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H I S T Ó R I A DA A M É R I C A LATINA

VOLUME [J

A M É R I C A LATINA C O L O N I A L

Leslie Bethell / organizador

Tradução

ÜCSP Mary Amazonas Leite de Barros e Magda Lopes


Reitor Jacques Marcovitch
Vice-reitor Adolpho José Melfi

|ed"sp
EDITORA DA UNIVERSIDADE UE SAO PAULO

Presidente Sergio Miccli Pcssôa de Barcos


Diretor Uditoriol Plínio Manias Filho
Edilorex-axxixteiites Heitor Ferraz
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Rodrigo Lacerda
ÍUNOA^ÁO
AÍ.ÚAJ^ORE
Comissão Editorial Sergio Miceli Pessoa de Barros (Presidente)
Davi Arrigucci Jr.
Oswaldo Paulo Foraliini
Tupfi Goines Corrêa
10

O s Í N D I O S E A FRONTEIRA
N O BRASIL C O L O N I A L

A " F R O N T E I R A " de que tratamos neste capítulo é a européia, o limite da


expansão colonial no Brasil. Cada uma das centenas de tribos americanas nati-
vas tinha também a sua própria fronteira, às vezes fluida e variável, porém na
maioria das vezes definida geograficamente e bem conhecida de todo membro
da tribo. As fronteiras tribais eram os limites entre grupos guerreiros, quase
sempre hostis, ou eram as linhas de demarcação a té onde iam as incursões de
caça ou se realizava o ciclo anual de coleta de cada tribo. A fronteira européia
era uma divisão mais acentuada: o limite da penetração ou da ocupação per-
manente por uma cultura estrangeira. Marcava uma divisão entre povos de
composição racial, étnica, religiosa, política e tecnológica radicalmente dife-
rente. Para os colonos europeus, a fronteira era o término da civilização. Além
dela ficava o desconhecido barbaresco do sertão - a mata ou a terra desabitada
do interior - ou a selva impenetrável, as floresta tropicais amazônicas.
Na prática, a fronteira era menos precisa do que foi possivelmente na per-
cepção dos colonos. Os homens que desbravavam, exploravam ou atacavam a
fronteira eram em geral mamelucos de sangue mestiço de europeu e índio.
Muitos deles falavam o tupi-guarani ou outras línguas indígenas. Estavam
quase sempre acompanhados de índios, que eram seus guias, ajudantes ou
trabalhadores forçados, e adotavam eficientes métodos indígenas de marcha
e de sobrevivência. Mesmo depois que os colonos europeus se estabeleceram
firmemente nas terras tribais conquistadas, a fronteira não era necessaria-
mente o limite entre a civilização e a barbárie. Os índios que estavam além
da fronteira é que eram os mais civilizados. Em muitas formas de expressão
artística e freqüentemente na organização política e na harmonia social, os
índios eram superiores aos homens da fronteira, que de modo geral eram
grosseiros, violentos, ignorantes, gananciosos e incivilizados.
Pouca coisa na fronteira brasileira poderia atrair os europeus. Entre as
tribos do litoral atlântico era total a falta de metais preciosos, e havia pou-
cos rumores ou indícios de alguma civilização adiantada n o interior. Pare-
cia não haver a menor possibilidade de descobrir no "campo" do planalto sante e a montante do rio Amazonas em 1638-1639, mas somente porque se
brasileiro ou nas florestas que se estendiam além dele algum império rico tratava de uma aventura geopolítica com a finalidade de empurrar as fronteiras
comparável ao dos incas, dos astecas ou dos muíscas. Os aventureiros espa- portuguesas rio acima.
nhóis, mais determinados ou mais fantasiosos que seus congêneres portu- Um único produto do interior brasileiro interessava aos europeus: seus ha-
gueses, é que fizeram as primeiras explorações, que logo demonstraram a bitantes nativos. Os rios, planícies e florestas do Brasil estavam cheios de tribos
não-cxistência no coração do Brasil de qualquer riqueza digna de pilha- de homens robustos e de mulheres relativamente atraentes. Esse grande reser-
gem. Sebastiano Caboto, Juan de Ayolas, Domingo Martinez de Irala e vatório humano era um alvo óbvio tanto para os colonos desesperados por
Alvar Núnez Cabeza de Vaca, nas décadas de 1520 e 1530, exploraram a re- mão-de-obra quanto para os missionários ansiosos para difundir seu evange-
gião a montante dos rios Paraguai e Paraná, e Aleixo Garcia, um português lho e aumentar seu número de almas resgatadas.
que trabalhava para os espanhóis, acompanhou um grupo de guaranis atra- No entanto, nos séculos XVI, XVII e nos subseqüentes, a população indíge-
vés do continente e tornou-se o primeiro europeu a enxergar postos avança- na da costa e do interior brasileiros estava ao mesmo tempo sendo aniquilada
dos do império inca. Durante a década de 1530, alguns dos lugar-tenentes de por doenças importadas, contra as quais não tinham nenhuma defesa genética.
Pizarro chefiaram expedições desastrosas a partir dos Andes no intuito de Varíola, sarampo, tuberculose, tifo, disenteria e gripe mataram rapidamente de-
explorar os limites ocidentais da floresta amazônica. Nesses mesmos anos, zenas de milhares de americanos nativos que antes gozavam de perfeita saúde e
espanhóis e alemães famintos de ouro penetraram interior adentro o norte eram fisicamente bastante fortes. É impossível quantificar a extensão desse des-
da América do Sul, subindo o rio Orinoco r u m o às cabeceiras dos afluentes povoamento, mas as crônicas da época revelam muitos indícios. Encontram-se
do noroeste do Amazonas. Já em 1542, Francisco de Orellana descia pela referências iniciais a densas populações e grandes aldeias próximas uma da ou-
primeira vez o Amazonas, partindo de Quito em direção ao oceano Atlânti- tra em todo o Brasil e na Amazônia 2 . As crônicas também estão prenhes de re-
co; e foi outra expedição espanhola, a de Pedro de Ursúa e do famoso re- ferências ao despovoamento e às doenças. Os jesuítas são, como sempre, os
belde Lope de Aguirre, que em 1560 desceu outra vez o mesmo rio, a única nossos melhores informantes: escreveram acuradas descrições dos sintomas
efetuada no século XVI depois da viagem de Orellana. Os sobreviventes das doenças e forneceram dados numéricos sobre o declínio total de índios que
dessas expedições voltaram fracos e depauperados; e a Amazônia adquiriu viviam em suas missões. Quaisquer que tenham sido os dados reais, não pode
uma terrível reputação. Lope de Aguirre resumiu o pensamento da época haver dúvida de que ocorreu uma tragédia demográfica de grande magnitude.
quando escreveu ao rei da Espanha: "Sabe Deus de que m o d o atravessamos
aquela grande massa de água. Aconselho a V. Majestade, grande Rei, a nun-
ca enviar frotas espanholas a esse rio maldito!" 1 . OS SÉCULOS XVI E XVII

Foram feitas algumas tentativas dessultórias de descobrir ouro, prata e pe-


dras preciosas nos espaços sem fim do Brasil central, mas até a última década Foram quatro os principais teatros de expansão da fronteira durante o perío-
do século XVII pouca coisa resultou dessas explorações. Ao mesmo tempo a do anterior às descobertas de ouro no final do século XVII: ( 1 ) o Sul - a área
terra não era uma atração suficiente para seduzir as pessoas a chegar à frontei- desbravada pelos paulistas, que compreendem os atuais estados do Rio Grande
ra. Não havia falta de terra ao longo dos milhares de quilômetros da costa bra- do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e sul de Mato Grosso; (2) o Centro, o
sileira. A idéia de descoberta científica só veio a surgir com o Iluminismo, no sertão de Salvador da Bahia; (3) o interior do Nordeste; (4) a Amazônia, que
fim do período colonial. Pouquíssimos exploradores adquiriram fama ou re- foi explorada a partir do Maranhão e do Pará.
compensa por seus esforços: Pedro Teixeira foi elogiado por sua viagem a J"'

i. Lope dc Aguirre ao Rei Fiüpc [V], e m C.R.MARKHAM (trad.), Expedüions into the vããéT°f*e 2. Para uma discussãu da população do Brasil por volta de 1500, ver IOHN HEMMING, Red Gold: The

Conquest of the Brazilian Indians, L o n d o n , ] 978, apêndice, pp. 4 8 7 - 5 0 1 .


Amazons, Haiduyt Society, 24; London, 1859, XII.
O Sul para aprender português. Identificando-se tão estreitamente com uma tribo
indígena, os paulistas envolveram-se em guerras intertribais: a história inicial
João Ramalho, um português que por volta de 1510 naufragou na costa de de sua vila foi marcada por violenta luta contra os tamoios (aliados dos france-
São Vicente e casou-se com uma das filhas do poderoso cacique Tibiriçá dos ses na Guanabara) e excursões Tietê abaixo contra as tribos de fala jê, na época
goianás tupiniquins, tribo que vivia no planalto de Piratininga, gerou muitos chamadas de bilreiros ("discos de madeira nos lábios") ou coroados (devido a
filhos, os quais, por sua vez, produziram com muitas mulheres índias uma pro- seus cortes de cabelo), que eram presumivelmente precursores dos caingan-
le relativamente grande de mamelucos. Na época da primeira colônia portu- gues atuais e dos ora extintos caiapós do sul.
guesa em São Vicente, em 1532, e da fundação do colégio e redução jesuíta em Foi no início do século XVII que as tribos do Brasil meridional começaram
São Paulo de Piratininga em 1553, os descendentes de Ramalho foram assim a sentir o impacto de duas fronteiras européias distintas: os jesuítas espanhóis
descritos pelo jesuíta Manoel da Nóbrega: "vão para a guerra com os índios, estavam impelindo seus movimentos missionários para o leste, cruzando o rio
suas festas são índias, e vivem como eles, tão nus quanto os próprios índios". Paraná e o alto Uruguai, a partir de suas bases próximas a Asunción, no Para-
Essa mistura racial foi característica de São Paulo, onde um século mais tarde a guai; e os paulistas começavam a realizar suas expedições às florestas em busca
primeira língua que as crianças aprendiam ainda era o tupi e iam para a escola de escravos. Não foi por acaso que os jesuítas tiveram mais êxito com os guara-
nis do Paraguai e com os estreitamente relacionados carijós e tapes do sul do
Brasil do que com qualquer outra tribo sul-americana. Esses povos de fala
guarani eram profundamente espiritualizados e excelentes fazendeiros e vi-
viam em populosas aldeias. Reagiram prontamente aos dois benefícios que os
jesuítas tinham a oferecer: uma existência bem disciplinada, regrada desde o
berço até o túmulo por preceitos religiosos, e uma abundância de alimentos
provenientes de eficientes lavouras e fazendas de gado. Alonso de Barzana, u m
dos primeiros jesuítas do Paraguai, compreendeu o potencial desses guaranis
quando escreveu em 1594:

Toda esta nação está m u i t o inclinada à religião, verdadeira o u falsa [...]. Eles c o n h e c e m t u d o so-

bre a imortalidade da alma e t e m e m muito os angüeras [ d e m ô n i o s ] , que são almas emersas de

corpos m o r t o s que saem aterrorizando as pessoas e lhes fazendo mai. D e d i c a m o maior amor e a

maior obediência aos Padres [jesuítas] se estes lhes dão u m b o m e x e m p l o [...]. Essas tribos sao

grandes agricultores: cultivam e n o r m e s quantidades de alimento, especialmente milho, vários ti-

p o s de mandioca e outros tubérculos, e u m a grande quantidade de peixe'.

Na última década do século XVI e na primeira do século XVII, os missioná-


rios jesuítas espanhóis mudaram-se para uma região que chamavam Guairá -
leste do Paraná e entre seus afluentes Iguaçu e Paranapanema, mais ou menos
a meio caminho entre Asunción e São Paulo, portanto, julgavam os portugue-

3. Alonso de Barzana a Juan Sebastián, Asunción, 8 de setembro de 1594, e m MARCOS IIMÉNEZ DE

LA E S P A D A , Relaciones geográficas de Indias, Madrid, 1965, p. 85.


