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Sumário

coluna
Bianca Santana
Marcia Tiburi
Marcio Sotelo Felippe
Wilson Gomes

memória Itamar Assumpção

dossiê Freud explica? A história da psicanálise no Brasil


Apresentação
Uma psicanálise do outro
Exceção no mundo
Moda “perigosa”
Primórdios

entrevista Elisa Ventura

estante cult
A dama oculta

colaboraram nesta edição


coluna

“Eles estão chegando!”


BIANCA SANTANA

Eu estava em uma casa grande, bonita, com grama ao redor. Recebi


o convite para uma viagem a Paraty. Respondi que não era uma boa
data e agradeci. Então fui informada de que o convite não era uma
escolha. Viriam nos buscar — a mim, meu marido e filhos — no
domingo seguinte.
Ao longo daquela semana, a polícia rondava mais e mais de perto,
disseram ter encontrado maconha no nosso gramado, a tensão
aumentava. No sábado, uma mulher tentou me matar, simulando um
acidente, com uma espécie de punhal. Escapei. Mas quase morrer
era pouca coisa diante da aflição de precisar avisar uma amiga, com
quem teria uma reunião de trabalho na semana seguinte, sobre
minha ida a Paraty.
Telefonei contrariada, dizendo que precisava desmarcar nosso
encontro. Com rispidez suficiente para que eu percebesse a
gravidade da situação, ela informou: “Eles vêm buscar vocês! Eles
estão chegando!”.
Registrei o sonho acima na noite de 2 de março de 2018, doze dias
antes da execução de Marielle Franco. Por doze dias conversei sobre
o sonho com pessoas próximas. Levei a anotação para a terapia.
Sentia palpitações cada vez que recordava.
Eu passei a adolescência lendo sobre a ditadura militar e o
nazismo. Intrigavam-me os relatos de pessoas que antecipavam o
fechamento do cerco, aquelas e aqueles que saíram de Varsóvia
antes dos guetos, da Alemanha antes do registro de judeus, do Brasil
antes das prisões e torturas. Como sabiam? Haveria um cheiro? Um
barulho? Como aquele que Stefania, mãe da escritora ruandesa tutsi
Scholastique Mukasonga, ouvia antes que os outros percebessem a
chegada de soldados hutus?
Desde 2016 descobri que sim, há um cheiro e também um zunido.
E eles têm sido cada vez mais intensos. A cegueira para
possibilidades convida a driblar o estado de alerta ativado por eles e
tocamos a vida. Mas de noite, querendo ou não, muitos de nós
sonhamos.
Entre 1933 e 1939, a jornalista alemã e judia Charlotte Beradt
coletou sonhos de mais de 300 berlinenses, desde a ascensão de
Hitler até as vésperas da Segunda Guerra, quando deixou a
Alemanha. No início, escondia os relatos atrás de seus livros.
Depois, começou a enviá-los por carta a conhecidos em diferentes
países. Em suas palavras, acreditava que os “sonhos poderiam
ajudar a interpretar a estrutura de uma realidade prestes a se tornar
um pesadelo”.
Depois da guerra, demorou mais de 20 anos para reuni-los e
organizá-los no livro Sonhos no Terceiro Reich: com o que
sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler , publicado nos
Estados Unidos em 1966, traduzido no Brasil em 2017 pelo selo
Três Estrelas, da Publifolha.
Antes que o uso de aparatos tecnológicos para espionagem fosse
conhecido, as pessoas sonhavam que seus rádios e aparelhos de
telefone transmitiam conversas privadas. Uma mulher que via a
imagem de Hitler quando ouvia a palavra diabo sonha que um
aparelho detecta seus pensamentos e alerta a polícia. Outra, que não
falava russo, tinha sonhos em uma língua que imaginava ser russo,
para que ela mesma não compreendesse o que sonhava. Um médico,
que sonhara com o desaparecimento das paredes dos apartamentos
por conta de um decreto do governo, sonha depois que se torna
proibido ter sonhos.
Talvez fizesse sentido começar a coletar os sonhos de brasileiras e
brasileiros no momento em que vivemos. Talvez devesse ter
começado muitos anos antes, quando a maior parte da população
passou a viver em estado de terror. Entre 1997 e 2017, o número de
jovens negros assassinados aumentou 429%. E foi também a partir
da década de 1990 que a população carcerária passou a crescer
exponencialmente. De 90 mil pessoas presas, chegamos a mais de
700 mil, um aumento de mais de 700% em menos de três décadas.
Daria para voltar a antes dos anos 1990, é evidente. Totalitarismo é
uma característica da nossa história.
Paulo Freire escreveu sobre nossa inexperiência democrática.
Segundo ele, nunca tivemos condições para a emergência de uma
consciência popular, permeável e crítica. Em Educação e atualidade
brasileira , de 1959, ele pergunta quando teríamos tido essa
possibilidade:
“No nosso tipo de colonização, à base do grande domínio? (...) No
todo-poderosíssimo dos senhores ‘das terras e das gentes’? (...) Nos
centros urbanos criados verticalmente, sem o pronunciamento do
povo? Na escravidão? (...) Na inexistência de instituições
democráticas? Na ausência de circunstâncias para o diálogo em que
surgimos e em que crescemos? (...) No descaso à educação popular
a que sempre fomos relegados?”
A democracia, forma de vida, antes de forma política, pressupõe
participação real no exame dos problemas comuns. Mas nossa
história é de soluções verticais e antidemocráticas, mesmo em
nossos curtos períodos de democracia.
Pode ser que este momento de milicianos no poder seja uma
continuidade do que vivemos desde sempre. Pode ser que um
agravamento, de fato, se aproxime. Cerco fechado para mais
pessoas. Democratização da barbárie já vivenciada por pretos
pobres.
Vale prestar atenção no que sonhamos.
Limites da linguagem
MARCIA TIBURI

Toda reflexão filosófica é uma reflexão sobre a vida e a linguagem.


A linguagem é o que utilizamos como meio para nos relacionarmos
uns com os outros e com a própria vida – e para, desse modo,
construir a vida humana que vivemos em comum.
Há um círculo em que a linguagem cria a vida e a vida vivida por
meio da linguagem recria a linguagem. Por isso, podemos dizer que
“a linguagem é o limite do mundo”. Vida, por sua vez, é um nome
genérico que damos para o que chamamos de mundo , algo que pode
ser definido como “aquilo que pode ser compreendido”, aquilo que
alguém compreende, que alguém concebe e também aquilo que
todos concebem em um patamar básico de compreensão.
Vida e mundo, por sua vez, podem ser definidos sob o termo
existência , que é igualmente genérico. A existência é aquilo que há,
aquilo que está aí, aquilo que simplesmente se apresenta a nós como
o que está acontecendo, o que está “sendo” – por oposição ao nada,
ao “não existir”, que é bem difícil de imaginar. A existência é o
nosso ambiente tanto material como ideal, tanto biológico como
social. Ela implica o dito e o não-dito, o consciente e o inconsciente.
Ao mesmo tempo, tudo o que podemos pensar e dizer depende da
linguagem, ela mesma um termo genérico usado para explicar todas
as formas de representação, interação, compreensão, em suma, de
comunicação.
Podemos dizer que a invenção da internet, daquilo que podemos
chamar de vida digital, produziu uma séria transformação na ordem
da linguagem. E, embora a linguagem continue sendo um termo
genérico capaz de expor a qualidade ou a característica essencial da
vida humana, a mudança quantitativa afeta a qualidade, ou seja, a
característica essencial dos seres humanos como seres de
linguagem, que pensam e agem por meio de mediações. Em termos
simples, podemos dizer que a existência da internet mesclou a
linguagem humana com a linguagem artificial das máquinas e, desse
modo, transformou a essência da linguagem. Transformou, ao
mesmo tempo, a forma de vida e também o que entendemos por
mundo. De certo modo, nosso mundo foi ampliado e também
encurtado por meio dela. A própria noção de amplidão e de limite
está abalada. Nesse sentido, podemos dizer que, embora haja uma
separação evidente entre os mundos real e digital, eles também se
confundem.
O esquecimento do caráter de meio da linguagem, de sua
medialidade, é um dos aspectos mais problemáticos da existência
atual. Esquecemos que manipulamos a linguagem e que, nesse
círculo entre vida e linguagem, entre real e digital, acabamos sendo
também manipulados por ela.
A manipulação da linguagem se confunde com seu uso simples,
porque sempre entendemos a linguagem como algo naturalizado,
esquecendo que ela é um meio transformado culturalmente. É a
comunicação como instituição humana que se modifica com a
internet.
Desde a invenção da internet, o cidadão comum passa a desfrutar
das novas formas de comunicação. Hoje todos podem ser
jornalistas, publicitários, relações públicas, mesmo que de modo
informal, como brincadeira, como hobby. Certamente, por falta de
formação e vícios relacionados à ignorância ou até mesmo ao
caráter, também os limites entre informação e desinformação,
verdade e falsidade, se apagam no uso manipulado que fazemos dos
meios.
A pergunta que nos fica é: o apagamento desses limites nos fez
perder o controle da linguagem que nos fez ser quem somos?
Lula, além da lei
MARCIO SOTELO FELIPPE

Existem apenas duas concepções de Estado, de sociedade


politicamente organizada. Quaisquer outras podem ser derivações de
uma delas. A primeira, aristotélica, está exposta na abertura da
Política , com larga repercussão ao longo da história do
pensamento. A pólis, a sociedade politicamente organizada, é uma
associação natural desenvolvida em uma sequência lógica.
Associam-se homens e mulheres, senhores de escravos e escravos,
aldeias e, por fim, a reunião de aldeias constitui a pólis. Como
associação, tem por finalidade o bem de todos e isso tornou-se o
senso comum na tradição.
A segunda é a crítica e moderna. Sua referência inicial é Rousseau
e encontrou o ápice em Marx. Remonta à segunda parte do Discurso
sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens .
Nela, Rousseau descreve a origem da sociedade politicamente
organizada como uma conspiração em que proprietários, aqueles
que inicialmente ocuparam terras e as delimitaram, instituíram
forma e mando político para garantir a propriedade. Marx analisa a
história como o desenvolvimento das relações de dominação entre
proprietários e não proprietários e como elas subordinam formas
políticas e jurídicas.
As consequências políticas e filosóficas de uma ou outra
concepção são evidentemente imensas. Na primeira, a injustiça é
uma disfunção do Estado e basta reformá-lo. Na segunda, a injustiça
é da própria natureza do Estado.
A cultura jurídica tem suas raízes na primeira concepção. O
Direito nela é o instrumento pelo qual as disfunções do Estado ou a
desarmonia no meio social são corrigidas ou controladas. Na
segunda, é um dos mecanismos pelos quais sociedades injustas se
mantêm. É no interior dela que se pode ver além da lei.
Isso não significa completa ausência de autonomia do Direito, que
é um fenômeno complexo. Significa que o mando político, a
dominação de classe, é que determina em última instância e quando
esse poder estabelece o que vai ser, o que será, e o Direito o
reproduz.
Há momentos em que isso é absolutamente claro. Passando ao
largo da função estrutural do Direito nas relações de produção, que é
outra abordagem, distinto aspecto funcional das formas jurídicas,
tomemos o uso político do processo judicial. Jesus, Joana D’Arc,
Dreyfus, Fidel Castro e Lula, entre outros, são exemplos. É possível
que o advogado francês Jacques Vergès tenha sido o único que
teorizou, muito antes de se utilizar a expressão lawfare , sobre
processos judiciais de natureza política, em pequeno livro publicado
no incandescente 1968, De la stratégie judiciaire .
Vergès dizia que há dois modos de enfrentar um processo judicial
político. Conivência, em que a atitude do réu é de respeito às formas
jurídicas e de legitimação do processo, ou ruptura, em que o
acusado recusa a moldura jurídica e faz a denúncia política dos
acusadores e do sistema. Joana D’Arc, ao dizer que obedecia a Deus
antes da Igreja, recusou a conivência e deslegitimou os acusadores.
Se tivesse se submetido à autoridade dos acusadores talvez ganhasse
a vida, mas perderia a história. Fidel, quando julgado após o levante
em Moncada, proferiu o célebre discurso “a história me absolverá” e
fez do tribunal uma tribuna política. Mas Dreyfus foi o réu
conivente que negava a acusação. Se Zola não tivesse, com o
J’accuse , transformado a mera conivência da negativa em denúncia
da ignomínia e, portanto, na categoria que Vergès denominava de
ruptura, o militar francês teria morrido na ilha do Diabo.
Lula foi na maior parte do tempo conivente porque defendeu-se
predominantemente de acordo com o estrito padrão jurídico e
deixou-se prender mudo à espera de uma decisão salvadora (ao
modo de um deus ex machina ) de um tribunal que estava havia
anos comprometido politicamente contra o que ele representava.
Uma defesa técnica baseada em regras contra uma acusação
política, ou seja, sem regras. Hoje tem-se uma defesa de ruptura: o
que Zola foi para Dreyfus, o Intercept está sendo para Lula.
Deslegitimou o processo, o sistema judiciário e escancarou a
subordinação do jurídico ao político. Restará a seu suposto julgador,
na verdade inquisidor, o mesmo opróbio que a história reservou aos
acusadores de Joana D’Arc ou de Dreyfus.
Para nós, os juristas de esquerda, os que vemos o Estado como
Rousseau e Marx, resta-nos deixar de agir aristotelicamente, por
assim dizer, nos processos políticos e não responder a uma farsa
jurídica com a conivência que legitima a farsa. Caso Lula seja
libertado, não terá sido pela defesa jurídica, apesar do brilho de seus
advogados, mas pela ruptura provocada pelo Zola de Lula, o
Intercept .
Novos desafios à ética do jornalismo
WILSON GOMES

