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Planejamento e gestão em saúde:

ARTIGO ARTICLE
flexibilidade metológica e agir comunicativo

Health planning and management:


methodological flexibility and communicative action

Francisco Javier Uribe Rivera 1


Elizabeth Artmann 1

Abstract This paper intends to analyse the Resumo Este artigo pretende ser uma reflexão
possibilities and the gaps of situational plan- acerca das possibilidades e das lacunas do pla-
ning, related to the development of dialogical or nejamento situacional no que tange ao desen-
communicant organizations aim. It stablishes, volvimento da imagem-objetivo de organiza-
futhermore, an initial dialog with the health ções dialógicas ou comunicantes. Estabelece,
planning streams in Brazil and it defines some ainda, um início de diálogo com as correntes de
research issues that may offer the necessary planejamento de saúde mapeadas no Brasil e
complement in order to make planning accom- define algumas temáticas de investigação que
plish its function as a communicative action. podem oferecer o necessário complemento para
Key words Health Management; Health Plan- que o planejamento cumpra sua função como
ning; Public Health agir comunicativo.
Palavras-chave Gestão em Saúde; Planeja-
mento Estratégico-Comunicativo; Saúde Pú-
blica

1 Departamento
de Administração
e Planejamento, Escola
Nacional de Saúde Pública,
Fundação Oswaldo Cruz,
Rua Leopoldo Bulhões
1480, 7o andar
21041-210 Manguinhos
Rio de Janeiro, RJ, Brasil
uribe@ensp.fiocruz.br
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Rivera, F. J. U. & Artmann, E.

Introdução O planejamento situacional


como possibilidade instituinte
Convidados a realizar uma análise das pers- de uma organização comunicante
pectivas teórico-metodológicas do planeja-
mento/gestão em saúde no Brasil, nos vemos O planejamento fracassa na sua tentativa ori-
obrigados a assumir uma perspectiva situacio- ginal de obtenção de uma regulação global,
nal e a resgatar do conjunto de nossas refle- imperativa, da sociedade. Enquanto alterna-
xões e leituras um fio condutor, qual seja: o tiva à economia de mercado, o planejamento
das possibilidades do planejamento estratégi- dos países socialistas não deixou de ser o mo-
co, segundo a nossa matriz cultural, na cons- delo de regulação de um ator único, de um ator
tituição de organizações solidárias. O termo tecnocrático, que subordinou as relações in-
comunicante atribuído a essas organizações é tersubjetivas a uma visão de desenvolvimen-
retirado de Bartolli(1992) apud Rivera (1996a) to baseada no determinismo econômico.
e corresponde a organizações abertas, evolu- Os modelos de planejamento global de que
tivas, flexíveis, com finalidade explícita e res- o setor saúde se apropria, como o CENDES/
ponsabilizante para todos. OPS, padecem do mesmo problema, qual se-
No desenvolvimento deste excurso, iden- ja, a incapacidade de totalização desde uma
tificamos os aspectos produtivos da proposta perspectiva central de atores e instituições dís-
do planejamento estratégico situacional e suas pares, com racionalidades não semelhantes.
lacunas conceituais e metodológicas, procu- Há uma incapacidade do Estado de represen-
rando indicar possíveis áreas de complemen- tar a diversidade mediante atos formuladores
tação que poderiam ser motivo de investiga- que substituem a negociação política.
ção e de aplicação, no intuito de abrir cami- O planejamento estratégico em saúde (PES)
nho a uma proposta mais ampla e comunica- surge, em meados da década de 70, como a
cional do objeto aludido. Desta maneira, ten- tentativa de reconhecimento da complexida-
tamos dar um substrato mais prático à alter- de ao introduzir as idéias da superioridade do
nativa do planejamento comunicativo resga- político sobre o econômico e da diversidade
tada de uma crítica ao modelo puramente es- de atores-sujeitos do mesmo ato de planejar.
tratégico (Artmann, 1993; Rivera, 1995). A questão da viabilidade política passa a ocu-
No percurso do trabalho, procuramos par um papel central e a definição de propos-
também fazer um mapeamento de tendências tas/compromissos de ação a depender de uma
na área de planejamento e gestão nos planos articulação que se abre a uma perspectiva po-
nacional e internacional. Não há a intenção licêntrica de análise.
de fazer uma análise aprofundada destas, mas Talvez o grande mérito do planejamento
de fazer alguns comentários que podem levar estratégico tenha sido o de trazer à tona a imi-
a questionamentos delimitadores de objetos nência do diálogo. Falar em planejamento co-
de pesquisa. municativo corresponde a uma interpretação
Deve ficar claro ao longo do trabalho que do planejamento estratégico matusiano como
situamos o planejamento – como momento a possibilidade de uma problematização cole-
de desenho – no interior do processo de ge- tiva, capaz de articular sujeitos sociais, como a
renciamento/gestão de serviços e sistemas. O possibilidade de incorporação de um raciocí-
planejamento, assim, é entendido como ferra- nio sobre a governabilidade de situações de
menta organizacional, fazendo parte de um compartilhamento e dispersão do poder que
processo mais amplo de desenvolvimento das enfatiza a negociação política.