ses, do seu lado da linha de Tordesilhas. Sua atividade missionária teve êxito, e Em 1602, Nicolau Barreto chefiou 300 brancos e muitos índios - uma grande
logo uma porção de reducciones se encheram de carijós-guaranis convertidos. proporção dos homens adultos de São Paulo - para o norte por centenas de
Por volta de 1594, o jesuíta espanhol Barzana se queixava de que a maioria dos quilômetros até o rio das Velhas e o alto São Francisco: retornaram após dois
conversos originais de sua Companhia no Paraguai haviam morrido de doen- anos de marcha e muitas mortes, trazendo três mil prisioneiros temiminós. To-
ças estrangeiras ou fugido para evitar a perseguição dos colonizadores. Frus- dos os anos, as bandeiras atacavam os carijós e outras tribos localizadas a fácil
trados por essas epidemias e impotentes para evitar o declínio, os jesuítas não alcance de São Paulo.
desistiram de sua proselitização, mas apenas passaram a olhar com avidez para Era inevitável que essas expedições logo se chocassem com os espanhóis
as grandes populações nativas do leste e do nordeste. que a partir de Asunción se dirigiam para o nordeste. Isso ocorreu durante os
Os paulistas olhavam na mesma direção, por motivos menos nobres. Em 60 anos de união das coroas de Espanha e Portugal (1580-1640), quando emer-
1585, em sua primeira referência explícita à escravidão de índios, a câmara de giu grande animosidade entre os súditos da monarquia dual católica da penín-
São Paulo explicou o problema: sula ibérica, devido ao sentimento que povoava a mente de muitos portugue-
ses: o de que seu país estava sendo ocupado pela Espanha. Os espanhóis para-
Esta terra perece e está e m m u i t o risco de se despovoar, mais do que nunca esteve e se despovoa guaios tentaram fundar duas cidades em Guairá: Ciudad Real, na junção dos
cada dia por causa dos moradores e povoadores dela não terem escravaria d o gentio desta terra, rios Piquiri e Paraná, e Villa Rica, n o baixo Ivaí. Entre 1607 e 1612, os irmãos
c o m o tiveram e c o m que sempre se servirão e isto por razão de muitas doenças e enfermidades Preto comandaram expedições partidas de São Paulo, as quais apresaram cen-
[...] de que são mortais nesta capitania, de seis anos a esta parte, mais d e duas mil peças de escra- tenas de índios que trabalhavam para os colonos nessas vilas. Foi nesse m o -
vos c o m as quais esta terra era enobrecida e os moradores se sustentavam honradamente e se fa- mento que os jesuítas abriram sua província missionária de Guairá. Durante
ziam m u i t o lucro... 4 . vinte anos após 1610, os padres jesuítas, sob o comando de Antonio Ruiz de
Montoya, criaram quinze aldeias ou "reduções" nos vales do Paranapanema,
Em 1600, São Paulo era uma pequena vila situada no cume de uma colina, Tibagi e Ivaí. Os índios, querendo fugir à severa opressão dos colonos espa-
com apenas dois mil habitantes brancos. E não obstante isso os paulistas, os ci- nhóis de Ciudad Real e Villa Rica, acorreram em bando para essas reduções.
dadãos dessa vila de fronteira, envolveram-se n u m a série de expedições audacio- A visão das grandes aldeias missionárias, cheias de milhares de dóceis guara-
sas que desbravaram milhares de quilômetros do sul e do centro do Brasil. Es- nis, era tentadora demais para os bandeirantes paulistas. Esses e seus bandos de
sas expedições receberam o nome de bandeiras (devido provavelmente à ban- índios e mamelucos treinados tornaram-se competentes mateiros e rastreadores.
deira que a pequena companhia de tropas carregava), e os rudes sertanejos que Em suas expedições viviam rusticamente, comendo mandioca assada ou qual-
nelas marchavam eram chamados bandeirantes. Embora a esperança desses quer caça ou peixe que seus homens pudessem pegar. Se possível, invadiam al-
bandeirantes fosse encontrar ouro, prata ou pedras preciosas, seu verdadeiro deias indígenas e roubavam suas reservas de alimento. Usavam barbas compridas
propósito era capturar índios. Na década de 1590, Jorge Correia, capitão-mor e calçavam botas de cano alto, casacos de pele ou de couro, armadura de algo-
de São Paulo, e Jerônimo Leitão comandaram expedições escravizadoras con- dão acolchoado e chapéus de aba larga para protegê-los do sol ou das chuvas
tra os carijós ao longo do litoral sul até o Paranaguá, e depois durante seis anos fortes, ou ainda dos insetos e detritos que caíam das árvores das matas tropi-
a jusante do rio Tietê. Os jesuítas espanhóis reclamaram que essas campanhas cais. Além de comida, espadas e armas de fogo, sua bagagem compreendia cor-
do Tietê destruíram 300 aldeias nativas e causaram a morte ou a escravidão de das e correntes para amarrar suas vítimas, e algumas ferramentas de mineração
30 mil pessoas. Outras expedições "desbravaram e penetraram campo adentro para o caso de encontrarem alguma jazida mineral. Um jesuíta ficou surpreen-
na direção norte, até os rios Jeticaí (atualmente chamado Grande) e Paranaíba. dido com o esforço despendido pelos bandeirantes nas expedições de caça aos
índios, as quais duravam às vezes vários anos: partem "sem Deus, sem manti-
4. Acta da Câmara de São Paulo, 1585, e m AFONSO DE ESCRAGNOLLE TAUNAY, História Geral ãas mentos, nus, como os selvagens, e sujeitos a todas as perseguições e misérias do
Bandeiras Paulistas, São Paulo, 1 9 2 4 - 1 9 5 0 , 1 1 vols. Ver vol. 1, p. 156. mundo, se metem os homens duzentas e trezentas léguas pelo sertão dentro,
servindo ao diabo com tanta curiosidade de martírio por resgatar ou furtar pe- Padre estava doutrinando na dita aldeia de San Antonio de sorte que levaram
ças"5. O jesuíta Diego Ferrer admitiu que "esses portugueses fazem e padecem dela, segundo alguns deles mesmos confessam, quatro mil peças [...], e destruí-
sem comparação mais para conseguir os corpos dos índios para seu serviço do ram toda a aldeia queimando muitas casas, roubando a igreja e a casa do padre..."8.
que eu para ganhar suas almas para o céu"6. Para esses facínoras, era infinita- Cristãos devotes como se consideravam, os portugueses tiveram de inventar des-
mente mais fácil arrebanhar os habitantes de uma redução jesuíta que caçar culpas elaboradas para essa violação de um santuário cristão - emergiu uma ne-
tribos hostis, isoladas ou nômades, nas profundezas das florestas. gação de todas as pretensões proselitizadoras para justificar a colonização
espanhola e portuguesa das Américas. Alguns diziam que os catecúmenos que
O primeiro ataque paulista a índios mais retirados de uma redução de
eram levados para a escravidão estavam sendo tirados do seio da igreja; outros
Guairá foi comandado por Manoel Preto em 1616. Esse mesmo bandeirante
argumentavam que seu país estava à beira da ruína sem uma oferta de mão-de-
chefiou outro ataque em 1619, e em 1623-1624 sua bandeira conduziu mais de
obra "livre" e que os índios eram tecnicamente livres. Consta que Raposo Tavares
mil índios cristãos de Guairá para a escravidão em lavouras próximas de São
lançou uma nota patriótica, exclamando: "Viemos para expulsar os senhores de
Paulo. Outros ataques se deram nos anos seguintes. Os jesuítas enviaram furio-
toda essa região. Pois essa terra é nossa e não do rei da Espanha!"9. Sua bandeira
sas queixas ao rei Filipe da Espanha e de Portugal. Verberavam violentamente
prosseguiu e saqueou outra aldeia vazia e invadiu uma florescente missão no Ti-
os "piratas portugueses que segundo parece por suas obras são mais bestas fe-
bagi, capturando toda a sua população de 1500 homens, mulheres e crianças.
ras que homens racionais. [...] é gente desalmada e tanto que matam índios
Dois jesuítas acompanharam a bandeira na marcha de 40 dias de volta a São
como se fossem animais, não perdoando a idade nem o sexo"7. Dizem alguns
Paulo, levando milhares de cativos arrebanhados pelos próprios índios dos
relatos que os bandeirantes matavam bebês ou idosos porque retardavam a
paulistas. Os jesuítas ficaram estarrecidos com a facilidade com que os escravi-
marcha da coluna, e assassinavam os chefes para evitar que instilassem a revol-
zadores subornaram as autoridades da vila com presentes de índios apresados.
ta em seu povo.
"Em seguida, depois de terem cometido tantos atos abomináveis, foram bem
Em 1628, uma enorme bandeira com 69 brancos, 900 mamelucos e mais de
recebidos [...]. Ninguém que não tivesse visto isso com seus próprios olhos po-
dois mil índios deixou São Paulo sob o comando do mais famoso dos bandei-
deria imaginar tal coisa! Toda a vida desses bandidos é entrar e sair do sertão,
rantes, Antônio Raposo Tavares. Os portugueses dessa expedição incluíam dois
trazendo de volta cativos com tanta crueldade, morte e pilhagem; e depois ven-
juízes de São Paulo, dois vereadores, o promotor público, e o filho, o genro e o
dendo-os como se fossem porcos" 10 .
irmão do principal magistrado da cidade. A bandeira marchou para o vale do
Ivaí e acampou do lado de fora da redução de San Antonio. Seguiram-se qua- Depois que Raposo Tavares destruiu e escravizou impunemente uma redu-
tro meses de apreensiva calma, com querelas entre bandeirantes e jesuítas so- ção de jesuítas, as missões do Guairá foram subjugadas. Mais duas aldeias fo-
bre a posse dos vários grupos indígenas. Finalmente, em 29 de janeiro de 1629, ram saqueadas por André Fernandes em 1630, e outra por outro bandeirante
os bandeirantes entraram na missão para capturar u m chefe particular. O en- em 1631. Os padres jesuítas consideraram insustentável sua posição. Reuniram
canto estava rompido: era a primeira vez que portugueses penetravam nas cer- dez mil índios de suas reduções remanescentes do Guairá e embarcaram-nos a
cas de uma redução. Entraram para arrebanhar "toda a demais gente que o jusante do Paraná, num comboio de centenas de canoas. Os colonos espanhóis
tentaram em vão impedir esse êxodo do que consideravam seu fundo de mão-
de-obra. Em 1632, os paulistas atacaram as cidades desses colonos, e Villa Rica
5. lESHiTA ANÔNIMO, " S u m á r i o das A r m a d a s que se F i z e r a m e Guerras q u e se D e r a m n a C o n q u i s t a

d o R i o Paraíba" (c. 1 5 8 7 ] , e m Revisto do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [H/HGB], 3<>


8. IUSTO MANCILLA & SIMON MASStTA, "Relación d e l o s agravios q u e h i c i e r o n a l g u n o s v e c i n o s y
(1): 1 3 - 1 4 , 1873.
m o r a d o r e s d e la Villa d e S. Pablo d e Piratininga..." e m ibid., p. 315.
r>. D i e g o Ferrer, Carta Anua d e 21 de a g o s t o d e 1633, e m JAIME CORTESÃO, Jesuítas e Bandeirantes
i- ANTONIO nuiz DE MONTOYA, Conquista espiritual hecha por los religiosos de h Compañía de Jesús
no Itatim (1596-1760), R i o d e Janeiro, 1952, p. 4 5 .
en ¡as provincias de Paraguay, Uruguay y Tape, M a d r i d , 1639, p. 3 5 .
7. Rui*/ de Monloya a Nicolas Durán, Carta Anua de 1628, e m IAIME CORTESÃO, Jesuítas e
I O . M A N C I I . I - A Í< M A S S E T A , "Relación de l o s agravios", pp. 3 3 5 - 3 3 6 .
Bandeirantes no Guairá (1594-1640), R i o de Janeiro, 1951, pp. 2 6 9 , 270.
e Ciudad Real foram abandonadas para sempre. Os refugiados de Guairá fo- grilhetas para guerrear os pagãos de Patos, que haviam estado em paz duran-
ram reassentados numa região que os jesuítas estavam começando a penetrar. te tantos anos e dos quais alguns eram cristãos"".
Quatro anos antes, duas reduções haviam sido estabelecidas a leste do alto rio No ano seguinte a essa audaciosa viagem até a lagoa, o bandeirante Antô-
Uruguai, na área onde fica o atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul. De- nio Raposo Tavares marchou para o sul com uma poderosa expedição de 150
pois do conflito espiritual com poderosos pajés - e algumas lutas físicas dos ín- brancos e 1 500 tupis. Alcançou o extremo norte das novas reduções jesuítas de
dios recém-convertidos contra os que resistiam a adotar a nova fé - os jesuítas Tape em dezembro de 1636. Dessa vez não houve hesitação ou adiamento. Os
subjugaram milhares de animosos guaranis. Como sempre aconteceu na histó- paulistas atacaram imediatamente, com tambores e trombetas de guerra e ban-
ria brasileira, os missionários, para fortalecer sua conversão, usaram presentes deiras desfraldadas. Também agora os jesuítas estavam menos tímidos. Haviam
de mercadorias de comércio e o fascínio de u m a tecnologia avançada. começado a armazenar armas secretamente e a treinar seus conversos nativos,
de m o d o que os portugueses foram mantidos à distância durante algum tempo
Depois de estabelecerem reduções nos rios Ijuí e Ibicuí, afluentes do Uru-
pelo fogo dos bacamartes. Essa missão foi destruída. Outra grande bandeira
guai, os jesuítas espanhóis dirigiram-se para o leste. Em 1633, atravessaram a
passou os anos de 1637 e 1638 arrebanhando milhares de índios cristãos das
planície, no território dos tapes guaranis, até alcançar o lacuí, u m rio que cor-
novas aldeias jesuíticas de Ibicuí. Finalmente, em 1639, as autoridades espa-
ria diretamente para o Atlântico através da lagoa dos Patos. Estavam próxi-
nholas de Asunción permitiram oficialmente que os jesuítas armassem seus
mos de atingir u m objetivo geopolítico declarado: a criação de u m cinturão
conversos para se defenderem desses ultrajes. Alguns padres jesuítas tinham
contínuo de missões por toda a região central da América d o Sul, desde a ci-
experiência militar dos tempos anteriores a seu ingresso na Companhia, e eles
dade mineira da prata de Potosí n o planalto, cruzando o Chaco e a bacia do
é que supervisionavam a fortificação das reduções restantes e o treinamento de
Paraguai-Paraná, até o oceano Atlântico. Esse m o v i m e n t o dos jesuítas espa-
seus habitantes. O resultado foi a derrota da grande bandeira seguinte, em
nhóis para o leste colocou-os e m conflito com os interesses portugueses nes-
março de 1641. Numa série de batalhas em canoas no Mbororé, afluente do
sa parte da costa atlântica. No início do século XVI, essas costas meridionais
alto Uruguai, e em batalhas regulares nas missões cercadas de paliçadas, os
só haviam sido ocupadas por visitantes espanhóis ocasionais. Situavam-se do
paulistas foram derrotados. A perseguição durou vários dias, por entre as flo-
lado espanhol da linha de Tordesilhas. Mas com o fracasso dos espanhóis em
restas de pinheiros encharcadas de chuva de Santa Catarina e do Paraná, se-
efetuar u m a ocupação permanente, e com a crescente reclamação portuguesa
guindo-se u m a feroz luta corpo a corpo. As vitórias do Mbororé puseram fim à
de que a linha de Tordesilhas estendia-se d o estuário do rio da Prata até a foz
agressão paulista contra as missões paraguaias e afetaram os limites finais entre
d o Amazonas, os portugueses de São Vicente e de São Paulo tornavam-se
as possessões portuguesas e espanholas do sul d o Brasil.
cada vez mais ativos nessa região sulista. Por volta de 1576, u m cacique dos
carijós de Santa Catarina queixava-se de que chegavam barcos de São Vicente Na época da dispersão das missões do Guairá, em 1631, um grupo de jesuí-
duas vezes por ano para negociar escravos. Com a escassez de escravos em tas cruzou o Paraná r u m o ao oeste, para estabelecer uma província missionária
São Paulo e em suas proximidades n o início do século XVII, o tráfico de es- na margem esquerda do rio Paraguai, ao norte de Asunción. Essa nova provín-
cravos moveu-se mais para o sul. Intermediários nativos, chamados mus, apri- cia jesuíta, chamada Itatín, ficava distante do oeste do Paraná e da linha das
sionavam cativos que eram vendidos aos traficantes de escravos portugueses Tordesilhas e estava protegida por centenas de quilômetros de florestas áridas -
e levados dali em navios ou por terra. Em 1635, o governador de São Vicente a grande floresta seca ou "mato grosso", que deu nome ao atual estado brasilei-
autorizou enorme expedição costeira à lagoa dos Patos. N ã o havia agora ro mas logo foi atacada pelos bandeirantes. Os colonos espanhóis conspira-
qualquer pretensão em comerciar escravos: a expedição estava equipada para ram para ajudar os paulistas a entrar nas reduções dos odiados jesuítas; os in-
a guerra, não para o comércio. Um jesuíta português viu a base dos vasores portugueses, depois de destruir as missões, atacaram e demoliram a
escravistas na lagoa, com quinze navios equipados para o alto-mar e muitas
canoas grandes de guerra. Ficou chocado ao ver que as autoridades haviam u.Registro Geral da Câmara Municipal de Sclo Paulo, Arquivo Público Municipal de São Paulo,
1917-, voi. I, p. 500.
autorizado "navios e mais navios cheios de h o m e n s com pólvora, correntes
própria cidade dos colonos espanhóis, Jérez. Em 1632, 1638 e 1647(?) os ban- seja em expedições escravistas seja nas contendas periódicas que ocorriam en-
deirantes fizeram novos ataques a Itatín; e as novas missões também foram tre famílias paulistas. Nas sociedades indígenas, os homens eram tradicional-
acossadas pelos ferozes guerreiros guaicurus e paiaguás, que controlavam as mente responsáveis pela derrubada da mata e pela caça e pesca; mas a
margens e as águas do alto Paraguai. O ataque final ocorreu em 1648, com uma agricultura era trabalho de mulher. Os membros de uma tribo ajudavam um
invasão de Antônio Raposo Tavares no início de uma jornada épica de 12 mil ao outro e muitas vezes compartilhavam o animal que caçavam. A idéia de tra-
quilômetros que o apologista dos bandeirantes, Jaime Cortesão, chamou "a balhar para outra pessoa, quer por recompensa quer por coerção, e a produção
maior bandeira do maior bandeirante". Comandando 60 brancos e relativa- de um excedente além das necessidades imediatas da família de um homem
mente poucos índios, Raposo Tavares marchou ao longo da linha divisória en- eram-lhes absolutamente repugnantes.
tre as bacias do Paraguai e do Amazonas, cruzando o Guaporé e o Chaco, ao Alei portuguesa exigia que os índios que não houvessem sido escravizados
norte, até aos sopés orientais dos Andes, e depois desceu o Mamoré e o Madei- legalmente deviam viver nas "aldeias" das missões. Os jesuítas de São Paulo
ra na primeira descida desse grande rio, e foi até Belém, na foz do Amazonas. tentaram administrar algumas dessas aldeias perto da cidade, mas essas mis-
Quando retornou a São Paulo depois de muitos anos de ausência, sua família sões organizadas, que funcionavam tão bem quando afastadas da sociedade de
mal reconheceu aquele velho homem destroçado. O jesuíta Antônio Vieira de- fronteira, eram inexeqiiíveis quando cercadas por colonos. As aldeias missioná-
plorou a crueldade dos bandeirantes, mas não podia deixar de admirar esse fei- rias tornaram-se paróquias leigas e suas terras eram constantemente invadidas
to de exploração: "Foi de fato uma das [viagens] mais notáveis já feitas nesse pelos colonos e por seu gado. O maior problema era a exigência legal de que os
mundo até o dia de hoje!"' 2 . Mas, em seu início, essa bandeira havia desferido índios de missão trabalhassem durante parte do ano - a quantidade de meses
o golpe final na província jesuíta de Itatín, destruindo uma missão no rio Tare variava com as sucessivas legislações - para colonos vizinhos em troca de "salá-
que limita atualmente o Brasil do Paraguai. Durante esse ataque foi ferido por rios" expressos em pedaços de tecido grosso. O resultado foi que as aldeias esti-
u m tiro e morto u m padre jesuíta, e centenas de convertidos cristãos foram de- veram freqüentemente desprovidas de seus homens. Eram locais sombrios,
volvidos à escravidão. constantemente despovoados apesar dos esforços para voltar a enchê-los com
uma parte dos índios trazidos pelos bandeirantes.
As incursões dos bandeirantes interromperam a expansão dos espanhóis de
Asunción e lançaram, assim, os alicerces das fronteiras sul e oeste do Brasil. As aldeias missionárias eram tema de freqüentes disputas entre os jesuítas e
Mas o grande historiador brasileiro Capistrano de Abreu perguntou: "Com- os cidadãos de São Paulo. A visão que os colonos tinham dos índios das mis-
pensará tais horrores a justificação de que por favor dos bandeirantes perten- sões foi demonstrada numa declaração feita numa reunião pública em 1661:
cem agora ao Brasil as terras devastadas?"13 "Deveria haver ordens para que os pagãos trabalhassem para os cidadãos em
Os engenhos de açúcar das capitanias do Rio de Janeiro e de São Vicente e troca de salário ou pagamento, para servir suas minas e fazer seu trabalho. Isso
as fazendas em torno de São Paulo eram os principais consumidores de mão- resultaria em dízimos para Deus, quintos para o rei e lucro para os cidadãos.
de-obra indígena. Muitas vilas novas, mormente Parnaíba, Sorocaba e Itu, fo- Isso daria [aos índios] e às suas esposas utilidade e as vantagens de se vestirem
ram fundadas no século XVII por bandeirantes com base na mão-de-obra com os proventos do seu trabalho. Isso os afastaria de sua contínua idolatria e
indígena. Os cidadãos proeminentes da própria São Paulo mantinham ' admi- embriaguez [...]"'''. Embora alguns jesuítas resistissem bravamente a tais pres-
nistrações" sobre centenas de índios e vangloriavam-se de seus exércitos parti- sões, outros desejavam abandonar a tarefa inglória de administrar as aldeias
culares compostos de flecheiros nativos. Ao infame e repugnante t r a b a l h o nas porque, nas palavras de Francisco de Morais, "nossa assistência nelas já hoje
lavouras os índios cativos preferiam de longe a ocupação varonil da guerra - não serve mais do que de afronta e descrédito da Companhia [de Jesus [...] e
conduz] às ignomínias e vitupérios que [em razão das aldeias de índios] todos
n . A m ó n i o Vieira ao Provincial do Brasil, Pará, janeiro de 1654, em ALFREDO D O VALE CABRAL