Faz um tempo que a percepção pública é de que o jornalismo


político brasileiro patina sobre gelo fino. Alguns acham que já
afundou irremediavelmente, mas a impressão geral é de que, nas
situações mais tensas, lá está o jornalismo arriscando a colocar tudo
a perder. Sobretudo a credibilidade do próprio jornalismo.
O problema não é o cerco aos poderosos. A marcação forte, sob
pressão, não só é tolerável como é desejável no jornalismo político.
No jornalismo que cobre fatos e pessoas do mundo da política, é um
serviço à democracia acompanhar com proximidade, investigar com
minúcia, trazer ao público tudo o que for relevante. Quanto mais o
ator político sentir no cangote o sopro da imprensa e a marcação
cerrada dos formadores de opinião, mais se sentirá constrangido a
comportar-se como se deve.
A questão não é o constrangimento sobre a política. Não
importam seus méritos presentes e passados, suas virtudes cívicas, o
que a Pátria lhe deve, o sentimento público sobre seu caráter, a
dimensão de seu apoio popular e sua enorme lista de boas intenções.
De quem assume um mandato público ou cargo político não se
espera que seja poupado. Nem, como explicitamente reivindica
Bolsonaro, que o patriotismo ou qualquer outro requisito do gênero
venha a servir como filtro na captura e na apresentação da realidade.
É normal que partidos, grupos e atores políticos hegemônicos
sejam submetidos a um monitoramento ainda mais intenso do que
os outros. Em seu quarto mandato presidencial consecutivo, era
natural que a luz que se projetava sobre o PT e seus quadros fosse
bem mais intensa do que a projetada sobre qualquer outra força
política. Era normal que Temer, Jucá, Geddel passassem a ter a vida
esquadrinhada depois que assumiram o centro do poder político.
Assim como é de esperar que agora as baterias estejam voltadas
para a administração Bolsonaro, não deixando pedra sobre pedra,
duvidando, revirando o lodo, investigando. É um preço que faz parte
do ônus do sucesso eleitoral, e há uma boa razão democrática para
isso: hegemonias são sempre desconfortáveis para a democracia; é
preciso reforçar os constrangimentos sobre elas para que se
mantenham virtuosas ou para que o interesse republicano prevaleça
sobre os outros interesses que colonizam o Estado e a política.
Por essas mesmas razões, o jornalismo precisa ter ainda mais
cuidado. A leviandade, o erro factual, a preguiça, o descuido, o
sensacionalismo podem pôr tudo a perder – e o que era um
constrangimento para tornar o político vulnerável diante do olhar do
público (pró-democracia) torna-se uma distorção voluntária para
tornar o político simplesmente mais vulnerável para seus
adversários (ato antidemocrático). Um jornalista, noticiário ou
empresa da área de informação não podem se comportar como
regicidas, matadores de poderosos, cuja missão na vida é
simplesmente demolir catedrais e derrubar mitos. O jornalismo
político de alta qualidade democrática serve ao cidadão, não à
própria vaidade ou aos próprios apetites e desejos.
Infelizmente é aqui que muita redação se perde. Normalmente,
quem monitora constantemente o teor do jornalismo busca medir
sua qualidade a partir da existência de inclinações e preferências
políticas. Esquece-se muitas vezes que o problema não está na
relação entre o jornalismo e o mundo político, mas em uma relação
defeituosa entre os interesses da redação e os interesses do cidadão.
O jornalismo que serve a si mesmo é tão nocivo quanto o jornalismo
que serve a interesses políticos. Isso acontece, por exemplo, quando
a cobertura é orientada mais pela busca de incremento de audiência
do que pelo esclarecimento do público, feita mais para defender e
sustentar os pontos de vista preferidos de quem manda na redação
do que para apresentar relatos objetivos e justos sobre os fatos, mais
para demonstrar que o jornalismo é tão autônomo que pode tratar a
política de forma hostil e desleal, desenvolvendo no público um
sentimento antipolítico, do que para servir à construção de uma
sociedade melhor para todos. Assim, o jornalismo autocentrado,
sem necessariamente colocar preferências partidárias em primeiro
lugar, pode criar um ambiente político e democrático tóxico,
envenenado, e desenvolver a percepção pública de que a política é
uma atividade necessariamente vil, degradada e nivelada por baixo,
e que a democracia política não é capaz de resolver as grandes
questões da sociedade. E ainda assim exibir orgulhosamente a
certeza de que está no caminho certo, simplesmente porque
desagrada igualmente a todos os lados da política.
O jornalismo político de qualidade só deve ter um lado, o do
cidadão. Não pode escolher lados, a não ser quando um dos lados é
a autocracia. Se o jornalismo político deve acompanhar e marcar
sob pressão o ator político, faz isso em benefício da transparência
pública, a fim de que os cidadãos tenham toda a informação
necessária para pressionar o sistema político ou para tomar boas
decisões eleitorais. O jornalismo político não aperta a marcação
para jogar junto com o adversário. O jornalismo político não joga,
não pode jogar, não deve jogar o jogo político. E, mais que isso, não
pode parecer que joga. Repassem até chegar a Bonner.
Além disso, o jornalismo político não deve selecionar fatos para
cobrir, ênfases para dar, chaves de leitura para oferecer com base em
preferências políticas. O jornalismo seleciona fatos, não há como
cobrir todos. O jornalismo decide quais fatos merecem destaque e
que ênfase merecem. O jornalismo político adota ângulos
interpretativos dos fatos, pois a visão onisciente da realidade é só de
Deus. Mas se fizer isso porque tem um “projeto oculto” (derrubar a
rainha branca para empossar a rainha preta) ou uma “agenda
encoberta”, trai seu público e a cidadania em geral, que se apoiam
no jornal para tomar boas decisões e fazer bons julgamentos. O
jornalismo de qualidade se dedica a desvelar agendas ocultas e a
desmascarar projetos de poder camuflados e arriscará toda a
credibilidade se abandonar sua identidade para ser, ele mesmo,
portador de intenções disfarçadas e propósitos inconfessáveis.
Os códigos deontológicos profissionais e a própria ética, portanto,
vedam ao jornalismo político o uso de escolhas partidárias e
preferências por grupos de interesses para orientar a seleção e o
enquadramento dos fatos. Mas não o fazem apenas para que certas
redações estabeleçam em lugar das predileções político-partidárias
outros sistemas de preferências, a começar por suas políticas
públicas favoritas. O favoritismo de políticas públicas é a miséria do
jornalismo de qualidade no Brasil, desde que a Globo o adotou
como critério fundamental a partir do qual flexibiliza ou torna mais
exigentes todos os outros requisitos do jornalismo. “Partidarismo,
não, favoritismo em políticas, sim”, parece ser o lema de um
jornalismo que, em nome das “reformas que o Brasil precisa”,
naturalmente na versão de sua predileção, seleciona fontes, registros
sonoros, citações, especialistas, fatos, dados, ângulos de abordagem
e ênfases a serem empregadas na cobertura. O favoritismo não é
eticamente superior ao partidarismo jornalístico.
memória Itamar Assumpção
Ultramar
ANELIS ASSUMPÇÃO

Já faz um tempo que venho falando sobre os setenta anos que meu
pai faria em 2019. Itamar nasceu em 1949 na cidade paulistana de
Tietê. Em maio de 1980, foi concebido seu primeiro disco. Beleléu
viria a ser classificado entre os cem melhores discos da história da
música brasileira. No mesmo mês e ano, eu nascia. O álbum foi
lançado mais precisamente em 3 de maio de 1981. Dia em que, no
ano de 2002, nascia minha primeira filha, Rubi.
Uma cópia do título de eleitor de meu pai enfeita o encarte do
disco. Uma navalha atrapalha a leitura, mas dá para ver que foi
tirado em 16 de maio de 1977. Eu nasci em 16 de maio, mas de
1980. Em 1977, nascia minha irmã Serena. “Nega música”,
dedicada ao susto de seu nascimento, está no disco.
Hoje, na curva dos nossos quarenta anos, observo o Beleléu .
Nossas trajetórias entrelaçadas em músicas e histórias contadas no
elástico dos portais do tempo. Tirei meu título de eleitora na Penha,
no mesmo cartório que meu pai, minha mãe e Serena, e, mesmo
morando do outro lado da cidade, nunca tive coragem de atualizar o
endereço.
Eu não entendia muito bem o porquê desse documento pessoal
exposto ali. No período em que aconteciam o disco e nossos
nascimentos, o Brasil vivia sob regime de ditadura, mas papai,
esquerdinha que amamos, já vislumbrava a Rádio Democrática, que
viria a ser o mote por detrás da história de seu segundo disco, Às
próprias custas S/A .
Esses pequenos documentos, encontrados como tesouros dentro
dessas obras, constroem os alicerces de pesquisa em que vemos
romance, ficção, aventura, crônicas, poesia – mas, sobretudo, uma
possibilidade inédita de biografia na qual meus filhos conseguem se
reconhecer.
Às vezes acho que terei que escrever um livro. Um livro de
memórias no qual eu possa embaralhá-las, pois já não sei a ordem
de algumas coisas desde que meu pai se foi. Foram tantos os feitos
desde sempre. Feitos todos iniciados por ele. Desde antes, quando
ainda sonhava em jogar bola e tocava violão. Desde as histórias que
me contava sobre sua infância fantasiada e que, sem nunca me dizer,
sabíamos que era triste.
Muito cedo a vida lhe chamou. Aos treze anos, já experimentava a
solidão lisérgica de se criar só. Tão perto de histórias de troncos e
chibatas. Tão fresca a infeliz memória da escravidão ainda ecoando
naquele quintal crítico em Tietê. “Algo me diz pra ser sutil, não faço
ideia, mas me resta um caminho.” Nunca esses versos fizeram tanto
sentido pra mim. Observando o tamanho gigantesco dessa
construção, diante de um palco onde, em 24 horas, sua obra seria
contemplada em frente ao Copan – onde estivemos por tantas vezes
–, eu me recordo de seu esforço em ser feliz e sutil. A escolha pelo
caminho da arte e da verdade interna. A subversão como uma
flecha. O violão como escudo. Nesse dia, toda a cidade de São
Paulo se movimentava. A lua estava cheia, apontando viagens de
toda ordem. Deslocamento suave. Vontade de rua. Não sei quantas
mil pessoas passaram pelo Palco Itamar 70 – milhares! Era fato o
grandioso reconhecimento da cidade acerca do valor histórico de
meu pai. Preservava-se sua memória com show, música, imagens,
movimento circular – sob uma cúpula invisível de luz que formava
um campo energético.
E quantas vezes te ouvi cantar “A felicidade fica bem debaixo/ Do
nosso próprio nariz” e sorri imediatamente? A felicidade vibra em
lembranças e lapsos de presença e aparição. O feijão querido, uma
cachaça pra esquentar, abraços e sorrisos involuntários, o gosto pelo
trabalho. Os lambes, lembretes, colagens e intervenções artísticas de
quem se inspira por sua passagem. Muita música e poesia. A
mamãe, a Ninha. As famílias adquiridas, o povo da rua. O Bento
abriu e fechou a programação com sua timidez adolescente se
contrapondo com uma destemida coragem herdada. Seus netos e
outros netos. O mistério.
Desmontando esse acampamento, num misto de euforia e vazio,
sob uma lua gigante, vou sentindo os ensinamentos:

“Ser feliz é bem possível/ A lua cheia me reduz a pedacinhos.”


Não é fácil o ofício de viver faltando isso.
Nos dias em que tudo morre menos a saudade, consulto meia dúzia
de escritos.
Rio rios.
Choro itamares.
Evoé sua obra, meu pai.
dossiê Freud explica? A história da psicanálise no Brasil

Apresentação
PEDRO AMBRA E RAFAEL ALVES LIMA

“Causa-me grande satisfação a prova de interesse que a nossa


psicanálise vem despertando no seu distante Brasil”
Freud para Osório César
“Quão notável que no distante Brasil nasça de repente um
movimento psicanalítico pronto, com divulgação em toda sociedade
e naturalmente alguma oposição. Esta última não deve faltar.”
Freud para Porto-Carrero

Passaram-se mais de cem anos desde que Freud escrevia a seus


correspondentes, com notável tom de surpresa, sobre o nascente
movimento psicanalítico no Brasil. Pode parecer pouco provável
que o projeto internacionalista de expansão da psicanálise ao sul do
equador tivesse sido previamente planejado. Menos provável ainda
que ele encontraria no distante Brasil um solo tão fértil, mas nem
por isso pouco acidentado.
Desde os primeiros momentos de implantação, com uma
assimilação sui generis à causa higienista da nossa intelectualidade
psiquiátrica pós-abolição, passando pela formação institucionalizada
da psicanálise impulsionada pelo governo JK, até o paradoxal boom
da psicanálise na ditadura militar, temos um arco histórico
profundamente complexo e frequentemente contraditório, que
retiraria a psicanálise de uma condição marginal e a conduziria a um
tipo peculiar de sucesso. A popularidade da expressão “Freud
explica!”, genuinamente brasileira, é um reflexo disso. No início
dos anos 1990, houve até quem dissesse que o Brasil esteve entre os
três maiores mercados editoriais de psicanálise, em nível mundial.
Poderíamos falar de um triunfo da psicanálise no Brasil? As
diferenças entre “psicanálise brasileira” e “psicanálise no Brasil”,
que tomaram o centro do debate psicanalítico nos anos 1990, são
datadas ou, na verdade, dignas de uma retomada?
À luz dessas perguntas, vale lembrar que, desde Freud, a
psicanálise flerta sem muito pudor com um discurso de
marginalização de sua teoria e práxis. Em outras palavras, ao
estender a subversão teórica que é dar centralidade ao inconsciente e
à sexualidade na direção dos processos sociais e políticos de sua
implantação, a psicanálise acabou por narrar sua trajetória como a
de uma perigosa peste sempre à mercê de uma erradicação pelos
discursos hegemônicos. Daí que, ainda hoje, mesmo ocupando
lugares de poder, de fala e notável visibilidade, é muito comum
depararmo-nos com defesas apaixonadas de uma psicanálise em
perigo, sob ataque e prestes a desaparecer. Se tal retórica se justifica
em alguns países onde a prática analítica de fato perdeu espaço para
as neurociências e terapias cognitivo-comportamentais, este,
certamente, não é o caso do Brasil. De sucessos editoriais, passando
pela alta densidade de disciplinas universitárias focadas em
psicanálise, até a retomada recente do projeto freudiano de clínicas
públicas que começam, literalmente, a pipocar país afora, é preciso
se perguntar em que medida deve-se, ainda, sustentar ou modificar a
fantasia de marginalização que rege a autoimagem da psicanálise no
Brasil. E, principalmente, que fracasso tal sucesso recalcaria.
A tensão entre sucesso e fracasso da psicanálise tem um capítulo
ainda mais delicado quando se considera a incidência da
desigualdade social e do racismo no interior das políticas da
psicanálise no Brasil. Ainda que, cada vez mais, a psicanálise
aproxime seus dispositivos de formação das classes médias e baixas,
seu caráter aristocrático ainda se nota no horizonte último das
cadeias transferenciais. Por quê, afinal, na potente psicanálise
brazuca, os autores de referência continuam sendo majoritariamente
gringos? Nessa esteira, se lembrarmos que alguns analistas ainda
hoje chegam a optar por fazer suas análises no exterior, cabe a
pergunta se não estaríamos diante de uma versão inusitada do
bacharelismo que tanto marcou a aspiração de modernização das
elites nacionais no início do século 20. Mas alguns expedientes de
modernização tendem, de alguma maneira, a repetir as marcas de
seu atraso na tentativa de negá-lo. O gritante silenciamento da
questão da raça, por exemplo, dá-se a ver no sucessivo
branqueamento epidérmico e conceitual de uma psicanálise que se
quer neutra. As reflexões sobre os trabalhos e a importância
histórica de Neusa Santos Souza, Virgínia Bicudo e Lélia Gonzalez,
para ficar em alguns exemplos, são ainda muito tímidas quando
confrontadas tanto com os problemas que uma psicanálise brasileira
deveria se colocar como com a potência de suas obras. O que
explicaria a manutenção de tal assimetria, mesmo num momento
histórico em que as identidades gritam por seu lugar de fala e a
psicanálise começa a refletir mais criticamente sobre seus pontos
cegos?
Essas são algumas das inquietações que nos levaram a propor este
dossiê sobre psicanálise no Brasil. Diante da constatação inegável
do respeito e do prestígio de que a psicanálise no Brasil goza no
cenário internacional, da segurança em relação aos nossos processos
de implantação – que parece contrastar com a insegurança de nossos
processos de autorização e de autoria –, julgamos necessário o
debate para que possamos discutir, afinal, o que caracteriza e
qualifica nosso sucesso. E a que custo ele se deu.
Tania Rivera nos oferece um ensaio que inspira o exercício de
uma psicanálise dos fatos falhos no Brasil, evidenciados nos
embustes de um exotismo que promete consagração mas entrega
indignidade. A subversão proposta pelos domínios estéticos da
cultura brasileira aparece como ponto gravitacional, seja para
declinarmos esse convite sedutor à indignidade, seja para
reencontrarmos a potência antropofágica que nos constitui e
afirmarmos nossa respeitabilidade.
Christian Dunker empreende uma análise dos compromissos da
psicanálise no Brasil com as profundas contradições da vida social
no país. Articulada às ambições de modernização dos costumes, ora
para negá-los, ora para confirmá-los, a psicanálise impulsiona seus
processos próprios de validação desde um lugar específico de
exceção , resistindo a padrões e regulações ao mesmo tempo que se
confunde com eles.
Rafael Dias de Castro nos convida a examinar criticamente o
processo de implantação do freudismo no Brasil desde seus
princípios, oscilando entre o perigo e a moda , entre a pretensão da
ciência e a vulgarização da cultura popular. É com demonstrações
de como a história da psicanálise em nosso país precisa ser pensada
em sua complexidade que julgamos indispensável encontrar rotas
historiográficas alternativas ao oficialismo e às narrativas
“pioneirescas” ainda dominantes no campo.
Por fim, Marina Massi discorre sobre a situação paulista de
implantação e propagação da psicanálise, que de certo modo acaba
por dialogar com a recuperação histórica do cenário psicanalítico
carioca do texto de Rafael Dias de Castro. Tomando como eixo
central de análise a gênese da Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo (SBPSP), a autora sublinha a importância dos
desdobramentos do freudismo e do pós-freudismo na cultura,
irradiados na literatura, na grande imprensa e nos círculos
intelectuais e acadêmicos. Findada a era dos pioneirismos, mas sem
lhes subtrair a importância histórica, resta o desafio de colocar em
perspectiva psicanálises possíveis , lá onde Freud, ele mesmo,
sustentou-as à prova do impossível.
Que se reverberem as vozes nesta coletânea de textos. Afinal, ao
ser Brasil, ela há de não nos ser distante. Boa leitura a todxs!
Uma psicanálise do outro
TANIA RIVERA