organizações, que valoriza a condução da ação. Ainda que o planejamento estratégico não
As próprias possibilidades do planejamento tenha colocado com transparência essa pers-
são interpretadas aqui como mediadas/subor- pectiva – sua abordagem do poder enquanto
dinadas à cultura das organizações. relação entre acúmulos de recursos que são
mobilizados em torno do objetivo da vitória
de atores individuais oculta essa visão encon-
tramos aspectos que permitem uma interpre-
tação comunicativa. O reconhecimento do ato
de planejar como relação interativa, a adoção
da negociação cooperativa como meio estra-
tégico possível, a valorização da explicação do
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outro como parâmetro de crítica da nossa pró- uma organização onde a prestação de contas
pria explicação e possível complemento e, fi- por resultados seja uma norma interiorizada
nalmente, o destaque concedido à cultura no culturalmente pelos indivíduos, onde haja des-
delineamento das regras institucionais, são concentração do poder e delegação permanen-
elementos que abrem caminho para uma in- te (uma sábia distribuição do poder de pro-
terpretação menos presa à uma racionalidade cessamento de problemas) e onde predomine
pura de fins. um tipo de gestão criativa por operações ou
O planejamento comunicativo é assumido por objetivos.
como meio de construção de organizações dia- Matus acredita que com a introdução de
lógicas. Um aspecto fundamental deste enfo- novas práticas gerenciais será possível viabili-
que é a busca da integração, da possibilidade zar uma alta qualidade da gestão. Estas novas
de um projeto solidário, entendido como de- práticas gerenciais se confundem com a pro-
safio gerencial permanente. Nesta perspecti- posta de seu sistema de direção estratégica que,
va, a escolha dos métodos de desenho ou de além dos subsistemas acima destacados, deve
análise se subordina a esse objetivo próprio ao ser apoiado por outros como o planejamento
campo da gestão. Vários métodos que criem a estratégico, sistema de informações, etc. A re-
possibilidade de fluxos de comunicação am- comendação explícita é de que essa constru-
pliada e de negociação de compromissos po- ção siga o modelo de uma reforma organizati-
dem ser estimulados. Não há, portanto, a pre- va vertical, no sentido de uma reforma radi-
tensão de uma exclusividade metodológica. O cal e seletiva em todos os sistemas relevantes
próprio método deve passar por um confron- da organização simultaneamente, dada a mú-
to com a diversidade. tua dependência de todos os subsistemas, ca-
Vale ressaltar que a perspectiva comunica- da um gerando demandas para os outros.
tiva não se reduz à escolha de métodos, mas A sobredeterminação que as regras de res-
envolve o processo gerencial como um todo, ponsabilidade exerceriam sobre toda a dinâ-
a partir de uma racionalidade ampliada, para mica de gestão reforça a importância da cul-
além da racionalidade de fins, considerando tura enquanto conjunto de estruturas mentais
o mundo da vida dos atores envolvidos numa que subordinaria todas as práticas de traba-
postura dialógica que motive a construção de lho e as derivadas formas organizativas. A ne-
projetos que possam ser assumidos coletiva- cessidade de impactar esse baluarte definidor
mente como compromissos. das virtualidades gerenciais chama a atenção
Ajudar a desenvolver uma dinâmica de di- para a prioridade dos componentes Teoria e
reção que potencialize o diálogo gerador de Treinamento em quaisquer processos de mu-
compromissos é, então, o fio condutor de uma dança organizacional. Assim, o primeiro pas-
nova compreensão do planejamento que não so de uma estratégia de reforma administra-
consegue mais se divorciar da gestão. Matus tiva estaria representado no modelo matusia-
(1994a) entendeu muito bem que a viabilida- no pelo desenvolvimento de um centro de trei-
de do modelo racional de planejamento por namento que procuraria promover novas prá-
ele defendido dependia de determinadas ca- ticas gerenciais e de trabalho.
racterísticas das regras organizacionais, espe- Sutilmente, o voluntarismo racionalista de
cialmente das regras de responsabilidade que Matus encontra um limite nas possibilidades
sobredeterminariam a qualidade da gestão. de lidar com cultura. Embora reconheça a pri-
O triângulo de ferro do PES (Matus, 1994a) mazia da cultura em relação aos processos de
é uma boa figura que pode ajudar a delimitar trabalho, o autor não aprofunda sua análise
os contornos de uma organização comunican- em busca de uma proposta de intervenção
te ou dialógica. Os três vértices representam mais eficaz. A cultura impõe um elemento de
os principais subsistemas do sistema de dire- moderação que dificulta o estabelecimento de
ção estratégica a saber a Agenda do Dirigen- prazos para a mudança organizacional, que se
te, que exige concentração no que é estratégi- alimenta da indeterminação do processo de
co, a Gerência por Operações e o Sistema de mudança cultural (Rivera, 1996a, 1998a; Art-
Petição e Prestação de Contas. A tese funda- mann, 1997a).
mental que o autor sustenta é que a baixa res- Não questionamos a proposta de treina-
ponsabilidade gera uma tendência no sentido mento e teoria em si, mas devemos relativizar
da centralização e da ingovernabilidade. Ideal- seu impacto quando vista como medida isola-
mente, o objetivo defendido é a construção de da de atuação sobre estruturas mentais. Para
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atingir esse objetivo, o desenvolvimento de prá- problemas colocados fora e dentro da organi-
ticas educativas permanentes deveria ser acom- zação (ou macroorganização). A capacidade
panhado de mudanças no sistema de gerência. de processamento destes, entendidos como ne-
Basicamente, pensamos na introdução de um cessidades declaradas ou demandas, define a
sistema de gestão criativa que priorize formas qualidade da oferta institucional. A arte de ge-
de tomada de decisão e de controle coletivas, rir consiste para Matus (1994a) em saber dis-
consensuadas, capazes de estimular a comuni- tribuir bem os problemas pela organização de
cação. A única possibilidade de mudar cultu- modo que todos os níveis estejam sempre li-
ra a longo prazo reside na capacidade de cons- dando de forma criativa com problemas de al-
trução legitimada de novas representações que to valor relativo. O modelo organizacional pro-
os atores podem ter em função de sua partici- posto por este autor é o de uma organização
pação em processos comunicativos, de apren- reflexiva a todos os níveis, como condição de
dizagem. De qualquer maneira, a cultura terá governabilidade.