(ed.), Cartas Jesuíticas, Rio de Janeiro, 1931, 3 vols. Ver vol. 1, p. 411. M. D e c l a r a d o de 10 de ¡unho de 1612, Sao Paulo, EM PKDXO JACQUES DE ALMEIDA PAES LEMF,

13. lOAO OAPisTKANO UE ABREU, Capítulos de História Colonial 5.ed„ Brasília, 1963, p. 126. "Noticia histórica da e x p u l s i o d o s Jesuítas do Collègio de S. Paulo", KIHCH. 12: 9, 1849.
padecemos" 15 . Durante a década de 1630, uma torrente de justificados protestos A estagnação das colônias ao longo da costa norte-sul entre o Paraíba e a
por parte dos jesuítas espanhóis levou à condenação papal dos paulistas escravo- Bahia de Todos os Sanlos decorria tanto do sucesso das tribos aimorés quanto
cratas. Os cidadãos de São Paulo foram afrontados. A questão chegou ao ápice da das limitações geográficas. Os aimorés eram uma tribo de fala jè, dotados das
habituais habilidades jês no arco e flecha, na corrida e no rastreamento na
expulsão dos jesuítas do Rio de Janeiro, e depois de São Paulo, em julho de 1640.
mata. Segundo Knivet - que se equivocou talvez nesse ponto - adotaram a prá-
As aldeias missionárias foram confiadas aos cuidados de administradores leigos,
tica tupi de comer seus inimigos; mas disse Knivet que o faziam mais por ne-
que asseguraram seu rápido declínio e expuseram seus habitantes remanescentes
cessidade de comida do que por vingança ritual nas disputas intertribais. Na
a constante abuso. Houve mais protestos contundentes por parte dos colonos e
batalha, os aimorés confundiram os portugueses com o uso de camuflagem,
dos missionários. Mas somente em 1653 os jesuítas retornaram a São Paulo, e
emboscadas, precisão mortal no arco e flecha, e rápida dispersão após um ata-
sob a condição de que compartilhassem a administração das aldeias com leigos.
que. Não aceitaram as batalhas convencionais que tornaram os tupis tão vulne-
Durante sua ausência, o governador Salvador de Sá atestou que as populações
ráveis aos cavalos, às espadas e às armas de fogo européias. Fisicamente fortes,
das quatro principais cidades - Barueri, São Miguel, Pinheiros e Guarulhos - de-
corajosos e implacáveis, os aimorés resistiram astutamente às tentativas de
clinaram quase 90 por cento, baixando de um total de 2 800 para 290.
subjugá-los ou seduzi-los com produtos de comércio. Em 1587, Gabriel Soares
de Sousa se queixava de que "deu nesta terra uma praga de aimorés de feição
que não há aí já mais que seis engenhos, e estes não fazem açúcar, [...]. A capi-
O Centro
tania de Porto Seguro e a dos Ilhéus estão destruídas e quase despovoadas com
o temor destes bárbaros [...] dos quais têm mortos estes alarves [...] de vinte e
Os cidadãos do Rio de Janeiro e das pequenas vilas da longa linha costeira
cinco anos a esta parte que esta praga persegue estas duas capitaniais, mais de
entre aquela cidade e Salvador da Bahia estavam menos preocupados com a
trezentos homens portugueses e de três mil escravos"16. Pero de Magalhães
fronteira do que os rudes sertanejos de São Paulo. As razões eram geográficas e
Gandavo lamentou que os aimorés fossem "tão bravos e de condição tão esqui-
históricas. Em termos geográficos, Rio de Janeiro estava separada do interior
va [que] nunca o puderam amansar, nem submeter a nenhuma servidão como
pelos picos de granito da serra dos Órgãos e da serra da Mantiqueira. Monta-
os outros índios da terra que não recusam como estes a sujeição ao cativeiro"17.
nhas costeiras semelhantes e densas florestas prendiam as colônias de Espírito
No início do século XVII os aimorés foram parcialmente pacificados. O gover-
Santo, Porto Seguro e Ilhéus n u m estreito cinturão de praias. Estavam muito
nador do Brasil, Diogo Botelho, deslocou do Ceará e do Rio Grande do Norte
mais preocupados com o comércio marítimo do que com o desbravamento do
para o Sul centenas de guerreiros tabajaras e potiguares recém-pacificados, e fi-
interior. Rio de Janeiro foi fundado depois de São Vicente e de São Paulo, e seus
cou surpreso quando esses conseguiram algumas vitórias militares contra os
primeiros anos foram gastos em lutas contra os franceses e seus aliados tamoios.
aimorés. Os estragos das doenças e o engodo enganador da sociedade "civiliza-
Somente em 1537 é que Estácio de Sá derrotou os franceses na Guanabara; e em
da" também ajudaram a persuadir essa tribo feroz a interromper sua luta. No
1575 os tamoios de Cabo Frio foram subjugados e obrigados a fugir para o inte-
entanto, apesar desse sucesso, não houve durante todo o período colonial u m
rior. Na última parte do século a atividade escravista foi pequena - na década de
esforço para levar mais para o interior as fronteiras dessas capitanias.
1590 o náufrago inglês Anthony Knivet foi empregado pelo governador do Rio
de Janeiro nessas empresas temerárias no vale do Paraíba - mas nada que se O setor médio da fronteira brasileira era o interior da Bahia, a montante dos
comparasse à escala das bandeiras. Ainda na década de 1630, os letárgicos cida- rios Paraguaçu, Jacuípe e Itapicuru em direção ao grande arco do rio São Fran-
dãos do Rio de Janeiro estavam se mudando para as planícies férteis dos cisco. Tão logo Mem de Sá derrotou as tribos vizinhas do Recôncavo e as lavou-
goitacás, na foz do rio Paraíba, a apenas 200 quilômetros a nordeste da cidade.
16. G A B R I E L SOAKES D E S O U S A , Tratado Descriptiiv do Brasil em 1587, São Paulo, 1958, p. 57.

17.FEHO DE MAGALHÃES GANUAVO, História da Província Santa Cruz, Rio de Janeiro, 1924, pp.
15. Francisco d e Morais a Simão de Vasconcelos, cm SERAFIM LEITE, S.J., História da Companhia de
143-144.
Jesus no Brasil, I.isboa e Rio de Janeiro, 1938-1950, 10 vols. Ver vol. VI, p. 97.
ras de cana-de-açúcar ocuparam suas terras, tiveram início as expedições ao ser- se bem além da fronteira: esse mesmo jesuíta admitiu que "com tudo isso di-
tão em busca de mão-de-obra índia. A entrada para o interior da Bahia era rela- ziam os índios que não era nada em comparação da mortandade que ia pelo
tivamente fácil: a região estava muitas vezes franqueada ao deslocamento a cava- sertão adentro"' 1 fora do controle dos europeus.
lo. O principal obstáculo às expedições ao sertão ora a falta de água ou de caça. A conseqüência imediata desse desastre demográfico foi uma fome provo-
Na década de 1550, a primeira onda de jesuítas assentou milhares de índios cada pela incapacidade dos índios de cultivar SLia comida. Desesperados, al-
em aldeias missionárias perto de Salvador da Bahia. Manoel da Nóbrega, Luís guns índios venderam a si mesmos ou suas famílias em escravidão em troca de
de Grã, José de Anchieta e outros chefes jesuítas estavam jubilosos com o nú- provisões emergenciais de alimento; em Lisboa, a Mesa da Consciência editou
mero de nativos que aceitavam o batismo. Duas coisas destruíram esses êxitos regulamentos sobre a questão da aceitabilidade moral e legal dessa atitude. Ou-
iniciais. Uma delas foi a morte do primeiro bispo, Pero Fernandes Sardinha, tros índios acompanharam os pajés tribais nas súplicas messiânicas por uma
que em 1556 naufragou no norte da Bahia e foi comido pelos caetés aliados "terra sem males"; desenvolveram curiosas misturas das crenças cristãs e tupis
dos franceses. Numa reação emocional a essa atrocidade, Mem de Sá autorizou e fugiram para o interior, para além da fronteira, à procura de santuários ilusó-
uma guerra aberta aos caetés e a escravização de quaisquer cativos. Os colonos, rios conhecidos pelo nome de "santidades". Durante as décadas que se segui-
desesperados por mão-de-obra, fizeram uso desse edito para escravizar quais- ram às grandes epidemias, muitas campanhas foram feitas para conquistar ou
quer índios que conseguissem apresar. O outro desastre foi uma onda de epi- subjugar essas santidades, e isso ajudou a empurrar a fronteira, subindo os rios
demias no início da década de 1560 que aniquilou as missões. A doença mais que desaguavam na baía de Todos os Santos.
letal parece ter sido uma forma de disenteria hemorrágica. Disse um jesuíta que
O outro fator responsável pela extensão da fronteira ao interior da Bahia
"começou a doença por graves dores do interior das entranhas, que lhes fazia apo-
foi a escassez permanente de mão-de-obra. Como ocorreu em São Paulo, essa
drecer os fígados, e bofes: e logo veio a dar em bexigas, tão podres, e peçonhentas,
escassez se acentuou com as mortes de índios subjugados, com a chegada de
que lhes caíam as carnes a pedaços cheias de bichos malcheirosos"18. Outro autor
colonos europeus ávidos de enriquecimento e pouco dispostos a fazer trabalho
descreveu-a como
braçal e com a explosão dos preços do açúcar. O tráfico de escravos africanos
estava em seus primórdios. Os africanos eram muito mais valorizados que os
era u m a s viruelas o u bexigas 13o asquerosas e h e d i o n d a s que n 5 o havia q u e m as p u d e s s e sofrer índios: quando escreveu seu testamento em 1569, o governador Mem de Sá
c o m a grande h e d i o n d e z q u e delas safa; e por essa causa m o r r i a m m u i t o s ao d e s a m p a r o c o m i d o s avaliou seus escravos africanos entre 13 e 40 escudos cada, enquanto os índios
d o s g u s a n o s q u e das chagas das bexigas n a s c i a m e se e n g e n d r a v a m c m seus c o r p o s e m tanta sem especialidades foram valorizados em apenas um escudo; mas a demanda
a b u n d â n c i a , e tão grandes, que c a u s a v a m grande horror e e s p a n t o a q u e m o s via". da mão-de-obra indígena ainda era grande, fossem eles tecnicamente "livres"
ou escravos. Isso inspirou tentativas de conquistar tribos hostis do interior ou
Quaisquer que possam ter sido as doenças, não há dúvida quanto ao des- seduzir com falsas promessas as localizadas costa abaixo. O governador que su-
povoamento que causaram. Os jesuítas têm registros de trinta mil mortos em cedeu Mem de Sá na Bahia, Luís de Brito de Almeida, não tinha escrúpulos em
suas missões próximas à Bahia. Leonardo do Vale falou de "ao longo da costa lutar com os índios ou em apresar escravos por quaisquer meios-possíveis. Du-
[...] vira tanta destruição que se não podiam enterrar uns aos outros e onde rante seu governo, houve expedições escravistas como a de Antônio Dias Ador-
havia 500 homens de peleja não havia agora 20'"°. Tais epidemias espalharam- no, que foi enviado ao interior nominalmente para procurar minerais, mas
trouxe sete mil tupiguéns, ou a de Luís Álvares Espinha, que marchou de Ilhéus
i R- siMÃo DF VASCONCELOS, Chronica da Companhia de lesus, livro 3, I.isboa, 1663, p. 2 8 5 . para o interior com a finalidade de punir algumas aldeias e "não se contentou
W . A n t ó n i o Blasques a D i e g o M i r ó n , Bahia, 3 i de m a i o d e L564, e m SEKATIM LEITE. Monumento com lha [a guerra a essas aldeias] fazer e cativar todos aqueles aldeãos, senão
Brasiliae (Monumento Histórica Societatis lesu, 7 9 - 8 1 , 8 7 ) , Roma, 1 9 5 6 - 1 9 6 0 , vol. IV, p. 55.

