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A Arrogância Fatal-Os Erros Do Socialismo-F. A. Hayek
A Arrogância Fatal-Os Erros Do Socialismo-F. A. Hayek
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Título do original: The Fatal Conceit
The Errors of Socialism
Traduzido a partir da primeira edição da
The University of Chicago Press, 1988
ii
Impresso em março de 1995
zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Prefácio
Adotei duas regras para este livro. Não deveria haver nenhuma nota
de rodapé e todos os argumentos não essenciais às suas principais
conclusões, mas de interesse ou mesmo essenciais para o especialista,
deveriam ou ser colocadas em letras menores para dizer aos leitores em
geral que eles podem passar por elas sem perder os aspectos dos quais as
conclusões dependeram, ou então deveriam ser reunidas em apêndice.
As referências ou trabalhos citados ou mencionados são portanto,
normalmente indicadas simplesmente mediante breves enunciados entre
parênteses, contendo o nome do autor (onde não esteja claro no contexto)
e a data do trabalho, seguidos após dois pontos pelos números das
páginas, se necessário. Estes referem-se à lista de autores citados no fim
do volume. Quando houver sido utilizada uma edição mais recente de
determinado trabalho, isso será indicado pela última das duas datas, como
por exemplo, 178611973, caso em que a data anterior refere-se à edição
original.
Seria impossível relacionar as obrigações em que se incorre no curso
de uma longa vida de estudos, principalmente se fosse necessário enun-
ciar todos os trabalhos a partir dos quais se adquiriu o conhecimento e as
opiniões que se tem, e ainda mais impossível relacionar na bibliografia
todos os trabalhos que se sabe deveriam ter sido estudados para se
prentender ter competência em campo tão amplo quanto o de que trata o
presente trabalho. Não posso tampouco esperar relacionar todas as obri-
gações pessoais em que incorri durante os muitos anos em que meus
esforços foram direcionados ao que era fundamentalmente a mesma
meta. Desejo, todavia, expressar minha profunda gratidão a Srta. Char-
lotte Cubitt, a qual trabalhou com a minha assistente durante todo o
período em que o presente trabalho se encontrava em preparação e sem
cuja dedicada ajuda jamais poderia ter sido completado; da mesma forma
ao Professor W. W. Bartley, III, da Hoover Institution, Stanford Univer-
sity, o qual, quando fiquei doente por algum tempo, pouco antes da
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conclusão da versão fi_nal, assumiu a responsabilidade por este volume e
preparou-o para os editores.
Introdução
O Socialismo foi um Erro? .......................................... 21
Capítulo I
Entre o Instinto e a Razão .......................................... 27
Evolução Biológica e Cultural ....................................... 27
Duas Consciências Em Cooperação e Conflito ........................ 35
A Inadequação do Homem Primitivo à Ordem Espontânea .............. 37
O Mecanismo da Evolução Cultural Não é Darwinista ................. 42
Capítulo II
As Origens da Liberdade, da Propriedade e da Justiça .................... 49
Liberdade e a Ordem Espontânea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
A Herança Clássica da Civilização Européia ......................... 52
Onde Não há Propriedade Não há Justiça ............................ 55
As Várias Formas e Objetos da Propriedade e Sua Melhoria ............. 57
As Organizações Como Elementos das Ordens Espontâneas ............. 59
Capítulo III
Evolução do Mercado: Comércio e Civilização ......................... 61
· A Expansão da Ordem no Desconhecido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
O Comércio Possibilita a Densidade de Ocupação do Mundo . . . . . . . . . . . . 64
Comércio Mais Antigo do Que o Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
A Cegueira do Filósofo .......................................... 69
Capítulo IV
A Revolta do Instinto e da Razão.·.................................... 73
O Desafio à Propriedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Nossos Intelectuais e sua Tradição de Socialismo Razoável ............. 78
Moral e Razão: Alguns Exemplos .................................. 81
Uma Ladainha de Erros .......................................... 88
Liberdade Positiva e Negativa ..................................... 90
'Libertação' e Ordem ........................................... 93
Capítulo V Apêndices
Arrogância/FataL ................................................. 95 A
A Moral Tradicional não Corresponde às Exigências Racionais .......... 95 O "Natural" Versus o" Artificial" .............. · · · .. · · · · · · · · · · · 191
Justificativa e Revisão da Moral Tradicional ......................... 97
Os Limites de Direção pelo Conhecimento Factual: a Impossibilidade
B
de Observar os Efeitos de Nossa Moral ............................ 101 A Complexidade dos Problemas da lnteração Humana ........... · · · · · 196
Propósitos não Especificados: a Maioria dos Resultados da Ação na
Ordem Espontânea não é Consciente ou Deliberada . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
O Ordenamento do Desconhecido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 c
Como o que não pode ser Conhecido não pode ser Planejado . . . . . . . . . . . 117 O Tempo e o Surgimento e a Reprodução das Estrutura ..... · · · . · · · · · · 199
Capítulo VI D
O Mundo Misterioso do Comércio e do Dinheiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Alienação. Desistentes e as Reivindicações de Parasitas . . . . . . . . · · · · · · 200
O Desprezo pelo Exercício do Comércio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Utilidade Marginal Versus Macro-economia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
A Ignorância Econômica dos Intelectuais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137 E
O Jogo. a Escola das Normas ................... · · · · · · · · · · · · · · · · · 202
A Desconfiança em Relação ao Dinheiro e às Finanças. . . . . . . . . . . . . . . . 138
A Condenação do Lucro e o Desprezo pelo Comércio. . . . . . . . . . . . . . . . . 141
F . d I - 207
Capítulo VII Observações Sobre a Economia e a Antropologia a Popu açao · · · · · · · -
A Nossa Linguagem Envenenada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
As Palavras Como Guias da Ação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
G
Ambigüidade Tenninológica e Distinções Entre Sistemas de Coordenação .. ql50 A Superstição e a Preservação da Tradição . . . .............. · · · · · · · 204
Nosso Vocabulário Animista e o Confuso Conceito de 'Sociedade' ...... 152
O Evasivo Termo ( "Weasal Word") "Social". . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154
"Justiça Social" e "Direitos Sociais" ............................. 159 2 07
Bibliografia . . . . . . ............................... · · · · · · · · · · · ·
Capítulo VIII 223
A Ordem Espontânea e o Crescimento Populacional . . ................ . 163 Índice Remissivo .......................... · · · · · · · · · · · · · · · · · ·
O Pânico Malthusiano: o Temor da Super-População . . . . . . . ........ . 163
O Caráter Regional do Problema ................................ . 168 Índice por Assunto . ........................ · · · · · · · · · · · · · 227
Diversidade e Diferenciação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 171
O Centro e a Periferia ......................................... . 172
O Capitalismo Gerou o Proletariado .............................. . 176
O Cálculo dos Custos é um Cálculo de Vidas . . . . . . . . ............. . 177
A Vida Não Tem Nenhum Objetivo Além da Própria Vida ...... . 179
Capítulo IX
A Religião e os Guardiães da Tradição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
A Seleção Natural Entre os Guardiães da Tradição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183
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INTRODUÇÃO
Adam Ferguson
21
Introdução 23
22 A Arrogância Fatal
. . P?rtanto, não pretendo negar à razão o poder de melhorar normas e biológicas. Esta percepção foi apenas a primeira de uma prolífica família
mstitm~ões, nem mesmo insistir que ela é incapaz de reconstituir todo 0 de teorias responsáveis pela formação de complexas estruturas em termos
nosso sistema moral visando aquilo que hoje costuma ser definido como dos processos que transcendem nossa capacidade de observar todas as
'justi?a social'. Contudo, só podemos fazer isto sondando cada parte de diversas circunstâncias que atuam na determinação de suas manifesta-
um ~Istema mor_al. Se esta moral simula ser capaz de fazer algo que ções específicas. Quando comecei meu trabalho senti que estava traba-
pos~Ivelmente nao pode fazer, por ex., desempenhar uma função organi- lhando praticamente sozinho na formação evolutiva dessas ordens auto-
zaciOnal e geradora de conhecimento que é impossível de acordo com sustentáveis altamente complexas. No meio tempo. as pesquisas sobre
suas pr?prias r~gras e n?r.mas, essa mesma imposs~bilidade representará este tipo de problema - sob várias denominações. como autopoiesis,
uma cntica racional decisiva a esse sistema moral. E importante confron- cibernética, homeóstase, ordem espontânea, auto-organização, sinergé-
tar estas conseqüências, pois a idéia de que, em último caso, todo o debate tica, teoria de sistemas, e assim por diante -tornaram-se tão numerosas
é um~ questão de juízos de valor e não de fatos, tem impedido os que só pude estudar a fundo algumas delas. Este livro torna-se assim o
estudwsos da ordem de mercado de enfatizar de modo suficientemente tributário de uma corrente que vai se avolumando aparentemente rumo
convicente que é i~possível o socialismo realizar o que promete. ao desenvolvimento gradativo de uma ética evolucionária (mas com
Tampouco mmha tese sugere que não compartilho de alguns valores certeza não simplesmente neo-darwinista) paralela e suplementar, embo-
amplamente defendidos pelos socialistas; mas não acredito, como mos- ra nitidamente distinta, ao desenvolvimento bastante avançado da epis-
trarei ~diante, que a idéia amplamente aceita de 'justiça social' defina temologia evolucionária.
uma situação possível nem mesmo quç: seja expressiva. Embora o livro levante assim algumas difíceis questões filosóficas
, . Tam~ouco acredito, como recomendam, alguns propositores da e científicas. sua tarefa principal continua sendo demonstrar que um dos
etica edomsta que possamos tomar decisões morais apenas levando em movimentos políticos mais influentes do nosso tempo. o socialismo, se
conta a maior gratificação previsível. fundamenta em premissas comprovadamente falsas, e embora inspirado
O ~onto de ~artida do meu trabalho bem poderia ser a aguda por boas intenções e liderado por alguns dos mais inteligentes repre-
percepçao de David Hume de que 'as normas da moral... não são sentantes do nosso tempo, ameaça o padrão de vida e a própria sobrevi-
conclusões de, nossa razão' (Tratado, 1739/1886: II: 235). Esta percepção vência de uma grande parcela da nossa população existente. Isto é
desempenhara um papel central neste volume pois ela dá fundamento à mostrado nos Capítulos (IV, V e VI). onde examino e refuto o desafio
quest~o b~sica_ à qual tenta respon~er, ou seja, como surge nossa moral socialista à interpretação do desenvolvimento e da manutenção de nossa
e que Imphcaçoes o modo dela surgir pode ter para nossa vida econômica civilização apresentada nos três primeiros capítulos. No Capítulo VII
e política? volto-me para a nossa linguagem, para mostrar até que ponto foi degra-
A alegação d~ que somos obrigados a preservar o capitalismo por dada sob a intluência socialista e quão cuidadosamente devemos evitar
causa de sua capacidade de melhor utilizar o conhecimento disperso dá sermos seduzidos por ela e a pensar de maneira socialista. No Capítulo
origem à questão de como adquirimos essa ordem econômica insubsti- VIII, analiso uma objeção que poderia ser levantada não apenas pelos
tuível.- princi~al~e~te tendo em vista minha afirmação de que pode- socialistas mas por outros também: ou seja, que a explosão populacional
rosos Impulsos mstmtivos e racionalistas se rebelam contra a moral e as põe em risco minha tese. Finalmente, no Capítulo IX, apresento rapida-
instituições exigidas pelo capitalismo. mente algumas observações a respeito do papel da religião no desenvol-
A ~esposta a esta pergunta, esboçada nos trê~'primeiros capítulos, é vimento de nossas tradições morais.
constrmda sobre a antiga percepção, muito conhe'cida na economia. de Como a teoria evolutiva desempenha um papel tão essencial nesse
que n.ossos valores e instituições são determinados não apenas por razões volume, devo ressaltar que um dos acontecimentos promissores dos
a?tenores mas como parte de um processo de auto-organização incons- últimos anos, que levou a uma melhor compreensão do crescimento e da
ciente d~ uma estrutura ou de um modelo. Isto não se aplica apenas à função do conhecimento (Popper, 1934/1959), e das ordens complexas
economia mas a um amplo campo, e é muito conhecido hoje nas ciências e espontâneas (Hayek, 1964, 1973, 1976, 1979) de vários tipos, foi o
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essas palavras. Apesar de suas realizações como cientista. Aristóteles grande parte consistem em proibições ("não farás") que definem os
falava baseado em seus instintos, e não na observação ou na reflexão, domínios ajustáveis das decisões individuais. A humanidade atingiu a
quando restringia a ordem humana ao alcance do grito do arauto. civilização desenvolvendo e aprendendo a obedecer a normas (de início
Estas concepções são compreensíveis, pois os instintos do homem, nas tribos territoriais e depois sobre espaços maiores) que freqüentemente
plenamente desenvolvidosmuito antes de Aristóteles, não foram feitos lhe proibiam de fazer aquilo que seus instintos exigiam, e não mais
para o ambiente. e os números em que ele vive agora. Eles eram dependiam de uma percepção comum dos eventos.
adequados à vida nos pequenos bandos nômades ou grupos em que a raça Essas normas. que com efeito constituíam uma consciência nova e
humana e seus ancestrais imediatos evoluíram durante os poucos milhões diferente e às quais na realidade pretiro aplicar o termo "moral".
de anos ao longo dos quais fora se formando a constituição biológica do suprimem ou restringem a "consciência natural". ou seja, os instintos
homo sapiens. instintos herdados geneticamente serviam para que caldeavam o pequeno grupo e garantiam a cooperação no interior
dirigir a cooperação dos membros do grupo. cooperação esta que era deste à custa de obstacular ou bloquear sua expansão.
necessariamente uma interação estreitamente circunscrita de companhei- Prefiro limitar o termo ''consciência'· àquelas normas não instinti-
ros que se conheciam entre si e confiavam um no outro. Esse povo vas que permitiram à humanidade expandir-se numa ordem espontânea
primitivo era guiado por objetivos concretos, percebidos pelo grupo, e pois o conceito de moral só faz sentido em contraposição a uma conduta
por uma percepção semelhante dos perigos e das oportunidades. princi- impulsiva e irrefletida de um lado, e à preocupação racional com resul-
palmente das fontes de alimento e do abrigo- do seu ambiente. tados específicos do outro. Os reflexos inatos não têm uma qualidade
Não só podiam ouvir seu arauto; de costume eles o conheciam moral, e os 'sócio-biólogos' que lhes aplicam termos como altruísmo (e
pessoalmente. · que. para ser coerentes. deveriam considerar a cópula o ato mais altruísta)
Embora uma experiência mais longa possa ter atribuído a alguns estão simplesmente errados. Somente se entendemos que deveríamos
membros mais velhos desses bandos certa autoridade. foram principal- obedecer a sentimentos ·altruístas' é que o altruísmo se torna um conceito
mente objetivos e percepções comuns que coordenaram as atividades de moral.
seus membros. Com certeza dificilmente essa é a única forma de utilizar estes
Essas formas de coordenação dependiam decisivamente de instintos termos. Bernard Mandeville escandalizou seus contemporâneos afirman-
de solidariedade e altruísmo -instintos que se aplicavam aos membros do que 'o grande princípio que nos torna criaturas sociais, a base sólida,
do próprio grupo, mas não a outros. Os membros desses pequenos grupos vida e sustentáculo de todo comércio e emprego sem exceção' é o mal
podiam assim existir somente enquanto tais: um homem isolado em breve ( 1715/1924 ). com o que ele entendia, exatamente, que as normas da
seria um homem morto. O individualismo primitivo descrito por Thomas ordem espontânea conflitavam com os instintos inatos que haviam man-
Hobbes é portanto um mito. O selvagem não é um solitário e seu instinto tido o pequeno grupo unido.
é coletivista. Nunca houve uma' guerra de todos contra todos·. Se considerarmos a moral, não como instintos inatos mas como
Na verdade. se nossa ordem atual já não exístísse nós dificilmente tradições aprendidas, sua relação com o que chamamos comumente
acreditaríamos que tal coisa fosse possível em momento algum e rejeita- percepções. emoções ou sentimentos levanta várias questões interessan-
ríamos qualquer relato a seu respeito como a um conto miraculoso. sobre tes. Por exemplo. embora aprendida. a moral nem sempre opera como
o que jamais poderia vir a existir. Os principais responsáveis pela geração regras explícitas. mas pode se manifestar como os verdadeiros in~tintos,
dessa ordem extraordinária e a existência da humanidade em suas dimen- como uma vaga falta de disposição. ou uma aversão a certos tipos de
sões e estrutura atuais, são as normas de conduta tlu.mana que evoluíram ação. Freqüentemente ela nos diz como evitar ou escolher entre instintos
gradativamente (principalmente aquelas que dizem respeito à proprieda- inatos.
de particular, à honestidade, ao contrato, ao intercâmbio, ao comércio, à
competição, ao lucro e à privacidade). Essas normas são transmitidas pela Pode-se perguntar de que modo a repressão das exigências
tradição, pelo ensinamento e pela imitação e não pelo instinto, e em instintivas servem para coordenar as atividades de grandes grupos de
30 A Arrogância Fatal Entre o Instinto e a Razão 31
indivíduos. Como exemplo, a obediência contínua ao mandamento não lhe é permitido alcançar e ele não consegue ver como outros aspectos
de tr_atar todos os homens como seus semelhantes teria impedido 0 benéficos de seu meio dependem da disciplina à qual é obrigado a se
surgimento de uma ordem espontânea. Pois aqueles que agora vivem submeter - a disciplina que lhe proíbe tentar alcançar esses mesmos
nela lucram por não se tratarem reciprocamente como semelhantes e objetos tentadores. Como essas restrições nos causam tanta aversão,
por aplicar, em suas interações. as normas da ordem espontânea ~ dificilmente se pode dizer que as tenhamos escolhido, ao contrário, as
como as d_a propriedade particular e do contrato- em vez das regras restrições é que nos selecionaram; elas nos permitiram sobreviver.
da sohdanedade e do altruísmo. Uma ordem em que cada um tratasse Não é por acaso que muitas normas abstratas. como aquelas que
seu semelhante como a si mesmo seria uma ordem na qual relativa- tratam da responsabilidade individual e da propriedade particular, estão
~ente poucos poderiam frutificar e se multiplicar. Se, por exemplo,
relacionadas à economia. Desde suas origens, a economia diz respeito ao
t1vessemos de responder a todos os apelos caridosos com que somos
modo como uma ordem espontânea de interações humanas começa a
bom~ard~a?os pel~ mídia, isto representaria um custo enorme porque
nos d1strama daquilo que realizamos com mais competência e prova-
existir por um processo de diferenciação, análise e seleção muito superior
velmente só nos tornaria instrumentos de determinados grupos de a nossa capacidade de planejar. Adam Smith foi o primeiro a perceber
Interesse ou de opiniões específicas sobre a importância relativa de que nos deparamos por acaso com métodos de ordenamento da coopera-
necessidades específicas. Não proporcionaria uma cura adequada das ção econômica humana os quais ultrapassam os limites de nosso conhe-
desgraças com as quais compreensivelmente nos preocupamos. Do cimento e percepção. Sua 'mão invisível' foi, qUem sabe, melhor detini-
mesmo modo, a agressividade instintiva para com os elementos da, como um modelo invisível ou impossível de ser vislumbrado. Somos
estranhos do grupo deverá ser restringida se normas abstratas idênti- levados- por exemplo, pelo sistema de preços no intercâmbio- a fazer
cas puderem ser aplicadas às' relações de todos os homens. e portanto coisas por circunstâncias em grande parte desconhecidas por nós e que
ultrapassar as fronteiras- inclusive as fronteiras de estados. produzem resultados que não visamos. Em nossas atividades econômicas
nós não conhecemos as necessidades que satisfazemos nem a origem das
coisas que obtemos. Quase todos nós servimos a pessoas que não
Assi~, a ~~nstituição_ de_ modelos ou sistemas supraindividuais de
conhecemos. e cuja própria existência ignoramos; e por nossa vez vive-
coopera~a~ ex~gm que os md1víduos mudassem suas reações 'naturais'
mos constantemente dos serviços de outras pessoas a respeito das quais
ou mstmt1vas aos outros, o que encontrou forte resistência. O fato de
nada sabemos. Tudo isto é possível porque nos encontramos numa grande
que tais conflitos com os instintos inatos, 'vícios pessoais', como Bernard
estrutura de instituições e tradições - econômicas, legais e morais - à
~andeville os d~fii~iu, pudessem se tornar 'bem comum' e que os homens
qual nos adaptamos observando certas normas de conduta que nós não
tivessem de repnm1r alguns 'bons' instintos a fim de desenvolver a ordem
fizemos, e que jamais compreendemos no sentido em que compreende-
espontânea são conclusões que posteriormente se tomaram também
causa de dissensão. mos o funcionamento das coisas que nós fabricamos.
A moderna economia explica como nasceu esta ordem espontânea
Por exemplo, Rousseau tomou o partido do 'natural' embora seu
e como ela própria constitui um processo de coleta de informações. capaz
contemporâneo Hume dissesse claramente que 'tão nobre sentimento
de recorrer. e utilizar, a informações bastante dispersas que nenhum
[como a. generosidade]. e_m vez de adequar os homens às grandes socie-
organismo de planejamento central, e muito menos nenhum indivíduo,
dades, e quase contrano a elas. como o mais acanhado egoísmo'
(1739/1886: II 270). poderia conhecer como um conjunto, possuir ou controlar. O conheci-
mento do homem, como sabia Smith, está disperso. Como ele escreveu:
É preciso enfatizar e repetir que as restriç,0es aos costumes do
'Qual seja a espécie de atividade doméstica que seu capital pode empre-
pequeno gru~o são odiadas. Pois, como veremos, o indivíduo que a elas
gar, e cujo produto poderia ser de maior valor, cada indivíduo. é evidente
obedece, mu:to embora dependa delas para sobreviver, não compreende
por sua posição locaL é capaz de julgar muito melhor do que qualquer
e em g~ral nao pode compreender como funciona, ou de que maneira 0
beneficiam. Ele conhece tantos objetos que parecem desejáveis mas que estadista ou legislador fariam para ele' ( 1776/1976: JL 487). Ou como
32 A Arrogância Fatal
Entre o Instinto e a Razão 33
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34 A Arrogância Fatal Entre o Instinto e a Razão 35
Elas tiveram que ser aprendidas do mesmo modo por todos através da humano deram-se porque contribuíam para o homem se beneficar mais
tradição. plenamente das oportunidades proporcionadas pelo desenvolvimento
cultural. Tampouco é importante para nossos objetivos atuais saber até
O primeiro a expor claramente estas questões foi, pelo que me que ponto a estrutura abstrata a que chamamos mente é transmitida por
consta, A.M. Carr-Saunders o qual escreveu que "homens e grupos via genética e está incorporada na estrutura física de nosso sistema
são selecionados naturalmente por causa dos costumes que seguem nervoso central, ou até que ponto ela serve apenas como um receptáculo
assim como são selecionados por suas características mentais e físi- que nos permite absorver a tradição cultural. Os resultados, tanto da
cas. Os grupos que seguem os costumes mais vantajosos terão uma transmissão genética quanto da cultural podem ser chamados tradições.
vantagem na luta constante entre grupos vizinhos em relação àqueles O importante é que ambos freqüentemente se tornam conflitantes con-
que seguem costumes menos vantajosos" ( 1922:223,302).
forme mencionamos.
Carr-Saunders, contudo, salientava a capacidade de reduzir e
não de aumentar a população. Para estudos mais recentes ver Alland
Nem mesmo a quase universalidade de alguns atributos culturais
( 1967); Farb ( 1968: 13); Simpson, que descreveu a cultura, em con-
prova que eles são geneticamente determinados. Poderá existir apenas
traposição à biologia, como "o mais poderoso meio de adaptação" uma maneira de satisfazer a certas exigências de formação de uma ordem
(in B. Campbell, 1972); Popper, o qual afirmou que "a evolução espontânea assim como o desenvolvimento das asas é aparentemente a
cultural continua a evolução genética por outros meios" (Popper e única maneira pela qual os organismos podem se tornar aptos a voar (as
Eccles, 1977:48); e Durham (in Chagnon & Irons, 1979: 19), o qual asas de insetos, aves e morcegos possuem origens genéticas bastante
enfatiza o efeito de determinados costumes e atributos no incremento diferentes). Fundamentalmente é possível que exista também apenas uma
da reprodução humana. · forma de desenvolver uma linguagem fonética, de modo que a existência
de certos atributos comuns a todas as línguas também não comprova em
Essa gradativa substituição das respostas inatas por normas adqui- si que sejam devidos a qualidades inatas.
ridas pelo aprendizado foi cada vez mais distinguindo o homem dos
outros animais, embora a propensão à ação instintiva de massa permaneça
uma das várias características bestiais que o homem manteve (Trotter,
1916). Mesmo os ancestrais animais do homem já haviam adquirido Duas Consciências em Cooperação e Conflito
certas tradições ''culturais'' antes de se tornarem, do ponto de vista
anatómico, os homens modernos. Essas tradições culturais também
contribuíram para moldar algumas sociedades animais, por exemplo Embora a evolução cultural, e a civilização por ela criada, tenha
entre as aves e os macacos, e provavelmente também entre muitos outros provocado a diferenciação, a individualização, a crescente riqueza e a
mamíferos (Bonner, 1980). Contudo, a transformação decisiva do animal grande expansão da humanidade, seu advento gradativo não se deu
em homem deveu-se a estas restrições determinadas culturalmente às absolutamente sem embaraços. Nós não nos descartamos de nossa heran-
reações inatas. ça da horda, tampouco estes instintos se'' ajustaram'' plenamente à nossa
Embora as normas adquiridas pelo aprendizado, que o indivíduo ordem espontânea relativamente nova nem se tornaram inóquos por causa
passou a observar costumeiramente e quase inconscientemente como dela.
instintos herdados, passassem a substituir cada Vt1Z mais estes últimos, Contudo, não deveríamos menosprezar os duradouros benefícios de
não podemos distinguir com precisão cada um destes dois elementos alguns instintos, inclusive o dom particular que permitiu a substituição
determinantes da conduta porque eles interagem de modo complexo. pelo menos parcial de certas outras formas instintivas. Por exemplo, na
Os costumes aprendidos na infância tornaram-se parte da nossa época em que a cultura começou a substituir algumas formas inatas de
personalidade tanto quanto aqueles que já nos governavam quando comportamento, a evolução genética provavelmente já tinha dotado os
começamos a aprender. Mesmo certas alterações estruturais do corpo indivíduos humanos de uma grande variedade de características melhor
36 A Arrogância Fatal Entre o Instinto e a Razão 37
adaptadas aos vários e diferentes nichos ambientais nos quais os homens i1ito desencadeado pela disciplina das "tradições morais repressivas ou
haviam penetrado do que aquelas de qualquer animal não domesticado inibidoras", como D.T. Campbell a chama - é talvez o tema mais
- e isto ocorreu provavelmente antes que a crescente divisão do trabalho importante da história da civilização. Parece que Colombo constato_u
dentro dos grupos permitisse novas chances de sobrevivência a tipos imediatamente que a vida dos ''sei vagens'' por ele encontrados era mms
especiais. Entre as mais importantes destas características inatas que gratificante aos instintos humanos inatos. E como mostrarei mais adia~te,
contribuíram para substituir outros instintos havia uma grande capacida- acredito que uma nostalgia atávica pela vida do nobre selvagem seJa a
de de aprendizado com os dos semelhantes, principalmente pela imitação. fonte principal da tradição coletivista.
O prolongamento da infância e da adolescência, que contribuiu para esta
capacidade, foi provavelmente o último passo decisivo determinado pela
evolução biológica.
A Inadequação do Homem Primitivo
Além disso, as estruturas da ordem espontânea não são constituídas
apenas de indivíduos, mas também de muitas sub-ordens, freqüentemen- à Ordem Espontânea
te superpostas, nas quais as antigas respostas instintivas, tais como a
solidariedade e o altruísmo, ainda preservam alguma importância auxi-
liando a colaboração voluntária, muito embora sejam incapazes, por si Não se pode esperar que as pessoas gostem de uma ordem espontâ-
só, de criar uma base para a ordem mais espontânea. Parte de nossa nea que contraria alguns dos seus instintos mais fortes, ou compreen?am
dificuldade atual está em termos de ad~quar constantemente nossa vida, facilmente que ela lhes traz os confortos materiais que também deseJam.
nossos pensamentos e nossas emoções a fim de podermos conviver A ordem é até mesmo ''antinatural'' no sentido comum de não se moldar
simultaneamente com diferentes tipos de ordens em conformidade com aos atributos biológicos do homem. Grande parte do bem que o homem
diferentes normas. Se aplicássemos as normas inalteradas, irrestritas, do faz na ordem espontânea, portanto, não é devido ao fato de ele ser
microcosmos (ou seja, do pequeno bando ou grupo, ou, digamos, de naturalmente bom; contudo é absurdo condenar a civilização por consi-
nossas famílias) ao macrocosmos (nossa civilização mais ampla), como derá-la artificial por esta razão. Só é artificial no sentido de que a maioria
nossos instintos e aspirações sentimentais freqüentemente nos fazem dos nossos valores, nossa linguagem, nossa arte e nossa própria razão são
desejar, nós o destruiríamos. Contudo, se sempre aplicássemos as normas artificiais: não estão geneticamente enraizadas em nossas estruturas
da ordem espontânea aos nossos agrupamentos mais íntimos, nós os biológicas. Em outro sentido, porém, a ordem espontânea é perfeitamente
aniquilaríamos. Portanto devemos aprender a viver em dois tipos de natural: no sentido de que ela própria, como fenômenos biológicos
mundos simultaneamente. semelhantes, evoluiu naturalmente no curso da seleção natural (Ver
Aplicar o termo "sociedade" a ambos, ou mesmo a qualquer um
Apêndice A). . . .
deles, não tem qualquer utilidade, e pode ser até enganoso (ver Capítulo Não obstante, é verdade que a maior parte de nossa vtda cotldtana,
VII). e o exercício da maioria das ocupações, pouco satisfaz aos profundos
Contudo, apesar das vantagens que acompanham nossa limitada desejos 'altruístas' de fazer o bem visíve~. Ao cont~árío, co~tumes
capacidade, conviver com duas ordens de normas e distingui-las, tam- estabelecidos freqüentemente exigem que detxemos de fazer aqmlo que
pouco é coisa fácil de se fazer. Na realidade, nossos instintos freqüente- nossos instintos nos impelem a fazer. Não são a emoção e a razão, como
mente ameaçam fazer ruir todo o edifício. muitas vezes é sugerido, que entram em conflito, mas os instintos inatos
O tema deste livro, portanto se assemelha, de certa maneira, ao de e as normas aprendidas. Contudo, como veremos, a obediência a estas
O Descontentamento da Civilização ( 1930), com a exceção de que normas aprendidas em geral tem o efeito de proporcionar um benefício
minhas conclusões diferem em grande medida das de Freud. Na realida- maior à comunidade como um todo do que a ação "altruísta" mais direta
de, o conflito entre aquilo que agrada aos homens instintivamente e as
que determinado indivíduo poderia realizar.
normas de conduta adquirida que lhes permitiriam expandir-se - con-
38 A Arrogância Fatal Entre o Instinto e a Razão 39
Um aspecto revelador de quão pouco seja compreendido o princípio expansão da coordenação dos esforços individuais. A autoridade coerci-
ordenador do mercado é o conceito comum de que "cooperação é melhor tiva raramente iniciava estas extensões da coordenação,embora, de tem-
do que competição". A cooperação como a solidariedade, pressupõe uma pos em tempos difundisse uma moral que já ganhara aceitação pelo grupo
medida maior de concordância em torno dos fins bem como dos métodos dominante.
empregados em sua busca. Disto tem sentido num grupo pequeno cujos Tudo isto confirma que os sentimentos que pressionam contra as
membros compartilham de determinados hábitos, conhecimentos e con- restrições da civilização são anacrônicos, adaptados às dimensões e às
vicções a respeito de possibilidades. Mas não faz sentido algum quando condições dos grupos do passado distante. Além disso, se a civilização
o problema é a adaptação a circunstâncias desconhecidas, contudo é nes- resultou de transformações gradativas e indesejadas da moral, por mais
ta adaptação ao desconhecido que se baseia a coordenação dos esforços que relutemos em aceitar isto, jamais chegaremos a conhecer um sistema
na ordem espontânea. A competição é um processo de descoberta, pro- ético universalmente válido.
cesso implícito cm toda evolução, que levou o homem a reagir incons- Contudo seria errado concluir, exclusivamente destas premissas
cientemente a novas situações; e é sempre graças à competição, e não à evolutivas, que quaisquer que sejam as normas que evoluíram elas
concordância, que gradativamentc, aumentamos nossa eficiência. conduzem sempre ou necessariamente à sobrevivência e crescimento das
Para funcionar de modo benéfico a competição exige que aqueles populações que as seguem. Precisamos demonstrar, com a ajuda da
que nela estão envolvidos observem as normas em vez de recorrer à força análise econômica (ver Capítulo V), como normas que surgem esponta-
física. neamente tendem a promover a sobrevivência humana. O fato de reco-
nhecermos que as normas em geral tendem a ser escolhidas pela compe-
Somente as normas podem consolidar uma ordem espontânea. (Os
tição, em função de seu valor de sobrevivência para o homem, com
fins comuns só podem fazê-lo numa emergência temporária que cria um
certeza não isenta essas normas do escrutínio crítico. Isto ocorre, quando
perigo comum a todos. O "equivalente moral à guerra" apresentado para
não por outras razões, por ter havido tão freqüentemente uma interferên-
invocar a solidariedade não é senão uma recaída aos princípios de coor-
cia coercitiva no processo de evolução cultural.
denação mais primitivos). Nem todos os fins almejados e nem todos os
Contudo, o conhecimento da evolução cultural na verdade tenderá
meios usados, são conhecidos ou precisam ser conhecidos por qualquer
a transferir o benefício da dúvida às normas estebelecidas, e a impor o
um para serem levados em consideração numa ordem espontânea. Esta
ônus da prova naqueles que desejam reformá-las. Embora não possamos
ordem nasce de si mesma. O fato de as normas se adequarem cada vez provar a superioridade das instituições de mercado, uma visão histórica
melhor para gerar ordem se deu não porque os homens compreenderam e evolucionária do surgimento do capitalismo (como aquela apresentada
melhor sua função, mas porque os grupos que as mudaram de uma forma nos Capítulos II e III) contribui para explicar como puderam surgir
que os tornou cada vez mais capazes de se adaptar, prosperaram. Esta tradições produtivas, ainda que impopulares e involuntárias e quão
evolução não foi linear, mas resultou de constantes tentativas e erros, profunda é sua importância para aquelas inerentes à ordem espontânea.
constante "experimentação" cm campos nos quais ordens diferentes com- No entanto, em primeiro lugar. quero retirar do caminho que acabei de
'
petiam entre si. Evidentemente não havia intenção de experimentar con- traçar, um importatíssimo obstáculo sob a forma de uma errônea e
tudo as transformações das normas produzidas por acidentes históricos, difundida concepção da natureza de nossa capacidade de adotar costumes
análogos às mutações genéticas, tiveram em part~ o mesmo efeito. úteis.
