradução e tradução dos novos textos de: BENEDETTI, Ivone Castilho.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
48
Introdução ao pensamento filosófico
HOMERO. Ilíada. 5. ed. Tradução de: NUNES, Carlos Alberto. Rio de Janeiro: Ediou-
ro, 1996.
LESKY, Albin. História da Literatura Grega. Tradução de: LOSA, Manuel. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1995.
______. História da Filosofia Antiga: das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de:
PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. v. 1.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: PERINE; Marcelo. São
Paulo: Loyola, 1993. p. 21.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
49
Introdução ao pensamento filosófico
_____. A Construção da Ilíada: uma análise de sua elaboração. 2. ed. Porto Alegre:
LP&M, 2004.
50
Justiça e Direito no teatro grego:
tragédias e comédias
Introdução
A palavra teatro, analisada em sua origem etimológica significa “o lugar
onde deus escorre”, “como deus corre e se manifesta”, “como deus se faz
diante do povo”1. Disso já se pode inferir que as encenações teatrais pos- 1
Teatro (θεατρον) vem
da junção das expressões
suíam um espírito pedagógico aliado à religião, tratando-se do modo pelo gregas θεοζ (deus) e ρεω
(escorrer) (MENEGHETTI,
qual o divino do humano, aquela parte mais perfeita, ou seja, adequada à Antonio. Psicotea. Recan-
to Maestro: Ontopsicolo-
situação em que se encontra, a exata proporção do indivíduo com a vida, re- gica Editrice, 2006. p. 7.).
Ésquilo
Ésquilo nasceu e cresceu no período dos governos tirânicos em Atenas. Viu
a queda destes e a ascensão do novo governo ateniense, instituído pela re-
forma de Sólon. Essa experiência do nascimento da democracia ateniense e a
vitória grega na Guerra Médica tiveram marcante influência no modo em que
o autor construía suas tragédias. Conforme Jaeger, essas vivências são sólidos
vínculos com que Ésquilo unia a sua fé no Direito, herdada de Sólon, às realida-
des da nova ordem. Por isso, o Estado é o espaço ideal nos seus escritos.5
5
JAEGER, Werner Wilhelm.
Paideia: a formação do Desse modo, o autor faz ressurgir o ideal do homem heroico, porém, con-
homem grego. p. 285.
6
textualizado com a realidade urbana de sua época. Trata-se do retrato do
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma- homem que somente pode se realizar enquanto cidadão, exercendo suas
ção do homem grego. p.
291-292. atividades na polis. 6 Nesse escopo, ao apresentar as figuras dos cantos heroi-
7
LESKI, Albin. História
da Literatura Grega. Tra-
cos, não as retrata do modo como haviam se consagrado, mas sim utiliza-as
dução de Manuel Losa.
Lisboa: Fundação Calous-
como um fundo vazio, pelo qual expunha as ideias que deles se formavam.
te Gulbenkian, 1995. p.
133.
Como resultado, por exemplo, o Zeus de Prometeu Acorrentado representa
8
Trilogia composta pelas
a figura do moderno tirano, ou ainda Agamemnon, na tragédia de mesmo
peças Agamemnon, Coé-
foras e Eumênides (ÉSQUI-
nome, comporta-se de modo totalmente diverso do retratado por Homero.7
LO. Oréstia: Agamemnon,
Coéforas e Eumênides.
6.ed. Tradução de: KURY, Ésquilo utilizava-se de uma estrutura trilógica em suas tragédias, pois
Mário da Gama. Rio de Ja-
neiro: Jorge Zahar, 2003.). desse modo podia retratar um dos mais intrincados problemas refletidos em
9
sua produção – a transmissão das maldições familiares. Assim, o autor conse-
LESKY, Albin. A Tragé-
dia Grega. Tradução de guia retratar o destino de um mesmo herói em uma série de fases, como em
J. Guinsburg, Geraldo
Gerson de Souza e Alber- Prometeu Acorrentado, Libertado e Portador do Facho, ou de gerações, como
to Guzik. 3ed. São Paulo:
Perspectiva, 1996. p. 101. na Oréstia8.9
54
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
13
LESKY, Albin. A Tragé-
O ideal trágico em Ésquilo pode ser muito bem retratado através da análi- dia Grega. p. 103.
14
se da trilogia de Prometeu14, mais especificamente da única obra que nos foi Titã que na mitologia
grega roubou o fogo dos
deuses e o levou até os
legada completamente, Prometeu Acorrentado15. Essa é a tragédia do gênio; homens em um ato de
amor à humanidade da
enquanto nas demais obras o trágico vem de fora, em Prometeu a origem é qual ele próprio havia sido
o criador.
no próprio personagem, sua natureza e sua ação. Prometeu, assim, diz: “Eu 15
JAEGER, Werner Wi-
havia previsto tudo... Eu quis cometer o meu crime! Eu o quis, consciente- lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
mente, não o nego!”16. 309.
16
ÉSQUILO. Prometeu
Ao contrário do prevaricador castigado pelo crime de roubar o fogo dos Acorrentado. Tradução
de J.B Mello e Souza.
deuses de Hesíodo, Ésquilo retratou nessa façanha de Prometeu o símbolo 19.ed. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1998. p. 119.
sensível da cultura, do desenvolvimento humano. Celebra-se nessa peça o
herói pelos benefícios que trouxe à humanidade, ajudando-a no seu esforço
para progredir enquanto indivíduos e enquanto civilização. O fogo, nesse
sentido, significa a capacidade de conhecer, desvelar o mundo e utilizar-se
da própria razão para desenvolver-se.
Assim, pode-se dizer que é pela força da dor que o coração do homem
experimenta a passagem ao triunfo divino. O homem trágico expande sua
harmonia oculta com o ser e ergue-se, por sua capacidade de sofrimento e
por sua força vital, a um grau superior de humanidade, ou seja, possibilita-se
a este, por intermédio desses instantes, a realização das passagens essen-
ciais ao seu desenvolvimento próprio.
55
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Sófocles
Sófocles é considerado, tanto pelos antigos quanto pelos atuais pensado-
res, como o apogeu do drama grego devido ao rigor da sua forma artística
18
JAEGER, Werner Wi- e à sua luminosa objetividade.18 Característica marcante de suas tragédias
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p. é a representação das grandes questões que geram a crise do ser humano.
317.
As paixões mais violentas, os sentimentos mais ternos, a grandeza heroica
e altiva da autêntica humanidade, são profundamente semelhantes à atua-
lidade, motivo que justifica a constância de suas peças nos repertórios de
representações artísticas até a atualidade.
Édipo Rei
Édipo Rei é a primeira peça da trilogia sobre a tragédia na linhagem dos
20
Relativo à geração
oriunda de Lábdaco, geni-
Labdácidas20. Contextualizando a obra na mitologia grega, primeiramente
tor de Laio.
há de se considerar a maldição lançada sobre Laio, ponto de partida de toda
a intencionalidade que carrega as desgraças em sua família. Sua origem foi o
encantamento que Laio possuiu por Crísipo, filho do rei Pélops. Apaixonado,
raptou Crísipo, sendo por isso amaldiçoado por Pélops, que desejou que Laio
morresse sem deixar descendentes.
56
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Certo dia, Édipo é insultado por um ébrio, que o chamou de filho adotivo.
Procurando, então, o oráculo de Apolo, é revelado ao jovem que ele mataria
seu pai e casar-se-ia com sua mãe. Para evitar o cumprimento da profecia,
abandona o lar e foge para o caminho oposto a Corinto, Tebas. No trajeto,
encontra-se com um carro distinto, no qual vinha um homem idoso seguido
por seus criados. O senil grita insolentemente para que Édipo deixe o cami-
nho livre, e ele, absolutamente irado, mata o senhor e seus servos, seguindo
seu rumo.
57
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Anunciado seu triste fim, Édipo ordena que retirem de sua presença o sábio,
porém, logo na saída, lhe é novamente lançada a dúvida sobre sua linhagem.
Édipo, transtornado, passa a acusar todos, até que, ao ouvir as palavras do pastor
que havia sido encarregado de matá-lo quando recém-nascido, a verdade torna-
-se tão clara que o rei não mais podia desviar seus olhos dela. Édipo começa a
sentir culpa pelo que fez e a fazer-se de vítima do destino. Jocasta, constatando
que Édipo havia descoberto toda a verdade que ela escondia, suicida-se, e Édipo,
ao saber que sua mãe e esposa sacou a própria vida, escolhe não mais enxergar,
25
SÓFOCLES. A Trilogia cegando-se.25 Ele decide então que deve ser expulso da cidade. Antígona, sua
Tebana: Édipo Rei, Édipo
em Colono e Antígona. filha, decide acompanhar seu pai, tornando-se guia dele.
p. 87.
58
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
havia assassinado seu próprio pai e casado com sua mãe. Jocasta, persona-
gem que durante toda a peça estava ciente da realidade, ao perceber que
havia perdido o controle sobre a situação de domínio de seu filho e esposo,
acaba decidindo por sacar sua própria vida.
Édipo Rei nos revela, portanto, que, diante de uma realidade superior e
anterior que é a intencionalidade ao erro, representada pela ideia de “mal-
dição”, infelizmente aquele que é capacitado a não se deixar influenciar por
esse ciclo destrutivo acaba decidindo mantê-lo, não tendo coragem de en-
frentar e superar tal situação, sofrendo as consequências dessa triste esco-
lha, deixando, assim, a grandeza da própria vida.
Antígona
Antígona ocorre cronologicamente após um evento que não é trabalha-
do por Sófocles: o episódio dos sete reis contra Tebas. Após Édipo abando-
nar Tebas, seus filhos, Etéocles e Polinice, passam a disputar o trono da polis.
Ambos haviam firmado o acordo de se revezar no poder. Porém, Etéocles
ao assumir o poder decide não mais o compartilhar com o irmão. Polinice
abandona então a cidade-Estado e mobiliza o exército de seis reis contra
sua terra natal. Ambos os irmãos morrem na batalha, um transpassando sua 27
Episódio relatado na
peça: ÉSQUILO. Os Sete
lança contra o outro. Ao final, Tebas sai vitoriosa, e Creonte, tio dos falecidos Contra Tebas. Tradução
de: SCHÜLER Donaldo.
guerreiros, assume o poder. 27 Porto Alegre: L&PM, 2007.
59
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Logo após tomar posse do trono, Creonte profere o célebre édito que dá
princípio à tragédia: Etéocles, que morreu lutando pela cidade, deveria ser
sepultado com todos os ritos que tinha direito; Polinice, por outro lado, por
ter atacado a pátria, deveria permanecer insepulto, servindo de alimento às
aves e aos cães. Àqueles que descumprissem o comando do soberano de
28
SÓFOCLES. Antígona.
Tradução de Donaldo
Tebas ser-lhes-ia imposta a morte.28
Schuler. Porto Alegre:
L&PM, 2006. p. 20, 21.
Antígona, desconsiderando a ordem de seu tio, decide dar as devidas li-
bações e enterrar seu irmão, incitando sua irmã Ismênia a acompanhá-la, a
qual, temerosa da ameaça imposta aos descumpridores do decreto, não a
acompanha. Mesmo sem apoio, Antígona executa seu plano e enterra seu
irmão. Os guardas responsáveis por vigiar o corpo encontram-no enterrado,
informam a Creonte o ocorrido e o desenterram. Antígona, então, reitera sua
conduta, sendo surpreendida pelos guardiões e entregue a Creonte.
Buscando evitar a fúria divina, Creonte vai dar o funeral devido a Polinice,
porém, já era tarde. Hémon, seu filho, pranteando sobre o cadáver da amada
e prometida esposa, que havia se enforcado com um pano de linho fino, sui-
cida-se com sua própria espada, morrendo ao lado de Antígona. Informada
da morte de seu filho, Eurídice, esposa de Creonte, também retira sua própria
vida. O tirano, desiludido com todas as desgraças que o vitimaram, termina a
29
SÓFOCLES. Antígona. peça a lamentar todos os eventos que ocorreram.29
p. 96, 97.
60
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
tural, representado na peça como sendo o Direito dos deuses. Creonte, por
sua vez, estaria defendendo o direito positivo, ou seja, o Direito criado pelos
homens para reger suas próprias relações. Nessa interpretação, Creonte es-
taria buscando defender a cidade e sua honra ao proferir seu édito.
Creonte, por sua vez, sempre que tratava sobre sua decisão, se referia a
ela como uma medida em favor da cidade e da sociedade tebana. Mencio-
nava sua decisão como um prêmio ao irmão que bravamente sacrificou-se
pela guarda de Tebas e um castigo a Polinice, considerado traidor e, por isso,
condenado ao eterno sofrimento.
61
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Antígona, por sua vez, através do seu sacrifício, seu martírio, mais do que
lutar pela Justiça, por um digno enterro a seu irmão, encontrava na afronta a
Creonte, mesmo com a perda de sua vida, um modo de atingir o poderio de
Creonte e derrubar o injusto decreto. Demonstra-se a importância de um de-
sígnio subjetivo para barrar um ato objetivo indevido, o ímpeto de Antígona
contra um decreto descabido.
Eurípedes
Eurípedes é o último dos grandes tragediógrafos gregos; viveu no perío-
do em que Atenas já havia alcançado seu apogeu e começava a entrar em
declínio. Inclusive, é na tragédia de Eurípedes que se começa a denunciar
36
JAEGER, Werner Wi- a “crise do tempo”.36 O autor viveu no período posterior à sofística, motivo
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
386.
pelo qual nota-se a impregnação da ideia desses pensadores e de sua arte
retórica em suas peças. Além disso, é nessa época que ocorre a migração da
Filosofia da Jônia para Atenas, sendo que as ideias dos filósofos chamados
pré-socráticos oxigenavam o pensamento da metrópole crescente e também
influenciaram o autor.
62
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
63
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
A comédia de Aristófanes
Não é à toa que os gregos denominaram a comédia como “espelho da vida”,
nela se pensava na natureza humana, sempre igual, e nas suas fraquezas. A
comédia é justamente um espelho no qual se reflete de modo hilariante a
conduta dos homens, e nesse sentido nenhum outro gênero de arte ou de
literatura pode se comparar a ela. Conforme Jaeger: “A comédia visa as realida-
43
des do seu tempo mais do que qualquer outra arte”43. Desse modo, através da JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
efemeridade de suas representações, demonstram-se certos aspectos eternos ção do homem grego. p.
415.
do homem que escapam às demais formas de manifestação artística.
em perigo os valores aos quais deve toda a constituição de sua vida e sua for-
44
JAEGER, Werner Wi- mação elevada que o comediante ataca vigorosamente a nova educação.44
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
433. Por lutar por esse ideal Aristófanes tem Eurípedes como seu inimigo, dada
sua posição ante o florescimento do racionalismo. O autor projeta em Eurí-
pedes toda a corrupção moral que vivia seu tempo. Este, que era tido pelos
atenienses como uma figura divina, é utilizado para simbolizar a passagem
crítica dada pelo povo de Atenas que o colocava na atual situação.
45
ARISTÓFANES. Lisís- Na comédia Lisístrata45, na qual as mulheres de Atenas, Esparta, Corinto e
trata. Tradução de Millôr
Fernandes. São Paulo: Tebas, cansadas das tensões da guerra e de estarem longe de seus maridos
Abril, 1977.
que batalhavam entre si na Guerra do Peloponeso, sob a liderança da ate-
niense Lisístrata, se propõem a por um fim na guerra e alcançar a paz.
Ao final, tomados pelo desejo por suas mulheres, sem mais poder se con-
centrar na batalha, os homens rendem-se à revolução das mulheres e juntos
firmam a paz, pondo fim, pelo menos na comédia, à guerra entre as cidades-
-Estado gregas.
66
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
A comédia de Aristófanes
(JAEGER, 2003)
67
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
O fato de que até os altos deuses pudessem ser tema e objeto do riso cômico
prova que, no sentir dos Gregos, em todos os homens e em todos os seres de
forma humana reside, ao lado da força que leva ao pathos heroico e à grave dig-
nidade, a aptidão e a necessidade do riso. Alguns filósofos posteriores definiram
o Homem como o único animal capaz de rir – embora na maioria das vezes ele
seja definido como o animal que fala e pensa. Desse modo, colocam o riso no
mesmo plano da linguagem e do pensamento, como expressão da liberdade
espiritual. Se fizermos uma ligação entre o riso dos deuses homéricos e essa
ideia filosófica do Homem, não poderemos negar a alta origem da comédia,
apesar da menor dignidade desse gênero e dos seus motivos espirituais. A cul-
tura ática não pode manifestar a amplidão e profundeza da sua humanidade
com maior clareza do que por meio da diferenciação e da integração do trágico
e do cômico, operada no drama ático. Platão foi o primeiro a exprimi-lo, quando
no final do Banquete faz Sócrates dizer que o verdadeiro poeta deve ser ao
mesmo tempo trágico e cômico, em seguida exigência que o próprio Platão sa-
tisfaz ao escrever um ao outro Fédon e o Banquete. Tudo na cultura ática estava
68
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Atividades de aplicação
Leia este fragmento do artigo “O segredo dos poetas trágicos”, de Kathrin
Rosenfield, e responda às questões a seguir.
69
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Gabarito
1. Com base no que foi estudado, constata-se que as questões mal resolvi-
das no plano existencial-afetivo, se não enfrentadas pelo indivíduo, mas
tão somente suprimidas, se tornarão mais adiante um problema jurídico
que poderá atingi-lo, tanto na esfera individual quanto profissional.
70
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
Referências
ARISTÓFANES. Lisístrata. Tradução de: FERNANDES, Millôr. São Paulo: Abril,
1977.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, An-
tonio Pinto de. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. p. 258.
ÉSQUILO. Prometeu Acorrentado. 19. ed. Tradução de: MELLO E SOUZA, J.B. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1998. p. 119.
71
Justiça e Direito no teatro grego: tragédias e comédias
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. 3. ed. Tradução de: GUINSBURG, J.; SOUZA, Geral-
do Gerson de; GUZIK, Alberto. São Paulo: Perspectiva, 1996.
ROSENFIELD, Kathrin Holzermayr. O segredo dos poetas trágicos. In: ______ (Org.).
Filosofia & Literatura: o trágico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 158.
72
Os primeiros filósofos
pré-socráticos e sofistas
Introdução
A história da Filosofia traz os pré-socráticos como os primeiros pensado-
res da filosofia ocidental. São assim chamados por serem, em sua maioria,
filósofos anteriores a Sócrates. Para além das várias escolas de pensamento
que existiram no período dos pré-socráticos, há uma ideia que reunia todos
e os diferenciava dos poetas e dos tragediógrafos e comediógrafos: a neces-
sidade de explicar o mundo a partir da relação entre causa e efeito, a busca
por princípios que expliquem por que as coisas são como são. Por isso a
physis (natureza) é fundamental para esses pensadores: não se trata mais de
explicar de forma mítica, mas de forma investigativa.
Escola Jônica
mais nada a ver com o
caos hesiodiano, nem com
qualquer princípio mítico.
É, como diz Aristóteles,
“aquilo de que derivam ori-
ginariamente e em que se Na Escola Jônica encontram-se os primeiros fragmentos acerca de um
dissolvem por último todos
os seres”, é “uma realidade conceito de Justiça na história da Filosofia. O iniciador dessa escola foi Tales
que permanece idêntica
na transformação das suas
afecções”, vale dizer, uma
de Mileto, que disse que a água é o princípio de todas as coisas. Essa tenta-
realidade “que continua
a existir intransformada”,
tiva de encontrar uma explicação além da simples observação sensível fun-
mesmo através do proces-
so gerador de tudo. Por- damenta a passagem do pensamento mítico para o pensamento racional.
tanto, é a) fonte ou origem
das coisas; b) foz ou termo Os pré-socráticos, assim como Homero e Hesíodo, pensam o mundo como
último das coisas, c) perma-
nente sustento (substância, uma ordem preconcebida. Embora os mitos já contivessem elementos de
diremos um termo poste-
rior) das coisas. Em suma,
o “princípio é aquilo do
racionalidade, e inclusive Hesíodo mencionasse o Oceano como origem das
qual as coisas vêm, aquilo
que são pelo que são,
coisas, é somente com Tales que isso se modifica de uma exposição mítica
aquilo no qual terminam.
Tal princípio foi denomina- para um esforço explicador, que tente encontrar na natureza um porquê de
do com propriedade por
esses primeiros filósofos ela ser o princípio2 primeiro de todas as coisas. Tales de Mileto fundamentou
(senão pelo próprio Tales)
de physis, palavra que não isso ao observar que todas as coisas continham água, e que a vida frutifica-se
significa ‘natureza’ no senti-
do moderno do termo, mas
realidade primeira, originá-
a partir do úmido. Como Tales de Mileto notabilizou-se também por seus co-
ria e fundamental; significa,
como foi bem assinalado, “o
nhecimentos em astronomia, geometria e meteorologia, entende-se que a
que é primário, fundamen-
tal e persistente, em opo- água aqui evocada é justamente a água em sentido material, como princípio
sição ao que é secundário,
derivado e transitório”. elementar da natureza.
(REALE, Giovanni. História
da Filosofia Antiga. Tra-
dução de: PERINE, Marcelo.
São Paulo: Loyola, 1993. p.
Contudo, é com o seguidor de Tales, Anaximandro de Mileto, que o termo
52-53. v. I.)
3
Justiça finalmente surge na Filosofia. Anaximandro identifica o princípio de
Sobre o significado de
ápeiron, para Anaximan- todas as coisas não na água, mas no indefinido, no ilimitado, aquilo que ele
dro, cita-se a explicação de
Reale: “Digamos logo que
ápeiron é só imperfeitamen-
chamou de ápeiron3. Em um de seus fragmentos encontra-se: “[...] Princípio
te traduzido por infinito e
i-limitado, porque contém
dos seres [...] ele disse que era o ilimitado [...]. Pois donde a geração é para os
algo mais que os dois
termos portugueses não seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois,
translatam. Á-peiron signifi-
ca o que é privado de peras, concedem eles mesmos justiça e deferência uns aos outros pela injustiça,
isto é, de limites e deter-
minações não só externas, segundo a ordenação do tempo”4.
mas também internas. No
primeiro sentido, ápeiron
indica o infinito espacial,
infinito em grandeza, isto O ápeiron é essa lei permanente que governa o cosmos, na perspectiva
é, o infinito quantitativo; no
segundo, ao invés, o inde- em que os contrários se complementam formando uma ordem, uma regu-
finido quanto à qualidade,
portanto, o indetermina- laridade, uma certeza, e, por consequência, Justiça.5 O pensamento de Ana-
do qualitativo. O infinito
anaximandriano devia ter,
pelo menos implicitamen-
ximandro orienta-se no sentido de que há uma Justiça no cosmos que se
te, essas duas valências:
de fato, enquanto gera e
sustenta numa espécie de equilíbrio pendular, em que o excesso de um lado
abraça infinitos universos,
deve ser espacialmente exige ação contrária para restabelecer o equilíbrio original. Por isso o crime
infinito, e, enquanto não é
determinável como a água, não é uma ação que destrói a ordem, mas uma ação que apenas alarga seu
o ar etc., é qualitativamente
indeterminado”. (REALE,
Giovanni. História da Filo-
sofia Antiga. p. 52-53.) 76
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
5
O raciocínio de Anaximandro é particularmente provocante para os dias BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia do Direi-
atuais, pois em nossa sociedade tendemos a atacar e culpar partes do corpo to, p. 76.
social pelos fracassos gerais. O povo culpa os políticos pela inércia e impro-
bidade, que por sua vez culpam os empresários por muitas vezes não lem-
brarem do social, que também colocam a culpa nos legisladores que criam
normas muitas vezes absurdas. Os acadêmicos e cientistas teorizam e con-
denam a todos pelas atitudes erradas, e também são atacados por todos
por pensarem em demasia e pouco agirem. Em situação ainda mais dramá-
tica estão os marginalizados pela sociedade, que são sempre vistos como
vítimas ou criminosos. Isso tudo é trazido apenas a título de exemplo. Ora,
Anaximandro não retira nada desse equilíbrio pendular, todos os excessos já
fazem parte da ordem, de forma que não adianta culpar aquele movimento
contrário ou a ineficiência daquela parte, pois somos todos partes de um
mesmo corpo: a sociedade. Se a sociedade não está em estado de funciona-
lidade, não é porque aquela classe ou grupo provocou, mas porque também
nós não fizemos nossa parte, logo também somos responsáveis pelo fracas-
so. Logo se vê que Anaximandro pensa o Direito e a Justiça muito além dos
decretos legislativos e sentenças dos juízes; as leis e tribunais são partes do
movimento da Justiça, e não a diké por completa. A reflexão de Bittar vem
nesse sentido:
Não há separação, portanto, entre a ordem dos fenômenos causais-naturais e a ordem dos
fenômenos ético-sociais; tudo indica que há uma transposição efetiva da noção de culpa-
-responsabilidade das relações ético-jurídicas para a esfera das relações físico-naturais,
na medida em que o fragmento revela uma interconexão mais do que lógica, revela uma
implicação ético-jurídica ao nível do físico natural, a ponto de o kósmos vir-se a revelar a
base desse movimento, onde o mecanismo da causa-e-efeito funciona como instrumento
do equilíbrio geral das coisas entre si.6 6
BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 77.
