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Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo
2005; 50(1):18-23
Marsal Sanches 1,2, Ana Paula Marques3, Samanta Ortegosa 3, Andrea Freirias 3,
Ricardo Uchida 2,3, Sérgio Tamai 2,4
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Sanches M, Marques AP, Ortegosa S, Freirias A, Uchida R, Tamai S. O exame do estado mental. Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo 2004;
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trumentos podem às vezes imbuir um falso conceito ma negativista(5), seja ignorando intencionalmente as
de que as funções mentais são passíveis de adequa- perguntas e solicitações do examinador (negativismo
da avaliação de forma puramente objetiva. Finalmen- ativo), seja por se encontrarem alheios e indiferentes
te, não há qualquer tipo de padronização na maneira aos que lhes é solicitado ou perguntado (negativismo
como as diferentes funções psíquicas são agrupadas passivo).
e organizadas para efeito de descrição, sendo que
cada psiquiatra tende a seguir a sistematização ado- Contato
tada no serviço em que obteve sua formação.
O presente artigo descreve uma proposta de pa- No item contato, descrevemos uma impressão
dronização do exame psíquico (Quadro 1), baseada subjetiva do examinador referente à entrevista da-
na literatura especializada, adotada na Divisão de quele paciente. Foi fácil a realização da entrevista?
Psiquiatria Geral de Adultos do Departamento de Foi difícil estabelecer empatia com o mesmo? Quais
Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da San- sentimentos contra-transferenciais foram experimen-
ta Casa de São Paulo. tados pelo examinador? Tais questões devem ser in-
cluídas neste item do exame do estado mental.
Quadro 1
Componentes do exame psíquico Consciência
Apresentação
O termo consciência pode ser usado, em psico-
Atitude
Contato patologia, com vários significados distintos(6). Por um
Consciência lado, enquanto consciência neurológica, diz respeito
Atenção ao grau de vigília de um paciente, ou seja, à nitidez
Orientação das vivências psíquicas (eixo vertical) e à amplitude
Memória desta vigília. Dessa forma, no eixo vertical, a consci-
Senso-percepção ência poderá estar preservada (paciente lúcido, cons-
Pensamento ciente ou vigil) ou rebaixada (paciente sonolento,
Crítica e Noção de Doença obnubilado ou torporoso). O termo “confusão men-
Humor e Afeto
tal” corresponde, em termos genéricos, a qualquer grau
Psicomotricidade
de rebaixamento do nível de consciência, excetuando-
se o coma. No eixo horizontal, encontramos os
O exame do estado mental estreitamentos da consciência, estados crepusculares
habitualmente de natureza epiléptica ou dissociativa.
Apresentação
Atenção
O primeiro item do exame psíquico diz respeito à
aparência física do paciente, mais especificamente à À capacidade de direcionar ou focar a vida men-
maneira como o mesmo se encontra vestido e suas tal em determinados estímulos específicos damos o
condições de higiene. A apresentação poderá, portan- nome de atenção(7). Distinguem-se a atenção volun-
to, estar adequada, descuidada, exagerada, bizarra, tária (tenacidade), isto é, a capacidade de direcionar,
dentre outros adjetivos. É interessante notar que a ca- voluntariamente, a vida mental para um estímulo
racterização da apresentação deverá levar em consi- específico, e a atenção espontânea (vigilância), a ca-
deração, obrigatoriamente, o contexto onde a entre- pacidade não intencional de re-direcionar a vida men-
vista estiver sendo realizada. O fato de um paciente tal para estímulos novos, a qual é determinada pelas
trajar pijamas durante uma entrevista em um hospital características dos estímulos em questão (por exem-
será, provavelmente, considerado adequado, diferen- plo, intensidade dos mesmos). Habitualmente, há
temente do que ocorreria se a mesma entrevista esti- uma certa relação inversa entre as duas formas de
vesse ocorrendo em um consultório particular(4). atenção: se a atenção espontânea está patologicamente
aumentada, a voluntária estará diminuída, e vice-
Atitude versa. Entretanto, alguns estados cursam com dimi-
nuição global de ambas as formas de atenção.