A evolução das normas não se deu absolutámente
í
sem embaraços, A consciência não é um guia, mas produto da evolução, e é baseada
pois os poderes que aplicavam as normas em gemi resistiam em vez de mais na imitação do que na perspicácia ou na razão.
contribuir para as mudanças conflitantes com as posições tradicionais a Mencionamos a capacidade de aprender por imitação como um dos
respeito do que era certo ou justo. Por sua vez, a aplicação de normas principais benefícios concedidos ao longo de nosso desenvolvimento
recentemente aprendidas que haviam lutado até sua aceitação às vezes instintivo. Na verdade, talvez a capacidade mais importante com a qual
bloqueava o estágio seguinte da evolução, ou limitava uma ulterior
Entre o Instinto e a Razão 41
40 A Arrogância Fatal
o ser humano foi dotado geneticamente, além das reações inatas, é a de tão complexas -para que ela tome as rédeas e controle o desenvolvi-
adquirir técnica pelo aprendizado em grande parte imitativo. mento futuro. Essa fantasia é encorajada por aquilo que já defini como
Diante disso, é importante evitar, desde o início, um conceito "racionalismo construtivista" (1973), que afeta grande parte do pensa-
derivado do que chamo de ''arrogância fatal'': a idéia de que a capaci- mento científico, e que se tornou bastante explícito no título de um livro
dade de adquirir habilidades deriva da razão. Pois trata-se do contrário: de grande sucesso de autoria de um famoso antropólgo socialista, Man
Makes Himself (V. Gordon Childe, 1936), título que foi adotado por
nossa razão é tanto o resultado de um processo de solução evolucionária
quanto nossa moral. No entanto, ele deriva de um desenvolvimento um muitos socialistas como uma espécie de lema (Heibroner, 1970:1 06).
tanto quanto distinto, de modo que nunca poderíamos pressupor, que Esses pressupostos incluem o conceito não científico, até n:tesmo animis-
nossa razão se encontra na mais alta posição crítica e que só são válidas ta, de que em determinado estágio a mente humana racwnal ou alma
a normas morais que a razão endossa. . penetrou no corpo huma~o em evolução transfo~ndo-s_e num novo
mentor ativo do desenvolvimento cultural que se segmu (e nao que, como
Nos capítulos seguintes analisarei essa questão, mas cabe aqm uma
realmente ocorreu, esse corpo gradativamente adquiriu a capacidade de
antecipação das minhas conclusões. O título do presente capítulo, ·'Entre
absorver princípios excessivamente complexos os quais lhe permitiriam
o instinto e a razão" deve ser entendido ao pé da letra. Quero chamar a
movimentar-se com maior êxito em seu ambiente). Essa noção de que a
atenção para aquilo que realmente existe entre o instinto e a razão, e que
evolução cultural é posterior à evolução biológica ou genética ign?ra.a
por conta disso, freqüentemente passa ~esapercebi.do .apenas po:que se
parte mais importante do processo evolutivo, aquela em que a propna
pressupõe que nada há entre elas. Ou seJa, estou pnnc1palmente mteres-
razão se formou. A idéia de que a razão, ela própria criada no decorrer
sado na evolução cultural e moral, evolução da ordem espontânea, a qual
da evolução, agora deveria ter condições de d~tern:tinar sua. própria
se encontra de um lado (como acabamos de ver) além do instinto e
evolução futura (sem falar de uma quantidade mfin~~ ?e cmsas que
freqüentem;nte se opondo a ele, e, por outro lado (como veremos mais
também é incapaz de fazer) é inerentemente c~ntradttona, e pode ser
tarde) é incapaz de ser criada ou planejada pela razão.
refutada com facilidade (ver Capítulos V e VI). E menos exato supor que
Meus pontos de vista, alguns dos quais foram anteriormente esbo-
o homem pensante cria e controla sua evolução cultural do que dizer que
çados ( 1952/1973/197 6/1979), podem ser resumidos de maneira simples.
a cultura, e a evolução, criam sua razão. , .
Aprender a se comportar constitui antes na .fónte e não o resultado ?a
Em todo caso, a idéia de que em algum momento o des1gm.?
percepção, da razão e do conhecimento. O homem não nasce. sábiO,
consciente surgiu suplantando a evolução substitui um pos~ulado P.ratl-
racional e bom, mas precisa se ensinado a se tornar tal. Não fm nosso
camente sobrenatural da interpretação científica. No que diz respeito a
intelecto que criou nossa moral; ao contrário, as interações humanas
interpretação científica, não foi aquilo que conhece~~s.como consci~n
governadas por nossa moral possibilitam o desenvolvimento .da r~ão e
cia que desenvolveu a civilização, e muito menos dmgm sua evoluçao,
das capacidades a ela relacionadas. O homem se tornou .mt~hgente
mas foram antes a consciência e a civilização que se desenvolveram ou
porque havia uma tradição -aquilo que se encontra entre o n~st~nto e a
razão -para ele aprender. Essa tradição por sua vez não se ongmou de evoluíram paralelamente. . . ,
O que chamo consciência não é algo com o qual o m?IVtduo nasce,
uma capacidade de interpretar racionalmente os fatos observ~do~ mas do
assim como ele nasce com seu cérebro, ou algo que o cerebro produz,
modo costumeiro de responder. Ela dizia ao homem em pnmeuo lugar
mas algo que seu equipamento genético (ou seja, um cérebro de um certo
o que ele devia ou não devia fazer em certas condições e não o que ele
tamanho e estrutura) o ajuda a adquirir (à medida que ele cresce) da
deveria esperar que acontecesse. (
família e dos seus semelhantes adultos, absorvendo os resultados de uma
Deste modo, confesso que sempre tenho de sorrir quando os livros
sobre a evolução, mesmo aqueles escritos por grandes cientistas, con- tradição que não é transmitida geneticamente. A consciência .nesse
cluem como freqüentemente acontece, com exortações que, embora sentido consiste não tanto de conhecimento verificável a respeito ?o
reconhecendo que até aqui tudo evoluiu por um pro~esso de ordem mundo, nem pelas interpretações do ambiente do h?mem, ma: mmto
espontânea, apelam à razão humana - agora que as coisas se tornaram mais pela capacidade de reprimir os instintos -capacidade que nao pode
42 A Arrogância Fatal Entre o Instinto e a Razão 43
ser verificada pela razão individual pois seus efeitos se manifestam no originou-se do pressuposto de que qualquer pesquisador da evolução da
grupo. ~ol~ada pelo ambiente_n? qual os indivíduos se tornam adultos, cultura humana precisa aprender com Darwin. Está errado. Tenho a maior
a c?nsctencta po~ sua vez cond1~10na a preservação, o desenvolvimento, admiração por Charles Darwin por ter sido o primeiro a conseguir
a nqueza e a v~~Iedade de trad1ções em que os indivíduos se inspiram. elaborar uma teoria da evolução coerente (embora ainda incompleta) em
Por ser transm1t1da em grande parte através da família, a consciência qualquer campo. Contudo, seus diligentes esforços para ilustrar de que
pre~erva uma m.ultiplici~ade de correntes simultâneas nas quais cada modo funcionou o processo da evolução nos organismos vivos conven-
recem-chega~o a c?mun.tdade pode :nergulhar. Pode-se perfeitamente ceram a comunidade científica daquilo que há muito constituía um lugar
perguntar se~ posstvel d~zer que um mdivíduo que não teve a oportuni- comum nas ciências humanas -pelo menos desde que Sir William Jones
dade de ~aunr dess~ tradtção cultural teria mesmo uma consciência. em 1787 reconheceu a impressionante semelhança do latim e do grego
A:ss~m com_o o m~tinto ~mais antigo do que o costume e a tradição, com o sânscrito e a descendência de todas as línguas "indogermânicas"
estes ultimas sao m_ms .antigos do que a razão: costume e tradição deste último. Esse exemplo nos faz lembrar que a teoria darwinista ou
encontram-se entr~ o mstmto e a razão -num sentido lógico, psicológico biológica da evolução não foi nem a única do gênero, e que em realidade
e t~mporal. _InclusiVe não decorrem nem daquilo que às vezes chamamos é totalmente distinta. e difere até certo ponto de outras interpretações
~e msconsctente, nem _da intuição e tampouco do conhecimento racional. evolucionárias. A idéia da evolução biológica deriva do estudo de
Embora em certo sentido baseados na experiência humana por terem-se processos do desenvolvimento cultural que haviam sido anteriormente
moldado no decorrer da evolução cultural, não se formaram extraindo reconhecidos: processos que conduzem à formulação de instituições
conclusões racionais de certos !atas ol! da consciência de que as coisas como a língua (como na obra de Jones), a lei, a moral, os mercados e o
se deram de um modo determmado. Embora sejamos governados em dinheiro.
nosso comportamento por aquilo que aprendemos, freqüentemente não
sabe~?s por que razão agimos da forma como agimos. Normas morais Portanto o maior erro da' 'sociobiologia" contemporânea está
adqmndas pelo aprendizado de costumes, gradativamente substituíram talvez em supor que a língua, a moraL a lei, e assim por diante, são
as respostas inatas, não porque os homens reconhecessem pela razão que transmitidas por processos· 'genéticos'' que a biologia molecular está
elucidando agora e não são o produto de uma evolução seletíva
eram melhores. mas porque elas possibilitaram o desenvolvimento de
transmitida pelo aprendizado imitativo. Essa idéia está tão errada
uma ordem est:_ontân.ea qm~ ultrapassava a visão de qualquer um, na qual
embora na outra extremidade do espectro - quanto ao conceito de
uma colaboraçao_mais eficiente permitia a seus membros prover, embora
que o homem inventou ou planejou conscientemente instituições
cegamente, a ma1s pessoas_ e suplantar outros grupos. como a moral, a lei, a língua ou o dinheiro, e portanto pode melhorá-
las a seu bel prazer, conceito que é um resquício da superstição que
a teoria evolucionária na biologia teve de combater: ou seja, que onde
quer que encontremos ordem deve existir a pessoa do ordenador.
O Mecanismo da Evolução Cultural não é Darwinista Novamente verificamos aqui que uma interpretação cuidadosa se
encontra entre o instinto e a razão .
. Nossa tese nos leva a estudar mais profundamente a relação entre a Não só a idéia da evolução é mais antiga nas ciências humanas e nas
teona da evolução e o _desenvolvimento da cultur~. Trata-se de um tema ciências sociais do que nas ciências naturais, mas estou até mesmo
que levan~a uma quantidad~ de questões interessantes, a muitas das quais disposto a sustentar que Darwin tirou as idéias básicas da evolução da
a economia permite um~ v1são que poucas outras disciplinas oferecem. economia. Como aprendemos de seus cadernos de anotações, Darwin lia
c:_ontudo, tem hav1do ~ma grande confusão a respeito da questão justamente Adam Smith em 1838, quando formulou sua própria teoria
que ~ao pretendemos repetir aqui, mas ao menos em parte deve ser (Ver Apêndice A abaixo). Em todo caso, a obra de Darwin foi precedida
menciOnada para alertar o leitor. O darwinismo social, especialmente de décadas, na realidade de um século, de pesquisa sobre o surgimento
Entre o Instinto e a Razão 45
44 A Arrogância Fatal
CAPÍTULO II
As Origens da Liberdade,
da Propriedade e da Justiça
49
50 A Arrogância Fatal As Origens da Liberdade... 51
regi~o as pos~ibilidade~ de com~rcio através de grandes distâncias pro- indivíduo tem a liberdade de dispor, e de um método igualmente reco-
porciOnaram as comumdades CUJOS membros haviam podido usar livre- nhecido pelo qual o direito a determinadas coisas pode ser transferido de
mente s~u conhecit?ento individual uma vantagem em relação àquelas uma pessoa para outra. O pré-requisito da existência dessa propriedade,
n~s _quais o conhecimento local ou o de um governante determinava as da liberdade e da ordem, é o mesmo desde o tempo dos gregos: a lei no
ati_vid~des d~ cada um. Até onde sabemos, a região mediterrânica foi a sentido de normas abstratas permitindo que cada indivíduo determine a
pnmeira re?I~o n~ qual passou-se a aceitar o direito de uma pessoa dispor qualquer momento quem terá o direito de dispor de determinada coisa.
de um dommw pnvado reconhecido, permitindo assim que os indivíduos Com relação a alguns objetos, o conceito de propriedade individual
desenv?lvessem uma densa rede de relações comerciais entre diferentes deve ter aparecido muito cedo e os primeiros utensílios feitos à mão
com~mdades. Essa rede operava independentemente das opiniões e dos constituem talvez um exemplo adequado. A ligação de um utensílio ou
d~seJOS d~ chefe~ locais, pois naquela época os movimentos dos nego- uma arma peculiar e extremamente útil a seu criador poderia. contudo,
ciantes_ nao podiam_, por certo ser controlados por um planejamento ser tão forte que a transferência se tornou de tal modo difícil do ponto de
centralizado. Se aceitarmos o relato de uma autoridade muito respeitada vista psicológico que o instrumento tinha de acompanhá-lo até o túmulo
e que com certeza não é tendenciosa a favor da ordem do mercado, 0 -como no tholos ou túmulos em forma de colméia do período micênio.
mund.o greco-r?mano era em sua essência e precisamente o mundo da Aparece aqui a fusão do inventor com o 'legítimo proprietário'. e com
propnedade p;I~ada, quer se tratasse de alguns acres de terra, quer dos ela numerosas elaborações da idéia básica. à qual às vezes associava
Imensos dommws de senadores e imperadores romanos. 0 mundo do também a lenda, como na história tardia de Artur e sua espada Excalibur
comércio e da manufatura privada (Finley, 1973:29). -uma história na qual a transferência da espada se deu não por uma lei
. Est~ ordem qu~ atendia a uma multiplicidade de objetivos pessoais humana mas por uma lei 'superior' da magia ou dos 'poderes ocultos'.
so p~odena, com efeito, ter-se constituído sobre os fundamentos do que A extensão e o refinamento do conceito de propriedade foram
preh_ro chamar de propriedade individual privada. que é o termo mais necessariamente. como estes exemplos sugerem, processos gradativos
preci~o usado yor H.S. Maine para indicar o que se costuma definir até hoje não concluídos. Tal conceito contudo não seria tão significativo
propnedade pnvada. Se a propriedade individual é o fulcro dos costumes para os bandos errantes de caçadores e catadores nos quais o indivíduo
de toda ~ivi.lização avançada, os gregos mais antigos foram aparentemen- que descobrisse uma fonte de alimento ou de um local para o abrigo era
!e ~s pnmeiros a perceber que ela é também inseparável da liberdade do obrigado a revelar sua descoberta aos companheiros. É provável que os
mdiv_Iduo. Os autores da constituição da antiga Creta, diz a história. primeiros utensílios duráveis produzidos individualmente passassem a
'partiam do pressuposto de que a liberdade é o maior bem de um estado ser ligados aos seus criadores por serem estes os únicos que possuíam a
~apenas por esta razã? que a propriedade deve pertencer especificamente habilidade para usá-los - e de novo cabe lembrar aqui a história de Artur
aqueles que a adqmrem, enquanto num regime de escravidão tudo e de Excalibur, pois embora Artur não tivesse feito Excalibur. era o único
pertence aos governantes' (Estrabão, lO. 4. 16). capaz de manuseá-la. A propriedade individual distinta de bens pereceí-
Um aspecto importante desta liberdade- a liberdade de diferentes veis, por outro lado, pode ter aparecido mais tarde, quando enfraqueceu
indivíduos ou _subgrupos buscarem objetivos distintos, guiados por dife- a solidariedade do grupo e os indivíduos se tornavam responsáveis por
rentes conhecimentos e habilidades próprios -tornou-se possível não grupos mais reduzidos como a família. Provavelmente. a necessidade de
apenas pelo controle distinto de vários meios de produção. mas também manter a integridade de uma propriedade explorável gradativamente
por outro costume. praticamente inseparável do primeiro: o reconheci- levou à transição da propriedade grupal para a propriedade individual da
~ento de ?1é~o~os consen~u~is de t~ansferência desse controle. A capa- terra.
cidade do Individuo de decidir por SI mesmo sobre o modo de usar coisas Contudo, pouco importa especular sobre a sequência específica
específicas. deixando-se guiar por seu conhecimento e expectativas bem desses desenvolvimentos, pois provavelmente variaram de modo consi-
como po~ aqueles do grupo ao qual ele venha a se integrar, depende do derável entre os povos que foram evoluindo com o pastoreio nômade e
reconhecimento geral de um domínio privado respeitado do qual o aqueles que desenvolveram a agricultura. A questão crucial é que o
52 A Arrogância Fatal As Origens da Liberdade... 53
desenvolvimento prévio da propriedade individual é indispensável para protótipo dos selvagens que repudiaram a civilização (para uma visão
o desenvolvimento do comércio e deste para a formação de estruturas representativa do século XVIII sobre este povo ver o dr. Samuel Johnson
coesas e de cooperação mais amplas e para o aparecimento dos sinais a na obraLife, de Boswell, ou o ensaio Uber die Gesetzgebng des Lykurgos
que chamamos preços. O fato de que os indivíduos, os clãs ou os und Solon de Friedrich Schiller). Contudo, já em Platão e Aristóteles
agrupamentos voluntários de indivíduos fossem reconhecidos como encontramos um sentimento nostálgico pela volta aos costumes esparta-
proprietários de determinados objetos é menos importante do que o fato nos e este sentimento persiste até o presente. É um anseio por uma
de que todos podiam escolher os indivíduos que determinariam o uso de micro-ordem determinada pela visão geral da autoridade onisciente.
sua propriedade. Também é possível que se tenham desenvolvido, prin- É verdade que, por algum tempo, as grandes comunidades de
cipalmente no que concerne à terra, certos acordos como uma divisão comerciantes surgidas no Mediterrâneo foram precariamente protegidas
'vertical' dos direitos de propriedade entre proprietários superiores e contra os saqueadores pelos romanos, ainda mais belicosos, os quais,
inferiores, ou proprietários e arrendatários, como aqueles no desenvolvi- como Cícero narra, dominaram a região subjugando os centros comer-
mento das modernas propriedades que hoje poderiam ser utilizadas talvez ciais mais avançados de Corinto e Cartago que haviam sacrificado a
com mais proveito do que permitem certos conceitos mais primitivos de bravura militar à mercandiet navigandi cupiditas (N. do T.: à cobiça do
propriedade. comércio e da navegação) (De república, 2, 7-1 0). Mas nos últimos anos
Tampouco devemos considerar as tribos como a linhagem da qual da República e nos primeiros séculos do Império, governada por um
se iniciou a evolução cultural: elas são antes seu produto primordial. Estes senado cujos membros estavam profundamente envolvidos em interesses
grupos coesos "primordiais' possuíam.uma ascendência comum e uma comerciais, Roma deu ao mundo o protótipo do direito privado baseado
comunidade de costumes com outros grupos e indivíduos em relação às na concepção mais absoluta da propriedade privativa. O declínio, e por
quais não eram necessariamente familiarizados (como analisaremos no fim o colapso final desta primeira ordem espontânea só ocorreram depois
próximo capítulo). Portanto, não podemos dizer com precisão quando as que a administração central de Roma foi progressivamente substituindo
tribos se tornavam as preservadoras de tradições comuns e quando se a livre iniciativa. Esta seqüência repetiu-se inúmeras vezes: a civilização
iniciou a evolução cultural. Entretanto, de certo modo, embora lentamen- podia se espalhar mas era improvável que seu avanço fosse significativo,
te e marcada por revezes, a cooperação ordenada foi se ampliando e fins sob um governo que tirava dos cidadãos a direção dos negócios. Ao que
concretos comuns foram substituídos por normas de conduta gerais e parece ainda não se desenvolveu nenhuma civilização avançada s~m um
abstratas independentes de fins específicos. governo que tenha como objetivo principal a proteção da propnedad.e
privada, mas a evolução e o crescimento por esta gerados foram co.ntl-
nuamente interrompidos por um governo 'forte'. Os governos suficien-
temente fortes para proteger os indivíduos contra a violência de seus
A Herança Clássica da Civilização Européia semelhantes possibilitam a evolução de uma ordem de cooperação es-
pontânea e voluntária cada vez mais complexa. Contudo, mais cedo ou
mais tarde, eles tendem a abusar desse poder e a suprimir a liberdade que
Ao que tudo indica, foram também os gregos, e principalmente os no início garantiam a fim de impor sua sabedoria supostamente maior e
filósofos estóicos com sua visão cosmopolita, os primeiros a formular a a não permitir que 'as instituições sociais se desenvolvam ao acaso' (para
tradição moral que os romanos mais tarde difundir~m por todo o Império. tomarmos uma expresão característica encontrada no verbete 'engenharia
Que esta tradição gera grande resistência já é coisa sabida e voltaremos social' no Fontana/Harper Díctionary of Modern Thought (1977).
a encontrá-la repetidas ocasiões. Na Grécia foram é claro especialmente Se o declínio romano não interrompeu de forma permanente os
os espartanos. o povo que resistiu de forma mais acirrada à revolução processos evolutivos mesmo na Europa, movimentos análogos que ini-
comercial, que não reconheceu a propriedade individual mas permitiu e ciaram na Ásia (e mais tarde de forma independente na Mesoamérica)
mesmo encorajou o roubo. Até os tempos atuais eles permenacem o foram interrompidos por governos poderosos os quais (semelhantes aos
54 A Arrogância Fatal As Origens da Liberdade... 55
sisten;as feud.ai~ medievais na Europa mas dotados de poder superior) riqueza que tornou possível a existência de tais monumentos, deixaram
tambem supnmtram de modo eficiente a iniciativa privada. No mais testemunhos menos tangíveis e aparatosos de suas realizações.
notá.vel deste~ ~i.stemas, a China imperial, deram-se grandes avanços no
sentido da CIVIlização e de uma sofisticada tecnologia industrial em
repet.idos 'perío~os de turbulência', quando o controle do governo enfre-
quecta temporanamente. Mas estas rebeliões ou aberrações, eram regu- Onde Não há Propriedade Não há Justiça
larmente sufocadas pelo poderio de um estado preocupado literalmente
com a preservação da ordem tradicional (J. Needham, 1954).
Tampouco os doutos observadores da ordem espontânea incipiente
Isto é patente também no Egito, onde temos boas informações duvidam que ela estivesse enraizada na segurança, garantida pelos go-
a respeito do papel desempenhado pela propriedade privada no sur- vernos, os quais limitavam a coerção à aplicação das normas abstratas
gimento dessa grande civilização. Em seu estudo das instituições e que determinavam o que devia pertencer a quem. O 'individualismo
do direito privado naquele país, Jacques Pirenne descreve o caráter possessivo' de John Locke, por exemplo, não foi apenas uma teoria
essencialmente individualista da lei no final da terceira dinastia
política, mas o produto de uma análise das condições às quais Inglaterra
quando a propriedade era 'individual e inviolável, totalmente subor~
e Holanda deveram sua prosperidade. Ela se baseou na percepção de que
dinada ao proprietário' (Pirenne, 1934: II, 338-9), mas registra o
início de sua decadência já na quinta dinastia. O que levou ao
a justiça, que deve ser aplicada pela autoridade política para assegurar a
socialismo de estado da décima oitava dinastia, descrito em outra obra cooperação pacífica entre os indivíduos na qual se baseia a prosperidade,
francesa da mesma data (Dairaines, 1934). que predominou nos dois não pode existir sem o reconhecimento da propriedade privada: "Onde
mil anos seguintes e explica amplamente a estaganação da civilização não há propriedade não há justiça'', é uma proposição tão certa como
egípcia naquele período. qualquer demonstração de Euclides: pois se a idéia de que a propriedade
implica um direito a algo, e a idéia à qual é dado o nome de injustiça é a
Do mesmo modo, a respeito do renascimento da civilização euro- invasão ou a violação desse direito, é evidente que por serem estas idéias
~éia, o fim da Idade Média poderíamos dizer que a expansão do capita- assim estabelecidas, e assim nomeadas, posso com certeza saber que esta
lismo- e da civilização européia- deve suas origens e raison d'être proposição é tão verdadeira quanto que um triângulo tem três ângulos
à anarquia política (Baechler, 1975 :77). A moderna industrialização não iguais a dois ângulos retas' (John Locke: 169011924: IV, iii, 18). Logo
se desenvolveu sob os governos mais poderosos, mas nas cidades da depois, Montesquieu dava a conhecer sua mensagem segundo a qual fora
Renascença italiana, da Alemanha meridional e dos Países Baixos e o comércio que espalhara a civilização e maneiras afáveis entre os
finalmente na Inglaterra que desfrutava de um governo menos interven- bárbaros da Europa Setentrional.
cionista, ou seja, sob o governo da burguesia e não de guerreiros. A Para David Hum e e outros moralistas e teóricos escoceses do século
proteção da propriedade intelectual e não o controle de sua utilização XVIII, era evidente que a adoção da propriedade individual marca o
pelo governo, lançou as bases do desenvolvimento da densa rede de início da civilização, as normas que regiam a propriedade pareciam tão
intercâmbio de serviços que moldou a ordem espontânea. fundamentáveis que Hume lhes dedicou a maior parte de seu Tratado
Portanto, nada é mais errôneo do que as fórmulas convencionais dos sobre a moral. Fora às restrições ao poder do estado de interferir na
historiadores.que apontam a implantação de um çstado poderoso como propriedade que, mais tarde, em sua História da Inglaterra (V ol. V), ele
o ponto culmmante da evolução cultural: ao contrátio, ela frequentemen- atribuiu a grandeza daquele país e no próprio Tratado (III, ii) explicou
te marcou seu fim. A este respeito os estudiosos da história antiga foram claramente que se a humanidade pusesse em prática uma lei a qual, em
ex~remamene influenciados e enganados por monumentos e documentos vez de estabelecer normas gerais governando a propriedade e o intercâm-
de~xados pelos detentores do poder político, enquanto os verdadeiros bio desta, 'atribuísse a posse maior à mais amPla virtude ... tão incerto é
edificadores da ordem espontânea, os quais quase sempre criaram a o mérito, quer pela ambiguidade natural, quer pela presunção de cada
As Origens da Liberdade... 57
56 A Arrogância Fatal
indivíduo, que dela jamais poderia derivar uma norma definida de influência de lingüistas e juristas alemães como F.C. von Savigny, tais
conduta e a dissolução total da sociedade seria a conseqüência imediata'. temas depois analisados novamente por H.S. Maine. A afirmação de
Mais tarde, em Enquiry, ele observou: 'Os fanáticos podem supor que a Savigny (em seu protesto contra a codificação do direito civil) merece
dominação se fundamenta na graça e que somente os santos herdarão a ser citada integralmente: 'nesses contatos os agentes livres só poderão
terra; mas o magistrado civil com muita justeza coloca estes sublimes existir lado a lado, apoiando-se mutuamente sem impedir o outro em seu
teóricos no mesmo nível dos assaltantes comuns e lhes ensina com severa desenvolvimento, só poderão fazê-lo mediante o reconhecimento de uma
disciplina que uma norma a qual a especulação pareceria a mais vantajosa fronteira invisível no interior da qual a existência e atuação de cada
para a sociedade, pode entretanto se revelar, na prática, totalmente indivíduo tem garantido um certo espaço livre. As normas pelas quais
perniciosa e destruidora' (1777/1886: IV, 187). estas fronteiras indeterminadas, e por meio delas os limites de cada um,
Hume observou claramente a relação dessas doutrinas com a liber- constituem o direito' (Savigny, 1840:1, 331-332).
dade e a maneira como a liberdade máxima exige iguais restrições à
liberdade de cada um por meio do que ele chamou as três 'leis fundamen-
tais da natureza': 'a estabilidade da propriedade, a sua transferência pelo As Várias Formas e Objetos da Propriedade
consentimento e o cumprimento dos contratos' (1739/1886: II, 288, 293 ). e sua Melhoria
Embora sua posição derivasse em aparte das posições dos teóricos da lei
consuetudinária, como Sir Matthew Hale (1609-76), Hume foi talvez o
primeiro a perceber com clareza que a liberdade geral se torna possível As instituições da propriedade, como hoje existem, não são perfei-
quando os instintos morais naturais são 'controlados e restringidos por tas: na realidade, ainda não podemos dizer em que esta perfeição consiste.