Depois de Anaximandro, a Escola Jônica continuaria com Anaxímenes de
Mileto, que identificaria como princípio de todas as coisas o ar. O avanço que
trouxe Anaxímenes foi no sentido de acrescentar ao estudo da arché a forma
de como se originam desse princípio primeiro todas as demais coisas, que
para esse filósofo se dava nos processos de rarefação e condensação. O ar,
quando esquenta, dilata-se e dá origem ao fogo, e quando esfria, se contrai
e dá origem à água e depois à terra. Importante ainda esclarecer que Ana-
xímenes concebe seu pensamento partindo não somente do aprendizado
com os predecessores da Escola Jônica, mas também com a prática empírica,
pois percebeu que inclusive o homem vive devido ao movimento de entrada
77
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
e saída de ar, por exemplo. Além do mais, ao atribuir ao princípio uma condi-
ção determinada, às vezes visível e às vezes invisível, conseguiu inclusive se
distanciar de seu mestre Anaximandro.
Os pluralistas
Não podemos constituir os filósofos pluralistas como uma escola, pois não
houve um contato entre eles como de mestre e discípulo, tal como ocorria nas
demais escolas filosóficas do período. Os dois maiores nomes dessa linha de
pensamento, Anaxágoras de Clazómenas e Empédocles de Agrigento, possuí-
am em comum somente o fato de conceberem a causa de todas as coisas não
em um único princípio, como água, ar etc., mas numa pluralidade deles.
algo positivo, uma árvore. Da mesma forma, uma sociedade em crise pre-
cisa corromper seu sistema atual e adotar novos métodos, ou persistirá no
erro. O essencial de se extrair de Empédocles é que a mudança das coisas
acontece quando os elementos tornam-se um todo unitário ou deixam de
ser esse todo. Nesse sentido, vemos que muitas associações não são reuni-
ões verdadeiras de elementos, mas apenas manutenção de uma imagem;
muitas vezes não existe ali uma união de interesses entre os sócios, pois há
divergência de objetivos, ideias, ambições, e nesse caso talvez a corrupção
seja uma tendência inevitável.
79
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
80
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
A Escola Pitagórica
Os pitagóricos foram um célebre grupo de filósofos que se notabilizaram
por carregar as mesmas ideias, baseadas na concepção de que o número é
o princípio de todas as coisas. O grande iniciador dessa escola foi Pitágoras
de Samos, figura complexa que contribuiu enormemente com a Matemática,
criou uma seita religiosa, influenciou a construção da filosofia posterior, e
realizou ainda estudos em diversas áreas do conhecimento. Os pitagóricos
10
foram mentes que da Astronomia à Música, da Matemática à Cosmologia, REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga,
da Política ao Direito, tentaram entender o princípio que se situa além da p. 81.
11
Reale apresenta o
aparência e que dá fundamento a todas as coisas. método de observação
utilizado pelos pitagóri-
cos: “Em primeiro lugar,
Para entender melhor o número como princípio, observa-se a citação de os pitagóricos notaram
como a música (que cul-
Giovanni Reale: tivavam como meio de
purificação) era traduzível
por número e por deter-
Os números são todos agrupáveis em duas espécies, pares e ímpares (sendo que o um é minações numéricas; a
exceção, enquanto capaz de gerar tanto o par como o ímpar: acrescentando o um a um diversidade dos sons que
produzem os martelos
número par gera-se o ímpar, enquanto acrescentando-o a um ímpar gera-se o par, o que a bater sobre a bigorna
demonstra que ele traz em si a capacidade geradora tanto de pares como de ímpares e depende da diferença do
seu peso; a diversidade
por isso participa de ambas as naturezas). E porque, como sabemos, cada coisa é redutível dos sons de um instru-
a um número, cada uma é expressão de números pares ou ímpares.10 mento de cordas depen-
de da diferença do com-
primento de cordas; e, em
Para os pitagóricos o cosmos se constitui de uma dualidade: pluralidade geral, eles descobriram as
relações harmônicas de
dos existentes e unidade dos números. Ou seja, os números são a essência de oitava, quinta e de quarta
e as leis matemáticas que
todas as coisas, e os existentes, no qual se incluem tanto as coisas em geral as governam. E ao estu-
dar diferentes fenômenos
como o homem, são resultados de uma certa proporcionalidade numérica. do cosmo, também neste
âmbito, notaram a inci-
Através de raciocínios, observações e cálculos, os pitagóricos compreende- dência determinante do
número: são precisas leis
ram que em tudo existe uma proporcionalidade, uma espécie de razão que numéricas que determi-
nam o ano, as estações, os
dias etc.; são precisas leis
governa a existência em geral. Dessa forma, esses filósofos calcularam me- numéricas que regulam os
tempos de incubação do
didas no espaço, observaram planetas, analisaram a música, e entre outras feto, os ciclos de desen-
volvimento e os diferentes
experiências encontraram fundamento para sua filosofia.11 fenômenos da vida”.
81
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Existe uma medida perfeita, uma medida que inserida em harmonia cons-
titui beleza estética e também Justiça, e essa é a grande contribuição pitagó-
rica. A inserção da proporcionalidade como fundamento de verdade, de cri-
tério e inclusive de estética, do Belo, retratando a harmonia simétrica como
aspecto divino, ressoará em todas as dimensões da vida humana. Trata-se
de um certo tipo de proporção, de medida perfeita que devemos cultivar a
todo momento, uma simetria na qual qualquer atividade, qualquer ofício se
realiza como se fosse uma obra de arte. A mesma harmonia matemática que
cria a beleza da arte é a que sustenta um exame justo do Direito. Há sempre
uma medida perfeita a ser agida, uma decisão ideal a ser tomada.
A Escola Eleata
Com o pensamento eleático, que se inicia com Xenófanes de Colofão, segue
e alcança sua maior importância com Parmênides de Eleia, e recebe ainda
contribuições posteriores do discípulo Zenão de Eleia, a Filosofia finalmente
elabora aquilo que podemos chamar de metafísica. Afirma-se que os eleatas,
em especial Parmênides, criaram a disciplina da Ontologia12. A revolução pro- 12
A palavra Ontologia é
formada pelos vocábulos
vocada pelo poema de Parmênides intitulado “Sobre a natureza”, primeiro tra- onto, que deriva do verbo
einai (ser), e logia, que
tado filosófico em versos e o qual restam alguns fragmentos, está justamente vem de logos, portanto, o
“estudo do ser”.
no fato de o autor ter declarado que toda compreensão sensível, todo exame
humano a partir da existência corpórea situa-se apenas na doxa, na opinião,
e ainda que estas possam conter traços de verdade, conseguem ver apenas
partes do Ser, jamais este em sua totalidade. O Ser em sua completude e per-
feição somente é encontrado pela via racional da aletheia, da verdade, que se
encontra apenas no puro pensamento, numa dimensão afastada da insegu-
rança e instabilidade das compreensões humanas. O caminho da verdade leva
o homem até a verdade do Ser. Em Parmênides encontramos pela primeira
vez a contraposição entre opinião e verdade, questão que será problematiza-
da metaforicamente por Platão em sua alegoria da caverna. O pensamento de
Parmênides advém de Xenófanes, que era contrário à tradição politeísta dos
gregos, que sempre cultuaram deuses antropomorfos, ou seja, que possuem
13
Sobre a importância de
não somente aparência humana, mas também virtudes e defeitos humanos. Parmênides para a história
da Filosofia, vejamos o
Para Xenófanes e Parmênides, o Ser é um deus único, é a própria verdade. que assinala Reale: “Nesse
princípio parmenidiano,
os intérpretes há muito
Por isso que Parmênides sustentava que o ser possui algumas proprie- indicaram a primeira gran-
diosa formulação do prin-
dades que o distingue das simples aparências e fenômenos. O Ser é eterno, cípio de não contradição,
isto é, aquele princípio
imutável, perfeito, incorruptível, pleno, único, uno e imóvel. A simbologia do que afirma a impossibili-
dade de os contraditórios
Ser é o círculo, por ele ser perfeito, uno, sem início nem fim; no círculo tudo coexistirem simultanea-
mente. No nosso caso, os
é unidade plena e perfeita. A Ontologia de Parmênides – representada na contraditórios são exata-
mente os dois supremos
contraditórios ‘Ser’ e
sua máxima: “o Ser é e o Não-Ser não é” – influenciará decisivamente a filo- ‘Não-Ser’: se há ser, diz o
Eleata, não pode haver o
sofia posterior, pois as metafísicas platônica e aristotélica somente podem Não-Ser. É esse o grande
princípio que receberá de
ser concebidas com a influência parmenidiana, bem como a filosofia cristã Aristóteles a sua mais cé-
lebre formulação e defesa,
medieval de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino apenas poderão cons- e que constituirá não só
o fundamento de toda a
truir seus sistemas a partir da ideia de um único Ser completo e perfeito e lógica antiga, mas de toda
a lógica do Ocidente. Ade-
demonstrado também rigorosamente e logicamente, portanto ontologica- mais, Parmênides aplicará
o princípio quase exclusi-
mente. E é praticamente impensável qualquer discussão filosófica posterior vamente na sua valência
ontológica, e só Aristó-
sem o conceito ontológico de ser, pois continuaremos nele, seja na esco- teles desenvolverá siste-
maticamente as valências
lógicas e gnosiológicas
lástica medieval, seja no idealismo alemão, seja nos existencialistas, como correspondentes”. (REALE,
Giovanni. História da Fi-
veremos em capítulos posteriores.13 losofia Antiga. p. 109.)
83
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Heráclito de Éfeso 16
Observa-se a inter-
pretação de Reale: “O
Por fim, nossa jornada pelos pré-socráticos termina em Heráclito de Éfeso. sentido é claro: o rio é
aparentemente sempre o
Embora em geral se insira Heráclito junto aos pensadores jônicos, por este mesmo, mas na realidade
é feito de águas sempre
novas, que se acrescen-
afirmar que o princípio de todas as coisas é o fogo, ou seja, um elemento tam e se dispersam; por
isso à mesma água do rio
material, esse filósofo não constitui uma continuação propriamente dita que não se pode descer duas
vezes, justamente porque,
virá desde Tales de Mileto, pois como se verá a seguir o fogo heracliteano quando se desce a segun-
da vez, já é outra a água
possui posição na Filosofia bastante diferente dos elementos materiais dos que se encontra; e porque
nós mesmo mudamos, no
jônicos. Muito melhor é entender Heráclito como um filósofo singular, que momento em que com-
pletamos a imersão no rio,
concebeu sua própria forma de pensar. tornamo-nos diferentes
do momento em que nos
movemos para mergulhar,
Heráclito é sempre lembrado pela célebre frase que diz que um homem como sempre diferentes
são as águas que nos
não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio16, ou seja, em tudo há uma banham: assim Heráclito
pode dizer, do seu ponto
fluidez universal, que renova todo instante, de forma que não existe repeti- de vista, que entramos
e não entramos no rio.
ção, tudo é novidade. Hoje já não sou a mesma pessoa de ontem, pois renas- E pode também dizer
que somos e não somos,
porque, para ser o que
ço a cada instante. Tal doutrina contrapõe-se à unidade imóvel de Parmêni- somos em dado momen-
to, devemos não ser mais
des, sustentada nas propriedades do ser. Para Heráclito, o ser não pode ser aquilo que éramos no pre-
cedente momento, assim
eterno, somente o vir-a-ser. como, para continuar a
ser, deveremos logo não
ser mais aquilo que somos
[...] na medida em que um certo estado de vir-a-ser permanente define de modo definitivo nesse momento. E isso
a qualidade das coisas. E, não fossem essas coisas, sequer justiça haveriam de ter conhecido vale, segundo Heráclito,
para todas as coisas, sem
os homens, na medida em que desta unidade plural, é deste vir-a-ser onde a essência de exceção”. (REALE, Giovan-
tudo é estar o tempo todo em constante movimento, revela aos homens o que é cada ni. História da Filosofia
coisa, e nesta ordenação (onde os contrários se encontram em luta, e as coisas empíricas Antiga. p. 64.)
não encontram permanência), lhes faz conhecer justiça (“Nome de justiça não teriam 17
BITTAR, Eduardo C. B.
sabido, se não fossem estas (coisas)”).17 Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 78.
85
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
86
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
então é claro que na síntese dos opostos está o princípio que explica toda a realidade, e
é evidente, por consequência, que exatamente nisso consiste Deus ou o Divino [...]. E isso
significa, justamente, que Deus é a harmonia dos contrários, a unidade dos opostos.18 18
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga,
p. 65-67.
Por fim, o pensamento de Heráclito antecede Sócrates ao anunciar a im-
portância do autoconhecimento ao assinalar que todos os homens nasce-
ram com essa dádiva e que nela devem investir. Em Heráclito encontramos
já raízes antropológicas que serão reforçadas com os sofistas e finalmente
com Sócrates.
87
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Os sofistas
Durante séculos o termo sophisté acompanhou o significado de sábio,
como palavra derivada da expressão sophos, a mesma que originou o termo
filósofo. Contudo, com o crescimento da polis, a sophisté passou de sábio
a uma utilização mais técnica e específica, a de professor. Por isso, quando
surgem os sofistas estes são considerados os professores, os indivíduos que
ensinam diversas técnicas e ofícios a todo aquele que pagar pelo serviço.
Os sofistas diziam-se dominar uma série de técnicas, da Medicina à Astro-
nomia, da arte política aos temas jurídicos, e principalmente a arte retórica.
O objetivo da sofística não era desvendar o cosmos como tentavam os pré-
-socráticos, mas ensinar aos homens as situações cotidianas e úteis da vida
em geral. Uma revolução importantíssima, uma vez que os sofistas retiram o
cosmos do centro das discussões filosóficas e ali inserem o homem. Por isso
a história da Filosofia geralmente aceita o nascimento dos sofistas como a
transição do período cosmológico para o período antropológico.
88
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
90
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Com isso, a noção de justiça é relativizada, na medida em que seu conceito é igualado ao
conceito de lei; o que é justo senão o que está na lei? O que está na lei é o que está dito
pelo legislador, e é esse o começo, o meio e o fim de toda justiça. Nesse sentido, se a lei
é relativa, se se esvai com o tempo, se é modificada ou substituída por outra posterior,
então com ela se encaminha também a justiça. Em outras palavras, a mesma inconstância
da legalidade (o que é justo hoje poderá não ser amanhã). Nada do que se pode dizer
absoluto (imutável, perene, eterno, incontestável...) é aceito pela sofística. Está aberto 20
BITTAR, Eduardo C. B.
campo para o relativismo da Justiça.20 Curso de Filosofia do Direi-
to, p. 96.
91
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
92
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Atividades de aplicação
A partir da leitura do texto do Ampliando seus conhecimentos, responda
aos exercícios a seguir.
Gabarito
1. A arte, tanto para gregos, romanos como os renascentistas, exige uma
proporcionalidade que, conforme os artistas clássicos, simbolizava
uma medida divina. É uma busca por exatidão, proporção e perfeição,
que se for aplicada a cada pequena coisa do cotidiano transforma cada
tarefa numa obra de arte.
93
Os primeiros filósofos pré-socráticos e sofistas
Referências
ANAXÁGORAS. Fragmento. In: KIRK, G. S.; RAVEN, J. E.; SCHOFIELD, M. Os Filóso-
fos Pré-Socráticos. 4. ed. Tradução de: FONSECA, Carlos Alberto Louro. Lisboa:
Fundação Calouste Gukbenkian, 1994. p. 385.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: PERINE, Marcelo. São
Paulo: Loyola, 1993. p. 52-53. v. 1.
94
A formação do homem
e da sociedade grega
em Sócrates e Platão
Introdução
Neste capítulo estudaremos os pensadores que operaram a mudança do
eixo da Filosofia das colônias para Atenas, grande metrópole da época. Mais
do que isso, analisaremos duas figuras essenciais na Filosofia Clássica. Só-
crates é a mente que protagoniza uma passagem tão importante no pensa-
mento filosófico que acaba dividindo essa forma de conhecimento entre os
pensadores anteriores e posteriores à sua vida. Platão, principal discípulo de
Sócrates, criou um importante sistema filosófico que refletia sobre as mais
complexas questões do mundo, tal como o fizeram os pré-socráticos, assim
como sobre a conduta humana, em seu aspecto individual e social como seu
mestre, apresentando uma importante concepção de Justiça.
98
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Nesse sentido, há que se considerar que a cultura grega já dava muita im-
portância à saúde do corpo, ao valor da ginástica. Considerava-se o cuidado
do próprio corpo em uma dimensão de beleza, que refletia nas demais ques-
tões da vida. Contudo, Sócrates é inovador ao trazer mais do que a impor-
tância do cuidado com a saúde, também o cuidado com o mundo interior. A
alma para Sócrates é o que há de divino no homem7. 7
JAEGER, Werner. Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego.
Assim Sócrates define sua atividade no diálogo de Platão, Apologia de 4.ed. Tradução de Artur M.
Parreira. São Paulo: Mar-
Sócrates: tins Fontes, 2003. p. 528.
Nada mais faço do que andar pelas ruas a persuadir-vos, jovens ou velhos, a cuidardes
mais da alma que do corpo e das riquezas, de modo a que vos torneis homens excelentes.
E nada mais peço do que sustentar que a excelência não vem das riquezas, mas, pelo
contrário, da excelência vem as riquezas e todos os outros bens, tanto aos homens
particulares como ao estado.8 8
PLATÃO. Apologia de
Sócrates. In: ______. Apo-
logia de Sócrates. Críton.
Essa parte divina surge da consciência cultivada, que depois será o crité- p. 85, 86.
rio para identificar o que é adequado, justo. Pela consciência cultivada po-
demos ter o critério que já está na alma, mas que precisa nascer através de
um processo de desvelamento de si mesmo, de seus conceitos, preconcei-
tos, ideias e máximas. Conforme Jaeger: “Sócrates, tanto em Platão como nos
outros socráticos, sempre coloca na palavra ‘alma’ uma ênfase surpreenden-
te, uma paixão insinuante e como que um juramento. Antes dele, nenhum
sábio grego pronunciou assim essa palavra”9. 9
JAEGER, Werner. Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Compreendida a importância da psyche para Sócrates, para se poder 528.
99
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
101
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
102
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Assim como seu mestre, Platão seguia a tradição de transmissão oral das
ideias e ensinamentos. Platão entendia que o conhecimento, devendo ser
passado oralmente, não poderia ser reproduzido pela escrita, e esta serviria
somente como modo de se lembrar dos ensinamentos obtidos. Conforme
Jaeger: “[...] o que caracterizava Platão era o fato de lhe interessar mais expor
a Filosofia e a sua essência através do movimento vivo da dialética do que
23
sob a forma de um sistema dogmático acabado”23. JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Por esse motivo, considera-se que as principais doutrinas do pensamento 583.
do filósofo nunca foram escritas, conforme reflete Reale acerca das chama-
das “doutrinas não escritas”24. Apesar disso, Platão deixou uma vasta produ- 24
Assinala Reale: “Por
conseguinte, tanto Platão
ção intelectual, a qual encontra-se conservada até a atualidade. com as afirmações explí-
citas feitas sobre os seus
escritos como os seus
Sócrates é o personagem principal da maioria dos seus diálogos, os quais discípulos que nos infor-
maram da existência e dos
são identificados pela temática trabalhada em quatro principais grupos: os principais conteúdos das
‘Doutrinas não escritas’
diálogos do período socrático, no qual a influência de seu mestre ainda era comprovam, de modo ir-
refutável, que os escritos
marcante, exemplificando-se com diálogos como a Apologia de Sócrates, o não são para Platão a ex-
pressão plena e a comuni-
Críton e o Protágoras; o período de transição, onde Platão começa a apresen- cação mais significativa
do seu pensamento e que,
tar suas próprias concepções em obras como o Górgias e o Menon; o período em consequência, mesmo
possuindo nós todos os
da maturidade de Platão, onde este já apresenta suas próprias ideias como o escritos de Platão, de
todos esses escritos não po-
demos extrair todo o seu
faz em O Banquete, Fédon, A República e no Fedro; e o quarto e último perío- pensamento, e a leitura e a
interpretação dos diálogos
do, o das obras da sua velhice, com os diálogos chamados lógicos, tais como devem ser levadas a cabo
numa nova ótica”. (REALE,
Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, além do Timeu e As Leis.25 Giovanni. História da Fi-
losofia Antiga. II: Platão
e Aristóteles. Tradução
O pensador ateniense não se contenta em saber contemplar a essên- de: VAZ, Henrique Cláudio
de Lima; PERINE, Marcelo.
cia das coisas através da Filosofia, mas queria também criar o bem, dando São Paulo: Loyola, 1994. v.
2. p. 11.)
continuidade à proposta iniciada por Sócrates de formação da alma. Nesse 25
Cf. COPLESTON, Frede-
escopo, a obra escrita de Platão produz dois grandes sistemas educacionais, rick. Historia de la Filo-
sofía. 1: Grecia y Roma. p.
apresentados em A República e em As Leis. 151, 152.
É assim que Platão assume a herança de Sócrates e se encarrega da direção da luta crítica
com as grandes potências educadoras do seu tempo e com a tradição histórica do seu
povo; com a sofística e a retórica, o Estado e a legislação, a Matemática e a Astronomia,
a ginástica e a Medicina, a poesia e a música. Sócrates apontara a meta e estabelecera a
norma para o conhecimento do bem. Platão procura encontrar o caminho que conduz a
essa meta, ao colocar o problema da essência do saber.26 26
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Em A República, principal obra que analisaremos neste momento, encon- 590.
103
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Platão considera que há uma virtude (areté) própria a tudo aquilo que
está encarregado de uma função. Sendo a Justiça uma virtude da alma, e
a injustiça um defeito, conclui que a alma justa e o homem justo viverão
bem, enquanto o injusto viverá mal. O homem virtuoso é feliz e venturoso, já
quem não possui virtude alguma é o contrário, “o justo é feliz, ao passo que
o injusto é desgraçado”31. 31
PLATÃO. A República.
p. 50.
Platão então escreve que a Justiça é um bem que deve ser buscado por si
mesmo, tem de ser inerente à alma humana, uma espécie de saúde espiritual
do homem. Para comprovar tal ideia, leva o Sócrates de sua obra a idealizar
uma cidade, que seria fundada desde o início, buscando através desta en-
contrar o que é o Justo e qual sua finalidade.
105
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Ao terminar de constituir sua cidade, Platão conclui, no livro III, estar apto
a procurar pela Justiça dentro dela. Nesse ponto são apresentadas as quatro
principais virtudes que se encontrariam na cidade, as chamadas virtudes
cardeais: a sabedoria (sophia), a coragem (andreía), ou fortaleza de ânimo, a
temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosine). Conforme Copleston, a sa-
bedoria é a virtude da parte racional da alma, a coragem é a relativa à parte
38 irascível ou veemente da alma, a temperança consiste na união das partes
“La sabiduría es la
virtud de la parte racional
del alma; el coraje, la de
veementes e apetitivas abaixo do governo da razão, o controle das paixões.38
la parte irascible o vehe-
mente; y la templanza
A justiça é somente determinada mais adiante, após a apreciação dessas três
consiste en la unión de
las partes vehemente y
virtudes. Contudo, Platão já conclui no diálogo que o Estado perfeito deverá
apetitiva bajo el gobier-
no de la razón. La justicia
necessariamente possuir as quatro virtudes.
es una virtud general,
que consiste en que cada
parte del alma cumpla su O Estado possui a sabedoria porque tem um bom conselho, “a ponde-
propia tarea con la debida
armonía”. (COPLESTON, ração, é evidente que é uma espécie de ciência. Efetivamente, não é pela
Frederick. Historia de
la Filosofía. 1: Grecia y ignorância, mas pela ciência, que se delibera bem”39. Assim, o Estado é sábio
Roma. p. 226.)
pela classe de seus governantes.40
39
PLATÃO. A República.
p. 176.
Além disso, a cidade é corajosa “numa de suas partes, pelo fato de aí ar-
40
REALE, Giovanni. His-
tória da Filosofia Antiga.
mazenar energia tal que preservará através de todas as vicissitudes a sua
II: Platão e Aristóteles. p.
248. opinião sobre as coisas a temer, que são tais e quais as que o legislador pro-
106
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
107
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
resultados adequados.
108
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
corresponde ao mundo visível, o sol é o fogo cuja luz se projeta dentro dela.
A ascensão para o alto e a contemplação do mundo superior é o símbolo do
caminho da alma em direção ao mundo das ideias.51 51
JAEGER, Werner Wi-
lhelm. Paideia: a forma-
ção do homem grego. p.