20. Leonardo d o Vale, carta, e m IOÀO FERNANDO DE ALMFMM PRADO, Bahia e as Capitanias do 21-Leonardo d o Vale a G o n ç a l o Vaz d e M e l l o , Bahia, 12 d e m a i o d e 1563, e m LEI TE, Monumenta
Centro do Brasil (1530-1626), São Paulo, 1 9 4 5 - 1 9 5 0 , 3 vols. Ver vol. 1, p. 219. Brasiliae, voi. IV, p. 12.
que passou adiante e desceu infinito gentio"12. Outros escravizadores usaram logo escrevia que "vão os portugueses 250 e 300 léguas buscar este gentio por
métodos mais astutos: impressionavam as tribos com jactâncias de seus pode- estar já mui longe, e como a terra está já despovoada, o mais dele lhes morre
res militares, seduziam-nas com armas e mercadorias de comércio e engana- pelo caminho à fome"". Outro jesuíta espantou-se diante da "coragem e da
vam-nas com histórias da vida maravilhosa que as aguardava sob o domínio impertinência com que [os escravistas] se permitiam entrar na grande selva, na
português. O historiador franciscano Vicente do Salvador descreveu de que modo grande costa, durante dois, três, quatro ou mais anos"2*'. Foi a mesma história
dos bandeirantes, salvo que os homens da Bahia eram desbravadores menos
cum estes e n g a n o s e c o m algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos principais [...] determinados e tinham em seu interior menos índios para molestar. Também
abalavam aldeias inteiras e em chegando à vista d o mar, apartavam os filhos dos pais, os irmãos não tinham a sedução das reduções jesuíticas, cheias de conversos cristãos par-
dos irmãos e ainda às vezes a mulher d o marido, 1—] e todos sc serviam deles e m suas fazendas e cialmente aculturados.
alguns os vendiam, [...] e quem os comprava, pela primeira culpa o u fugida q u e faziam, os ferrava Descobriu-se que o sertão, que fora muito despojado de seus habitantes na-
na face, dizendo q u e lhe custavam seu dinheiro e eram seus cativos-'-1. tivos, era um bom lugar para o gado. Um mapa do final do século XVI mostra-
va um curral de gado na foz do rio Paraguaçu, e durante as décadas seguintes
Quando o Santo Ofício da Inquisição visitou o Brasil em 1591, investigou as fazendas de gado espalharam-se ao longo desse rio e dos paralelos, cruzando
uma série de escravocratas profissionais e seus registros contêm interessantes de- o sertão de Jacobina em direção ao alto São Francisco, e ao longo das duas
talhes de suas atividades. Para ganhar a confiança das tribos que planejavam se- margens desse grande rio. Algumas famílias transformaram-se em poderosos
duzir, esses escravistas faziam coisas que incomodavam a Inquisição - comiam barões do gado, os poderosos do sertão, com suas terras que se estendiam por
carne durante a Quaresma, tinham muitas mulheres nativas, comerciavam armas muitas centenas de quilômetros de campo de vegetação enfezada. Os descen-
com os índios ou fumavam "capim santo" com os pajés. O mais famoso desses dentes de Garcia Dias d'Ávila desenvolveram uma fazenda de gado chamado
escravocratas profissionais foi Domingos Fernandes Nobre, a quem os índios Casa da Torre, e tinham freqüentes rixas com outro poderoso, Antônio Guedes
chamavam de Tomacauna. O governador do Brasil empregou Tomacauna como de Brito, e seus herdeiros. É certo que alguns índios aculturados e mestiços tra-
escravista, e o Santo Ofício da Inquisição foi informado de que, no curso de seu balhavam muito bem com o gado, mas a maioria dos índios não se davam bem
execrável comércio, com essa atividade. Não conseguiam resistir à tentação de caçar essa grande e
fácil presa. Os fazendeiros não toleravam essa matança e estavam determinados
bailava e tangia, e cantava c o m eles [os índios], ao seu m o d o gentílico e andava nu c o m o eles e a expulsar todos os nativos das terras que desejavam para pasto. O resultado
chorava e lamentava propriamente c o m o eles ao seu uso gentílico [...] e se e m p e n o u pelo rosto dessa necessidade de terra para o gado foi uma série de campanhas contra as
c o m almécega e se tingiu com a tinta vermelha de urucu, ao m o d o gentílico e teve sete mulheres tribos índias durante o século XVII. Foi uma guerra semelhante às batalhas do
gentias que lhe deram os gentios e as teve ao m o d o gentílico 21 . oeste norte-americano dois séculos mais tarde. Os oponentes eram índios das
planícies, que em geral falavam a língua jê e eram tão espertos quanto os temi-
As guerras oficiais contra os caetés e outras tribos do baixo São Francisco, dos aimorés. Na década de 1620, os índios aniquilaram todos os colonos da
as epidemias e as atividades dos escravocratas, todos esses fatores se associaram planície de Aporá; moveram-se para expulsar os habitantes da chapada de Ita-
para desnudar o sertão esparsamente povoado do oeste da Bahia. Um jesuíta pororocas e atacar as fazendas de gado do baixo Paraguaçu. Somente depois
das guerras contra os holandeses é que as autoridades da Bahia puderam reto-
22. VICENTE DO SALVADOR. História do Brasil, livro 3, cap. 20, em Anais da Biblioteca Nacional do

Rio de ¡aneira [ABNW], 13: 85, 1885-1886. 25. J E S U Í T A ANÔNIMO, "Informação dos primeiros aldeamentos da Bahia", em iost DF. ANCHIFIA,

23. SALVADOR, História do Brasil, São Paulo/Rio dc Janeiro, 1931, p. 218. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões, ed. A n t ó n i o de Alcântara Machado, Rio

24. H E I T O R FURTADO DE MENDONÇA, Primeira Visitação do Santo Officio ás Partes do Brasil• de Janeiro, 1933, p. 378.

Confissões de Bahta, 1591-1592, Rio de Janeiro, 1935, p. 169. 2(>.|ESUfTA A N Ô N I M O , " S u m á r i o das Armadas", pp. 13-14.
mar a ofensiva. Na década de 1650, foram organizadas expedições militares de Nantes, escreveu um relato de suas experiências entre os cariris entre 1672 e
para destruir as aldeias a montante do rio Maraú e contra a tribo grens dos 1683. Fez o máximo que pôde para proteger seu grupo de nativos contra a
aimorés. Um forte solitário foi instalado nas montanhas de Orobo, a 250 qui- opressão dos poderosos do sertão.
lômetros a oeste da Bahia, e foi celebrada uma aliança incômoda com os No início do século XVII, os colonos evitaram a caatinga, que crescia per-
paiaiás do sertão de Jacobina ao norte dessas montanhas. Os homens da Bahia to do rio São Francisco. Mais tarde, porém, aprenderam a derrubá-la e
tinham pouco estômago para essa luta violenta, perigosa e gratuita. Por isso, os queimá-la e descobriram que continha grandes trechos de bons pastos. O re-
sucessivos governadores apelaram aos paulistas, cujos bandeirantes gozavam sultado foi a criação de enormes fazendas de criação de gado ao longo das
da reputação de ser os melhores combatentes de índios do Brasil. Navios carre- duas margens do rio e de seus afluentes Vaza Barris, Real, Itapicuru e Jacuípe.
gados de paulistas rumaram para o norte e foram enviados ao sertão com or- Por volta de J705, afirmava um autor que várias fazendas de gado se esten-
dens sanguinárias de combater os índios, "derrotando e trucidando-os por to- diam sem interrupção ao longo de 3200 quilômetros do rio. E um governa-
dos os meios e esforços conhecidos da estratégia militar [...] poupando apenas dor-geral escreveu em 1699 que os paulistas tinham, "em alguns anos,
as mulheres e crianças tapuias [não-tupisj, a quem os senhores devem oferecer deixado esta capitania livre de todas as tribos de bárbaros que a oprimiam,
a vida e o cativeiro"27. Pouca coisa se conseguiu durante a década de 1660, pois extinguindo-as com tanta eficiência que de lá até o presente não se saberia da
os paulistas eram freqüentemente enganados pelas tribos "tapuias" e sofreram existência de nenhum pagão que vivesse nas terras que eles conquistaram" 2 ''.
no sertão árido da Bahia. No entanto, o governador-geral Afonso Furtado de Tudo o que restou das tribos jês e tupis originais foram alguns grupos nas
Castro (1670-1675) importou mais paulistas para comandar bandeiras ao Es- aldeias missionárias: pancararus na ilha de Pambu n o São Francisco (alguns
de seus descendentes sobrevivem em Brejo dos Padres, Tacaratu, Pernambu-
pírito Santo (Minas Gerais atual), e especialmente ao sertão do sul da Bahia.
co); ocréns e tupinas e amoipiras de língua tupi acima deles no rio principal,
Segundo declarou, os índios hostis devem "sofrer rigorosa disciplina [...]. So-
e uma mistura de tribos nas aldeias jesuítas de Pilar, Sorobabé, Aracapá, Pon-
mente depois que forem totalmente destruídos, eles se aquietarão [...]. Toda
tal e Pajeú na direção da sua foz; tribos cariris em Caimbé e Massacará (onde
experiência tem demonstrado que esse incômodo público só pode ser detido
mais tarde Garcia d'Ávila manteve parte de seu exército nativo particular),
em suas origens: pela destruição e extinção completa das aldeias dos bárba-
jeremoabos em Vaza Barris e Canabrava (hoje Pombal), e Sahy (atual Jacobi-
ros!"28 Os índios lutaram com denodo. Uma campanha de 1672-1673 trouxe
na) no Itapicuru.
apenas 750 cativos vivos (outros 700 morreram na marcha para o litoral), mas
o chefe da bandeira, o paulista Estêvão Ribeiro Baião Parente, foi autorizado a Perto do final do século XVII, foram encontrados salitre ou nitrato no rio
fundar uma vila com o nome pretensioso de Santo Antônio da Conquista, a hoje chamado Salitre, e os índios das missões, como os paiaiás e sacuriús - e
260 quilômetros da Bahia. logo os recém-pacificados araquéns e tamanquins — foram forçados a trabalhar
Algumas tribos evitaram a extinção mediante a submissão à conquista dos nas perigosas pedreiras de salitre. No início do século XVIII, os selvagens e nô-
brancos. Ingressaram no serviço dos exércitos privados dos barões do gado, ou mades oris das montanhas Cassuca florestadas, perto das cabeceiras do Vaza
aceitaram os missionários cristãos e se instalaram em suas missões. Os francis- Barris, foram pacificados com a ajuda de índios caimbés cristianizados. As
canos mantiveram alguma atividade, e os jesuítas instalaram algumas aldeias autoridades civis indicaram um chefe cariri da aldeia de Pontal para ser gover-
no médio São Francisco; mas os missionários mais famosos do interior da nador dos índios do São Francisco, e ele liderou devidamente seus homens na
Bahia e de Pernambuco foram os capuchinhos franceses. Um deles, frei Martin batalha em defesa dos portugueses contra os outros índios.

2".Francisco Barreto, instruções dadas a Bernardo Bartolomeu Aires, Bahia, t" de fevereiro de 1658,

e m Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro |Díln.\WI. 1928-, v o l .

pp. 71-72. 29.|oão d e Lancastro a Fernando Martins Mascarenhas de Lancastro, Bahia, 11 de n o v e m b r o de

28. Relatório d e Alexandre de Sousa Freire, 4 de março de 1669, e m i M B m v o l . V . p p . 213-214. 1699, e m m a v / y . XXXIX: 8 8 - 8 9 , 1938.
O Nordeste