um juízo subsequente' segundo a 'justiça, ou o respeito à propriedade de A evolução cultural e moral exige estágios ulteriores para que a institui-
outrem, a fidelidade, ou a observância dos contratos que se tornaram ção da propriedade individual seja de fato benéfica como pode ser. Por
obrigatórias e adquiriram uma autoridade sobre a humanidade' ( 1741, exemplo, precisamos ter o costume geral da concorrência para impedir a
1742/1 886: III, 455). Hume não cometeu o erro, mais tarde tão comum, violação da propriedade. Isto por sua vez exige uma maior repressão dos
de confundir dois sentidos de liberdade: o curioso sentido segundo o qual sentimentos inatos existentes na microordem, o pequeno grupo analisado
um indivíduo isolado poderia supostamente ser livre, e aquele segundo anteriormente (ver Capítulo I acima, e Schoeck, 1966/69), pois estes
o qual muitas pessoas que colaboram reciprocamente podem ser livres. sentimentos instintivos são frequentemente ameaçados, não apenas pela
Considerando-se o último contexto dessa colaboração, somente as nor- propriedade individual mas às vezes mais ainda pela concorrência, e isto
mas abstratas de propriedade- ou seja, as normas do direito -garantem leva as pessoas a ansiar duplamente pela ·solidariedade' não competitiva.
a liberdade. Embora a propriedade seja no início um produto do costume, e a
Quando Adam Ferguson resumiu este ensinamento definindo o jurisdição e a legislação a tenham simplesmente desenvolvido no curso
selvagem como o homem que ainda não conhecia a propriedade dos mílênios, não há razão para se supor que as formas específicas por
(1767/73: 136) e quando Adam Smith notou que 'ninguém jamais viu um ela assumida no mundo contemporâneo sejam definitivas. Os conceitos
animal indicar por gestos ou gritos naturais a outro, isto é meu, aquilo é tradicionais dos direitos de propriedade foram considerados nos últimos
seu' (1776/1976:26), eles expressavam o que, apesar das freqüentes tempos um conjunto modificável e muito complexo cujas combinações
revoltas de bandos rapaces ou famintos, havia sido, por praticamente dois mais eficazes ainda não foram descobertas em todos os campos. Novas
milénios, a opinião das pessoas cultas. Como disse Ferguson, é óbvio que pesquisas sobre esses assuntos, originadas em grande parte na obra
propriedade é uma questão de progresso' (ibid.). Essas questões, como estimulante, embora infelizmente inacabada, de Sir Arnold Plant, foram
observamos, também foram pesquisadas na linguagem e no direito; analisadas em alguns ensaios breves porém muito influentes por seu
foram bem compreendidas no liberalismo clássico do século XIX: e antigo estudioso Ronald Coase (1937 e 1960), favorecendo o surgimento
provavelmente através de Edmund Burke, mas talvez muito mais p~la de uma ampla 'escola dos direitos de propriedade' (Alchian, Becker,
As Origens da Liberdade... 59
58 A Arrogância Fatal
CAPÍTULO III
Evolução do Mercado:
Comércio e Civilização
Samuel Butler
Ou ii y a du commerce
11 y ades moeurs douces*
Montesquieu
61
62 A Arrogância Fatal
Evolução do Mercado... 63
espontânea, foram pouco compreendidos na época, ou mesmo muitos muitas vezes descritos como revoluções culturais. Mais tarde, passou a
séculos mais tarde, inclusive pelos maiores cientistas e filósofos: com existir no final do sétimo milênio a.C. uma rede de rotas comerciais
certeza, ninguém jamais os organizou de forma deliberada. , marítimas e terrestres para o transporte de obsidiana da ilha de Meios até
O momento, as circuntâncias e os processos sobre os quais escreve- o continente na Ásia Menor e Grécia (ver a introdução de S. Green a
mos estã~ enc~bertos pelas brumas do tempo e é impossível distinguir Childe, 193611981, e Renfrew, 1973:29, ver também Renfrew,
s_uas parttculandad~s com alguma esperança de precisão. Talvez já 1972:297-307). Existem provas de extensas redes comer~iais unindo o
tlvesse_se desenv?l~t?o c~rta ~specialização e intercâmbio nas pequenas Baluchistão (no Paquistão Ocidental) a certas regiões da Asia Ocidental
comumdades pnmttlvas mtetramente orientado pelo consentimento de antes mesmo de 3200 a.C. (Childe, 1936/1981: 19). Sabemos também que
seus membro~. ~~de ter existido certo comércio sem importância quando a economia do Egito predinástico se baseava firmemente no comércio
os homens pnmtttvos, acompanhando as migrações dos animais, encon- (Pirenne, 1934).
t~a~am outros homens e outros grupos. Embora existam provas arqueo- A importâncía do comércio regular nos tempos homéricos é indica-
logtcas de um comércio muito primitivo, não só são raras, como também da pelos episódios narrado na Odisséia (L 180-184 ), no qual Atena
tendem a ser enganadoras. Os artigos essenciais que o intercâmbio aparece a T elêmaco na figura do capitão de um navio que transportava
permitia obter eram na maior parte consumidos sem deixar traço - uma carga de ferro a ser trocada por cobre. A grande expansão do
e_nquanto_ a~ raridades trazidas com o objetivo de induzir seus proprietá- comércio que permitiu mais tarde o rápido desenvolvimento da civiliza-
rios a satisfazer essas necessidades freqüentemente se destinavam a ser ção clássica parece ter ocorrido, pelos indícios arqueológicos, numa
conservadas c portanto eram mais duráveis. Ornamentos armas e uten- época da qual não existe qualquer documentação histórica, ou seja. nos
sílios constituem as principais provas positivas, embora p~ssamos inferir duzentos anos que vão de cerca de 750 a 550 A.C. A expansão do
da ausência de recursos naturais essenciais na região, utilizados em sua comércio também parece ter produzido, mais ou menos na mesma época,
~eitura: que tais objetos devi.am ser adquiridos pel~ comércio. Tampouco acelerados aumentos populacionais nos centros comerciais da Grécia e
e pro_vavel que a arqueologia encontre o sal que as pessoas conseguiam da Fenícia. Estes rivalizavam a tal ponto entre si no estabelecimento de
depois de percorrer longas distâncias; mas a remuneração que os produ- colônias, que no início da era clássica a vida nos grandes centros da
tore~ de sal recebiam na venda às vezes permaneceu. Contudo, não foi o cultura passara a depender totalmente de um processo regular de merca-
?es~JO de ,luxo: mas a nece_ssidade qu~ fez do comércio uma instituição do.
mdispensavel a qual as antigas comumdades passaram a dever cada vez A existência do comércio nesses tempos primitivos é incontestáveL
mais sua própria existência. assim como seu papel na difusão da ordem. Contudo, o estabelecimento
Seja como for que isto ocorreu, o comércio com certeza surgiu muito do processo de mercado não foi provavelmente fácil e deve ter sido
cedo e o comércio através de grandes distâncias, e de artígos cujas origens acompanhado por uma ruptura significativa nas tribos primitivas. Mesmo
prova~elm:nte n~o era~ conhecidas pelos comerciantes que o pratica- quando surgiu algum reconhecimento da propriedade individuaL novos
vam, e mmto mms antigo do que outro contato atualmente conhecido costumes anteriormente desconhecidos deveriam necessariamente existir
~ntre_grup?s remotos. A moderna arqueologia confirma que o comércio para que as comunidades estivessem inclinadas a permitir que ~eus
e mais antigo do que a agricultura ou qualquer Qutro tipo de produção membros levassem para uso de estrangeiros (e para fins conhec1dos
regular (Leakey, 1981 :212). Na Europa existem indícios de comércio apenas em parte pelos próprios comerciantes, e muito menos pelo popu-
através de enormes distâncias mesmo na era paleolítica, pelo menos há lacho local) artigos procurados pertencentes à comunidade, os quais
30.0~0. anos (_H~rskovits, ~ 948, 1~60). Há 8.000 anos, Catai Huyuk na poderiam ser utilizados para o uso local. Por exemplo, os embarcadores
Anatoha e Jenco. na Palestma, haviam se tornado centros de intercâmbio das cidades gregas emergentes que transportavam ânforas de cerâmica
entre os Mares Negro e Vermelho, antes ainda que se iniciasse o comércio cheias de azeite ou vinho para o Mar Negro, Egito ou Sicília a fim de
de artigos de cerâmica e metais. Ambas as localidades oferecem também trocá-los por cereais, por este processo levavam a povos a respeito dos
exemplos primitivos dos 'extraordinários incrementos populacionais' quais seus compatriotas praticamente nada conheciam, bens que estes
64 A Arrogância Fatal Evolução do Mercado... 65
muito desejavam. Ao permitir que tal coisa acontecesse. os membros do adaptados a determinados 'nichos' ambientais bastante limitados, fora
pequeno grupo fi~ararn, provavelmente, buscando urna>nova orientação dos quais não poderiam existir, os homens e alguns outros animais, como
para a ~ompree~sao do rnun~o, na qual ~ importância do pequeno grupo os ratos, conseguiram se adaptar a quase todos os lugares na superfície
er~ mmto ~eduztda. Corno Ptggott exphca em Ancient Europe, 'garim- da terra.
peiros e mmeradores, comerciantes e atravessadores, a organização de Isto não se deve meramente à capacidade dos indivíduos. Apenas
frotas mercantes e caravanas, concessões e tratados, o conceito de povos algumas localidades relativamente pequenas poderiam proporcionar aos
e costumes estrangeiros em terras distantes - tudo está implícito na pequenos bandos de caçadores e catadores tudo aquilo de que mesmo os
a~1~li~ção da percepção social exigida pelo passo tecnológico que per- grupos mais primitivos que usavam utensílios necessitavam para uma
mitiU mgressar na era do bronze' (Piggott, 1965 :72). Corno o mesmo existência sedentária, e menos ainda era o número de localidades que
a~t~r _escreve a respeito da era intennediária do bronze do segundo proporcionavam tudo aquilo que era necessário para o cultivo da terra.
mil em o, ·A rede de rotas marítimas, fluviais e terrestres confere um Sem o apoio de seus semelhantes de outros lugares, a maioria dos seres
caráter interna~io?al a gra?de parte do trabalho em bronze da época, e humanos acharia inabitáveis os locais que pretendia ocupar ou sua
encontramos tecmcas e estilos amplamente distribuídos de urna extremi- ocupação poderia ser bastante limitada.
dade à outra da Europa' (ibid, 118). Os poucos nichos relativamente auto-suficientes que existiam pro-
Que práticas facilitaram esses novos processos e introduziram não vavelmente foram os primeiros em qualquer área a ser ocupados de forma
apenas urna nova percepção do mundo mas até mesmo urna espécie de permanente e defendidos dos intrusos. Contudo, as pessoas que neles
'internacionalização' (a palavra é evidçntemente anacrônica) de estilo. viviam acabariam conhecendo lugares próximos que atenderiam a grande
técnic~ e atitudes? Com certeza, elas incluíam pelo menos hospitalidade, parte mas não a todas as suas necessidades, e que não possuiriam artigos
proteçao e um salvo conduto (ver a próxima seção). Os territórios das cuja procura era apenas ocasional: pedras-de-fogo, cordas para seus
antigas _tribos vaga~ente definidos, mesmo numa época primitiva, eram arcos, colas para fixar lâminas de corte em cabos, material para o
presumiyel~1:nte ligados por um emaranhado de relações comerciais curtimento de peles, e coisas desse gênero. Confiante de que estas
~ntre os I_ndiVIduos que se baseavam nessas práticas. As relações pessoais necessidades poderiam ser satisfeitas nas raras visitas de volta aos lares,
forne~en_am os _elo_s sucessi_vos de cadeias pelas quais pequenas, e con- eles se afastavam dos seus grupos e ocupavam alguns desses locais
tudo mdtspensaveis, quantidades de 'elementos-traço' se transmitiam próximos ou outros territórios novos ainda mais distantes, em outras
através de grandes distâncias. Isto possibilitou as ocupações sedentárias partes dos continentes escassamente provoados nos quais viviam. A
e portanto a especialização em muitas localidades novas - e também importância desses primitivos deslocamentos de pessoas e de bens ne-
contribuiu para aumentar a densidade populacional. Iniciou-se uma cessários não pode ser medida apenas pelas suas dimensões. Sem a
reação em cadeia: a maior densidade populacional, levando à descoberta disponibilidade de importações, mesmo que estas constituíssem apenas
de oportu_nidades para _a especialização, ou à divisão do trabalho, provo- uma fração insignificante do que na época era consumido em qualquer
cava um ~n.cremcnto_ au:da maior da população e da renda per capita, o parte os primeiros colonizadores estariam impossibilitados de se mante-
que permitia um mmor mcremento populacionaL E assim por diante. rem, e muito menos se multiplicarem.
O retorno para renovar os suprimentos não criaria dificuldades, na
medida em que os migrantes ainda eram conhecidos por aqueles que
O Comércio Possibilita a Densidade haviam permanecido em casa. No espaço de algumas gerações, entretan-
to, os descendentes desses grupos originais se tornariam estrarthos uns
de Ocupação do Mundo
aos outros, e os que habitavam as localidades originais mais auto-sufi-
cientes muitas vezes começariam a se defender e aos seus suprimentos
.Es!a 'reação em cadeia' iniciada pela nova colonização e pelo de várias maneiras. Para obter a permissão de ingressar no território
comerciO pode ser estudada mais a fundo. Se alguns animais estão original com o propósito de obter qualquer artigo especial que só podia
66 A Arrogância Fatal
Evolução do Mercado... 67
ser co1_1seguid~ naquele lugar, os visitantes teriam de levar presentes, para e o coletivismo dos pequenos grupos primitivos. Em todo caso, alguns
anuncmr suas mt.enções p~cífica~ e estimular os desejos de seus ocupan- indivíduos se afastaram, ou se libertaram, da influência e das obrigações
tes. Para produzir um efeito mais eficaz, esses presentes não deveriam da pequena comunidade, e começaram não apenas a estabelecer outras
servir ao atendimento das necessidades cotidianas facilmente satisfeitas comunidades, mas também a lançar as bases de uma rede de relações com
no local, mas teriam de ser ornamentos ou iguarias tentadoramente novos membros de outras comunidades -uma rede que, por fim, com inúmeros
e raros. Esta é um~ das razões pelas quais os objetos oferecidos por uma pontos e ramificações, cobriu toda a terra. Estes indivíduos contribuíram
das partes envolvidas nessas transações de fato. eram muitas vezes com sua participação, embora inconscientemente e não intencional, para
'luxos' - o que não significa que os objetos trocados não constituíssem a edificação de uma ordem mais complexa e ampla- uma ordem muito
necessidades para a outra parte.
além do seu próprio alcance e do seus contemporâneos.
De início, desenvolveram-se provavelmente relações regulares en- Para criar esta ordem, tais indivíduos deviam ser capazes de usar as
volv~nd? troca de presentes entre famílias, com obrigações mútuas de informações para fins só por eles conhecidos. Não poderiam fazê-lo sem
hospita~Id_ade relac,I~nadas de formas complexas aos rituais de exogamia. a vantagem de certos costumes, como o do xenos, compartilhando com
A transtçao da pratica de dar presentes a estes membros da família e grupos distantes. Os costumes teriam de ser comuns, mas o conhecimento
parentes ao surgimento de instituições mais impessoais de anfitriões ou particular e os propósitos dos indivíduos que seguiam esses costumes
'agentes' q'!e ~ormalmente patrocinavam esses visitantes e obtinham por podiam diferir e se basear em informações privilegiadas. Isto. por sua
eles a permiss~o de permanecer o tempo suficiente para conseguir aquilo vez, teria estimulado a iniciativa individual.
de que ~ecess1tavam, e ao ~ostume de trocar certas coisas nas proporções Pois somente um indivíduo, e não o grupo, poderia conseguir a
determmada.s por sua relativa escassez, foi sem dúvida lenta. Mas a partir admissão pacífica a um território estranho e adquirir dessa forma conhe-
do, r~conhectmento de um mínimo ainda considerado adequado e de um cimentos de que seus companheiros não dispunham O comércio não
maximo ao qual a transação deixaria de parecer compensadora, foram poderia se basear no conhecimento coletivo, apenas no conhecimento
a?s poucos surgindo preços específicos para objetos determinados. Ine- individual característico, apenas o crescente reconhecimento da proprie-
VItavelmente equivalentes tradicionais devem também ter-se adaptado de dade privada poderia possibilitar semelhante uso da iniciativa individual.
modo estável a condições modificadas. Os embarcadores e outros comerciantes eram guiados pelo lucro pessoal;
. . E.m_todo caso, na história da Grécia antiga encontramos a importante contudo em breve a riqueza e a subsistência da crescente população de
mstitmçao do xenos, o amigo-hospedeiro, que garantia a admissão e a suas cidades, por eles possibilitadas pela busca de ganhos por meio do
proteção no interior de um território estranho. Na realidade, o comércio comércio e não da produção, só podiam ser preservadas por sua constante
deve te.r-se desenvolvido em grande parte como uma questão de relações iniciativa na descoberta de novas oportunidades.
pessoais, mesmo que a aristocracia guerreira o mailtivesse sob o disfarce
de uma troca mútua de presentes. E não só aqueles que já eram ricos Para que aquilo que acabamos de escrever não induza ao erro,
podiam conceder hospitalidade aos membros de determi~adas famílias é preciso lembrar que a razão pela qual os homens adotariam um novo
de outr~s regiões: e~sas relações também enriqueceriam as pessoas costume ou uma inovação determinada é de importância secundária.
proporciOnando canais por meio dos quais era possível satisfazer neces- O mais importante é que para um costume ou uma inovação se
sidades fundamentais de sua comunidade. O xenos em Pylos e Esparta preservarem há dois pré-requisitos distintos. Em primeiro lugar,
ao 9ual ;elên:ac? se dirige para obter notícias de, 'seu bem viajado pai devem existir certas condições que possibilitem a preservação através
Odtsseu (Odlsseza:· III) era provavelmente um sócio comercial o qual de gerações de certos costumes cujos benefícios não são necessaria-
ascendera por sua nqueza tornando-se rei. . mente compreendidos ou apreciados. Em segundo lugar, grupos que
preservam tais costumes devem ter adquirido vantagens distintas,
A ampliação da<; oportunidades de negociar de forma vantajosa com
permitindo-lhes assim expandir-se mais rapidamente do que outros e
forasteiros sem dú~~da também contribuiu para acentuar o rompimento em última instância suplantar (ou absorver) os que não possuem
que naquela altura Ja ocorrera com a solidariedade, os objetivos comuns costumes semelhantes.
68 A Arrogância Fatal Evolução do Mercado... 69
Comércio Mais Antigo do Que o Estado concederam maior independência e segurança aos indivíduos que prati-
cassem o comércio beneficiaram-se com o aumento da informação e da
população disso decorrente. Contudo, quando os governos perceberam
Se a raça humana acabou ocupando a maior parte da terra de forma até que ponto seu povo havia se tornado dependente da importação de
tão densa, podendo manter grandes números de indivíduos mesmo em certos alimentos e matérias-primas essenciais, esforçaram-se para asse-
re?iões onde seria i~possível produzir qualquer artigo necessário à vida, gurar estes suprimentos de um modo ou de outro. Alguns governos
fm porque a humamdade aprendeu, como um corpo colossal se espregui- primitivos, por exemplo, depois de vir a conhecer inicialmente por meio
çando, a se estender até os pontos mais remotos e a colher de cada área do comércio individual a existência de recursos desejáveis, tentaram
os diversos ingredientes necessários a alimentação do todo. Na realidade obter estes recursos organizando expedições militares ou colonizadoras.
talvez não esteja muito distante o tempo em que até a Antártida permitirá Os atenienses não foram os primeiros e com certeza nem os últimos a
que milhares de mineiros ganhem folgadamente a vida. Para um obser- tentá-lo. Mas é absurdo concluir desse fato, como alguns escritores
vador que se encontra no espaço, a ocupação da superfície da terra, com modernos (Polanyi, 1945, 1977), que, na época de maior prosperidade e
o as~ecto cada vez mais variado que ela produz, pode parecer um crescimento de Atenas, seu comércio fosse 'administrado', regulamen-
crescimento orgânico. Mas não é bem isto: ela foi obra de indivíduos que tado pelo governo por meio de tratados e realizado com preços controla-
não seguem exigências instintivas mas costumes e normas tradicionais. dos.
Estes comerciantes e anfitriões raramente sabem (assim como seus Ao contrário, parece que, repetidas vezes, governos poderosos
pre?e.cess?res rara~ente sabiam) tudo isto a respeito das necessidades prejudicaram de tal forma as melhorias espontâneas, que o processo de
mdividums que satisfazem. Tampouco precisam deste conhecimento. Na evolução cultural se extinguiu prematuramente. O governo bizantino do
r:ali~ade tais necessidades só aparecerão em grande parte numa época Império Romano do Oriente constitui talvez um exemplo dessa situação
tao distante no futuro que ninguém é capaz de prever sequer seu perfil (RostovtzefC 1930, e Einaudi, 1948). E a história da China mostra várias
geral. tentativas do governo de implantar uma ordem tão perfeita, que a
Quanto mais aprendemos sobre a história econômica tanto mais inovação se tornou impossível (Needham, 1954). Este país se desenvol-
errônea parece a crença de que o estabelecimento de um est;do extrema- veu no aspecto tecnológico e científico de uma forma tão mais adiantada
men~e. ~rga~izado foi o ponto culminante do desenvolvimento primitivo em relação à Europa que, para dar apenas um exemplo, tinha dez poços
da CIVIhzaçao. O papel desempenhado pelos governos é bastante exage- petrolíferos operando num trecho do rio Pojá no século XIL com certeza
rado nos registras históricos porque conhecemos necessariamente muito sua posterior estagnação, mas não seu primeiro progresso, deveu-se ao
~ai; s?bre as realizações da organização governamental do que sobre a poder manipulador dos seus governos. O que fez com que a civilização
dmamica que a coordenação espontânea dos esforços individuais reali- extremamente avançada da China ficasse atrasada em comparação à da
zou. Este equívoco decorrente da natureza do que foi preservado, como Europa foi o fato de seus governos sujeitarem o país de modo tão rigoroso
d~cum~nt~s e monumentos, é exemplificado pela história (que espero que não deixaram espaço a novos desenvolvimentos, enquanto, como
seJa ap?cnfa) do arqueólogo que do fato de os registras primitivos de observamos no último capítulo, a Europa provavelmente deve sua ex-
determmados preços estarem gravados numa coluna de pedra conclui que traordinária expansão na Idade Média à anarquia política (Baechler,
os preç~s sempre foram fixados pelos governos. O que não é pior do que 1975: 77).
descobnr numa obra famosa a tese de que un;ia vez não terem sido
encontrados espaços abertos apropriados nas escavações das cidades
babilônicas, nelas ainda não poderiam ter existido mercados regulares - A Cegueira do Filósofo
como se num clima quente tais mercados funcionassem ao ar livre!
Era mais freqüente os governos obstacularem do que incentivarem O total desconhecimento de Aristóteles no que diz respeito à ordem
o desenvolvimento do comércio através de grandes distâncias. Os que de mercado na qual vivia, demonstra de modo mais evidente quão pouco
70 A Arrogância Fatal Evolução do Mercado... 71
a riqueza dos principais centros comerciais gregos, em particular Atenas tes, e com certeza maior parte da população de seus compatriotas ate-
e mais tarde Corinto, decorreu de uma política governamental deliberada nienses, jamais pudesse vir a existir se seus antepassados se contentassem
e quão pouco era conhecida a verdadeira origem desta prosperidade. em satisfazer as necessidades conhecidas presentes. Ele desconhecia o
Embora esse filósofo seja citado às vezes como o primeiro economista, processo experimental de adaptação a mudanças imprevistas pela obser-
o que ele analisou como oikonomia foi exclusivamente a direção de uma vação de normas abstraías, as quais. quando bem sucedidas, podiam
casa ou quando muito de um empreendimento individual como uma provocar um aumento da população e a formação de modelos regulares.
fazenda. Os esforços aquisitivos do mercado só mereceram seu desprezo Portanto, Aristóteles estabeleceu também um modelo de enfoque comum
e ele chamou a seu estudo chrematistika. Embora a vida dos atenieneses da teoria ética, no qual as indicações da utilidade das normas oferecidas
de sua época dependesse do comércio de cereais com países distantes, pela história não são reconhecidas, um modelo no qual jamais há qualquer
sua ordem ideal continuava sendo aquela que era autarkos. auto-suficien- preocupação em se analisar a utilidade de um ponto de vista econômico
te. Aclamado também como biólogo, Aristóteles, entretanto, não teve porque o teórico esquece os problemas cujas soluções poderiam se
nenhuma percepção de dois aspectos cruciais da formação de qualquer incorporar nestas normas.
estrutura complexa, ou seja, a evolução e a auto-geração da ordem. Como Como as únicas ações morais eram as que visam claramente ao
diz Ernst Mayr (1982:306): 'A idéia de que o universo poderia ter-se beneficio dos outros, ações que buscam unicamente o lucro pessoal
desenvolvido a partir de um caos originaL ou de que organismos supe- deveriam ser más segundo a visão de Aristóteles. Só as considerações
riores poderiam ter evoluído de organismos inferiores. era totalmente comerciais não afetam talvez as atividades cotidianas da maioria das
alheia ao pensamento de Aristóteles. Repetindo, Aristóteles opunha-se à pessoas. Isto não significa que por um período prolongado suas próprias
evolução de qualquer espécie'. Ao que tudo indica, ele não percebeu o vidas não tivessem dependido do funcionamento de um comércio que
sentido da 'natureza' (ou physis) que define o processo de crescimento lhes permitisse adquirir itens essenciais. A produção com vistas ao lucro,
(ver Apêndice A), e também desconhecia aparentemente as várias distin- que Aristóteles denunciou como antinatural, havia se tornado muito
ções entre as ordens auto-geradas já conhecidas pelos filósofos pré-so- antes de sua época - o fundamento de uma espontânea ampla que
cráticos, como distinção entre o kosmos surgido de modo espontâneo e transcendia significativamente as necessidades conhecidas de outras
uma ordem deliberadamente organizada, por exemplo a de um exército, pessoas.
que pensadores mais antigos haviam chamado taxis (Hayek, 1973:37). Sabemos agora, que na evolução da estrutura das atividades huma-
Para Aristóteles, toda organização das atividades humanas era taxis. o nas, a lucratividade funciona como um sinal que guia a seleção em função
resultado de uma organização intencional da ação individual por uma do que torna o homem mais produtivo; como norma, somente o que é
mente ordenadora. Como vimos antes (Capítulo I), ele afirmou de modo mais lucrativo alimentará mais pessoas, pois dos males o menor. Tudo
categórico que a ordem só podia ser obtida num espaço suficientemente isto foi pelo menos observado por alguns gregos anteriores a Aristóteles.
pequeno para que todos conseguissem ouvir o grito do arauto, um lugar Na realidade, no século V- ou seja, antes de Aristóteles- o primeiro
que pudesse ser facilmente demarcado (eu.synoptos. Politeia: 1326b e historiador verdadeiramente grande iniciava sua história da Guerra do
1327a). 'Uma multidão excessivamente grande', declarou (1326a), 'não Peloponeso ret1etindo que o povo primitivo sem comércio. sem liberdade
pode participar da ordem'. de comunicação por terra ou por mar, cultivando em seu território apenas
Para Aristóteles somente as necessidades col)hecidas de uma popu- aquilo que as necessidades vitais exigiam, jamais ascenderia além de uma
lação existente ofereciam uma justificativa natura~ ou legítima ao esforço vida nômade e conseqüentemente 'não construiria grandes cidades e
econômico. Ele considerava a humanidade, e a própria natureza. como tampouco atingiria qualquer outra forma de grandeza' (Tucídides, tradu-
se estivesse sempre existido em sua forma atual. Essa visão estática não ção de Crawly, L 1, 2). Mas Aristóteles ignorava esta percepção.
deixava margem a um conceito de evolução e impedia-lhe até mesmo de Se os atenienses tivessem seguido o conselho de Aristóteles -um
se perguntar como haviam surgido as instituições existentes. Parece conselho cego tanto à economia quanto à evolução- sua cidade rapida-
nunca ter-lhe ocorrido o fato de que a maioria das comunidades existen- mente se reduziria às dimensões de uma aldeia. pois sua concepção da
zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
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74 A Arrogância Fatal A Revolta do Instinto e da Razão 75
chamo 'construtivismo' ou 'cientismo' (do francês), que nos séculos política havia surgido não por obra de seres humanos 'lutando pela
seguintes captou praticamente as reflexões mais importantes sobre a liberdade' no sentido de liberdade de restrições, mas por sua luta pela
razão e seu papel nas questões humanas. Esta forma específica de proteção de um domínio individual reconhecido e assegurado. Rousseau
racionalismo tem sido o ponto de partida das pesquisas que venho fez com que as pessoas esquecessem que as normas de conduta reprimem
realizando há sessenta anos, nas quais tentei mostrar que é particularmen- necessariamente e que a ordem é seu resultado; e que estas normas,
te mal arrazoada por encerrar uma falsa teoria da ciência e da racionali- precisamente por limitarem a gama de recursos que cada indivíduo pode
dade na qual se abusa da razão, e, o que é mais importante, que leva utilizar para seus objetivos, ampliam enormemente a gama dos fins que
invariavelmente a uma interpretação errônea da natureza e do surgimento cada qual pode perseguir com sucesso.
das instituições humanas. Essa interpretação faz com que, em nome da Foi Rousseau que -ao declarar na frase inicial de O Contrato
razão e dos máximos valores da civilização, os moralistas acabem Social: 'O homem nasceu livre e se encontra em toda parte acorrentado',
iludindo os que foram relativamente mal sucedidos e instigando as e pretendendo libertar os homens de todas as constrições 'artificiais' -
pessoas a satisfazer seus desejos primitivos. fez do chamado selvagem o virtual herói dos intelectuais progressistas,
Já no período moderno, a partir de René Descartes, essa forma de incitou as pessoas a se libertarem das restrições, às quais deviam sua
racionalismo não apenas despreza a tradição, como afirma que a razão produtividade e sua expansão numérica e engendrou um conceito de
pura pode servir diretamente aos nossos desejos sem essa sua interme- liberdade que se tornou o maior obstáculo à sua consecução. Depois de
diação e pode edificar um novo mundo, uma nova moral, uma nova lei, afirmar que o instinto animal era o guia mais perfeito para a cooperação
até mesmo uma linguagem nova e depurada, unicamente a partir de si ordenada entre os homens do que a tradição ou a razão, Rousseau
própria. Embora a teoria seja evidentemente falsa (ver também Popper, inventou a fictícia vontade do povo, ou 'vontade geral', pela qual o povo
1934/1959 e 194511966), ainda domina o pensamento da maioria dos 'se torna uma única entidade, um indivíduo' (Contrato Social, I, vii, e
cientistas e também da maioria dos literatos, dos artistas e dos intelec- ver Popper. 194511966:IL54). É esta talvez a origem principal da arro-
tuais. gância fatal do moderno racionalismo intelectual que promete nos con-
Talvez devesse especificar imediatamente o que acabo de afirmar duzir de volta a um paraíso no qual instintos naturais, e não as restrições
acrescentando que existem outras correntes que poderíamos chamar de adquiridas que lhes são impostas, nos permitirão 'submeter o mundo',
racionalistas as quais tratam de maneira diferente estas questões, como como nos ensina o livro do Genesis.
por exemplo aquela que considera as próprias normas da conduta moral O grande apelo tentador desta concepção não deve seu poder de
como parte da razão. Assim John Locke explicou que, 'no entanto, por sedução (não importa o que diga) à razão e aos fatos. Como vimos, o
razão eu não penso que se esteja referindo aqui a aquela faculdade de selvagem estava longe de ser livre e tampouco poderia ter submetido o
compreensão que forma encadeamentos de pensamento e deduzir provas, mundo. Na realidade, ele pouco podia fazer a não ser que o grupo todo
mas a certos princípios definidos de ação dos quais emanam todas as ao qual pertencia concordasse. A decisão individual pressupunha esferas
virtudes e tudo o que é necessário para a formação adequada da moral' individuais de controle, e portanto só se tornou possível com a evolução
( 1954:11 ). Contudo, posições como a de Locke continuam minoria entre da propriedade privada, cujo desenvolvimento, por sua vez, lançou as
aquelas que se denominam racionalistas. bases para o crescimento de uma ordem espontânea transcendendo a
O segundo desdobramento, relacionado ao primeiro, desafiou a percepção do cacique ou chefe -ou da coletividade.