Para a interpretação desse relato deve-se considerar a relação entre o 885.
mundo das ideias, das formas, o mundo inteligível, com o mundo das som-
bras, o mundo sensível. Para Platão, existem essas duas realidades, vivemos
109
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Demonstra-se assim que não se pode fazer ciência ou querer agir da ma-
neira adequada sem antes fazer essa passagem retratada na alegoria, o que
atesta a importância dessas concepções inclusive para o homem contempo-
râneo. Portanto, o governante, para que esteja capacitado a guiar seu povo
e seu Estado à plenitude, deve ter realizado essa passagem, de modo que
esteja apto a captar as essências, identificar o que realmente acontece na
vida, podendo assim agir do modo mais adequado e, desse modo, justo.
110
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
111
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
– Sem dúvida.
– É forçoso.
– Considera pois – continuei – o que aconteceria se eles fossem soltos das ca-
deias e curados da sua ignorância, a ver se, regressados à sua natureza, as coisas
se passavam desse modo. Logo que alguém soltasse um deles, e o forçasse a
endireitar-se de repente, a voltar o pescoço, a andar e a olhar para a luz, ao fazer
tudo isso, sentiria dor, e o deslumbramento impedi-lo-ia de fixar os objetos cujas
sombras via outrora. Que julgas tu que ele diria, se alguém lhe afirmasse que até
então ele só vira coisas vãs, ao passo que agora estava mais perto da realidade e
via de verdade, voltado para objetos mais reais? E se ainda, mostrando-lhe cada
um desses objetos que passavam, o forçassem com perguntas a dizer o que era?
Não te parece que ele se veria em dificuldades e suporia que os objetos vistos
outrora eram mais reais do que os que agora lhe mostravam?
112
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
– Pois não!
– Necessariamente.
– Com certeza.
113
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
– Suponho que seria assim – respondeu – que ele sofreria tudo, de prefe-
rência a viver daquela maneira.
– Com certeza.
114
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
– Ora pois! Entendes que será caso para admirar, se quem descer dessas coisas
divinas às humanas fizer gestos disparatados e parecer muito ridículo, porque está
ofuscado e ainda não se habituou suficientemente às trevas ambientes, e foi força-
do a contender, em tribunais ou noutros lugares, acerca das sombras, e a disputar
sobre o assunto, sobre o que supõe ser a própria Justiça quem jamais a viu?
– Dizem, realmente.
– Chamamos.
115
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
– Absolutamente.
(PLATÃO. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena da
Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 317-323.)
Atividades de aplicação
1. Considerando o que foi estudado sobre as concepções da filosofia so-
crática e da sua valorização do conceito da alma humana, a busca por
conhecê-la e por torná-la realidade efetiva, discorra sobre a importân-
cia do autoconhecimento para o exercício da liderança funcional na
contemporaneidade.
2. Conforme foi visto, Sócrates propunha-se não a ensinar aos seus pares,
mas sim a incentivá-los a encontrar um conhecimento que o pensador
entendia já ser existente, porém ignorado. Desse modo, utilizava-se da
ironia como modo de levar o interlocutor a compreender seu estado de
ignorância e, caso optasse, se dispor a buscar conhecer qual é a episte-
me, a verdade relacionada àquele fato em discussão. Pergunta-se, qual
a importância desse recurso na vivência empresarial, especialmente em
relação à formação de um corpo de colaboradores que torne possível o
desenvolvimento de todo o grupo?
116
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Gabarito
1. Trata-se de questão essencial ao indivíduo que se propõe a ser um
protagonista responsável a busca por conhecer-se e, através desse
processo, tanto encontrar o local onde essa pessoa exercerá do me-
lhor modo para si e para os demais sua liderança, assim como saberá
identificar e evitar situações de vivência que são muito mais ligadas à
sua formação do que um problema dentro da organização. Tal como
os clássicos diziam, é essencial um processo de autoconhecimento e
de cuidado com a inteligência para tornar-se um líder vencedor.
117
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
Referências
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tradução de: COELHO, António
Borges; SOUSA, Francisco de; PATRÍCIO, Manuel. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.
______. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revisão e tradução dos
novos textos: BENEDETTI, Ivone Castilho. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 425.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002.
2 v. p. 35.
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Di-
reito. p. 91-92.
118
A formação do homem e da sociedade grega em Sócrates e Platão
______. A República. 9. ed. Introdução, tradução e notas de: PEREIRA, Maria Helena
da Rocha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
119
Justiça em Aristóteles
Introdução
Seguindo o processo de análise da fundamentação do conceito de Justiça
na Grécia Clássica, chega-se ao momento de tratar sobre o maior expoente
do pensamento grego, representado pelo filósofo Aristóteles de Estagira1. 1
Aristóteles nasceu em
Estagira, na região da Ma-
cedônia, em 384/383 a.C.
Aristóteles distingue as ciências em três grandes ramos: as ciências teoréticas, Foi para Atenas aperfeiço-
ar sua formação, estudan-
que buscam o saber por si mesmo; as ciências práticas, que buscam o saber para do na Academia de Platão
por cerca de 20 anos. Após,
alcançar através dele a perfeição moral, e as ciências poiéticas ou produtivas, que fundou sua própria escola,
o Liceu. Com a morte de
buscam o saber em vista do fazer, da produção de determinados objetos.2 Alexandre Magno, retirou-
-se de Atenas, evitando
os movimentos contra os
macedônios que movi-
Aristóteles, contrariamente a Platão, seu mestre, trabalha ambas as ques- mentavam a cidade, indo
para a Calcídia. Morreu
tões separadamente, mesmo que em seu pensamento ambas ainda possu- em 322 a.C, poucos meses
após exilar-se. (REALE,
am uma íntima relação. Ao separá-las, o filósofo evidencia que sua proposta Giovanni. História da Fi-
losofia Antiga. Tradução
é tratar sobre as duas ciências, tendo em vista o todo, mas também conside- de: VAZ, Henrique Cláudio
de Lima; PERINE, Marcelo.
rando a metodologia adequada a cada parte nessa relação. São Paulo: Loyola, 1994. p.
316-317. 2 v.)
2
Tem-se, assim, a primeira lição acerca do pensamento aristotélico: não há REALE, Giovanni. Histó-
ria da Filosofia Antiga.
como se tratar das questões da sociedade, do direito, dos problemas das relações 2v. p. 335.
entre os indivíduos, sem antes se ter uma ideia da vida humana e qual é sua fina-
lidade. Necessita-se primeiro entender a vida humana e para onde ela natu-
ralmente tende, para depois falar na reunião dos seres humanos em organi-
zações sociais, assim como na criação do Estado como regulador das relações
humanas. Essa importante passagem deixada por Aristóteles, fruto do espírito
holístico do humanismo grego de sua época, acabou sendo perdida em meio
ao desenvolvimento científico, a partir do início da modernidade. Na tentativa
de superar a concepção aristotélica de ciência, a segmentação das áreas do co-
nhecimento atingiu tal ponto que, na atualidade, acaba-se por não visualizar o
liame existente entre a realidade do indivíduo enquanto pessoa e sua relação
com o corpo social. Chegou-se, assim, a extremos como a corrente da Socio-
logia, que entende que a sociedade é de tal modo tão preponderante sobre o
indivíduo, que este acaba sendo mero produto daquela. Segundo Aristóteles,
a sociedade, de fato, exerce grande influência sobre o indivíduo. Porém, ele
nunca perde a sua responsabilidade, a sua vontade que aceita tal situação e
submete-se ao poderio do meio em que se encontra.
Justiça em Aristóteles
Justiça e Ética
Para tratar das questões da Ética, utilizar-se-á o mais célebre tratado escri-
to por Aristóteles sobre a matéria, Ética a Nicômaco (Etica Nicomachea), obra
que é um verdadeiro compêndio sobre toda a existência humana. Nos dez
livros da obra são analisadas as principais questões nas quais é necessário
4
ARISTÓTELES. Ética a atentar quando propõe-se a viver bem.4
Nicômacos. Tradução do
grego, introdução e notas
de Mário da Gama Kury. Sobre o pensamento de Aristóteles, não há como se falar na estrutura-
2ed. Brasília: UnB, 1992.
p. 23. ção de uma sociedade sem ter firmada uma profunda concepção do ideal
da vida humana. A ação humana deve ter necessariamente como objetivo
um fim maior, um fim que é buscado em todas as coisas. Assim, considera
5
o filósofo que se para cada ação há alguma finalidade que desejamos por si
ARISTÓTELES. Ética a
Nicômacos. p. 17. mesma, evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens.5
122
Justiça em Aristóteles
Essa espécie de bem é a felicidade, pois todos a buscam, mesmo que di-
virjam acerca da concepção de felicidade que buscam. A felicidade é comu-
mente classificada em três diversos modos, como a vida prazerosa, a vida
política, ou a vida contemplativa. Aos primeiros, a felicidade confunde-se
com uma vida agradável e com a honra, no reconhecimento da nobreza do
caráter, enquanto que o verdadeiro ideal de conduta é a vida contemplativa,
que é o modelo de vida baseado nas virtudes, no qual o homem pode con-
templar a verdade e nisso ter o prazer em si próprio, sendo, por tal motivo, a
vida mais feliz.6 6
ARISTÓTELES. Ética a Ni-
cômacos. p. 201-203
A felicidade necessita não somente das virtudes, mas também dos bens
exteriores, pois é impossível praticar ações nobres sem os devidos meios.
Portanto, ao se falar em Ética, trataremos não somente dessas disposições de
formação humana, mas também daqueles bens externos que devemos obter
para que possamos viver bem. Nesse sentido consideram-se questões como
a amizade, a riqueza e poder político na obra. Conclui-se, assim, que felizes
são aqueles que agem em conformidade com a virtude perfeita e estão sufi- 7
ARISTÓTELES. Ética a
cientemente providos de bens exteriores, entendendo-os como tudo o que Nicômaco. p. 30
8
REALE, Giovanni. Histó-
é externo a nós e que nos auxilia em nosso desenvolvimento.7 ria da Filosofia Antiga.
2v. p. 414.
123
Justiça em Aristóteles
16
Ademais, para Aristóteles a boa conduta pode ser identificada por inter-
Contudo isso não
isenta quem pratica tais médio da reta-razão, ou seja, a exatidão racional que torna capaz a identifica-
atos involuntários de sua
responsabilidade, dado ção e classificação do módulo ideal de se agir. Reforça-se, assim, a importân-
que a temperança é jus-
tamente a virtude que cia da formação intelectual do indivíduo para que este possa agir bem.
aquele que sabe controlar
suas paixões possui.
17
Dessa ideia de reta-razão, entramos em outra questão essencial para se
BITTAR, Eduardo C.B.
Curso de Filosofia Aris- entender o objeto da ética aristotélica, a questão da voluntariedade das
totélica. p. 1033.
18
ações humanas. A alma possui duas partes: uma parte racional e outra ir-
Conforme Philippe: “[...]
a virtude depende de nós, racional – esta última se refere às paixões humanas. Conforme dissemos, a
porque é fruto de ações
voluntárias, de escolhas virtude se relaciona com paixões e ações, porém somente àquelas voluntá-
que dependem de nós.
Mas o que é verdadeiro
da virtude, o é também
rias, àquelas relativas à alma racional. As involuntárias recebem perdão ou
do vício. Pois nos casos
em que depende de nós
às vezes inspiram compaixão.16 O ato racional, outrossim, é o ato deliberado
agir, também depende
de nós não agir”. (PHILI-
e, por conseguinte, constitui-se de uma opção consciente do sujeito tendo
PPE, Marie-Dominique.
Introdução à Filosofia de em vista um fim específico.17 Portanto, as virtudes, sendo disposições ideais
Aristóteles. Tradução de:
HIBON, Gabriel. São Paulo: da conduta humana, dependem da voluntariedade do indivíduo para serem
Paulus, 2002. p. 51.)
praticadas.18
124
Justiça em Aristóteles
125
Justiça em Aristóteles
Para o exercício de sua função, o juiz tem como uma de suas prerrogativas
a possibilidade de recorrer a juízos de equidade, quando a situação o pedir,
pela ausência de previsão legal ou pela limitação da lei. Na atualidade, no
Estado brasileiro, nenhum juiz pode furtar-se de julgar uma situação que lhe
é provocada, se tiverem cumpridos os pressupostos para a recepção do pro-
cesso. Nesse sentido, o artigo 4.º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe 28
BRASIL. Decreto-Lei nº.
que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, 4.657, de 4 de setembro
de 1942. Lei de Introdu-
os costumes e os princípios gerais de direito”28. Demonstra-se, assim, que na ção ao Código Civil Bra-
sileiro. Disponível em: <
busca pela realização da Justiça, o ordenamento jurídico pátrio recepciona a http://www.planalto.gov.
br/CCIVIL/Decreto-Lei/
concepção aristotélica de equidade. Del4657.htm>. Acesso em
17 out 2009.
127
Justiça em Aristóteles
128
Justiça em Aristóteles
130
Justiça em Aristóteles
Assim, apesar da íntima relação entre a Ética e a Política, cada uma dessas
ciências disciplina o indivíduo de maneira diversa. Enquanto a Ética orienta
o indivíduo para que este saiba conduzir bem sua vida e, consequentemen-
te, vir a realizar-se, a Política busca preparar os cidadãos para que exerçam
devidamente suas funções dentro da estrutura do Estado. Apesar de ambas
as virtudes não serem as mesmas, não se está negando por intermédio dessa
afirmação a conduta Ética, mas sim consignando-se que não bastará sim-
plesmente a virtude para que o Estado possa estar organizado e venha a
gerir bem a vida de seus cidadãos.
131
Justiça em Aristóteles
quia, que é o governo dos mais ricos. Por fim, tem-se o regime ao qual se dá
o nome de regime constitucional, que é o governo de um grande número
de indivíduos e apresenta características atinentes à oligarquia e à democra-
cia, sendo um termo intermediário entre estas. Sua corrupção seria a própria
democracia, entendida como o governo dos pobres e tendo em vista seus
38
ARISTÓTELES. Política. próprios interesses.38
p. 38.
essas funções, o que somente será feito mais tarde, baseando-se nas ideias
do filósofo francês Montesquieu.
Porém, como isso não é possível e, por mais que o indivíduo desenvolva-se
e esteja acima da média, este ainda vive em meio à sociedade, e os demais co-
brarão dele o cumprimento dessas normas, reforça-se a questão das virtudes
do bom cidadão e do homem de bem. Necessário se faz calcular a conduta de
133
Justiça em Aristóteles
modo a se cumprir o que lhe é socialmente exigido, por mais que se esteja além
dessa relação, sem perder nesse processo o foco no próprio desenvolvimento.
Conclusões
Conforme foi visto neste capítulo, Aristóteles trabalha a questão da Justi-
ça dentro da Ética e da Política. Tanto a Ética quanto a Política visam conduzir
o indivíduo à realização de sua finalidade, a felicidade na vida, a qual é cons-
truída pelo desenvolvimento das virtudes, tanto morais quanto intelectuais,
através dos hábitos e do estudo. A Ética procura disciplinar o indivíduo para
que por si consiga alcançar tal finalidade. A Política, diversamente, busca que
todos aqueles que vivem dentro da cidade possam alcançar a felicidade.
134
Justiça em Aristóteles
135
Justiça em Aristóteles
A Justiça e a Eticidade
O problema da Justiça é, dentro da filosofia aristotélica, como já se procurou
acentuar, uma questão acentuadamente de caráter ético. Tal premissa requer que
preliminarmente se proceda um exame do que se pode entender pelos termos
ético, Eticidade e natureza ética, apesar de já ter desenvolvido esse assunto nos
capítulos anteriores. Uma primeira referência nesse sentido deve necessaria-
mente sublinhar que a esfera da Eticidade não se aparta daquela racionalidade.
Não se aparta pelo fato de que, em Aristóteles, razão prática (noûs praktikós) e
razão teórica, ou teorética (noûs teoretikós), caminham conjuntamente na totali-
zação do ser racional, ou seja, atuam paralelamente para a realização integral da
natureza social do homem em sociedade. A vida social demanda respostas do
indivíduo que tocam as faculdades da utilidade, do prático (práxis), assim como
136
Justiça em Aristóteles
da razão pura, abstrata e teórica (theoría). Nesse sentido, ambas as razões, tanto
a razão prática quanto a razão teórica, representam, quando vistas em conjunto,
a completude das esferas noética e dianoética do ser racional. Se o ser humano
se distingue por ser-lhe inerente a racionalidade – o que envolve razão prática
e razão teórica –, seu télos não se confunde com o dos demais seres, e o que
o caracteriza é a faculdade de alcançar a beatitude da felicidade (eudamonía)
através da utilização de suas faculdades racionais.
137
Justiça em Aristóteles
Atividades de aplicação
1. Conforme visto neste capítulo, ao tratar sobre a Ética, especialmen-
te no pensamento aristotélico, se está tratando da ciência que busca
possibilitar ao homem que este viva bem. Considerando-se que na
atualidade fala-se muito em crise ética, crise dos valores, qual é a im-
portância da concepção de Ética apresentada por Aristóteles?
Gabarito
1. Apesar de se falar em crise ética, não se propõe solução alguma a essa
questão. Desse modo, a ética aristotélica apresenta-se como uma pro-
posta de boa conduta da vida. Pautando-se em um critério objetivo,
a virtude, o meio-termo, trata-se de um modo de se disciplinar a con-
duta humana em busca da realização humana, o que é essencial na
sociedade contemporânea.
Referências
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Tradução do grego, introdução e notas de:
KURY, Mário da Gama. Brasília: UnB, 1992.
______. Política. Edição Bilingue. Tradução de: AMARAL, António Campelo; GOMES,
Carlos de Carvalho. Lisboa: Veja, 1998.
______. Metafísica. Tradução de: PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 2 v.
______. Arte Retórica. 17. ed. Tradução de: CARVALHO, Antônio Pinto de. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2005.
REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga. Tradução de: VAZ, Henrique Cláu-
dio de Lima; PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 1994. p. 316-317. 2 v.
______. História da Filosofia Antiga. I: Das origens a Sócrates. 4. ed. Tradução de:
PERINE, Marcelo. São Paulo: Loyola, 2002. 1 v.
140
Helenismo e Idade Média
Introdução
Após tratar sobre a fundamentação da ideia de Justiça no pensamen-
to aristotélico, cumpre nesse momento refletir acerca das concepções de
Justiça em dois períodos particulares. Primeiramente, trataremos do pen-
samento filosófico na época helenística, a qual inicia-se com as conquistas
de Alexandre Magno. As concepções filosóficas desse período estendem-se
ao período de dominação romana, acompanhando-o na época do apogeu
desse império. Logo após, dada a cristianização do império e a fundamenta-
ção filosófica apologética dessas correntes, analisaremos a fundamentação
filosófica dada a esse pensamento religioso, a partir do qual surge uma visão
particular acerca dos conceitos de Direito e Justiça.
2
separação desses conceitos. As concepções morais a partir de então passam ABBAGNANO, Nicola.
História da Filosofia. Tra-
a considerar a perspectiva do indivíduo. Afastando-se do ideal dos aspectos dução de António Borges
Coelho.5 ed. Lisboa: Pre-
do governo da sociedade, conforme se verá a seguir.2 sença, 1999. 2v. p. 10
Helenismo e Idade Média
O epicurismo
O epicurismo é a primeira das grandes escolas filosóficas que se erguem
3
Epicuro nasceu em no período helenístico, fundada por Epicuro3. Suas principais ideias podem
Samos, em 341 a.C.
Fundou sua escola em
Atenas, provavelmente
ser resumidas nas seguintes proposições: a) pela inteligência do homem
entre 307/306 a.C, e esta
recebeu o nome de Jardim
pode-se conhecer a realidade perfeitamente; b) nas dimensões do real
(Képos) por dar suas aulas
não como uma palestra,
existe espaço para a felicidade do homem; c) a felicidade é a falta de dor e
símbolo da Grécia Clás-
sica, mas em um prédio
perturbação; d) para atingir essa felicidade e essa paz, o homem só precisa
com um jardim nos subúr-
bios de Atenas. Epicuro de si mesmo; e) não lhe servem absolutamente a cidade, as instituições, a
morreu em Atenas, em
271 ou 270 a.C. (ABBAG- nobreza, as riquezas, todas as coisas, nem mesmo os deuses. Nesse sentido,
NANO, Nicola. História da
Filosofia. p. 25.) o homem é perfeitamente “autárquico”4.5
4
Autárquico: da fusão
entre autos e cratos, ou Assim, há a concentração no homem, proporcionando-se a este, através
seja, relacionado à capaci-
dade do homem guiar-se da análise do mundo em que vive, libertar-se das paixões que o condicio-
por si próprio.
5
nam, vivendo em felicidade.
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 239.
Epicuro divide a Filosofia em Lógica, Física e Ética. A primeira elaboraria
os cânones segundo os quais reconhecemos a verdade, a segunda se encar-
regaria de estudar a constituição do real, e a terceira, a finalidade do homem,
que, como foi dito, é a felicidade.
Epicuro afirma que a sensação “colhe o ser” de modo infalível, esta nunca
pode falhar, trata-se do critério de identificação da realidade. É objetiva e
6
Para os epicuristas, verdadeira, porque é produzida pela própria estrutura realidade6 e, acima
o mundo e também o
homem eram reduzidos de tudo, é a-racional, incapaz de retirar ou acrescentar em si mesma alguma
a um mero agrupamento
de átomos. coisa, sendo, por esse motivo, um critério objetivo.7 Além das sensações, as
7
REALE, Giovanni; AN- antecipações, também chamadas de “prolepses” ou “pré-noções”, represen-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
tações mentais das coisas, memórias daquilo que já mostrou-se no exterior,
Idade Média. p. 240.
também são formas de conhecimento. Por último há a afecção, consideran-
do-se os sentimentos de prazer e dor também como critérios, constituindo-
8
CAROTENUTO, Mar- -se como bases para a distinção do bem e do mal.8
gherita. Histórico sobre
as teorias do conheci-
mento. Recanto Maestro:
Ontopsicologia Editrice,
A característica comum entre esses três critérios de conhecimento é a evi-
2009. p. 27. dência (enargeia), que é o fim necessário a se ter presente. O erro, se ocorre,
não está na sensação, mas na opinião (doxa) que é formulada a partir dos
9
CAROTENUTO, Marghe- dados da sensação.9
rita. Histórico sobre as
teorias do conhecimen-
to. p. 27. Para o epicurismo, o homem, para viver bem, deve buscar o prazer. “A feli-
cidade consiste apenas no prazer estável ou negativo, ‘no não sofrer e no não
10
ABBAGNANO, Nicola. agitar-se’ e é, portanto, definida como ataraxia (ausência de perturbação) e
História da Filosofia.
p. 31. aponia (ausência de dor)”.10 Assim, para Epicuro a vida política é em suma
144
Helenismo e Idade Média
145
Helenismo e Idade Média
O ceticismo e o ecletismo
O ceticismo é a corrente filosófica divulgada por Pirro de Élida. A palavra
ceticismo vem de skepsis, que quer dizer observação, reflexão, indagação. O
objetivo do ceticismo é alcançar a felicidade como ataraxia. Para essa cor-
rente o alcance desse estado se opera através da indagação que põe em evi-
dência a inconsistência de qualquer posição teorético-prática, as considera
16
CAROTENUTO, Mar- igualmente falazes e se abstém de aceitar alguma.16
gherita. Histórico sobre
as teorias do conheci-
mento. p. 30. Para os céticos a felicidade é encontrada através da renúncia consciente
a pronunciar-se, renúncia devido a impossibilidade de se afirmar algo de po-
sitivo sobre a realidade, seguido da ataraxia, da ausência de turbamento, a
tranquilidade interior. O sábio, nesse escopo, suspende o assentimento das
17
CAROTENUTO, Mar- situações com as quais se confronta na realidade, realiza epoché.17
gherita. Histórico sobre
as teorias do conheci-
mento. p. 31. Outro movimento nascido nessa época, mais especificamente no século
18
Termo oriundo do II a.C, é o movimento denominado ecletismo18, que visava reunir e difundir
grego ek-léghein, esco-
lher e reunir, tomando o que consideravam melhor de cada uma das escolas. Sua principal marca é
de várias partes. (REALE,
Giovanni; ANTISERI, Dario. a introdução da concepção de probabilidade. Conforme a assertiva de Fílon
História da Filosofia: An-
tiguidade e Idade Média. de Larissa, há que se distinguir o verdadeiro do falso; todavia, não se tendo
p. 276.)
um critério que leve à verdade, à certeza, mas somente aparências que con-
duzem à probabilidade, não se chega à percepção certa da verdade objetiva,
19
REALE, Giovanni; AN-
.
mas tão somente à evidência do provável.19
TISERI, Dario História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média. p. 277. Tal consideração, posteriormente reafirmada por Cícero, comprova o
estado em que se encontrava a Filosofia no período helenístico. Apesar da
divulgação de diversas escolas que propunham-se a guiar o indivíduo a viver
bem, em meio à realidade material, sem, contudo, considerar uma ordem
cósmica maior. Havendo, nesse sentido, a perda do conceito de ser, há o pro-
blema de onde se encontrar um critério que afirme toda a existência humana,
bem como a organização da sociedade e, por conseguinte, do Direito.