A fronteira índia no Nordeste - sertão de Pernambuco, da Paraíba, do Rio


Grande do Norte e do Ceará - seguiu um padrão análogo à da Bahia e do vale
do São Francisco. N o século XVI, as tribos tupis do litoral atlântico foram mal-
baratadas e destruídas pelas guerras, pelas doenças importadas e pelo trabalho
forçado nos engenhos de açúcar. A fronteira avançou então u m pouco mais,
atingindo os territórios das tribos "tapuias" mais resilientes que falavam o jê, e
o açúcar cedeu lugar à criação de gado no árido sertão. Os conflitos sobre a ter-
ra entre os fazendeiros de gado e as tribos indígenas continuavam sendo os ha-
bituais. Mas, n u m aspecto, os índios acharam mais fácil entender-se com uma
sociedade baseada na criação de gado: preferiam o trabalho rude, solitário e
móvel dos vaqueiros ao serviço cansativo e inglório nos engenhos de açúcar.
Dois fatores diferenciaram o Nordeste da Bahia no que tange às questões
indígenas. U m deles foi a invasão de outras potências - os franceses e depois os
holandeses - e as tentativas das nações européias rivais de manipular os índios
aliados. O outro foi a existência na região de povos nativos numerosos e coe-
sos: os tabajaras da Paraíba, os potiguares da longa costa leste-oeste do Rio
Grande ao Maranhão e os tarairiús d o chefe Janduí n o interior.
O fato de Pernambuco ter sido a mais próspera das capitanias que os por- se não deu naquelas partes" 3 ". Os franceses, como era habitual, deixaram de
tugueses criaram no Brasil na década de 1540 foi conseqüência da grande ener- fortalecer o u proteger as tribos que aceitaram sua aliança. Assim, os portugue-
gia de seu primeiro donatário, Duarte Coelho, e à adequabilidade da região ao ses conseguiram esmagar a última resistência dos nativos na serra de Baepeba,
cultivo da cana-de-açúcar. Foi resultado igualmente de aliança com os tabaja- quando, em 1590, uma tropa comandada por Cristóvão Cardoso de Barros
ras de fala tupi, que se seguiu a violentas lutas durante os primeiros anos da matou 1500 índios e capturou 4000, e f u n d o u a cidade de São Cristóvão na
colônia e foi selada pelo casamento do cunhado do donatário, Jerônimo de embocadura d o rio Sergipe. _
Albuquerque, com uma filha do cacique tabajara. Jerônimo de Albuquerque Durante a década de 1570 e início dos anos 1580, a grande e belicosa tribo z
gerou com sua esposa índia u m a família tão grande de mamelucos que se tor- dos potiguares logrou repelir os avanços portugueses para o norte de Pernam- o
nou conhecido c o m o "o Adão de Pernambuco". buco. Várias expedições portuguesas foram derrotadas ou desistiram após d
V]
Os portugueses experimentaram mais dificuldade com as tribos do sul e do
um sucesso apenas limitado. Em 1584, foi f u n d a d o em São Filipe, p r ó x i m o à £
noroeste de Pernambuco. Ao sul, entre o cabo de Santo Agostinho e a foz do
foz do rio Paraíba, u m forte português, mas q u a n d o sua guarnição se aventu- g
São Francisco, estavam localizados os caetés, a tribo que matou o bispo Sardi-
rou pelo interior foi derrotada p o r ataques de emboscada dos potiguares. Um 2
nha e deu boa acolhida aos negociantes franceses de madeira. O jesuíta Jácome
jesuíta, queixando-se desses silvícolas, dizia que "esta nação de gentio vitorioso g
Monteiro queixava-se de que os huguenotes franceses haviam construído uma
não há quem a sofra, porque são esforçados de sua pessoa mais que todos os 2
"La Rochelle" no rio Sergipe; mas, entre 1575 e 1590, sucessivas campanhas 31
outros, e tão ousados que não temem morrer" . Um juiz de Recife, chamado *
portuguesas destruíram sem misericórdia as tribos dessa faixa do litoral. Na
campanha de 1575-1576, o próprio governador Luís de Brito de Almeida .10. S O A R E S D E S O U S A , Tratado, pp. 4 3 - 4 4 .
chefiou um ataque a partir da Bahia e "deu tal castigo naquele tempo, como 31. jh:.w(TA ANÔNIMO, "Sumário das Armadas", p. 26.
Martim Leitão, começou a adquirir ascendência sobre essa temível tribo. Em Quando os franceses fizeram sua última tentativa de colonizar o Brasil, com a
expedições realizadas em 1584 e 1585, ele penetrou no coração d o território chegada, em 1612, na ilha do Maranhão, de três navios de colonos sob o coman-
potiguar na Paraíba e conquistou algumas vitórias em violentas lutas corpo a do do Sieur de la Ravardière, os portugueses, que haviam fracassado na instala-
corpo. Por volta de 1590, havia lia Paraíba uma vila portuguesa, com missões ção de povoados na região, enfrentaram rapidamente a ameaça. Os franceses
jesuítas e franciscanas entve seus índios tabajaras. Navios franceses foram tentaram conquistar a adesão dos tupinambás do Maranhão, levando seis caci-
destruídos durante esses anos e alguns homens foram capturados em terra e ques para Paris, onde desfrutaram de pródiga hospitalidade e de um batismo em
executados. Mais ou menos em 1597, os portugueses estavam prontos para pe- Nôtre Darne realizado pelo próprio rei. Esse galanteio não se comparava à ha-
netrar mais para o norte, r u m o ao Rio Grande, onde durante muitos anos os bilidade militar dos portugueses e às alianças com os índios. Os portugueses
potiguares vinham se ligando com franceses por casamento. Sua expedição mobilizaram os recém-pacificados potiguares do Rio Grande sob a chefia de seu
avançou por terra e por mar; a coluna da terra era formada por poderosa tropa cacique Poti ou Camarão, o mameluco de 65 anos de idade, Jerônimo de Albuquer-
de guerreiros tabajaras. Trouxeram também consigo a varíola, que assolou vio- que, à frente de seus parentes tabajaras, e os índios do Ceará sob o comando de
lentamente os tabajaras, e muito mais ainda seus inimigos potiguares. Foi fun- Martim Soares Moreno. Os portugueses navegaram para o noroeste com seus ín-
dado no rio Potengi um forte denominado Reis Magos, que logrou resistir aos dios e se instalaram n u m forte em Guaxenduba, em frente à ilha do Maranhão.
furiosos ataques dos potiguares. No final, celebrou-se uma paz solene na Pa- Ali, em 19 de novembro de 1614, aniquilaram uma tropa de franceses e tupinam-
raíba, em 11 de j u n h o de 1599; u m ataque subseqüente ao forte dos Reis Ma- bás, muito maior e mais bem equipada; e dentro de u m ano os franceses parti-
gos, desfechado por 40 mil potiguares, foi dominado, e por volta de 1601 os ram para sempre.
potiguares finalmente caíram sob domínio dos portugueses. A fronteira d o Nordeste sem dúvida teria avançado n u m padrão análogo ao
A fronteira seguinte ficava a oeste, ao longo da costa do Ceará, na direção do da Bahia. As terras dos potiguares do Rio Grande, que aceitaram o tratado de
Maranhão e da foz do Amazonas. Em 1604, u m combatente de índios chamado paz de 1599, foram rapidamente divididas em fazendas de gado. Durante a pri-
Pedro Coelho de Sousa chefiou uma expedição de tabajaras e potiguares através meira metade d o século XVI, as fazendas de gado se teriam disseminado pelo
do Ceará e atacou com sucesso alguns tupinambás influenciados por franceses árido sertão - que, como o sertão da Bahia, era habitado até então por índios
na serra de Ibiapaba, perto do Maranhão; mas seu desejo de escravizar tanto "tapuias" de fala jê. No entanto, essa expansão foi atrasada u m quarto de sé-
índios amistosos quanto hostis o indispôs com seus aliados nativos; e uma ten- culo pelo advento de outra potência européia; os holandeses. As guerras ho-
tativa de colonizar o Ceará foi encerrada em decorrência de desastrosa seca. landesas (1624-1654) detiveram a expansão para o sertão do Nordeste e inten-
Os missionários jesuítas também não tiveram êxito quando u m deles foi morto sificaram a permanência das tribos indígenas nas áreas disputadas. As duas
por tribos "tapuias" do outro lado de Ibiapaba. Foi u m jovem funcionário portu- potências européias aliciaram tropas nativas para combater ao seu lado, e
guês, Martim Soares Moreno, que conseguiu colonizar o Ceará, onde a guerra e a ambas viam no b o m relacionamento com os índios u m fator importante para
conversão religiosa haviam fracassado. Seu sucesso deveu-se ao fato de ter se tor- assegurar o controle da região. A luta entre os portugueses e os holandeses foi
nado amigo íntimo dos índios, ter adotado muitos de seus costumes e tê-los im- em parte uma guerra de religião, de forma que os missionários católicos e pro-
pressionado como guerreiro. Martim Soares Moreno, que comandava o forte dos testantes redobraram seus esforços para converter as tribos e aliciá-las para a
Reis Magos em Natal, ocupou o Ceará "com sós cinco soldados e u m capelão, luta. Os portugueses tiveram a sorte de ter a seu lado o jovem cacique potiguar
fiado na vizinhança e na amizade, que tem feito com todos os principais dos Poti-Camarão, que se transformou em notável chefe de guerrilha, atormen-
índios de uma e outra parte [do Jaguaribe]" 32 . A fronteira portuguesa n o Brasil tando os holandeses em todas as províncias conquistadas e empregando uma
estava agora perto do Maranhão, aproximando-se do Amazonas e, tal como já tropa de índios que havia d o m i n a d o todas as formas de guerra européia. Seus
ocorrera no sul, estava prestes a cruzar a linha de Tordesilhas no norte do Brasil. homens combinavam as habilidades nativas de rastreamento e experiência nas
matas com proficiência no manejo das armas de fogo européias. De sua parte,
ao lado dos holandeses lutavam guerreiros índios sob o comando de outro
potiguar cie n o m e Pieter Poti. Os dois chefes nativos eram primos distantes e início a derrocada dos holandeses, a maioria dos índios voltaram-se contra eles.
trocaram mensagens, numa tentativa infrutífera de persuadir um ao outro a Muitos holandeses foram massacrados num levante nativo no Maranhão e no
mudar sua lealdade e religião. Ceará, e os sobreviventes concluíram que isso acontecera porque "os índios, em
Entrementes, pastores calvinistas mudaram-se para as poucas aldeias índias vez de receber de nós [holandeses] alívio, ficaram sujeitos a maior cativeiro"3".
remanescentes e tentaram converter os habitantes à fé protestante. Após um Um produto secundário da invasão holandesa foi u m maior conhecimento
pequeno sucesso inicial, descobriram, como os jesuítas antes deles, que os ín- dos índios do Nordeste. Relatos contemporâneos mostram terrível despovoa-
dios não conseguiam entender os pontos mais sutis do cristianismo. Os silvíco- mento. Domingos da Veiga relatara que, em 1627, havia "pouco mais de 300
las reagiram com mais entusiasmo ao grande governador holandês do Brasil, flecheiros divididos entre quatro aldeias [no Rio Grande]. Costumava haver
conde João Maurício de Nassau. Esse príncipe tinha um afeto genuíno pelos ín- uma quantidade tão grande deles que seus números não eram conhecidos" 35 .
dios. A seus superiores escreveu que Doze anos mais tarde, Adriaen van der Drussen relacionou cinco aldeias no
Rio Grande, cinco na Paraíba, cinco em Goiana e quatro em Pernambuco, ha-
a tranqüilidade e a preservação da colônia d o Brasil depende em parte da amizade d o s índios. bitadas por um total de menos de dois mil homens de todas as idades. Johannes
C o m isso em mente, dever-se-ia permitir-lhes q u e desfrutassem de sua liberdade natural |.,.J. De- de Laet deu uma medida do declínio quando relatou que n o Ceará, onde os
v e m ser emitidas ordens para que não sejam ultrajados por seus administradores, contratados por potiguares tinham outrora oito mil guerreiros, havia apenas 105 por volta de
dinheiro, o u forçados a trabalhar n o s e n g e n h o s de açúcar contra a sua vontade. Ao contrário, 1635. Além das epidemias habituais e das mortes em batalha, ocorrera também
deve-se permitir q u e cada u m viva da maneira que entenda e trabalhe o n d e deseje, c o m o os ho- ampla fuga para o interior, na tentativa de evitar a opressão colonial. Segundo
m e n s da nossa nação 3 '.
os dados de Laet, havia nos 1300 quilômetros entre o Ceará e o rio São Fran-
cisco u m a população indígena total de apenas nove mil índios.
Q u a n d o Maurício de Nassau foi chamado de volta à Holanda em 1644, Os holandeses t a m b é m difundiram sua influência no interior, para tentar
uma multidão de índios insistiram em acompanhá-lo até seu navio e pediram fazer que as tribos de fala jê da região lutassem ao seu lado. Seu emissário,
que os levasse consigo para sua pátria. Um ano mais tarde, em abril de 1645, as Jacob Rabe, visitou os tarairiús do interior do rio Grande-Ceará e estabeleceu
autoridades holandesas organizaram uma reunião dos caciques das vinte al- excelentes relações com o velho cacique da tribo, Nhanduí ou Janduí. Rabe e
deias índias que ainda se achavam sob seu controle. O encontro foi bastante seu sucessor, Roulox Baro, deixaram cuidadosas descrições da sociedade e da
pacífico, mas defendeu energicamente que a liberdade dos índios fosse obser- religião dos tarairiús, que revelam terem sido muito semelhantes aos atuais ca-
vada na prática e não apenas na teoria ou na legislação escrita. Esse encontro nelas ou timbiras do Maranhão ou aos craôs do norte de Goiás. Eram índios
foi singular na história brasileira: somente no final do século XX houve u m en- das planícies, grandes corredores, que mantinham sua agilidade mediante fre-
contro comparável de chefes tribais no Brasil ocupado pelos europeus. qüentes corridas entre as duas metades da tribo, onde os participantes corriam
Por todas as suas boas intenções e pelo desejo de conquistar a lealdade dos com troncos de madeira nos ombros. Seus costumes de casamento, religião e
índios, os holandeses revelaram-se u m pouco melhores que os portugueses mesmo sua aparência física e cortes de cabelo tipo gorro eram idênticos aos de
quando se tratava de forçar os índios a trabalhar por pagamento irrisório, ex- seus congêneres modernos de fala jê. Graças à influência de Rabe, os tarairiús e
presso em cortes de tecido de algodão. Tentaram impor sua religião protestante outros "tapuias" uniram-se aos holandeses e se mostraram particularmente fe-
e erradicar as práticas "pagãs" com tanta veemência quanto os portugueses. Mas
também introduziram inconscientemente doenças mortais, como a varíola o u o 34. Gedeon Morris de l o n g e ao Supremo Conselho, Sao Luís do Maranhão, 29 de janeiro de 1643,

sarampo, que acabaram devastando a colônia. Em conseqüência, quando teve RlHGb, 58 (1): 307, 1895.

35. D o m i n g o s da Veiga, descrição d o Rio Grande, 1627, em BARÃO DE STUDART (ed.). Documentos

33. Johan Maurits van Nassau, relatório aos Estados Gerais, 27 d e setembro de 1644, em IOSÊ para a História do Brasil e Especialmente a do Ceará, Fortaleza, 1908-1921, 4 vols. Ver vol. IV,

A N T Ô N I O G O N Ç A L V E S UE MELIX) N E T O . Tempo dos Flamengos, Rio de laneiro, 1 9 4 7 , pp. 2 3 4 - 2 3 5 . p. 35.


rozes na luta contra os colonos portugueses. Em represália, esses foram incle- "Mafrense" ou "Sertão", que empurrou ainda mais a fronteira, até esse sertão
mentes no massacre de quaisquer índios que lutassem do lado dos holandeses, esparsamente habitado. Sebastião da Rocha Pitta, historiador do século XVIII,
mesmo quando se rendiam numa trégua negociada. conta como ele "entrou por aquelas terras, até ali não penetradas dos portu-
Quando os holandeses finalmente abandonaram seus fortes brasileiros em gueses, e só habitadas dos gentios bravos, com os quais teve muitas batalhas,
1654, quatro mil nativos das aldeias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande mar- saindo de uma perigosamente ferido, mas de todas vencedor, matando muitos
charam para o noroeste a fim de se refugiarem no Ceará. Estavam furiosos gentios, e fazendo retirar aos outros para o interior dos sertões"37. Domingos
com o fato de terem sido abandonados pelos holandeses, a quem tinham servi- Afonso morreu deixando aos jesuítas trinta enormes fazendas de gado que se
do com tanta lealdade por tantos anos. Fortificaram-se entre os tabajaras na estendiam por quase 650 quilômetros. Outro pioneiro do Piauí foi Domingos
serra de Ibiapaba e tentaram criar um encrave independente ao qual deram o Jorge Velho, que conquistou territórios a oeste das terras desbravadas por Do-
nome de Cambressive. Chegaram a enviar à Holanda um cacique educado pe- mingos Afonso; durante algum tempo, os dois fazendeiros trabalharam juntos.
los holandeses a fim de solicitar ajuda militar batava, em recompensa pelos Cada um desses exploradores tinha seu exército particular composto de índios
serviços passados e para preservar a religião protestante. Esse chefe argumen- conquistados. Jorge Velho escreveu ao rei, alegando que suas invasões e conquis-
tou, em vão, que, "se essa ajuda faltar, nosso povo deverá inevitavelmente cair tas eram um meio de "domesticar" as tribos para um "conhecimento da vida ci-
nas garras dos cruéis e sanguinários portugueses, que desde a primeira ocupa- vilizada" e de introduzi-las nos mistérios da Igreja católica. Admitiu que poucos
ção do Brasil destruíram tantas centenas de milhares de pessoas dessa nação..."36 missionários estavam envolvidos nesse empreendimento altruísta. Em vez disso,
Com a expulsão dos holandeses, o Brasil nunca mais voltou a ser ameaçado
seriamente pela invasão de uma potência européia rival. Assim, durante a segun- engrossamos nossas tropas, e c o m eles guerreamos a obstinados e renitentes a se reduzirem: e se
da metade do século XVII, os colonos do Nordeste puderam empurrar sua fron- ao depois n o s s e r v i m o s deles para nossas lavouras; n e n h u m a injustiça lhes fazemos; pois tanto é
teira mais para o interior. Essa fronteira era análoga à do sertão da Bahia: vastas para os sustentarmos a cies e a seus filhos c o m o a n ó s e aos nossos: e isto b e m longe de os cativar,
extensões do agreste árido, apropriado tão-somente para a criação de gado. Em antes se lhes faz um irremunerável serviço e m os ensinar a saberem lavrar, plantar, colher, e traba-
seguida às guerras holandesas, os tarairiús do cacique Janduí (que os portugue- lhar para seu sustento 3 8 .
ses passaram a chamar "janduís" em memória do chefe) permaneceram em paz
por alguns anos, até que seus territórios começaram a ser invadidos pelos criado- Apesar deste relato inflamado de sua missão civilizadora, o bispo de Per-
res de gado. Durante as décadas subseqüentes ocorreram esporádicas escaramu- nambuco ficou assustado quando se encontrou com Domingos Jorge Velho,
ças. Em meados da década de 1660, os tarairiús e seus aliados, os paiacus, ataca- descrevendo-o como
ram os tupis domesticados das missões jesuítas da costa do Rio Grande e da
Paraíba. Houve expedições de represália. Mas a explosão que ameaçou por muito u m d o s maiores selvagens c o m q u e t e n h o t o p a d o n e m se diferencia do mais bárbaro
tempo acabou por ocorrer em 1687, quando essas tribos cariris se espalharam tapuia mais que e m dizer que é cristão, e n ã o obstante o haver-sc casado de p o u c o , lhe assistem
pelo Rio Grande, massacrando mais de cem colonos e seus empregados em fazen- sete índias c o n c u b i n a s e daqui se p o d e inferir c o m o procede n o mais; t e n d o sido a sua vida,
das isoladas e matando mais de trinta mil cabeças de gado. Segundo relato do go- [...] até o presente, andar m e t i d o pelos m a t o s à caça d e índios, e de índias, estas para o exercí-
vernador, os colonos retiraram-se para Natal e quase abandonaram a capitania. cio das suas torpezas, e aqueles para os granjeios d o s seus interesses".

Nessa época, alguns violentos criadores de gado atravessaram o médio


São Francisco e marcharam para o norte, r u m o ao vale do Parnaíba, n o atual >- S E B A S T I Ã O D A R O C H A P I T T A , História da América Portuguesa, Lisboa, 1730, vol. VI, p. 385.
estado do Piauí. Um desses pioneiros foi Domingos Afonso, apelidado de 38. D o m i n g o s Jorge Velho ao Rei, Serra da Barriga, Palmares, 15 de julho de 1694, em LKNESTü

I.NMES. As Guerras nos Palmares, São Paulo, 1938, p. 206.