ordem espontânea e surgiu do trabalho e da influencia de Jean-Jacques A despeito destas contradições, não há dúvida de que a pregação de
Rousseau. Este pensador peculiar- embora freqüentemente considera- Rosseau foi eficaz ou que, nos últimos dois séculos, sacudiu a civilização.
do irracionalista ou romântico - também se apoiou no pensamento No entanto, embora irracionalistas, atraiu precisamente os progresistas
cartesiano e dele dependeu fundamentalmente. A impetuosa mistura de por sua insinuação cartesiana de que poderíamos usar a razão para obter
idéias de Rousseau chegou a dominar o pensamento 'progressista' e fez e justificar a gratificação direta de nossos instintos naturais. Depois que
com que as pessoas esquecessem que a liberdade enquanto instituição Rousseau concedeu ao homem a permisão intelectual de se desfazer das
A Revolta do Instinto e da Razão 77
76 A Arrogância Fatal
restrições culturais, de conferir legitimidade às tentativas de conquistar das que há muito tempo estudam estruturas crescidas como o direito. a
a 'liberdade' das restrições que haviam tomado a liberdade possível, e linguagem e o mercado.
de chamar este ataque aos fundamentos da liberdade, de 'libertação', a Afirmei há pouco que o estudo das instituições tradicionais como a
propriedade poderia ser vista como algo suspeito e deixou de ser tão propriedade 'foi proibido'. Não é um exagero, pois é muito curioso que
amplo reconhecimento como o fator básico que tornou possível a ordem um processo tão interessante e importante quanto a seleção evolucionária
ampla. Ao contrário, passou-se a supor que as normas reguladoras da das tradições morais tenha sido tão pouco estudado, e que a direção que
delimitação e transferência da propriedade individual poderiam ser subs- estas tradições imprimiram ao desenvolvimento da civilização tenha sido
tituídas pela decisão centralizada sobre seu uso. tão amplamente ignorada. Evidentemente, isto não parecerá muito estra-
Na realidade, no século XIX, a importante análise e discussão nho a um construtivista. Se sofremos com o engodo da 'engenharia
intelectual do papel da propriedade no desenvolvimento da civilização social', segundo a qual o homem pode escolher conscientemente o rumo
parecia ter sofrido uma espécie de proibição em muitos círculos. Nessa que pretende tomar, não parecerá tão importante descobrir como ele
época, a propriedade se tornou suspeita para muitos daqueles que deve- chegou à sua atual situação.
riam tê-la pesquisado, um tema a ser evitado pelos progressistas que
acreditavam numa remodelação racional da estrutura da cooperação Pode-se mencionar de passagem, embora não possa explorar
humana. (Esta proibição persistiu no século XX como o mostram, por aqui o assunto, que nem só os herdeiros dos seguidores de Rosseau
exemplo, as declarações de Brian Barry (1961 :80) sobre uso e 'analitici- desafiam a propriedade e os valores tradicionais: nem só o desafio
vem também, embora talvez menos importante, da religião, pois os
dade', nas quais a justiça 'está analiticamente ligada a 'mérito' e 'neces-
movimentos revolucionários desse período (o socialismo racionalista
sidade', de modo que poderíamos dizer com bastante propriedade que e depois o comunismo) contribuíram para fazer reviver antigas tradi-
algumas daquelas que Hume chamou de 'normas de justiça' eram 'injus- ções heréticas da revolta religiosa contra as instituições básicas da
tas', e mais tarde a observação sarcástica de Gunnar Myrdal sobre os propriedade e da família- revoltas chefiadas, nos primeiros séculos,
'tabus da propriedade e do contrato' ( 1969: 17). Os fundadores da antro- por hereges como os gnósticos, os maniqueus, os bogomilos e os
pologia. por exemplo, negligenciaram cada vez mais o papel cultural da cátaros. No século XIX. esses hereges já haviam desaparecido, mas
propriedade, de modo que nos dois volumes de E.B. Tylor sobre Primi- surgiram milhares de novos revolucionários religiosos os quais diri-
tive Culture ( 1871 ), nem a propriedade nem a posse aparecem no índice giram seu zelo contra a propriedade e a família, apelando também
remissivo, enquanto E. Westermarck- que dedicou à propriedade um para os instintos primitivos contra estas restrições. A rebelião contra
longo capítulo- influenciado por Saint-Simon e Marx, já a considera a a propriedade privada e a família, em suma, não se limitou aos
fonte questionável do 'rendimento imerecido' e conclui disso que a 'lei socialistas. Crenças místicas e sobrenaturais foram invocadas não
apenas para justificar as restrições costumeiras aos instintos, como
da propriedade mais cedo ou mais tarde sofrerá uma mudança radical'
por exemplo nas correntes dominantes do catolicismo romano e do
(1908:II, 71 ). A tendência socialista do construtivismo também tem protestantismCÍ, mas também, em movimentos mais periféricos, para
influenciado a arqueologia contemporânea, mas demonstra sua incapa- respaldar a liberação dos instintos.
cidade de compreender os fenômenos econômicos na sociologia (e, pior
ainda, na dita 'sociologia do conhecimento'). A própria sociologia pode-
ria quase ser considerada uma ciência socialista, por ter sido abertamente Limites de espaço, bem como uma competêncía insuficiente impe-
apresentada como sendo capaz de criar uma nova ordem de socialismo dem-me de tratar nesse livro do segundo dos objetos tradicionais da
(Ferri, 1895), ou mais recentemente que pode 'prever o desenvolvimento reação atávica que acabei de mencionar: a família. Contudo, tenho de
futuro e moldar o futuro, ou de criar o futuro da humanidade' (Segers- notar pelo menos que acredito que o novo conhecimento factual privou
tedt,l969:441). Como a 'naturologia', que outrora pretendeu substituir em certa medida as normas tradicionais da moral sexual de parte de seu
todas as pesquisas especializadas da natureza, a sociologia prossegue no fundamento, e que parece provável que devam ocorrer mudanças signi-
menosprezo soberano do conhecimento obtido por disciplinas consagra- ficantes nesse campo.
78 A Arrogância Fatal
A Revolta do Instinto e da Razão 79
Depois de mencionar Rousseau e sua profunda influência, bem influentes, não apenas com o velho darwinismo social analisado no
como estes outros acontecimentos históricos, ainda que seja apenas
Capítulo L não mais amplamente aceito, mas também com muitos outros
para lembrar aos leitores de que a revolta de autores importantes
contra a propriedade e a moral tradicional não é apenas relativamente
pontos de vista do passado e do presente: com as concepções de Platão
recente, tratarei agora de alguns herdeiros intelectuais de Rousseau e e Aristóteles, de Rousseau e dos fundadores do socialismo, com as de
Descartes do século XX. Saint-Simon, Karl Marx e muitos outros.
Na realidade, o ponto básico de minha tese- a tese de que a moral,
. No entanto, devo primeiramente enfatizar aqui que estou negligen- incluindo especialmente as nossas instituições da propriedade, liberdade
c~ando em grande parte a longa história dessa revolta, bem como as e justiça, não são uma criação da razão humana mas um segundo dom
diferentes dire~ões que_ tomou em diferentes países. Muito antes que distinto que lhe foi concedido pela evolução cultural -contrasta com a
August Comte mtrod~zisse o termo 'positivismo' para a concepção que visão intelectual preponderante no século XX. A influência do raciona-
represent,a~a uma 'éti~a demonstrada' (isto é, demonstrada pela razão) lismo foi na realidade tão profunda e abrangente que, em geral, quanto
como a umca alternativa possível a uma 'ética revelada' sobrenatural mais inteligente é uma pessoa instruída, maior é a probabilidade de que
(1854:1, 356), Jeremy Bentham havia aperfeiçoado os fundamentos mais ela seja não apenas racionalista, como também que tenha posições
~ólidos do ~que cham~~os agora_ positivismo legal e moral: ou seja, a socialistas (independentemente de ser bastante doutrinária para rotular
mterpr~taçao c~nstrutiVIsta dos sistemas do direito e da moral segundo de alguma forma suas posições, inclusive como 'socialistas'). Quanto
os qums sua validade e importância dependeriam totalmente da vontade mais subimos na escala da inteligência, quanto mais falamos com inte-
e da intenção de seus criadores. . lectuais, maior a probabilidade de encontrarmos convicções socialistas.
. . O pr~p:io B~ntham é uma figura tardia dessa evolução. O constru- Os racionalistas tendem a ser inteligentes e intelectuais e os intelectuais
tlvismo nao mclm apenas a tradição bentamista, representada e continua- inteligentes tendem a ser socialistas.
da po: John ~tuart Mille posteriormente pelo Partido Liberal Inglês, mas
ta:nbempratlc~ente todos.os contemporâneos americanos que se deno- Se me pennitem fazer aqui duas observações pessoais, acho que
mmam hberms (em oposição a outros pensadores bastante distintos. posso afinnar que falo com alguma experiência desta concepção
encontrados mais freqüentemente na Europa, também denominados li- porque essas posições racionalistas que venho analisando e criticando
berais, m~s.com mais propriedade chamados 'Old Whigs' e cujos pensa- sistematicamente há tantos anos são aquelas sobre as quais eu, junta-
mente com a maioria de pensadores europeus não religiosos da minha
dores mats Im~o:tantes foram Alexis de Tocqueville e Lord Acton). Esta
geração, formulei minhas concepções na primeira parte deste século.
forma construtivista de pensar torna-se praticamente inevitável se, como
Naquela época, elas pareciam óbvias e segui-las seria a forma de
s.ugere un: agudo analista suíço contemporâneo, aceitamos a filosofia escapar a todo tipo de superstições perniciosas. Como eu mesmo lutei
liberal (lei.a-~e ~socialista') predominante que parte do pressuposto de algum tempo para me libertar destes conceitos e na realidade,
que se a distmçao entre bem e mal é importante para o próprio homem descobri durante esse processo que eles próprios são supertições -
ele, deve, e pode, traçar deliberadamente a linha divisória entre os dois não quero que algumas de minhas observações um tanto impiedosas
(Kirsch, 1981 :17). sobre detenninados autores nas páginas seguintes sejam vistas como
pessoais.
Nossos Intelectuais e Sua Tradição Além disso, talvez seja conveniente lembrar nesse momento aos
de Socialismo Razoável leitores de meu ensaio 'Sobre o por quê não sou conservador' (1960:
Posfácio), para que eles não tirem conclusões incorretas. Embora minha
tese seja direcionada contra o socialismo, eu tenho tão pouco do conser-
O que sugeri a respeito de moral e tradição, sobre economia e 0
vadorismo Tory Gurant Edmund Burke. Meu conservadorismo, de fato,
mercado, e sobre evolução, conflita obviamente com muitas idéias
restringe-se totalmente a moral dentro de certos limites. Sou totalmente
80 A Arrogância Fatal
A Revolta do Instinto e da Razão 81
Aqueles que realmente mais contribuíram para difundir estas idéias uma questão de livre escolha mas uma questão de obrigação para nós'
os verdadeiros pilares do racionalismo construtivista e do socialismo nã~ ( 1970:20-21 ). No final do mesmo ano, para dar nova ênfase às suas idéias,
são entreta~~o esses ~a~osos cientistas. Ao contrário, são em ger~l os ele defendeu a mesma posição num livro agora famoso, Chance and
chamados .I~tel~ctums que em outra oportunidade (1949/1967: 178- Necessity (1970/1977). Nele Monod recomenda que, renunciando asce-
194) chamei ~mple?osamente de 'vendedores de idéias de segunda mão': ticamente a todos os outros alimentos espirituais, reconheçamos a ciência
professores, JOrnalistas e 'representantes da mídia', os quais, captando como a nova e praticamente exclusiva fonte da verdade, e em conformi-
boatos nos corredores da ciência, denominaram-se representantes do dade com isto. revisemos os fundamentos da ética. O livro conclui. como
pensamen~o moderno, como se fossem pessoas superiores por conheci- tantas outras declarações semelhantes com a idéia de que 'á ética, em sua
me~t~ e v~rtude moral a todos os que têm grande respeito pelos valores essência sem o~jetivo, está para sempre excluída da esfera do conheci-
tradiciOnais, pessoas cujo autêntico dever é oferecer novas idéias ao mento' (1970/77: 162). A nova 'ética do conhecimento não se impõe ao
públ~co - e que, para fazer com que sua mercadoria pareça nova, homem; ao contrário, ele é que a impõe a si mesmo' ( 1970/77: 164 ). Esta
pre~ISai~ zo~~ar de tudo o que é convencional. Para estas pessoas, nova 'ética do conhecimento', diz Monod, 'é a única atitude ao mesmo
devido a posiçao em que se encontram, 'novidade' ou 'notícia' toma-se tempo racional e decididamente idealista sobre a qual o verdadeiro
o valor principal, e não a verdade embora dificilmente seja sua' intenção socialismo poderia se apoiar' (1970/77: 165-66). As idéias de Monod se
- e embora o que eles têm a oferecer freqüentemente não seja novo nem caracterizam por estarem profundamente arraigadas numa teoria do
tão verdadeiro. Além. disso, poderíamos indagar se estes intelectuais às conhecimento que tentou desenvolver uma ciência do comportamento-
vezes. não sã? inspirados pelo resse1-1timento porque, sabendo o que seja ela chamada eudemonismo, utilitarismo, socialismo, ou seja lá o que
devena .s~r feito, recebem muito menos do que aqueles cuja instrução e for -alegando que certos tipos de comportamento sati:4àzem melhor
CUJas at_IVI~a?es na realidade orientam os negócios práticos. Esses intér- nossos desejos. Somos aconselhados a nos comportarmos de uma forma
pretes hteranos do avanço científico e tecnológico, dos quais H.G. Wells, que permita que determinadas situações satisfaçam nossos desejos e nos
pela extraordinária qualidade de sua obra constituiria um excelente façam mais felizes, e coisa parecida. Em outras palavras, o que se quer é
exemplo, contribuíram muito mais para difundir o ideal socialista de uma uma ética que os homens possam aceitar deliberadamente para alcançar
economia centralmente planificada na qual a cada um é destinada sua objetivos conhecidos, desejados e escolhidos de antemão.
par~e, do que os verd~deiros cientistas dos quais tomaram emprestados As conclusões de Monod apoiam-se em sua opinião de que a única
mm tos dos seus conceitos. Outro exemplo desse gênero é o dos primeiros maneira possível de explicar a origem da moral -além de atribuí-la a
trabalhos de George Orwell, o qual afirmou em certa ocasisão que uma invenção humana - é pela interpretação animista ou antropomór-
'qualqu~r ~1_11 que use seu cérebro sabe perfeitamente que está no âmbito fica como a de muitas religiões. E de fato é verdade que 'para a
das pos~Ibi,hdades que o mundo, pelo menos em potencial, seja extrema- humanidade em geral todas as religiões estiveram como um todo ligadas
mente nco de modo que nós poderíamos 'desenvolvê-lo como teria de à visão antropomórfica da deidade como o pai, amigo ou potentado ao
ser e todos poderíamos viver como príncipes, supondo que quiséssemos'. qual os homens devem prestar serviços, orar, etc.' (M.R. Cohen,
Não pretendo deter-me aqui na obra de homens como Wells e 1931: 112). Não posso aceitar esse aspecto da religião assim como Monod
Orwell, mas nas posições apresentadas por alguns dos maiores cientistas. e a maioria dos cientistas da natureza não o aceitam. Parece-me que ele
Po~eríamos. começar por Jacques Monod. Monod·foi uma grande perso- reduz algo que está muito além da nossa compreensão ao nível de uma
nalidade CUJa obra científica muito admiro e, essencialmente, o criador mente quase humana um pouco mais perfeita. Mas rejeitar este aspecto
da moderna biologia molecular. Suas reflexões sobre a ética, entretanto, da religião não impede que reconheçamos que devemos talvez a estas
foram de qualidade bem diferente. Em 1970. num simpósio da Fundação religiões a preservação - mesmo por razões falsas - a prática de
Nobel sobre 'O lugar dos valores num mundo de fatos', ele afirmou: 'o costumes que foram muito mais importantes por terem permitido que o
desenvolvimento científico finalmente destruiu, reduziu ao absurdo, homem sobrevivesse em grandes números do que quase tudo o que foi
relegou ao nível de ridícula quimera. a idéia de que ética e valores não realizado por intermédio da razão (ver adiante Capítulo IX).
A Revolta do Instinto e da Razão 85
84 A Arrogância Fatal
novamente a moral é considerada - por não ser 'cientificamente' por falar sobre um assunto além de sua competência em algumas de suas
fundamentada- como irracional, não sendo reconhecida como concre- obras de divulgação, afirmou em tom de aprovação que 'Einstein estava
tização do conhecimento cultural acumulado. No entanto, vejamos um claramente consciente de que a atual crise econômica é devida ao nosso
cientista ainda maior que Monod ou Keynes, Albert Einstein, talvez o sistema de produção que visa ao lucro e não ao uso, e ao fato de que o
maior gênio de nossa época. Einstein interessava-se por um tema dife- fantástico incremento do poder produtivo na realidade não é acompanha-
rente mas estreitamente relacionado a este. Utilizando um slogan socia- do por um incremento correspondente do poder aquisitivo das grandes
lista popular, ele escreveu que a 'produção para o uso' deveria substituir massas' (M.R. Cohen, 1931: 119).
a 'produção para o lucro' da ordem capitalista (1956: 129). Einstein repete também (no ensaio citado) conhecidos chavões do
discurso socialista sobre a 'anarquia econômica da sociedade capitalista'
Produção para o uso' significa aqui o tipo de trabalho que, no na qual 'a remuneração dos trabalhadores não é determinada pelo valor
pequeno grupo, é orientado pela previsão de quem deverá usar aquele do produto', enquanto 'uma economia planejada... distribuiria o trabalho
produto. Mas esta opinião não leva em conta as considerações apre- a ser feito entre todos os que estão aptos a trabalhar' e coisas do gênero.
sentadas nos capítulos anteriores e que serão debatidos nos seguintes: Uma visão semelhante porém mais comedida aparece num ensaio
na ordem auto-geradora do mercado, somente as diferenças entre os do colaborador de Einstein, Max Bom (1968: cap. V). Embora eviden-
preços esperados para diferentes mercadorias e serviços e seus custos, temente compreendesse que a nossa ordem espontânea já não mais
dizem ao indivíduo como ele pode contribuir melhor ao bolo do qual gratificava os instintos primitivos, Bom também não analisou com
todos tiramos em proporção à nossa contribuição. Einstein parece não profundidade as estruturas que criam e mantêm essa ordem, tampouco
ter percebido que somente.o cálculo e a distribuição em termos de
se deu conta de que nos últimos cinco mil anos a moral instintiva foi
preços de mercado permitem utilizar de modo intensivo os recursos
sendo gradativamente suplantada ou reprimida. Portanto, embora com-
que são possíveis descobrir, a fim de orientar a produção para servir
a fins que se encontram além do âmbito da percepção do produtor, e
preendendo que 'ciência e tecnologia destruíram a base ética da civiliza-
permitir que o indivíduo participe de modo útil do intercâmbio
ção talvez de modo irreparável', ele imagina que isto aconteceu pelos
produtivo (em primeiro lugar, servindo pessoas na maioria desconhe- próprios fatos por elas revelados e não por terem sistematicamente
cidas por ele em geral para a gratificação de cujas necessidades, ele lançado em descrédito convicções que não satisfazem certos padrões de
pode entretanto contribuir eficazmente; e em segundo lugar, ele 'aceitabilidade' exigidos pelo racionalismo construtivista (ver a seguir).
próprio sendo tão bem suprido como é somente porque as pessoas Embora admitindo que 'ninguém ainda excogitou um meio de manter a
que nada sabem a respeito de sua existência são induzidas, também sociedade unida sem princípios éticos tradicionais', Bom espera contudo
pelos sinais do mercado, a prover às suas necessidades: ver capítulo que em princípio possam ser substituídos 'pelo método tradicional usado
anterior). Ao seguir esses sentimentos Einstein mostra sua falta de na ciência'. Ele também não compreende que aquilo que existe entre o
compreensão, ou de seu interesse real, pelos processos efetivos que instinto e a razão não pode ser suplantado pelo 'método tradicional
coordenam os esforços humanos. utilizado na ciência'.
Meus exemplos são tirados de afirmações de importantes persona-
O biógrafo de Einstein narra que segundo ele, era óbvio que 'a razão lidades do século XX; deixei de incluir inúmeras outras, como R. A.
humana deva ser capaz de encontrar um método de distribuição que Millikan, Arthur Eddington, F. Soddy, W. Ostwald, E. Solvay, J. O.
funcione tão eficazmente quanto o da produção' (Clark, 1971 :559)- o Berna!, que declaram coisas absurdas sobre questões econômicas. Na
que nos lembra a afirmação do filósofo Bertrand Russel de que uma realidade, poderíamos citar centenas de afirmações semelhantes feitas
sociedade não pode ser considerada 'totalmente científica' a não ser que por cientistas e filósofos de comparável fama no passado e na atualidade.
'tenha sido criada intencionalmente com uma determinada estrutura para Mas, acredito, podemos aprender mais analisando com cuidado nestes
preencher determinados propósitos' (1931 :203). Tais exigências, em exemplos contemporâneos - e do que há por trás deles - do que pela
particular nas palavras de Einstein, pareciam tão superficialmente plau- simples compilação de citações e exemplos. Talvez a primeira coisa a
síveis que mesmo um comum conhecedor de filosofia, criticando Einstein observar seja que, longe de serem indênticos, possuem certo parentesco.
88 A Arrogância Fatal A Revolta do Instinto e da Razão 89
Uma Ladainha de Erros que as principais tradições morais que criaram e criam nossa cultura -
as quais com certeza não podem ser justificadas dessas maneiras, e
freqüentemente são olhadas com desagrado - não merecem adesão e
As idéias reveladas nesses exemplos têm em comum uma quantida- nossa tarefa deve ser a edificação de uma nova moral baseada no
de de raízes temáticas estreitamente interrelacionadas, e que não são conhecimento científico -em geral a nova moral do socialismo.
~pe~as antecedentes ~istóricos comuns. Leitores que não estejam fami- Essas definições, juntamente com nossos primeiros exemplos, se
!tanzados_com certa literatura talvez não percebam de imediato algumas examinados com maior profundidade, demonstram conter na realidade
I~terrelaç~es. P?rtan!o, antes de explorar ainda mais estas idéias por si os seguintes pressupostos:
s?, gostana de Identificar alguns temas recorrentes - que, à primeira
vtsta, P.odem aparecer in~ontestáveis e conhecidos em geral- formando, 1) Não é razoável seguir o que não podemos justificar do ponto de
no conJunto, uma espécie de tese. Esta 'tese' poderia ser definida como vista científico ou comprovar pela observação (Monod. Bom).
uma ladainha d~ erros, ou uma receita do racionalismo presunçoso que
eu chamo de cientismo e construtivismo. Para começar, consultemos 2) Não é razoável seguir aquilo que não compreendemos. Esta
aquela ·fonte de conhecimento' disponível, o dicionário, um livro que concepção está implícita em todos os nossos exemplos, mas devo con-
contém muitas receitas. Colhi no utilíssimo Fontana!Harper Dictionary fessar que também a defendi outrora e também a encontrei num filósofo
ofA1odern Thought (1977) algumas breves definições de quatro concei- com o qual em geral concordo. De fato, Sir Karl Popper declarou uma
tos filo~óficos básicos que em geral guiam os pensadores contemporâ- vez (1948/63: 122; grifos meus) que os pensadores racionalistas ·não se
neos CUJa formação seguiu linhas científicas e construtivistas: racionalis- submetem cegamente a qualquer tradição', o que é claro, é tão impossível
~o, empirismo, positivismo e utilitarismo -conceitos que, nos últimos quanto não obedecer a nenhuma tradição. No entanto, este deve ter sido
seculos, passaram a ser considerados expressões representativas do 'es- um lapso de escrita, pois em outra oportunidade ele observou com
pírito científico da época'. Segundo estas definições, de autoria de Lord propriedade que 'nós nunca sabemos do que estamos falando'
Quinton, filósofo inglês presidente do Trinity College, em Oxford, o ( 1974/1976:27, e ver também a este respeito Bartley. 1985/1987). (Em-
racionalismo nega que seja aceitável convicções fundadas em outra coisa bora o homem livre insista em seu direito de examinar e, quando for o
que não seja a experiência e o raciocínio. dedutivo ou indutivo. O caso, rejeitar qualquer tradição, ele não poderia viver entre outras pessoas
empirismo sustenta que toda afirmação para que expresse o conhecimen- se se recussasse a aceitar inúmeras tradições sem sequer pensar a seu
to está limitada por algum processo experimental. O positivismo é respeito. e cujos efeitos ele ignora).
definido como a visão segundo a qual todo conhecimento verdadeiro é
científico, no sentido de que descreve a coexistência e a sucessão de 3) A idéia relacionada a que não é razoável seguir determinada
f:_nôme~~s.observáveis. ~o u~ilitarismo 'considera que o prazer e a dor direção a não ser que seu objetivo seja plenamente especificado de
sao o cnteno que determma a Justeza da ação do indivíduo. antemão (Einstein, Russell, Keynes).
Nestas definições encontramos bastante explícitas assim como as
encontramos implícitas nos exemplos citados na seção anterior, as decla- 4) A idéia, também estreitamente relacionada, àquela de que não é
rações de fé da ciência e da filosofia da ciência, e suas declarações de razoável fazer algo a não ser que seus efeitos não só sejam plenamente
guerra c~ntra as tr~dições morais. Estas declarações, definições, postu- conhecidos de antemão mas também sejam plenamente observáveis e
lados, cnaram a Impressão de que só merece, crédito aquilo que é sejam considerados benétlcos (os utilitaristas). (Os pressupostos 2, 3 e 4,
justi?~ável ra?ionalmente, o que pode ser comprovado pela observação apesar de suas diferentes ênfases, são quase idênticos; mas eu os distingüi
empmca, aquilo que pode ser experimentado, aquilo que pode ser pes- aqui a fim de chamar a atenção para o fato de que os argumentos em que
quisado; que só se deveria atuar naquilo que é agradável e que todo o se respaldam giram, dependendo de quem os defende. ou em torno da
resto deveria ser repudiado. Isto por sua vez leva diretamente a afirmar falta de compreensão em geral, ou, mais particularmente, da falta de um
90 A Arrogância Fatal
A Revolta do Instinto e da Razão 91
orde~ m~ior. Conseqüentemente, o tipo de liberdade torna possível pela 'Libertação' e Ordem
obediencia a normas abstratas, em contraposição à liberdade de restri-
ções, é. como disse certa ocasião Proudhon, 'a matriz e não a fllha da
ordem'. Num nível menos sofisticado do que a tese contra a 'alienação'
, . De fat~, n~o há por que esperar que a seleção pela evolução de encontram-se as exigências de 'libertação' do ónus da civilização -
praticas habitums deva produzir felicidade. A ênfase na felicidade foi inclusive o ónus do trabalho disciplinado. responsabilidade, aceitação de
intr~duzida pelos filósofos racionalistas os quais supunham que era riscos, poupança, honestidade, cumprimento de promessas, bem como as
preciso descobrir uma razão consciente. para a escolha da moral humana. dificuldades de reprimir por normas gerais nossas reações naturais de
e essa razão deveria ser a busca deliberada da felicidade. Mas perguntar hostibilidade a estranhos e de solidariedade para com aqueles que são
por que razão consciente o homem adotou suas morais é tão errado quanto nossos semelhantes -uma ameaça ainda mais grave à liberdade política.
perguntar por que razão consciente o homem adotou sua razão. Portanto, o conceito de 'libertação', embora supostamente novo, é em
Não obstante, a possibilidade de que ordem evoluída na qual vive- realidade arcaico em sua exigência de se libertar de morais tradicionais.
t~os nos proporcione uma felicidade igual ou superiores àquelas ofere- Os defensores de tal libertação destruiriam o fundamento da liberdade e
cidas pelas or~ens primitivas a um número muito menor de pessoas não permitiriam que os homens agissem de maneira a acabar irreparavelmen-
devena ser afastada (o que não implica em dizer que estas questões te com as condições que tornam a civilização possível. Um exemplo é a
possam ser plan~jadas. A 'alienação' ou intelicidade da vida moderna chamada 'teologia da libertação', principalmente na Igreja Católica
en: gr~nde parte d~corre de. duas fontes, uma das quais diz respeito Romana da América do S ui. Mas este movimento não se 1imita à América
pnmanamente aos mtelectums, outra, a todos os beneficiários da abun- do Sul. Em toda parte, em nome da libertação, as pessoas repudiam
dância material. A primeira é uma profecia de infelicidade auto-realizável costumes que permitiram à humanidade chegar à sua dimensão atual e
para aqueles que se encontram em qualquer ·sistema' que não atende a ao grau atual de cooperação porque eles não enxergam racionalmente,
critérios racionalistas de controle consciente. de acordo com sua capacidade mental, que certas limitações à liberdade
Portanto, desde Rousseau até personalidades atuais do mundo do individual por meio de normas legais e morais possibilitam uma ordem
pensamento francês e alemão como Foucalt e Habermas. os intelectuais maior - e mais livre! do que aquela que pode ser alcançada pelo
acreditam que a alienação predomina em qualquer sistema no qual uma controle centralizado.
ordem é 'imposta' aos indivíduos sem seu consentimento consciente· Estas pretensões surgem principalmente da tradição do liberalismo
'
conseqüentemente, seus seguidores tendem a achar a civilização insupor- racionalista já analisada (tão diferente do liberalismo político derivado
tável - quase por definição. Em segundo lugar. a persistência de dos antigos Whigs ingleses). que implica que a liberdade é incompatível
sentimentos instintivos de altruísmos e solidariedade inflige àqueles que com qualquer restrição geral à ação individual. Esta tradição está expres-
obedecem às normas impessoais da ordem espontânea aquilo que é moda sa nos trechos já citados, de Voltaire, Bentham e Russell. Infelizmente
chamar de ·má consciência'; do mesmo modo. a conquista do sucesso impregna inclusive até mesmo a obra do 'santo do racionalismo' inglês,
material seria supostamente acompanhada por sentimentos de culpa (ou John Stuart Mill.
·consciência social'). Em meio à abundância, portanto, está a infelicidade Sob a influência destes escritores. e talvez principalmente de Mill,
gerada não só da pobreza periférica, mas também da incompatibilidade. o fato de que devemos comprar a liberdade que nos permita constituir
por parte do instinto e de uma razão arrogante, ·com uma ordem de uma ordem espontânea desde que nos submetamos a certas normas de
natureza decididamente não instintiva e de caráter •extra-racional. conduta foi usado como justificativa para exigir a volta ao estado de
'liberdade' desfrutado pelo selvagem o qual - como os pensadores do
século XVIII o definiram- ·ainda não conhecia a propriedade'. Contudo.
o estado selvagem-que inclui a obrigação ou o dever de participar da busca
de objetivos concretos dos nossos semelhantes, e de obedecer.
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CAPÍTULO V
A Arrogância Fatal
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96 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 97
tradicionalistas sequer se preocupam com justificativas, que de qualquer acreditam mais em sanções sobrenaturais para a moral (e muito menos
modo, não poderiam ser apresentadas (permitindo assim que os intelec- para a linguagem, a lei e a ciência) e não obstante continuam convencidos
tuais as denunciem como antiintelectuais ou dogmáticas). mas continuam de que alguma justificativa é necessária.
seguindo suas práticas por hábito ou por fé religiosa. Em todo caso, isto Portanto, orgulhando-se de ter construído seu mundo como se ela
também não é de modo algum novidade. Afinal, há mais de 250 anos, própria o tivesse planejado, e censurando-se por não tê-lo planejado
Hume observou que 'as normas da moral não são as conclusões da nossa melhor, a humanidade agora prepara-se para fazer extamente isto. O
razão'. Contudo, a afirmação de Hume não foi suficiente para dissuadir objetivo do socialismo não é nada menos que empreender um projeto
a maioria dos racionalistas modernos de continuar acreditando - curio- novo e abrangente de nossa moral, da lei e da linguagem tradicionais e
samente citando Hume para corroborar sua posição -que algo que não sobre a antiga ordem e as condições supostamente inexoráveis e injusti-
deriva da razão é um absurdo ou uma questão de preferência arbitrária, ficadas que impedem a instituição da razão, da satisfação, da verdadeira
e, conseqüentemente, de continuar exigindo justificativas racionais. liberdade e da justiça.