146
Helenismo e Idade Média
A filosofia romana
Conforme é sabido, Roma, ao conquistar a Grécia, acaba por assimilar sua
cultura. Ao fazê-lo, naturalmente, não deixaria de também adotar a forma
mais sublime de conhecimento da realidade herdada do mundo grego, a
Filosofia. Nesse sentido, tem-se uma profunda influência, especialmente da
filosofia estoica no mundo romano, a qual influenciou toda a teoria geral do
direito romano e de suas fontes.
Cícero representa o modo mais eficaz pelo qual se realizou a ponte entre
a filosofia grega e a cultura romana. Desse modo, sua importância não é
tanto teorética, mas sim por essa passagem que o filósofo e jurista realiza.
Cícero opera a fusão eclética das várias correntes do mundo grego que pôde
conhecer, repropondo-a em termos latinos.20 20
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Além desse papel de divulgação das concepções teóricas helênicas, Cícero Idade Média. p. 281.
147
Helenismo e Idade Média
Santo Agostinho
Agostinho em sua obra,
pondera tanto sobre a
importância do aspecto
histórico como a defesa
de Deus como única ver-
dade: “É difícil apreender O mundo romano foi também o cenário em que surgiu Santo Agostinho,
o objeto principal e ele
recebeu de seus leitores talvez o primeiro grande filósofo cristão, responsável por iniciar o processo
interpretações diversas.
Atualmente, é visto sobre- de absorção da Filosofia pela Teologia, que atravessaria toda a Idade Média.
tudo como uma filosofia,
ou melhor, uma teologia É difícil separar o pensamento de Agostinho das contingências históricas,
da história, porque a fi-
losofia da história é um uma vez que um de seus principais objetivos era justamente defender a fé
tema muito em voga:
Deus conduz a história,
dá-lhe um sentido, uma
cristã e supremacia de seu Deus23 diante das invasões bárbaras e do conflito
função providencial,
porque Deus é a causa
com outras religiões e doutrinas, o que não significa que Agostinho também
de tudo e toda a história
deveria ser compreendida
não havia estudado tais doutrinas24. Agostinho foi educado nas artes da gra-
do ponto de vista de Deus
e da salvação. Outros
mática e da retórica, e iniciado na Filosofia na leitura dos clássicos gregos e
encontraram nela conhe-
cimentos sobre a civili- romanos. Cícero influenciou seu pensamento, na perspectiva de que existe
zação pagã. Outros, uma
doutrina política”. (VILLEY, uma lei universal que governa inclusive a vida humana, mas nenhum outro
Michel. A Formação do
Pensamento Jurídico pensador lhe inspirou tanto como Platão. A obra máxima de Agostinho, A
Moderno. p. 82.)
Cidade de Deus, certamente nasce de um enorme trabalho de estudo da Re-
24
A biografia de Santo
Agostinho é importante
pública platônica. Agostinho também pretendia construir uma cidade per-
para entender a sua cons-
trução como intelectual e
feita, tal como o Estado ideal do filósofo grego, mas nesse momento uma
defensor das ideias cris-
tãs. Agostinho não nasceu cidade perfeita governada a partir das leis perfeitas de Deus.
cristão, mas converteu-se,
após estudar diversas re-
ligiões e doutrinas. Além Para Agostinho, “a única verdadeira Justiça e o único verdadeiro Direito
disso, o fato de ter se con-
vertido não significa que são divinos”25. Pode-se dizer que a grande inovação agostiniana é justa-
tenha renegado aquelas
ideias anteriores, pois mente o ato de reclamar para o campo teológico a verdade maior de toda
como é sabido, Platão
seguiu exercendo enorme discussão ética, política e jurídica. O pensamento teológico ocupa o centro
influência em suas obras.
dos argumentos, diferente do período grego, que era predominantemente
25
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
cosmológico. E a preponderância de Deus se articula inclusive nas questões
jurídico moderno, p. 80.
políticas e jurídicas.
148
Helenismo e Idade Média
Contudo, Santo Agostinho não declara a invalidade das leis terrenas nem
da Justiça que impera na “cidade dos homens” conforme Villey:
Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa “peregrinação terrestre” e enquanto
o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das duas cidades elas
coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria cidade terrena tem, na história,
sua razão de ser; é obra, como todas as coisas, da providência divina e cumpre certa
função em nosso caminho para a salvação. Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas
cidades humanas históricas – cujo valor é questionado e que é preciso confrontar com
os da cidade celeste – serão tratados por Santo Agostinho do ponto de vista de nossa
salvação.28 28
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno, p. 83.
Embora de fato várias vezes Agostinho ataque as leis romanas, bem como
toda lei pagã, apresentando como elas contrariam as leis divinas, e ainda
assinalando a relevante possibilidade de uma lei humana ser contraditória
em relação às leis de Deus, não se pode dizer que ele permita a simples trans-
gressão à ordem jurídica histórica vigente. Agostinho possui formação clás-
sica greco-romana, suas leituras de Platão, Aristóteles e Cícero lhe permitem
vislumbrar a importância da obediência às leis vigentes, pois não é possível
tentar construir uma ordem social se antes não se estabelece a ordem inte-
rior no indivíduo.
149
Helenismo e Idade Média
Para Agostinho, cada atividade tende à uma paz, que não precisa ser
obrigatoriamente a paz perfeita, aquela ligada à justiça divina. O estabele-
cimento da segurança e da ordem social na cidade dos homens já é alguma
manifestação de paz, o que requer a obediência às leis profanas.
Porém, talvez mais razoável ainda seja outro argumento para se justificar
a obediência às leis injustas dos homens. Para Agostinho, tudo que acontece
na história do mundo é vontade divina, é obra de Deus, e nisso inclui-se os
reinados tirânicos e os períodos de guerras e fome. Em cada evento histórico
há uma ação divina, ainda que seus desígnios sejam misteriosos, de forma
que devemos obedecer às leis instituídas pelas contingências históricas, por
mais injustas que elas pareçam, já que ali também presencia-se a vontade de
Deus. Por isso os cristãos obedecem a César, porque “obedecer às leis de
29
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
César, o cristão sabe que também é curvar-se ante a lei eterna”29.
jurídico moderno, p. 92.
Não obstante, Agostinho prescreve aos cristãos a obediência às leis pro-
fanas apenas como obediência a essa máxima maior advinda de Deus, e não
a obediência às leis em si. Ou seja, Agostinho anuncia a fraqueza e a injusti-
ça que nelas imperam, de forma que os cristãos devem apenas usá-las, sem
nelas colocarem qualquer fruição, qualquer valor. O cristão não obedece às
leis humanas por valor, mas por dever. A obediência às leis positivas é apenas
parte de um processo que busca, no fim, a própria extinção das leis positivas,
para que se vislumbre apenas toda a perfeição das leis divinas. A essas leis
divinas Agostinho encontra suas fontes na justiça cristã, na Bíblia, e aqui ele
cria sua inovação na história da Filosofia, pois conforme afirma Villey, não
aparece nesse momento vestígios de influências platônicas e aristotélicas.
151
Helenismo e Idade Média
152
Helenismo e Idade Média
Todas as coisas, tal como dissera Aristóteles, visam a uma finalidade. Con-
siderando a caracterização da existência e sua teleologia, considera-se um
Ordenador, dotado de conhecimento, o qual encontra-se em condições de
dar ser aos entes, Ele é quem opera a finalidade das coisas existentes.43 43
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Postas essas considerações acerca da ordenação do mundo metafisica- Idade Média. p. 566.
153
Helenismo e Idade Média
Duns Scott
Duns Scott, que em seu tempo era chamado de Doctor Subtilis, devido à
profundidade de sua doutrina, resultado de longos estudos e trabalhos nos
dois principais centros de sua época, Oxford e Paris, exerceu grande influê-
ncia na construção do pensamento moderno, devido à sua defesa de não
somente a distinção, mas da separação entre Filosofia e Teologia. Duns Scott
era contrário à doutrina tomista, alegando que a Filosofia possui metodo-
logia própria, não assimilável pela Teologia; era contrário também a Santo
Agostinho, que havia proposto a absorção da Filosofia pela Teologia.
A Filosofia se ocupa do ente enquanto tal e de tudo o que é redutível a ele ou dele
dedutível. Já a Teologia, ao contrário, trata dos articula fidei ou objetos de fé. A Filosofia
segue o procedimento demonstrativo, a Teologia o procedimento persuasivo. A Filosofia
se detém na “lógica natural”, a Teologia move-se na “lógica do sobrenatural”. A Filosofia
se ocupa do geral ou universal, porque é obrigada a seguir “pro statu isto”, o itinerário
cognoscitivo da abstração, enquanto a Teologia aprofunda e sistematiza tudo o que
Deus se dignou nos revelar sobre a sua natureza pessoal e o nosso destino. A Filosofia
é essencialmente especulativa, porque visa a conhecer por conhecer, ao passo que a
Teologia é tendencialmente prática, porque nos põe a par de certas verdades para nos 50
REALE, Giovanni; AN-
induzir a agir mais corretamente.50 TISERI, Dario. História da
Filosofia: Antiguidade e
Idade Média, p. 598-599.
Para Duns Scott, a literatura pagã, e nisso inclui-se a filosofia grega, deve servir
somente de instrumento auxiliar à busca pela verdade, que se encontraria na Sa-
grada Escritura, pois a “fé governa a razão, que não passa de uma servidora”51. 51
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno, p. 202.
O raciocínio de Duns Scott chegou ao ponto de criticar toda a tradição es-
colástica, ao afirmar que inferir a existência de uma ordem natural e que ela
seria obra de Deus seria um crime contra a própria figura de Deus, subordi-
nando-o a uma razão humana e intelectualista. Deus, como princípio criador
de todas as coisas, não necessitaria de uma ordem, porque isso seria já uma
limitação de seu poder. A razão não pode limitar Deus, porque inclusive a
razão é obra de Deus. Interessante notar que essa inversão pode ser aplicada
inclusive à moral cristã, pois o preceito “não matarás”, por exemplo, não seria
uma regra universal, já que Deus poderia ter escolhido outros preceitos.
155
Helenismo e Idade Média
Guilherme de Ockham
Guilherme de Ockham foi outro franciscano que prosseguiu no caminho
aberto por Duns Scott contra a filosofia tomista. A diferença é que Ockham
foi um profundo conhecedor de Aristóteles, em especial de sua dialética.
156
Helenismo e Idade Média
157
Helenismo e Idade Média
do próprio texto. Tais preceitos morais, ainda, não deveriam ser obedecidos
por serem regras atemporais e eternas emitidas por Deus, mas leis tempo-
rais. Não deve o homem obedecer os Dez Mandamentos devido a um supos-
to conteúdo eterno, como se aqueles preceitos representassem uma espécie
de direito natural advinda de uma ordem natural, mas simplesmente por
serem ordens de Deus. Ou seja, obedece-se pelo dever de obedecer, e não
pelo conteúdo. Se quisesse, Deus poderia inclusive ordenar o ódio entre os
homens, pois não haveria limitação ao seu poder.
Questão 91
(AQUINO, 1997)
Artigo I
Se há alguma lei eterna
159
Helenismo e Idade Média
1 – Com efeito, toda lei impõe-se a alguns. Ora, não houve desde toda eter-
nidade alguém a quem a lei pudesse impor-se, pois só a Deus coube ser desde
toda a eternidade. Portanto, nenhuma lei é eterna.
3 – Além disso, a lei importa certa ordem para algum fim, pois só o último
é eterno. Logo, nenhuma lei é eterna.
Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1), nada é a
lei senão certo ditame da razão prática no príncipe, que governa alguma co-
munidade perfeita. Ora, é manifesto, suposto ser o mundo regido pela divina
providência, como se estabeleceu na primeira parte (q. 22, a. 1 e 2), que toda a
comunidade do universo é governada pela razão divina. Assim pois, a própria
razão do governo existente, em Deus, como príncipe do universo, compreen-
de a razão de lei. E porque a divina razão nada concebe a partir do tempo, mas
é dotada de conceito eterno, como diz o Livro dos Provérbios (8,23), segue-se
que tal lei deve dizer-se eterna.
160
Helenismo e Idade Média
fim, exceto por acidente no governante cujo fim é exterior a ele próprio e para
qual é necessário que sua própria lei seja ordenada. Mas o fim do governo
divino é o próprio Deus nem é outra a sua lei em relação a Ele próprio. Donde
não se ordenar a lei eterna para fim que lhe seja outro.
Artigo II
Se há em nós alguma lei natural
3 – Além disso, quanto mais alguém é livre, tanto menos é sujeito à lei. Ora, o
homem é o mais livre de todos os animais por força do livre arbítrio que possui,
excedendo por ele todos os outros animais. Não sendo, pois, os restantes animais
sujeitos à lei natural, não é também o homem sujeito a qualquer lei natural.
Em sentido contrário, há o que nos diz a glosa sobre Romanos, 2,14: “Os
gentios, que não possuem a lei, fazem naturalmente o que contém a lei”.
Embora possam a lei escrita, possuem, todavia, a lei natural pela qual cada um
intelige o que é o bem e o mal e disto cônscio.
Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 2, ad. 1), sendo
a lei regra e medida, pode estar em algo de dois modos: de um modo, no
161
Helenismo e Idade Média
162
Helenismo e Idade Média
Artigo III
Se há alguma lei humana
1 – Com efeito, a lei natural é uma participação da lei eterna, como se vem
de dizer (art. prec.). Ora, mediante a lei eterna tudo é elevado à ordem a mais
perfeita, como diz Agostinho no Livro I do Sobre o Livre Arbítrio (cap. 6, 51,
C.Chr. XXIX, 220). Portanto, a lei natural é suficiente para ordenar tudo o que é
humano. Portanto, não é necessário haver lei humana.
2 – Além disso, a lei possui a razão de medida, como se disse (q. 90, a. 1).
Ora razão humana não é medida das coisas, ocorrendo muito mais o contrá-
rio, como se diz na Metafísica (IX,1,1053 a31). Donde, nenhuma lei pode pro-
ceder da razão humana.
3 – Além disso, uma medida deve ser certíssima, como se diz na Metafísica
(IX,1,1053 a31). Ora, o ditame da razão humana quanto à gestão das coisas é
incerto, conforme o dito da Sabedoria (cap. 9, v. 14): “São hesitantes os pensa-
mentos dos mortais e incertas nossas providências”. Logo, nenhuma lei pode
proceder a razão humana.
Resposta: Deve dizer-se que, como se disse acima (q. 90, a. 1, ad. 2), a lei
é certo ditame da razão prática. Ora, verifica-se na razão prática um proces-
so semelhante ao que ocorre na especulativa: cada uma delas procede de
alguns princípios a que algumas conclusões, como se estabeleceu acima (ib.).
Segundo esta semelhança deve dizer-se que, como na razão especulado essa
semelhança deve dizer-se que, como na razão especulativa são produzidas as
conclusões das diversas ciências a partir dos princípios indemonstráveis, na-
turalmente dados, mas encontrados pelo trabalho da razão, da mesma forma,
a partir dos preceitos da lei natural, como a partir de certos princípios comuns
e indemonstráveis, é necessário que a razão humana passe à disposição de
algo mais particular. E essas disposições particulares descobertas pela razão
humana dizem-se leis humanas, observadas outras condições que pertencem
163
Helenismo e Idade Média
à razão da lei, como se disse acima (q. 90). Donde dizer Túlio em sua Retórica
(Invent. Reth., Livro 2, cap. 53, DD I,165) que “o início do Direito procede da na-
tureza, em seguida algo veio a ser costume em virtude da utilidade da razão;
posteriormente, as coisas produzidas pela natureza e aprovadas pelo costume
sancionou-as pelo medo das leis e a religião”.
ARTIGO IV
Se é necessária uma lei divina
No que concerne ao quarto artigo, assim se procede. Parece não ser neces-
sário haver alguma lei divina.
164
Helenismo e Idade Média
1 – Isso porque, como já se disse (art. 2), é a lei natural certa participação
da lei eterna em nós. Ora, a lei eterna é a própria lei divina, como se disse (art.
1). Portanto, não é necessário haver alguma lei divina além da lei natural e das
leis humanas dela derivadas.
Atividades de aplicação
1. Os filósofos helenistas, na busca pela orientação da conduta humana
em direção à felicidade, propuseram variadas formas de como alcançar
tal concepção, identificando-a como o afastamento dos problemas ou
das preocupações (epicuristas), com a ausência de prazer (estoicistas),
ou com a renúncia à busca pelo conhecimento e a vivência em atara-
xia (ceticistas). Com base nessas concepções, identifique as relações
entre essas concepções de vida e o Direito.
165
Helenismo e Idade Média
Gabarito
1. Todas essas correntes concentravam-se muito mais no indivíduo e sua
conduta. Desse modo, afastam-se das preocupações com as relações
sociais e, por conseguinte, com o Direito. A felicidade é mais questão
de conduta pessoal do que um escopo social, tal como era para os
predecessores.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Tradução de: COELHO, António
Borges; SOUZA, Francisco de; PATRÍCIO, Manuel. Lisboa: Presença, 1999. 2 v.
166
A fundação do pensamento
moderno: do racionalismo
ao Iluminismo
Introdução
Neste capítulo trataremos sobre a revolução no pensamento ocorrida no
período compreendido pelo final da Idade Média e início da modernidade.
Essa passagem, que tem seus primórdios com o movimento renascentista
e seu retorno à cultura clássica greco-romana, ocorre com o movimento ra-
cionalista e sua estruturação das ciências através de um método certo, bus-
cando-se não mais compreender as causas dos fenômenos pelas próprias
causas, mas através dos fenômenos buscando se deparar com a realidade.
Por fim, apresentaremos o pensamento iluminista, o qual revolucionou a
Europa moderna, possuindo marcante influência no pensamento filosófico
do Direito.
Francis Bacon
A transição da racionalidade medieval para a racionalidade moderna, já
iniciada pelos franciscanos Duns Scott e Guilherme de Ockham, prossegue
no pensamento de Francis Bacon, filósofo, político e jurista do século XVII.
170
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
4
Contribuição também importante dada por Bacon à Filosofia Política e Jurí- WHITE, Howard B. Fran-
cis Bacon [1561-1626]. In:
dica é que esta “deveria concentrar-se no que fazem os homens, e não no que STRAUSS, Leo; CROPSEY,
Joseph (Org.). Historia
deveriam fazer”4. Para Bacon, o fim do Direito não seria o justo, mas o útil. Em de la filosofia política.
Cidade do México: Fondo
outras palavras, não se aplica ao Direito conforme um conceito de Justiça de- de Cultura Ecónomica,
1996. p. 351.
rivado de alguma corrente filosófica, mas, conforme a própria sociedade, deve 5
Nascido em 31 de março
trazer benefícios ao aqui e agora. Em síntese, o diferencial baconiano se dá de 1598, em La Haye
Turena, filho de Joachim
no ousado enfrentamento aos clássicos. A coragem de rebater os argumentos Descartes, conselheiro do
parlamento da Bretanha,
metafísicos e confrontar a lógica clássica repercutiria entre os modernos na e de Jeanne Brochard. Em
1605 inicia seus estudos
no colégio jesuíta de La
reformulação do pensamento científico e filosófico, não mais tão preocupado Flèche, onde permanece
até 1613, dedicando-se
com causas finais e transcendentes, mas com a própria natureza sensível. ao estudo da Gramática (4
anos), Retórica (2 anos) e
Filosofia (3 anos). Estudou
na Universitè de Poitiers,
sendo nomeado em no-
171
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
12
filosofia”12, pois essa nova proposta metodológica representa a superação
REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da do pensamento grego, especialmente da lógica e epistemologia aristotélica,
Filosofia: do Humanismo
a Kant. p. 353. substituindo-a pela primazia do método moderno.
172
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
173
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
20
VILLEY, Michel. A for- existência de Deus e da imortalidade da alma do homem, Descartes parte
mação do pensamento
jurídico moderno. p. 604. ao conhecimento da realidade. Constata-se que suas deduções partem de
21
DESCARTES, René. Mé-
ditations Métaphysiques. princípios considerados evidentes por si próprios; através da intuição são
Paris: Flammarion, 1992.
22
“[...] consistirá nas regras
postuladas hipóteses que buscam encontrar de baixo para cima o encadea-
que a mente forja ou que
o pensamento humano mento das causas e dos efeitos. Assim, a ciência aparecerá como um siste-
inclui; sua fonte estará
no pensamento humano ma perfeitamente axiomático, que demonstra as consequências a partir de
inclui; sua fonte estará no
pensamento; será preciso
extraí-lo, por uma série
princípios.20
de deduções, dos princí-
pios racionais que seriam
descobertos no fundo da Conforme Villey, grande parte do direito moderno adotará essa nova
consciência do homem,
adotando então o Direito
a forma de um sistema de-
perspectiva e essa é a maior influência do pensamento cartesiano sobre a
dutivo de regras. É a via do
racionalismo, que tantos ju- Filosofia Jurídica. Por mais que o autor não tenha se dedicado a tratar exaus-
ristas modernos, sobretudo
na Europa continental per- tivamente sobre essa parte da Filosofia, seu método de organização do ra-
correram”. (VILLEY, Michel.
A Formação do Pensa-
mento Jurídico Moderno.
ciocínio influenciou de modo marcante as concepções jurídicas posteriores,
p. 606.)
23
reforçando-se que Descartes, como pai da ciência moderna, também exerce
“[...] fazer dele um pro-
duto das paixões animais
do corpo, das forças dos
marcante influência na formação moderna da Filosofia do Direito.
indivíduos, e depois da
força dos grupos ou do
Estado; aplicar a ele os A concepção metafísica de Descartes, exposta especialmente nas Medita-
métodos das ciências da
natureza física; situá-lo do ções Metafísicas21, faz da alma e do corpo, do pensamento e da matéria, duas
lado dos fatos, regidos por
leis mecânicas, objetiva-
mente determinadas [...] É
espécies de seres separados. Esse dualismo representa o fim da filosofia clás-
a corrente do naturalismo,
como às vezes se diz (já que sica do direito natural, derrubada a noção aristotélico-tomista de natureza,
a expressão direito natural,
que também conviria, ficou há o fim, por conseguinte, da concepção jusnaturalista ligada a essa raciona-
com o partido oposto). O
fracasso dessa doutrina
consiste em imergir o Direi-
lidade. A metafísica cartesiana cinde a noção unitária em dois universos se-
to nos ‘fatos’ objetivos que
são o apanágio das ciências parados: de um lado o pensamento e de outro a matéria, de um lado a ideia
modernas da natureza. O
que tampouco bastaria”. e do outro os fatos. Assim, passam a existir duas saídas: a primeira é situar o
(VILLEY, Michel. A Forma-
ção do Pensamento Jurí-
dico Moderno. p. 607.)
Direito ao lado da alma, no pensamento.22 A outra via seria pensar o Direito
24
VILLEY, Michel. A for- sob a rubrica da matéria.23 Assim, pode-se concluir que além de excluir o
mação do pensamento
jurídico moderno. p. 607. antigo direito natural clássico, a metafísica cartesiana impõe ao pensamento
25
VILLEY, Michel. A for-
mação do pensamento
jurídico moderno suas duas novas direções: racionalismo e naturalismo.24
jurídico moderno. p. 608.
26
“O sistema da common Ressalta-se, por fim, que os ingleses não acolheram o cartesianismo, pre-
law é um sistema de Direi-
to elaborado na Inglaterra,
principalmente pela ação
ferindo a experiência às ideias inatas.25 Agindo assim construíram do experi-
dos Tribunais Reais de Jus-
tiça, depois da conquista mentalismo um Direito muito mais baseado nos costumes e no conjunto de
normanda. A família da
common law compreen- decisões já existentes para a formulação de suas decisões, tal como é o atual
de, além do direito inglês,
que está na sua origem, e
salvo certas exceções, os
Direito anglo-saxão nos sistemas britânico e americano, o chamado common
direitos de todos os países
de língua inglesa. Além dos law26, em contraposição ao sistema do Direito romano-germânico, também
países de língua inglesa, a
influência da common law chamado de civil law, que tem por marca a obediência aos enunciados nor-
foi considerável na maior
parte dos países, senão em
todos, que politicamente
mativos elaborados pelo Estado, possuindo marcantemente uma base racio-
estiveram ou estão associa-
dos à Inglaterra”. (DAVID,
nalista como princípio de toda a ordem do Direito.
René. Os Grandes Siste-
mas do Direito Contem-
porâneo. 3. ed Tradução
de: CARVALHO, Hermínio A.
. São Paulo: Martins Fontes,
1998. p. 279.)
174
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Espinoza
Baruch de Espinoza iniciou seus escritos filosóficos publicando obras com co-
mentários ao pensamento de Descartes e da Escolástica medieval. Na sua obra
Cogitata metaphysica expõe tanto a metafísica geral (o ente e suas propriedades)
como a metafísica especial, que estuda Deus, por exemplo. Mas Espinoza discor-
da dos medievais em relação a Deus, afirmando que “em Deus não há intelecto e
vontade, segundo Espinoza; ora, a afirmação de que todo ente é verdadeiro sig-
nifica que todo ente corresponde a uma ideia divina, e a afirmação de que todo
27
ROVIGHI, Sofia Vanni.
ente é bom significa que ente é querido por Deus”27. Ora, algo querido implica História da filosofia mo-
derna: da revolução cien-
necessariamente que houve uma vontade posta. Além disso, para ele o ente não tífica a Hegel, p. 180.
pode ser bom, porque a propriedade de bom está ligada aos desejos e opiniões
humanas, e não ao conhecimento.