que ser considerada como elemento de viabili- O caráter totalizador e rigoroso da expli-
dade ou de modulação da proposta de mudan- cação situacional facilita a escolha de opera-
ça organizacional. Neste sentido, nas organi- ções de caráter transversal ou horizontal, que
zações do tipo profissional, segundo classifi- transcendem setores, departamentos e unida-
cação de Mintzberg (1989), como é o caso das des e, nesta medida, o planejamento situacio-
organizações de saúde, não se justifica a intro- nal favorece a integração horizontal, sob a for-
dução de um sistema pesado de gestão estra- ma de uma estrutura matricial por projetos.
tégica, do tipo supra-estrutural, mas um con- A horizontalização pode ser entendida aqui
junto de práticas que de maneira mais infor- como sinônimo de descentralização e de cria-
mal partilhem da filosofia da intensificação do tividade, de tratamento multidisciplinar.
espírito da gestão por compromissos. O dado Há no PES um apelo claro no sentido da
cultural da forte autonomia profissional nes- coordenação lateral, como alternativa a um ti-
sas organizações sugere reforçar o objetivo de po de estrutura tipicamente hierárquica. Este
ajudar os profissionais a internalizar o racio- elemento característico de estruturas descen-
cínio estratégico como parte de seu processo tralizadas e participativas tem sido destaca-
de decisão cotidiano, como alternativa a pesa- do pelo Laboratório de Planejamento do De-
dos processos de formalização de planos rea- partamento de Medicina Preventiva e Social
lizados em instâncias separadas dos centros (LAPA) da Universidade de Campinas, como
operadores, de corte tecno-burocrático. parte de um modelo que enfatiza, por outro
Relacionado a esta questão, temos destaca- lado, uma boa dose de autonomia das unida-
do a necessidade de valorização da reflexão rea- des de produção e a necessidade de colegiados
lizada por autores da área da saúde pública de gestão que democratizem a tomada de de-
(Dussault, 1992; Lima, 1994) acerca dos requi- cisão. Por referência às organizações profis-
sitos em termos de modelo de gestão colocados sionais de saúde, defendemos a tese de equi-
pela leitura das características das organizações pes de gestão com representantes das princi-
profissionais de saúde. A complexidade do tra- pais categorias profissionais.
balho nessas organizações, a impossibilidade A complexidade do PES tem sido suaviza-
relativa de uma padronização mecanística e a da através de propostas e adaptações do mé-
intensa distribuição do poder nas mesmas, su- todo (Artmann, 1993; Cecílio, 1997) que con-
gerem, junto com outras características, um servam aspectos substantivos do mesmo co-
modelo de gestão negociado, de ajustamento mo a necessidade de uma boa descrição do
mútuo, comunicativo. Isto reforça nossa pers- problema como base para uma explicação efi-
pectiva de organização comunicante. caz; a diagramação das relações de causalida-
De Matus (1993) resgatamos principal- de sob a forma de uma rede ou árvore simples
mente os seguintes elementos: de causalidade; a definição de nós críticos com
• a idéia de um sistema de gestão descentra- base no protocolo ad-hoc do PES e a descri-
lizada por operações ção dos mesmos tendo em vista ajudar à defi-
• a análise de problemas e de soluções nição do conteúdo mais preciso das propos-
• aspectos da análise de viabilidade e do de- tas de intervenção (operações), vistas como
senho estratégico. macro-unidades de ação que incidem sobre os
É inerente a um sistema de gestão descen- nós críticos; a definição por operação da rela-
tralizada a definição de objetivos a partir de ção recursos/produtos/resultados; uma análi-
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se de viabilidade simplificada baseada na moti- do objetivo de discernir os aspectos da cultu-
vação dos atores em relação às operações e na ra que deveriam ser reforçados para enfrentar
definição de quem controla predominantemen- problemas correlatos. A relação problemas-
te os recursos envolvidos nas operações; e, fi- cultura, como definição desafiadora perma-
nalmente, a necessidade de relacionar generi- nente, apresenta a cultura como condição de
camente estratégias de viabilização e construir viabilidade das formas de enfrentamento dos
indicadores de acompanhamento do plano. problemas. O autor propõe uma grade de aná-
A adaptação e simplificação do PES tem lise cultural, com categorias de informação
ajudado a evitar uma centralização obsessiva marcantes e formas de estabelecimento de hi-
em questões metodológicas reforçando a idéia póteses culturais. O caráter participativo e sis-
de que o método é um simples meio a serviço temático da pesquisa cultural colabora para a
de sujeitos. possibilidade de realização de um sentido pro-
Alguns problemas ou deficiências do PES fundo inerente a essa análise, qual seja o de
já foram apontadas por nós em alguns traba- ajudar a desvendar representações sociais com-
lhos: partilhadas, o qual reforça núcleos de colabo-
• a inexistência de uma reflexão mais apro- ração e agregação institucionais. A cultura, en-
fundada sobre cultura enquanto componente quanto um conjunto de tradições e pré-inter-
da viabilidade de uma intervenção planejada pretações de situações, tem um papel deter-
(Artmann, 1993, 1997a; Rivera, 1995, 1996a); minante na organização e sua abordagem é
• a necessidade de um desenvolvimento es- bastante interessante para a compreensão do
pecífico da tecnologia de negociação coope- mundo organizacional. Contudo, baseados em
rativa (Rivera, 1998b); Habermas (1987), entendemos que as tradi-
• uma determinada visão da liderança que ções culturais, ainda que condionem forte-
destaca a necessidade de um estado maior mente o funcionamento das organizações e a
constituído pelo desenvolvimento de superes- ação dos atores, podem ser questionadas a par-
truturas de gestão, em detrimento do aperfei- tir do exercício de um discurso crítico. Esta
çoamento de habilidades da liderança centra- questão encontra-se abordada no texto de Art-
das na capacidade da mediação das relações mann (1997a).