A psicanálise é o oposto da História como narrativa hegemônica,


unívoca e linear. Sua lógica deveria desafiar o/a psicanalista a
apontar os esgarçamentos e remendos do discurso predominante e
incitar à enunciação de construções plurais, fragmentadas e não
lineares. Assim como sua escuta, no dispositivo analítico, dá lugar a
atos falhos e lapsos, recolocando em jogo a linguagem e a posição
do sujeito, sua tarefa diante da questão do estado da psicanálise no
Brasil, por exemplo, seria a de sublinhar fatos falhos , por assim
dizer, fazendo surgir dissonâncias e quebras de sentido,
suspendendo imagens e discursos encobridores para que ressoem
suas latentes linhas de força.
Sobretudo ao tentar descrever e caracterizar no tempo e no espaço
a cena da psicanálise no país, ele ou ela deve assumir – ou melhor,
eu devo assumir – que em alguma medida monto e remonto
ativamente tal cena, (re)construindo um passado e um presente em
uma trama singular, na qual tomo alguma posição.
Pensar psicanaliticamente a situação da psicanálise implicaria
assim, no limite, o risco de implodir qualquer narrativa geral. Mas
isso não nos exime de construir alguma compreensão do presente na
qual lampejos do passado possam reverberar, nem de examinarmos
criticamente afirmações que parecem angariar o apoio entusiasmado
da maioria. Um desses enunciados sedutores diz que a psicanálise
brasileira conheceria hoje grande vigor, em comparação com outros
países. São em especial autores franceses, como Élisabeth
Roudinesco, que apontam tal “fato”, sem que isso os leve, contudo,
a ler autores brasileiros e a estabelecer com eles um diálogo real.
Longe de consistir em um reconhecimento da qualidade da
produção brasileira, parece tratar-se, com esses “elogios”, de
reafirmar, em ato, nossa posição de leitores de autores estrangeiros,
de meros consumidores de um saber que se produziu e ainda se
produz além-mar.
Devemos admitir que os psicanalistas e estudiosos brasileiros,
como a confirmar tal posição, pouco leem seus conterrâneos. A
presença expressiva da psicanálise em cursos de Psicologia e, em
menor escala, nas áreas de Literatura e Artes Visuais, permitiu,
contudo, que se expandisse significativamente a reflexão teórica nos
últimos trinta anos no país, levando membros de escolas de
psicanálise a aprofundarem suas elaborações em nível de pós-
graduação e a configurarem uma situação de ampla permeabilidade
entre universidades e instituições de psicanálise. Frequente nos anos
1970 e 1980, a figura do mestre genial e isolado, que imita Freud ou
Lacan e mantém seus discípulos nas rédeas curtas de um
funcionamento hierárquico profundamente antianalítico, parece hoje
obsoleta. A tradição, porém, de que cada psicanalista retome por sua
própria conta a teoria, lidando diretamente com as fontes primárias
para traçar seu trajeto singular de formação, alimenta, em alguma
medida, o mal-entendido que o faria furtar-se à saudável discussão
com seus pares.
O mercado editorial do país reforça tal equívoco, ao privilegiar o
retorno financeiro garantido pelas traduções das fontes primárias e
de comentadores em sua maioria estrangeiros, investindo na
vertente didática de elucidação dos cânones em detrimento da
aposta em bons autores nacionais. Publicam-se bastante, é verdade,
revistas e coletâneas de escolas de psicanálise, marcadas por certa
endogenia, e periódicos acadêmicos nos quais a reverência às
citações impede, com frequência, elaborações mais autorais. Longe
de ser o reflexo da inabilidade dos autores brasileiros em criar novas
articulações e relançar questões de modo inventivo, o problema é
amplo e tem contornos geopolíticos, inscrevendo-se no contexto da
tentativa ainda claudicante de afirmação da produção intelectual
brasileira como criação de pensamento de alto nível e capaz de
contribuir no cenário internacional. O crescimento recente do
discurso decolonial entre nós tenta trazer um impulso nessa direção,
mas ainda não foi capaz de gerar elaborações teóricas que
ultrapassem a repetição de palavras de ordem e que não se limitem à
(de resto, louvável) substituição de autores brancos, europeus e em
sua maioria homens por latino-americanos(as), pretos(as), mulheres
e representantes de outras minorias. Está por se fazer o gesto de
transformar nossa condição periférica em uma força autêntica de
renovação intelectual nas ciências humanas em geral. E resta ainda
por anunciar e expandir, nesse contexto, a contribuição da
psicanálise para a recusa da instância neutra de enunciação a
proferir verdades universais e para a afirmação da singularidade
encarnada de todo pensamento – em dado corpo, mas também em
dado contexto sociocultural.
A presença significativa de psicanalistas na universidade
brasileira, além de ter papel importante no fomento à discussão
entre pares e na tarefa de incitar a psicanálise à troca com outras
disciplinas – fundamental para seu próprio estabelecimento, como
Freud tão bem mostrava –, pode hoje assumir um lugar de destaque
nesse debate urgente sobre as condições políticas da produção de
conhecimento. Nessa perspectiva, em vez de se debruçar, com a
“neutra” teoria, sobre abstrações perigosas como a de uma
“identidade nacional” – explorada por alguns autores na década de
1990 de um modo que hoje soa um tanto ingênuo –, se trataria de
tomar posição como sujeito da enunciação situado
geopoliticamente, para assim descentrar a própria noção de
“identidade” e assumir tal gesto como intrinsecamente
(micro)político.
Curiosamente, a História (ou pelo menos uma história) da
psicanálise no Brasil é marcada por esse mesmo gesto de subversão,
no terreno do surgimento do modernismo na literatura e nas artes.
De forma paralela a aplicações da teoria psicanalítica que
reforçavam o cunho higienista e eugenista da psiquiatria da primeira
metade do século 20, o escritor Oswald de Andrade é quem
inaugura uma leitura vigorosa de Freud entre nós, em seu famoso
“Manifesto antropófago”, de 1928. Esse fato ecoa a recepção e
difusão do psicanalista na França pelos surrealistas, iniciada poucos
anos antes. André Breton e seu círculo – no qual Lacan é uma figura
presente, embora discreta – buscaram na psicanálise o embasamento
para sua concepção do acontecimento poético como quebra do
sentido. Com esses poetas e artistas, a proposta da “escrita
automática” replicava a associação livre, e o sonho tomava lugar
central na busca de modos não hegemônicos de construção narrativa
(como aqueles que na mesma época interessavam a Lacan na escrita
de sua paciente Aimée, diga-se de passagem).
Lançado apenas quatro anos após a publicação do primeiro
“Manifesto do surrealismo” em Paris, o texto oswaldiano também
baseia-se em Freud, mas sob outra chave. Trata-se igualmente de
“soltar” o verbo, de subverter a linguagem e o sujeito, mas o
brasileiro percebe, com refinada sofisticação teórica, que, ao se pôr
em marcha tal motor, é a relação com o outro que se encontra
fundamentalmente abalada. Então, para forjar seu conceito de
antropofagia, ele cruza o texto freudiano Totem e tabu com as
narrativas historiográficas sobre a devoração ritualizada do inimigo
valoroso por parte de nossos autóctones.
Como lembrava Oswald em 1945, a prática antropofágica consiste
na “transformação do tabu em totem, isso é, do limite e da negação
em elemento favorável. Viver é totemizar ou violar o tabu”.
Ressaltando a dimensão transgressora do assassinato e da devoração
do pai pelos filhos no texto de Freud, o escritor a expande como
caraterização propositiva da brasilidade, a ser performada na
produção literária e artística de vanguarda como devoração dos
modelos europeus – na medida em que “só me interessa o que não é
meu”, como diria o antropófago. Mas, em vez de submeter-se a eles,
seria o caso de distorcê-los explicitamente, de fazê-los seus , de
deles se apropriar para forjar sua própria “identidade”. A
antropofagia aponta assim, como traço definidor do Brasil, a própria
questão do outro – ou melhor, o eu posto em questão como outro e
com o outro – e um modo de identificação que, ao mesmo tempo,
constitui uma assimilação extrema e uma destituição da suposta
superioridade do outro, pela via da irreverência e da paródia. Trata-
se de radicalizar a identificação com o outro, não para assumir sua
identidade, mas sim para denunciar e assumir a inconsistência de
toda “identidade”. Trata-se de reencenar parodicamente o
assassinato do pai perverso, para devorá-lo e assim incorporá-lo,
mas acentuando com a prática canibal indígena o gesto político de
insubmissão ao tabu e irreverência ao totem, que criaria o laço
social (já que “só a antropofagia nos une”, como grita a primeira
frase do Manifesto).
Longe de ser anedótica, a antropofagia oswaldiana propõe assim,
no contexto de uma fina reflexão sobre as condições da
modernidade, um autêntico reviramento de nossas particularidades
históricas como colônia – que poderiam caracterizar uma
inferioridade ante a poderosa afirmação moderna do eu na Europa –
em força estética e política. Em 1954, lembrando que a antropofagia
seria uma verdadeira Weltanschauung ou uma “posição filosófica”,
Oswald afirma que ela “fazia lembrar que a vida é devoração
opondo-se a todas as ilusões salvacionistas”. De fato, ao discurso
altissonante e redentor do modernismo ocidental, o brasileiro
contrapõe a devoração como estratégia paródica de reversão da
posição de assujeitado/colonizado, o que corresponde a uma crítica
radical da autorreferência egoica.
Contudo, talvez a antropofagia seja entre nós mais uma espécie de
fato histórico falho do que uma tradição bem estabelecida. Seu gesto
de subversão fracassa em realizar-se plenamente, mas continua a
pulsar. Ou talvez ele se complete justo ali onde não se quer, aqui
onde não é esperado e permanece deslocado e inoperante. Seja
como for, ele se relança em direção ao futuro, alinhando-se à
promessa moderna que nunca chegou a se realizar em nosso país; ou
talvez, ao revés, seguindo o fio do desejo, solto em direção ao
futuro, de que fala Freud em seu famoso “Escritores criativos e
devaneio”, de 1907.
Ainda assim – ou justamente por isso – a antropofagia parece-me
vibrar vigorosamente na produção psicanalítica brasileira,
inconclusa e desejante, infletindo de forma latente as inquietações
dos autores na direção da problemática do outro. Talvez possamos
dizer que a psicanálise busca, entre nós, ativar seus outros, na
cultura. Isso vem se dando, há décadas, por dois caminhos
prevalentes: de um lado, pela abordagem de questões sociais e
políticas, declinando o mal-estar na cultura e o trauma, e, de outro,
pelo diálogo com o campo das artes, e sobretudo da literatura, em
estudos intertextuais que encadeiam ao vocabulário psicanalítico
outras palavras e assim tentam ativar uma espécie de efetividade
sensível na transmissão da teoria.
A abordagem de questões sociais e políticas parece reforçar-se e
tomar hoje novos contornos, concretizando-se no engajamento e
mesmo em ação política ou político-clínica, como mostram a
atuação do grupo Psicanalistas pela Democracia contra os
descalabros políticos que vivemos atualmente e as propostas de
atendimento clínico na rua, surgidas em cidades como São Paulo,
Belo Horizonte e Brasília. Já na vertente do diálogo com a literatura
e as artes, numerosos psicanalistas experimentam, desde os anos
1990, formatos distintos do texto conceitual tradicional, em
delineamentos ensaísticos variados que assumem em ato a
articulação entre elaboração teórica e desejo e desancam o equívoco
de falar sobre psicanálise do modo neutro que denega o sujeito da
enunciação e seu lugar no mundo. Alguns chegam a aventurar-se em
escritos assumidamente literários, mais recentemente.
Isso não significa que os psicanalistas brasileiros evitem, por
incompetência ou desinteresse, a lida com a teoria em sua dimensão
conceitual mais sólida. Muito pelo contrário. Creio que eles – um
pouco antropófagos como são – desconfiam de tal solidez e
apostam, com alguma irreverência, nos caminhos tangenciais como
mais afins aos desvios alteritários que constituem a teoria – e a
prática – psicanalíticas. Interessando-se pelo que não é de saída
“seu”, a psicanálise talvez possa, em um país periférico (fora do
centro) como o nosso, assumir seu próprio descentramento como
fundamental, e fazer dele um verdadeiro método de pulsação
desejante – e política – do pensamento.
Exceção no mundo
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER

Élisabeth Roudinesco descreveu duas condições necessárias para a


implantação da psicanálise em uma cultura: a existência da
liberdade de associação e o abandono de crenças mágico-animistas
na interpretação dos transtornos mentais. A primeira condição
remete ao Estado Democrático de Direito, assim como a segunda se
evidencia pela autonomização da Psiquiatria e da Psicologia como
saberes e disciplinas socialmente sancionados. O Brasil parece
responder a essas duas situações de maneira um tanto anômala,
tanto por nossas garantias institucionais serem historicamente
instáveis, como pelo fato de a primazia do saber laico sobre os
transtornos mentais ser constantemente posta sob suspeita. De certa
maneira, compreender a disseminação e o relativo sucesso da
psicanálise no Brasil é entender o caráter cronicamente reversivo de
nossa modernização. É entender como nosso patriarcalismo
patrimonialista e como nosso racismo de classe conseguem compor-
se com experiências modernizantes e contrassegregatórias.
De fato, uma das imagens mais fortes do espírito das luzes e do
progresso da razão é o reconhecimento da irracionalidade e da
loucura como signos do atraso. Nesse quesito o Brasil não é
exceção. Lembremos que um dos primeiros atos do imperador Dom
Pedro II, visando modernizar o Brasil, foi fundar em 1852 o
hospício que até hoje leva seu nome. Ainda que dirigido por
clérigos e destituído de pretensões médicas, e ainda que nosso
primeiro alienista tenha sido machadiano, a chegada da psicanálise
ao Brasil foi contemporânea da formação de nosso parque asilar
psiquiátrico, reativa ao positivismo e antropologicamente
universalista, portanto crítica da política do branqueamento.
Por aqui a psicanálise se entranhou nas discussões sobre a
brasilidade, nos anos 1930 a 1940, justamente quando Vargas nos
conduzia a uma modernização regressiva em termos institucionais.
Ela também prosperou nos anos de chumbo da ditadura militar, de
1964 a 1985, que coincidem com – e englobam – o “ boom da
psicanálise brasileira”. Contrariamente a outros países nos quais ela
se infiltrou francamente na ciência médica, nossos pioneiros –
analistas e pacientes – mantinham diálogo e convívio aberto com
crenças afro-brasileiras e sincretismos espíritas de origem francesa.
Freud dizia que a psicanálise só é possível onde ela não é mais
necessária. De fato, o Estado precariamente democrático e a
psiquiatria medianamente científica parecem ter resultado em um
terreno mais fértil, justamente porque mais conflituoso.
Outro traço marcante da psicanálise brasileira é sua maneira
específica de conexão com a ciência psicológica. Na maior parte do
mundo, a Psicologia é um curso de quatro anos, não habilitante para
a prática clínica, orientado para a leitura de manuais, associando
grandes temas do cognitivismo, da neuropsicologia e da teoria do
desenvolvimento, combinada com a psicologia social-experimental
de extração americana. No Brasil, escolhemos disseminar cursos de
Psicologia de cinco anos, os quais, além da psicologia experimental
com a persistente leitura de autores clássicos e da psicologia social
europeia, incluem estágios que habilitam para a prática clínica.
Essa combinação de atrasos e reações, de sincretismo cultural e
déficit de institucionalização, parece ter confluído para nossa
curiosa posição de excepcionalidade quando consideramos o cenário
mundial de hoje. Frequentemente se diz que a psicanálise diminui e
perde sua importância no mundo, e que Freud está morto, com
exceção da velha França, do jovem Brasil e da pós-adolescente
Argentina. Por aqui o cenário é realmente diferente do resto do
mundo, com a ampla presença da psicanálise nas universidades e
hospitais, nos serviços jurídicos e nas escolas, sem falar da
participação persistente na crítica da cultura, na teoria social e na
recente inflexão política. É preciso lembrar da presença da
psicanálise em conexão histórica com momentos formativos de
outras áreas das ciências humanas: Roger Bastide na Sociologia,
Bento Prado Júnior na Filosofia e o próprio Lévi-Strauss, em seu
momento psicanalítico-brasileiro, na Antropologia.
Também quando olhamos para as vanguardas culturais brasileiras
encontramos uma função curiosa da psicanálise como uma espécie
de porta de entrada para ideias estrangeiras. Foi assim com a
semiótica nos anos 1980, com o concretismo nos anos 1960, com o
modernismo paulista dos anos 1930 e ainda com a psiquiatria alemã
reativa à psiquiatria francesa nos anos 1910. Se olharmos para a
chegada da “nova crítica” ao Brasil, notamos como Žižek foi lido
primeiro pelos psicanalistas, antes de ter sua obra política pós-
marxista traduzida aqui. Lélia Gonzalez pensou o feminismo com a
psicanálise. Virgínia Bicudo, uma de nossas primeiras psicanalistas,
foi também pioneira dos estudos sobre negritude no Brasil. Mas a
vanguarda crítica com frequência serve de pretexto e justificativa
para a permanência de práticas arcaicas. Nessa condição se poderia
esperar que a psicanálise atuasse como uma espécie de dispositivo
aduaneiro de nosso complexo colonial, endossando e reproduzindo a
importação de ideias fora do lugar, a consolidação do nacional por
subtração e subsidiando a endocolonização das periferias do país.
Nesse sentido há farto material sobre o provincianismo dos
psicanalistas nacionais, com seus complexos de impostura, suas
paródias involuntárias e fetiches teóricos ou institucionais.
Combinando as duas tendências, a psicanálise brasileira seria ao
mesmo tempo signo de nosso atraso na renovação das ideias e
práticas psicológicas e passaporte para nossa presença no debate
crítico internacional.
Ainda hoje, quando participamos de eventos internacionais de
psicanálise percebe-se a quantidade contrastiva de Escolas e
Associações, de editoras e tradutores, de autores e pesquisadores
universitários brasileiros. As recentes experiências a céu aberto, as
clínicas públicas e as inúmeras combinações e variações
institucionais que vêm tornando a psicanálise acessível a um público
mais amplo são reconhecidas como um experimento importante do
ponto de vista da resistência política e do enfrentamento social do
sofrimento mental. A crítica da hipermedicação, particularmente na
infância, da generalização disciplinar de procedimentos
psicoeducativos e das manipulações diagnósticas tem despertado
interesse pela psicanálise nacional. Contudo, o traço comparativo
mais marcante de nossa cultura psicanalítica é que por aqui há
muitas pessoas realmente procurando e praticando a análise.
Portanto, seria essa exceção representada pela psicanálise
brasileira um sintoma da psicanálise ou um sintoma do país?
Em psicanálise, um sintoma não é algo a ser erradicado como
signo mórbido e inútil do indesejável. Um sintoma contém um grão
de verdade acerca dos conflitos que o tornaram possível e do qual
ele é a expressão simbólica, ainda que não reconhecida. Um sintoma
é também uma solução de compromisso, ou seja, um objeto criado
por interesses múltiplos e antagônicos. Nada menos rigoroso, nesse
sentido, do que imaginar que uma avaliação da exceção
psicanalítica brasileira poderia recair em juízos globais que veem
nela uma prática das elites para as elites, que consagra um ambiente
conservador, uma ideologia adaptacionista e uma moralidade
conformista. Tudo isso se encontrará fartamente na psicanálise
brasileira, mas também seu contrário. Seria fácil mostrar como a
psicanálise concorre para sustentar esse campo de formação seletiva
de personalidades sensíveis, indutores de autointeriorização
reflexiva e hermenêutica de si. Personalidade que justifica e
reproduz performativamente a elaboração de uma subjetividade de
senhores. Isso deixaria de lado como os psicanalistas sempre foram
voz ativa na crítica dos costumes, na desobstrução da sexualidade e
na confrontação das práticas disciplinares. Se uma parte deles
acompanhou o movimento de patologização da homossexualidade,
depois da virada de 1973, outros tantos denunciaram a opressão das
escolhas homoafetivas. Se alguns subsidiaram torturadores, outros
denunciaram o regime militar.
Obviamente, qualquer atividade humana reúne progressistas e
conservadores, mas no caso da psicanálise isso se presta a perceber
duas formas distintas de exceção reunidas. Como observou Lacan,
podemos falar de exceções que constituem conjuntos, por meio de
regras de exclusão e inclusão, mas há também as exceções que
dissolvem conjuntos, classes e categorias, por meio de
paradoxalidades pragmáticas ou discursivas.
Ao contrário da maior parte dos países, no Brasil, a psicanálise
permanece uma prática e uma formação não regulada pelo Estado.
A regra é que depois de um curso universitário básico, a pessoa
curse um training ou uma especialização com patamares mínimos
de horas e estágios supervisionados, com duração média de três ou
quatro anos. Depois disso ela tem uma licença ou uma certificação
concedida direta ou indiretamente pela adesão a um órgão de
controle. Mas na maior parte dos casos isso torna o psicanalista um
caso particular de psicoterapeuta. Freud não queria isso, e na prática
há uma condição de dificilíssimo controle público: para se tornar
psicanalista alguém deve necessariamente passar por uma análise, e
esta se desenvolve sob critérios e condições inerentes à
transferência, ou seja, desrespeita o legalismo institucional que vem
junto com o controle do Estado. Obviamente, isso aumenta o risco
de más práticas e de iatrogênese por negligência, imprudência ou
imperícia. Muitas práticas clínicas ou paraclínicas chegaram ao
Brasil e não resistiram a essa combinação entre falta e excesso de
regulação pública, terminando simplesmente na assimilação ou
predação. Mas graças a algum controle externo e à imersão em uma
lógica de reconhecimento que lhe é própria, a psicanálise tem
resistido a ambos os processos, constituindo-se como um caso raro
de organização civil, de interesse público, sem controle estatal.
Portanto, no conjunto das práticas de saúde laicas e liberais, a
exceção psicanalítica não foi incluída nem às corporações médicas e
seus convênios, nem excluída do universo da saúde pública.
Mas a segunda versão da excepcionalidade psicanalítica remonta
ao outro lado do problema, ou seja: nesse contexto, como posso
reconhecer um autêntico psicanalista? Até a chegada do lacanismo,
nos anos 1980, a resposta remetia ao reconhecimento público da
solidez e reputação das Sociedades de Psicanálise tradicionais, mas
depois os modelos de formação passaram a ser muito mais dispersos
e intrincados, com variações regionais insólitas e francamente
incompreensíveis ao público leigo. Superado o complexo de
impostura, impulsionado pela pujança social e pelas iniciativas de
aumento de acessibilidade, o problema teórico e identitário de como
alguém se autoriza como psicanalista foi anexado ao neoliberalismo.
Analistas feitos às pressas, formações on-line e caricaturas se
disseminam com suporte nas redes sociais, muitos legitimamente
apoiados na demanda crescente por serviços de cuidado,
aconselhamento e escuta. E nossos colegas estrangeiros nos
perguntam com razão: “mas isso ainda é psicanálise?”. Ou estamos
diante de psicoterapia, de qualidade ainda mais baixa, porque sem
controle ou exigência, quer estatal ou interpares. A resposta liberal
clássica sugeria que teríamos um caso de regulação difusa, com
maus profissionais sendo repudiados em razão da má qualidade dos
serviços prestados. Aqui a exceção dissolve a própria noção de
“psicanalista” como categoria social, reconhecível por seus traços
de pertinência, inscrição ou filiação. O mesmo argumento que serve
para desfazer o elitismo se presta a justificar a predação e a
inconsequência ética. Esse segundo tipo de exceção exprime a
forma peculiar como a psicanálise no Brasil realiza e ao mesmo
tempo dissolve sua posição de elite cultural, econômica e social.
Entre as duas formas de exceção há uma espécie de função
transversal da psicanálise no processo civilizatório nacional.
Trazendo outra relação com a cultura e com a educação, ligando-as
com outra atitude ética e profissional, temos aqui um processo
contemporâneo de inclusão social e de suspensão de muros, para o
qual a psicanálise tem se mostrado, para além do possível,
necessária.
Moda “perigosa”
RAFAEL DIAS DE CASTRO