175
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
ideia de um Ente perfeito, anterior a qualquer outra coisa. Também por isso
a Ética inicia-se por Deus. Por fim, então, cabe falar da Ética espinoziana, a
Ética como ordem geométrica. Apesar do nome, não é, contudo, uma ordem
matemática, tal como a de Descartes, porque Espinoza preferiu o procedi-
mento sintético, diferente do procedimento analítico de Descartes. Dividida
em cinco partes, tratando de Deus, do espírito humano, das paixões, da força
das paixões, e da potência do intelecto. As paixões aprisionam o homem, o
intelecto o liberta.
Já foi dito que, para Espinoza, Deus é o Ente perfeito, portanto a única
substância. Nesse sentido, sendo Deus a causa primeira de todas as outras
coisas, não pode ele ser coagido a nada, pois toda ordem deriva de Deus.
Sendo assim, não existe uma finalidade na natureza, isto é, algum raciocínio
dedutivo que implique na natureza uma ordem buscando algum fim, porque
esse fim seria divino, e desse modo poderia ser de qualquer forma.
176
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
As coisas mundanas são porque são, e não porque devem ser, isto é, são
porque Deus assim as pôs. Nessa condição, é notório que a alegria produz
aumento de capacidade, por exemplo, e que a tristeza, ao contrário, reduz.
É aqui que o homem se dá conta de que a alegria é um bem natural da hu-
manidade, e que viver conforme ela produz uma condição mais divina. A
aproximação a Deus se dá pelo conhecimento, pelo gosto de viver e querer
viver conforme os valores espirituais, aqueles que nos conduzem acima das
paixões.
177
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
178
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
179
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Além disso, o profundo respeito pelo ser humano dos iluministas traz
a responsabilidade do líder e de seus colaboradores no desenvolvimento
humano. Se a busca pela igualdade é um princípio, ao menos a igualdade de
direitos, esta não será alcançada somente através da valorização da liberda-
de humana; outros valores ideais, como a dignidade humana, a fraternidade,
e o respeito às diferenças entre as pessoas também devem ser potencializa-
dos para que a civilização humana como um todo se desenvolva.
Portanto, para que isso se torne possível, faz-se necessário que o líder da
contemporaneidade, seja qual for sua área de atuação, se responsabilize por
buscar, no exercício de sua liderança, tornar realidade esses valores, visto
que no mundo contemporâneo a busca pelo desenvolvimento econômico
sem o crescimento daqueles que com ele trabalham ou da sociedade não é
mais aceita pelas sociedades contemporâneas, sendo pressuposto essencial
a preocupação com o desenvolvimento social sustentável.
180
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
“Em seu significado mais amplo, as leis são as relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”, afirma Montesquieu em O Espírito das Leis.
E, embora livres das cadeias da religião, devemos estar sujeitos ao domínio
da Justiça, pois as leis do Direito são objetivas e não modificáveis, à seme-
lhança das leis da Matemática, continuava dizendo Montesquieu nas Cartas
Persas. Por seu turno, embora constatando a grande variedade de costumes e
vendo que “o que em uma região se considera virtude é precisamente o que
em outra se vê como vício”, Voltaire era de opinião que “existem certas leis na-
turais sobre as quais os homens de todas as partes do mundo devem estar de
acordo [...]. Assim como (Deus) deu às abelhas forte instinto, pelo qual traba-
lham em comum e procuram juntas o seu alimento, da mesma forma também
deu ao homem certos sentidos que nunca poderá renegar: são os vínculos
eternos e as primeiras leis da sociedade humana”. A fé na natureza imutável
do homem – feita de inclinações, instintos e necessidades sensuais – pode-se
encontrar também em Diderot, que reafirmou contra as teses de Helvetius,
segundo as quais os instintos morais nada mais seriam do que máscaras do
egoísmo. Para Diderot, existem vínculos naturais entre os homens, vínculos
que as morais religiosas procuram despedaçar.
181
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Foi com base nas ideias jusnaturalistas dos iluministas que se elaborou a
doutrina dos direitos do homem e do cidadão, que encontra a sua realiza-
ção mais eloquente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na
qual, em 1789, a Assembleia Constituinte francesa quis especificar princípios
que seriam o documento programático da Revolução Francesa. Os direitos
do homem e do cidadão que a Assembleia Constituinte considerou naturais
foram: a liberdade, a igualdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão. A lei é igual para todos e estabelece limites precisos ao poder exe-
cutivo, a fim de proteger a liberdade pessoal, de opinião, de religião e de pala-
vra. A lei é expressão da vontade geral, feita com o concurso dos cidadãos ou
através dos representantes de todos os cidadãos. A propriedade é afirmada
como direito “sagrado e inviolável”.
182
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
e livre”, cujo artigo 1.º diz que “todos os homens são por natureza igualmen-
te livres e independentes, tendo certos direitos inatos, dos quais não podem
privar ou despojar seus pósteros através de nenhum pacto, quando entram
em estado de sociedade, isto é, o gozo da vida e a posse da propriedade, a
persecução e a obtenção da felicidade e da segurança”. O artigo 2.º diz que
“todo o poder reside no povo e, por conseguinte, dele deriva”. O artigo 3.º: “ o
governo é ou deve ser instituído para o bem comum, a proteção e a segurança
do povo.” O artigo 4.º: “Nenhum homem ou grupo de homens tem o direito a
emolumentos ou privilégios particulares.” O artigo 5.º: “os poderes Legislativo
e Executivo do Estado devem ser separados e distintos do poder Judiciário.” E
assim por diante, com a enunciação daqueles que, em seguida, seriam consi-
derados os princípios do Estado liberal-democrático ou estado de direito.
183
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Atividades de aplicação
1. Francis Bacon defendeu uma Filosofia empírica, baseada na análise das
coisas sensíveis, em oposição a uma explicação metafísica. A procura
pela coisa posta repercutirá no Direito influenciando um direito posi-
tivista, preocupado sobretudo com os fatos. Com base nisso, comente
a relação entre empirismo científico e positivismo jurídico, lembrando
também que Bacon se preocupa mais com o útil do que com o justo,
ou seja, um Direito mais voltado à praticidade do aqui e agora do que
com concepções filosóficas.
184
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
Gabarito
1. Influenciado pelo empirismo científico, o direito demasiadamente po-
sitivista corre o risco de esquecer aspectos filosóficos, sociais, psicoló-
gicos, entre outros, que existem por trás de um fato, e ignora que um
acontecimento não pode ser analisado em separado da totalidade.
Referências
ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. Roma-Bari:
Laterza, 1998. 2 v.
185
A fundação do pensamento moderno: do racionalismo ao Iluminismo
_____. Regras para a Orientação do Espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Tradução de: RIBEIRO, Renato Janine. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
WHITE, Howard B. Francis Bacon [1561-1626]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph
(Org.). Historia de la Filosofía Política. Cidade do México: Fondo de Cultura Ecó-
nomica, 1996.
186
A fundamentação do estado
moderno: os filósofos
contratualistas
Introdução
Continuando a análise das escolas de pensamento que mais influencia-
ram a Filosofia do Direito na transição para o período moderno, trataremos
neste capítulo de um grupo de pensadores desse período que destacam-se
por serem os fundamentadores da nova concepção de sociedade, Estado e
de Direito que surgia.
3
HOBBES, Thomas. Do Ci-
dadão. Tradução, apresen-
Nesse período a Inglaterra encontrava-se conturbada por um conflito
tação e notas de Renato
Janine Ribeiro. 3. ed. São
civil entre os representantes do anglicanismo, religião da monarquia, os pu-
Paulo: Martins Fontes,
2002. Clássicos. p. 29.
ritanos, compostos principalmente pela burguesia, e a minoria católica. Esse
4
HOBBES, Thomas. Levia-
contexto de instabilidade levou Hobbes a compor sua teoria da formação
tã ou Matéria Forma e
Poder de uma República
do Estado e do nascimento dos direitos humanos de uma diversa daquela
Eclesiástica e Civil. Orga-
nizado por Richard Tuck.
tratada pela Antiguidade Clássica, conforme veremos ao tratar sobre suas
Tradução de João Paulo
Monteiro e Maria Beatriz obras Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de uma República Eclesiástica e Civil e
Nizza da Silva. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. Do Cidadão.
Clássicos Cambridge da
Filosofia Política. p. 109.
Hobbes considera os homens como naturalmente iguais. Embora existam
5
“O estado de guerra,
assim, é a identidade diferenças de força ou inteligência entre os seres humanos, estas não são su-
última do estado de natu-
reza. A guerra, de fato, não ficientes para garantir a supremacia de uns sobre outros. Até o mais fraco dos
é apenas o desencadear-
-se das armas, o comba- homens possui meios de matar o mais forte, o que atesta essa igualdade de
te efetivo, mas também
a conhecida disposição natureza.3 Portanto, a diferença entre um e outro não é fundamento suficien-
para tanto, ou a falta de
uma garantia certa do te para que um deles possa aspirar benefício em detrimento dos demais.
contrário. A falta de se-
gurança acarretada pelo
estado de natureza e o
fracasso de toda estraté-
Contudo, da igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à
gia implementada pelos
indivíduos para alcançá-la
esperança de se atingir os próprios fins, e se dois homens desejam a mesma
não podem deixar de ser
registrados; as exigências coisa, sendo impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos.
da paz e da cooperação
surgem espontaneamen- No caminho para o seu fim, esforçam-se por destruir ou subjugar um ao
te nas mentes de muitos
homens à medida que a outro. Disso colhe-se que todos vivem com receio uns dos outros.
crueldade da sua condi-
ção se manifesta aos seus
olhos”. (PICCINI, Mario. Nesse raciocínio os homens não tiram prazer algum da companhia uns
Poder Comum e represen-
tação em Thomas Hobbes. dos outros, concluindo-se que: “durante o tempo em que os homens vivem
In: DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi- sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles
losofia Política moderna.
Tradução de: CIACCHI,
Andrea; SILVA, Líssia da
se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que
Cruz e; TOSI, Giuseppe.
Petrópolis, Vozes, 2005.
é de todos contra todos os homens”4. Por guerra não se entende somente a
p. 128.)
batalha ou o ato de lutar, mas o lapso temporal durante o qual a disposição
para tanto é suficientemente conhecida. Por isso, afirma-se que a humanida-
de encontra-se em guerra constante.5
190
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
seguidas por meio do trabalho, levam o homem a tender para a paz, sendo
a busca por esta uma lei da natureza. Considera-se lei natural, pois a razão
sugere adequadas normas de paz, em torno das quais se pode chegar a um
acordo.8 Além dessa, outras 18 leis de natureza são apresentadas, estas são 8
ROVIGHI, Sofia Vanni.
História da Filosofia Mo-
naturais pois foram inscritas através da experiência humana, estreitamente derna: da revolução cien-
tífica a Hegel. Tradução de
ligadas à conservação e à defesa da vida. Marcos Bagno e Silvana
Cobucci Leite. São Paulo:
Loyola, 1999. p. 220.
Nesse contexto, conclui-se que o Direito de Natureza (Jus Naturale) é a
liberdade que cada homem possui de usar o seu próprio poder, da maneira
que quiser, para a preservação da sua própria natureza (sua vida) e de tudo
aquilo que o seu julgar e sua razão lhe indiquem como meios adequados
para o alcance desse fim.9 Por sua vez a liberdade é vista como a ausência de 9
HOBBES, Thomas. Le-
viatã ou Matéria Forma
impedimentos externos que tiram parte do poder que cada um tem de fazer e Poder de uma Repú-
blica Eclesiástica e Civil.
o que quiser. p. 112.
A Lei de Natureza (Lex Naturalis), por sua vez, é o preceito ou regra geral
estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo
o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preser-
var ou omitir aquilo que pense melhor contribuir para preservar. Essa lei na-
tural possui um caráter estritamente moral, não jurídico, dada a inexistência
de qualquer força que fixe, dê validade e coercibilidade a essas leis.10 10
VILLEY, Michel. A For-
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. Tra-
Hobbes destaca que o medo de viver nesse contexto inseguro e desfa- dução de Claudia Berliner.
São Paulo: Martins Fontes,
vorável leva os homens a abandonarem o estado de natureza. Buscando a 2005. p. 740.
legitimação das leis naturais que impelem os homens à paz, os homens dis-
põem racionalmente pela criação de um ente superior a eles, produto da
manifestação voluntária de todos, entregando-se à onipotência do sobera- 11
No original o autor uti-
no, que se tornaria o detentor de todos os direitos. Por esse pacto institui-se liza o termo Commonweal-
th, que pode ser traduzido
a República11, dando fim ao estado de natureza, garantindo-se a segurança como “bem estar público,
bem geral, utilizado como
para as pessoas e para os bens e, portanto, alcançando-se a paz com o fim sinônimo de República ou
Estado.”
das guerras civis.12 12
“A segurança é o fim
pelo qual nos subme-
Esse contrato seria mais do que consentimento ou concórdia, tratar-se-ia temos uns aos outros,
e por isso, na falta dela,
de uma verdadeira unidade de todos, numa só e mesma pessoa, o Levia- supõe-se que ninguém se
tenha submetido a coisa
tã. Considera o filósofo que seria como se cada homem dissesse: “Autorizo alguma, nem haja renun-
ciado a seu direito sobre
todas as coisas, antes que
e transfiro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou se tomem precauções
quanto à sua segurança”.
a esta assembleia de homens, com a condição de transferires para ele o teu (HOBBES, Thomas. Do Ci-
dadão. p. 103.)
direito, autorizando de uma maneira semelhante todas as suas ações”13.
13
HOBBES, Thomas. Le-
viatã ou Matéria Forma e
A transferência do direito de se governar significa uma transferência de Poder de uma República
Eclesiástica e Civil. p. 147.
forças e poderes (strenghts and powers), isso representa na realidade a renún- (grifo do autor).
191
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
14
PICCINI, Mario. Poder cia desses indivíduos ao poder de resistência contra o soberano.14 Por con-
Comum e representação
em Thomas Hobbes. In: centrar desse modo os poderes de cada homem, Hobbes define esse Leviatã
DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi-
losofia Política Moderna.
como o “Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, a nossa paz
p. 130. e defesa”.15 Graças à autoridade que lhe é dada por cada indivíduo, confere-
15
HOBBES, Thomas. Le- -se ao Leviatã o uso de tamanho poder e força que o terror por ele inspirado
viatã ou Matéria Forma
e Poder de uma Repúbli- subjuga as vontades de todos os homens a ele submetidos. Destaca-se que
ca Eclesiástica e Civil. p.
147. (grifo do autor). para a manutenção do sistema o príncipe pode tudo para com seus súditos,
ele encontra-se fora das limitações do pacto, razão pela qual contra ele não
16
VILLEY, Michel. A For- há injury, a agressão ao Direito.16
mação do Pensamento
Jurídico Moderno. p.
717. Considerada a formação da República, após a instituição do poder sobe-
rano os homens deverão autorizar todos os atos e decisões de seu represen-
tante, tal como se fossem seus próprios atos e decisões, requisito essencial
para viverem em paz um com os outros e protegidos dos demais homens,
impossibilitando-se aos súditos levantarem-se contra o poder do soberano,
o qual será ilimitado para assim garantir a finalidade de sua constituição, a
17
“De modo que parece paz entre os homens.17
bem claro ao meu en-
tendimento, tanto com
base na razão como nas
Escrituras, que o poder
Hobbes diferencia três espécies de governos. Quando o grupo é repre-
soberano, quer resida
num homem, como numa
sentado por somente um homem é uma monarquia; quando uma assem-
monarquia, quer numa
assembleia, como nas re- bleia atua em nome de todos os que se uniram ao pacto, trata-se de uma
públicas populares e aris-
tocráticas, é o maior que democracia; quando apenas parte participa da assembleia, se está diante da
possivelmente se imagi-
nam os homens capazes aristocracia. Apesar de Hobbes considerar a existência dessas três formas,
de criar. E, embora seja
possível imaginar muitas destaca-se que em suas obras o pensador declaradamente defende a supre-
más consequências de
um poder tão ilimitado, macia da monarquia ante as demais.
ainda assim as conse-
quências da falta dele,
isto é, a guerra perpétua Considerada a formação da República no pensamento hobbesiano, pas-
de todos os homens com
os seus semelhantes são
muito piores”. (HOBBES,
saremos à análise das concepções do pensador acerca do Direito, marcante-
Thomas. Leviatã ou Ma-
téria Forma e Poder de
mente contrárias ao pensamento aristotélico e tomista, os quais são comba-
uma República Eclesiás-
tica e Civil. p. 177.)
tidos até as últimas consequências.
Baseado nas influências de Bacon, Hobbes não busca mais as causas, mas
as potências do mundo, chegando por esse procedimento à hipótese do
estado de natureza. O homem não é mais considerado social “por natureza”,
o animal político, mas contrariamente é “naturalmente livre”. Assim fazendo,
Hobbes limita o Direito à lei moral, que é a lei natural para ele. O Direito não
é mais uma coisa distribuída ao sujeito pela organização política, mas um
atributo essencial, uma qualidade do sujeito. Esse é o significado de direito
subjetivo em Thomas Hobbes.
192
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
193
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
21
John Locke nasceu em
Wrington, próximo a Bris- ou não ser utilizada por este, dependendo de sua conveniência. Assim, o Di-
tol, em 1632. Estudou na
Universidade de Oxford,
onde conseguiu o título
reito em Hobbes não tem como valor primordial a Justiça em sentido absolu-
de Master of Arts em 1658 e
onde ensinou, na qualidade to, mas o que é justo na questão dos interesses do próprio indivíduo.
de tutor, grego e retórica,
tornando-se censor da fi-
losofia moral. Estudou Me-
dicina, Anatomia, Fisiologia
e Física, além de Teologia.
Foi nomeado membro da
Royal Society de Londres.
John Locke
Acusado de traição, se
retira para Oxford refu-
giando-se com o Conde O filósofo inglês John Locke21, célebre por sua epistemologia empirista,
de Shaftesbury, contudo,
com o sucesso da Revolu-
ção Gloriosa e a tomada
dedica-se também a tratar sobre a organização das sociedades humanas e
do trono por Guilherme
de Orange, instituindo-se o nascimento do Estado, o que faz em sua obra Dois Tratados sobre o Gover-
o regime parlamentarista,
retorna a Londres, colhen- no. Nesse livro, suas concepções são apresentadas mais especificamente no
do as glórias do triunfo da
teoria que tanto defendera.
Morreu no castelo de Oates,
“Segundo tratado sobre o governo”, posto que o primeiro tratado dedica-se
em Essex, no ano de 1904.
(REALE, Giovanni; ANTISERI,
precipuamente a refutar as teses absolutistas de Robert Filmer, presentes na
Dario. História da Filoso-
fia: do humanismo a Kant. obra O Patriarca.
p. 502-505.)
22
GOLDWIN, Robert A.
John Locke [1632-1704].
John Locke também considera a existência de um estado de natureza an-
In: STRAUSS, Leo; CROPSEY,
Joseph (Comp.). Historia tecedente à vida em sociedade, partindo deste para explicar o princípio das
de la filosofía política.
México: Fondo de Cultura sociedades humanas e a consequente instituição do Estado. Locke, contudo,
Económica, 1996. p. 453.
23
não entende que esse estado natural é a verdadeira “guerra de todos contra
Quanto a essa última
obrigação destaca Locke:
“[...] e não pode, a não ser
todos”, mas sim uma perfeita liberdade dos indivíduos para regularem suas
que seja para fazer justiça
a um infrator, tirar ou preju- ações e disporem de posses e pessoas do modo como julgarem acertado,
dicar a vida ou o que favo-
rece a preservação da vida, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem, limi-
liberdade, saúde, integri-
dade ou bens de outrem”.
(LOCKE, John. Dois Trata-
tados somente pela lei da natureza.22 Os limites a essa ampla liberdade estão
dos sobre o Governo. Tra-
dução de: FISCHER, Julio.
consignados na obrigação de preservar-se, bem como de, o quanto possível
São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 384.) for, preservar o resto da humanidade23.
24
LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo.
Tradução de Julio Fischer.
Para que todos os homens sejam impedidos de agredir direito alheio, pre-
São Paulo: Martins Fontes,
2001. p. 387. (grifo do judicando uns aos outros e deixando-se de observar a lei de natureza, cada
autor).
25 um possui a responsabilidade da execução dessa lei, estando depositado em
Sintetizando esse
ponto, Locke utiliza-se da
seguinte conclusão de
suas mãos o direito de punir os transgressores dela em tal grau que baste
Hooker: “Dado que não
somos capazes de nos para impedir sua violação. Conforme Locke: “todo homem tem o direito de
prover por nós mesmos
de uma quantidade con- punir o transgressor e de ser o executor da lei de natureza”24. Nesse ínterim,
veniente das coisas ne-
cessárias para viver a vida
que nossa natureza deseja,
a decisão pela vida em sociedade ocorre devido a um motivo, a vantagem
uma vida adequada à dig-
nidade do homem, somos do convívio social, o qual supre as limitações do indivíduo que conduz por
naturalmente induzidos, a
fim de suprir esses defeitos si sua vida.25
e imperfeições que por-
tamos quando vivemos
isolados e somente por
nossos próprios meios, a Constata-se assim a diferença entre as concepções do estado de nature-
buscar a comunhão e a
associação com outros. za de Locke com as de Hobbes. Essa diferença torna-se explícita no capítu-
Foi por essa razão que os
homens começaram a
reunir-se em sociedades
lo 3 do “Segundo tratado”, onde o filósofo diferencia o estado de natureza
políticas”. (HOOKER apud
LOCKE, John. Dois Trata-
do estado de guerra. Este último é considerado como fruto da tentativa de
dos sobre o Governo. p.
394. [Grifo do autor].) alguém impor aos demais o poder absoluto, atitude que é entendida como
194
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
196
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
197
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
37
LOCKE, John. Dois Tra- tida pela sociedade. A primeira consiste em “estar livre de qualquer poder
tados sobre o Governo.
p. 401. superior sobre a Terra e em não estar submetido à vontade ou à autoridade
38
LOCKE, John. Dois Tra- legislativa do homem, mas ter por regra apenas lei da natureza”37. Essa liber-
tados sobre o Governo.
p. 402. dade plena possui seus riscos, razão pela qual busca-se a vida social, onde a
39
Sobre essas três formas
de governo, considera
liberdade se traduz em:
Merlo: “A democracia pre-
cede geneticamente tanto
a aristocracia como a mo-
[...] não estar submetido a nenhum outro Poder Legislativo senão àquele estabelecido no
narquia, porque o pacto corpo político mediante consentimento, nem sob domínio de qualquer vontade ou sob a
é estabelecido entre os restrição de qualquer lei afora as que promulgar o Legislativo, segundo o encargo a este
próprios indivíduos, e não
entre os indivíduos e um confiado.38
soberano”. (MERLO, Mau-
rizio. Poder natural, pro-
priedade e poder político Para a atuação do Estado, Locke considera três principais formas de go-
em John Locke. In: DUSO,
Giuseppe (Org.). O Poder: verno: a democracia, movida por sufrágios, onde a comunidade possui todo
história da Filosofia Políti-
ca moderna. Tradução de:
CIACCHI, Andrea; SILVA
o poder e pode utilizá-lo para fazer periodicamente leis destinadas à própria
Líssia da Cruz e; TOSI, Giu-
seppe. Petrópolis, Vozes,
comunidade, executadas por funcionários por ela nomeados; a oligarquia,
2005. p. 166.)
onde o poder de legislar encontra-se sobre alguns homens escolhidos, seus
40
LOCKE, John. Dois Tra-
tados sobre o Governo. herdeiros e sucessores; e a monarquia, poder posto nas mãos de um único
p. 500.
41 homem.39 Esta última forma pode se estender aos herdeiros do soberano –
“Considero, portanto,
que o poder político é o
direito de editar leis com
monarquia hereditária – ou restrita ao rei apenas durante sua vida, voltando
pena de morte e, con-
sequentemente, todas
o poder à comunidade após sua morte – monarquia eletiva.40
as penas menores, com
vistas a regular e preser-
var a propriedade, e em- Em seguida, o autor considera ainda a existência de cinco espécies de
pregar a força do Estado
na execução de tais bens poder dentro do Estado. O primeiro e maior deles é o Poder Legislativo,
e na defesa da sociedade
política contra os danos dotado do poder político41. Apesar de ser o maior dos poderes do Estado,
externos, observando tão
somente o bem público”.
