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coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Marcio Sotelo Felippe
Wilson Gomes
estante cult
A dama oculta
Já faz um tempo que venho falando sobre os setenta anos que meu
pai faria em 2019. Itamar nasceu em 1949 na cidade paulistana de
Tietê. Em maio de 1980, foi concebido seu primeiro disco. Beleléu
viria a ser classificado entre os cem melhores discos da história da
música brasileira. No mesmo mês e ano, eu nascia. O álbum foi
lançado mais precisamente em 3 de maio de 1981. Dia em que, no
ano de 2002, nascia minha primeira filha, Rubi.
Uma cópia do título de eleitor de meu pai enfeita o encarte do
disco. Uma navalha atrapalha a leitura, mas dá para ver que foi
tirado em 16 de maio de 1977. Eu nasci em 16 de maio, mas de
1980. Em 1977, nascia minha irmã Serena. “Nega música”,
dedicada ao susto de seu nascimento, está no disco.
Hoje, na curva dos nossos quarenta anos, observo o Beleléu .
Nossas trajetórias entrelaçadas em músicas e histórias contadas no
elástico dos portais do tempo. Tirei meu título de eleitora na Penha,
no mesmo cartório que meu pai, minha mãe e Serena, e, mesmo
morando do outro lado da cidade, nunca tive coragem de atualizar o
endereço.
Eu não entendia muito bem o porquê desse documento pessoal
exposto ali. No período em que aconteciam o disco e nossos
nascimentos, o Brasil vivia sob regime de ditadura, mas papai,
esquerdinha que amamos, já vislumbrava a Rádio Democrática, que
viria a ser o mote por detrás da história de seu segundo disco, Às
próprias custas S/A .
Esses pequenos documentos, encontrados como tesouros dentro
dessas obras, constroem os alicerces de pesquisa em que vemos
romance, ficção, aventura, crônicas, poesia – mas, sobretudo, uma
possibilidade inédita de biografia na qual meus filhos conseguem se
reconhecer.
Às vezes acho que terei que escrever um livro. Um livro de
memórias no qual eu possa embaralhá-las, pois já não sei a ordem
de algumas coisas desde que meu pai se foi. Foram tantos os feitos
desde sempre. Feitos todos iniciados por ele. Desde antes, quando
ainda sonhava em jogar bola e tocava violão. Desde as histórias que
me contava sobre sua infância fantasiada e que, sem nunca me dizer,
sabíamos que era triste.
Muito cedo a vida lhe chamou. Aos treze anos, já experimentava a
solidão lisérgica de se criar só. Tão perto de histórias de troncos e
chibatas. Tão fresca a infeliz memória da escravidão ainda ecoando
naquele quintal crítico em Tietê. “Algo me diz pra ser sutil, não faço
ideia, mas me resta um caminho.” Nunca esses versos fizeram tanto
sentido pra mim. Observando o tamanho gigantesco dessa
construção, diante de um palco onde, em 24 horas, sua obra seria
contemplada em frente ao Copan – onde estivemos por tantas vezes
–, eu me recordo de seu esforço em ser feliz e sutil. A escolha pelo
caminho da arte e da verdade interna. A subversão como uma
flecha. O violão como escudo. Nesse dia, toda a cidade de São
Paulo se movimentava. A lua estava cheia, apontando viagens de
toda ordem. Deslocamento suave. Vontade de rua. Não sei quantas
mil pessoas passaram pelo Palco Itamar 70 – milhares! Era fato o
grandioso reconhecimento da cidade acerca do valor histórico de
meu pai. Preservava-se sua memória com show, música, imagens,
movimento circular – sob uma cúpula invisível de luz que formava
um campo energético.
E quantas vezes te ouvi cantar “A felicidade fica bem debaixo/ Do
nosso próprio nariz” e sorri imediatamente? A felicidade vibra em
lembranças e lapsos de presença e aparição. O feijão querido, uma
cachaça pra esquentar, abraços e sorrisos involuntários, o gosto pelo
trabalho. Os lambes, lembretes, colagens e intervenções artísticas de
quem se inspira por sua passagem. Muita música e poesia. A
mamãe, a Ninha. As famílias adquiridas, o povo da rua. O Bento
abriu e fechou a programação com sua timidez adolescente se
contrapondo com uma destemida coragem herdada. Seus netos e
outros netos. O mistério.
Desmontando esse acampamento, num misto de euforia e vazio,
sob uma lua gigante, vou sentindo os ensinamentos:
Apresentação
PEDRO AMBRA E RAFAEL ALVES LIMA