36. Apelo de A n t o n i o Paraupeba, Haia, 6 de agosto d e 1654, em PEDRO SOLTO MAIOR, Fastos Per- w. Bispo de Pernambuco à lunta das Missões, 18 de m a i o de 1697, em EDISON CARNEIRO, O
nambucanos, Rio de Janeiro, 1913, c RtUCh, 76: 191, 1913. Quilo/nbo dos Palmares, São Paulo, 1947, pp. 134-135.
Como ocorre com tanta freqüência na história brasileira, os índios rea- era mais fácil navegar do Maranhão e Pará para Lisboa do que para a Bahia.
giram bem a esse homem, pois, depois de derrotados por ele, estavam pron- Esse isolamento, juntamente com a vegetação e o clima diferentes da bacia
tos a seguir o vitorioso guerreiro. Foram homens como ele, sertanejos rudes amazônica, determinou o desenvolvimento dessa fronteira de maneira distinta
porém brilhantes, que expandiram a fronteira portuguesa no Brasil. do restante do Brasil. Não se esqueça ainda um fator adicional: mesmo pela in-
terpretação do Tratado de Tordesilhas mais favorável aos portugueses, todo o
Foi a Domingos Jorge Velho que as autoridades apelaram quando se viram con-
rio Amazonas se localizava mais no território espanhol que no português.
frontadas pela guerra dos tarairiús em 1687. Ele e seu exército rude realizaram extra-
ordinária marcha através de centenas de quilômetros de sertão. Seus 600 homens es- Com o fracasso da tentativa portuguesa de colonizar o Maranhão em 1635,
gotados enfrentaram os tarairiús ou janduís no Apodi, numa batalha feroz de quatro e com os insucessos das duas expedições portugueses a montante do Amazo-
dias que causou muitas perdas de ambos os lados. Os janduís já haviam destroçado nas, durante o século XVI esse grande rio foi visitado apenas por espanhóis. Foi
uma expedição de 900 homens enviada de Pernambuco contra eles. Houve os habi- feito contato com centenas de suas tribos em 1500, pelo primeiro descobridor,
tuais apelos urgentes aos paulistas, que eram ainda considerados com justiça a única Vicente Yanez Pinzon; dois anos depois, por Américo Vespúcio, que navegava
"gente acostumada a penetrar sertões e tolerar as fomes, sedes e inclemências dos cli- sob o comando de Gonçalo Coelho; em 1531 por Diego de Ordaz, numa tenta-
mas e dos tempos, de que não têm uso algum os infantes, nem os milicianos a que tiva frustrada de povoamento; e mais notavelmente durante a primeira descida
falta aquela disciplina e constância"40. Um comandante paulista, Matias Cardoso de de Francisco de Orellana em 1542. A tentativa mais importante de colonizar o
Almeida, fez uma incrível marcha de 2 400 quilômetros até o norte do rio São Fran- alto Amazonas - na crença errônea de que as terras dos omáguas do Amazo-
cisco e depois chefiou três anos de campanhas contra essas tribos jês. Foi uma guerra nas-Solimões, de fala jê, eram o reino lendário de Eldorado - foi a grande ex-
cruel, em que os comandantes portugueses tinham ordem de matar todos os índios pedição de Pedro de Ursúa, em 1559-1560, que terminou com um motim
adultos que conseguissem apresar, e em que realizaram ataques assassinos de surpre- chefiado pelo traidor basco Lope de Aguirre. Após esse desastre, as tribos do
sa às aldeias nativas. Os janduís, por sua vez, cercaram Natal por duas vezes e reuni- Amazonas não foram molestadas pelos europeus por mais meio século.
ram grandes exércitos de valorosos guerreiros. Como sempre, a maior parte da luta Em janeiro de 1616, dois meses depois de sua expulsão do Maranhão pelos
foi realizada por índios rivais favoráveis ou contrários aos portugueses. No final, os franceses, os portugueses fundaram um forte, 650 quilômetros a oeste, no rio
janduís conseguiram algo que nos últimos séculos foi comum na América do Norte, Pará, que forma a embocadura sul do Amazonas. Esse forte iria transformar-se
mas raro no Brasil: um tratado de paz formal com o rei de Portugal, que reconhecia na cidade de Belém do Pará. Após uma calma inicial, logo se travaram lutas
seu cacique Canindé como governante autônomo e garantia à tribo independência e contra os tupinambás das matas costeiras entre o Pará e o Maranhão. Durante a
grandes extensões de terra dentro dos domínios portugueses. O tratado foi assinado década seguinte guerras selvagens de aniquilamento deixaram essa região quase
em Salvador da Bahia, em 10 de abril de 1692; mas logo foi violado pelas invasões despovoada. Não foram poupados nem mesmo os tupinambás da ilha do Mara-
dos territórios índios por parte dos fazendeiros de gado e pelas agressões dos coman- nhão, cujas aldeias populosas acolheram bem os franceses e se recusaram a unir-se
dantes paulistas que permaneceram nessa parte do Nordeste. a seus compatriotas no combate aos portugueses: em 1621 foram assolados "por
uma doença de bexiga de tão má qualidade, que os tocados dela, que pela maior
parte eram os índios, não passava a sua duração do termo de três dias"41.
O Amazonas
A documentação sobre os primeiros 35 anos de ocupação portuguesa no
Pará e no baixo Amazonas é relativamente pequena: contam-se a história do
Era muito difícil alcançar a foz do Amazonas por navio a partir do nordeste
contemporâneo Vicente do Salvador e a de Bernardo Pereira de Berredo, um
do Brasil: ventos contrários, correntes e grandes cardumes significavam que
pouco posterior, e alguns documentos oficiais e breves relatos dos missionários