(LOCKE, John. Dois Tra-
este se encontra limitado por toda a sociedade civil, o que garante que sua
tados sobre o Governo.
p. 381.)
supremacia ante aos demais poderes não se torne motivo para se constituir
42
“Embora numa comu-
qualquer espécie de despotismo.42 Se o Poder Legislativo abusa do poder
nidade constituída, assen-
tada sobre suas próprias que lhe foi concedido, “o poder soberano retorna ao povo, que se torna au-
bases e agindo de acordo
com sua própria natureza, toridade legislativa, investida de todas as condições, de toda a legitimidade
ou seja, para a preserva-
ção da comunidade, não e de toda autoridade para decidir constituir novo governo e restabelecer a
possa haver mais de um
único poder supremo, que normalidade nas estruturas sociais”43.
é o Legislativo, o qual
todos os demais são e
devem ser subordinados,
sendo ele apenas um
Além do Legislativo, existem ainda os poderes Executivo, Federativo e de
poder fiduciário que entra
e ação para agir com vistas Prerrogativa, compostos na realidade pela mesma pessoa, apesar de exerce-
a certos fins, cabe ainda
ao povo o poder supremo rem funções diversas. Basicamente, o Poder Executivo responsabiliza-se pelo
para remover ou alterar o
Legislativo, quando julgar cumprimento das leis redigidas pelo Legislativo. O Poder Federativo regula a
que este age contraria-
mente à confiança neste relação entre o Estado que representa e os demais, referindo-se ao Chefe de
depositada”. (LOCKE, John.
Dois Tratados sobre o Estado na atualidade. O Poder de Prerrogativa não é nada mais do que a dis-
Governo. p. 518.)
43
BITTAR, Eduardo C. B.
cricionariedade concedida ao Executivo de, em situação que não haja tempo
Curso de Filosofia Polí-
tica. 3. ed. rev, aument.
e modif. pelo Autor. São
Paulo: Atlas, 2008. p. 189.
198
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
para se aguardar a edição de uma lei, decidir com prudência tendo em vista
a boa condução da sociedade.44 44
Destaca-se que Locke
silencia acerca da existên-
cia de um Poder Judiciário.
Pelo que foi exposto neste capítulo, constata-se que no pensamento de Contudo, considerando-se
seu sistema de pensamen-
Locke, mais do que garantir a segurança do indivíduo, o pacto social reforça to e a temporariedade das
Câmaras Legislativas, con-
vocadas somente quando
ao máximo a liberdade já possuída pelo homem no estado de natureza. Ao precisem se manifestar,
enquanto que o Executivo
criar um ente que organize a vida social, desobriga o homem a cuidar da encontra-se em perma-
nente atividade, pode-se
execução da lei natural em relação aos demais, concentrando-se no seu pró- inferir que o Poder de
Julgar estaria dentre as
prio desenvolvimento enquanto indivíduo e no aprimoramento das relações atribuições do Poder
Executivo, instituindo os
juízes doutos e imparciais,
sociais que estabelece. tal como o autor se mani-
festou anteriormente.
199
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Montesquieu
45
Charles-Louis de Se- O filósofo e cientista francês Montesquieu45 realiza em sua obra O Espírito
condat, barão de Mon-
tesquieu, nasceu em
1689, nas proximidades
das Leis uma profunda investigação acerca da constituição do Estado e do
de Bordeaux. Foi conse-
lheiro do Parlamento de
modo pelo qual este se estrutura para regular a si próprio e à sociedade que
Bordeaux e colaborador
da Academia de Ciências
o instituiu.
local. Elaborou estudos
sobre diversas áreas do
conhecimento. Suas prin- Montesquieu parte da consideração de que as leis são as relações neces-
cipais obras são O Espírito
das Leis e Cartas Persas. sárias derivadas da natureza das coisas. Assim sendo, todos os serem têm
Nesta última, satiriza toda
a organização social da suas leis. A divindade, o mundo material, as inteligências superiores aos
Europa de sua época. (RO-
VIGHI, Sofia Vanni. Histó- homens, os homens, os animais, todos possuem suas leis. Desse modo, o
ria da Filosofia Moderna:
da revolução científica a homem também é governado por leis invariáveis, contudo, como ser inteli-
Hegel. p. 349.)
gente, viola incessantemente essas leis e transforma aquelas que ele mesmo
46
MONTESQUIEU. O Es-
pírito das Leis. Tradução estabeleceu.46
de Cristina Murachco. São
Paulo: Martins Fontes,
2000. p. 11. O homem deve saber orientar-se a si mesmo, mas é um ser limitado, sujei-
to à ignorância e ao erro. Buscando ordenar a conduta humana, as religiões
buscaram chamá-lo através de suas leis, porém estas dependem da crença
para serem efetivas. Os filósofos, através da moral, buscaram disciplinar ra-
cionalmente a conduta humana, todavia, para tornar tal módulo de conduta
real, há que se haver a passagem voluntária do indivíduo. Por fim, os legisla-
dores fizeram o homem voltar aos seus deveres com as leis políticas e civis,
dotadas da coercibilidade necessária para obrigar o indivíduo a agir devida-
47
MONTESQUIEU. O Es- mente.47
pírito das Leis. p. 12-13.
Cada uma dessas formas possui seu próprio princípio, o valor pelo qual
se constrói determinado governo e de onde partem todas as atitudes desse
49
governo.49 Na República, o princípio do governo é o amor à república, o qual, Reforça-se esse caráter
nos capítulos da obra de-
na democracia reflete-se no amor à igualdade e na aristocracia no amor à vir- dicados à consideração de
que as leis sobre a educa-
tude. O princípio da monarquia é a honra, enquanto que no despotismo este ção, bem como as leis em
geral, devem se relacionar
princípio é o temor. A importância desses princípios é assinalada na conside- com o princípio de cada
forma de governo.
que se deve querer e não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de
querer. Por outro lado, em relação ao cidadão entende-se tal termo como o
exercício de sua vontade livre para agir bem, podendo-se chamá-la de liber-
dade filosófica. A primeira é a concepção de liberdade em seu sentido legal,
o indivíduo pode fazer tudo aquilo que não é proibido por lei. Já o segundo
conceito, mais profundo, envolve a capacidade do indivíduo discernir a rea-
lidade e agir do modo adequado, sendo, portanto, livre, trata-se muito mais
de uma questão de Ética do que de Direito.
Por outro lado, o próprio Estado não pode ser empecilho ao desenvol-
vimento do indivíduo, nem ser o primeiro a afrontar a liberdade dos seus
201
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Destaca-se disso que, sendo o Estado um ente ficto, que se faz presente
historicamente representado por pessoas que agem em nome dessa figura
maior, a limitação e o controle dos poderes do Estado são essenciais para
que seus agentes não se utilizem do poder que lhes é conferido para preju-
dicar a outrem, bem como para alcançar benefícios próprios, situações em
53
que estar-se-ia denunciando a corrupção do governo e a falência do Estado
Jean-Jacques Rousseau
nasceu em Genebra, em como figura reguladora de determinada sociedade civil.
28 de junho de 1712.
Deixou a cidade em 1728,
morando em Turim, na
atual Itália, e na França,
Apesar de Montesquieu não tratar expressamente do contrato social
primeiramente em Cham-
béry, mudando-se depois
em sua obra, ele parte das concepções contratualistas, especialmente das
para Paris, onde conhece
Diderot e, através deste,
formuladas por Locke, para formular sua obra, a qual é o pilar sobre o qual
os enciclopedistas. Au-
xiliou na elaboração da foram constituídos todos os grandes sistemas jurídicos da modernidade e da
Enciclopédia, contudo,
por divergências com o contemporaneidade.
grupo, afasta-se destes
em 1758, quando retira-
-se para o Montmorency,
onde publicou sua obra
Du contract social, em
1762. Rousseau morreu
em Ermenonville, em 2
Rousseau
de julho de 1778. (REALE,
Giovanni; ANTISERI, Dario. Rousseau53 é uma das mais influentes mentes do séc. XVIII. Seu pensa-
História da Filosofia:
do humanismo a Kant. p. mento marcou o auge do iluminismo francês, bem como o princípio do
751.)
54
movimento romantista. Suas ideias acerca da constituição do Estado e do
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social. Direito são apresentadas em sua obra Do Contrato Social54, na qual o filósofo
Tradução de Antonio de
Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1999
parte da seguinte premissa: “O homem nasceu livre e por toda parte ele está
202
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Rousseau considera que apenas ser o mais forte não é o suficiente para
ser o dono de alguma coisa, se não se transformar essa força em Direito e a
obediência na figura de um dever, não existem garantias da manutenção do
poder sobre essa coisa. Ceder à força é um ato de necessidade, não de von-
tade, trata-se de um ato de prudência, quando é necessário fazê-lo. Contudo,
a atitude de o homem renunciar a sua liberdade constitui-se na renúncia de
sua própria qualidade de homem, aos direitos de toda humanidade e inclu-
sive a seus deveres.56 56
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
p. 12.
O contrato social para Rousseau não é um ato pelo qual se garantirá a
proteção dos indivíduos que encontram-se em constante estado de guerra
entre si tal como propusera Hobbes. Para o filósofo de Genebra, o homem é
naturalmente bondoso; nos primórdios os homens viviam em um período
paradisíaco, que teve fim com o princípio da vida em sociedade, quando o
grupo social corrompeu o homem bom. Para voltar ao status quo ante, ao
estado de natureza onde todos viviam bem, a solução seria a fixação de um
pacto social legítimo, em conformidade com a razão, pelo qual se garanti-
ria o direito de todos de maneira igualitária, cessando as desigualdades da
união anteriormente firmada.57 57
BITTAR, Eduardo C. B.
Curso de Filosofia Políti-
ca. p. 204.
Considerando que os homens não podem criar novas forças, senão so-
mente unir e dirigir as que existem, não possuem outro remédio para se
conservar do que somar suas forças. Porém, como é possível garantir que os
homens, ao somarem suas forças e liberdades, principais instrumentos de
conservação do homem, não acabarão saindo prejudicados? Esse é justa-
mente o problema do contrato social. A única forma dessa cessão de direitos
prosperar é através da alienação total de cada um, com todos seus direitos, a
toda a comunidade, dando-se cada um, por inteiro, para todos. Sendo igual
para todos, não haverá interesse em fazê-la onerosa aos outros. Conforme
Rousseau: “Dando-se cada um a todos, não se dá a ninguém; e como não há
um associado sobre o qual se adquira um direito distinto ao que este cede
sobre si mesmo, se ganha o equivalente de tudo o que se parte e maior força 59
ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
para conservar-se da que se tem”.58 Assim, o contrato social trata-se da união p. 14.
203
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
de todos, entregando a todos seus poderes e suas liberdades, para que esse
todo possa organizar-se e buscar organizar a vida de toda essa coletivida-
de, instituindo-se o Estado. Destaca-se que para o pensador, em razão desse
pacto, todo Estado regido por leis, qualquer que seja a forma de sua admi-
59
ROUSSEAU, Jean-Jac- nistração, é uma República.59
ques. O Contrato Social.
p. 48.
O ato de associação que ocorre encerra um empenho recíproco do público
com os particulares; cada indivíduo, ao contratar consigo mesmo, acha-se em-
penhado de dois modos diversos: como membro do soberano com os parti-
culares e como membro do Estado com o soberano. Nessa natureza dúplice se
dá, pois o soberano do Estado no pensamento de Rousseau, o qual personifica-
-se na união do próprio povo. Essa é uma importante passagem operada pelo
filósofo; Rousseau transfere o conceito de soberania, classicamente vinculado
60
“Mas, para isso, é pre- às teses absolutistas como poder dos reis, ao Povo.60Assim, ao mesmo tempo,
ciso entender que a so-
berania, que faz a lei, não o indivíduo relaciona-se como cidadão com o soberano enquanto também é
é externa aos indivíduos:
ela é composta pelos pró- o próprio soberano. Ao mesmo tempo, o indivíduo enquanto indivíduo cons-
prios indivíduos e, nesse
sentido, contrariamente titui-se como cidadão, enquanto coletividade apresenta-se como o próprio
ao que Bossuet objetava
a Jurieu, esse povo de soberano que se relaciona com os demais cidadãos.
indivíduos racionais co-
manda a si mesmo. Se, na
concepção absolutista, o
povo é governado porque
A formalização de um poder soberano único constituído por todos os
há um soberano, na con-
cepção rousseauniana o
cidadãos opera-se com um fim específico: o bem de todos. E para que o so-
povo é governado porque
ele mesmo é o soberano”.
berano aja sempre tendo em vista o bem de todos, deve pautar-se na vonta-
(JAUME, Lucien. Rousseau
e a questão da soberania. de geral (volonté générale), contraposta à vontade particular das partes que
In: DUSO, Giuseppe (Org.).
O Poder: história da Fi- compuseram o contrato social.
losofia Política moderna.
Tradução de: CIACCHI,
Andrea; SILVA, Líssia da Por vontade geral entende-se aquela vontade que cada indivíduo possui
Cruz e; TOSI, Giuseppe.
Petrópolis: Vozes, 2005. dentro de si e que conduz ao bem comum, é uma disposição ao melhor da
p. 185.)
coletividade e, portanto, ao melhor de si mesmo. Esta pode ser contrária à
vontade particular, que trata do próprio interesse do indivíduo singularmen-
te. A vontade geral é importante porque será muito mais vantajoso que um
indivíduo perca a realização do seu interesse do que, através do seu exercí-
cio, prejudique aos interesses de toda a sociedade.
204
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Por mais que no Estado o homem seja privado de muitas das vantagens
concedidas pela natureza, ele ganha outras de igual importância, elevando sua
62
alma a tal ponto que transforme o indivíduo de fato em um homem.62 Nesse ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques. O Contrato Social.
momento, Rousseau divide três espécies de liberdade existentes: a liberdade p. 26.
natural, relacionada a um direito sem limites a tudo o que tenta e pode atingir,
movida pelo espírito do homem; a liberdade civil, recebida pelo Estado Civil
em conjunto da propriedade, é o exercício da liberdade limitado pela vonta-
de geral. Todavia, acima dessas ergue-se a liberdade moral, que faz o homem
verdadeiramente ser senhor de si, a qual diz respeito à experiência própria de 63
ROUSSEAU, Jean-Jac-
cada homem, havendo nesse instante, portanto, a superação da dependência ques. O Contrato Social.
p. 30.
da coletividade.
Tal como foi dito, a finalidade da vontade geral é o bem comum, e so-
mente essa é que pode dirigir a força do Estado em direção a essa finali-
dade. O exercício da vontade geral constitui-se em um verdadeiro exercício
de soberania. Nesse sentido, a vontade geral é inalienável, bem como não
pode ser representada, pois o soberano, sendo um ser coletivo, só pode ser
205
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
206
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Contratualismo
Doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em
geral, da comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre
seus membros. Essa doutrina é bastante antiga, e, muito provavelmente, os
seus primeiros defensores foram os sofistas. Aristóteles atribui a Licofron (dis-
cípulo de Górgias) a doutrina de que a lei é pura convenção (syntheke) e ga-
rantia dos direitos mútuos, ao que Aristóteles opõe que, nesse caso, ela não
seria capaz de tornar bons e justos os cidadãos. Essa doutrina foi retomada
por Epicuro, para quem o Estado e a lei são resultado de um contrato que tem
como único objetivo facilitar as relações entre os homens. Tudo o que, na con-
venção da lei, mostra ser vantajoso para as necessidades criadas pelas relações
recíprocas é justo por sua natureza, mesmo que não seja sempre o mesmo. No
caso de se fazer uma lei que demonstre não corresponder às necessidades das
relações recíprocas, então essa lei não é justa. Carnéades emitiu concepção
semelhante no famoso discurso sobre a Justiça que proferiu em Roma. Por
que razão teriam sido constituídos tantos e diferentes direitos segundo cada
povo, senão pelo fato de que cada nação sanciona para si o que julga vanta-
joso para si?
207
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
208
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
209
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
210
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Atividades de aplicação
1. Thomas Hobbes propõe que um dos principais motivos para se viver
em sociedade é a garantia da segurança, dada a guerra de todos con-
tra todos existente no estado de natureza. Acerca desse argumento,
considerando o Estado contemporâneo, qual a importância da tutela
do Estado para a proteção da segurança do indivíduo?
211
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
Gabarito
1. O Estado, até a atualidade, no mínimo no plano das leis existentes,
toma para si o direito de garantir a segurança dos indivíduos que vi-
vem dentro dele, bem como de punir os transgressores dos ordena-
mentos sociais. Surge, pois, a problemática de como o Estado tornará
efetiva a garantia da segurança de seu povo.
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
212
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).
GOLDWIN, Robert A. John Locke [1632-1704]. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph
(Comp.). Historia de la Filosofía Política. México: Fondo de Cultura Económica, 1996.
LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. Tradução de: FISCHER, Julio. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
PICCINI, Mario. Poder Comum e representação em Thomas Hobbes. In: DUSO, Giu-
seppe (Org.). O Poder: história da Filosofia Política moderna. Tradução de: CIAC-
CHI: Andrea; CRUZ E SILVA, Líssia da; TOSI, Giuseppe. Petrópolis: Vozes, 2005.
213
A fundamentação do estado moderno: os filósofos contratualistas
214
Liberdade interna
e externa em Kant
Introdução
Immanuel Kant nasceu em 1724, em Königsberg, Prússia (hoje Alema-
nha), cidade em que habitou por toda a sua vida. A primeira fase de sua
vida, que vai da graduação em Königsberg à sua estreia como professor na
mesma universidade, é marcada pelos estudos sobre metafísica da natureza,
sustentadas no racionalismo moderno, sobretudo em Descartes e Leibniz,
e na revolução científica iniciada por Nicolau Copérnico. É nesse período
que alcança sucesso com suas primeiras teses, como “A verdadeira avaliação
das forças vivas” (1747), e a dissertação “De mundi sensibilis atque intelligibilis
forma et principiis” (Dissertação sobre a forma e os princípios do mundo sen-
sível e do mundo inteligível) (1770). Depois, o filósofo atravessa um período
de 10 anos sem novas publicações, provavelmente devido às suas leituras
de Hume, que provocariam-no a modificar o método de raciocínio em suas
obras, adotando a postura crítica. O filósofo David Hume foi fundamental
para despertar Kant de seu sono dogmático, pois a crítica do pensador es-
cocês ao sistema metafísico obrigou o alemão a refundar suas concepções.
Hume teria demonstrado, a partir do empirismo, a desnecessidade de causas
metafísicas para explicar os fenômenos, o que inquietou demasiadamente
Kant, de formação baseada na leitura dos filósofos clássicos, e, portanto, sus-
tentado em princípios metafísicos. Ao ler Hume, Kant passara a duvidar da
capacidade do homem de conhecer além do sensível, e isso o motivou a
seguir em novos estudos e reflexões, que resultariam em sua fase crítica.
mas também construtivamente, pois conhece algo que ele mesmo pôs aos
dados fornecidos pela faculdade da sensibilidade.
219
Liberdade interna e externa em Kant
220
Liberdade interna e externa em Kant
221
Liberdade interna e externa em Kant
Costume, por sua vez, deriva do termo alemão Sitten, que corresponde
ao vocábulo latino mores, e ao grego ethos, todos significando costume. O
uso grego, como já explicado no primeiro capítulo deste livro, reúne em sua
acepção tanto Ética como moral, demonstrando que para aquele povo não
havia essa distinção que é própria do mundo moderno. Portanto, costumes,
em geral, retratam a necessidade de se sistematizar o agir humano, estabele-
cendo regras para suas condutas.
222
Liberdade interna e externa em Kant
coisa: uma boa vontade”.10 E a boa vontade seria justamente o agir pelo dever, 11
“A boa vontade não é
boa pelo que promove ou
não o agir conforme o dever, mas tão somente pelo dever.11 A distinção é im- realiza, pela aptidão para al-
cançar qualquer finalidade
portante aqui: quando agimos conforme o dever sempre temos uma finali- proposta, mas tão somente
pelo querer, isto é, em si
dade em vista, ou seja, qualquer ação boa, quando praticada por interesses, mesma. E considerada em
si mesma, deve ser ava-
desvirtua-se do dever. Mesmo a caridade, quando tem interesse, seja ele qual liada em grau muito mais
elevado do que tudo o que
for, reputação, vaidade, carência, entre outras possibilidades, cria uma finalida- por meio dela puder ser
alcançado em proveito de
de na ação, retirando dela toda a pureza. Isso é agir conforme o dever. O agir qualquer inclinação ou, se
quiser, da soma de todas as
pelo dever é o agir simplesmente pela razão, sem qualquer interesse ou fina- inclinações”. (KANT, Imma-
nuel. Fundamentação da
Metafísica dos Costumes
lidade nela; eu faço isso porque a razão me impera, e não por qualquer outra e outros Escritos. p. 22.)
223
Liberdade interna e externa em Kant
Disso decorre também que deve-se obedecer a lei não por seu conteú-
do, mas simplesmente pelo dever de obedecer. A moral kantiana, portanto,
assenta-se no modo de como as ações devem ser e não naquilo que as coisas
são. Por isso também extrai sua moral da metafísica de ideias a priori capta-
das somente pela razão, e não pela experiência.
Para Kant, são três os elementos que compõem o Direito. Primeiro, o Di-
reito baseia-se nas relações externas, nas relações de uma pessoa com outra,
de forma que ambas influenciam-se reciprocamente. Segundo, o Direito não
se relaciona ao desejo do outro, que condicionaria a necessidade à relação,
mas apenas ao arbítrio. E, por fim, como terceiro elemento, essa relação re-
cíproca entre os arbítrios deve ocorrer de tal forma que a ação de um não
interfira na liberdade do outro, segundo uma lei universal.
Por fim, o terceiro elemento identifica que a minha ação não pode nunca
interferir na liberdade do outro. É o conflito entre coerção e arbítrio. Porém,
226
Liberdade interna e externa em Kant
O Estado
Assim como para os predecessores, Kant entende o Estado como um contra-
to, um pacto entre os indivíduos. O Estado é o ente público que não é um patri-
mônio de ninguém, mas de todos, por isso tem em vista as questões universais.
227
Liberdade interna e externa em Kant
Por fim, Kant traz também o conceito para injustiça, que seria: “[...] comete
uma injustiça contra mim aquele que me perturba nesse estado porque o
impedimento (a oposição) que me suscita não pode subsistir com a liberda-
228
Liberdade interna e externa em Kant
229
Liberdade interna e externa em Kant
de seus debates estenderem-se para além das pretensões do mero direito civil.
Está-se diante da necessidade de estudo de um Direito que não é meramente
nacional, que não é meramente internacional, mas que é verdadeiramente cos-
mopolita, e que confere cidadania aos homens de todas as nações.
Esse estudo, portanto, não é um estudo que visa tratar de filantropia entre
os homens de nações diferentes, mas algo solidamente constituído e consa-
grado no plano dos direitos.
“Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, não de filantropia, mas de ser
tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao território de outro”.
Isso parece constituir uma necessidade natural, ou, ainda, uma decorrência
natural de todo o processo civilizatório da razão. Não se poderiam esperar
outros reflexos do evolver racional. E nisso há grande operosidade da natureza,
imperiosa e autossuficiente na condução de seus processos evolutivos, citada
por Kant como a grande artífice do processo de aproximação dos homens
entre si. É a astúcia da natureza que faz com que do ódio surja o amor, assim
como da guerra surja a paz.
O que subministra essa garantia é nada menos que a grande artista, a natureza
(natura daedala rerum), de cujo curso mecânico transparece com evidência uma
finalidade: através da discórdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra
sua vontade.
230
Liberdade interna e externa em Kant
Atividades de aplicação
1. A partir da postura crítica de Kant para com a metafísica, ele revisa a me-
tafísica clássica, concebendo a impossibilidade de se alcançar as causas
das causas, e ideias como Deus, alma. Analise a questão comparando
com a visão dos filósofos medievais, já discutidos no capítulo 6.
231
Liberdade interna e externa em Kant
Gabarito
1. Os medievais, em especial Agostinho e Tomás de Aquino, concebiam a
metafísica como essência do Direito, uma vez que elas emanavam da
vontade divina. Esses filósofos faziam o universal decorrer do pensa-
mento teológico, enquanto que Kant postula o universal e a metafísica
em questões do conhecimento, nas ideias inatas a partir da razão pura
humana.
232
Liberdade interna e externa em Kant
Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).
KANT, Immanuel. Doutrina do Direito. Tradução de: BINI, Edson. São Paulo: Ícone,
1993.
_____. Crítica da Razão Pura. Tradução de: ROHDEN, Valerio; MOOSBURGER, Udo
Baldur. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
_____. La Metafisica dei Costumi. Tradução de: VIDARI, Giovanni. Roma-Bari: La-
terza, 2004.
MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Kant e a crítica da razão: moral e Direito. In:
_____. Curso de Filosofia Política: do nascimento da Filosofia a Kant. São Paulo:
Atlas, 2008.