Não só os dogmas tradicionais da religião, como a crença em Deus,
e em grande parte a moral tradicional referente ao sexo e à família
(assuntos de que não trato nesse livro), não correspondem a estas exigên-
cias, mas também as tradições morais específicas de que trato aqui, tal Justificativa e Revisão da Moral Tradicional
como a propriedade privada, a poupança, o intercâmbio, a honestidade,
a boa fé, o contrato.
A situação pode parecer ainda pior se considerarmos que as tradi- Contudo, os padrões racionalistas sobre os quais se baseia toda essa
ções, as instituições e as crenças mencionadas não só não correspondem tese, em realidade todo esse programa, são, na melhor das hipóteses,
às exigências lógicas, metodológicas e epistemológicas expressas como conselhos para a perfeição e, na pior das hipóteses, normas desacredita-
também freqüentemente são rejeitadas pelos socialistas inclusive por das de uma antiga metodologia que pode ter sido incorporada em parte
outros motivos. Por exemplo. elas são consideradas, por Chisholm e do que se supõe ser ciência, mas que nada tem a ver com a autêntica
Keynes, um 'peso esmagador' e também, como por Wells e Forster, investigação. Existe um sistema moral altamente evoluído, bastante
estreitamente relacionadas ao desprezível comércio e aos negócios (ver sofisticado em nossa ordem espontânea ao lado da primitiva teoria da
Capítulo VI). E também podem ser consideradas, como é moda em racionalidade e da ciência defendida pelo construtivismo, cientismo,
particular hoje, causas de alienação e opressão e de 'injustiça social'. positivismo, hedonismo e socialismo. Isto não depõe contra a razão e a
Após tais objeções, conclui-se que existe uma necessidade urgente ciência mas contra estas teorias da racionalidade e da ciência, e contra
de construir uma nova moraL reformada e justificada do ponto de vista parte de sua prática. Tudo se torna evidente quando se percebe que nada
racional, a qual corresponda de fato a estes requisitos, e que, portanto, é justificável da maneira exigida. Não só assim ocorre com a moral, mas
não seja um peso esmagador, alienante, opressivo ou 'injusto', ou que também com a linguagem e a lei e até com a própria ciência.
seja associado ao comércio. Além disso, esta é apenas uma parte da
grande tarefa que esses novos ditadores de regras -os socialistas como Talvez algumas pessoas que não estão informadas dos atuais
Einstein, Monod e Russell, e os que se proclamam imorais, como Keynes avanços e controvérsias no seio da filosofia desconhecem que o que
-estabeleceram para si. Também é preciso construir uma nova lingua- acabo de dizer se aplica também à filosofia da ciência. Mas, na
verdade, não só nossas leis científicas atuais não são justificáveis do
gem e uma lei racional pois a linguagem e a lei existentes também não
modo exigido pelos metodologistas construtivistas, mas temos razões
correspondem a estes requisitos e por razões que se revelam ser as
para supor que acabaremos descobrindo que muitas de nossas atuais
mesmas. (Para isto, as próprias leis da ciência não correspondem a estes conjecturas científicas não são verdadeiras. Além disso, toda concep-
requisitos [Hume, 1739/1951; e ver Popper, 1934/59]). Esta terrível ção que nos guie com mais sucesso do que acreditamos até então,
tarefa pode lhes parecer extremamente urgente pois eles próprios não embora constituindo um grande avanço, pode ser em sua essência tão
98 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 99
errónea quanto a que a precedeu. Nosso objetivo tem que ser, como felicidade teriam sido dominados por aqueles que só queriam preservar
aprendemos com Karl Popper ( 1934/1959), cometer nossos sucessi- suas vidas.
vos erros o mais rápido possível. Se no meio tempo tivéssemos de Embora nossas tradições morais não possam ser construídas, justi-
abandonar todas as conjecturas atuais, que não podemos provar como ficadas ou demonstradas da forma exigida, seus processos de formação
verdadeiras, logo voltaríamos ao nível do selvagem, que confia podem ser parcialmente reconstrl!ídos e, ao fazer i~to, podemos co_m-
apenas em seus instintos. Contudo, é o que todas as versões do preender até certo ponto as necessidades que eles satisfazem. Na medida
cientismo recomendaram- do racionalismo cartesiano ao positivis-
em que somos bem sucedidos nisto, na realidade somos chamados a
mo moderno.
melhorar e rever nossas tradições morais corrigindo os defeitos reconhe-
cíveis por uma melhora gradativa baseada na crítica imanente (ver
Além disso, embora seja verdade que a moral tradicional não é Popper, 1945/66 e 1983 :29-30), ou seja, analisando a compatibilidade e
racionalmente justificável, isto também se aplica a qualquer código coerência de suas partes e ajustando o sistema coerentemente.
moral possível, inclusive a qualquer um que os socialistas venham a
apresentar. Portanto, sejam quais forem as normas que seguimos, não Como exemplos desta melhora gradativa, mencionamos os
podemos justificá-las conforme eles exigem logo, nenhum argumento novos estudos contemporâneos sobre direitos autorais e patentes.
sobre moral-ciência, direito, ou linguagem -pode girar legitimamen- Para dar outro exemplo, ainda que sejamos devedores ao conceito
te em torno da questão da justificativa (ver Bartley, 1962/1984; 1964, clássico (direito romano) da propriedade privada enquanto direito
1982). Se deixássamos de fazer tudo aquilo cuja razão desconhecemos, exclusivo de usar ou abusar de um objeto físico do modo como
ou para o qual não podemos apresentar uma justificativa no sentido quisermos, este conceito simplifica excessivamente as normas exigi-
das para manter uma eficiente economia de mercado, e está surgindo
exigido, provavelmente muito em breve estaríamos mortos.
toda uma nova subdisciplina econômica que pretende avaliar como a
A questão da justificativa é na realidade um caminho equivocado instituição tradicional da propriedade pode ser aperfeiçoada para um
em parte decorrente de pressupostos errôneos e inconsistentes surgidos melhor funcionamento do mercado.
no seio de nossa tradição epistemológica e metodológica a qual, em certos
casos, remonta à antiguidade. A confusão a respeito da justificativa O que é necessário preliminarmente para tais análises inclui aquilo
também vem, em particular no que diz respeito às questões que nos que às é vezes chamado de uma "reconstrução racional' (usando o termo
interessam, de August Comte, o qual supunha que somos capazes de "construção" num sentido muito diferente de ''construtivismo") do
remodelar todo o nosso sistema moral substituindo-o por um corpo de modo como o sistema poderia ter surgido. Com efeito, esta é uma
normas totalmente construído e justificado (ou como o próprio Comte pesquisa que se enquadra no campo da história, até mesmo da história da
disse, 'demonstrado'). natureza, e não uma tentativa de construir, justificar ou demonstrar o
Não enunciarei aqui todas as razões da irrelevância das exigências próprio sistema. Assemelha-se, talvez, àquilo que os seguidores de Hume
tradicionais de justificação. Mas, apenas para citar como exemplo (ade- costumavan1 chamar de "história conjetural", a qual tentava tornar
quado também à tese da seção seguinte) uma maneira popular de tentar inteligível a razão pela qual certas normas e não outras haviam prevale-
justificar a moral, deveria-se notar que não faz sentido pressupor, como cido (mas nunca menosprezada a afirmação básica de Hume, que nunca
fazem as teorias racionalistas e hedonistas da ética, que nossa moral só repetiremos suficientemente, "as normas de moral não são conc~usões
se justifica na medida em que, digamos, está voltaqa para a produção ou da nossa razão"). Este é o caminho tomado não apenas pelos filosofas
a busca de um objetivo específico como a felicidad(j. Não há motivo para escoceses, mas por uma longa série de estudiosos da evolução cult~ral,
supor que a seleção evolucionária de tais práticas habituais, que têm desde os gramáticos e linguistas clássicos romanos a Bemard Ma~dev.ll~e,
permitido aos homens alimentar uma enorme população, tivesse a ver passando por Herder, Giambattista Vico (que teve a profunda mtmçao
com a produção da felicidade, e muito menos que estivesse orientada para de que homo non intelligendo fit omnia (''o homem se tornou tudo o que
a sua busca. Ao contrário, há muitos indícios de que os que visavam à é sem compreender'' [ 1854: V, 183 ]), e os historiadores do direito alemão
1 00 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 101
já mencionados, como von Savigny, até Carl Menger. Só Menger veio portanto sobrevier, na realidade ela nos permite sobreviver, e talvez haja
depois de Darwin, contudo todos tentaram apresentar uma reconstrução algo a dizer a este respeito.
racional, uma história conjetural ou uma interpretação evolucionária do
surgimento das instituições culturais.
A este ponto, encontro-me na embaraçosa situação de querer afirmar
que devem ser os membros de minha própria profissão, os economistas, Os Limites de Direção pelo Conhecimento Factual:
especialistas que conhecem o processo de formação das ordens espontâ- a Impossibilidade de Observar os Efeitos de Nossa Moral
neas, aqueles que mais provavelmente podem oferecer interpretações das
tradições morais que permitiram o surgimento da civilização. Somente
alguém capaz de explicar efeitos como aqueles ralacionados à proprie- É possível que falsos pressupostos sobre a possibilidade de justifi-
dade privada individual pode explicar a razão pela qual esse tipo de car construir ou demonstrar encontram-se na raiz do cientismo. Mas,
prática permitiu que os grupos que a seguiam sobrepujassem outros cujas me~mo que entendessem isto, os propositores do ciéntismo indubitavel-
morais eram mais adequadas à consecução de objetivos diferentes. Mas, mente pretenderiam se sustentar em outros requisitos de sua antiga
meu desejo de interceder por meus colegas economistas, embora em parte metodologia, que são conexos à exigência de justificativa mas não
justificado, seria talvez mais apropriado não estivessem tantos deles dependem rigorosamente dela. Por exemplo (voltando à nossa lista de
contagiados pelo construtivismo. requisitos), é possível objetar que não podemos compreender plenamente
Como então surgiu amoral? O que~ nossa' 'reconstrução racional''? a moral tradicional e o modo como ela funciona: seguir estes costumes
Já a delineamos nos capítulos anteriores. Além da asserção construtivista não atende a nenhum propósito que possa ser plenamente especificado
de que uma moral adequada pode ser planejada e totalmente construída de antemão; segui-los produz efeitos que não são imediatamente obser-
de novo pela razão, existem pelo menos duas outras possíveis fontes da váveis e portanto não podem ser considerados benéficos - e que em
moral. Em primeiro lugar, como vimos, existe a moral inata, por assim todo caso não são totalmente conhecidos ou previstos.
dizer, dos nossos instintos (a solidariedade, o altruísmo, a decisão do Em outras palavras, a moral tradicional não se conforma ao segundo,
grupo, e assim por diante), as práticas que dela emanam não bastam para terceiro e quarto requisitos. Estes requisitos, como observamos, estão tão
dar sustentação à nossa ordem espontânea atual e à sua população. estreitamente inter-relacionados que poderíamos, observadas suas dife-
Em segundo lugar, existe a moral que evoluiu (a poupança, a rentes ênfases, tratá-los em conjunto. Portanto, poderíamos dizer, rapi-
propriedade privada, a honestidade e assim por diante), que criou e damente para indicar suas inter-relações, que não compreendemos o que
sustenta a ordem espontânea. Como já vimos, essa moral encontra-se fazemos, ou qual seja nosso propósito, a não ser que conheçamos e
entre o instinto e a razão, posição que tem sido ocultada pela falsa especifiquemos plenamente de antemão os efeitos observáveis de nossa
dicotomia que contrapõe instinto e razão. ação. Para ser racional, afirma-se, a ação deve ser deliberada e prevista.
A ordem espontânea depende dessa moral no sentido de que surgiu A não ser que interpretássemos esses requisitos de um modo tão
do fato de que os grupos que seguem suas normas subjacentes se amplo e trivial que perdessem toda a sua importância prática específica
multiplicaram e enriqueceram em relação a outros grupos. O paradoxo - como dizer que o propósito conhecido da ordem de mercado, por
de nossa ordem espontânea e do mercado -um empecilho para socia- exemplo, é produzir o efeito benéfico de ·'gerar riqueza" - seguir
listas e construtivistas - é que, por este processo, podemos sustentar um práticas tradicionais, como aquelas que geram a ordem de mercado,
número maior de indivíduos com os recursos que pddem ser descobertos. claramente não corresponde a estes requisitos. Não acredito que ninguém
E, de fato, nesse mesmo processo descobrem-se mais recursos do que nesse debate queira que estes requisitos sejam interpretados de modo tão
seria possível por processo dirigido individualmente. E embora esta trivial· com certeza eles não são entendidos dessa forma nem por seus
moral não seja justificada pelo fato de nos permitir fazer tais coisas, e '
proponentes nem por seus adversários. Conseqüentemente, podemos ter
uma visão mais clara da situação na qual efetivamente nos encontramos
1 02 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 1 03
se admitimos que, de fato, nossas instituições tradicionais não são fato a ordem; e só mais tarde, e de modo imperfeito e retrospectivo,
compreendidas e seus propósitos ou seus efeitos, benéficos ou não, não podemos começar a explicar essas formações em princípio (ver Hayek,
são especificados de antemão. Muito melhor para eles. . 196 7, ensaios 1 e 2).
No mercado (como em outras instituições da nossa ordem espontâ- Não existe um termo em inglês ou alemão que caracterize precisa-
nea), as conseqüências não premeditadas predominam: uma distribuição mente uma ordem espontânea, ou a maneira como seu funcionamento
de recursos é efetuada por um processo impessoal no qual os indivíduos, contrasta com os requisitos dos racionalistas. O único termo apropriado,
agindo em função de seus próprios fins (estes também muitas vezes "transcendente', tem sido tão mal empregado que hesito em usá-lo. No
bastante vagos), literalmente não conhecem e não podem conhecer qual entanto, em seu sentido literaL diz rspeito àquilo que ultrapassa signifi-
será o resultado geral de suas interações. cativamente o alcance de nossa compreensão dos nossos desejos e
Consideremos os requisitos de que é desarrazoado seguir ou fazer propósitos e nossas percepções sensoriais, e aquilo que incorpora e gera
algo cegamente (ou seja, sem compreensão) e que os propósitos e efeitos conhecimentos que nenhuma mente individual ou organização poderia
de uma ação proposta devem não só ser plenamente conhecidos de possuir ou inventar. Isto é evidente em seu sentido religioso. como
antemão como também plenamente observáveis e os mais benéficos veremos por exemplo no Pai Nosso. onde se pede, "Seja feita vossa
possíveis. Apliquemos agora estes requisitos à noção de uma ordem vontade (isto é. não a minha assim na terra como no céu"; ou no
espontânea. Quando consideramos esta ordem na vasta estrutura evolu- Envangelho, onde se diz: ''Não fostes vós que me escolhestes, mas eu
cionária na qual ela se desenvolveu, o absurdo de tais requisitos torna-se vos escolhi a vós e vos constituí para que vades e produzais fruto, e o
evidente. Os efeitos decisivos que levaram à criação da ordem em si, e a vosso fruto permaneça" (São João, 15:26) Mas um ordenamento mais
certas práticas que predominaram soore outras, foram conseqüências puramente transcendente, que também é um ordenamento puramente
extremamente remotas daquilo que aqueles indivíduos primitivos haviam naturalista (que não derivou de um poder sobrenatural), como por exem-
feito, conseqüências aplicadas a grupos que aqueles indivíduos primiti- plo na evolução, abandona o animismo ainda presente na religião: a idéia
vos dificilmente poderiam ter notado. Efeitos que, se aqueles pudessem de que uma única mente ou uma vontade (como por exemplo, a de um
tê-los reconhecidos, talvez não lhes parecessem absolutamente benéfi- Deus onisciente) possa controlar e ordenar.
cos, independentemente do que indivíduos posteriores possam pensar a O repúdio dos requisitos racionalistas por estes motivos tem pois
esse respeito. Quanto a estes, não há razão para que todos eles (ou mesmo também uma importante conseqüência para o antropomorfismo e o
alguns) devessem ser dotados de um conhecimento pleno da história. e animismo de todo tipo - e portanto para o socialismo. Se a coordenação
muito menos da teoria evolucionária, da economia e de tudo o mais que das atividades do indivíduo pelo mercado, bem como outras tradições
eles teriam de conhecer, de forma a perceber por que razão o grupo cujas morais e instituições, resultados de processos naturais, espontâneos e
práticas eles seguem teria prosperado mais que outros - embora indu- auto-ordenadores de adaptação a um número maior de fatos determinados
bitavelmente algumas pessoas estejam sempre propensas a inventar
do que qualquer mente é capaz de perceber ou até mesmo de conceber,
justificativas de uma prática corrente ou local. Mais cedo ou mais tarde
é evidente que as exigências de que estes processos sejam justos, ou
na evolução dessa ordem muitas das regras que evoluíram e que garan-
possuam outros atributos morais (ver Capítulo VII). derivam de um
tiram uma maior cooperação e prosperidade para a ordem espontânea
podem ter diferido totalmente de tudo o que fosse possível antecipar, e ingênuo antropomorfismo.
até mesmo parecer repugnante a uma ou outra pessoa. Na ordem espon- É claro que tais exigências poderiam ser apropriadamente endere-
tânea, as circunstancias que determinaram o que cada um deve fazer a çadas aos dirigentes de um processo orientado pelo controle racional ou
fim de alcançar seus próprios fins incluem, evidentemente, decisões a um deus atento a preces, mas são totalmente inadequadas ao processo
desconhecidas por muitas outras pessoas desconhecidas a respeito dos impessoal de auto-ordenamento que em realidade existe.
meios a serem usados para seus próprios fins. Portanto, em nenhum Numa ordem tão ampla a ponto de transceder à compreensão e ao
momento do processo os indivíduos poderiam ter delineado, segundo possível direcionamento de qualquer mente única, uma vontade unificada
séus propósitos, as funções das normas que gradativamente formaram de em realidade não pode determinar o bem-estar de seus vários membros
1 04 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 105
em termos de um conceito específico de justiça, ou de acordo com uma controle da evolução - ou seja, do processo de tentativa e erro - e
escala convencionada. ,Tão pouco isto se deve meramente aos problemas conformá-lo aos seus desejos atuais. Mas a moral inventada resultante
de antropomorfismo. E também porque "o bem-estar... não tem princí- dessa reação dá origem à· reivindicações irreconciliáveis que nenhum
pio, nem para aquele que o recebe, nem para aquele que o distribui (um sistema pode satisfazer e que portanto permanecem fonte de conflito
o põe aqui, outro acolá); porque do conteúdo material da vontade, incessante. A tentativa infrutífera de tornar uma situação justa cujo
dependente de fatos determinados e que portanto é incapaz de uma norma resultado, por sua natureza, não pode ser determinado por aquilo que
geral" (Kant, 1798:II, 6, nota 2). A percepção de que as normas gerais alguém faz ou pode fazer, só prejudica o funcionamento do processo em
devem prevalecer para que a espontaneidade floreça, de Hume e Kant, SI.
nunca foi refutada, mas meramente negligenciada ou esquecida. Estas exigências de justiça são simplesmente inadequadas a um
Embora "o bem-estar não tenha princípio" - e portanto não possa processo evolucionário naturalista -inadequadas não apenas àquilo que
gerar uma ordem espontânea - a resistência às normas de justiça pelas aconteceu no passado, mas àquilo que está ocorrendo no presente. Pois
quais tal ordem se tornou possível, e o íàto de serem denunciadas como é evidente que esse processo evolucionário está em curso. A civilização
antimorais, decorrem da convicção de que o bem-estar tem que ter um não é apenas um produto de evolução - é um processo que através do
princípio e da recusa (e é aqui que o antropomorfismo volta a se inserir estabelecimento de estrutura de normas gerais e de liberdade individual
no contexto) a aceitar que a ordem espontânea surge de um processo permite a própria continuidade de sua evolução. Essa evolução não pode
competitivo no qual o sucesso é que decide, e não a aprovação de uma ser orientada por aquilo que os homens exigem e freqüentemente tam-
grande mente, de uma comissão ou de vm deus, ou a conformidade a um pouco conseguirão produzi-lo. Os homens podem constatar que alguns
princípio conhecido de mérito individual. Nessa ordem o avanço de desejos anteriormente insatisfeitos agora podem se realizar, mas somente
alguns se dá às custas do fracasso dos esforços igualmente sincero e às custas do desapontamento de muitos outros.
mesmo meritórios de outros. A recompensa não é pelo mérito (como a Embora um indivíduo possa aumentar suas oportunidades pela
obediciência a normas morais, ver Hayek 1960:94 ). Por exemplo, pode- conduta moral, a evolução resultante não gratificará todos os seus desejos
mos satisfazer às necessidades dos outros, independentemente de seus morais. A evolução não pode ser justa.
méritos ou da razão de nossa capacidade de satisfazê-las. Como Kant Na realidade, insistir que toda mudança futura seja justa seria exigir
pensava, nenhum padrão comum de mérito pode julgar entre diferentes que a evolução se detivesse. A evolução nos conduz em frente precisa-
oportunidades abertas a indivíduos diferentes com informações diferen- mente por provocar muitas coisas que não poderíamos pretender ou
tes, diferentes capacidade e diferentes desejos. Esta última situação é na prever, e muito menos julgar antecipadamente a partir de suas proprie-
realidade a comum. As descobertas que permitem que alguns vençam em dades morais. Só precisamos perguntar (particularmente à luz do relato
geral não são premeditadas ou previstas- tanto por aqueles que vencem histórico feito nos Capítulos II e III) qual teria sido o efeito se, numa
quanto por aqueles que fracassam. época anterior, uma força mágica tivesse o poder de, digamos, impor um
O valor dos produtos resultante das mudanças necessárias das credo igualitário ou meritocrático. Imediatamente reconhecemos que tal
atividades individuais raramente parece justo pois eventos imprevistos acontecimento teria tornado impossível a evolução da civilização. Um
as tornam necessárias. Tão pouco os estágios de um processo de evolução mundo Rawlsiano (Rawls, 1971) portanto jamais poderia se tornar
na direção daquilo que anteriormente era desconhecido parecem justos civilizado: reprimindo a diferenciação que é obra da sorte, ele frustaria a
no sentido de se conformar a idéias preconcebidas em termos de certo e descoberta de novas possibilidades. Num mundo como este seríamos
errado, de 'bem-estar' ou de possibilidades abertas em circunstâncias privados dos únicos sinais que podem dizer a cada um o que deve fazer
anteriormente predominantes. agora, como resultado de milhares de mudanças das condições em que
A compreensível aversão a esses resultados moralmente cegos, vivemos, a fim de manter o fluxo da produção e, se possível, aumentá-lo.
resultados inseparáveis de qualquer processo de tentativa e erro, leva os Os intelectuais, evidentemente, podem afirmar que inventaram um
homens a querer realizar uma contradição em termos: tomar para si o moral 'social' nova e melhor que realizará justamente isto, mas estas
1 06 A Arrogância Fatal
A Arrogância Fatal 1 07
'n?vas' normas representam uma reicindência na moral da primitiva aspectos superior ou 'mais sábia' do que a razão humana (ver o Capítulo
micro-ordem, e mal pode manter a vida e a saúde dos bilhões sustentados 1). Esta percepção decisiva só poderia ser reconhecida por um racionalista
pela macro-ordem.
muito crítico.
É fácil compreender o antroporfismo, ainda que devamos rejeitá-lo Em segundo lugar, estreitamente relacionada a isto existe a questão
por causa de seus erros. E isto nos conduz de volta ao aspecto positivo e antes levantada do que é realmente decisivo na seleção evolucionária das
solidário do ponto de vista dos intelectuais cujas posições contestam. A normas de conduta. Os efeitos das ações que são imediatamente perce-
inventividade do homem contribui tanto para a formação de estruturas bidos e sobre os quais os homens tendem a se concentrar são muito pouco
supra-individuais no interior das quais os indivíduos encontraram gran- importantes para esta seleção; ao contrário, a seleção é feita de acordo
des oportunidades, que as pessoas começaram a imaginar que poderiam com as conseqüências das decisões orientadas pelas normas de conduta
deliberadamente planejar o todo, bem como algumas de suas partes, e a longo prazo -o mesmo longo prazo do qual Keynes ironizava (1971,
que a mera existência dessas estruturas amplas, mostra que elas podem C.W.:IV,65). Estas conseqüências dependem -como argumentamos
ser deliberadamente planejadas. Embora isto seja um erro, é um erro acima e analisamos de novo em seguida - principalmente das normas
nobre, um erro nas palavras de Mises, 'grandioso ... ambicioso ... magní- de propriedade e contrato que garantem o âmbito pessoal do indivíduo.
fico ... audacioso'. Hume já havia notado isto, ao escrever que estas normas "não derivam
de nenhuma utilidade ou vantagens que uma pessoa determinada ou o
público possam apreender da fruição de um bem determinado'
( 1739/1886:II, 273). Os homens não previram os benefícios das normas
Propósitos Não Especificados: aMaioria antes de adotá-las, embora alguns gradativamente tenham percebido o
dos Resultados da Ação na Ordem Espontânea quanto devem a todo o sistema.
Não é Consciente ou Deliberada Nossa afirmação anterior, de que as tradições adquiridas funcionam
como 'adaptações ao <,iesconhecido', deve ser tomada em seu sentido
literal. A adaptação ao desconhecido é a chave em toda evolução, e
ninguém conhece a totalidade de acontecimentos aos quais a moderna
Há uma quantidade de pontos e questões distintos, em grande parte ordem de mercado constantemente se adapta na realidade. As informa-
elaborações do que acabamos de afirmar, que ajudam a esclarecer como ções que indivíduos ou organizações podem utilizar a fim de se a~apta
estes assuntos atuam conjuntamente.
rem ao desconhecido são necessariamente incompleto e são transmitidas
Em primeiro lugar, existe a questão de como realmente surge o por sinais (por exemplo, os preços) através de longas cadeias de indiví-
conhecimento. Em grande parte, o conhecimento - e confesso que levei duos. sendo que cada pessoa passa adiante de forma modificada uma
algum tempo para compreender isto - é adquirido não pela experiência combinação de correntes de sinais abstratos de mercado. Não obstante,
imediata ou pela observação, mas por um processo contínuo de seleção toda a estrutura de atividades tende a se adaptar, por meio destes sinais
da tradição aprendida, o qual exige o reconhecimento individual e o incompletos e fragmentários. a condições imprevistas e desco,nhecidas
seguimento de tradições morais não justificáveis em termos dos cânones pelo indivíduo. ainda que esta adaptação nunca seja perfeita. E por isso
das teorias tradicionais da racionalidade. A tradição é o produto de um que essa estrutura sobrevive e os que a usam também sobrevivem e
processo de seleção entre várias crenças irracionais, ou antes 'injustifi- prosperam.
cadas' as quais, sem que se saiba ou se pretenda isto, contribuíram para Este processo auto-regulador de adaptação ao desconhecido não
a proliferação daqueles que as seguiam (sem nenhu'ma relação necessária pode ter substitutos deliberadamente planejados. Tão pouco a razão nem
com as razões - por exemplo, razões religiosas - pelas quais eram sua 'bondade natural' inata levam o homem para este caminho, somente
seguidas). O processo de seleção que moldou os costumes e a moral a dura necessidade de sujeitar-se a normas que lhe desagradam a fim de
poderia explicar um número de circunstâncias factuais maior do que os se manter frente a grupos concorrentes que já começaram a se expandir
indivíduos poderiam perceber, e conseqüentemente a tradição é em certos por terem se deparado antes com tais normas.
1 08 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 109
Se tivéssemos construído propositadamente a estrutura da ação seau, e a sua alegação de que nossos 'grilhões' nos foram impostos por
humana, ou se a modelássemos conscientemente, bastaria perguntar aos interesses egoístas e exploradores, não levam em conta que a dimensão
indivíduos por que interagiram com uma estrutura específica. Ao passo do produto global é tão grande somente porque por meio do intercâmbio
que, de fato, os estudiosos, inclusive depois de gerações de esforços, no mercado das propriedades pertencentes a vários indivíduos, podemos
acham extremamente ditlcil explicar estas questões e não concordam utilizar amplamente conhecimentos dispersos de tà.tos determinados a
quanto a suas causas ou aos futuros efeitos de determinados eventos. fim de alocarmos recursos que pertencem a vários indivíduos. O mercado
A curiosa tarefa da Economia consiste em demonstrar aos homens é o único método conhecido de proporcionar informações pelas quais os
quão pouco eles conhecem a respeito do que imaginam poder planejar. indivíduos podem julgar as vantagens relativas dos diferentes empregos
A mente ingênua que só consegue conceber a ordem como o produto dos recursos de que têm conhecimento imediato e por meio dos quais,
de uma estrutura deliberada, pode parecer absurdo que em condições querendo ou não, atendem às necessidades de indivíduos desconhecidos
complexas a ordem, e a adaptação ao desconhecido, possa ser alcançada e distantes. Este conhecimento disperso é disperso na sua essência, e não
mais eficazmente pela descentralização das decisões, e que uma divisão pode ser coligido e canalizado para uma autoridade encarregada da tarefa
da autoridades amplie de fato a possibilidde de ordem global. Contudo de criar deliberadamente a ordem.
essa descentralização com efeito faz com que seja levada em considera- Portanto. a instituição da propriedade individual privada não é
ção uma quantidade maior de informações. Esta é a razão principal para egoísta, tão pouco foi, ou poderia ter sido, 'inventada' a tim de impor a
rejeitarmos os requisitos do racionalismo construtivista. Pela mesma vontade dos proprietários ao resto dos homens. Ao contrário, em geral é
razão, somente a divisão alterável do poder de dispor de determinados benéfica pelo fato de transferir a orientação da produção das mãos de
recursos entre muitos indivíduos de fato capazes de decidir sobre seu uso poucos indivíduos os quais, o que quer que pretendam, possuem conhe-
- divisão conseguida pela liberdade individual e pela propriedade cimentos limitados, para um processo, a ordem espontânea, que faz o
individual - possibilita a mais plena exploração do conhecimento máximo uso do conhecimento de todos. beneficiando assim os que não
disperso. possuem propriedades quase tanto quanto os que as possuem.
Grande parte das informações específicas que qualquer indivíduo Tampouco a liberdade de todos dentro da lei exige que todos tenham
possui pode ser utilizada somente na medida em que ele próprio pode condições de possuir propriedades individuais mas que muitas pessoas
usá-la em suas decisões. Ninguém pode transmitir a outro tudo o que tenham tal condição. Eu mesmo com certeza preferiria não ter proprie-
sabe, porque a maioria das informações de que pode dispor aparecerá dade num país em que muitos outros possuem alguma coisa, a ter de viver
somente no processo de planejamento da ação. Tais informações serão num lugar onde toda a propriedade pertence à 'coletividade' e é destinada
evocadas à medida que ele trabalhar na taretà específica que empreendeu pela autoridade a usos específicos.
nas condições em que se encontra, como a relativa escassez de vários Mas este argumento também é contestado. até mesmo ridiculariza-
materiais aos quais ele tem acesso. Somente assim o indivíduo pode do. como a desculpa egoísta de classes privilegiadas. Os intelectuais,
descobrir o que deve buscar, e o que o ajudará a fazer isto no mercado pensando em termos dos processos causais limitados que aprenderam a
são as respostas dadas pelos outros àquilo que encontram em seu próprio interpretar em campos c o moa física, acharam fácil persuadir trabalhado-
ambiente. O problema global não está apenas em utilizar determinados res manuais de que as decisões egoístas dos proprietários individuais do
conhecimentos, mas em descobrir quantas informações vale a pena capital - e não o próprio processo de mercado -utilizavam oportuni-
buscar nas condições imperantes. i dades amplamente dispersas e fatos relevantes em constante mutação.