A teoria psicanalítica chegou ao Rio de Janeiro no início do século


20, através da leitura e trabalho do médico psiquiatra baiano Juliano
Moreira (1873-1933), que a levou para estudos e debates na
Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal,
fundada em 1907 por ele próprio e por Afrânio Peixoto (1876-
1947). A década de 1910 foi o período em que a técnica
psicanalítica foi introduzida no Hospício Nacional, servindo ainda
de base teórico-metodológica para teses de estudantes de medicina
(como a de Genserico Pinto, de 1914). A psicanálise passava a
circular no principal hospital psiquiátrico do país por meio não
somente de Moreira, como também de outras grandes autoridades
da psiquiatria do país à época: Henrique Roxo (1877-1969),
Antônio Austregésilo (1876-1960) e Júlio Porto-Carrero (1887-
1937), fundamentais para a recepção e circulação da obra freudiana.
Neste artigo, apresento como alguns jornais e revistas da década
de 1920 no Rio de Janeiro passaram a se referir à teoria de Freud, o
que gerava opiniões e repercussões das mais diversas e mostra como
a psicanálise começava a circular no ambiente leigo, onde aparecia
em reportagens que davam seus juízos sobre a teoria freudiana,
proporcionando a um público diverso o conhecimento sobre tal
saber.
ADVERTÊNCIA: “PERIGO”
Um dos personagens interessados na psicanálise no período era o
intelectual paraibano Carlos Dias Fernandes (1874-1942), que viveu
seus últimos anos de vida no Rio de Janeiro. Em 1925, num artigo
publicado no jornal O Paiz , ele afirmava que a teoria de Freud era
uma “neopsicologia que ainda braceja nas trevas, tanto assim que
seu divulgador, Freud, é para tantos um gênio como Darwin, como
Lombroso, e para tantos outros um pobre détraqué , cujas
lucubrações não têm nenhum valor científico”. Nessa matéria,
Fernandes pretendia apresentar a um público mais amplo a teoria de
Freud, mostrando seus principais pontos e também suas relações
com o trabalho clínico.
Em uma dessas passagens, Carlos Fernandes ressaltava que a
psicanálise era de difícil entendimento e manejo, pois trabalhava
com questões psicológicas,“imateriais”, sendo difícil materializar
essas questões num plano físico: “Se as manifestações do espírito, a
libido inclusive, que vive sob o império da censura, são coisas
imateriais, rolemos suave para os doces abismos da metafísica, que
são o mais grato, inexpugnável refúgio da prudência”. Carlos
Fernandes reafirmava, assim, uma opinião comum entre aqueles que
se interessavam pela teoria de Freud no período, que era um
questionamento sobre seu valor, tanto científico como terapêutico:
se seu objeto eram questões “imateriais”, manifestações do espírito,
era melhor que a metafísica e/ou a religião se debruçassem sobre
tais fenômenos.
Mas a psicanálise não sofria só com dúvidas sobre seu caráter
científico, como também pelo aspecto realista com que tratava a
condição humana, conforme lemos no editorial do jornal Gazeta de
Notícias , em 1923: “Há livros que deveriam trazer na capa a
advertência ‘perigo’, como os frascos que contêm veneno. Entre
esses está a psicanálise do professor Freud”. A matéria ressaltava
que a divulgação da psicanálise constituía um perigo para toda a
coletividade, porque não tratava “apenas das aberrações de um
número limitado de psicopatas, mas da humanidade inteira,
revelando-nos coisas que, no íntimo, todos sentíamos há muito, mas
que ninguém teve coragem de confessar nem a si próprio”. A
matéria afirmava que, apesar do abalo que causava à moral pública,
a teoria de Freud trilhava um caminho sobre a psicologia humana
bem diferente do que havia sido trilhado até então.
A realidade era que a teoria de Freud passava a ser notícia
corriqueira no jornal, circulando cada vez mais também entre um
público não constituído de médicos – a ponto de, já em 1924, a
psicanálise ser tachada de teoria “da moda”. O editorial do Jornal
América Brasileira deixava claro, também, como a teoria dos
sonhos, dos lapsos da vida cotidiana, exercia enorme influência na
literatura norte-americana e inglesa, demonstrando que “Freud ainda
é e será tomado a sério, malgrado a fúria dos seus inimigos”.
“MEDICINA QUE MATA”
A “fúria” contra a teoria de Freud estava ligada não somente ao que
a psicanálise revelava – as verdades que “não se queria revelar nem
a si próprio” – como também à incompreensão de sua técnica,
devido principalmente a sua complexidade, conforme vários autores
ressaltavam. Ao ponto de se noticiar na Inglaterra, no ano de 1926,
o primeiro caso de “suicídio psicanalítico”. No Rio de Janeiro, tal
notícia era reproduzida com o subtítulo: “Medicina que mata”.
A notícia do jornal Gazeta de Notícias veiculava que a Inglaterra
estava alarmada com o suicídio do advogado Frank Armitage, de 23
anos, que teria se matado após o tratamento com um especialista em
psicanálise. O médico da família do advogado havia declarado à
polícia que o jovem lhe contara poucos dias antes que se sentia
degradado por ter recebido o tratamento psicanalítico. O médico era
taxativo: “A causa da morte do jovem Armitage é a psicanálise”.
Apesar de admitirem que a psicanálise em certos casos pudesse
chegar a resultados positivos, os médicos peritos que
acompanhavam o caso afirmavam ter conhecimento de que a
psicanálise era uma “arma perigosíssima e que poderia agravar o
sofrimento de que a pessoa padece”. Essas acusações fizeram com
que adeptos da psicanálise na Inglaterra também fossem ouvidos na
reportagem. De modo geral, eles procuravam desqualificar a opinião
dos peritos afirmando que estes “não eram especialistas, mas
diligentes práticos em geral”, e que suas opiniões baseavam-se em
questões pessoais e disputas profissionais.
Podemos ter uma ideia da repercussão dessa notícia num artigo
publicado no Jornal O Paiz no mesmo ano de 1926 , assinado por
Cecília Bandeira de Melo, sob o pseudônimo Chrysanthème. A
autora dizia que a psicanálise poderia desvendar as intrincadas
dificuldades dos relacionamentos e “revelar mentalidades
interessantes, originais e curiosas”. De acordo com ela, já era
possível constatar pelo viés psicanalítico, por exemplo, que os
homens eram “o sexo rancoroso por excelência” e as mulheres, o
“sexo cândido e fervoroso em suas paixões”.
Para a escritora, era necessário despertar para um novo tempo que
surgia, um tempo que poderia ser vislumbrado também pela “ótica
da ciência psicanalítica”, propício para se assumirem relações
harmônicas e usufruir direitos iguais, tanto para maridos como para
esposas. Era necessário, enfim, deixar para trás um tempo em que
“os maridos e as amantes deixavam as mulheres sem um tostão e – o
que é mais grave – a inexistência de um código de lei que proteja
essas abandonadas e castigue os facínoras dessa espécie”. Se todos
os indivíduos, intelectuais ou não, assumissem a tarefa de observar a
realidade através da psicanálise e intervir de fato nas questões
sociais, cotidianas, apontava Chrysanthème , “o que se revelaria
seria mais horrendo, estou certa, do que o entrevisto no
subconsciente daquele advogado, doutor Armitage, que não resistiu
à degradação acusada”.
A PSICANÁLISE NOS PERIÓDICOS, NA CIÊNCIA MÉDICA E ALÉM
O que se estava admitindo nas reportagens e matérias veiculadas
nos jornais era a possibilidade de inserir a psicanálise tanto no
espaço privado do lar como na perspectiva mais ampla do convívio
social, a fim de que se conhecesse melhor a “natureza humana”.
Apesar da apropriação que esses intelectuais, jornalistas e veículos
da imprensa faziam da psicanálise, é importante ressaltar a diferença
entre essas apropriações e as dos médicos psiquiatras cariocas do
período.
Primeiro, há o fato de os psiquiatras-psicanalistas terem realizado
uma leitura da psicanálise que se pretendia científica e especialista,
e não voltada para a divulgação laica, como a que fora expressa nos
jornais. Outro aspecto, mais específico, era que os psiquiatras-
psicanalistas buscavam não só criar uma “logística” para
desenvolver um discurso uníssono, no qual a psicanálise fosse o fio
condutor de um projeto de intervenção na sociedade, mas também
utilizá-la em terapêuticas individuais e novos caminhos
profissionais. Foi nessa perspectiva, por exemplo, que em 1926 foi
criada uma clínica psicanalítica dentro da Liga Brasileira de Higiene
Mental e que em 1931 se inseriu na Faculdade de Medicina a
especialidade em Psicanálise. Esse cenário carioca persistiu até
meados da década de 1940, quando o interesse deslocou-se para o
anseio de vinculação à Associação Psicanalítica Internacional (IPA)
para formação técnica e especializada, fato que já havia sido
alcançado pela Sociedade de Psicanálise de São Paulo em 1937.
Apenas nas décadas de 1970 e 1980 haveria um afastamento em
relação às sociedades psicanalíticas “oficiais”, “ipeanas”. Diversos
fatores contribuíram para tal movimento: a influência dos estudos de
Michel Foucault, o processo de abertura política, as revelações
sobre o vínculo de psicanalistas com a tortura na ditadura militar
(como as denúncias de Helena Vianna), entre outros. No campo
acadêmico, o desenvolvimento dos estudos psicanalíticos a partir de
1980 e a autonomia universitária permitiram que sua difusão e
articulação se tornasse ainda maior e diversa daquela veiculada pela
IPA e por seus analistas, em sua maioria psiquiatras. O psicanalista
Joel Birman afirmou, por exemplo, que a psicanálise deixou de ficar
“enfeudada” a partir dos anos de 1980 porque a penetração do
movimento psicanalítico argentino e, posteriormente, do movimento
psicanalítico lacaniano, tiveram o mérito de permitir que se
quebrasse um pouco a hegemonia centrada na IPA.
Primórdios
MARINA MASSI