233
Direito e Política
na Dialética de Hegel
O sistema hegeliano
O idealismo alemão, que se inicia com Kant, tem em Hegel sua face mais
desenvolvida, pois em seu sistema filosófico de fato a Ideia (Idee) ocupa
lugar central em todas as dialéticas, conforme anuncia logo no início da
última seção da sua Ciência da Lógica, obra em que apresenta o desenvolvi-
mento lógico e ontológico de sua filosofia: “a Ideia é o conceito adequado,
o verdadeiro objetivo, ou seja, o verdadeiro como tal. Se algo tem verda-
1
de, tem por meio sua Ideia, ou seja, algo tem verdade apenas enquanto é HEGEL, G. W. F. Ciencia
de la Logica. Tradução de
Augusta e Rodolfo Mon-
Ideia”.1 Para Hegel, a Ideia não é apenas uma concepção teleológica, mas dolfo. Buenos Aires: Solar,
1968. p. 471.
aquilo que dá validade ao conhecimento racional. A Ideia está em toda a
sua filosofia, de forma que inclusive as questões éticas, políticas e jurídicas,
objeto da sua obra Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, tem como
objetivo a realização da Ideia de Liberdade, aquilo que ele denomina como
Eticidade (Sittlichkeit).
A Fenomenologia do Espírito
A Fenomenologia do Espírito é considerada a primeira grande obra hege-
liana, escrita após seus vários trabalhos de juventude. Trata-se de uma obra
enigmática, pois trabalha inúmeras temáticas simultaneamente, o que a
torna uma leitura ainda mais complexa. A proposta da obra é apresentada
logo no prefácio: “A tarefa de conduzir o indivíduo, desde seu estado inculto
até o saber, devia ser entendida em seu sentido universal, e tinha de consi-
derar o indivíduo universal, o espírito consciente-de-si em sua manifesta-
2
“Die Aufgabe, das Indi- ção cultural”.2 E logo a seguir complementa a sentença explicando o porquê
viduum von seinem unge-
bildeten Standpunkte aus
zum Wissen zu fuhren, war
do indivíduo universal: “O individuo particular é o espírito incompleto, uma
in ihrem allgemeinen Sinn
zu fassen und das allgeme-
figura concreta: uma só determinidade predomina em todo o seu ser-aí, en-
nine Individuum, der Sel-
bstbewußte Geist, in seiner
quanto outras determinidades só ocorrem com seus traços rasurados”.3 Ou
Bildung zu betrachten” (FE,
Prefácio, HW 3, p. 31-32.)
seja, Hegel pretende conduzir o indivíduo desde seu estágio mais primitivo,
aquele do estado inculto, até o saber absoluto. Não se trata de formar apenas
3
“Das besondere Indivi-
duum ist der unvollstän-
o indivíduo singular, e sim o universal, porque o objetivo é formar a huma-
dige Geist, eine konkrete
Gestalt, in deren ganzem
nidade em geral. Isso se torna mais claro quando observamos a estrutura
Dasein eine Bestimmtheit
herrschend ist und worin da Fenomenologia, que é dividida em duas partes: a primeira, que trata da
die anderen nur in verwis-
chten Zugen vorhanden “Ciência da experiência da consciência”, ou seja, trabalha o indivíduo singular
sind” (FE, Prefácio, HW 3,
p. 31-32.) em suas várias dimensões (intelectuais, existenciais, morais, religiosas, jurí-
dicas, entre outras); e uma segunda, intitulada de “Espírito”, que representa
a passagem do indivíduo singular ao indivíduo universal, da consciência de
si singular à consciência de si universal. No “Espírito” não se trabalha este ou
aquele indivíduo, mas a universalidade representada na figura da comunida-
de e manifestada por meio dos costumes e da história. Neste trabalho, nos
dedicaremos a analisar algumas passagens das experiências da consciên-
cia, pois o indivíduo universal poderá ser trabalhado também na Filosofia do
Direito.
236
Direito e Política na Dialética de Hegel
237
Direito e Política na Dialética de Hegel
238
Direito e Política na Dialética de Hegel
239
Direito e Política na Dialética de Hegel
As linhas fundamentais
da Filosofia do Direito
Como já mencionado no início do trabalho, a Filosofia do Direito ocupa
um estágio intermediário no desenvolvimento do espírito. é o espírito ob-
jetivo, que sucede a mediação do espírito subjetivo e antecede o espírito
absoluto. Ademais, entre as divisões já comentadas na Filosofia do Direito
(Direito Político Interno, Direito Político Externo e História Universal), nos ate-
remos ao estudo da primeira, que contempla o Direito Abstrato, a Moralida-
de e a Eticidade. Como se verá, ainda, a passagem entre esses três momentos
240
Direito e Política na Dialética de Hegel
241
Direito e Política na Dialética de Hegel
242
Direito e Política na Dialética de Hegel
243
Direito e Política na Dialética de Hegel
A família
A família é universalidade natural, imediata, pois o indivíduo nasce na fa-
mília, e não por um ato de vontade. A família se forma pelo reconhecimento
recíproco entre duas pessoas que se unem numa só: o matrimônio, que é
uma relação ética.
244
Direito e Política na Dialética de Hegel
A sociedade civil
A sociedade civil, introduzida por Hegel com o termo burgerliche Gesells-
chaft, pode ser traduzida também por sociedade civil-burguesa. Essa infor-
mação é importante para a contextualização da sociedade civil como fenô-
meno histórico ligado ao mundo moderno, à ascensão do cidadão burguês.
Os gregos não conheciam a sociedade civil porque não conseguiam ver o
indivíduo como capaz de ser apenas singular, sem estar necessariamente en-
volvido na universalidade do Estado. A explosão econômica do mundo mo-
derno, com suas necessidades de grandes navegações e comércios distan-
tes, bem como o impulso da tecnologia e da industrialização, são as causas
que conduzem à criação da sociedade civil. É essencialmente burguesa,
porque antes dos burgueses não havia a possibilidade de o indivíduo viver
no Estado sem ser para o Estado. Não por outro motivo Hegel analisa nessa
seção vários pensadores da ciência chamada por ele de Economia Política,
como Ricardo e Smith.
245
Direito e Política na Dialética de Hegel
Por fim, uma nação não pode viver com excessivas desigualdades sociais,
porque isso resultaria em algum momento em problemas a toda a coletivi-
dade. Com isso cumpre-se a passagem da sociedade civil ao Estado, o ente
que reconcilia o singular com o universal.
O Estado
Embora seja o último a momento da Eticidade, isso não significa que o
Estado seja o último a ser posto, nem historicamente nem logicamente. O
Estado já existe como Ideia desde o Direito Abstrato, o que se tem aqui é
apenas sua efetivação no mundo. O Estado não é criado juridicamente, não
é um ato de vontade dos cidadãos que estabelecem um contrato social, pois
isso seria aceitar que o Estado é uma associação atomística, em que cada
20
indivíduo decide participar do Estado por vontade, e também por vontade “Der Staat ist die Wirkli-
chkeit der sittlichen Idee,
poderia decidir sair dele. O Estado é o fim absoluto do mundo ético, é para - der sittliche Geist, als der
offenbare, sich selbst deu-
ele que convergem todos os momentos, o que significa que sua ideia é que tliche, substantielle inso-
fern er es weiß, vollfuhrt. An
movimenta todas essas passagens. der Sitte hat er seine unmit-
telbare, und an dem Selbst-
bewußtsein des einzelnen,
dem Wissen und Tätigkeit
O Estado é a realidade efetiva da ideia ética, – o espírito ético enquanto vontade desselben, seine vermittelte
substancial, manifesta, clara a si, que se pensa e se sabe, e realiza plenamente o que ele Existenz, sowie dieses durch
sabe e na medida em que o sabe. No costume o Estado tem ela a sua existência imediata die Gesinnung in ihm, als
seinem Wesen, Zweck und
e na autoconsciência do singular, no saber e na atividade do mesmo, a sua existência Produkte seiner Tätigkeit,
mediada, assim como essa autoconsciência do singular, através da [sua] disposição de seine substantielle Freiheit
hat”. (FD. O Estado, § 257,
ânimo, tem no Estado, como sua essência, fim e produto da sua atividade, a sua liberdade HW 7, p. 398.)
substancial.20
247
Direito e Política na Dialética de Hegel
Isso significa que a Constituição sempre será justa, porque se ela não re-
flete a vontade dos indivíduos, ela deve ser modificada por eles.
Por fim, é importante salientar que a Eticidade não elimina o Direito Abs-
trato e a Moralidade, pois esses dois momentos precedentes permanecem
presentes no movimento dialético de Hegel. A Eticidade contém o mundo
248
Direito e Política na Dialética de Hegel
249
Direito e Política na Dialética de Hegel
O cidadão de hoje torna-se cada vez mais apático, não se envolve nas
grandes questões políticas, sociais, econômicas, jurídicas, não entende o
que se passa consigo mesmo nem com o seu povo. Esse cidadão não é livre,
não é consciente de si, e portanto nem seu direito nem sua sociedade são
livres. Em 1821 Hegel já alertara que o Direito por si só não é capaz de au-
xiliar a sociedade, antes é necessário preparar o povo. O indivíduo deve se
formar e tomar consciência de si. Criminalidade, corrupção, apatia política,
desigualdades sociais, são todos problemas que escondem outros maiores:
os indivíduos não se reconhecem nas leis, nem entendem seu papel como
operadores históricos e sociais. O indivíduo contemporâneo perde cada vez
mais o poder de dizer não e mudar as instituições, aprimorá-las.
250
Direito e Política na Dialética de Hegel
251
Direito e Política na Dialética de Hegel
252
Direito e Política na Dialética de Hegel
Atividades de aplicação
1. A Fenomenologia tem como objetivo conduzir o indivíduo desde o
saber inculto até o saber absoluto, o filosófico, devendo para isso o
mesmo superar vários momentos, experiências da consciência, como
a dialética do reconhecimento e a dialética entre senhor e servo. Esses
movimentos são impulsionados pelo desejo. Explique como você en-
tendeu ser o desejo para Hegel.
3. Na Eticidade o indivíduo se vê nas leis, nos costumes, por isso para ele
é um dever ético obedecer a Constituição. Relacione isso à contempo-
raneidade: os indivíduos hoje se veem na Constituição?
253
Direito e Política na Dialética de Hegel
Gabarito
1. O desejo é uma impulsão interna que movimenta a consciência a sair
de si mesma e ir buscar realizar suas necessidades. O desejo é algo
natural ao indivíduo, por isso não se satisfaz com o consumo desse
alimento ou dessa situação específica.
Referências
BOURGEOIS, Bernard. Os Atos do Espírito. Tradução de: NEVES, Paulo. São Leo-
poldo: Editora UNISINOS, 2004.
254
O Direito e os dilemas da
existência humana: de Marx
aos filósofos existencialistas
Introdução
Neste momento trataremos de duas correntes de pensamento diversas,
mas de grande importância para a constituição da racionalidade contem-
porânea e para a construção dos últimos sistemas filosóficos jurídicos. Essas
correntes são o marxismo e a corrente filosófica existencialista que, ao in-
dagar o problema da existência humana e dos objetivos das ciências repre-
senta uma importante influência na busca pela retomada de um Direito que
esteja em conformidade aos anseios do indivíduo.
Karl Marx
O filósofo alemão Karl Marx é identificado como pensador do materialis-
mo dialético, ou materialismo histórico. O materialismo dialético é um dos
momentos de maior repercussão na história da Filosofia, pois implica o en-
tendimento do mundo e da sociedade como processo de constante trans-
formação. O mundo hoje é diferente daquele de ontem e também do de
amanhã, e quem executa a transformação é a própria sociedade. O mundo
está ligado à história, e por isso a Filosofia pode transformar a realidade e
não apenas estudá-la.
258
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
[...] ruptura das estruturas de poder, para a instauração provisória do governo proletário
e o desmonte paulatino e sucessivo do Estado, com vista na constituição do comunismo
como forma unitária, de iniciativa da sociedade civil, imposta de cima para baixo pela
superestrutura estatal (com seus aparatos de força, coação, leis, políticas, burocracia...), de
7
BITTAR, E. C. B. Curso de condução dos negócios de interesse coletivo.7
Filosofia Política, p. 234.
S0ren Kierkegaard
em sua opinião somente
conservava de cristã o
nome. Kiêrkegaard fale-
ceu em 4 de novembro de
1855. (COPLESTON, Frederi-
ck. Historia de la Filosofía:
7: de Fichte a Nietzsche. 4.
O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard8 é considerado um dos pre-
ed. Traducción de: DOMÉ-
NECH, Ana. Barcelona: Ariel, cursores, ou até mesmo o primeiro dos filósofos da corrente existencialista.
1999. p. 263-266.)
260
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
261
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
262
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche diz ter descoberto dois tipos primá-
rios de moral, “a dos chefes e a dos escravos”, mescladas em todas as civiliza-
ções superiores, elementos de ambas podem se encontrar inclusive em um
mesmo homem. A moral dos chefes é a moral aristocrática, “bom” e “mal”
são equivalentes de “nobre” e “plebeu”. Já na moral dos escravos a norma é o
que for benéfico à sociedade do débil e impotente. Valorizam-se qualidades
como simpatia, bondade e humildade, os indivíduos fortes e independentes
são considerados perigosos. As valorações morais dessa segunda concepção
são expressões das necessidades do “rebanho”.21 21
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 7:
de Fichte a Nietzsche. p.
Em A Genealogia da Moral, utiliza o conceito de ressentimento, na relação 263. p. 316.
263
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
23
até o além-do-homem23. A crítica de Nietzsche não se dirige à figura de Cristo,
No original, Ubermens-
ch. A tradução desse con- mas à construção histórica da religião cristã, a qual diz ele depreciar o corpo,
ceito gera discussões no
meio acadêmico, sendo o impulso, o instinto, a paixão, o desenvolvimento da mente livre e sem
que boa parte recomenda
a tradução como além-do- travas, os valores estéticos.24
homem, conforme adotou
Rubens Rodrigues Torres
Filho em sua tradução
para a coleção Os Pen-
Em Gaia Ciência, Nietzsche destaca que o acontecimento mais importan-
sadores da editora Nova
Cultural, ao contrário da
te da época atual é que Deus está morto, e foi morto pela humanidade. A fé
corriqueira tradução “su-
per-homem” (LUFT apud no deus cristão se fez impossível de manter e já começa a dissipar as primei-
SAFRANSKI, Rudiger. Niet-
zsche: biografia de uma ras nuvens sobre a Europa. Nietzsche até chega a aceitar que a religião em
tragédia. p. 98.)
algumas fases expressou a vontade de viver, ou melhor, de poder, mas sua
24
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 7: atitude geral é que a fé em Deus, especialmente da religião cristã, é hostil à
de Fichte a Nietzsche. p.
263. p. 316-317. vida e que quando expressa a vontade de poder, tal vontade é aquela dos
25
COPLESTON, Frederick. tipos inferiores de homem.25
Historia de la Filosofía: 7:
de Fichte a Nietzsche. p.
263. p. 317. O filósofo destaca que os europeus foram educados à aceitação dos va-
lores morais cristãos associados à fé cristã, em certo sentido dependentes
dela. Se os europeus perdessem sua fé nesses valores, perderiam sua fé em
todos os valores. O desprezo de todos os valores, que brota do sentimento
de carência do objetivo do mundo é um dos principais elementos do niilis-
26
Do latim nihil, nada. mo26. Assim, pode-se dizer que a moralidade opera-se como um antídoto
(Gegenmittel) contra o niilismo teórico e prático exercendo o papel de segu-
rar o homem, pois, sem sua segurança, resta o nada e o homem não possui
27
COPLESTON, Frederick.
Historia de la Filosofía: 7: sentido para existir. Nesse sentido, a moral cristã exerce um valor por segurar
de Fichte a Nietzsche. p.
263. p. 319. os homens inferiores contra isso. Para Nietzsche, o advento do niilismo é ine-
28
Em um tempo infinito vitável. Por mais que haja seu risco premente, esse movimento possibilitará
existem ciclos periódicos
em que tudo o que su- o caminho até um novo horizonte, até uma transformação dos valores, até o
cedeu se repete de novo.
Essa concepção é posta nascimento de um tipo superior de homem.27
nos lábios do sábio persa
Zaratustra, protagonis-
ta do seu mais famoso Importante para a construção desse tipo de homem é o amor fati, amar o
trabalho, Assim Falou
Zaratustra. necessário, aceitar esse mundo e amá-lo, aceitar o eterno retorno28 da vida. Para
264
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
29
REALE, Giovanni; AN-
se refundar a vida, ciente do mundo em que se encontra, deve-se criar um novo TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
sentido da terra, esse é o além-do-homem. Não é a humanidade, senão o além- até nossos dias. p. 429.
Edmund Husserl
indagação da atividade
humana.(ABBAGNANO,
Nicola. Dicionário de Fi-
losofia. São Paulo: Martins
33
Fontes, 2005. p.
ADORNO, F; 776-777.)
GREGORY,
Edmund Husserl30 é o fundador do movimento fenomenológico, uma pro- T.; VERRA, V. Manuale di
storia della filosofia. p.
posta de refundação do critério científico através do retorno às próprias coisas 295.
265
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
266
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
A crise das ciências não é sua crise de cientificidade, mas sim a crise de
seu significado para a existência humana. Husserl critica a pretensão da ciên-
cia positivista e naturalista de serem a única verdade válida e a ideia ligada
a ela de que o mundo descrito pelas ciências seria a verdadeira realidade.
Essa concepção exclui aqueles problemas que são os mais candentes para o
homem, que, em nossos tempos, atormentado, sente-se à mercê do destino, 38
“Se trata do reino de
sofre com os problemas do sentido e do não sentido da existência humana uma subjetividade com-
pletamente circunscrita
em seu conjunto. Nessa crise categorial, substitui-se as categorias científicas em si mesma, que é no
seu modo, que atua em
pelo concreto, o pré-categorial, o mundo-da-vida38. O mundo da vida é o qualquer experiência, em
qualquer pensamento,
âmbito das originárias “formações do sentido” humanas, é o conjunto de su- e que por isso é em toda
parte inevitavelmente
perações realizadas antes do nascimento da ciência, âmbito e conjunto que presente e que, todavia,
não tem sido mais consi-
as ciências adotam delas. Isso significa que o mundo, para Husserl, é um ser derada”; “Si trata del regno
di una soggettività com-
pletamente circoscrita in
já dado, mas que não existiria para o ser humano se ele não o vivificasse na se stessa, essente nel suo
modo, che funge in qual-
sua subjetividade. Por isso, a superação da atitude natural consiste precisa- siasi esperienza, in quali-
sasi pensiero, in qualsiasi
mente nisto: o ser humano deixa de acreditar no mundo exterior como algo vita, e che quindi è ovun-
que inevitabilmente pre-
dado e passa a indagar como as validades são dadas à subjetividade. sente e che tuttavia non è
mai stata considerata, non
è mai stata afferrata né
A coisa percebida não é só ela mesma, real e propriamente, porque a sub- compressa”. (HUSSERL. La
Crisi delle Scienze Euro-
jetividade lhe acrescenta algo mais, que é anexado ao objeto. Experienciar pee e la Fenomenologia
Trascedentale: per un
implica perceber, e este, um projetar. Por isso o mundo não é dado “como sapere umanistico. Tradu-
zione di: FILIPPINI, Enrico.
haver”, mas sim através de uma operação subjetiva da consciência que per- Milano: Net, 2002. p. 141,
142. [tradução livre].)
cebe. Daí porque tudo no mundo é subjetivo-relativo, visto que se relativiza
39
segundo o sentido que é elaborado ou dado pela subjetividade.39 HUSSERL, Edmund. La
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia
transcedentale. p. 172.
A simples experiência, ou a experiência direta das coisas, não é uma ex-
periência da objetividade, mas sim uma experiência subjetivo-relativa do
mundo-da-vida. O mundo objetivo não é experienciável, pois o experienciá-
vel é somente o elemento subjetivo. É o ser humano traduzido pelo eu ou
conscientizado. O método que viabiliza a transformação de atitude frente ao
mundo (passando de ingênuo a reflexivo) é o método da “epoché fenomeno-
lógica”, o qual consiste em uma suspensão do conceito em análise, libertan-
267
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
do o filósofo dos vínculos mais fortes e universais com aquela coisa, e, por
isso, mais ocultos. Encontrando-se sobre o objeto estudado, portanto livre,
o fenomenólogo pode, ao ver o mundo como Fenomenologia, identificar a
40
HUSSERL, Edmund. La essência daquilo que estuda.40
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia
transcedentale. p. 179,
180.
44
HUSSERL, Edmund. Husserl define que a comunhão se dá na comunidade intersubjetiva:
Meditações cartesianas:
introdução à fenomenolo-
gia. p. 151. Não se pode pensar em subjetividade sem que esta implique na intersubjetividade, pois
a percepção do eu implica ao mesmo tempo na percepção do alter ego, do outro. Na
elucidação da minha experiência se constitui a elucidação da experiência do outro. Eu,
268
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
sujeito, percebo o mundo, mas os outros sujeitos o percebem tal como eu. Isso significa
que possuo em mim a experiência do mundo e dos outros, não como uma obra da minha
atividade sintética, de certa maneira privativa, mas como de um mundo estranho, a mim,
45
intersubjetivo, existente para cada um, acessível a cada um.45 HUSSERL, Edmund. La
crisi delle scienze euro-
pee e la fenomenologia
Husserl assim evidencia o entendimento de que a vida humana é uma transcedentale. p.56.
Martin Heidegger
Martin Heidegger é provavelmente o mais famoso dos filósofos existen-
cialistas. Sua extensa obra é resultado da leitura de toda a história da Filo-
sofia, o que resultou numa profunda familiaridade com o pensamento de
mentes como Heráclito, Platão, Aristóteles, Kant e Hegel. Todo esse estudo
motivou-se a responder uma indagação fundamental, a questão metafísica
e do ser. É disso que resulta a sua filosofia do dasein, ou do ser-aí.
269
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
270
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
48
eterna e angustiante para a humanidade. Essa necessidade revela que, se Para Heidegger, a tra-
dição filosófica sempre
por um lado é inaplicável o entendimento do ser, por outro é preciso captar ocupou-se apenas da
questão ontológica, sem
o sentido do ser. perceber que todo ser é
ser de um ente, decorren-
do disso que é necessário
Heidegger também separa o domínio do ente, o existente, do domínio do estudar também o ser em
sua existência. Somente a
presença do ser pode ex-
ser. O primeiro é o domínio ôntico, no qual encontramos a índole que está plicá-lo em suas vastas di-
mensões. “Em consequên-
em todos os entes e que deriva do ser, que por sua vez é a raiz fundamental cia, a presença possui um
primado múltiplo frente
de todas as coisas, a qual não se identifica com uma presença empírica, mas a todos os outros entes:
o primeiro é um primado
sim um dado que antecede e possibilita todas as presenças.48 ôntico: a presença é um
ente determinado em
seu ser pela existência. O
Para Heidegger, a tradição filosófica sempre separou a essência da exis- segundo é um primado
ontológico: com base
tência, conferindo ao ser o caráter universal e perene, que não necessita da em sua determinação da
existência, a presença é
temporalidade, enquanto a existência se dá no aspecto empírico. Mas Hei- em si mesma ‘ontológica’.
Pertence à presença, de
degger assinala que essa distinção deve ser repensada, caso se deseje captar maneira originária, e en-
quanto constitutivo da
a ideia de ser: “se o ser é realmente raiz fundamental e a fonte de todas as compreensão da existên-
cia, uma compreensão do
coisas, importa absolutamente para o filósofo enraizar esse ser na esfera da ser de todos os entes que
não possuem o modo de
ser da presença. A presen-
temporalidade. [...] Em outros termos, o ser ‘não é isto ou aquilo’, ele tem que ça tem, por conseguinte,
um terceiro primado que
ser; é o homem, o ente, que continuamente o faz ser”49. Dessa constatação é a condição ôntico-onto-
lógica da possibilidade de
surge sua expressão dasein. todas as ontologias. Desse
modo, a presença se
mostra como o ente que,
O dasein de Heidegger é a presença do ente humano ao ser, bem como ontologicamente, deve
ser o primeiro interrogado,
alude ainda ao campo de manifestação do mesmo, ao mundo, onde o ser antes de qualquer outro”.
(HEIDEGGER, Martin. Ser e
pode se desenvolver. Tempo. Tomo I, p. 40.)
49
A característica desse dasein é a facticidade: continuamente projetado adiante ou projeto, HUISMAN, Denis. His-
tória do Existencialismo.
ele tem que ser e toma todo seu sentido em relação ao futuro. Mas ao mesmo tempo, Tradução de Maria Leonor
o homem não tem a escolha de não ser. Ele é imediatamente surgimento num mundo Loureiro. Bauru: EDUSC,
2001. p. 101-102.
que sempre lhe préexiste, o qual ele tem que operar e que deve analisar sem Deus. [...] O
homem, esse existente humano, é irremediavelmente projetado adiante de si mesmo; ele
se transcende (ultrapassa-se) no tempo e no espaço para realizar esse projeto que é ele
mesmo, pois ele tem que ser o que ainda não é, e não mais o que é. A facticidade do dasein
reside, portanto, no fato de que o homem é a ‘antecipação de si’”50. 50
HUISMAN, Denis. His-
tória do Existencialismo.
p. 104.
Portanto, além da busca pela noção de ser, é preciso dar sentido ao ser.