Costuma-se objetar que a instituição da propriedade é egoísta por- Todo o processo de cálculo em termos de preços de mercado, na realida-
que beneficia somente os que a possuem, e que ela foi na realidade de. às vezes foi apresentado inclusive como parte de uma manobra
'inventada' por pessoas que, tendo adquirido algumas posses individuais, desonesta dos proprietários do capital para ocultar como eles exploraram
desejaram protegê-las dos outros em seu benefício exclusivo. Estes os trablhadores. Mas estas réplicas não se aplicam aos fatos e aos
conceitos, que evidentemente estão subjacentes a indignação de Rous- argumentos que acabamos de rever: um conjunto hipotético de fatos
11 O A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 111
objetivos, é tão pouco disponível aos capitalistas para a manipulação em nosso próprio domínio; contudo, em toda parte, e não apenas nos
do todo quanto aos gerentes que os socialistas gostariam de colocar em negócios humanos, ordem pressupõe também diferenciação de seus
seu lugar. Tais fatos objetivos simplesmente não existem e não são elementos. Essa diferenciação deveria ser limitada apenas à posição local
disponíveis a ninguém. ou temporal dos elementos, mas uma ordem dificilmente teria qualquer
Em terceiro lugar, existe uma diferença entre seguir normas de interesse a não ser que as diferenças fossem maiores do que isto. A ordem
conduta, de um lado, e o conhecimento de algo, do outro (diferença é desejável não para manter todas as coisas no lugar, mas para gerar novas
apontada por várias pessoas de várias maneiras, por exemplo por Gilbert forças que de outro modo não existiriam. O grau de ordenação- as novas
Ryle quando distingue entre 'saber como' e 'saber que' (1945-46: 1-16; forças criadas e concedidas pela ordem - depende mais da variedade
1949). O hábito de seguir normas de conduta é uma capacidade totalmen- dos elementos do que de sua posição temporal ou local.
te diferente do conhecimento de que nossas ações terão certos tipos de Exemplos se encontram em toda parte. Consideremos como a
efeitos. Esta conduta deveria ser vista por aquilo que é, a capacidade de evolução genética favoreceu a extensão da infância e da meninice da
se adaptar, ou de se alinhar a um padrão cuja própria existência mal pode humanidade que lhes são únicas porque tal fato possibilitou uma diver-
ser conhecida e de cujas ramificações temos pouco conhecimento. A sidade extremamemte grande e portanto uma grande aceleração da
maioria das pessoas pode, afinal, reconhecer e adaptar-se a diferentes evolução cultural e um impulso no aumento da espécie homo. Embora
padrões de conduta sem conseguir explicá-los ou descrevê-los. A manei- as diferenças biologicamente determinadas entre os homens sejam talvez
ra pela qual reagimos aos acontecimentos percebidos portanto não seria menores do que as de alguns animais domésticos (principalmente entre
necessariamente determinada em absoluto pelo conhecimento dos efeitos os cachorros), este longo período de aprendizado após o nascimento
de nossas próprias ações, pois muitas vezes não dispomos e não podemos permite aos indivíduos um tempo maior para a adaptação a determinados
dispor de tal conhecimento. Se não podemos tê-lo, não é nada racional a ambientes e a absorção das diferentes correntes da tradição nas quais eles
exigência de que deveríamos tê-lo; e na realidade seríamos mais pobres nasceram. A variedade de habilidades que permite a divisão do trabalho,
se o que fizéssemos fosse orientado apenas pelo conhecimento limitado e com esta a ordem espontânea deve-se em grande parte a essas diferentes
que possuímos desses efeitos. correntes de tradição, estimuladas pelas diferenças subjacentes dos dons
e das preferências naturais. Além disso, toda a tradição é tão incompara-
A pré-formação de uma ordem ou de um padrão num cérebro velmente mais complexa do que aquilo que qualquer mente individual
ou numa mente não apenas não é um método superior de garantir uma consegue controlar, que só se transmitirá se existirem muitos indivíduos
ordem mas é um método inferior. Pois será sempre uma pequena diferentes para absorver suas diversas parcelas. A vantagem da diferen-
parcela do sistema global no qual podem se refletir algumas caracte- ciação individual é tanto maior enquanto torna os grandes grupos mais
rísticas desse sistema maior. Por pouco que seja possível ao cérebro
eficientes.
humano explicar a si mesmo (Hayek, 1952:8.66-8.86), este cérebro
pode levar em conta, ou prever, o resultado da interação de um grande
Portanto, as diferenças entre os indivíduos aumentam o poder do
número de cérebros humanos. grupo em colaboração além da soma de esforços individuais. A colabo-
ração sinergética provoca a atuação de diferentes talentos que não seriam
Em quarto lugar, há o fato importante de que uma ordem emergente utilizados se seus possuidores fossem obrigados a lutar por conta própria
das decisões distintas de muitos indivíduos com base em diferentes para sobreviver. A especialização permite e estimula o desenvorvimento
informações não pode ser determinada por urlza escala comum da de alguns indivíduos cujas distintas contribuições podem bastar para
importância relativa de fins diferentes. Isto nos ap~oxima da questão da fornecer-lhes uma forma de subsistência ou mesmo superar as contribui-
utilidade marginal, uma questão importante cuja discussão adiaremos até ções feitas por outros ao todo. A civilização, segundo a famosa frase de
o Capítulo VI. Aqui, contudo, cabe analisarmos de uma maneira geral as Wilhelm von Humboldt que Stuart Mill colocou na página de rosto de
vantagens da diferenciação permitida por uma ordem espontânea. Liber- seu ensaio Sobre a Liberdade, baseia-se na evolução humana em sua mais
dade envolve a liberdade de ser diferente de termos nossos próprios fins rica diversidade.
A Arrogância Fatal 113
112 A Arrogância Fatal
O conhecimento que desempenha talvez o papel principal nesta No sentido de inculcar uma conduta que beneficie outros, todos os
diferenciação longe de ser o conhecimento de um só ser humano, e muito sitemas morais evidentemente enaltecem a ação altruísta; mas a questão
menos de um super-cérebro controlador - surge num processo de é como conseguir isto. Boas intenções não bastariam -todos sabemos
para onde elas conduzem.
interação experimental de crenças amplamente dispersas, diferentes e até
mesmo contlitantes de milhões de indivíduos que se comunicam entre si. A orientação exclusiva por efeitos favoráveis perceptíveis sobre
A crescente inteligência demonstrada pelo homem, do mesmo modo, não outras determinadas pessoas é insuficiente para a ordem espontânea e até
se deve tanto ao aumento do conhecimento particular dos indivíduos, mas mesmo irreconciliável com ela. A moral do mercado leva-nos realmente
a procedimentos para a combinação de informações diferentes e esparsas a beneficar outros, não porque pretendamos isto, mas por nos fazer agir
as quais, por sua vez, geram ordem e aumentam a produtividade. de uma maneira que, não obstante, terá apenas tal efeito. A ordem
Portanto, o desenvolvimento da variedade é uma parte importante espontânea supera a ingorância individual (e portanto também nos adapta
de evolução cultural, e uma grande parte do valor de um indivíduo para ao desconhecido, como analisamos acima) de uma forma que apenas boas
os outros é devida às suas diferenças em relação a eles. A importância e intenções não conseguem e portanto torna altruísta o resultado de
o valor de uma ordem crescerá com a variedade de seus elementos, nossos atos.
enquanto uma ordem maior por sua vez aumenta o valor da variedade, e Numa ordem que aproveita da maior produtividade da ampla divi-
portanto a ordem da cooperação humana se torna infinitamente dilatável. são do trabalho, o indivíduo não pode mais saber as necessidades de
Se as coisas fossem diferentes, se por exemplo todos os homens fossem quem seus esforços satisfazem ou deveriam satisfazer, ou quais serão os
idênticos e não fosse possível distinguir uns dos outros, não haveria muito efeitos de suas ações para estas pessoas desconhecidas que consomem
sentido na divisão do trabalho (salve talvez entre pessoas em diferentes seus produtos ou produtos aos quais ele contribuiu. Dirigir seus esforços
localidades), poucas vantagens nos esforços coordenados, e poucas produtivos de forma altruísta torna-se portanto literalmente impossível
perspectivas de criar uma ordem de alguma força ou magnitude. para ele. Na medida em que ainda podemos chamar seus motivos de
Portanto, os indivíduos tinham de se tomar diferentes antes de poder altruístas por acabarem revertendo em benefício de outros, isto se dará
ser livres, para se combinarem em complexas estruturas de cooperação. não porque ele visa ou pretende atender a necessidades concretas dos
Além disso, eles tinham de se combinar em entidades de caráter distinto, outros, mas porque observa normas abstratas. Nosso 'altruísmo', nesse
não apenas uma soma, mas uma estrutura de certa forma análoga a um novo sentido, é muito diferente do altruísmo instintivo. Não é mais o fim
organismo. e em certos aspectos importantes diferente dele. perseguido, mas as normas observadas que tornam uma ação boa ou má.
Em quinto lugar, há a questão de onde então. dada.<; todas estas A observância dessas normas, embora concentramos a maioria dos
dificuldades e objeções. surge a exigência de restrigír a ação de alguém nossos esforços em ganhar a vida, permite-nos conceder benefícios além
na busca de deliberada defins benéficos conhecidos e observáveis. Em do âmbito de nosso conhecimento concreto (contudo, ao mesmo tempo
parte trata-se de um remanescente da micro-ética, instintiva e cautelosa, não nos impede de usar qualquer ganho extraordinário também para
do pequeno bando, na qual propósitos percebidos em comum eram gratificar nosso desejo instintivo de fazer o bem visível). Tudo isto fica
direcionados para as necessidades visíveis de companheiros conhecidos confuso porque os sociobiolócos abusam sistematicamente do termo
pessoalmente (ou seja, a solidariedade e o altruísmo). "altruísta".
Afirmei anteriormente que, numa ordem espontânea, a solidarieda- Podemos citar outra explicação para as exigências de que as ações
de e o altruísmo são possíveis apenas de uma forma limitada no interior de um indivíduo se limitem à busca deliberada de fins benéficos conhe-
de alguns sub-grupos, e que restringir o comportámento do grupo em
cidos. A exigência decorre não apenas do instinto arcaico e inculto, mas
geral a esta ação contraria a coordenação dos esforçbs de seus membros.
também de uma característica peculiar aos intelectuais que a defendem
Uma vez que a maioria das atividades produtivas dos membros de um
- uma característica plenamente compreensível que contudo continua
grupo que cooperam entre si transcenda o âmbito de percepção do
condenada ao fracasso. Os intelectuais estão particularmente ansiosos em
indivíduo, o velho impulso de seguir instintos altruístas inatos em reali-
saber para que fim último será utilizado aquilo que eles mesmos chamam
dade obstácula a formação de ordens mais amplas.
114 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 115
de seus 'filhos do intelecto' e portanto preocupam-se ardentemente pelo a suspeitar de urna secreta e desonesta manipulação -uma conspiração,
destino de suas idéias, e hesitam muito mais em soltar os pensamentos como de uma ''classe'' dominante -oculta atrás de "planos" cujos
de seu controle do que os trabalhadores manuais seus produtos materiais. autores não se encontram em parte alguma. Isto, por sua vez, contribui
Essa reação muitas vezes faz com que pessoas tão extremamente instruí- para reforçar sua relutância inicial a renunciar ao controle de seus
das relutem a se integrarem aos processos de intercâmbio, processos que próprios produtos numa ordem de mercado. Para os intelectuais em geral,
implicam trabalhar para fins não perceptíveis numa situação em que o a sensação de serem meros instrumentos de forças de mercado ocultas,
único resultado identificável de seus esforços, quando existe algum, pode mesmo que impessoais, parece quase urna humilhação pessoal.
na realidade ser vantajoso par alguma outra pessoa. O trabalhador manual Evidentemente não lhes ocorreu que os capitalistas, suspeitos de
supõe facilmente que na realidade cabe ao seu empregador saber, se é controlar tudo isto, em realidade são também instrumentos de um pro-
que alguém precisa saber, a que necessidades o trabalho de suas mãos cesso impessoal, também não têm consciência dos efeitos c propósitos
acabará satisfazendo. Mas o lugar do trabalho intelectual individual no últimos de suas ações, mas estão meramente preocupados com um nível
produto de muitos intelectuais interagindo numa cadeia de serviços ou mais elevado e portanto um âmbito maior, de acontecimentos em toda a
idéias será menos indentificável. O fato de que tais pessoas melhor estrutura. Além disso, a idéia de que a possibilidade de que a realização
preparadas devessem ser mais relutantes a sujeitar-se a alguma direção de seus próprios fins dependesse das atividades desses homens -
desconhecida - tal como o mercado (embora falem em 'mercado de homens preocupados unicamente com me i os - é em si abominável para
idéias') -faz com que (resultado também não intencional) tendam a eles.
resistir (sem pereceber) apenas àquilo que aumentaria sua utilidade para
seus semelhantes. ·
Essa relutância ajuda a explicar ainda mais a hostilidade que os
intelectuais nutrem em relação à ordem de mercado e, em parte, sua O Ordenamento do Desconhecido
sensibilidade ao socialismo. Essa hostilidade e sensibilidade diminuiriam
talvez se essas pessoas compreendessem melhor o papel que os modelos
ordenadores abstratos e espontâneos desempenham em toda a vida, corno A língua inglesa infelizmente não possui um termo popular equiva-
indubitavelmente ocorreria se estivessem melhor informados a respeito lente ao encontrado no alemão, ou seja, Machbarkeit. Às vezes fico
de evolução, biologia e economia. Mas ao se depararem com a informa- pensando se não se poderia servir a uma boa causa cunhando um termo
ção nestas áreas, freqüenternente relutam em ouvir, ou mesmo em pensar equivalente em inglês makeability - manufacturability não serve exa-
em reconhecer a existência de entidades complexas de cuja atuação tamente (e minha própria criação ''construtivismo'' não pode ser tradu-
nossas mentes podem ter apenas um conhecimento abstrato. Pois o zida por "construtível" - para descrever a posição com que nos
simples conhecimento abstrato de estrutura geral dessas entidades é deparamos, examinada e contestada ao longo deste capítulo e do anterior:
insuficiente para nos perrnítir ''construí-las'' literalmente (ou seja, pro- ou seja, que tudo que seja produzido pela evolução poderia ter sido
ceder à sua montagem a partir de peças conhecidas), ou a prever a forma melhor realizado com o emprego da inventividade humana.
específica que assumirão. Na melhor das hipóteses, poderá indicar em Tal posição é insustentável. Pois de fato podemos produzir um
que condições gerais muitas dessas ordens ou sistemas poderão se formar ordenamento do desconhecido somente fazendo com que ele ordene a si
condições que às vezes podemos ser capazes de criar. Esse tipo de mesmo. Ao lidar com nosso meio fisico às vezes podemos na realidade
problema é familiar ao químico que lida com fenômenos igualmente alcançar nossos fins confiando nas forças auto-ordenadoras da natureza,
semelhantes, mas em geral não ao cientista acostumado a explicar tudo mas não tentando deliberadamente dispor elementos na ordem que
em termos de simples conexões entre alguns acontecimentos obseváveis. desejamos que eles assumam. Isto é por exemplo o que fazemos quando
O resultado é que essas pessoas são tentadas a interpretar estruturas mais desencadeamos processos que produzem cristais ou novas substâncias
complexas do ponto de vista animista como conseqüência da intenção, e químicas (ver a seção anterior e também o Apêndice C). Na química, e
A Arrogância Fatal 11 7
116 A Arrogância Fatal
tornaram-se os fundamentos do socialismo e continuaram a influenciar -deveria sugerir que algo no socialismo não se conforma a certos fatos.
alguns dos maiores pensadores do nosso século. Mesmo uma personali- Mas tais fatos, explicados pela primeira vez pelos economistas há mais
dade tão grande como Bertrand Russell definiu liberdade como a "au- de um século, continuam inexplorados por aqueles que se orgulham de
sência de obstáculos à realização de nossos desejos" (1940:251 ). Pelo seu repúdio racionalista da idéia de que poderia haver fatos que transcen-
menos antes do óbvio fracasso econômico do socialismo da Europa dem o contexto histórico ou apresentam uma barreira intransponível aos
OrientaL em geral esses racionalistas pensavam que uma economia desejos humanos.
planificada proporcionaria não apenas a ''justiça social'' (ver Capítulo Enquanto isso, entre aqueles que, seguindo a tradição de Mandevil-
VII a seguir) mas também um emprego mais eficiente dos recursos le, Hume e Smith, estudaram economia, surgiu gradativamente não
econômicos. Este conceito parece extraordinariamente sensato à primeira apenas uma compreensão dos processos de mercado, mas uma poderosa
vista. Mas demonstra menosprezar os fatos que acabamos de analisar: crítica da possibilidade de substituí-los pelo socialismo. As vantagens
que a totalidade dos recursos que poderíamos empregar em tal plano desses processos de mercado eram tão contrárias às expectativas que só
simplesmente não pode ser conhecida por ninguém, e portanto ele não puderam ser explicadas retrospectivamente, pela análise dessa mesma
pode ser conhecido por qualquer um e muito menos pelo Estado central. formação espontânea. Quando isto foi feito, verificou-se que o controle
Não obstante, os socialistas continuam a não encarar os obstáculos descentralizado dos recursos, o controle por meio da prioridade indivi-
no modo de inserir decisões individuais distintas num quadro comum dual, leva à geração e utilização de um número maior de informações do
concebido como um "plano". O conflito entre nossos instintos, que, que seria possível com um controle central.
desde Rousseau, passou a ser identificado com ''moral'', e as tradições A ordem e o controle que se estendem além do alcance imediato de
morais que sobreviveram à evolução cultural e seguem para coibir esses qualquer autoridade central só poderiam ser alcançados pela autoridade
instintos, está concretizado na divisão agora freqüentemente traçada central se, ao contrário do que ocorre, os administradores locais capazes
entre certos tipos de filosofia ética e política de um lado e economia do de medir os recursos visíveis e potenciais também fossem normalmente
informados da importância relativa de tais recursos em constante modi-
outro. A questão não está no fato de que tudo aquilo que os economistas
ficação, e assim comunicassem detalhes completos e precisos a esse
estabelecem como sendo eficiente é portanto "certo", mas que uma
respeito a alguma autoridade de planejamento central a tempo para que
análise econômica pode elucidar a utilidade de prática até agora consi-
esta lhes dissesse o que fazer em face de todas as outras informações
deradas certas - utilidade do ponto de vista de qualquer filosofia que
concretas, diferentes, que ela tivesse recebido de outros administradores
não olha favoravelmente o sofrimento humano e a morte que se seguiria regionais ou locais os quais, evidentemente, por sua vez, se encontrariam
ao colapso de nossa civilização. Portanto, é uma traição que deve em dificuldades semelhantes na obtenção e difusão de tais informações.
preocupar outros, teorizar a respeito da ''sociedade justa'' sem qualquer Uma vez que tenhamos percebido qual seria a tarefa dessa autori-
preocupação com as conseqüências econômicas da implementação des- dade de planejamento central, fica claro que as ordens que ela teria de
sas convicções. Contudo, após setenta anos de experiência com o socia- emitir não poderiam decorrer das informações que os administradores
lismo, podemos dizer com segurança que a maioria dos intelectuais fora locais tivessem reconhecido como importantes, mas só poderiam ser
das regiões -Europa Oriental e Terceiro Mundo -em que o socialismo determinados pelo relacionamento direto entre indivíduos e grupos que
foi tentado contentam-se em pôr de lado as lições que podem ser controlassem conjuntos de recursos nitidamente delimitados. O pressu-
encontradas na economia, porque não estão dispqstos a se perguntar se posto hipotético, em geral empregado nas interpretações teóricas do
não deveria haver uma razão pela qual o socialismo, todas as vezes em processo de mercado (descrições feitas por pessoas que de constume não
que foi tentado, jamais parece funcionar da for~a como seus líderes têm qualquer intenção de apoiar o socialismo), no sentido de que todos
intelectuais pretendiam. A busca vã dos intelectuais de uma comunidade esses fatos (ou "parâmetros") podem ser considerados conhecidos pelo
realmente socialista, que resulta na idealização e depois no desencanto, teórico intérprete, oculta tudo isto, e conseqüentemente produz os curio-
de uma série aparentemente interminável de ''utopias'' - a União sos ardis que contribuem para sustentar várias formas de pensamento
Soviética, depois Cuba, China, Iugoslávia, Vietnã, Tanzânia, Nicarágua socialista.
1 20 A Arrogância Fatal A Arrogância Fatal 1 21
A ordem da economia ampla é, e pode ser, formàda somente por um Além disso, só raramente as circunstâncias serão realmente as
processo totalmente diferente - a partir de um método desenvolvido de mesmas para diferentes pessoas que contemplam a mesma situação-
comunicação que permite transmitir, não uma infinita multiplicidade de pelo menos na medida em que ist~ preocupa algum s_et?r da ordem
relatórios sobre determinados fatos, mas apenas certas propriedades espontânea não apenas um grupo mms ou menos autosufictente. . .
abstratas de várias situações específicas, como preços competitivos, que O melhor exemplo da impossibilidade de uma alocação ''raciOn.al' ·
devem ser colocados em correspondência mútua para realizar a ordem deliberada dos recursos numa ordem económica espontânea sem a onen-
global. Estas comunicam as diferentes relações de substituição ou equi- tação dada pelos preços formados nos mercados competitivos é? proble-
valência que as várias partes envolvidas verificam predominar entre os ma da alocação da atual oferta de capital líquido entre todos os dtf~rentes
vários bens e serviços cujo uso delas determinam. Certas quantidades de usos pelos quais poderia aumentar o produto final._ O problema e saber
qualquer um desses objetos podem se revelar equivalentes ou possíveis em essência qual a proporção dos recursos produtivos atualn:ent.e acu-
substitutos, quer para satisfazer a determinadas necessidades humanas mulados que pode ser economizada para prover a ~m futuro ~ms dtst~nte
quer para produzir, direta ou indiretamente, recursos que as satisfaçam. em relação às necessidades atuais. Adam Sm1th conhecia o carater
Por mais surpreendente que possa parecer a existência desse processo, representativo dessa questão quando. referindo-se ao proble~a enfre~t~
muito mais é o surgimento por uma seleção evolucionária, sem ter sido do por um proprietário desse capitaL ele escrevia: "Qual seJa a especte
deliberadamente planejado. Não conheço nenhuma tentativa de refutar de indústria doméstica que seu capital pode empregar, e o produto que
esta afirmação ou desacreditar o processo em si - a não ser que se levem poderá ser de maior valor, todo indivíduo. evidente~ sabe, em ~ua situaç~o
em consideração simples asserções de que todos estes fatos podem, de peculiar, pode julgar melhor do que qualquer estadista ou legislador fana
algum modo, ser conhecidos por alguma autoridade de planejamento por ele" (1776/1976). pág. 14 Cap. L . .
central. (Ver também, a este respeito, o debate sobre cálculo económico, Se considerarmos o problema do uso de todos os recursos dJs~o~u
em Babbage (1832), Gossen (1854/1889/1927), Pierson (1902/1912), veis para investimentos em um sistema económico amplo s?b ui?a umca
Mises ( 1922/81 ), Hayek (1935), Rutland (1985), Roberts (1971 )). autoridade controladora, a primeira dificuldade é que nmguem pode
Na realidade, toda a idéia de 'controle central' é confusa. Não existe, conhecer nenhuma dessas determinadas quantidades agregadas de capital
nem jamais poderia existir, uma única mente controladora; sempre haverá disponível para emprego corrente, embora evide~teme~te es~a quantida-
um conselho ou uma comissão encarregada de elaborar um plano de ação de seja limitada no sentido de que o resultado de mves:I~ ma~s ou menos
para algum empreendimento. Embora alguns membros possam ocasio- do que isto levará a discrepâncias entre a demanda de vanos ttpos de ?ens
nalmente, para convencer os outros, citar certas informações que influen- de serviços. Essas discrepâncias não se auto-corrigirão, ~as se mamfes-
ciaram suas opiniões, as conclusões do conselho em geral não se basearão tarão através de algumas das instruções dadas pela autondade controla-
no conhecimento comum mas no acordo entre várias opiniões baseadas dora comprovando ser impossível sua execução, quer porque alguns ?~s
em informações diferentes. Cada partícula de conhecimento com a qual bens necessários não estarão disponíveis, quer porque alguns matena1s
uma pessoa contribuiu tenderá a levar alguma outra a evocar outros fatos ou instrumentos fornecidos não podem ser usados devido à falta de
de cuja importância ela só se deu conta ao ser informada por outras recursos complementares necessários (equipamentos, materiais ou mão-
circunstâncias ainda que ela não conhecia. Esse processo continua sendo de-obra). Nenhuma das magnitudes que deveriam ser l~vadas em ~onta
um processo de utilização de conhecimentos dispersos (e desse modo poderia ser determinada por uma inspeção ou pela medição do~ objetos
simula, embora de uma forma altamente ineficiente, o comércio- forma "dados'', mas todas dependerão das possibilidades entre as qums outras
que em geral não tem concorrência e de confiabilidade reduzida), em vez pessoas terão de escolher em face do conhecime~to que po~suem, no
de unificar o conhecimento de várias pessoas. Os membros do grupo momento. Uma solução aproximada dessa tarefa so se tornara possiVel
poderão comunicar entre si algumas de suas razões distintas; eles comu- pela ação recíproca dos que podem investigar determinadas circunstân-
nicarão principalmente conclusões tiradas de seu respectivo conhecimen- cias que as condições do momento mostran: ser releva~tes;, P?r se~s
to individual do problema presente. efeitos sobre os preços de mercado. A "quantidade de capital · d1spom-
1 22 A Arrogância Fatal zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
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124 A Arrogância Fatal O Mundo Misterioso do Comércio... 125
de circunstâncias específicas em grande parte não é expresso e nem pode dores, os quais faziam parte de uma rede totalmente fora da percepção e
sê-lo (por exemplo, a intuição de um empresário de que um novo produto compreensão das pessoas comuns. Eles se dedicavam a algo parecido
poderia ter sucesso), e seria impossível torná-lo 'público' exceto por com a transformação de uni bem não material ao alterar o valor dos bens.
considerações de vontade. De que modo o poder das coisas podia corresponder à mudança das
Evidentemente, a ação em conformidade com aquilo que não é necessidades humanas sem uma mudança da quantidade? O comerciante
percebido por todos e plenamente especificado de antemão -o que Ernst ou mercador, aquele que parecia realizar estas mudanças, que ficaria fora
Mach chamava de 'observável e tangível'- fere os requisitos raciona- da ordem percebida, convencionada e compreendida dos negócios coti-
listas discutidos anteriormente. Além disso, o que é intangível é também dianos, também era colocado à margem da hierarquia estabelecida de
muitas vezes objeto de desconfiança e até mesmo de temor. (Podemos status e respeito. Os comerciantes foram desprezados mesmo por Platão
mencionar de passagem que não apenas os socialistas temem [por razões e Aristóteles, cidadãos de uma cidade que em seu tempo devia sua
diferentes] as circunstâncias e as condições do comércio. Bernard Man- posição de destaque ao comércio. Mais tarde, no período feudal, a
deville 'estremecia' quando se defrontava com 'a mais terrível perspec- atividade comercial continuou a merecer relativamente pouca estima,
tiva que deixamos de lado, quando refletimos sobre a labuta e o perigo pois os comerciantes e os artesãos, pelo menos fora de algumas cidade-
enfrentados no exterior, os vastos mares que temos de atravessar, os zinhas, na época, dependiam para segurança da vida e da pessoa, bem
climas diferentes que temos de suportar e as várias nações às quais como das mercadorias, daqueles que manejavam a espada e com ela
ficamos devendo pela assistência que nos foi prestada (1715/1924:1. protegiam as estradas. O comércio só pôde se desenvolver sob a proteção
356). Dar-nos conta de que dependemqs significativamente de esforços de uma classe cuja profissão eram as armas, cujos membros dependiam
humanos que não temos condições de conhecer ou controlar é de fato de sua bravura física, e reivindicavam em troca um status elevado e alto
desalentador tanto para os que neles se envolvem quanto para os que padrão de vida. Essas atitudes, mesmo quando as condições começaram
deixam de fazê-lo). a mudar, não deixaram de permanecer sempre que o feudalismo persis-
Portanto, desconfiança e temor, desde a antigüidade e em muitas tisse ou não encontrasse a oposição de uma afluente burguesia ou dos
partes do mundo, levaram pessoas comuns bem como pensadores socia- centros comerciais das cidades autônomas. Assim, mesmo já no final do
listas a considerar o comércio não apenas algo distinto da produção século passado, conta-se que no Japão 'os fabricantes de dinheiro eram
material, não só caótico e supérfluo em si, não apenas um de erro quase uma casta de intocáveis'.
metodológico, mas, também algo suspeito, inferior, desonesto e despre- O ostracismo dos comerciantes torna-se até mesmo mais compreen-
zível. Em toda a história 'os mercadores foram alvo do mais amplo sível quando lembramos que a atividade mercantil na realidade muitas
desprezo e opróbrio moral... um homem que comprava barato e vendia vezes está envolta no mistério. A expressão 'os mistérios do comércio'
caro era fundamentalmente desonesto ... O comportamento comercial significava que alguns ganhavam, graças à ignorância alheia, conheci-
violava os padrões da interdependência que predominavam nos agrupa- mento considerado misterioso, pois muitas vezes lidava com costumes
mentos primitivos' (McNeill, 1981 :35). Lembro como Eric Hoffer ob- estrangeiros e talvez até mesmo repugnantes - bem como de terras
servou certa ocasião: 'A hostilidade, em particular do escriba, para com desconhecidas: terras de lenda e boatos. Ex nihilo nihil fit nada vem do
o mercador é tão antiga quanto a história escrita'. nada, não mais pertence à ciência (ver Popper, 1977/84: 14; e Bartley,
São muitas as razões de tais atitudes e muitas as formas em que elas 1978:675-76), mas ainda domina o senso comum. As atividades que
se expressam. Muitas vezes, nos tempos primitiyos, os comerciantes parecem contribuir para a riqueza disponível, que vem 'do nada', sem
eram isolados do resto da comunidade. E isto não acontecia apenas com uma criação física mas apenas pela reorganização do que já existe,
eles. Certos artesãos, inclusive, principalmente ferreiros, suspeítbs de cheiravam a bruxaria.
bruxaria por lavradores e pastores, eram freqüentemente segregados da Uma influência que tem sido negligenciada e reforça esses precon-
aldeia. Afinal, os ferreiros, com seus 'mistérios', não transformavam as ceitos diziam respeito ao esforço físico, à atividade muscular, ao 'suor
substâncias? Mas isto aconteceu muito mais com comerciantes e merca- de nossas frontes'. A força física e os intrumentos e armas comuns que
1 26 A Arrogância Fatal O Mundo Misterioso do Comércio... 127
freqüentemente acompanham seu emprego, não são apenas visíveis mas e transferência de bens disponíveis para venda de acordo com a lucrati-
tangíveis. Não há nada de misterioso a seu respeito, mesmo para a maioria vidade, nem sempre são sequer considerados trabalho real. Continua
da pessoas que não os possuem. A convicção de que o esforço físico e a difícil para muitos aceitar que o aumento quantitativo de suprimentos
capacidade de exercê-lo são em si meritórios e conferem posição social disponíveis de meios de subsistência e satisfação dependa menos da
elevada não precisou esperar até a Idade Média. Fazia parte do instinto transformação visível de substâncias físicas em outras do que da transfe-
herdado do pequeno grupo e foi preservada pelos agricultores, trabalha- rência de objetos que desse modo mudam ~uas magni~udes e val?r~s
dores da terra, pastores, guerreiros e inclusive simples chefes de famílias relevantes. Ou seja, o processo de mercado hda com objetos matenms,
e artesãos. As pessoas podiam ver de que modo o esforço físico do mas a mudança de um lugar para outro parece não acrescentar nada às
agricultor ou do artesão contribuía para a totalidade das coisas úteis suas quantidades perceptíveis (independentemente daquilo que é alega?o
visíveis - e era responsável pelas diferenças de riqueza e poder no que ou assim é efetivamente ). O mercado transmite informações a respeito
se refere a causas reconhecíveis. destes objetos em vez de produzi-los, e a função cr~cial desempe~h~da
Portanto, a competição física foi introduzida e valorizada desde pela difusão dessas informações escapa a pessoas onentadas por h~bitos
cedo, quando o homem primitivo, competindo pela liderança e também mecanicistas ou cientificistas, as quais pressupõem como certa a mfor-
em jogos de habilidade (ver Apêndice E), se familiarizava com maneiras mação concreta a respeito dos objetos físicos e menosprezam ? papel
de testar a superiodade visível da força. Mas assim que o conhecimento desempenhado na determinação do valor pela escassez relativa dos
-que não era 'aberto' ou visível -foi introduzido como um elemento diferentes tipos de objetos.