O ambiente cultural da cidade de São Paulo teve grande influência


na introdução das ideias freudianas no Brasil. Não vou contar toda
essa história, mas pinçar acontecimentos que considero oportuno
retratar e que podem nos ajudar a pensar o lugar e a problemática da
psicanálise hoje.
Em 1901, Santos Dumont fez seu primeiro voo em Paris; em
1905, Albert Einstein apresentou a teoria da relatividade; em 1907,
Pablo Picasso pintou Les Demoiselles d’Avignon ; em 1909,
Tommaso Marinetti propôs o futurismo. Fatos como esses fizeram
parte de uma onda de mudanças no mundo ocidental que engendrou
a difusão e a implantação da psicanálise no Brasil, processo que
acompanhou o movimento de modernização nacional.
A obra O pansexualismo na doutrina de Freud , do psiquiatra
paulista Francisco Franco da Rocha, publicada em 1920, foi o
primeiro livro psicanalítico brasileiro. Inspirava-se em vários textos
de Freud, entre eles Três ensaios sobre a teoria da sexualidade , de
1905.
Contemporaneamente ao primeiro livro de psicanálise, surgiu
Pauliceia desvairada , de Mário de Andrade – ícone do movimento
modernista em São Paulo, que lia Freud em francês e falava sobre
“as coisas freudianas”, e cuja obra foi influenciada pela psicanálise.
Em 1928, Oswald de Andrade apresentou o “Manifesto
antropófago” , fruto da leitura de Totem e tabu . A cena cultural
estava fértil e se fertilizava com Freud.
Segundo Jane Russo, “a grande questão, que nos ajuda a entender
por que um mundo psi se constitui e se propaga com tanto vigor, é
que modelos modernos são bem diferentes do modelo da tradição.
Este é visto como algo que vem de ‘fora’ e dita regras claras de
comportamento. O modelo moderno não diz respeito a uma
determinação externa do que se deve ou não fazer. Ao contrário,
remete o sujeito para dentro de si mesmo, para uma busca, através
de suas próprias escolhas, do caminho que o levará a uma vida mais
plena e realizada. Não se trata de ditar regras ou preceitos, mas de
ensinar um novo modo de encarar a si mesmo e aos outros”.
Cito essas fontes para salientar que a teoria freudiana não chegou
tão atrasada a nosso território, mas chegou a um território vasto,
atrasado pelas desigualdades sociais, políticas, raciais e culturais.
Foi na centralidade das áreas urbanas, como São Paulo e Rio de
Janeiro, que a psicanálise floresceu, sob a égide de parte da
medicina vigente e do movimento modernista.
Em 24 de outubro de 1927, na cidade de São Paulo, fundou-se a
primeira sociedade de psicanálise da América Latina, feito realizado
por dois médicos psiquiatras: o já citado Francisco Franco da Rocha
e Durval Marcondes. Eles se tornaram, respectivamente, presidente
e secretário dessa sociedade, a qual se ocupou em agregar pessoas
interessadas na teoria freudiana e na divulgação da psicanálise,
assim como em criar um centro de debates científicos entre seus
membros. Em junho de 1928, foi lançado o primeiro número da
Revista Brasileira de Psychanalyse , com artigos dos pioneiros. A
publicação, contudo, não teve continuidade, só foi retomada em
1967, sendo editada ininterruptamente desde então.
A primeira sociedade de psicanálise brasileira permaneceu ativa
por volta de três anos, mas acabou na inatividade. Durval foi o
único a praticar a clínica psicanalítica em consultório particular –
isso desde 1926. Élisabeth Roudinesco e Michel Plon ressaltam que,
“enquanto os pioneiros do freudismo continuavam sendo clínicos
hospitalares, Durval Marcondes passou da psiquiatria para a
psicanálise, tornando-se assim o primeiro freudiano do Brasil, antes
mesmo de ser analisado”.
Carmen Lucia V. de Oliveira resgata duas histórias que ilustram o
prestígio da psicanálise tanto como fonte de ideias férteis para o
movimento modernista quanto como possibilidade terapêutica. No
livro Salomé , de Menotti del Picchia, escrito entre 1931 e 1939,
uma personagem que sofre dos nervos deixa-se convencer pelo
marido a consultar-se com o “doutor Marcondes”.
ORIGEM LITERÁRIA
Já em Mana Maria , novela escrita em 1936 por Alcântara
Machado, aparece a provável origem da expressão popular “Freud
explica”. Em certa cena, durante um jantar paulistano, a personagem
Mana Maria recusa radicalmente o pedido de casamento feito pelo
médico Samuel. Este, em resposta a tal rebeldia, diz à anfitriã, uma
tia casamenteira, que “Freud explica isso (…). Freud explica o caso
perfeitamente, esses nervosismos subitâneos, essas explosões”.
Durval Marcondes conseguiu que a doutora Adelheid Koch,
psicanalista berlinense com formação reconhecida pela Associação
Psicanalítica Internacional (IPA), viesse ao Brasil para começar a
formar analistas aqui. De sua chegada em 1936 até 1951, foi uma
longa jornada para alcançar o reconhecimento oficial da IPA.
Podemos dizer que os anos 1950 foram dedicados a consolidar a
psicanálise em São Paulo, a organizar a instituição e a estabelecer
um sistema de formação de analistas. Na década de 1960, houve
uma mudança no eixo científico, de Freud para Melanie Klein – a
forte influência da teoria kleiniana e da troca com analistas ingleses
fez com que essa perspectiva tivesse hegemonia na formação de
analistas.
A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
tornou-se rapidamente um espaço disputado por candidatos a
analista. Houve um crescimento na demanda, de médicos e não
médicos, sendo esta uma particularidade em relação às outras
sociedades no país. A pioneira Virgínia Bicudo, socióloga, negra,
primeira mulher a deitar-se no divã no Brasil, ficou com a
responsabilidade de criar e estruturar o Instituto de Psicanálise.
Além dos movimentos de vanguarda cultural, em 1934 aconteceu
na cidade de São Paulo um fato de extrema importância para a vida
social paulistana: a fundação da Universidade de São Paulo (USP).
Numa relação estreita com a França, a USP recebeu o que ficou
conhecido como Missão Francesa, que trouxe vários professores
convidados, entre eles Claude Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Jean
Maugüé e Roger Bastide.
A imprensa escrita teve um forte papel na difusão da psicanálise
em São Paulo. Roger Bastide e Jean Maugüé, por exemplo,
escreveram sobre psicanálise para a Revista do Brasil (ligada à
família do jornal O Estado de S. Paulo ). Durval Marcondes foi
muito entrevistado pelo Diário da Noite , pela Folha da Manhã e
pela Folha da Noite , que pertenciam à Folha de S. Paulo , dirigida
por Nabantino Ramos, um entusiasta da psicanálise, que fez análise
pessoal e cogitou vir a ser analista.
Nas décadas seguintes, a imprensa paulista continuou a dar espaço
aos psicanalistas. A Folha de S. Paulo , por exemplo, veiculou
textos de colegas como Renato Mezan, Maria Rita Kehl e Betty
Milan, e mais recentemente as colunas de Vladimir Safatle e
Contardo Calligaris. Ressalta-se aqui o prestígio da psicanálise em
São Paulo, aos olhos da vanguarda cultural, da universidade, da
grande imprensa e, em última instância, da elite menos
conservadora, que sempre apoiou o projeto de modernização da
metrópole paulistana, no qual a psicanálise, como vimos, esteve
intimamente imbricada.
Em meados dos anos 1960, um importante fato político foi o
fechamento decorrente da ditadura militar, cerceando-se as
liberdades civis e de expressão. Nessa época, a SBPSP permaneceu
voltada para si mesma, quase que numa fortaleza murada. Toda a
relação com a cultura e a sociedade civil da época da implantação
da psicanálise foi abandonada por um forte retraimento
institucional, que se manteve até os anos 1980. Chegava ao fim a
era Durval Marcondes, com tudo o que representou sua concepção
da psicanálise e da inserção dela na cultura e em áreas afins.
Nos anos 1970, diz Jane Russo, a psicanálise “conquistou
definitivamente os corações e mentes das camadas médias letradas
dos grandes centros urbanos. Assistiu-se a uma verdadeira corrida
ao divã. As análises em grupo proliferaram, para atender à crescente
demanda daqueles que não podiam pagar as sessões individuais”.
Na SBPSP, os anos 1970 foram marcados pelas visitas do
britânico Wilfred R. Bion, o único dos grandes pensadores
psicanalíticos que veio ao Brasil várias vezes – por sinal, um autor
que estudou o funcionamento de grupos. Da França, somente dois
psicanalistas renomados vieram ao Brasil, André Green e Piera
Aulagnier – por convite de um pequeno grupo de analistas dessa
sociedade. Nos anos 1980, houve um acirramento entre as duas
visões mais hegemônicas, a que desejava manter o fechamento
institucional e a que gostaria de rumar para a abertura, seguindo, de
certo modo, a tendência de abertura política e social que se via no
país.
Com o retorno de colegas da Inglaterra e da França, surgiu o
seguinte panorama: Luiz Meyer inaugurou um trabalho com
famílias numa perspectiva psicanalítica; Elizabeth Rocha Barros e
Elias Rocha Barros coordenaram várias traduções e desempenharam
um importante papel na divulgação da teoria kleiniana e pós-
kleiniana; Luís Carlos Menezes provocou um vivo retorno a Freud,
fundando, em 1988, o Grupo Freud na SBPSP, voltado para o estudo
da obra freudiana.
Entre os que ficaram na resistência ao poder hegemônico do grupo
que dominou a SBPSP nesse período, há pelo menos três vozes
criativas e sofisticadas: Fabio Herrmann, com uma vasta obra
original; Isaías Melsohn, cujo pensamento refinado, complexo,
crítico e filosófico por si só já era contestador; e um grupo que, sob
a liderança de Leopold Nosek, e desde a gestão dele como
presidente da SBPSP, contribuiu para o arejamento institucional,
procurando sempre que possível derrubar os muros que nos
rodeavam.
Esse processo de abertura continua. Hoje, por exemplo, existe a
possibilidade de estudar Lacan em nossa instituição, bem como de
levar o método psicanalítico para além do consultório privado,
repensando-se as práticas clínicas – as psicanálises possíveis.
Para finalizar, podemos observar que, em São Paulo, a psicanálise
entrou pelas mãos da cultura, com apoio da vanguarda intelectual,
da imprensa e da elite menos conservadora da época. Do
fechamento obscurantista do regime militar, uma das saídas foi o
surgimento de outras políticas: a micropolítica, a nova política
contracultural. De acordo com Jane Russo, “reformar-se
interiormente podia ser interpretado como uma forma de luta
política”.
As mudanças pelas quais o país vem passando após a eleição de
2018 trazem aos psicanalistas um novo desafio: conhecer e repensar
o passado, lembrando que tempos sombrios já existiram e podem se
repetir. O Estado laico é uma das condições fundamentais para a
liberdade que o ofício da psicanálise exige. Se o prestígio é uma
moeda valiosa em nosso país, grupos evangélicos a querem
oficialmente para si. Temos urgência de olhar para o futuro, do país
e da psicanálise.
entrevista Elisa Ventura
Na contramão da crise
AMANDA MASSUELA