interpessoais (Rivera, 1996a, 1998a); O PES distingue a negociação (conflitiva,
• a questão da validade do método para o mista e cooperativa) como um meio estraté-
delineamento ou precisão de uma visão com- gico possível. A indicação da necessidade de
partilhada sobre a missão institucional (Art- um tal tipo de estratégia não é suficiente se
mann et al., 1997); não for acompanhada de uma reflexão mais
• uma construção ainda muito simplificada aprofundada do conteúdo específico da nego-
da prospectiva, onde predomina uma relação ciação. A Escola de Negociação de Harvard,
excessivamente determinista do contexto so- de Ficher e Ury (1985), enseja uma bom mo-
bre o plano e onde as relações cruzadas entre delo de negociação cooperativa, do tipo ga-
as variáveis-chave do cenário não são devida- nhar-ganhar, que se aproxima de um modelo
mente registradas ou formalizadas; (Rivera, argumentativo. Aspectos marcantes deste en-
1998 c); foque são:
• a possibilidade de construção de um proje- • a necessidade de separar a negociação da
to coletivo a partir da multiplicidade de racio- substância do problema do relacionamento
nalidades presentes em organizações de saú- intersubjetivo, que requer um investimento
de; particular;
• dificuldades inerentes à própria comple- • a necessidade de negociar a partir dos inte-
xidade do método. resses, dos pressupostos ou motivações das po-
Estas áreas definem desafios metodológi- sições, e não das posições mesmas, procuran-
cos importantes. do discernir atrás de posições aparentemente
A questão da cultura nos leva a M. Théve- opostas, interesses comuns que podem ser ex-
net (1986, 1993), autor francês que destaca a plorados em termos de faixas de acordo, ou
necessidade de uma análise participativa da interesses distintos, porém não conflitantes,
cultura que colabore para o discernimento de que podem ser harmonizados;
aspectos fortes da cultura que podem ser fun- • a idéia de que a negociação é um processo
cionais à mudança. A visão da cultura como ideativo, criativo, interdisciplinar, de geração
recurso se coloca pragmaticamente a serviço de múltiplas opções de ganho mútuo, o qual
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desvirtua a idéia da negociação como um bo- pectiva é possibilitar um diálogo sobre os mo-
lo fixo; delos mentais que embasam as visões de futu-
• a tese de que o fundamental é negociar cri- ro, que cria possibilidades harmonizadoras no
térios de validade universal ou de maior legi- que tange à visão organizacional. Trazer “a
timação capazes de balizar objetivamente a lembrança do futuro” corresponde à tentati-
possibilidade de um acordo. va de reforçar uma construção positiva da vi-
O enfoque de negociação de “Como Che- são que opere como um polo forte da mode-
gar ao Sim”(1985) pode e deve ser explorado lagem do projeto institucional, que se tensio-
como complemento necessário ao planejamen- na criativamente com a experiência dos pro-
to estratégico e ao desenvolvimento das habi- blemas da organização. Há em Senge, basea-
lidades da liderança. do na experiência de seguidores da learning
O paradigma da “organização que apren- organization, uma nova compreensão do pla-
de” de Peter Senge dá uma especial atenção à nejamento enquanto processo de aprendiza-
questão da liderança. Em “O Novo Trabalho gem. O fundamental não seria a elaboração de
do Líder” (Starkey, 1997), o autor se contra- grandes planos estratégicos, mas a difusão ou
põe à visão da liderança forte, carismática, as- incorporação de um raciocínio estratégico pe-
sumindo a liderança como a principal respon- lo corpo organizacional, a ser aplicado no co-
sável pelos processos de aprendizagem coleti- tidiano das decisões sobre opções alternativas.
va. Aprender significa incorporar habilidades Coerente com o pensamento de Mintzberg, a
novas, nunca completamente realizadas, de in- estratégia seria o resultado, não de um proces-
teração e de reflexão. Estas habilidades bási- so superior destacado no tempo e no espaço,
cas, que supõem um questionamento profun- mas de múltiplas interações entre os agentes
do dos modelos mentais, dos pressupostos e organizacionais munidos de habilidades co-
crenças dos participantes organizacionais, po- muns como, por exemplo, de análise de siste-
dem ajudar a consolidar uma visão comparti- mas. Este conceito seria o de estratégia emer-
lhada capaz de tensionar a organização em um gente, que desde a nossa perspectiva valoriza o
sentido renovador e produtivo. Não haveria planejamento tático-operacional ou o momen-
para Senge algo como conteúdos universais e to tático-operacional do planejamento.