na competição, conhecimento que outros participantes não possuíam e
que deve ter parecido a muitos deles tainbém além da possibilidade de
É irânico que precisamente aqueles que não pensam os acon-
ser possuído, a familiaridade e o senso de justeza nas condição desapa- tecimentos econômicos em termos literalmente materialistas -ou
receram. Essa competição ameaçava a solidadierade e a busca de finali- seja, em termos de quantidades físicas de substâncias materiais -
dades comuns. Vista da perspectiva da ordem espontânea, é claro, essa mas são orientados por cálculos em termos de valor, ou seja, pela
reação deve parecer bastante egoísta, ou talvez, uma forma curiosa, de avaliação que os homens têm destes objetos e em particular das
egoísmo grupal no qual a solidariedade do grupo ultrapassa o bem-estar diferenças entre custos e preço chamadas lucro, sejam habitualmente
de seus indivíduos. denunciados como materialistas. Enquanto é precisamente o esforço
Esse sentimento era ainda forte no século XIX. Assim, quando em busca do lucro que permite aos que estão nele envolvidos não
Thomas Carlyle, que exerceu grande influência entre os literatos do pensar em termos de quantidades materiais de determinadas neces~i
século passado, pregou que 'só o trabalho é nobre' (1909:160), ele dades concretas de indivíduos conhecidos, mas da melhor maneira
entendia explicitamente o esforço físico, até mesmo muscular. Para ele, pela qual podem contribuir para um produto agregado resultan~e d.e
como para Karl Marx, o trabalho era a verdadeira fonte de riqueza. Esse esforços semelhantes distintos realizados por inúmeros outros Indi-
sentimento particular pode estar desaparecendo hoje. Na realidade, a víduos desconhecidos.
relação da produtividade com a coragem física humana, embora ainda E há também um erro de economia- uma idéia que o próprio
avaliada pelos nossos instintos, desempenha um papel ainda menos no irmão de Carl Menger, Anton. propagou, a de que 'todo o produto do
esforço humano, enquanto força agora ,significa menos freqüentemente trabalho' nasce principalmente do esforço físico; e embora isto seja
um erro antigo, é provavelmente John Stuart Mi li o maior responsável
esforço físico enquanto direito legal. E claro que ainda não podemos
por sua divulgação. Mill escreveu em seus Princípios de Economia
evitar alguns indivíduos muito forte, mas estão se tomando apenas uma Política (1848, 'Da propriedade', Livro II, cap. I, seç. 1; Obras, II:
espécie de um número crescente de grupos cada vez mais reduzidos de 260) que embora 'as leis e as condições da produção da riqueza
especialistas. Apenas entre os primitivos o indivíduo fisicamente forte possuam mesmo caráter das verdades físicas', a distribuição é apenas
ainda predomina. 'uma questão de instituições humanas. As coisas estando disponíveis,
Seja como for, atividades como escambo e troca e formas mais a humanidade, individual ou coletivamente, pode fazer com elas o
elaboradas de comércio, organização ou direção, controle de atividades que quiser', donde ele concluiu que 'a sociedade pode sujeitar essa
128 A Arrogância Fatal O Mundo Misterioso do Comércio... 129
distribuição da riqueza a quaisquer normas que ela invente'. Mi li, que Como conseqüência de todas estas circunstâncias, muitas pessoas
no caso está pensando na dimensão do produto como um problema continuam a achar fácil julgar os efeitos mentais relacionados ao comér-
puramente tecnológico, independentemente de sua distribuição, me- cio mesmo quando não os atribuem à bruxaria, ou acreditam que dep~n
nospreza a dependência da dimensão do uso das oportunidades exis- dem de artifício ou fraude ou astuto ardil. A riqueza obtida dessa maneira
tentes, o que é um problema económico e não tecnológico. Nós parecia inclusive menos relacionada a um deserto visível (ou seja, o
devemos a métodos de 'distribuição', ou seja, à determinação de deserto dependente do esforço físico) do que a boa sorte do caçador ou
preços, o fato de o produto ser tão abundante. O que há para compar-
do pescador.
tilhar depende do princípio pelo qual a produção é organizada- ou
Mas se a riqueza gerada por estes 'reorganizações' deixava perple-
seja, numa economia de mercado, da determinação dos preços e da
xas as pessoas, as atividades dos comerciantes na busca de informações
distribuição. É errado concluir que 'as coisas estando disponíveis',
estamos livres para fazer com elas o que quisermos. pois elas não
evocou urna desconfiança realmente grande. Em geraL o leigo consegue
estarão disponíveis a não ser que os indivíduos tenham gerado infor- compreender pelo menos em parte, pelo menos após uma paciente
mações sobre preços garantindo para si certas parcelas do total. explicação e demonstração, que a transferência implícita no comércio é
Existe outro erro ainda. Como Marx. Mill considerava os produtiva. Por exemplo, a idéia de que o comércio apenas muda de lugar
valores de mercado exclusivamente efeitos e não também causas de as coisas já existentes pode ser facilmente corrigida destacando que é
decisões humanas. Veremos mais tarde, quando passaremos a anali- possível f~zer muitas coisas apenas buscando e reunindo substâncias de
sar explicitamente a teoria da utilidade marginal, como isto é impre- lugares muito distantes. O valor relativo dessas substâncias não depen-
ciso- e como estava errada a afirmação de Mil! de que não há nada derá dos atributos de cada componente material em que eles consistem,
nas lei de valor para qualquer'escritor presente ou futuro explicar; a mas das quantidades relativas disponíveis em conjunto nos locais exigi-
teoria sobre o assunto está completa' (1848:lll, I, seç. 1, em Obras, dos. Portanto, o comércio de matérias-primas e produtos semi-acabados
II: 199-200).
é um pré-requisito do aumento das quantidades físicas de muitos produtos
finais que só poderiam ser fabricados graças à disponibilidade (talvez em
O comércio - seja ele considerado trabalho real ou não -trouxe pequenas quantidades) de materiais buscados em lugares muito d~stantes.
não apenas a riqueza individual mas também a riqueza coletiva graças A quantidade de um produto determinado que pode ser produzi~O coi?
aos esforços do cérebro e não dos músculos. O fato de urna simples recursos encontrados num lugar determinado pode depender da disponi-
mudança de mão levar a um ganho de valor para todos os participantes, bilidade de uma quantidade muito menor de outra substância (como
de esse fato não significar necessariamente um ganho para um às custas mercúrio ou substância fosforecente, mesmo um catalisador) que só pode
dos outros (ou o que foi chamado de exploração), foi contudo, intuitiva- ser obtida do outro lado do mundo. O comércio cria assim a própria
mente difícil de compreender. O exemplo de Henry Ford às vezes é possibilidade de produção tisica. . .
apresentado para dirimir suspeitas, para ilustrar corno a luta pelo lucro Continua difícil entender a idéia de que esta produtiVIdade, e
beneficia as massas. O exemplo na realidade é esclarecedor porque nele inclusive a reunião dos ingredientes. também depende de uma busca
percebemos de maneira fácil como um empresário pode visar diretamente contínua e bem sucedida de informações amplamente dispersas e em
à satisfação de uma necessidade visível de um grande número de pessoas, constantes mudanças, por mais óbvio que ela possa parecer àqueles que
e corno seus esforços de fato contribuem para elevar seu padrão de vida. compreenderam o processo p~lo qual o comércio cria e orienta a ~redu
Mas o exemplo é também insuficiente; pois na maioria dos casos os ção tisica quando dirigido pela informação sobre a escassez relativa de
efeitos do aumento da produtividade são demasiado indiretos para que diferentes coisas em diferentes lugares.
possamos investigá-los de modo tão simples. Uma melhora, digamos, da Talvez a força principal oculta sob a persistente aversão às transa-
produção de parafusos de metal, ou cordas, vidros ou papel espalharia ções comerciais não passe então de .simples i~norância e dificul~ade
seus benefícios de modo tão amplo que restaria uma percepção muito conceituai. Contudo, isto se junta ao temor preexistente do desconhecido:
menos concreta de causa e efeitos. um temor de bruxaria e do. antinatural. e também ao medo do próprio
O Mundo Misterioso do Comércio... 131
130 A Arrogância Fatal
conhecimento que remonta às nossas origens e está indelevelmente aspecto dessas relações que lhes permite leva~ em conta, ao decidir s~bre
gravado nos primeiros capítulos do livro do Génesis, na história da o emprego dessas coisas, as melhores oportumdades que outros pod~r~am
expulsão do homem do Jardim do Éden. Todas as superstições, inclusive ter para seu uso. O aumento do valor aparece somente com os proposltos
o socialismo, se nutrem desse medo. humanos, e só é importante em relação a estes. Como Carl Menger
explicou (187111981: 121 ), o valor 'é um juízo qu~ ho~e,!ls que atuam na
economia fazem da importância de bens à sua disposiçao para a manu-
tenção de suas vidas e de seu bem-e~tar'. O v~lor económico expres~a
graus mutáveis da capacida~e das ~ms.a~ de ~atls~a~er em parte a multi-
Utilidade Marginal Versus Macro-economia
plicidade de escalas de finalidades mdtvtdums, ~Istmtas. . ~
Cada pessoa tem sua própria ordem pecuhar de class1fica?ao dos
fins buscados. Essas classificações individuais podem ser conhecidas por
O temor pode ser grande, mas é infundado. Essas atividades, é claro, poucos ou mesmo por ninguém, se é, q~e isto é possível, e não sã?
não são realmente incompreensíveis. A economia e as ciências biológi- conhecidas plenamente sequer pela propna pessoa. C?s esforços de mi-
cas, corno vimos nos capítulos anteriores, fornecem agora uma explica- lhões de indivíduos em diferentes situações, com diferentes posses e
ção satisfatória dos processos auto-organizadores, e esboçamos uma desejos, com acesso a diferentes informações sobre o_s recursos, conhe-
reconstrução racional parcial de certos aspectos de sua história e dos seus cendo pouco ou nada as sobre as necessidades especificas de outr~m, e
efeitos benéficos no surgimento e difusão da civilização nos Capítulos II visando a diferentes escalas de fins, são coordenados por ~e10 de
e III (ver também Hayek, 1973). sistemas de intercâmbio. Enquanto os indivíduos se alinham reciproca-
O intercâmbio é produtivo; ele aumenta de fato a satisfação das mente uns com os outros, nasce um sistema não planejado de uma or~em
necessidades humanas por meio de recursos disponíveis. A civilização é de complexidade maior, e cria-se um fluxo anô.nin:o, de bens~ ~erviços
tão complexa - e o comércio tão produtivo - porque os mundos que, para um número notavelmente elevado dos m?Ivlduos participantes,
subjetivos dos indivíduos que vivem na civilização são tão diferentes. De preenche suas expectativas e os valores que. os onentam. .
um modo aparentemente paradoxal, a diversidade dos propósitos indivi- A multiplicidade de diferentes categonas de valo!es fins d.I~e.rentes
duais leva a uma capacidade maior de satisfazer as necessidades em geral produz uma escala comum, .e .uniforme, ~e v~lores mtermedianos ou
do que a homogeneidade, a unanimidade e o controle - e, de modo refletidos dos recursos matenms pelos qums tms fins competem. Como
também paradoxal, isto ocorre porque a diversidade permite que os a maioria dos recursos materiais pode ser usada para muitos fins diferen-
homens aprendam a controlar uma quantidade maior de informações e a tes de importância variável, e recursos diversos muitas vezes podem ser
dispor dela. Somente urna análise clara do processo de mercado pode mutuamente substituídos, os valores últimos dos fins passam a ser
resolver estes aparentes paradoxos. refletidos numa única escala de valores dos recursos -ou seja, os preç~s
Um aumento do valor -crucial no intercâmbio e no comércio - -que depende de sua escassez relativa e da possibilidade de intercâmbio
de fato é diferente dos aumentos da quantidade observável por nossos entre seus proprietários. . . .
sentidos. O aumento do valor é algo que as leis que governam os eventos Como a mudança das circunstâncms factuais exige uma constan~e
físicos não explicam, pelo menos da maneira como são compreendidos adaptação dos fins específicos a cujo serviço é preciso d:_stinar ?etermi-
dentre os modelos materialista e mecanicista. O valor indica as capaci- nados tipos de recursos, os dois conjuntos de escala.s estao destmad_o~ a
dades potenciais de um objeto ou de uma ação de $atisfazer as necessi- mudar de maneiras diferentes e em proporções dtferentes. ~s varias
dades humanas. e só pode ser avaliado pelo ajustamento mútuo por meio ordens de classificação dos fins individuais últimos, e~bora diferentes,
da troca das respectivas taxas marginais de substituição (ou equivalência) mostrará uma certa estabilidade, mas os valores relativos dos :ecursos
que diferentes bens e serviços têm para vários indivíduos. O valor não é para cuja produção os esforços daqueles. indivídu~s são direcionad~s.
um atributo ou uma propriedade física que as coisas possuem, inde- estão sujeitos a contínuas flutuações fortmtas que na? ~odem ser previs-
pendentemente das suas relações com os homens, mas unicamente um tas e cujas causas serão incompreensíveis para a mawna das pessoas.
132 A Arrogância Fatal O Mundo Misterioso do Comércio... 133
O ~ato de a hierarqui~ de fins ser relativamente estável (refletindo o um artigo específico mas são facilmente substituíveis entre si. Devido às
que mm tos podem. considerar seu valor constante ou 'duradouro'), exigências de uma grande variedade de fins por uma multiplicidade de
enqu~nto a hierarqma dos recursos flutua tanto, leva muitos idealistas a indivíduos, os usos concretos para os quais uma coisa determinada é
valonzar aqueles e a desprezar estes. Atender a uma escala de valores desejada por outros (e portanto o valor que cada um lhe atribui) não serão
constantemente mutável pode na realidade parecer repulsivo. É esta conhecidos. Este caráter abstrato do valor meramente instrumental dos
talvez a razão fun,d~mental p~la qual a maioria dos indivíduos preocupa- recursos também contribui para que se despreze aquele que é considerado
do~ c.om os fins ultimes mmtas vezes, contrariamente ao seus próprios o caráter 'artificial' ou 'antinatural' de seu valor.
ObJetlvos, tenta baldar o procedimento pelo qual poderia contribuir Interpretações adequadas desses fenômenos intrigantes e até mesmo
melhor~ sua realização: Para atingir seus fins, a maioria das pessoas deve alarmantes, descobertos há quase cem anos, foram divulgadas à medida
persegmr os que constituem meros recursos para si próprios e para os que as obras de William Stanley Jevons, Carl Menger e Léon Walras íam
outr~s. Ou s~j~, elas devem ingressar em algum ponto de uma longa sendo elaboradas, principalmente devido à escola austríaca que seguia
cadela de at1v1dades que as levará à satisfação de uma necessidade Menger, para aquela que ficou sendo conhecida como a revolução
des~onhec!d~ ei? algum .t~I?PO e espaço remotos, depois de passar por 'subjetiva' ou da 'utilidade marginal' da teoria económica. Se aquilo que
mmtos estag10s mtermedtan?s ~oltados para fins diferentes. O rótulo que foi dito nos parágrafos anteriores soa pouco familiar e inclusive dificil,
? ~r~cesso de mercado atnbm ao produto imediato é tudo o que o isto sugere que as descobertas mais elementares e importantes dessa
mdtv1d_uo pode conh~c~r na maioria das circunstâncias. Pessoa alguma revolução não chegaram até agora ao conhecimento geral. Foi a desco-
e.nvolv1da em um estagiO do processo de fabricação de parafusos metá- berta de que os acontecimentos económicos não podiam ser explicados
licos. por ex~mplo, poderá determinar racionalmente quando, onde ou por acontecimentos anteriores atuando como causas determinantes que
de que maneira aquela peça determinada na qual ela está trabalhando permitiu a esses pensadores revolucionários unificar a teoria económica
poderá ou deverá contribuir para satisfazer às necessidades humanas num sistema coerente. Embora a economia clássica, ou o que freqüente-
Tampouco as estatísticas a ajudam a decidir qual entre os diversos uso~ mente chamam de 'economia política clássica', já tivesse apresentado
potenciais para os quais poderia ser utilizada (aquele ou qualquer outro uma análise do processo de concorrência, e particularmente do modo
Item semelhante). deveria ser satisfeito e qual não. como o comércio internacional integrou as ordens nacionais de coopera-
Mas também contribui aparentemente para a idéia de que a escala ção numa única ordem internacional, foi somente a teoria da utilidade
de v~lores dos recursos, ou seja, os preços, é comum ou vulgar, o fato de marginal que proporcionou um conhecimento real do modo como a oferta
que e a mesma para todos, enquanto escalas diferentes de finalidades são e a demanda eram determinadas, de como as quantidades se adaptavam
distintas e pessoais. Nós comprovamos nossa individualidade afirmando às necessidades, e de como certa escassez decorrente de ajustamento
nossos gostos peculiares ou mostrando nossa apreciação mais discrimi- mútuo guiava os indivíduos. Todo o processo de mercado então ficou
nadora da qualidade. Contudo é somente graças à informação, fornecida conhecido como um processo de transferência de informações o qual
pelos preços, sobre a relativa escassez de recursos diferentes, que pode- permitia que os homens usassem e pusessem em ação muito mais
mos perceber todas aquelas entre as nossas finalidades que conseguimos informações e habilidades do que aquelas às quais teriam acesso indivi-
perceber. dualmente.
O aparente conflito entre os dois tipos de hierarquias de valores O fato de a utilidade de um objeto ou ação, comumente definida
torna-se evidente na ordem espontânea, na qual a;maioria das pessoas como sua capacidade de satisfazer os desejos humanos, não possuir a
prov~ ao seu gan~a pão pr~po~cionando recursos á outras pessoas que mesma magnitude para diferentes indivíduos, parece agora tão óbvio que
lh~ sa? desconhecidas, e obtem Igualmente os recursos exigidos para seus é difícil compreender como cientistas respeitados trataram a utilidade
propnos fins de outras pessoas que também desconhece. A única escala como um atributo objetivo, geral e mesmo mensurável dos objetos
comum de valores torna-se assim a dos recursos, cuja importância não físicos. A utilidade relativa de diferentes objetos para pessoas diferentes
depende fundamentalmente dos efeitos percebidos por aqueles que usam é algo que não oferece a menor base para as comparações de sua
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magnitude absoluta. Embora as pessoas possam concordar com quanto nheço que estas podem, às vezes, indicar vagas probabilidades, mas com
podem estar dispostas a contribuir aos custos de diferentes utilidades, a certeza não explicam os processos implícitos envolvidos na sua forma-
'utilidade coletiva' não denota um objeto que é possível descobrir: ele ção.
existe na melhor das hipóteses como uma metáfora, compatível com a Contudo, devido ao equivoco que vê a macro-economia como
mente coletiva. E o fato de que todos decidimos ocasionalmente que um viável e útil (equívoco encorajado por seu amplo uso de matemática, a
objeto é mais ou menos importante para outra pessoa do que para nós qual sempre impressiona os políticos despreparados nesse campo e que
também não representa uma razão para se acreditar na comparação é realmente a coisa que mais se aproxima da prática da magia encontrada
objetiva de utilidade interpessoaL entre os economistas profissionais), muitas opiniões que regem o gover-
I\; a realidade. em certo sentido, a atividade que a economia pretende no e a política contemporânea ainda se baseiam em interpretações
explicar não diz respeito a fenômenos físicos, mas a pessoas. Os valores ingênuas de fenômenos econômicos como o valor e os preços, interpre-
econômicos são interpretações de fatos físicos em face dos graus de tações que tentam em vão explicá-lo como ocorrências 'objetivas' inde-
adequação de tipos de objetos físicos à satisfação de necessidades em pendentes do conhecimento e dos objetivos humanos. Essas explicações
determinadas situações. Portanto, poderíamos definir a economia (o que não conseguem interpretar a função ou avaliar o aspecto indispensável
agora prefiro chamar catalaxia (Hayek, 1973 ), como uma metateoria, do comércio e dos mercados para a coordenação dos esforços produtivos
uma teoria sobre as teorias que as pessoas elaboraram a fim de explicar de grandes números de pessoas.
qual o modo mais eficiente de descobrir e utilizar recursos diferentes para
fins diferentes. Nessas circunstâncias. não é tão surpreendente que os Alguns hábitos que se insinuaram na análise matemática do
físicos, ao se depararem com estes argumentos, muitas vezes se encon- processo de mercado muitas vezes induz em erro economistas prepa-
trem em território desconhecido, ou que esses economistas freqüente- rados. Por exemplo. o costume de referir-se ao 'estado do conheci-
mente lhes pareçam mais como filósofos do que como 'verdadeiros' mento existente' e à informação disponível aos participantes de um
cientistas. processo de mercado como 'dados' ou 'certos' (ou até o pleonasmo
Embora constitua um avanço fundamental, a teoria da utilidade de 'dados como certos'), muitas vezes leva os economistas a pressu-
marginaL incompreensível desde o começo, a primeira exposição mais por que este conhecimento não existe meramente de forma dispersa,
mas que todo o seu conjunto poderia estar disponível a uma mente
acessível desse conceito nos países de língua inglesa, por W.S. Jevons,
única. Isto oculta o caráter da competição como processo de desco-
permaneceu após sua morte prematura e também em conseqüências da
berta. Aquilo que nessas interpretações da ordem de mercado é
posição extra-acadêmica de seu único seguidor eminente, Wicksteed, foi representado como um 'problema' a ser resolvido. na realidade não
por muito tempo menosprezada, devido ao predomínio da autoridade constitui um problema para ninguém no mercado, pois uma vez que
acadêmica de Alfred MarshalL o qual relutava em abandonar a posição as circunstâncias factuais determinantes das quais o mercado. nessa
de John Suart MilL Oco-descobridor austríaco da teoria, Carl Menger, ordem, depende não podem ser conhecidas por ninguém. e o proble-
teve mais sorte por encontrar imediatamente dois discípulos extraordina- ma não está em como usar dado conhecimento disponível como um
mente dotados (Eugen vohm-Bawerk e Friedrich von Wieser) os quais todo. mas em como fazer com que o conhecimento que não é, e não
continuaram sua obra e estabeleceram uma tradição; como resultado a pode ser. disponível a uma mente única, possa contudo ser usado. em
moderna teoria econômica passou a ser aos poucos aceita sob o nome de sua forma fragmentária e dispersa, por muitos indivíduos que intera-
'Escola Austríaca'. Enfatizando o que chamava a natureza 'subjetiva' gem entre si problema que não se coloca para os atores, mas para
dos valores econômicos, produziu um novo paradigma para explicar as os teóricos que tentam explicar essas ações.
estruturas que nasciam sem premeditação da interação humana. Contudo,
nos últimos quarenta anos, suas contribuições foram obscuredidas pelo A criação da riqueza não é simplesmente um processo físico e não
surgimento da 'macro-economia', que busca conexões causais entre pode ser explicado por uma cadeia de causa e efeito. Ela é determinada
entidades hipoticamente mensuráveis ou agregados estatísticos. Reco- não por fatos físicos objetivos conhecidos a uma mente única mas pelas
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informações distintas, diferentes de milhões. as quais precipitam em A Ignorância Econômica dos Intelectuais
preços que servem de guia para ulteriores decisões. Quando o mercado
diz a um empresário que é possível obter mais lucro de uma forma
determinada, ele pode se preocupar com sua vantagem própria e também O conhecimento do comércio e das explicações da determinação
pre~ta~ ao agregado (em termos das mesmas unidades de cálculo que a dos valores relativos em termos da utilidade marginal é fundamental para
matona dos outros usa) uma contribuição maior do que conseguiria de se compreender a ordem da qual depende o sustento das multidões
qualquer outra maneira disponível. Pois estes preços informam os parti- existentes de seres humanos. Qualquer pessoa com boa formação deveria
cipantes do mercado das cruciais condições momentâneas das quais conhecer essas questões.
depende toda a divisão do trabalho; a taxa real de convertibilidade (ou Esse conhecimento foi deturpado pelo desprezo geral com o qual os
'substituibilidade') de diferentes recursos por outro, quer como recursos intelectuais em geral costumam tratar todo o problema. Pois o fato
para a produção de outros bens quer para a satisfação de determinadas explicado pela teoria da utilidade marginal ou seja, que poderia se
necessidades humanas. Por isto é até irrelevante saber que quantidades tornar tarefa distinta de todo indivíduo, em função de seus conhecimentos
são disponíveis para a humanidade como um todo. Esse conhecimento e habilidades variadas ajudar ou satisfazer às necessidades da comunidde
'macro-econômico' das quantidades agregadas de diferentes coisas não por uma contribuição de sua escolha - é igualmente alheio à mente
é nem disponível nem necessário, nem mesmo seria útil. Qualquer primitiva e ao construtivismo reinante, bem como ao socialismo explíci-
conceito de mensuração do produto agregado composto de uma grande to.
variedade de mercadorias em combinações variadas está errado: sua Não é exagero dizer que este conceito marca a emancipação do
equivalência para os fins humanos depende do conhecimento humano, e indivíduo. Ao desenvolvimento do espírito individualista devem-se (ver
somente depois de termos traduzido as quantidades físicas em valores Capítulos II e III) a divisão das especializações, o conhecimento e o
econômicos poderemos começar a avaliar estas questões. trabalho, nos quais se baseia a civilização avançada. Como historiadores
O que é decisivo para a magnitude do produto, e o principal contemporâneos como Braudel ( 1981-84) começaram a compreender
determinante que gera quantidades determinadas, é o modo como estes que o intermediário desprezado, buscando lucro, tornou possível a mo-
milhões de indivíduos que possuem conhecimentos distintos de recursos derna ordem espontânea, a tecnologia moderna e a magnitude de nossa
específicos os combinam cm vários lugares e momentos em conjuntos, população atual. A capacidade, não menos que a liberdade, de nos
escolhendo entre as grandes variedades de possibilidades nenhuma guiarmos por nossos próprios conhecimentos e decisões, em vez deixar-
das quais pode em si ser considerada a mais eficaz se não se conhecer a nos levar pelo espírito do grupo, são desenvolvimentos do intelecto que
relativa escassez dos diferentes elementos como indicam seus preços. nossas emoções seguem de forma apenas imperfeita. Nesse caso, além
disso, embora os membros de um grupo primitivo possam reconhecer
O passo decisivo para a compreensão do papel dos preços
facilmente o conhecimento superior de um líder venerado, eles o criticam
relativos na determinação do melhor uso dos recursos foi a descoberta no semelhante que conhece uma forma de obter por um pequeno esforço
do princípio dos custos comparativos por Ricardo. princípio que. perceptível o que os outros só conseguem por meio de duros esforços a
como Ludwig von Mi ses disse com propriedade, deveria ser chamada duras penas. Ocultar e utilizar informações melhores para o ganho
Lei da Associação de Ricardo ( 1949: 159-64). As relações dos preços individual ou particular ainda é algo considerado de certo modo impró-
dizem por si só ao empresário quando dretorno ultrapassa os custos prio ou pelo menos impróprio para com seus semelhantes. E estas
em medida suficiente para que seja ldcrativo investir um capital reações primitivas permanacem vivas muito depois que a especialização
limitado em determinado empreendimento. Esses sinais o orientam se tornou a única forma de utilizar a aquisição da informação em sua
para um objetivo invisível. a satisfação do consumidor desconhecido, grande variedade.
do produto final.
Essas reações também continuam hoje a influenciar a opinião e a
ação política, a prejudicar o desenvolvimento da mais eficiente organi-
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zação da produção, e a encorajar as falsas esperanças de socialismo. O com que as pessoas se sintam levadas a concordar com o escritor que há
fato de a humanidade -que deve os suprimentos dos quais vive tanto muito tempo declarou que nenhum outro terna, nem mesmo o amor, levou
ao comércio quanto à produção - desprezar aquele, mas prezar exces- mais homens à loucura, 'a raiz de todos os males', declara a Bíblia, 'é o
sivamente esta última cria urna situação que só pode contribuir para amor ao dinheiro' (I Timóteo, 6:1 0). Mas a arnbivalência a seu respeito
provocar um efeito distorcido nas atitudes políticas. é talvez ainda mais comum: o dinheiro aparece ao mesmo tempo corno
A ignorância da função do comércio, que levou inicialmente ao o mais poderoso instrumento de liberdade c o mais sinistro instrumento
medo, e na Idade Média ao controle governamental sem qualquer infor- de opressão. Esse que é o meio de troca mais amplamente difundido,
mação, e que só numa época relativamente recente cedeu graça a urna evoca todo o mal-estar que as pessoas sentem em relação a um processo
melhor compreensão, revive agora sob urna nova forma pseudo-científi- que não podem compreender, que amam e odeiam ao mesmo tempo. E
ca. Nessa forma ele se presta às tentativas de manipulação econôrnica alguns de seus efeitos sãoidesejados veementemente, enquanto outros
tecnocrática que, quando aquelas inevitavelmente fracassam, estimulam são detestáveis, apesar de inseparáveis.
urna forma modema de desconfiança em relação ao 'capitalismo'. Con- O funcionamento da estrutura da moeda c do crédito, entretanto,
tudo a situação pode parecer ainda pior quando voltamos nossa atenção juntamente com a linguagem e a moral, têm sido urna das ordens
para certos processos de organização, ainda mais difíceis de compreender espontâneas mais resistentes às tentativas de urna explicação teórica
do que o comércio, ou seja, aqueles que governam o dinheiro e as adequada, e continua objeto de profundas divergências entre os especia-
finanças. listas. Mesmo alguns estudiosos profissionais inclusive cederem ao
insight de que os detalhes necessariamente escapam à percepção, e que
a complexidade do todo nos compele a nos contentarmos com explições
de modelos abstratos que se formam espontaneamente, explicações que,
A Desconfiança em Relação ao Dinheiro embora esclarecedoras, não conferem nenhum poder de previsão de um
e às Finanças determinado resultado.