As livrarias estão ficando no passado. O hábito de comprar livros


em um clique (e com desconto) é um dos motivos. A formulação
vem de Elisa Ventura, 54, dona da Blooks, que tem seis lojas entre
Rio e São Paulo – a primeira surgiu em 2008, no Rio de Janeiro.
“Todo dia eu olho para a livraria e penso ‘Cara, isso aqui está
velho’”, diz. Ela não tem as respostas para um mercado que vive sua
pior crise em uma década, mas é categórica ao defender, para já, um
modelo mais ativo de livraria – e, para o futuro, um espaço
completamente diferente: “Só não tenho dinheiro pra fazer”.
Até lá, Elisa segue apostando em uma fórmula que tem dado certo
para a Blooks: levar encontros, pessoas, ideias e discussões para
dentro das livrarias, respeitando o público e a vocação de cada
unidade. Ela atribui a esse trabalho o sucesso e a expansão da marca
mesmo em tempos de turbulência no mercado de livros – foram três
lojas novas em dois anos.
“Meio esteta”, cheia de ideias na cabeça, Elisa tem a atenção
repartida entre tabelas de contabilidade, pedidos de livros, discos e
revistas; entre o visual das vitrines e os comentários não
respondidos nas redes sociais (que ela mesma escreve às vezes na
madrugada). Não tem sócios, tampouco se considera livreira: diz
que entende de livro, e não de literatura. “Nunca li os clássicos,
pronto, falei.”
Aprendeu sobre livros com Heloisa Buarque de Hollanda, de
quem foi sócia por 18 anos na editora Aeroplano, e não com seu pai,
o jornalista Zuenir Ventura, como muitos pensam. Com ele,
conheceu Fernando Sabino, Rubem Braga e Drummond; mas com
ela soube de Ana Cristina César, Caio Fernando Abreu e Paulo
Leminski. Hoje, ela se interessa mesmo pelos contemporâneos:
Julián Fuks, Valter Hugo Mãe, José Luís Peixoto.
Quem passa por qualquer Blooks encontra todos eles ao lado de
autores menos conhecidos, publicados por editoras independentes –
talvez a principal característica da bem-sucedida aventura livresca
de Elisa Ventura.
Você trabalhou por muito tempo na Aeroplano. Como essa
experiência te preparou para montar a Blooks?
Abri a Blooks para editoras independentes muito em função da
minha experiência de não conseguir entrar nas livrarias. Foram
muitos e muitos anos na Aeroplano, não só fazendo livros, mas
eventos, com essa ideia de desdobrar o livro em outras coisas. Até o
nome Blooks é um pouco em homenagem à Helô, lembra uma
exposição que fizemos juntas em 2007 [Blooks – Tribos & Letras na
Rede ]. Eu não queria um nome tão óbvio que tivesse a ver com
livro, tipo Cantinho dos Livros, até porque nunca me reconheci
livreira.
Ainda hoje não se considera livreira?
Não mesmo. Não sou fissurada por leitura. Leio porque gosto, mas
não 300 livros por mês. Acho que livreiro é aquele cara que leu
todos os clássicos. Eu não entendo de literatura, entendo de livro. E
por não me reconhecer livreira, nunca consegui pensar a Blooks só
como livraria. Sempre trabalhei com muita coisa, música, teatro,
artes plásticas... A gente vai pra rua, monta a Blooks em qualquer
lugar, desde favela até vagão de trem.
É um movimento que se vê cada vez mais em livrarias menores.
Sim. Quando eu abri a Blooks, ninguém queria fazer festa na minha
casinha. Então eu disse: “Bom, vamos fazer festa a gente”.
Começamos a ir para os lugares. Às vezes não tinha nada a ver com
literatura, mas bombava. Livreiro era a raça mais preguiçosa do
mundo, abria as portas e não precisava fazer nada. Agora todo
mundo está brigando pela mesma Djamila. A última grande
invenção da livraria foi o café. Hoje eu tenho uma ideia de livraria
completamente diferente. Só não tenho dinheiro pra fazer.
Como seria essa livraria?
Tem que ser um espaço múltiplo, completamente diferente. Um
lugar em que o cara vai fazer uma aula de ioga, compra um pão
orgânico, um café, vai assistir a um bate-papo e compra um livro.
Os mais puristas podem achar esse conceito de livraria, com
tantos estímulos externos ao livro, um demérito para o livro em
si.
Mas a pessoa precisa desses estímulos também, porque existe o
estímulo da internet, o estímulo de comprar um livro na Amazon
com 50% de desconto. Não acho um demérito. Talvez aquela pessoa
que entrou ali não fosse comprar um livro, mas esbarrou nele e
comprou.
O editor da Elefante, Tadeu Breda, publicou um texto
explicando como a política de descontos da Amazon destrói as
livrarias. É a principal inimiga de vocês?
Não, mas é uma grande inimiga. E já que ela existe, eu deveria
receber pelas vendas que faço para a Amazon. Porque você entrou
na minha loja, viu um livro que nunca tinha visto na vida, deu uma
lida, adorou, usou meu wi-fi, entrou na Amazon e comprou o livro
com desconto. Quem fez essa venda fui eu, quem finalizou foi a
Amazon. Nada mais justo que ela me dê um percentual, mas isso
obviamente não vai acontecer. As próprias editoras estão
competindo com as livrarias, porque vendem direto pelos seus sites
com desconto. Não acho que função de editora seja vender livro,
mas, enfim, por que essa cultura de que tudo tem que ter desconto?
É Dia das Mães, Black Friday, Dia do Cachorro Morto...
Em muitos países europeus existe a “Lei Anti-Amazon”, que
proíbe esses descontos, mas no Brasil esse debate não avança. É
um modelo que deveria ser seguido aqui?
Isso é fundamental, com seus devidos ajustes de país para país.
Porque a Amazon não vende livro, vende logística, tecnologia,
banco de dados, eles podem queimar o livro com 50% de desconto,
é o de menos pra eles. Não é uma briga de igual para igual. Não sei
particularidades de cada lugar, mas este é um ponto para a gente
começar a conversar. Acho lindo quando eu abro uma livraria e todo
mundo fala “Viva as livrarias, viva a resistência”. Me sinto a
supermulher. Mas no dia a dia, você compra, frequenta? Então tem
uma coisa também de educar público. Mas é muito difícil educar
público quando você fala em 30% de desconto. A gente precisa ter
condições de brigar. Hoje eu não tenho. Hoje sou showroom da
Amazon.
Você já mencionou que esses livros de editoras independentes
ficam fora de contexto na Amazon. Por que o “contexto” é
importante nesses casos?
Por exemplo, hoje essas editoras vendem muito em feira. Só que na
feira você está sempre falando com o mesmo cara. Entra uma
pessoa na minha loja, uma dona de casa querendo o livro da
Fernanda Torres, e do lado tem um livro que ela nunca viu na vida,
mas com um assunto sobre o qual ela pode se interessar. Essa dona
de casa não vai achar esse livro na Amazon, porque ela não vai
procurar por ele ali. E ela não vai às feiras. Hoje, existem editoras
independentes espetaculares, e eu coloco elas ao lado de um
Leminski para a pessoa ver que aquilo existe. Se eu coloco na
estante ou na Amazon, quem vai comprar esse livro é quem já
conhece, não estou dando chance de apresentar isso para públicos
diferentes.
Há muitos canais de venda disputando um número reduzido de
leitores?
Na verdade é o tipo de público que está mudando. Tem um público
jovem que é superantenado, uma galera que está lendo,
participando, que vai a todos os eventos. Pode não ter tanta grana,
mas compra um livrinho aqui outro ali, frequenta livraria. Não é
mais só aquele pessoal da Zona Sul [do Rio de Janeiro]. Tem uma
outra galera que compra, não compra pilhas, mas compra sempre. A
crise existe, mas é preciso ver que existe um outro público chegando
aí, mais curioso.
Como ampliar esse público?
Esse é o grande desafio. Já pensei em fazer um clube de leitura para
não leitores. Tem muita gente com poder de consumo que não está
lendo. Eu sou uma pessoa que não sei ler poesia. E queria aprender
a ler poesia, mas aquilo não entra na minha cabeça. Assim como eu,
várias pessoas querem ler literatura estrangeira, filosofia, mas não
sabem por onde começar e têm vergonha de dizer.
Essa pode ser uma função dessa “livraria do futuro”?
Não sei se esse é o papel da livraria, mas por que não pode ser?
Existe o desafio de trazer esse público que tem poder de consumo,
mas que não está lendo porque ninguém olha pra ele. Adoraria que
alguém pegasse na minha mãozinha e dissesse: “Vamos ler
poesia?”. Ninguém nunca me deu uma solução para aprender.
Mas, mesmo com todas essas questões e crises, a Blooks tem seis
lojas entre São Paulo e Rio. Como isso aconteceu?
Começamos a entender qual era nosso público, o que fez com que a
gente acertasse muito mais do que errasse. E é claro que isso vai
reverberando. Tem um núcleo ali no Rio que está muito forte porque
realmente a gente deu uma cara, e acho que essa é a história. Não é
sair fazendo evento de qualquer coisa para qualquer pessoa. No Rio,
toda vez que a gente saiu, às vezes até botando gente bacana, com
nome, mas que não era exatamente a nossa cara, deu errado. Vai
muito de entender a vocação de cada lugar, e isso foi um trabalho de
mais de dez anos. Um dos primeiros eventos que fiz na livraria do
Rio foi o lançamento de um livro do Paulo Autran. Tinha quatro
pessoas. Fiquei deprimida. “Se esse evento fosse na Travessa ia
bombar”, pensei. Passou um ou dois meses, a n-1 edições estava
começando, ninguém conhecia, e fizemos o lançamento do
Manifesto contrassexual [de Paul B. Preciado]. A editora organizou
uma mesa, apareceram 200 pessoas. Pensei: “Opa, para tudo. Tem
uma galera jovem muito interessada, interessante, discutindo, se
encontrando, indo aos lugares, saindo de casa”.
As grandes editoras têm olhado mais para as livrarias
pequenas?
Sim, porque viram a merda que fizeram. Viram que não podiam
concentrar tudo em duas livrarias, é importante ter capilaridade. Eu
não vou vender 200 Jô Soares, vou vender 5. Mas vou vender
Guimarães Rosa, João Cabral, vou vender aquele fundo de catálogo
todo. Antes eu não conseguia nem falar com a Record, e as
pequenas babavam o meu ovo. Agora é o contrário: a Record quer
falar comigo por causa da crise e o cara pequeno quer vender direto.
Inverteu. É curiosa essa mudança, e na verdade tem lugar pra todo
mundo.
estante cult
A dama oculta
DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES

Quem tem medo de Silvina Ocampo? É provável que muitos, dada


sua personalidade extravagante, a literatura fora de quaisquer
padrões e um histórico cercado de mistério e suposições de todo
tipo. No Brasil, certamente há esse “medo”, pois é a primeira vez
que uma editora se aventura a lançar a autora.
Já não era sem tempo. Admirada por grandes nomes, como
Cortázar, Borges (amigo íntimo que lhe dedicou um de seus textos
mais famosos, “Pierre Menard, autor do Quixote”), Italo Calvino,
Roberto Bolaño, Alejandra Pizarnik (que lhe devotava paixão
suicida) e Camus, com quem manteve amizade e correspondência,
Silvina era casada com Bioy Casares e irmã caçula de Victoria
Ocampo, escritora e editora da revista Sur , em torno da qual
circulava a moderna literatura sul-americana do século 20.
Vivia à sombra, portanto. E não ligava para isso. De uma das
famílias mais ricas da Argentina, passava os dias em sua mansão, às
vezes vestida nas roupas do marido mulherengo, observando com
indiferença o fluxo das ideias, pessoas e aventuras sexuais. De vez
em quando, se detinha em algo e escrevia. E como escrevia! Seus
contos começam já encarando o leitor de forma estranhamente
perturbadora – sabemos, de alguma forma, que não sairemos
incólumes da experiência. Como se tecesse fábulas para adultos, ela
muitas vezes apresenta pequenos animais no limite da racionalidade
ou de algo incompreensível para nós, tolos humanos. A
perversidade latente das crianças também a atraía, assim como sua
total abertura para o mundo. Seu desdém pela mediocridade do ser
humano, com fraquezas e sonhos inúteis, aliás, é visível. Qualquer
rastro de compaixão é sutil. A elegância das frases (traduzidas com
rara cumplicidade) e o inusitado das situações faz supor que a autora
se aproxima do universo mesquinho com um arquear de
sobrancelhas, pronta a transformá-lo em algo muito mais
interessante. Um método espontâneo, alheio a convenções.
Assim, as disputas entre casais ganham ares quase surrealistas –
John Cheever chegaria perto desse tom. A ameaça que paira sobre
os amantes é indistinguível do dia a dia, o que os aproxima da
loucura. Há trocas de identidade, trocas de gênero, dúvidas
intimamente aterradoras, a solidão olhando de soslaio pela porta
entreaberta, perversões imaginativas e traições que mais parecem
surdas discussões metafísicas – ou oníricas. Ninguém está a salvo –
nem os personagens, nem os leitores, nem a autora.
Como também pintava (em Paris, foi aluna de De Chirico e
Léger), a força de suas imagens, por vezes camufladas em meio à
prosa aparentemente linear, se destaca, nem sempre de forma
pacífica, como mostra o conto que dá título a essa coletânea, para
muitos a mais representativa em seus 90 anos de vida (1903-93).
Era fã de Clarice Lispector, o que explica alguma coisa – ainda que
o marido famoso, 11 anos mais novo, dissesse que ela não tinha
sofrido influência de ninguém, era uma cria de si própria. Ao final
de Fúria , tendemos a concordar com Bioy, assim como a torcer
para que tudo o mais de Silvina seja traduzido por aqui.
colaboraram nesta edição
Anelis Assumpção é cantora e compositora
Bianca Santana é escritora, jornalista, pesquisadora, doutoranda
em Ciência da Informação pela USP, autora de Quando me descobri
negra (SESI-SP)
Christian ingo lenz Dunker é psicanalista, doutor em Psicologia
Experimental pela USP e professor titular do IP-USP
Marcia Tiburi é escritora, professora e doutora em Filosofia pela
UFRGS, autora de Delírio do poder (Record)
Marcio Sotelo Felippe é advogado, mestre em Filosofia e Teoria
Geral do Direito pela USP. Foi procurador-geral do Estado de São
Paulo
Marina Massi é psicanalista, editora da Revista Brasileira de
Psicanálise, coordenadora da série Escrita Psicanalítica (Blucher)
Pedro Ambra é psicanalista, professor da PUC-SP e da
Universidade Ibirapuera
Rafael Alves Lima é psicanalista, doutorando pelo departamento de
Psicologia Clínica do IP-USP
Rafael Dias de Castro é doutor em História das Ciências pela
COC/Fiocruz, professor da Unimontes-MG
Tania Rivera é psicanalista, ensaísta e professora da UFF
Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade
de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo
digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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