40. Arccbispo-governador Frei M a n o e l da Ressurreição a Câmara C o u t i n h o , g o v e r n a d o r de


41. B E R N A R D O P E R E I R A UF. B E R R E D O , Annaes Históricos do Estado do Maranhão, Lisboa, 1749, livro 6,
Pernambuco, e m AFONSO d e tscRAGNOLLfi T A U N A V , História das Bandeiras Paulistas, São Paulo,
p. 211.
1953, 2 v o l s . V e r v o l . I, p. 175.
capuchinhos ou de exploradores como Simão Estácio da Silveira. O quadro rio Paru, uma vasta área correspondente ao atual Amapá. Foi essa a primeira
que emerge dessas fontes é de quase anarquia, uma época sem lei e de muito vez que um rei espanhol de Portugal recompensou um português que estava
sofrimento para os Índios. Os colonos da minúscula vila de Belém conquista- claramente a oeste da linha de Tordesilhas; e a recompensa foi uma autoriza-
ram as tribos ocupantes das margens dos rios que corriam para o norte do ção para que um famoso combatente de índios e escravocrata explorasse a
Pará, do baixo Tocantins e de outros rios entre ele e o Xingu. As lutas contra os seu bel prazer seus milhares de habitantes nativos.
pacajás, que habitavam as margens do rio do mesmo nome, foram particular-
Naquele mesmo ano, os colonos do Pará foram surpreendidos com a che-
mente violentas. Algumas tribos foram atraídas para Belém com promessas de
gada de uma canoa que trazia dois frades espanhóis e alguns soldados, os quais
receber mercadorias. Outros foram apresados em ataques de surpresa por
haviam descido o Amazonas desde Quito. Isso inspirou uma expedição de
flotilhas de canoas cheias de portugueses e de seus aliados índios, equipados
grande importância geopolítica na formação da fronteira brasileira. O gover-
com armas de fogo. Relatos contemporâneos falam da destruição de centenas
nador, Jácome Raimundo de Noronha, estava determinado a reclamar para
de aldeias e do grande despovoamento de todas as costas expostas e rios próxi-
Portugal nada menos que o rio Amazonas. Enviou Pedro Teixeira rio acima
mos de Belém. Os poucos missionários que estavam no Pará na época censura-
com importante expedição de 70 soldados portugueses, com 1100 índios das
ram com veemência a opressão de índios nominalmente livres, os quais eram
missões para remar 47 canoas e caçar e pescar alimentos. O governador deu a
obrigados "a serviços mui pesados, como é fazer tabaco, em que se trabalha
Teixeira ordens expressas de chantar marcos de limite portugueses quando al-
sete e oito meses contínuos, de dia, e de noite" 42 . Recebiam em pagamento
cançasse as terras dos omáguas, a não menos de 2400 quilômetros a oeste da
cortes de tecido grosseiro, fabricados pelos próprios índios; qualquer falha no
linha de Tordesilhas! A expedição foi um sucesso retumbante, graças à resistên-
trabalho era punida por açoites no tronco. Os índios tinham um recurso óbvio
cia dos índios, que remaram rio acima durante meses a fio e acabaram por
nessa terra de florestas. Como escreveu o jesuíta Luís Figueira, "Por isso [essa
conduzir a flotilha até Quito. Os espanhóis enviaram observadores para acom-
opressão] fogem para os matos, despovoando suas aldeias: outros morrem de
panhar a viagem de volta, e um deles, o jesuíta Cristóbal de Acuña, escreveu
desgosto no mesmo serviço sem remédio algum" 45 . Qualquer protesto contra
esplêndido relato de sua descida. Aconselhou veementemente o rei da Espanha
as violações da legislação indigenista era saudado por gritos de indignação dos
a fazer uma ocupação efetiva do Amazonas: mas seu conselho foi ignorado, e
colonos, e a maioria dos primeiros governadores do Maranhão e do Pará esti-
os limites do Brasil atual estão agora bem acima do rio, perto do local onde
veram eles próprios envolvidos nas expedições de apresamento de escravos.
Teixeira colocou seu marco.
O matador mais feroz dos tupinambás do Maranhão foi u m capitão de Acuña observou as grandes e prósperas tribos que ainda existiam no Ama-
nome Bento Maciel Parente. No entanto, esse mesmo combatente de índios zonas. Ficou particularmente impressionado, tanto quanto os homens de Ore-
foi nomeado, em 1626, capitão-geral do Ceará e u m franciscano queixou-se llana haviam ficado um século antes, com os omáguas, que mantinham lagos
de que o tratamento que dava a seus índios era pavoroso até para os padrões estocados com milhares de tartarugas junto a suas aldeias, e com os curuciraris,
contemporâneos: mantinha os homens trabalhando continuamente em seus cuja delicada cerâmica policrômica era comparável à chinesa. Mas, à medida que
engenhos sem pagamento e sem paradas nos domingos ou dias santos, e não a expedição descia o Amazonas, Acuña testemunhava a crescente destruição de
concedia tempo aos índios famintos de prover o sustento de suas famílias. Belém do Pará por escravistas portugueses. Observou horrorizado quando
Esse Bento Maciel Parente recebeu autorização real para fazer expedições a um dos filhos de Bento Maciel arrebanhava homens tapajós sob a mira de ar-
montante do rio Amazonas: e em 1637 foi-lhe concedida a capitania heredi- mas, enquanto permitia que sua própria gangue de índios violentasse suas
tária de Cabo do Norte, que englobava a margem norte do Amazonas até o mulheres e saqueasse sua aldeia. À medida que se aproximava do Pará, teste-
munhava uma crescente penúria e despovoamento, com os povoados ribeiri-
42.LUls FIGUEIRA, " M e m o r i a l s o b r e as Terras e G e n t e s d o M a r a n h ã o e Grão-Pará e Rio das A m a z o - nhos abandonados e sem ninguém para cultivar a terra. O povoamento peque-
nas", Lisboa, 10 de a g o s t o d e 1637, e m ume«, 94 ( 1 4 8 ) : 431, 1923. no e primitivo de Belém era um incubo que foi continuamente destruindo e
43. IDKM, ibid. despojando o Amazonas e todos os seus afluentes acessíveis. O vice-general do
Maranhão, Manoel Teixeira, irmão de Pedro Teixeira, observou que, nas três rio Negro, e logo "desceram" cerca de 200 mil índios para as 54 aldeias das mis-
primeiras décadas após sua chegada ao Amazonas, as poucas centenas de colo- sões. As tribos vieram por vontade própria, impressionadas com a reputaçao
nos do Maranhão e do Pará foram responsávies pelas mortes de quase dois mi- dos jesuítas e com suas promessas de prosperidade material e esclarecimento
lhões de índios por intermédio de "trabalho violento, descobertas extenuantes religioso. As descidas constituíram-se, porém, em logros assassinos. Muitos ín-
e guerras injustas" 44 . dios morreram de doenças estrangeiras durante as viagens até Belém; mas os
Os jesuítas planejaram exercer sua atividade no Pará, mas suas esperanças missionários se consolavam com a certeza de que essas vítimas de sua política
foram frustradas quando um navio que levava seu provincial Luís Figueira e inadequada haviam pelo menos recebido o batismo antes de morrer. Uma vez
onze padres naufragou à vista de Belém em 1643, e os missionários foram cap- instalados em aldeias próximas às cidades portuguesas, os índios se viram ex-
turados e mortos pelos hostis aruanas, índios da ilha de Marajó. Esse fato ocor- postos a constantes solicitações do seu trabalho. Amontoados nessas aldeias,
reu dez anos antes do retorno dos jesuítas; mas eles regressaram em 1653 na eram particularmente vulneráveis à varíola e ao sarampo, epidemias que ocor-
figura eminente de Antônio Vieira. Jesuíta nascido no Brasil, Vieira veio a tor- riam com funesta regularidade. Os jesuítas não conseguiam solucionar a contra-
nar-se confidente e confessor de D. João IV de Portugal. Era famoso pelo bri- dição fundamental que sufocava qualquer desejo da coroa de tratamento huma-
lhantismo de seus sermões numa época em que o púlpito era o meio mais no dos índios. As pequenas colônias européias no Brasil não podiam prosperar
poderoso de comunicação. A Vieira foram confiadas missões diplomáticas se- sem o trabalho dos nativos e não podiam repelir o ataque das tribos hostis ou
cretas na Europa, e sua voz era a mais influente na conformação da política ex- das potências coloniais rivais sem auxiliares nativos dóceis. Os colonos sabiam
terna portuguesa. Foi uma surpresa quando esse homem poderoso de repente que podiam fazer os índios trabalhar para eles à força; e na empobrecida Amazô-
expressou a vontade de fazer u m trabalho de campo missionário, e realmente nia eram pobres demais para se darem ao luxo de possuir escravos africanos. A
embarcou para a estagnação do Amazonas. vida na região dependia do transporte fluvial e da caça e da pesca, da borracha,
Antônio Vieira ficou horrorizado com as condições que encontrou no Ma- das frutas e das resinas extraídas das florestas. Para essas atividades, os índios lo-
ranhão e no Pará. Pregou sermões veementes onde verberava as expedições cais eram superiores aos africanos importados. Os jesuítas perderam a ilusão de
para "resgatar" índios, que eram na verdade expedições escravistas, e conde- poder transformar os índios de suas missões em súditos cristãos leais de Portu-
nou todos os colonos que tinham escravos índios: "Todos os senhores se en- gal. Mas sabiam na prática que os estavam condenando ao trabalho forçado e à
contram em pecado mortal; todos os senhores vivem em estado de excomunhão; rápida destruição por doenças, perversão, má nutrição e destruição social.
e todos os senhores estão indo diretamente para o Inferno!" 45 Mas sua eloqüên- O próprio Vieira realizou duas missões das quais se orgulhava. Em 1659,
cia foi desperdiçada com colonos que não tinham qualquer intenção de desistir empreendeu u m a viagem diplomática às tribos da ilha de Marajó, conhecidas
de nenhum índio e estavam clamando constantemente por mais mão-de-obra coletivamente pelo n o m e de nheengaíba ("línguas incompreensíveis" em
nativa. Após uma viagem ao alto Tocantins, Vieira retornou a Portugal e per- tupi). Essas tribos haviam conseguido resistir a repetidas expedições puniti-
suadiu o vacilante rei a editar nova legislação (1655) contra a escravização dos vas portuguesas, em geral desaparecendo nos labirintos dos igarapés de sua
índios. Foi confiada aos jesuítas a tarefa de trazer os índios do interior por ilha. Quarenta mil deles agora se rendiam, aceitando as garantias de Vieira de
meios pacíficos e instalá-los em aldeias missionárias, sob o seu controle. Segui- que as atitudes dos portugueses haviam mudado com a nova lei de 1655. Os
ram-se cinco anos de eufórica atividade para os jesuítas. Os padres acompa- jesuítas instalaram-se em Marajó, onde suas imensas fazendas de gado pros-
nhavam as expedições a todos os principais influentes do baixo Amazonas e ao peraram, para inveja dos colonos e ocasionalmente d o governo de Lisboa.
Em 1660, Vieira realizou uma difícil viagem à remota serra de Ibiapaba na
44. A N T O N Í O V I E I R A , "Reposta aos capítulos q u e deu... Jorge de Sampaio" 11662, réplica ao cap. 24], fronteira entre o Maranhão e o Ceará. Enfrentou os remanescentes dos índios
Obras Escolhidas, Lisboa, 1951-1954, 12 vols. Ver vol. V, p. 280 do Nordeste, que haviam fugido da região após a partida dos holandeses. To-
45. U m sermão pronunciado por ele na Quaresma de 1653, n o Maranhão, p o d e ser encontrado dos eles, com exceção dos mais velhos, aceitaram converter-se ao catolicismo e
em LEITE, História da Companhia de Jesus, vol. IX, p. 211..
admitiram a presença dos missionários jesuítas.
Foram inúteis os esforços dos jesuítas para conciliar os pedidos de mão- tulação foi a reintrodução da escravidão indígena legalizada. Como aconte-
de-obra indígena por parte dos colonos. Estes, que haviam esperado fazer ceu muitas vezes em todo o período colonial, foi permitida a escravidão dos
fortuna no Amazonas, foram derrotados pelas difíceis condições e pelo cli- índios de corda - índios prisioneiros de guerras intertribais, supostamente
ma. Quando viram suas roças à margem do rio se perderem, desabafaram confinados e prontos para a execução - e de cativos capturados em "guerras
sua frustração sobre os jesuítas, abelhudos piedosos que aparentemente es- justas", que agora podiam ser travadas contra qualquer tribo a respeito da
tavam impedindo seu acesso a mão-de-obra indígena fresca. Sua fúria ex- qual houvesse um "medo certo e infalível" de que pudesse ameaçar o domí-
plodiu em maio de 1661, com um levante em São Luís do Maranhão contra nio português. Essas duas definições estavam sujeitas a flagrante abuso. Vol-
os padres jesuítas. Vieira e a maioria de seus homens foram presos e embar- taram a ser realizadas as expedições anuais e oficiais de escravização (cha-
cados de volta a Portugal. Uma nova lei de 12 de setembro de 1663 instalou mada eufemisticamente de "resgate"), embora fossem acompanhadas por je-
repartidores leigos nas aldeias índias para supervisionar a distribuição de suítas para garantir sua "legalidade" e submetidas a uma Junta das Missões
homens entre as fazendas dos colonos. Isso aconteceu dezessete anos antes formada de missionários e de um juiz real com sede em Belém. Os docu-
de Vieira conseguir influenciar um novo rei, Pedro II, a devolver aos jesuítas mentos da época estão cheios de descrições de atividades escravistas execu-
o total controle das aldeias índias e proibir todas as formas de escravidão in- tadas contra algumas tribos capturadas nas margens do Amazonas ou de
dígena. Durante esses anos, o domínio português causou aos índios um seus afluentes navegáveis. O tráfico somente se extinguiu quando essas regi-
dano irreparável. A lei liberal de I a de abril de 1680 concedeu terra aos índi- ões foram despovoadas, quando as tribos se retiraram para as florestas ou
os, desde que fossem "os seus donos originais e naturais" 4 6 - um conceito subiram os afluentes além das barreiras das cachoeiras, ou quando algumas
importante e uma frase que ainda é citada por ativistas pró-índios no Brasil tribos grandes organizaram sua defesa.
atual. Mas essa lei provocou uma reação quase tão imediata quanto aquela O próprio Antônio Vieira elaborou regras para a conduta diária da vida nas
que se seguiu às leis análogas de 1609 e 1655. Em fevereiro de 1684, os colo- missões jesuítas do Amazonas, o Regimento das Missões (1686), na região cha-
nos do Maranhão se insurgiram num levante chefiado por Manoel Beckman mada na época Maranhão e Grão-Pará. Esses regulamentos foram mais tarde
e Jorge Sampaio e voltaram a expulsar os jesuítas. A revolta foi logo adotados pelo restante do Brasil e, com algumas modificações, permaneceram
esmagada e os cabeças, enforcados; mas os jesuítas ficaram alarmados e de- em vigor até a secularização das questões indígenas por Pombal na década de
cidiram, embora com relutância, a transigir em duas questões importantes. 1750. Em 1693, toda a região foi dividida entre as ordens religiosas para propó-
Obtiveram o total controle temporal e espiritual das aldeias de missão, em- sitos missionários. Os jesuítas restringiram suas próprias atividades à margem
bora concordassem em aumentar para seis meses por ano o tempo que seus sul do Amazonas, na direção da foz do Madeira. A margem norte do Amazonas
tutelados deviam trabalhar para os colonos, e tentaram administrar esses re- até o Paru foi confiada aos franciscanos capuchinhos de Santo Antônio, en-
crutamentos de mão-de-obra com salários a ser acordados com o governa- quanto o Trombetas coube aos franciscanos de Piedade e Conceição, até a foz
dor da colônia. De um modo que não deve surpreender, esse salário foi fixa- do Rio Negro aos mercedários e, mais tarde, o próprio Negro e o Solimões aos
do na quantia irrisória de 2,3 metros de tecido por mês de trabalho, e per- carmelitas. As ordens missionárias passaram a adotar uma política de fundar
maneceu em vigor durante um século, ainda que fosse apenas um quinto da aldeias ao longo das margens dos rios, perto dos hábitats originais das tribos,
soma paga durante a ocupação dos holandeses. O tecido quase não tinha va- em vez de levar os índios rio abaixo, em "descidas" desastrosas, para um reas-
lor como item de troca e não podia comprar as ferramentas ou os anzóis de sentamento perto das cidades dos portugueses. Essa nova política proporcio-
que os índios necessitavam; além disso, era produzido com algodão traba- nou uma esparsa presença portuguesa ao longo dos rios Amazonas, Solimões e
lhado pelos índios e fiado e tecido por suas mulheres. A outra terrível capi- Negro. A existência dessas aldeias (que sob a legislação pombalina se tornariam
aldeias seculares com nomes portugueses) foi reconhecida no Tratado de Ma-
46. Lei de 1» de abril de 1680, c m AGOSTINHO MARQUES PPWJIGÀO NUIHEIRO, A Escravidão no Brasil
dri de 1750, que anulou a linha de Tordesilhas e concedeu a maior parte da ba-
cia amazônica ao Brasil português.
Rio de Janeiro, 1867, vol. II. p. 70.
O SÉCULO XVIII organizaram uma campanha determinada e eficiente para afastar os portu-
gueses de suas florestas e campos. Depois do insucesso de várias expedições
Mais ou menos no final do século X V I I , a fronteira brasileira era estática ou punitivas, as autoridades recorreram a Antônio Pires de Campos, um
estava em recuo, salvo na Amazónia. A criação de gado no interior da Bahia e paulista que se ligara de amizade a alguns inimigos tradicionais dos caiapós,
no Nordeste estava alcançando o limite além do qual não se poderia conduzir os bororos do centro de Mato Grosso. Tomados de pânico, os mineiros de
com lucro os animais aos mercados do litoral. A atividade dos bandeirantes es- Goiás, por intermédio de uma subscrição, contrataram esse sertanejo merce-
tava em decréscimo, causado pelo desaparecimento da maioria dós índios no nário e seus guerreiros bororos para tentar destruir os caiapós. Entre 1742 e
interior do Paraná e em São Paulo e pela compreensão de que os índios cativos 1751, Pires de Campos armou uma série de longas expedições incursoras
eram pouco merecedores do esforço agora necessário para apresá-los. A reação que, não obstante algumas vitórias índias, acabaram por destruir a maioria
dos jesuítas espanhóis a isso foi mudar suas missões paraguaias para o outro das aldeias dos caiapós numa região ampla ao sul e a oeste de Goiás.
lado do rio Uruguai. Entre 1687 e 1706, instalaram sete reduções na margem Esse mesmo Pires de Campos, em 1719, descobrira ouro nas lonjuras do
oriental do Uruguai e em seus afluentes Icamaguá e ijuí. Essas missões prospera- continente sul-americano, no rio Coxipó perto de Cuiabá. A longa viagem por
ram, tanto pelo esforço de seus índios guaranis quanto pelos imensos rebanhos flotilhas de canoas (monções) de São Paulo a Cuiabá expôs os aventureiros des-
de gado selvagem que se haviam desenvolvido nesse meio século posterior à sa corrida do ouro aos ataques de três temíveis grupos indígenas. Após descer o
atividade missionária na região. Tão grande era a sua prosperidade que se Tietê e cruzar o Paraná, as frotas ancoraram na bacia do Paraguai, num lugar
importaram arquitetos italianos para construir grandes igrejas, e os índios tor- chamado Camapuã. Esse lugar foi assolado por emboscadas dos mesmos caia-
naram-se extremamente proficientes na execução da música sacra ou no en- pós do sul que molestavam os mineiros de Goiás. Um pouco mais para o oeste,
talhamento de esculturas barrocas. enquanto as canoas desciam o Aquidauana e remavam Paraguai acima, foram
O novo impulso à expansão da fronteira proveio, porém, das descobertas de atacados por duas das mais temíveis nações de guerreiros índios: os ribeirinhos
ouro, em rápida sucessão, nos territórios das atuais Minas Gerais e do Centro- paiaguás e os guiacurus do Chaco e da serra de Bodoquena. Os paiaguás eram
oeste: Mato Grosso e Goiás. A parte superior da bacia do rio das Velhas, onde se brilhantes canoeiros e valentes guerreiros. Escondiam-se nos charcos e baías do
encontravam as maiores jazidas de ouro próximas a Ouro Preto, já havia sido Pantanal e lançavam-se a toda velocidade, em canoas ligeiras, para emboscar os
desnudada em grande parte de índios pelas incursões bandeirantes. Mas a corri- europeus que passavam. Vinham combatendo os intrusos desde os primeiros
da dos mineiros para a região, em busca de fortuna, destruiu até mesmo muitas exploradores espanhóis do século XVI, e foram eles que, em 1648, mataram
das aldeias remanescentes perto de São Paulo. Além disso, muitas famílias muitos membros da bandeira de Raposo Tavares. Não tinham, pois, qualquer
paulistas usaram seus índios privados para ajudar nas viagens às áreas de mine- ilusão sobre as intenções dos portugueses. Antônio Pires de Campos descreveu
ração e para trabalhar nas próprias minas. Poucos desses retornaram. os devastadores métodos de luta dos paiaguás nos seguintes termos:
As descobertas de ouro em Goiás comprometeram as tribos locais dos goiás
e araés, pois o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, filho do "Anhangüera", As suas armas são flechas e lanças, e m que são destríssimos, q u e fazem vários tiros, enquanto da nos-
lembrou-se de ter visto ornamentos de ouro nesses índios. Após repetidas sa parte se faz um, pelejando e m cano, se lançam a água, levando u m a borda dela debaixo d'água e
buscas, voltou a encontrar a tribo e persuadiu seus membros a revelar onde com o fundo fazem rodela para repararem as balas, e no m e s m o instante que parece coisa invisível,
haviam obtido o ouro que exibiam. O Anhangüera moço trouxe de São Paulo tornam a endireitar a canoa, e a fazer mais tiros e se acham grande resistência, e sentem pouco parti-
um grande contingente de carijós para trabalhar nas novas jazidas; mas o d o n o m e s m o instante alagam as suas canoas, e desaparecem por baixo d'água, e antes de passar mui-
impacto da subseqüente corrida do ouro recaiu sobre os goiás, que foram to tempo as tornam a desalagar, e fogem navegando de tal velocidade que parece levam asas 4 '.
forçados a trabalhar com os mineiros e depressa se extinguiram. A longa tri-
lha que levava de São Paulo ao campo mineiro de Sant'Anna (Vila Boa de •Í7.ANTONIO PIRES D E CAMPOS. Breve noticia... do gentio bárbaro que há na derrota... do Cuyabá,
Goiás) estava exposta aos ataques de grupos de caiapós do sul, de fala jê, que RIHCB, 25: 4 4 0 , 1862.
Um comandante paulista, Manoel Álvares de Morais Navarro, massacrou em
As vitórias dos paiaguás incluíram a destruição, em 1725, de uma flotilha
1699 uma aldeia de pacíficos paiacus durante uma reunião de
inteira de 200 pessoas em vinte canoas; a destruição, em 1726, da maior parte
parlamentação; os primitivos tremembés, uma das poucas tribos sobreviven-
da flotilha; e a captura, em 1730, de 900 quilos de ouro e a aniquilação da maior
tes da costa do Atlântico, foram aniquilados por uma expedição punitiva do
parte de sua escolta de 400 brancos, negros e índios. Os portugueses responde-
Maranhão; outro paulista, Francisco Dias de Siqueira, destroçou, em 1692, as
ram, em 1734, com tremenda expedição de mais de 800 homens em cem canoas,
tribos corsas do interior do Maranhão, mas atacou igualmente missões pací-
que atacaram de emboscada e destruíram a principal aldeia dos paiaguás; mas
ficas, e no final do século esse velho patife atacava com um exército particu-
a luta com esta valente tribo continuou por algumas décadas.
lar tribos não-contactadas do Piauí; nos últimos anos do século XVII, ocorre-
Parte do sucesso dos paiaguás foi fruto da sua aliança com os também te-
ram ataques de escravistas e contra-ataques índios nos rios Mearim e
míveis guaicurus. Essa última tribo também vinha combatendo os europeus
Itapicuru, n o Maranhão; e entre 1702 e 1705, os vidais e os axemis do vale do
desde a década de 1540, e adquiriram um domínio sobre os cavalos tão grande
Parnaíba foram extinguidos numa série de ignominiosas violações de tréguas
quanto o dos índios norte-americanos. Povo nômade, os guaicurus viviam
celebradas com eles. Um dos rufiões mais cruéis foi Antônio da Cunha
apenas para cuidar de seus sete ou oito mil cavalos, que criavam, treinavam e
Souto-Maior, que aterrorizou as tribos a partir de um acampamento no Par-
tratavam com o maior cuidado. Consideravam-se um povo aristocrata e domi-
naíba. Um "divertimento bárbaro" 48 ideado por efe e seu irmão era libertar
navam ou aterrorizavam as tribos vizinhas. Para manter sua mobilidade, as
prisioneiros anaperus um por um, alcançá-los a cavalo e decapitá-los com fa-
mulheres guaicurus abortavam a maioria dos seus bebês, e a tribo era obrigada
cões. Uma rebelião de seus próprios índios em 1712 matou Cunha Souto-
a apresar crianças em ataques a outras tribos. Sua incrível perícia de cavaleiros
Maior e seus soldados portugueses, e depois espalhou-se rapidamente, tor-
tornou os guaicurus quase invencíveis na batalha, e seus ataques fulminantes
nando-se a mais séria e mais difundida de todas as rebeliões indígenas. A in-
poderiam ter destruído todos os povoados espanhóis e portugueses na região
surreição foi chefiada por u m índio educado na missão, de nome Mandu La-
atual do norte do Paraguai e sul do Mato Grosso se levassem avante suas vitó-
dino, e durante sete anos devastou todo o sul do Maranhão, o Piauí e o Cea-
rias em campanhas militares sustentadas; mas faltou-lhes a vontade ou a lide-
rá. Custou aos portugueses a perda de muitas vidas e a destruição de cente-
rança necessárias.
nas de fazendas de gado. Por breve período, as tribos jês de Mandu se aliaram
Os campos de ouro de Cuiabá se localizavam no território dos bororos; no
a seus tradicionais inimigos, as tribos tupis do Ceará. Houvesse perdurado
entanto, embora a maior parte dessa nação fosse hostil aos portugueses, tende-
essa aliança, teria expulsado todos os portugueses do Ceará; mas os tupis fo-
ram a evitar o contato. Outra grande tribo afetada pelas descobertas de ouro
ram apaziguados pelas autoridades, e foi um contingente dos tobajaras da
em Cuiabá e Vila Bela foram os parecis, de fala arauaque, que viviam a noroes-
serra de Ibiapaba, lutando "sem quaisquer brancos, pois estes eram apenas
te de Cuiabá perto do alto Guaporé. Essa tribo populosa, dócil e civilizada foi
um estorvo para eles nas florestas"49, que em 1719 capturou e matou Mandu
considerada pelos mineiros uma perfeita possibilidade de mão-de-obra. Esses
e exterminou seus "tapuias". Em 1720, o rei pediu um relato da situação das
índios pouco belicosos foram arrebanhados às centenas para mourejar nas mi-
tribos no Nordeste depois do surto da criação de gado. O documento resul-
nas ou foram embarcados em navios para repor o estoque definhado de mão-
tante foi uma ladainha de assassinatos e abusos contra os índios durante os
de-obra indígena na própria São Paulo.
vinte anos anteriores.
A abertura dos campos de ouro em Minas Gerais teve um impacto sobre
as regiões de gado da Bahia e do Nordeste. Os famintos mineiros ofereciam
um novo e esplêndido mercado para o gado. Com o tratado de paz de 1692, 4». A n t ó n i o de Sousa Leal. relatório em viRfifKlA RAU & MARIA FERNANDA GOMES D A SILVA (eds.), Os

que pôs fim às guerras dos tarairiús (janduís), seguiu-se um período de re- Manuscritos do Arquivo dn Casa de Cadaval Respeitantes no Brasil, Coimbra, 1956-1960, 2 vols.

voltante violência, à medida que os criadores de gado avançavam para o inte- Ver vol. 11, p. 386.