Dessa forma, se entende o ser como o ente humano nesse mundo, é neces-
sário buscar dar sentido à vida do homem, tornando a vida mais autêntica
contra as várias mentiras que circundam a vida em sociedade, que em geral
se identificam com a fixação em um objeto ou momento específico da vida. É
nesse mundo de convenções que pergunta-se: qual o sentido da existência?
Alguns podem colocá-la na família, outros no trabalho, outros na religião,
e assim por diante. Mas cada momento desses, embora importantes, são
apenas momentos, não esgotam a existência por inteiro. Para dar sentido
ao ser é preciso entender aquilo que preenche a existência, trazendo mais
271
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
272
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
O que é existencialismo?
(HUISMAN, 2001, p. 8-11; 177-178)
273
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
A evolução do existencialismo
Poder-se-ia dizer que o existencialismo tem origem em Kierkegaard(seria sua
pré-história), que sua proto-história começa com grandes pensadores alemães
que, de Husserl e Nietzsche a Jaspers e Heidegger, encarnaram, e até mesmo
ilustraram, as “riquíssimas horas” do movimento, simultaneamente com Gabriel
Marcel na França, pois é em 1927 que saem ao mesmo tempo o Sein und Zeit (Ser
e Tempo) de Heidegger e o Jornal Métaphisique de Gabriel Marcel.
O vocábulo será usado pela primeira vez nos anos 30, primeiro num texto
italiano e depois sob a pena de Gabriel Marcel e de Karl Jaspers. Mas passa
mais ou menos despercebido na época.
Outros afirmam que ressurgiu um pouco mais tarde, em 1943, data da pu-
blicação de L’Être etle Néant, de Sartre, de novo sob a assinatura de Gabriel
Marcel. Nada pode sustentar tal hipótese. Não se encontra nenhum sinal do
emprego da palavra nessa data. Não: é em 28 de outubro de 1945 que Jean-
-Paul Sartre institui a certidão de nascimento e o atestado de batismo da pala-
vra existencialismo, ao fazer sua célebre conferência: “O existencialismo é um
humanismo”.
Notemos que fora também em outubro de 1945 que ele publicara o pri-
meiro fascículo da revista Les Temps Modernes com “a equipe” que se trans-
formará progressamente em “escola” compreendendo Albert Camus, Maurice
Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Raymond Aron e alguns autores menos
célebres. Ela se desagregará na sequência: mas o existencialismo invade, nos
anos 1945 a 1960, a vida política (criação a partir de 1947 do partido político
de Sartre e David Rousset: a R.D.R.), a vida literária, o teatro, o cinema, e, evi-
dentemente, a Filosofia.
274
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Conclusão
Nascido em meados do século XIX na Dinamarca, com Kierkegaard, o exis-
tencialismo derramou-se sobre a Alemanha de 1890 a 1940, com Nietzsche,
Husserl, Jaspers e Heidegger, antes de se instalar na França de 1930 a 1960 e,
em menor escala, de 1960 a 1990. Definitivamente, o movimento tem mais
de um século de existência, e seu dirigente, Jean-Paul Sartre, dominou a cena
filosófica europeia durante perto de 50 anos. La Nausée permanece um dos
Best-sellers dos livros de bolso: rivaliza com La Peste de Camus, La Condition
Humaine de Malraux e Vol de nuit de Saint-Exupéry. No plano da história das
ideias, o existencialismo é portanto um grande movimento intelectual, com
lugar ao lado do marxismo, do estruturalismo e da psicanálise.
275
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Atividades de aplicação
1. A partir da visão de Marx sobre a sociedade, comente algumas rela-
ções da sua leitura com a realidade atual. Analise a supremacia do
poder estatal, o papel do indivíduo como ativista político, as classes
sociais etc.
276
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Gabarito
1. Embora a sociedade tenha se modificado bastante durante as últimas
décadas, o Estado, o Direito, bem como demais instituições seguem
sendo instrumentos de poder nas mãos de alguns indivíduos. Requer-
-se uma tomada de consciência mais efetiva dos cidadãos na luta por
seus direitos, o que não significa revolução violenta, tal como ocorreu
no século XX.
277
O Direito e os dilemas da existência humana: de Marx aos filósofos existencialistas
Referências
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de: BOSI, Alfredo. Revi-
são e tradução dos novos textos: BENEDETTI, Ivone Castilho. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
ADORNO, F.; GREGORY, T.; VERRA, V. Manuale di Storia della Filosofia. Roma-Bari:
Gius Laterza & Figli Spa, 1996.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 15. ed. Tradução de: SCHUBACK, Marica Sá Ca-
valcante. Petrópolis: Vozes, 2005. Tomo I.
_____. Nietzsche: biografia de uma tragédia. Tradução de: LUFT, Lya. São Paulo:
Geração Editorial, 2001.
278
Correntes contemporâneas
da Filosofia do Direito
Max Scheler
Em Visão Filosófica do Mundo é possível captar a forma de como Scheler
pensa e filosofa acerca das grandes questões da vida humana. Para Scheler,
o saber possui três níveis: um primeiro ainda ligado aos objetos, em que é
marcante o saber empírico das ciências positivas. Nesse nível o grande obje-
tivo é entender as leis que regem o mundo, porque entendendo essas leis 1
“Também a ‘pessoa’ es-
podemos captar seu funcionamento, prevendo-as e dominando-as. Um se- piritual do homem não
é uma coisa substancial
gundo nível é o saber filosófico, que se relaciona àquilo que Aristóteles cha- nem um ser com a forma
de um objeto. O homem
mava de filosofia primeira, portanto o entendimento ontológico do homem pode unir-se com essa
sua pessoa somente de
e do mundo. Por fim, um terceiro nível é a metafísica da salvação, momento uma forma ativa. Pois essa
pessoa é uma estrutura
em que o homem se liga ao cosmos e a Deus.1 monarquicamente orde-
nada de atos espirituais
que representa todas as
vezes uma autoconcen-
Esse entendimento é importante para se compreender como a filosofia tração única e individual
desse espírito infinito, um
de Scheler insere-se numa visão ampla que envolve a Antropologia, a Cos- e sempre mesmo, em que
está enraizada a estrutura
mologia e a Teologia, ou seja, o homem, o mundo e Deus. A ética de Scheler, essencial do mundo ob-
jetivo. Por analogia, en-
representada em sua cosmologia dos valores, também situa-se nessa linha tretanto, o homem, como
ser dotado de instinto e
de pensamento. vida, está também enrai-
zado no impulso divino
da ‘natureza’, em Deus.
Max Scheler foi grande adversário da ética kantiana, que teria formula- Nós experienciamos essa
unidade de raiz de todos
do apenas uma ética do ressentimento, em que se obedece a lei por dever os homens, mesmo de
tudo que é vivo, no im-
apenas, mas que nada justificaria tal formulação. A arbitrariedade de obrigar pulso divino dos grandes
movimentos de simpatia,
a obediência causa ressentimento e bloqueia o prazer e a alegria da vida. Por de amor, e em todas as
formas de sentir-se numa
só unidade com o cosmos.
tal motivo, Scheler muda o conceito fundamental da ética do dever para o Esse é o caminho ‘dioni-
síaco’ a Deus”. (SCHELER,
valor. A Ética trabalha com bens, mas os bens são bens justamente pelos va- Max. Visão Filosófica do
Mundo. p. 17.)
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Essa concepção de valores seria a sua Ética, pois como os valores não são
essências criadas teoricamente pelo homem, mas intuídas emocionalmente
de um cosmos de valores, o qual brotaria do íntimo da relação do homem
com o próximo, com a natureza, e com Deus, deveria ser o núcleo das rela-
ções em sociedade, inclusive das questões envolvendo a Justiça. Para Scheler,
a Justiça deve refletir sobre essa hierarquia de valores, bem como pelos cri-
térios dos graus, pois os problemas jurídicos são consequências dessas de-
ficiências sociais envolvendo os valores. Portanto, o relativismo de valores é
perigoso para a aplicação do Direito.
282
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Carl Schmitt
O conturbado século XX, cenário de duas Guerras Mundiais e outros inú-
meros conflitos bélicos em todo o mundo, que colocaram em xeque as gran-
des ideologias que perduraram na história da humanidade, resultou em um
complexo espaço de debates acerca das questões jurídicas, sociais, políticas,
econômicas. O período entre o final da Primeira Guerra e o início da Segunda
Guerra recebeu preocupação, sobretudo, acerca da condição humana. Um
dos autores que trabalhou essas indagações foi Carl Schmitt.
Não há como haver um ordenamento jurídico sem antes haver uma de-
cisão que o formule. A ordem não pode emanar de si mesma, mas de uma
283
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Desse modo, Schmitt critica Kelsen, afirmando que a lei não se justifica por
si mesma, nem o Direito possui fim em si mesmo. O jurídico não emana de si
mesmo, mas da ordem política, que “lhe antecede, lógica e cronologicamente”7
7
BITTAR, E. C. B. Curso de . Schmitt também demonstra a limitação das formulações kelsenianas argu-
Filosofia Política, p. 239.
mentando que muitos casos os quais o Direito precisa se manifestar não estão
prescritos em leis e códigos, mas que ainda assim precisam de uma resolução,
que vem por meio da decisão política ou institucional. “[...] o Direito é fruto das
instituições existentes e vigorantes, e não o contrário. A ordem concreta exis-
tente nas condições históricas de um povo é o que determina a formação do
8
BITTAR, E. C. B. Curso de Direito, e não o contrário”8.
Filosofia Política, p. 240.
284
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Hans Kelsen
Tal como Carl Schmitt, Hans Kelsen também não se preocupou com a
questão de se a lei seria justa ou injusta. Para esse jusfilósofo alemão, são
distintas a justiça, a validade e a eficácia do Direito. Kelsen é responsável pelo
positivismo jurídico, mas não um positivismo em sentido ideológico, mas
apenas naquele em que o autor busca estudar o Direito como uma ciência
jurídica, autônoma em relação às demais ciências.
Kelsen [...] afirma que o que constitui o Direito é a sua validade jurídica. E acrescenta que
a norma jurídica, diferentemente de outras normas, se qualifica por sua coatividade, mas
não sustenta de modo algum que o Direito válido seja também o justo. Para Kelsen, o
problema da Justiça é problema ético, enquanto o problema jurídico é o problema da
validade das normas, se a autoridade de que emana esta ou aquela norma tinha ou não o
poder legítimo para fazê-lo; 2) se a norma não foi anulada; 3) se é ou não compatível com
as outras normas do sistema jurídico.9 9
REALE, Giovanni; ANTI-
SERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
Para Kelsen, distinguem-se os “juízos de fato” (ou descrição científica) dos até os nossos dias. 3.v. p.
909-910.
”juízos de valor”. Dessa forma, a ciência jurídica, ainda que estude normas
que implicam necessariamente valores, não pode compreender tais valores,
mas apenas as normas que estão ligadas a eles. Portanto, “se o conhecimen-
to não pode criar os valores, então a função do estudioso do Direito não é a
10
de fundamentar um ideal de Justiça”10. É necessário, para isso, delimitar o REALE, Giovanni; AN-
TISERI, Dario. História da
Direito, separá-lo da ética, que é a ciência que deve discutir a questão da Filosofia: do Romantismo
até os nossos dias. 3.v. p.
Justiça. Importante assinalar que Kelsen não elimina a Justiça do Direito, mas 909-910.
Entretanto, precisamente, o nexo entre o ilícito e a sanção não é nexo causal entre
fenômenos naturais, que o pensamento simplesmente constata, mas muito mais uma
imputação ou atribuição – realizada pela vontade de alguém – em consequência a um
fato que, em si mesmo, não é sua causa, mas sim condição – e que o é por uma vontade o
11
REALE, Giovanni; AN- colocou como tal.11
TISERI, Dario. História da
Filosofia: do Romantismo
até os nossos dias. 3.v. p.
909-911.
Disso decorre que a norma jurídica atribui uma consequência a uma
condição, ou seja, uma sanção a um fato ilícito. Importante esclarecer que
esses ilícitos não são ilícitos em si mesmos, mas porque uma norma jurídica
assim o prescreve. Acontecimentos reprováveis não prescritos por normas
jurídicas entram no campo da moral, e não da ciência jurídica. No campo do
Direito, para uma ação ser considerada ilítica requer-se que ela seja seguida
por uma sanção. Dessa constatação decorrem duas novas situações: uma é
que cada indivíduo deve observar para não infringir a norma jurídica; outra é
quando alguém infringe a norma jurídica, outro indivíduo deve aplicar nele
uma sanção. Esse outro indivíduo é o juiz.
Não obstante, para que esse juiz seja obrigado a aplicar a sanção, exige-
-se do ordenamento jurídico uma norma anterior, que é aquela que sanciona
caso o juiz não aplique as outras sanções a quem é devido. O problema é
que nessa lógica chegaríamos à necessidade de haver sempre uma norma
anterior, que sancione quem não aplicasse as posteriores.
Contudo, não se pode retroceder ao infinito. Logo, deve haver uma norma
que dê validade a todas as outras normas jurídicas, a qual se situa na base de
todo o ordenamento jurídico. Essa primeira norma Kelsen chamou de “norma
fundamental”. Essa primeira norma não é posta, mas pressuposta. Como cada
norma procede conforme determinação de uma norma anterior, sempre aca-
baríamos retrocedendo à Constituição, a qual por sua vez decorre de Consti-
tuição anterior etc. Esse processo retornaria na história, até que se encontrasse
uma primeira vontade da qual emanaram as demais normas. Essa vontade
pode ser tanto uma medida despóstica como uma decisão por assembleia. É
esse sistema hierarquizado de normas da qual depende a validade do Direito.
A norma fundamental pode muito bem ser referida como a “fonte do Di-
reito”, pois é ela que dá validade a todo o ordenamento jurídico, antes dela
não há norma. A necessidade de uma norma depende de outra norma para
existir, culminando numa hierarquia em forma de pirâmide, está conforme
também ao seu princípio de que a ciência jurídica deve ser separada das
demais ciências. Por isso a norma fundamental deve ser uma norma, algo
que proponha autonomia ao Direito. Esse caráter confere soberania ao orde-
namento jurídico.
286
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Esse tópico é importante, pois é aqui que Kelsen se diferencia de Carl Sch-
mitt. Como a soberania provém de um respeito ao ordenamento jurídico de
outro Estado, isso significa que a perspectiva positivista-normativista implica
ela mesma em soberania interna e externa, e não um poder político. É o sis-
tema jurídico que implica na Política em reconhecer a validade das normas, e
não a decisão de algum indivíduo ou instituição, pois essas decisões já são de-
corrências do sistema normativo. Kelsen afirma mais uma vez a necessidade
de uma teoria pura do Direito, desprovida de análises axiológicas.
John Rawls
John Rawls foi um contratualista do século XX que formulou uma Teoria
da Justiça, que colocava a Justiça como equidade, como um dos pilares da
construção de uma sociedade democrática para cidadãos que fossem livres
e iguais. John Rawls não somente buscou caracterizar o que é a Justiça, ou
qual a sua finalidade, mas também procurou explicar todas as etapas que
envolvem a formulação de uma concepção de Justiça, para que esta poste-
riormente pudesse nortear toda construção das estruturas componentes de
uma sociedade. Portanto, sua teoria procura explicar desde as questões mais
primordiais, como momento que precede a própria criação de uma estrutura
287
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
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Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
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Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Habermas
16
Nascido em 18 de junho Jurgen Habermas16, considerado um dos maiores expoentes do pensamento
de 1929 em Dusseldorf.
Estudou Filosofia, História, filosófico na contemporaneidade, direciona seu pensamento à reflexão da me-
Psicologia, Economia e
Literatura alemã nas uni- todologia hermenêutica das ciências humanas, o espírito das ciências (Geis-
versidades de Göttingen,
Zurique e Bonn entre 1949 teswissenschaften). O pensador alemão procura justificar a primazia de uma ciên-
e 1954. Doutorou-se em
Bonn no ano de 1954 com cia social crítica contra a hegemonia metodológica na discussão sobre as
a tese O Aboluto na História
– um estudo sobre Filosofia
das Idades do Mundo de
ciências.17 Para sustentar essa base metodológica, o pensador preocupa-se em
Schelling. É considerado
um dos pensadores da se-
criar um fundamento ético, considerando-o essencial para que as mencionadas
gunda geração da Escola
de Frankfurt, tendo por
ciências sejam invocadas como auxiliares à administração racional humana.
influências os pensado-
res da primeira geração
como Adorno, Horkheimer Sua principal obra é a Teoria da Ação Comunicativa, onde defende a cons-
e Marcuse. (HABERMAS,
Jurgen. Sociologia. Tradu- trução da sociedade através de consensos obtidos através do discurso. Enten-
ção de: FREITAG, Barbara;
ROUANET, Sérgio Paulo. de que com a diminuição do poder das autoridades religiosas e tradicionais no
São Paulo: Ática, 1993. p.
9-10. presente século, estar-se-ia entrando em um perfeito ambiente para o desen-
volvimento desse espaço de discussões isento de coerções e de entidades que
17
INGRAM, David. Ha-
bermas e a Dialética
personalizassem a interpretação vigente dos fenômenos. O pensador conside-
da Razão. Tradução de
Sérgio Bath. 2.ed. Brasília:
ra que há agir comunicativo quando: “os planos de ações dos atores implica-
UnB, 1987. p. 21.
dos não se coordenam através de um cálculo egocêntrico de resultados, senão
18
HABERMAS, Jurgen. mediante atos de entendimento”18, quando as partes envolvidas no discurso
Teoría de la acción co-
municativa, II: crítica de estão abertas a através do discurso firmarem um entendimento.
la razón funcionalista.
Madrid: Taurus, 1999. 2v.
p. 367.
Nesse sentido, uma teoria social voltada aos potenciais de reflexão e crí-
tica imersos nas interações linguísticas deve assumir a tarefa de uma comu-
nicação isenta de coerções em diversos âmbitos da vida social, bem como
analisar a natureza de seus principais entraves. Fala-se assim na colonização
do mundo-da-vida, o próprio solo da ação comunicativa, pelo sistema, en-
tendendo-se essa categoria, a Lebenswelt, no sentido husserliano do termo.
Essa invasão é protagonizada pela monetarização e burocratização da vida
social, onde as relações interpessoais passam a ser coordenadas não pelo en-
tendimento recíproco dos participantes, mas por meios padronizantes e lin-
guisticamente empobrecidos do dinheiro e do controle burocrático; vários
são os resultados dessa força atuante como a perda de sentido cultural e a ‘‘a
nomia social’, a perda da validade das normas sociais.
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Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Miguel Reale
O jurista e filósofo brasileiro Miguel Reale é considerado um dos grandes
nomes do pensamento jurídico contemporâneo; com sua teoria tridimen-
sional do Direito o pensador marca a superação do positivismo jurídico na
esfera nacional. Sua produção científica e filosófica repercutiu no Brasil, na
América Latina e na Europa.
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Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
29
REALE, Miguel. Fun- O Direito somente pode ser compreendido como a síntese entre ser e dever
damentos do Direito. p.
301, 302. ser, motivo pelo qual a conclusão dessa obra é que o Direito é uma rea-
lidade bidimensional, com um substrato sociológico e uma forma técnico
jurídica: “Não é, pois, puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma
que lhe dá uma norma racionalmente promulgada por uma autoridade com-
30
REALE, Miguel. Fun- petente segundo uma ordem de valores”30.
damentos do Direito. p.
302.
Reale assevera que não se pode resolver o problema do fundamento da
obrigatoriedade das normas jurídicas fazendo-as descer de uma norma pri-
mária hipotética posta pelo jurista, como propôs Hans Kelsen, nem conside-
rar o Direito como um dado espontâneo da realidade social, sem a interfe-
rência construtiva e ordenadora da razão. Ademais, não basta um ato
legislativo perfeito para considerar-se como plenamente válido um coman-
do normativo, para tanto há que se considerar não somente sua validade
formal (ter sido devidamente aprovado por um órgão legislativo competen-
te, exatamente do modo como a Lei preceitua), mas também a eficácia da
norma e a validade ética. Vislumbra-se assim a manifestação do Direito como
integração entre fato-valor-norma, correspondendo à validade social (eficá-
31
REALE, Miguel. Fun-
damentos do Direito. p. cia), à validade ética (fundamento) e à validade técnico-jurídica (vigência).31
315.
294
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
295
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
[...]
Eis aí, numa percepção sumária e elementar, os três fios com que é tecido o
discurso da validade do Direito, em termos de vigência ou de obrigatoriedade
formal dos preceitos jurídicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social
ao seu conteúdo; e de fundamento, ou dos valores capazes de legitimá-los
numa sociedade de homens livres.
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Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
6. Digo que houve a tentação dos descaminhos por duas razões funda-
mentais. Em primeiro lugar, houve juristas que, desenganados das soluções
de ordem intelectiva, recorreram às vias da intuição emocional, esperando
captar, num ato de identificação afetiva, os jus vivens, descendo até às fontes
primordiais da juridicidade. Em alguns autores, a predileção pelo Direito es-
pontâneo, ainda não ordenado em fórmulas intelectuais, significou o aban-
dono do patrimônio, mais que bimilenar, de objetividade e de prudência que
é o apanágio do Direito, como a mais antiga e madura das ciências sociais3. Tal 3
Sobre as várias formas
de intuicionismo jurídico,
sedução pelo Direito em estado nascente, na imediatidade incerta dos dese- v. Miguel Reale, Funda-
mentos do Direito, 2. ed.
jos e dos impulsos, significava como que uma forma de simbolismo jurídico, São Paulo, 1972, p. 23 e
seguintes.
contraposto ao parnasianismo de alguns corifeus da Escola de Exegese, o que
não deve surpreender, pois a história das ideias jurídicas, como expressão de
uma das dimensões essenciais da vida humana, obedece ao ritmo da história
da arte e da literatura, tendo havido juristas românticos e realistas, simbolistas
e neoclássicos4. 4
Como exemplos de pes-
quisas sob esse ângulo,
v. Julien Bonecase, Hu-
Em linha paralela, outra encruzilhada se abriu àqueles que, deslumbrados manisme, Classicisme, Ro-
mantisme dans La Vie Du
Droit, Paris, 1920, e Science
com os progressos das ciências naturais, conceberam o plano de chegar à efe- du Droit et Romantisme,
Paris, 1928; Louis Bourgés,
tividade do Direito através do método indutivo, nos moldes do que ocorria na Le Romantisme Juridique,
Paris, 1922.
esfera das investigações físicas e biológicas. No fundo, a questão se resumia no
programa já enunciado por Augusto Comte ao vaticinar a substituição da “me-
tafísica dos fazedores de leis” pela “ciência positiva dos descobridores de leis”.
299
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
300
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Atividades de aplicação
1. Comente algumas diferenças e semelhanças entre os pensamentos de
Carl Schmitt e Hans Kelsen, partindo do pressuposto que um privilegia
o político e outro o jurídico.
2. Reflita sobre a importância das questões trazidas por Max Scheler para
a atualidade.
3. O autor traz a ideia de que, para que haja um acordo justo, é necessá-
rio que as partes se valham do “ véu da ignorância”, situação na qual as
partes possuem desconhecimento sobre as características individuais,
tanto próprias como da outra parte. Levando esse conceito para a prá-
tica, é de fato viável a possibilidade de se formular acordos utilizando
o “véu da ignorância” do autor? Escolha uma situação (acordo entre
301
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
Gabarito
1. Carl Schmitt diz que o poder é fundamentado na Política, e não no Di-
reito, porque é sempre uma decisão política que origina as normas. Já
Kelsen afirma que a ciência jurídica não deve se interessar pelas ques-
tões políticas e outras, mas limitando-se apenas às normas jurídicas.
Contudo, o conceito de norma fundamental o aproxima de Schmitt,
na medida em que aceita que a primeira das manifestações é sempre
uma decisão.
302
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
5. Tal como na busca por uma organização social, uma empresa para al-
cançar sucesso, realização de modo estável no mercado, prescinde de
um sistema de regulação de todos os que nela trabalham, ligados a
uma finalidade específica ligada ao desenvolvimento do negócio, mas
sem deixar de considerar o modo como a empresa se encontra na atua-
lidade, bem como os hábitos que nela estão instaurados.
Referências
BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia Política, 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
(Rev., aument. e modif. pelo autor).
_____. Sociologia. Tradução de: FREITAG, Barbara; ROUANET, Sérgio Paulo. São
Paulo: Ática, 1993.
303
Correntes contemporâneas da Filosofia do Direito
RAWLS, John. Justicia como equidad: materiales para una teoria de la justicia.
Traducción de: RIDILLA, Miguel Angel. Madrid: Tecnos. 1986.
_____. Uma Teoria da Justiça. Tradução de: PISETTA, Almiro; ESTEVES, Lenira M.
R. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e reestr. São Paulo:
Saraiva, 1994.
_____. Fundamentos do Direito. 3. ed. fac símile da 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998.
_____. Teoria Tridimensional do Direito. 5. ed. rev. e reestrutur. São Paulo: Sa-
raiva, 2005.
304
Anotações