De que maneira o paciente se posta diante do exa-
minador? Esta pergunta será respondida com base Orientação
na descrição de sua atitude. Alguns pacientes adota-
rão atitude ativa e colaborativa, respondendo às per- Chamamos orientação à capacidade de um indi-
guntas adequadamente. Outros, colocar-se-ão de for- víduo de conseguir situar-se tempo-espacialmente
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(em relação ao ambiente) e quanto a si mesmo(7). Di- aceita pelo juízo de realidade como proveniente do
daticamente, divide-se a orientação em autopsíquica meio exterior. Dessa forma, a alucinação corresponde,
(identidade do eu) e alopsíquica (quanto ao mundo a grosso modo, a uma “percepção sem objeto”, po-
externo, subdividida em orientação temporal e ori- dendo ser encontrada na esfera visual (alucinações
entação espacial). visuais), auditiva (alucinações auditivas), olfativa,
táctil (alucinações cenestésicas) ou gustativa. A pre-
Memória sença de alucinações é característica dos quadros
psicóticos. Enquanto alucinações visuais, tal qual as
É a função psíquica responsável pela fixação, ilusões, sinalizam para a existência de alterações or-
armazenamento e evocação dos estímulos e vivên- gânicas, as auditivas são altamente sugestivas de psi-
cias(8). Embora existam diversas classificações e sub- coses não-orgânicas, tais como surtos psicóticos agu-
sistemas de memória, uma das mais adotadas é aque- dos, quadros esquizofrênicos e transtornos de humor
la que leva em consideração o tempo decorrente en- com sintomatologia psicótica.
tre a fixação do estímulo e sua evocação. Com base
neste critério, podemos classificar a memória em ime- Pensamento
diata, recente e remota (Quadro 2).
Na imensa maioria das avaliações, o pensamento
Senso-percepção será avaliado indiretamente, com base no discurso
do paciente. São descritas no exame psíquico três di-
As sensações resultam dos efeitos produzidos por mensões do pensamento: curso, forma e conteúdo(6).
estímulos externos sobre os órgãos dos sentidos en- - curso: é a velocidade do pensamento, ou seja a
quanto as percepções correspondem a fenômenos velocidade com que as idéias se encadeiam umas
psíquicos relacionados ao reconhecimento e signifi- nas outras. O curso pode estar lentificado, acele-
cado subjetivo das sensações. Dessa forma, as altera- rado ou normal.
ções da senso-percepção compreendem dois grupos - forma: aqui, descreve-se a forma como as idéias
de fenômenos(6-8). Por um lado, incluem alterações da se encadeiam umas nas outras. A forma habitual
senso-percepção propriamente ditas, as distorções do pensamento normal é chamada de agregada,
perceptivas. Estas correspondem a distorções no ta- na medida em que as idéias se encadeiam de ma-
manho, cor ou forma dos objetos, bem como a altera- neira natural e harmônica, mudando-se gradual-
ções na percepção de espaço. Tais problemas são co- mente de um tema para outro. As alterações da
muns em transtornos mentais orgânicos e em esta- forma do pensamento estão descritas no Quadro
dos relacionados ao uso de substâncias. 3. Vale lembrar que nem todas são necessariamen-
O outro grupo de alterações compreende as ilu- te patológicas, podendo ser encontradas em in-
sões e alucinações. Embora a rigor estes fenômenos divíduos normais.