específicos da administração, mas o desafio de Uma das perguntas que nos colocamos diz
criar uma liderança disseminada, como pos- respeito à contribuição do PES para o delinea-
sibilidade de mediação reflexiva das relações mento da missão, dos produtos organizacio-
interpessoais e de escuta da subjetividade (ex- nais. Em um trabalho relativamente recente,
pressa por meio do não dito que mediatiza ne- Matus (1994b)) assume que o primeiro desa-
gativamente relações de aprendizagem mal su- fio da organização é a correta delimitação de
cedidas). Parte importante da proposta deste seus produtos e responsáveis. O planejamen-
autor refere-se à necessidade de desenvolvi- to a partir de problemas terminais, colocados
mento de um raciocínio estrutural no que diz pela ambiência externa, pelos usuários da or-
respeito à explicação de problemas, buscan- ganização, poderia ajudar a realizar este deli-
do-se causas essenciais de alto poder de ala- neamento. Vários passos seriam necessários:
vancagem, o qual o aproxima de Matus. Ou- um levantamento exaustivo dos problemas de
tra contribuição refere-se à necessidade de um saúde de uma área de referência; sua prioriza-
desenvolver da técnica de simulação de cená- ção em função de critérios sócio-políticos e
rios como instrumento de aprendizagem. So- técnico-sanitários (epidemiológicos, econô-
bre este este último particular, Senge susten- micos, de vulnerabilidade, etc.); uma explica-
ta que a aprendizagem da experiência é limita- ção adaptada procurando selecionar nós crí-
da, pois a realidade é complexa, sendo difícil ticos nas várias áreas de prestação de serviços
o estabelecimento de relações claras de causa- possíveis, setorial e extra-setorialmente (pro-
efeito entre as decisões que tomamos hoje e moção, prevenção específica, tratamento,
suas consequências futuras, dados seus distan- acompanhamento, reabilitação, etc.) e, final-
ciamentos eventuais no tempo e no espaço. mente, uma distribuição das operações-ações
Este elemento de indeterminação obrigaria a entre as várias unidades de serviços de saúde
tentar aprender do futuro, mediante experiên- da área (em função do grau de complexidade
cias de simulação que essencialmente ajuda- acordado para as mesmas) e as unidades ex-
riam a costurar uma visão de futuro organi- tra-setoriais. Algumas particularidades do se-
zacional. Para o autor o grande mérito da pros- tor teriam que ser respeitadas: critérios espe-
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cíficos de priorização; classificação das opera- pondente à capacidade de atração de clientela
ções/ações em várias formas específicas de cui- e ao interesse do hospital de lhe alocar recursos,
dado/prestação; um planejamento anterior da e a posição competitiva do mesmo, que é fun-
complexidade das unidades operacionais. A ção do grau de controle dos fatores chave de
priorização de determinados problemas não sucesso respectivos. Por meio de um sistema
pode deixar de se acompanhar de um trata- de notação, o valor e a posição concorrencial
mento extensivo aos problemas menos priori- são calculados. A partir desta análise se constrói
tários, ainda que num nível de manutenção que o portafólio de cada especialidade, que corres-
implique na não piora da situação de saúde. A ponde à localização de todos os segmentos den-
necessidade de um atendimento universal em tro de uma grade constituída pelas duas variá-
saúde leva a considerar o aspecto de rede e as- veis ou dimensões anteriores. Este documen-
pectos extrasetoriais dos problemas de saúde. to serve de base para a definição da estratégia,
A maior parte das experiências que temos consistente de três grandes objetivos: segmen-
acompanhado nos mostram uma tendência a to que é necessário expandir; segmento que é
trabalhar no âmbito dos problemas mais in- necessário manter; segmento que é necessário
termediários que afligem uma organização, em desativar, recortar, negociar com a rede. Final-
detrimento da seleção de problemas terminais mente, desenha-se o plano de ação, que impli-
no nível de rede local, embora aqueles impac- ca em geral em atacar os pontos fracos da aná-
tem também os produtos finais. Neste caso, a lise concorrencial e em mexer com aspectos do
seleção de problemas pressuporia uma missão valor, quando possível.
previamente definida, a qual reforça a impor- Este enfoque tem sido aplicado a algumas
tância de pré-requisito da mesma. Às vezes, a situações hospitalares e, embora não tenha-
própria falta de clareza sobre a missão apare- mos tido tempo de avaliar com mais profundi-
ce como problema (Artmann et al., 1997b). dade estas experiências, que são ainda recentes,
Acreditamos, porém, que há no Brasil um capi- detectamos um relativo sucesso no delinea-
tal acumulado no âmbito da definição da ofer- mento da missão. Apesar da linguagem típica
ta a partir de problemas terminais dentro da do planejamento estratégico corporativo, es-
corrente da Vigilância à Saúde, que tem pro- te instrumento ajuda a negociar formas de in-
duzido instrumentos próprios de programa- tegração com a rede. Fundamentada na estra-
ção situacional. Esta abordagem não se chama tégia de diferenciação ou de aprofundamento
de programação situacional impunemente: é das competências distintivas, a análise estra-
bastante extensiva e se apoia em formas de ter- tégica de Cremadez permite transformar a
ritorialização, em formas de estimativa rápida concorrência frontal em colaboração. É, final-
de problemas que esquadrinham minuciosa- mente, um espaço de comunicação que forta-
mente regiões, em mapas de risco epidemioló- lece a autonomia dos centros operadores e que
gico e social, e finalmente, na dinâmica de ex- ajuda a promover mudanças culturais pela di-
plicação de problemas e de desenho de ações. fusão do pensamento estratégico ao nível des-
Esta é, sem dúvida, uma das áreas de pes- ses centros.