rior das províncias do Nordeste. Os documentos oficiais contêm relatos de 4'). Fe. D o m i n g o s Perreira Chaves ao Rei, Ceará, 23 de novembro de 1719, em R A U È, G O M E S D A SILVA

muitas atrocidades contra os índios nessa fronteira pretensamente pacífica. (eds.), Manuscritos, vol. II, pp. 248-249.
Na Amazônia do noroeste, o rio Solimões ("venenos", porque suas tribos sob a direção de um cacique importante, Ajuricaba. Os manaus viviam no
usavam curare), a principal corrente formadora do Amazonas, entre as embo- médio Negro, centenas de milhas acima do local onde se situa hoje a cidade
caduras do Negro e do Javari, na atual fronteira com o Peru e a Colômbia, ra- que traz seu nome. Durante a guerra que travaram contra os portugueses,
ramente foi reclamado ou pela Espanha ou por Portugal. Em 1689, um jesuíta mantiveram contato com os holandeses da Guiana, que lhes forneceram ar-
espanhol, Samuel Fritz, atuava entre os iurimáguas, que viviam então perto da mas de fogo, e durante algum tempo Ajuricaba portou em sua canoa uma
foz do Purus. Os portugueses fizeram expedições ocasionais a este rio em bus- bandeira holandesa. Uma grande expedição punitiva, baseada na nova mis-
ca de salsaparrilha, cacau ou escravos. Em 1689 Fritz foi levado a Belém, onde são de Mariuá (Barcelos), derrotou finalmente os manaus e capturou
se deteve por algum tempo, mas retornou a sua missão três anos depois. Em Ajuricaba em 1728. O grande cacique foi trazido em correntes para a escravi-
1697, os carmelitas portugueses apareceram com uma escolta militar para re- dão em Belém, mas, quando se aproximavam da cidade, ele e alguns manaus
clamar essa faixa do rio e expulsar Fritz. Durante a década seguinte, os reinos dominaram seus captores e pularam no rio, ainda acorrentados, preferindo a
peninsulares disputaram esse longo trecho do Amazonas, com incursões por- morte ao cativeiro.
tuguesas rio acima até o Napo e a prisão, em 1709, de um jesuíta espanhol per- Em sua monumental história dos jesuítas no Brasil, Serafim Leite relaciona,
to do local onde hoje se localiza Iquitos. O resultado de tudo isso foi a instala- durante os cem anos que se seguiram a 1650, nada menos que 160 expedições
ção pelos portugueses de uma missão em Tabatinga, a fronteira atual; mas o organizadas pelos padres, a maioria delas aos rios da bacia amazônica. Houve
Amazonas foi despovoado pelas disputas. Os omáguas e os iurimáguas, outro- também uma contínua sucessão de expedições anuais escravistas, oficiais e priva-
ra as tribos mais populosas e adiantadas do Amazonas, foram dispersadas e di- das. Mediante essas atividades, os portugueses penetraram rio acima todos os
zimadas. Quando o cientista francês Charles de la Condamine desceu o rio em principais afluentes do Amazonas, ainda que tendessem mais a despovoar que a
1743, relatou que as terras dos omáguas estavam vazias, sem nenhum índio vi- povoar as terras que visitavam. Contam-se também algumas explorações mais
vendo nos mais de 700 quilômetros entre Pebas e São Paulo de Olivença. longas: em 1723, Francisco de Mello Palheta chefiou uma flotilha de canoas que
O início do século XVIII também assistiu à subida pelos portugueses dos princi- subiu o Madeira até Santa Cruz de la Sierra e depois retornou; em 1746, João de
pais afluentes do médio Amazonas. Para os jesuítas, as suas atividades missionárias Souza Azevedo realizou a primeira descida dos rios Arinos e Tapajós; outros su-
no Madeira eram impedidas pela grande tribo dos belicosos toras; mas, em 1719, biram o Negro até o canal de Casiquiare, descoberto em 1744 pelo jesuíta espa-
uma poderosa expedição punitiva "os extinguiu"50. Outras tribos do baixo Madeira nhol Manuel Román. Essas atividades proporcionaram a Portugal uma presença
concordaram em descer para as missões jesuítas localizadas perto da sua foz. O vá- física na bacia amazônica, mas a um custo altíssimo para os índios. Houve fre-
cuo resultante foi preenchido pelos temíveis muras, uma tribo que se tornou inimi- qüentes epidemias de varíola, gripe e sarampo, que destruíram as missões tão ra-
ga implacável dos brancos depois que 400 membros do seu povo foram escraviza- pidamente quanto os missionários podiam reabastecê-las com recém-conversos.
dos enquanto se dirigiam pacificamente para uma missão. Os muras aprenderam a No cálculo do padre João Daniel, os portugueses haviam retirado ou morto três
respeitar e evitar o combate aberto contra as armas de fogo portuguesas; mas eram milhões de índios apenas da bacia do rio Negro. Ele escreveu que esses rios, ou-
brilhantes nas emboscadas e nos ataques de surpresa nos igarapés do baixo Madeira. trora "povoados por [...] índios tão numerosos quanto enxames de mosquitos,
Por muitos anos na metade do século XVIII, os muras evitaram a instalação de po- povoados sem número, e uma diversidade de tribos e línguas sem conta"51, fo-
voados portugueses ou seu movimento nos rios próximos a seu território. ram reduzidos por volta de 1750 a um milésimo da sua população original. Os
viajantes relataram que centenas de quilômetros das margens do Amazonas esta-
Nessa época, os missionários carmelitas iniciavam sua penetração no rio
vam "despojados de habitantes de ambos os sexos ou de qualquer idade"52 e al-
Negro. Seu avanço foi bloqueado em 1723 por uma "rebelião" dos manaus,
deias inteiras de missão foram abandonadas.

SO.iosE G O N Ç A L V E S DA H O N S E C A , "Primeira exploração d o s rios Madeira e G u a p o r é e m 1749 , em


51. IOÃO DANIEL, "Thesouro descoberto no m á x i m o rio Amazonas", parte. 2, cap. 15, RIHCU, 3: 50, 1841.
C Â N D I D O M E N D E S DE ALMEIDA. Memórias para a História do Extincto Estado do Maranhão, Rio de
5 2 . G O N Ç A L V E S DF. F O N S E C A , "Primeira exploração ..." p. 274.
faneiro, 1860, vol. II, p. 304.
Foi a atividade portuguesa nos extremos norte e sul do Brasil - no alto Pa- mas questões vieram à tona com a batalha de Caiba té, na qual em alguns mi-
raná e Paraguai até os campos de ouro de Mato Grosso, e rio Amazonas acima nutos a artilharia e a cavalaria européias mataram 1 400 índios cristãos que es-
- que abriram caminho para o Tratado de Madri, assinado em 13 de janeiro de tavam pateticamente segurando no alto suas bandeiras, crucifixos e imagens
1750. Esse tratado foi uma vitoria diplomática dos negociadores dc D. João V, sagradas. Foi esse o destino do grupo de índios brasileiros que aceitaram com
pois reconheceu a ocupação de facto e concedeu, portanto, aos portugueses mais fervor o cristianismo durante dois séculos de conquista iniciada sob o
quase a metade da América do Sul. O tratado, sensivelmente, procurou regu- pretexto de converter os gentios do Brasil.
lar-se, na fixação dos limites, pelas características geográficâs. Fixou, assim, a Aqueles dois séculos de controle missionário dos índios brasileiros chegaram
fronteira portuguesa nos territórios que englobavam partes dos rios Uruguai, ao fim com duas leis que Pombal persuadiu o rei a editar em 1755. Um edito de
Iguaçu, Paraná, Paraguai, Guaporé, Madeira e Javari e, ao norte dó Amazonas, 4 de abril de 1755 pôs fim teoricamente a toda discriminação racial, declarando
iam do médio Negro até à linha que divide as bacias do Amazonas e do Orino- que os mestiços "se ajustarão e serão capazes de qualquer emprego, honra ou
co e ao longo da bacia do Guiana até ao Atlântico. dignidade" 51 . Depois, em 6 de junho foi promulgada a Lei das Liberdades, que li-
O quarto de século que se seguiu ao Tratado de Madri, os anos de governos bertava as "pessoas, e bens, e comércio" dos índios do Pará e do Maranhão. Os
de D. José I e do marquês de Pombal (1750-1777), tiveram profunda influência índios foram declarados cidadãos livres, desfrutando de todos os direitos e privi-
sobre os índios do Brasil. O próprio meio-irmão de Pombal, Francisco Xavier de légios que acompanhavam a cidadania. Deveriam ser integrados à sociedade por-
Mendonça Furtado, foi enviado como governador do Maranhão-Pará, onde per- tuguesa. As aldeias deveriam receber nomes portugueses e, daí em diante, tornar-
maneceu de 1751 até 1759. Ficou chocado com a ignorância dos colonos e com se-iam vilas comuns. Qualquer pessoa podia comerciar com os índios e esses po-
os maus-tratos infligidos aos índios; mas criticou ainda mais a riqueza, a lassidão diam - teoricamente - trabalhar para quem quer que escolhessem, mas em bases
moral, a insubordinação e o tratamento inadequado dos índios pelas ordens de pagamento a ser fixadas pelo governador e pelos funcionários. Os próprios
missionárias. Em suas cartas a seu irmão, escreveu que as diversas ordens tinham índios deveriam controlar suas aldeias, e haveria punições especiais para quem
cerca de doze mil índios em 63 missões na Amazônia. Na ilha de Marajó, os quer que invadisse a terra índia ou tentasse explorar a simplicidade dos silvícolas.
mercedários possuíam entre 60 e 100 mil cabeças de gado em suas fazendas, os Numa declaração sonora de liberdade índia, a Lei admitiu que, "havendo descido
jesuítas de 25 a 30 mil, e os carmelitas, de oito a dez mil. Embora os jesuítas diri- muitos milhares de índios, se foram extinguindo, de modo que é muito pequeno
gissem apenas dezenove missões, e o governador aprovasse o fato de que somen- o número das povoações e dos moradores delas, vivendo ainda esses poucos em
te eles mantinham as mulheres índias decentemente vestidas, foram os padres da tão grande miséria"5'1. No dia seguinte, D. José lançou um edito que tirava dos
Companhia que mais irritaram Mendonça Furtado. Quando ele conduziu uma missionários todo controle temporal das aldeias e confinava-os ao trabalho
grande frota de canoas rio acima em 1754 para supervisionar as demarcações de evangélico entre as tribos não-contactadas. Antecipando qualquer clamor dos
fronteira, comparou negativamente a falta de cooperação dos jesuítas com a ca- colonos, um decreto daquele mesmo dia criava a Companhia Geral do Comércio
lorosa recepção que recebeu dos carmelitas no Rio Negro. do Grão-Pará e do Maranhão, que importaria escravos negros para a região, a
Os jesuítas pareceram igualmente obstrutivos no outro extremo do Brasil. fim de desenvolver suas exportações - tarefas que cumpriu com considerável su-
Seguindo o rio Uruguai, a nova fronteira estabelecida em 1750 isolou as sete cesso durante algumas décadas.
prósperas e há muito instaladas missões jesuítas de guaranis na região que se A libertação dos índios, que foi tão eloqüentemente proclamada na legisla-
transformaria mais tarde em território português, e esperava-se que eles se ção de 1755, jamais ocorreu. Pombal e seu meio-irmão imediatamente come-
mudassem para novos locais a leste do Uruguai. Recusaram-se, porém, decla- çaram a temer, em sua correspondência, que os índios pudessem voltar a sua
rando que sempre haviam ocupado as terras de suas aldeias e que nessas esta-
vam suas igrejas consagradas e os túmulos de seus ancestrais. Após o fracasso ">.i. Alvará dc 4 dc abril de 1735, l.ey sobre os casamentos com as índias.
de várias tentativas de persuasão, um exército conjunto português-espanhol 51 l.ey porque V. Magestade ha por bem restituir aos Índios do Grão-Pará e Maranhão a liberdade das suas
determinou-se a expulsar os guaranis à força. Em 10 de fevereiro de 1756, algu- pessoas, e bens, e commercío, 6 dc ninho dc 1755, em P E R D I G Ã O M A U IHIRO, nscravidão, vol. II, p.
"indolência" primitiva - que se preocupassem em alimentar suas próprias fa- lido, as aldeias missionárias, sobretudo o antigo núcleo central dos jesuítas no
mílias, em vez de trabalhar para o estado português ou para os colonos. O go- Sul e também em toda a Amazônia, estavam em total confusão e abandono.
vernador Mendonça Furtado esperou até 1757 antes de publicar a nova lei, e
então nomeou por sua própria iniciativa um "diretor" branco para toda aldeia Durante os três séculos desde que os portugueses aportaram pela primeira
nativa. Imaginava que esses diretores seriam protótipos altruístas preocupados vez no Brasil, a população nativa americana de pelo menos dois e meio mi-
em ensinar aos índios maneiras civilizadas e encorajá-los em seu comércio, de lhões de habitantes fora reduzida provavelmente em três quartos. No final do
modo a se tornarem cidadãos cristãos ricos e civilizados. Esse novo sistema, período colonial, os poucos índios que viviam sob o domínio português eram
que recebeu o nome de Diretório de índios, foi introduzido em todas as antigas criaturas patéticas no extrato mais baixo da sociedade, meio aculturados, des-
aldeias de missão em 3 de maio de 1757. Em troca do pretenso ensino aos ín- pojados da maioria de suas tradições e orgulho tribal, mas totalmente incapa-
dios da língua portuguesa, dos métodos europeus de agricultura e comércio e zes de adaptar-se aos costumes europeus ou de compreender qualquer dos
de habilidades domésticas, os diretores deveriam administrar todas as transa- pontos mais refinados da civilização européia. Aquelas tribos que resolveram
ções comerciais de seus tutelados e receber 17 por cento de qualquer renda retirar-se para o interior antes do avanço dos portugueses, para evitar a des-
bruta proveniente da venda da produção, aos quais o governo acrescentou u m truição ou a absorção pelo Brasil português, não eram mais que uma vaga
imposto adicional de 10 por cento. Além dessas pesadas exações (que, em vez ameaça numa fronteira distante. Poetas como José de Alvarenga Peixoto ou
de tributar o lucro, taxavam a cifra total dos negócios), exigia-se ainda que to- José de Santa Rita Durão podiam permitir-se glorificar e romantizar os índios,
dos os homens índios entre 13 e 60 anos fossem recrutados para trabalhar nas mas n u m estilo que não tinha qualquer relação com a realidade. Além de um
"obras públicas" e passassem metade de cada ano trabalhando para os colonos. punhado de crônicas indiferentes do século XVI, os portugueses deixaram to-
Seus caciques e os novos diretores deveriam aplicar esse regulamento "até mes- talmente de registrar qualquer coisa de interesse antropológico sobre as tribos
m o em detrimento dos melhores interesses dos próprios índios"!55 que destruíram. Ao contrário, a literatura dos séculos XVII e XVIII, seja de au-
toria de missionários, seja de funcionários ou aventureiros, é notável por sua
Os observadores no Brasil advertiram imediatamente que essa pavorosa le-
ausência quase total de interesse pelas sociedades nativas ou pela falta de infor-
gislação iria desembocar n u m desastre. Havia um amplo precedente a mostrar
mação sobre elas.
que os leigos que estavam no controle dos índios abusavam atrozmente dos
seus tutelados. Bento da Fonseca advertiu que os colonos apresariam índios
selvagens "sem o mais leve impedimento e [dominariam] os índios das aldeias,
usando-os como se fossem seus escravos, sem pagá-los por seu trabalho". Sabia
também que a introdução de soldados portugueses para fazer cumprir a nova
"liberdade" dos índios não era uma solução: "Se uma ordem religiosa dificil-
mente conseguia manter a defesa dos índios, é evidente que os capitães do
exército não o poderiam - mesmo que tivessem qualquer inclinação a fazê-lo"56.
Apesar dessas advertências, o sistema dos diretores foi introduzido em todo o
Brasil em agosto de 1758. Um ano mais tarde, os jesuítas foram expulsos do
Brasil57. Quando, em 1798, após uma condenação quase universal por todos os
especialistas em questões indígenas, o sistema dos diretores foi finalmente abo-

55- Diretório regimento, 3 d e m a i o de 1757, em PERDIGÀO MALHEIRO, Escravidão, vol. II, p. 110.

5 6 . C A M S T R A N O DE ABREU, Capítulos, p. 185.

57. Para um tratamento adicional da expulsão d o s jesuítas, ver ALDEN, neste v o l u m e , cap. 12.

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