não correspondam a alterações senso-perceptivas, Conteúdo: as idéias expressas pelo paciente são
mas sim do juízo de realidade, são tradicionalmente habitualmente agrupadas neste sub-item. Podemos,
descritas entre os distúrbios da senso-percepção. Nas assim, incluir na descrição do conteúdo do pensa-
ilusões, o paciente vivencia uma representação men- mento idéias suicidas, desejo de morte, planos para
tal distorcida de um objeto externo presente. São ba- o futuro, dentre outras. Algumas destas merecem
sicamente restritas á esfera visual, e altamente suges- atenção especial. As idéias prevalentes são conteú-
tivas de afecções cérebro-orgânicas. Já nas alucina- dos que, em função de sua carga afetiva, ocupam a
ções temos, em termos psicopatológicos, a existência maior parte do conteúdo do pensamento do indiví-
de uma representação mental que é erroneamente duo no momento do exame. As idéias delirantes con-
Quadro 2
Tipos de memória e técnicas de avaliação
Tipo de memória Tempo entre a fixação e a evocação Forma de avaliação durante o exame psíquico
Imediata segundos Falar três palavras ou números e pedir que o
paciente os repita imediatamente após ouvi-los
Recente minutos/horas/dias Pedir para que o paciente repita novamente os
números ou palavras, após a aplicação de um
distrator
Remota semanas/meses anos Perguntas sobre fatos ocorridos no passado
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Quadro 3
Alterações da forma do pensamento
sistem em crenças irreais não removíveis mediante a Segundo as conceituações acima, o humor pode
argumentação lógica, podendo ser de temática ser basicamente classificado como depressivo, eufó-
persecutória, mística, grandiosa, de ruína, dentre rico, irritado (disfórico) ou ansioso. O afeto, por sua
outras. As idéias obsessivas são pensamentos de ca- vez, pode ser classificado de várias formas(7):
ráter intrusivo, reconhecidas pelo próprio paciente - segundo a sintonia com o conteúdo do pensamen-
como absurdas, porém de difícil controle. to: congruente ou incongruente (“dissociado”);
- segundo as variações do estado emocional du-
Crítica e noção de doença rante a entrevista: pouco móvel ou lábil;
- segundo a intensidade da expressão emocional:
Aqui, avalia-se o grau de insight do paciente, ou hipermodulante, estável ou plano;
seja, o quanto de compreensão o mesmo apresenta - segundo o grau de sintonia com o ambiente e o
em relação a seu próprio estado mental(4). Embora examinador: ressoante ou pouco ressoante.
muitas vezes usados como sinônimos, há uma dis-
creta diferença entre os dois conceitos acima. Crítica Psicomotricidade
diz respeito à percepção da inadequação ou da gra-
vidade de suas vivências ou de seu comportamento. Os fenômenos motores exibidos pelo paciente
Noção de doença se refere a quanto o paciente admi- durante a entrevista são descritos neste item(7). Do
te que tais vivências ou comportamento anormais são ponto de vista quantitativo, a psicomotricidade osci-
decorrentes de doença mental. la entre dois pólos: o da inibição psicomotora, ou abu-
lia e o da agitação psicomotora. Entre estes dois ex-
Humor e afeto tremos, encontramos uma gama de conceituações. O
paciente poderá, assim, estar inquieto, acelerado,
Estes itens correspondem provavelmente à seção lentificado, apático, dentre outros termos. Quadros
mais difícil e subjetiva do exame do estado mental, haja de extrema agitação psicomotora são também deno-
vista que compreendem a descrição do estado emocio- minados estados de furor, enquanto estados de ex-
nal do indivíduo durante a avaliação. Tal subjetividade trema inibição psicomotora são chamados de esta-
decorre das inúmeras variações encontradas na manei- dos de estupor, onde se observa imobilidade e
ra como as emoções e sentimentos são vivenciados e mutismo. É interessante frisar que quaisquer das al-
expressos, não somente de indivíduo para indivíduo terações acima podem se dever a múltiplas etiologias,
como também de cultura para cultura(9). ou seja resultar de diversos transtornos psiquiátri-
Denomina-se humor como a disposição afetiva cos. O estupor, por exemplo, pode ser encontrado em
fundamental(8). Em outras palavras, poderíamos di- episódios depressivos graves, quadros psicóticos com
zer que o humor corresponderia à emoção predomi- características catatônicas e crises dissociativas.
nante durante a entrevista. O afeto, por outro lado, Além das alterações acima descritas, valem ser
designaria a totalidade das emoções no momento em citadas algumas alterações qualitativas da psico-
questão, bem como sua relação com o conteúdo do motricidade, em relação às quais impera grande con-
pensamento. fusão. Todas se caracterizam por movimentos
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Quadro 4
Alterações qualitativas da psicomotricidade
repetitivos. São elas as estereotipias, os maneirismos diversas funções psíquicas e à própria estruturação
e os tiques (Quadro 4). do exame são encontradas. Dessa forma, algum grau
de subjetividade e variações em sua descrição esta-
Discussão rão inevitavelmente presentes. Por outro lado, não é
possível que o exame psíquico seja pura e simples-
O presente artigo descreve uma proposta de sis- mente substituído por uma escala ou formulário, uti-
tematização do exame do estado mental. Ainda que, lizando critérios diagnósticos de algum dos sistemas
em características gerais, a mesma se assemelhe às de classificação dos transtornos mentais atualmente
incluídas em livros-texto, algumas peculiaridades disponíveis(11,12).
merecem ser destacadas.