quisa avaliativa mais importantes do momen- Um confronto PES/Dèmarche acerca das
to. Pensamos, porém, que a situação é tão ou possibilidades da utilização de ambos no ca-
mais complexa no âmbito do setor hospitalar so da formulação da missão é um tema de in-
envolvendo também o subsetor privado. Este vestigação que estimulamos. Parece-nos que
âmbito está caracterizado, em alguns espaços, os dois enfoques podem contribuir muito mais
por situações de concorrência ou de descoor- do que a Qualidade Total, que para além de
denação (desintegração, duplicidade), onde se seus apelos no sentido das Jornadas de Mis-
disputa clientela ou recursos. Aqui nos pare- são não exibiria enfoques metodológicos tão
ce útil o enfoque de gestão estratégica hospita- estruturados.
lar de Michel Cremadez: La Dèmarche Stratè- A questão da prospectiva tem sido embrio-
gique (1997). nariamente desenvolvida por nós à luz de Go-
O enfoque respectivo supõe inicialmente a det (Rivera, 1998c), com a intenção de preen-
segmentação ou agrupamento de atividades cher lacunas deixadas pelo PES. Do enfoque
homogêneas em nível de cada especialidade. de Godet duas técnicas nos chamam a aten-
Em seguida é realizada a análise estratégica es- ção: a análise estrutural, que é uma simulação
pecífica de cada segmento em função de duas do poder de influência recíproco (duas a duas)
dimensões: o valor de cada segmento, corres- das variáveis inicialmente relacionadas para
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construir o cenário do sistema escolhido, e a de a fazer dele uma corrente normativa com
matriz dos impactos cruzados centrada nas matizes humanitárias. Recentemente evolui, a
principais tendências ou hipóteses de compor- partir de uma leitura menos racionalizadora
tamento das variáveis. A primeira permite re- da obra de Deming, para um discurso que sus-
duzir o número de variáveis, ao selecionar as tenta a alternativa de uma Liderança Comu-
mais importantes (de maior poder de deter- nicativa em contraposição à Administração
minação), e a segunda possibilita analisar em por Objetivos e para a incorporação de ele-
que medida uma hipótese de comportamen- mentos da Administração Estratégica, princi-
to de uma variável influencia as hipóteses de palmente o conceito de fatores chave de suces-
comportamento das outras. Podemos dizer so. Sem um corpo teórico – metodológico pró-
que estes dois instrumentos são de grande va- prio e adaptado aos avanços da época, a QT
lia na construção de cenários. persiste como um remanescente do passado
Alicerçada na consulta a especialistas pa- que se alimenta de todos e pretende ser o gran-
ra reduzir a subjetividade, na análise do jogo de guarda-chuva de todos.
dos atores e em um software baseado em cál- A Reengenharia, vista equivocamente por
culo de probabilidades de cenários, a aborda- adeptos da QT como sua continuação, entra
gem de Godet corresponde ao que se tem de no mercado como uma moda de poucas recei-
mais avançado no campo da prospectiva mais tas, algumas extremamente válidas, porém de
formalizada. efeitos secundários imprevisíveis; a compac-
Não se pode esquecer, porém, que a mes- tação de processos é uma delas. A crítica à frag-
ma abordagem formalizada pode ser traduzi- mentação exagerada do trabalho e a defesa da
da em um enfoque mais qualitativo e simples, criação de equipes de trabalho são fatores que
que resgata as duas técnicas acima menciona- colaboram para uma maior criatividade e di-
das. A simplificação da técnica, posta a servi- versificação, para uma maior inovação. Menos
ço da discussão dos modelos mentais dos par- padronizadora que a QT, a Reengenharia su-
ticipantes da simulação, nos moldes da pro- cumbe pelo peso do autoritarismo, pela pre-
posta de Senge, parece pertinente. tensão de provocar rupturas organizacionais,
pelos motivos ocultos de enxugamento e de
demissão de força de trabalho, secundários à
Panorama dos enfoques tentativa de integração de tarefas e de simpli-
gerenciais no mundo ficação dos múltiplos controles anteriores. No
campo do planejamento, uma leitura produ-
Da multiplicidade de enfoques existentes qua- tiva da Reengenharia, aliada ao enfoque lin-
tro correntes que nos parecem expressivas po- guístico das organizações de Flores (1989) po-
dem ser comentadas sinteticamente: a Gestão de ser verificada em Matus (1994 b) e traz al-
da Qualidade Total (QT), a Reengenharia, o gumas contribuições importantes.
Planejamento Estratégico Corporativo e a O Planejamento Corporativo Americano,
Learning Organization. representado por exemplo por Michael Porter
Sobre a QT tecemos comentários em arti- (1980, 1986) da Escola de Negócios de Har-
go ad-hoc (Rivera, 1996b). Com um discurso vard, mostra um grande dinamismo no âmbi-
estimulante de centralização no cliente e de to das grandes corporações americanas e ja-
reconhecimento das relações de confiança for- ponesas. Apoiada na segmentação estratégica
necedor – cliente como garantia de qualida- das empresas e em um tipo de análise estraté-
de, a QT parece não ter estruturado instru- gica das possibilidades mercadológicas desses
mentos e técnicas que lhe propiciem a supe- segmentos, este enfoque tem-se mostrado útil
rioridade metodológica sobre outras corren- para a definição de estratégias que permitam
tes, principalmente sobre a variedade de en- vantagens comparativas. Esta corrente lança
foques estratégicos. Apesar de contar com ins- mão de vários portafólios de atividades, um
trumentos de utilidade para a detecção e ex- dos quais é o portafólio mercado/posição con-
plicação de problemas (em ambientes partici- correncial, que tem sido adaptado criativa-
pativos), a QT não desenvolveu enfoques pró- mente por Cremadez para uma aplicação em
prios de análise de atores e de prospectiva. Is- hospitais e no setor público. Restam dúvidas
to, somado a toda uma tradição histórica de quanto à aplicação do modelo empresarial,
preocupação estatística com a redução de va- não o adaptado por Cremadez, à lógica do se-
riedade e com a padronização produtiva, ten- tor social.
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Aspectos da Learning Organization já fo- no-espacial, da epidemiologia, do planejamen-
ram comentadas acima em relação à liderança. to estratégico em saúde e da gestão. Nutre um
Apresentado o paradigma na V Disciplina de conceito alternativo à velha saúde pública que
Senge (1998), constitui-se de técnicas e ins- se destaca pela tentativa de criar horizontali-
trumentos que visam a despertar habilidades dades entre os velhos programas sanitários,
de aprendizagem. A questão seria aprender a através do planejamento a partir de proble-
aprender, através da incorporação de habili- mas, baseado na concepção matusiana, em
dades de reflexão, de indagação, de argumen- contraposição ao enfoque por programas.
tação, de colocação autêntica. Estas capacida- Facilitador de uma visão mais sócio-am-
des dizem respeito a cinco disciplinas: a apren- biental do binômio saúde-doença, este enfo-
dizagem em equipe; o trabalho com modelos que abriria caminho para uma perspectiva de
mentais; o domínio de si mesmo; a visão com- intersetorialidade e de promoção em saúde,
partilhada; o pensamento sistêmico. Um as- contribuindo assim para uma recriação dos
pecto crítico desta corrente corresponderia ao modelos assistenciais, a partir de novas práti-
uso proposto por Senge da idéia de arqueti- cas sanitárias. Estas práticas sanitárias se cons-
pos sistêmicos ou de regularidades de com- tituem em conjuntos de processos de traba-
portamento para efeitos de aprendizagem. lho, articulados em operações, que impõem
Com esta tentativa Senge reduz os comporta- uma estratégia de ação sobre os nós críticos
mentos globais possíveis das empresas econô- dos problemas e seus efeitos em um dado ter-
micas a uns poucos modelos cuja capacidade ritório.
de dar conta da diversidade pode ser questio- Duas práticas sanitárias contraditórias coe-
nável. xistem no Distrito Sanitário. A primeira refe-
re-se à Vigilância à Saúde, direcionada para
problemas de enfrentamento contínuo, esco-
O planejamento de saúde no Brasil lhidos pelo alto impacto nas condições de vi-
da dos grupos populacionais das microáreas. A
Mehry fez uma boa classificação do estado da segunda, a Atenção à Demanda, volta-se para
arte em artigo conhecido (1995). a intervenção pontual, ocasional sobre os efei-
Do nosso ponto de vista, os quatro mode- tos dos problemas ao nível individual, auto-
los referidos podem perfeitamente conviver percebidos e é considerada estratégica para a
em um fluxo de muita alimentação. De sua di- legitimidade social do projeto e para a capta-
versidade situacional de pontos de vista é pos- ção de informações para a Vigilância à Saúde
sível apreender aspectos que podem vir a ser que, pretende-se, venha a ser a prática hege-
complementares, ainda que as divergências mônica.
apontem, por vezes, para a construção de dife- Um problema deste enfoque poderia estar
rentes tipos de modelos assistenciais. representado pela ausência de uma proposta
A corrente da Vigilância à Saúde destaca- que dê conta das particularidades do âmbito
se pela busca de operacionalização prática de hospitalar.
conceitos do planejamento situacional dentro A corrente da Programação em Saúde da
do contexto da construção da idéia de distrito USP propõe a construção de um sistema de
sanitário como processo social de mudança das saúde programado em termos de suas ativida-
práticas sanitárias, no sentido da eficiência e des a partir da Epidemiologia Social. Visa a re-
eficácia sociais, eqüidade e democratização. Es- duzir uma lógica de atenção espontaneista, de
te processo manifesta-se no espaço local, on- mercado. Afirma-se em um tipo de constru-
de se estabelecem as relações entre instituições ção micro política de novas práticas assisten-
de saúde, de preferência ancoradas no paradig- ciais, de referenciamento a equipes de saúde
ma da promoção da saúde, sob a regulação de integral (em vários campos do atendimento).
uma autoridade sanitária local e a sociedade Busca promover novas aglutinações dos pro-
ou grupos sociais, com a diversidade de pro- gramas tradicionais em conjuntos mais am-
blemas que se expressam na singularidade da- plos e modernos, privilegiando o componen-
quele território. Este, além de território-solo, te populacional. Os autores identificam uma
constitui-se em território econômico, políti- evolução da programação de uma posição de
co, ideológico, cultural e epidemiológico. “técnica de planejamento” (racionalização eco-
Este enfoque enfeixa um conjunto de téc- nômica do processo de produção em saúde)
nicas de vários campos, do planejamento urba- para um significado de “modelo assistencial
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Rivera, F. J. U. & Artmann, E.