Primeiro, os itens “prospecção” e “pragmatis- Conclusão
mo”(7) não foram incluídos na descrição do exame psí-
quico, já que os mesmos estariam contemplados em Ainda que o exame psíquico não seja passível de
outros itens da avaliação psiquiátrica. Segundo, não uniformização, o presente trabalho corresponde a uma
incluímos o item “inteligência”, em razão das diver- tentativa de sistematização do mesmo, de modo a fa-
sas controvérsias envolvidas em sua conceituação e cilitar a descrição e a organização do exame do estado
na dificuldade em enquadrá-la como uma função mental. A presente proposta pode ser útil não apenas
psíquica específica. Ao contrário, a inteligência seria para residentes de psiquiatria como também para es-
mensurada indiretamente por meio da avaliação do tudantes de medicina e médicos não-especialistas.
pensamento. Pela mesma razão, neste artigo não clas-
sificamos os delírios como alterações do juízo(8), mas Referências Bibliográficas
sim do pensamento, mais especificamente do seu con-
teúdo. 1. Jaspers, K.- Psicopatologia geral. 8a ed. Rio de Janeiro, Atheneu,
Adicionalmente, optamos por uma conceituação 2000.
2. Menon, M.A.; Freirias, A.; Sanches, M.; Custódio,O.- Aspectos
específica dos itens “humor e afeto”, não se adotan- Psiquiátricos. In: Sustovich, D.R. Semiologia do idoso para o
do a noção bastante difundida de que o afeto corres- clínico. São Paulo, Servier, 1999. p. 89-94
ponderia aoaspectos emocionais subjetivamente iden- 3. Jorge MR, Custódio O. Utilidade das escalas de avaliação para
tificados pelo examinador, enquanto humor estaria clínicos. In: Gorenstein C, Andrade LHSG, Zuardi AW. Escalas
ligado ao colorido do discurso e outras expressões de avaliação clínica em psiquiatria e psicofarmacologia. São
Paulo: Lemos Editorial; 2000. p. 59-61.
emocionais objetivas(10). Finalmente, optamos por não 4. Dratcu L. O exame do paciente psiquiátrico. In: Almeida OP,
incluir o item “discurso”(4), já que sua descrição ten- Dratcu L, Laranjeira R. Manual de psiquiatria. Rio de Janeiro:
de a se sobrepor à das dimensões do processo do Guanabara Koogan; 1997. p. 5-21.
pensar (curso, forma e conteúdo). 5. Paim I. História da psicopatologia. São Paulo: Editora Pedagó-
Este artigo não visa esgotar o tema ou propor gica Universitária; 1993.
6. Dalgalarrondo P. Psicopatologia e semiologia dos transtornos
controvérsias de natureza teórica. Dada a complexi- mentais. Porto Alegre: Artmed; 2000.
dade do referencial teórico utilizado para embasar a 7. Motta T, Wang YP, del Sant R. Funções psíquicas e sua
descrição do estado mental, compreensões distintas psicopatologia. In: Louza Neto MR, Motta T, Wang YP, Elkis H.
das acima referentes à conceituação e semiologia das Psiquiatria básica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1995. p. 33-52.
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Sanches M, Marques AP, Ortegosa S, Freirias A, Uchida R, Tamai S. O exame do estado mental. Arq Med Hosp Fac Cienc Med Santa Casa São Paulo 2004;
50(1):18-23
8. Paim I. Curso de psicopatologia. 10a ed. São Paulo: Editora Pe- mentais e de comportamento da CID 10. Porto Alegre: Artes
dagógica Universitária;1986 Médicas; 1993.
9. Sanches M, Jorge MR. Transtorno afetivo bipolar: um enfoque 12. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical
transcultural. Rev Bras Psiquiatr 2004; 26 (supl.3):54-6, 2004. manual of mental disorders 4th ed. Washington DC: American
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