ou modelo operatório das práticas de saúde” conta das relações entre os diversos tipos de
(tecnologia de trabalho), integrando a práti- produtores, tendo nos gerentes locais/regio-
ca médica e a sanitária, apresentando-a como nais uma base fundamental de articulação, on-
um campo de experimentação de novas for- de todos os produtores deveriam estar subme-
mas de trabalho em saúde. Problemático po- tidos ao controle público. A relação da unida-
de ser para esta corrente o grau de subordina- de de saúde com a população é estruturada
ção da velha clínica a uma racionalidade pro- com algumas noções emprestadas da área de
gramada. Talvez seja menos voluntarioso pen- Saúde Mental: vínculo e responsabilidade e
sar em termos de uma tensão permanente en- acolhimento, procurando-se desenvolver uma
tre demanda programada e espontânea, no relação personalizada e humanizada.
contexto da qual procurar-se-ia uma hegemo- Sua crítica às propostas tecnocráticas e
nia relativa da primeira (nos termos da Vigi- prescritivas em planejamento e gestão que
lância à Saúde). Destaca-se ainda a externali- pressupõem uma precedência dos métodos em
dade das questões de viabilidade com relação relação aos sujeitos é por nós partilhada. Se-
ao método. gundo Matus, o método serve, no máximo pa-
Em relação à corrente da Gestão Estraté- ra ajudar a sistematizar o conhecimento da
gica e do Planejamento de Saúde articulada ao realidade e não substituí-lo. Quem planeja é
Modelo Tecno-assistencial em Defesa da Vi- sempre o ator. Para Matus, um ator com co-
da, do LAPA, já comentamos os esforços de- nhecimento do problema e capacidade de ra-
senvolvidos na direção do desenvolvimento de ciocínio estratégico com certeza enfrentará
uma tecnologia leve de planejamento (a partir melhor um problema do que alguém com bai-
do enfoque matusiano e do ZOPP). Sua noção xo conhecimento da realidade e apenas conhe-
de caixa de ferramentas (composição de téc- cimento de método, por melhor que este seja.
nicas, procedimentos e enfoques adaptados do De todo modo, não há como negar a impor-
PES, de Mário Testa, de elementos teóricos da tância de métodos que ajudem a dar conta da
psicanálise e da análise institucional, entre ou- complexidade da tarefa de gerir situações que
tros) dá uma idéia da flexibilidade de aborda- apresentam variáveis não controláveis e que
gem e da diversidade de instrumentos mani- exigem respostas eficazes, criativas e flexíveis.
pulados por esta corrente que experimentou Partilhamos ainda da preocupação com o
em profundidade tanto o planejamento situa- sujeito, e especificamente com a subjetivida-
cional quanto o enfoque de qualidade total. de, o que parece ser um diferencial analítico
Sua riqueza se explica pela acumulação de ex- na proposta do LAPA. Embora não se tenha
periências (de condução e de consultoria/pes- um quadro claro ainda de como a análise ins-
quisa) tanto na rede básica quanto no campo titucional recuperaria a subjetividade dos
hospitalar, ainda que parta inicialmente de agentes em processos de autonomização e de
uma concepção redebasicocêntrica propondo instituição de novas relações de poder capa-
depois, uma inversão na clássica pirâmide pa- zes de democratizar amplamente estruturas
ra um círculo, onde o sistema admitiria várias organizacionais, cumpre registrar, no entan-
portas de entrada, segundo a melhor tecnolo- to, o esforço desenvolvido nesta direção.
gia e oportunidade para cada usuário. Uma A abordagem comunicativa em planeja-
flexibilização dos critérios de hierarquização mento, que tem origens a partir de reflexões
sempre foi defendida pela proposta do LAPA. teóricas sobre experiências com o enfoque do
O território é visto com restrições: é impor- PES e do estabelecimento de um diálogo com
tante definir a área de responsabilidade das a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas,
instituições de saúde, mas o usuário não po- apresenta hoje vários desdobramentos teóri-
de ser aprisionado numa área restrita, pois se co-metodológicos e pragmáticos, alguns ex-
movimenta no sistema em busca da satisfação postos na primeira parte deste texto. Alguns
de suas necessidades. A concepção tradicional destes desdobramentos merecem ser aprofun-
e verticalizada de programas é substituída pe- dados através de linhas de investigação, das
la formulação criativa de equipes locais, orga- quais ressaltamos as seguintes:
nizadas buscando evitar corporativismos e • análise da cultura enquanto componente
monitoradas por avaliações de desempenho de viabilidade de um projeto, objetivando uma
referenciadas por metas vinculadas aos objeti- metodologia de escuta da cultura, o estabele-
vos definidos para os serviços. A proposta de cimento da relação cultura-problemas em face
organização do sistema de saúde visa a dar de uma determinado macroproblema e o de-
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senho de estratégias de utilização da cultura • possibilidades de diálogo entre o planeja-
como recurso da intervenção sobre problemas; mento situacional e os enfoques da adminis-
• desenho metodológico e missão institucio- tração estratégica e do planejamento estraté-
nal, envolvendo uma análise comparativa das gico corporativo, favorecendo uma aborda-
possibilidades do PES e do enfoque de Crema- gem do contexto de mix público/privado;
dez, em vários níveis de atenção em saúde; • o resgate da subjetividade no campo da
• desenvolvimento de habilidades de lide- gestão, em processos de construção coletiva
rança e de negociação, que configuram junto de projetos institucionais, a partir do concei-
com o trabalho cultural o campo do que de- to amplo de razão.
nominamos gestão pela escuta; É importante considerar a interrelação des-
• discussão teórica geral sobre a relação en- tas várias linhas e a preocupação com o desen-
tre a gestão pela escuta e os métodos raciona- volvimento de métodos/enfoques, posturas e
listas de gestão; condutas que aprofundem processos de soli-
• aplicação mais sistemática da prospectiva dariedade e geração de compromissos com-
enquanto recurso crucial dentro do cálculo es- partilhados num permanente aprender a
tratégico; aprender.

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