O dinheiro e as finanças não preocupam apenas os estudiosos. Corno
o comércio, e por muitas das mesmas razões, esses continuam suspeitos
O preconceito gerado pela desconfiança diante do que é misterioso para os moralistas. O moralista tem várias razões para desconfiar desse
atinge um grau mais elevado quando dirigida para as instituições mais meio universal de obtenção e manipulação do poder sobre a maior
abstratas de urna civilização avançada das quais depende o comércio, as variedade de fins de maneira menos visível possível. Em primeiro lugar,
quais são mediadoras dos efeitos mais gerais, indiretos, remotos e desa- enquanto poderíamos ver facilmente quantos outros objetos de riqueza
percebidos da ação individuaL e que, embora indispensáveis para a são usados, os efeitos concretos ou específicos do emprego do dinheiro
formação de urna ordem espontânea tendem a ocultar seus mecanismos em nós mesmos ou em outras pessoas muitas vezes permanecem indis-
orientadores da observação investigadora: o dinheiro e as instituições tinguíveis. Em segundo lugar, mesmo quando alguns dos seus efeitos são
financeiras que nele se baseiam. No momento em que o escarnbo é distinguíveis, ele pode ser usado tanto para fins bons quanto para fins
substituído pela troca indireta mediada pelo dinheiro, a fácil inteligibili- maus - por isso a suprema versatilidade que o torna tão útil ao seu
dade cessa e iniciam-se processos intcrpessoais abstratos que transcen- possuidor o torna mais suspeito para o moralista. Finalmente, seu uso
dem até mesmo a mais esclarecida percepção individual. hábil, e os amplos ganhos e magnitudes disso decorrentes, parecem,
O dinheiro, a verdadeira 'moeda' da interação comum, é pois a corno no caso do comércio, divorciados do esforço físico ou do mérito
menos conhecida de todas as coisas e - talvez com o sexo - objeto das reconhecível, e sequer precisam estar ligados a qualquer substrato mate-
maiores fantasias irracionais; e corno o sexo, ao mesmo tempo fascina, rial - corno nas 'transações exclusivamente com papel'. Se artesãos e
intriga e repele. A literatura que versa sobre essa matéria é provavelmente ferreiros eram temidos por transformarem a substância material, se os
mais ampla do que aquela dedicada a qualquer outra; e sua leitura faz comerciantes o eram por transformarem qualidade intangíveis corno o
O Mundo Misterioso do Comércio... 141
140 A Arrogância Fatal
dos grupos primitivos; e foi isto que me inclinou a definir suas exigências mos, admirar no asceta que preferiu contentar-se com uma pequena
e anseios como atávicos. O que os intelectuais formados nos pressupostos parcela das riquezas desse mundo, mas que, quando esta toma a forma
construtivistas acham mais contestável na ordem de mercado, no comér- de restrições aos lucros de outrem, é egoísta na medida em que impõe o
cio, no dinheiro e nas instituições financeiras é que produtores, comer- ascetismo e em realidade provações de toda sorte, aos outros.
ciantes e financistas não estão preocupados com as necessidades concre-
tas de pessoas conhecidas, mas com cálculos abstratos de custos e lucros.
Mas eles esquecem, ou não conhecem, os argumentos que acabamos de
ensaiar. A preocupação com o lucro é exatamente aquilo que permite o
emprego mais eficientes dos recursos. Ela possibilita o uso mais produ-
tivo da variedade de suporte potencial que pode ser utilizado a partir de
outros empreendimentos econômicos. O nobre slogan socialista, 'Produ-
ção para uso, não para lucro', que encontramos de uma forma ou de outra
desde Aristóteles a Bertrand Russell, de Albert Einstein ao arcebispo
Câmara no Brasil (e freqüentemente, desde Aristóteles, com o acréscimo
de que esses lucros são feitos 'as custas de outros'), trai a ignorância de
que a capacidade produtiva é multiplicada por diferentes indivíduos que
obtêm acesso a diferentes conhecimeptos cujo total ultrapassa o que
qualquer um deles poderia reunir. Em suas atividades, o empresário deve
investigar para além dos usos e das finalidades conhecidas com o objetivo
de proporcionar os recursos para a produção de outros recursos que por
sua vez servem ainda a outros, e assim por diante -ou seja, para atender
a uma multiplicidade de fins últimos. Os preços e o lucro são tudo aquilo
de que a maioria dos produtores necessitam para poder atender de modo
mais efetivo às necessidades de homens que desconhecem. Eles são um
instrumento de investigação- assim como, para o soldado ou o caçador,
o marinheiro ou o piloto, o telescópio amplia o alcance da visão. O
processo de mercado proporciona à maioria das pessoas o material e os
recursos de informação de que necessitam a fim de obter aquilo que
desejam. Por isso poucas atitudes são mais irresponsáveis do que a dos
intelectuais que menosprezam a preocupação para com os custos, pois
eles, em geraL não sabem procurar de que modo certos resultados devem
ser alcançados com o menos sacrifício de outros fins. Esses intelectuais
ficam cegos de indignação com a chance essencial de lucros muito
grandes aparentemente desproporcionais ao esfowo exigido num caso
determinado, mas que é a única que torna este tipo de experimentação
praticável.
Portanto é difícil acreditar que alguém bem informado a respeito do
mercado possa honestamente condenar a busca do lucro. O desprezo pelo
lucro decorre da ignorância, e de uma atitude que poderemos, se quiser-
zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
CAPÍTULO VII
Confúcio
145
146 A Arrogância Fatal A Nossa Linguagem Envenenada 14 7
podemos fazer com elas. Essa indicação, classificação e distinção muitas como a mente ingênua ou inculta tende a pressupor a presença da vida
vezes, evidentemente, é vaga. E o que é mais importante, o emprego da sempre que percebe movimento, também tende a pressupor a atividade
linguagem está eivado de interpretações ou teorias sobre o que nos cerca. da mente ou espírito sempre que imagina que exista um propósito. A
Como Goethe reconheceu, tudo aquilo que imaginamos ser factual já é situação é agravada por que, até certo ponto, a evolução da raça humana
teoria: o que 'conhecemos' sobre o que nos cerca é nossa interpretação parece repetir-se no desenvolvimento inicial de cada mente humana. Ao
desse ambiente. falar sobre a representação do mundo na criança (1929:359), Jean Piaget
Conseqüentemente, várias dificuldades surgem da análise e crítica escreve: ''A criança começa vendo um propósito em toda parte''. Só em
de nossos pontos de vista. Por exemplo, muitas convicções aceitas em segundo lugar a mente se preocupa em diferenciar os propósitos das
geral permanecem apenas de modo implícito nas palavras ou nas frases coisas em si (animismo) e os propósitos dos produtores das coisas
que as implicam e é possível que jamais sejam explicitadas; portanto, (artificialismo).
nunca estão expostas à possibilidade de crítica, de modo que a linguagem As conotações animistas prendem-se a muitas palavras básicas e
transmite não apenas sabedoria, mas também uma espécie de tolice que particularmente àquelas que descrevem ocorrências que produzem or-
é difícil erradicar. dem. Não só a palavra ''fato'' em si mas também ' 'causar'', ''coagir'',
Também é difícil explicar num determinado vocabulário - por ''distribuir", "preferir" e "organizar', termos indispensáveis à descri-
causa das suas limitações e das conotações que lhes são inerentes -algo ç2:o de processos impessoais, ainda evocam em muitas mentes a idéia de
diferente daquilo que a linguagem costumava explicar tradicionalmente. uma pessoa que atua.
Não só é difícil explicar, ou mesmo descrever algo novo nos termos A própria palavra ''ordem'' é um claro exemplo de uma expressão
recebidos, também é árduo distinguir àquilo que a linguagem já classifi- que, antes de Darwin, seria usada quase universalmente para designar
cou de uma determinada maneira- principalmente uma maneira basea- uma pessoa que atua. No começo do século passado, até mesmo um
da nas distinções inatas dos nossos sentidos. pensador da importância de Jeremy Bentham afirmava que ''ordem
Essas dificuldades levaram alguns cientistas a inventar novas lin- pressupõe um fim'' (1789/1887, Obras: II, 399). Na realidade, podería-
guagens para suas disciplinas. Os reformadores, principalmente os socia- mos dizer que, até a' 'revolução subjetiva'' na teoria econômica nos anos
listas, foram movidos pelo mesmo anseio, e alguns deles propuseram a 1870, o conhecimento da criação humana foi dominado pelo animismo
reforma deliberada da linguagem a fim de converter mais facilmente as -concepção da qual a própria "mão invisível" de Adam Smith repre-
pessoas às suas convicções (ver Bloch, 1954-59). sentou apenas uma exceção parcial, até que nos anos 1870, a função
Diante dessas dificuldades, nosso vocabulário e as teorias nele
orientadora dos preços de mercado determinados pela concorrência, foi
contidas são fundamentais. Na medida em que falamos numa linguagem
compreendida mais claramente. Contudo, mesmo agora, fora do exame
baseada numa teoria errônea, geramos e perpetuamos o erro. Contudo, o
vocabulário tradicional que ainda expressa profundamente nossa percep- científico da lei, da linguagem e do mercado, os estudos das questões
ção do mundo e a interação humana em seu interior- e as teorias e humanas continuam a ser dominados por um vocabulário derivado
interpretações contidas neste vocabulário - continua muito primitivo principalmente do pensamento animista.
em vários aspectos. Em geral ele se formou ao longo de extensas épocas Um dos exemplos mais importantes é o dos escritores socialistas.
do passado em que nossas mentes interpretavam de maneira bastante Quanto mais profundamente investigamos suas obras, mais claramente
diferente o que nossos sentidos transmitiam. Pm}.anto, embora aprenda- percebemos que eles contribuíram muito mais para a preservação do que
mos em geral o que conhecemos por meio da lilíiguagem, o significado para a reforma do pensamento e da linguagem animista. Tomemos por
de cada palavra nos induz ao erro: continuamos a utilizar termos que exemplo a personificação da "sociedade" na tradição historicista de
possuem conotações arcaicas quando tentamos expressar uma compreen- Hegel, Comte e Marx. O socialismo, com sua "sociedade", de fato é a
são nova e melhor dos fenômenos aos quais eles se referem. mais nova das interpretações animistas da ordem representada historica-
Um exemplo pertinente é a maneira como os verbos transitiveis mente por várias religiões (com seus "Deuses"). O fato de o socialismo
atribuem a objetos inanimados uma espécie de ação ''consciente''. Assim abarcar freqüentemente a religião não atenua a questão. Imaginando que
148 A Arrogância Fatal A Nossa Linguagem Envenenada 149
toda ordem é o resultado da intenção, os socialistas concluem que a ordem ordem espontânea da cooperação humana possuírem conotação enganosa
deve poder ser aperfeiçoada por desígnio melhor de uma mente superior. de um tipo primitivo de comunidade. Na realidade, muitas palavras
Por isto o socialismo merece um lugar num inventário oficial de várias incorporadas à nossa linguagem são de tal caráter que, se as empregamos
formas de animismo -como diz, preliminarmente, E.E. Evans-Pritchard habitualmente, somos levados a conclusões não inferidas por qualquer
em suas Theories of Primitive Religion (1965). Em vista da contínua pensamento mais sóbrio sobre o tema em questão, conclusões também
influência de tal animismo, parece prematuro inclusive hoje concordar conflitantes com a evidência científica. Foi por esta razão que ao escrever
com W.K. Clifford, um profundo pensador, o qual, já na época de este livro impus a mim mesmo a norma abnegada de jamais utilizar as
Darwin, afirmava que 'propósito deixou de sugerir desígnio para as palavras "sociedade" ou "social" (ainda que apareçam inevitavelmen-
pessoas instruídas, salvo em casos em que a intervenção dos homens é te, vez por outra, nos títulos de livros e citações de textos de outros
independentemente demonstrável' (1879: 117). autores, e em algumas ocasiões, tenha deixado as expressões ''as ciências
A contínua influência do socialismo sobre a linguagem dos intelec- sociais" ou "estudos sociais"). Contudo, embora até aqui não tenha
tuais e dos estudiosos é evidente também em certos estudos descritivos usado tais termos, quero discuti-los - no presente capítulo bem como
no campo da história e da antropologia. Como Braudel pergunta: ''Quem algumas outras palavras de função semelhante - a fim de revelar um
de nós não falou em luta de classes, modos de produção, força de pouco do veneno que se oculta em nossa linguagem, particularmente
trabalho, mais valia, empobrecimento relativo, prática, alienação. in- naquela que diz respeito às ordens e às estruturas da interação e das
fra-estrutura, superestrutura, valor de uso. valor de troca, acumulação inter-relações humanas.
primitiva, dia/ética, ditadura do prole.tariado ... ?" (tudo isto suposta-
mente derivado ou popularizado por Karl Marx: ver Braudel 1982b ). A citação de Confúcio um pouco simplificada no epígrafe deste
capítulo é provavelmente a mais antiga expressão dessa preocupação
Na maioria dos casos, subjacentes a essa maneira de falar, não estão
que se preservou. Uma forma abreviada em que a encontrei pela
simples afirmações de fato, mas interpretações ou teorias sobre conse- primeira vez deve-se aparentemente do fato de não existir em chinês
qüências ou causas de supostos fatos. Também a Marx devemos espe- uma palavra única (ou conjunto de caracteres) significando liberdade.
cialmente o emprego do termo "sociedade" em lugar de estado ou No entanto, o trecho traduziria legitimamente a definição de Confúcio
organização coercitiva de que ele em realidade fala, uma circunlocução da condição desejável de qualquer grupo ordenado de homens, que
que sugere que podemos controlar deliberadamente as ações dos indiví- se encontra em sua obra Analectas (tradução para o inglês de A.
duos por ~lgum método mais brando e mais afável de direção do que a Waley, 1938:XII1,3, 171-2): 'Sealinguageméincorreta... aspessoas
coerção. E claro que a ordem ampla espontânea, que é o tema principal não têm onde pôr mãos e pés'. Agradeço a David Hawkes, de Oxford,
desse livro não poderia ''agir'' ou ''tratar'' de determinadas pessoas por ter encontrado uma tradução mais autêntica de um trecho que
como a um povo ou uma população. Por outro lado, o 'estado' ou melhor, muitas vezes citei de forma incorreta.
o 'governo', que antes de Hegel era o termo comum (e mais honesto)
utilizado em inglês, evidentemente também representava para Marx de A qualidade insatisfatória de nosso vocabulário contemporâneo de
forma aberta e clara a idéia de autoridade, enquanto o termo vago termos políticos deve-se ao fato de derivar em grande parte de Platão e
'sociedade' permitia-lhe insinuar que seu domínio garantiu algum tipo Aristóteles, os quais, não possuindo o conceito de evolução, considera-
de liberdade. vam a ordem dos negócios humanos uma combinação de um número fixo
Portanto, se a sabedoria se oculta freqüentemente no significado das e imutável de homens plenamente conhecido pela autoridade governante
palavras, o mesmo ocorre com o erro. As interpretações ingênuas que -ou, como a maioria das religiões até o socialismo, o produto planejado
agora sabemos serem falsas, bem como um conselho útil embora muitas de uma mente superior. Os que pretendem estudar a influência das
vezes não apreciado, sobrevivem e determinam nossas decisões por meio palavras sobre o pensamento político encontrarão abundantes informa-
das palavras que usamos. De relevância especial para nossa análise é o ções em Demandt [1978]. Em inglês, uma análise útil sobre os enganos
fato lamentável d~ muitas palavras que aplicamos a vários aspectos da provocados pela linguagem metafórica poderá ser encontrada em Cohen
150 A Arrogância Fatal A Nossa Linguagem Envenenada 151
[ 1931 ], mas as análises mais completas sobre o abuso da linguagem no formas diferentes de interação humana é apenas mais um sintoma, mais
campo de política que eu conheça encontram-se nos estudos alemães de uma manifestação, da compreensão predominante e extremamente ina-
Schoeck [1973] e em H. Schelsky [1975:233-249]. Eu mesmo tratei de dequada dos processos de coordenação dos esforços humanos. Esses
alguns desses assuntos em obras anteriores [1967/78:71-97; 1973:26-54; termos na realidade são tão impróprios, que, quando os empregamos, não
1976:78-80]). conseguimos sequer delimitar claramente aquilo de que estamos falando.
Poderíamos começar com os termos usados em geral para distinguir
os dois princípios opostos da ordem da colaboração humana, capitalismo
e socialismo, ambos equívocos e de conotação política tendenciosa.
Ambigüidade Terminológica e Distinções Embora visem a lançar um pouco de luz sobre estes sistemas, não revelam
nada importante de seu caráter. A palavra 'capitalismo' em particular
Entre Sistemas de Coordenação
(ainda desconhecida de Karl Marx em 1867 e nunca usada por ele) 'só
adentrou no debate político como o 'oposto natural ao socialismo' com o
livro explosivo de Werner Sombart, Der moderne Kapitalismus em 1902
Em outra oportunidade, tentamos deslindar algumas das confusões (Braudel, 1982a:227). Como este termo sugere um sistema que atende
provocadas pela ambigüidade de termos como 'natural' e 'artificial' (ver aos interesses específicos dos proprietários de capital, provocou natural-
Apêndice A), de 'genético' e 'cultural' e assim por diante, e como o leitor mente a oposição daqueles que, como vimos, eram seus principais
deve ter observado, em geral prefiro o termo menos usual mas mais beneficiários, os membros do proletariado. O proletariado pôde sobrevi-
preciso 'p~opriedade individual' à expressão mais comum 'propriedade ver e aumentar graças à atividade dos proprietários de capital, e em certo
privada'. E claro que existem muitas outras ambigüidades e confusões, sentido, foi até mesmo gerado por estes. De fato, os proprietários de
algumas das quais de importância maior. capital tornaram possível a ordem espontânea das relações humanas, e
Por exemplo, os socialistas americanos cometerem engano propo- isto pode ter levado alguns capitalistas a aceitar orgulhosamente essa
sital ao se apropriarem do termo 'liberalismo'. Como Joseph A. Schum- denominação pelo resultado de seus esforços. Não obstante, foi um
peter disse com propriedade (1954:394): 'Como homenagem suprema, desenvolvimento infeliz por sugerir uma oposição de interesses que na
embora involuntária, os inimigos do sistema da iniciativa privada acha- realidade não existe.
ram sensato apropriar-se de seu rótulo'. O mesmo se aplica cada vez mais Uma definição um pouco mais satisfatória para a ordem econômica
aos partidos políticos europeus de centro, os quais, ou, como na Grã-Bre- espontânea da colaboração é o termo 'economia de mercado', importado
tanha, têm o nome de liberais, ou, como na Alemanha Ocidental, se do alemão. Contudo, também tem graves desvantagens. Em primeiro
declaram liberais mas não hesitam em formar coalizões com partidos lugar, a chamada economia de mercado não é em realidade uma economia
abertamente socialistas. Como lamentei há mais de vinte e cinco anos no sentido estrito, mas um grande número de economias interagindo entre
( 1960, Posfácio), tornou-se quase impossível para um liberal gladstonia- si com as quais tem em comum algumas características distintivas, mas
no definir-se como liberal sem dar a impressão de acreditar no socialismo. não todas. Se damos às estruturas complexas resultantes da interação de
Tampouco esta é uma novidade: já em 1911, L. T. Hobhouse publicava economias distintas uma denominação que sugere tratar-se de constru-
um livro com o título Liberalism que deveria se chamar mais adequada- ções deliberadas, admitimos a personificação ou o animismo ao qual,
mente de Socialism, logo seguido por um livro intitulado The Elements como vimos, se devem tantas concepções equivocadas dos processos de
of Social Justice ( 1922). ·. interação humana, e do qual tentamos fugir. É necessário lembrar cons-
I
Considerando a importância dessa mudança; específica - à qual tantemente que a economia produzida pelo mercado não é em realidade
talvez não seja mais possível remediar - devemos nos deter aqui, de como os produtos do desígnio humano deliberado, mas é uma estrutura
acordo com o tema geral desse livro, nas ambigüidades e na imprecisão que, embora em muitos aspectos semelhante a uma economia, em outros,
causadas pelas denominações dadas em geral aos fenômenos da interação particularmente por não servir a uma hierarquia unitária de fins, difere
humana. A impropriedade dos termos usados para nos referirmos a fundamentalmente de uma verdadeira economia.
152 A Arrogância Fatal A Nossa Linguagem Envenenada 1 53
. UT?a s:g~nda ~esvantagem _do termo economia de mercado é que exemplo no latimsocietas, de socius, o colega ou companheiro conhecido
em mgle~ nao e possivel fazer denvar desse termo, um adjetivo adequado pessoalmente; e foi usada para definir tanto uma situação realmente
e na prática uma expressão que indique a adequação de ações determi- existente quanto uma relação entre indivíduos. Como é empregada
nadas é de fato ~ecessária. Por isso eu propus há algum tempo costumeiramente, pressupõe ou implica numa busca comum de propósi-
(196711978b:90) a mtrodução de um novo termo técnico obtido de um tos comuns que em geral só podem ser alcançados pela colaboração
radical ~rego que já foi usado num contexto muito semelh~nte. Em 1938, consciente.
o ar~eb1spo Whately sugeriu 'cataláxia' para definir a ciência teórica que Como vimos. uma das condições necessárias da ampliação da
exphca a or?em de mercado, e sua sugestão foi retomada de tempos em cooperação humana além dos limites da percepção individual é que o
te~pos: mais ~ecentemente por Ludwig von Mises. O adjetivo 'cataláti- 'âmbito dessas buscas seja cada vez mais governado não por propósitos
co denva facilmente do termo cunhado por Whately e já foi usado de compartilhados, mas por normas abstratas de conduta cuja observância
modo bastante ~m~lo. Esses termos são particularmente tentadores por- faz com que cada vez mais atendamos às necessidades de pessoas que
que a palavra class1ca grega da qual derivam, katalattein ou katalasseín não conhecemos e, do mesmo modo, que nossas próprias necessidades
não significa apenas 'trocar' mas também 'receber na comunidade' ~ sejam atendidas por pessoas desconhecidas. Portanto, quanto mais se
'transf~rmar-se de inimigo em amigo', outra prova da profunda intuição amplia o âmbito da cooperação humana, tanto menos a motivação no
dos antigos gregos nessas questões (Lidell e Scott, 1940, s.v. katallasso). interior desta corresponde ao quadro mental do que as pessoas imaginam
Ist? me lev~~ a_ sugerir a formação do termo catalfaxis para definir o que deveria acontecer numa 'sociedade', e tanto mais o termo 'social' se
objeto da ciencia que em geral chamamos economia, a qual, então, torna não a palavra-chave numa afirmação dos fatos, mas o cerne de um
segundo Whately, deveria ser chamada catalática. A utilidade dessa apelo a um ideal antigo de comportamento humano geral, agora ultrapas-
inovação foi confirmada pelo fato de o termo antigo já ter sido adotado sado. Toda compreensão real da diferença entre o que de fato caracteriza
por a~guns ?os meus col~gas mais jovens e estou convencido de que sua o comportamento individual num grupo determinado, de um lado e, do
adoçao mms geral podena realmente contribuir para a clareza de nossa outro, a quimera de como deve ser a conduta individual (de acordo com
discussão. · costumes mais antigos) vai aos poucos se perdendo. Não só qualquer
grupo de pessoas que se relacionam entre si nos mais variados modos, é
chamado 'sociedade', mas também se conclui que qualquer um desses
grupos deveria se comportar como um grupo primitivo de companheiros
Nosso Vocabulário Animista costumava se comportar.
e o confuso Conceito de 'Sociedade' Portanto. a palavra ·sociedade' tornou-se um rótulo conveniente
para denotar quase todo grupo de pessoas, a respeito de cuja estrutura ou
razão de coerência não é necessário conhecer nada -um artifício ao qual
Como e~ses exemplos mostram tão bem, no estudo dos negócios as pessoas recorrem quando não sabem nem do que estão falando.
humanos as dificuldades de comunicação começam com a definição e a Aparentemente, um povo, uma nação, uma população, uma empre-
nom~ação d~s pr?~rios objetos que pretendemos analisar. A principal sa, uma associação, um grupo, uma horda, um bando, uma tribo, os
barreira termmologica ao conhecimento, ultrapassàndo em importância membros de uma raça, de uma religião, de uma modalidade esportiva, de
os outros termos que acabamos de estudar, é a própria expressão 'socie- um espetáculo, os habitantes de qualquer lugar específico, são, ou cons-
d~d~' -:--e não só porque, desde Marx, ela foi usada para confundir as tituem, sociedades.
distmçoes entre governos e outras 'instituições'. Como termo usado para Dar o mesmo nome a formações tão fundamentalmente diferentes
descrever uma variedade de sistemas de inter-relações de atividades como camaradagem de indivíduos em constante contato pessoal e a
humana~, 'so9iedade' sugere falsamente que todos estes sistemas são do estrutura formada por milhões de pessoas ligadas apenas por sinais
mesmo tipo. E também um dos termos mais antigos do gênero, como por resultantes de longas cadeias de intercâmbio infinitamente ramificadas
1 54 A Arrogância Fatal A Nossa Linguagem Envenenada 155
não só induz concretamente ao erro como também quase sempre contém ordem para a moral racionalista visando substituir a moral tradicional, e
um desejo oculto de moldar essa ordem espontânea segundo a associação agora cada vez mais suplanta a palavra 'bom' como designação do que
íntima pela qual nossas emoções anseiam. Bertrand de Jouvenel descre- é moralmente certo. Como resultado desse caráter 'distintamente dicotô-
veu bem essa nostalgia instintiva do pequeno grupo- 'o meio no qual mico', como diz adequadamente o Novo Dicionário Webster de Sinóni-
o homem é encontrado pela primeira vez e que conserva para ele uma mos, os significados concreto e normativo da palavra 'social' se alternam
infinita atração: mas qualquer tentativa de transplantar as mesmas carac- continuamente, e o que à primeira vista parece uma descrição torna-se
terísticas numa sociedade ampla é utópica e leva à tirania' (1957:136). imperceptivelmente uma prescrição.
A diferença crucial menosprezada nessa confusão é que o pequeno
grupo pode ser guiado em suas atividades por propósitos convencionados A respeito dessa questão específica. o emprego do termo em
ou pela vontade de seus membros, enquanto a ordem ampla, que é alemão influenciou a linguagem americana mais do que a inglesa;
também uma 'sociedade', se constitui numa estutura harmônica porque pois por volta dos anos 1880 um grupo de estudiosos alemães,
seus membros observam normas de conduta semelhantes na busca de conhecidos como a escola histórica ou ética de pesquisa económica,
propósitos individuais diferentes. O resultado desses esforços diversos vinha usando cada vez mais o termo 'política social' em lugar de
na observância de normas semelhantes mostrará na realidade algumas 'economia política' para designar o estudo da interação humana. Um
características semelhantes àquelas de um organismo que possui um dos poucos a não se deixar arrastar por esta nova moda, Leopold Von
Wiese, observou mais tarde que somente aqueles que eram jovens
cérebro ou mente, ou àquilo que um organismo desse tipo organiza
durante a 'era social' - nas décadas imediatamente anteriores à
deliberadamente, mas é errôneo consid~rar tal 'sociedade' sob o aspecto
Grande Guerra- têm condições de avaliar como era forte naquela
animístico. ou personificá-la atribuindo-lhe uma vontade, uma intenção, época a tendência a considerar a esfera ·social' um substituto da
ou um desígnio. Por isso, é inquietante o fato de um importante estudioso religião. Uma das manifestações mais dramáticas desse fato foi o
contemporâneo confessar que, para um utilitarista, a 'sociedade' deve aparecimento dos chamados pastores sociais. Mas 'ser "social'",
parecer não 'como uma pluralidade de pessoas ... mas uma únicai grande insiste Wiese, 'não é o mesmo que ser bom ou justo ou ''justo aos
pessoa' Chapman, 1964:153) .. olhos de Deus"' (I 917). A alguns discípulos de Wiese devemos
instrutivos estudos históricos sobre difusão do termo 'social' (ver
minhas referências em 1976: 180).
O Evasivo Termo(" Weasel Word") "Social" A extraordinária variedade de empregos na língua inglesa da palavra
'social' desde então aparece de modo nítido quando encontramos no
Fontana Dictionary of Modern Thought ( 1977), já citado em outro
A palavra 'sociedade', tão enganosa, é relativamente inócua com- contexto, apropriadamente precedida por Soap Opera (N.T. =novela),
parada ao adjetivo 'social', que se tornou talvez a expressão mais confusa uma série de nada menos que trinta e cinco combinações de 'social' com
em todo o nosso vocabulário moral e político. Isto aconteceu somente um substantivo ou outro termo, de 'ação social', a 'conjuntos sociais').
nos últimos cem anos, período no qual seus usos modernos. seu poder e Num esforço semelhante, o dicionário Key Words ( 1976), de R. Williams,
influência se expandiram rapidamente a partir da Alemanha de Bismarck o autor, embora remetendo em geral ao leitor, com a abreviatura conven-
para todo o globo. A confusão que ela gera no próprio campo em que é cional 'q.v. ',aos verbetes correspondentes, abandonou esse método com
usada mais freqüentemente, é devida em parte ao fato de definir não relação a ·social'. Aparentemente ele não achou prático seguir seu
apenas fenômenos produzidos por vários modos de cooperação entre os sistema, nesse caso e teve de abandoná-lo. Esses exemplos levaram-me
homens, como uma ·sociedade', mas também os tipos de ações que durante algum tempo a anotar todas as ocorrências da palavra 'social'
promovem e servem a estas ordens. A partir deste seu último emprego que encontrava e elaborei assim a seguinte lista de mais de cento e
ela se tornou cada vez mais uma exortação, uma espécie de palavra de sessenta substantivos qualificados pelo adjetivo 'social'.
156 A Arrogância Fatal A Nossa linguagem Envenenada 157
e espontâneos da ordem ampla é de fato o resultado da criação humana inspirados no inventor do termo "nacional-socialismo", Friedrich Nau-
deliberada. Em segundo lugar, conseqüentemente, a palavra apela aos mann, no século XIX (H. Maier, 1972:8).
homens para que eles replanejem o que jamais poderíamos ter planejado. O termo "democracia" também costumava ter um sentido bastante
E em terceiro lugar, também adquiriu o poder de esvaziar de seu signifi- claro; contudo, 'democracia social' não só servia para designar o radical
cado os substantivos que ela qualifica. austro-marxismo do período entre as duas guerras como agora foi esco-
Neste último efeito, de fato tornou-se o exemplo mais perigoso lhido na Grã-Bretanha para denominar um partido político comprometi-
daquilo que depois de Shakespeare '/ can suck melancholy out afá song, do com uma espécie de socialismo fabiano. Contudo, o termo tradicional
as a weasel sucks eggs ', 'Sugo a melancolia de uma canção, assim como usado para expressar o que chamamos agora o 'estado social', era
uma doninha suga ovos' (As you like it, II, 5) - alguns americanos 'despotismo benevolente' e o problema real da aplicação desse despotis-
chamam de weasel word (palavra doninha). Como uma doninha seria mo de maneira democrática, ou seja, preservando a liberdade individual,
supostamente capaz de esvaziar um ovo sem deixar sinal visível, assim simplesmente desaparece na mistura espúria 'democracia social'.
estas palavras esvaziam de seu conteúdo qualquer termo ao qual servem
de prefixo deixando-as aparentemente intactas. Uma weasel word é usada
para aparar as arestas de um conceito que somos obrigados a empregar,
mas do qual desejamos eliminar todas as implicações que ameaçam "Justiça Social" e "Direitos Sociais"
nossas premissas ideológicas.
Sobre o atual emprego da expressão pelos americanos, ver o A pior maneira de empregar o adjetivo ''social'', termo que destrói
livro Weasel Words: The Art of Saying What You Don 't Mean, do
totalmente o significado de qualquer palavra que qualifica, é a expressão
falecido Mario Pei (1978), que atribui a Theodore Roosevelt o fato
de uso quase que universal "justiça social". Embora já tenha tratado
de ter cunhado o termo em 1918, sugerindo assim que há setenta anos
os estadistas americanos eram notavelmente cultos. Contudo, o leitor
dessa questão com certa minuciosidade, principalmente no segundo
não encontrará naquele livro o premiado equívoco termo 'social'. volume de A Miragem da Justiça Social, no livro Direito. Legislação e
Liberdade, preciso voltar ainda que sucintamente à questão, pois ela
Embora o abuso do termo 'social' seja internacional, a palavra desempenha um papel importante nos argumentos a favor e contra o
assumiu talvez suas formas mais radicais na Alemanha Ocidental onde a socialismo. A expressão ''justiça social'', como um ilustre indivíduo
constituição de 1949 empre.gava a expressão sozialer Rechtsstaat (estado mais corajoso do que eu disse rudemente, sem muitas cerimônias há
social de direito), a partir da qual espalhou-se o conceito de 'economia muito tempo, não passa de ''um logro semântico da mesma espécie de
social de mercado' -num sentido que seu divulgador Ludwig Erhard democracia popular'' (Curran, 1958:8). O grau alarmante em que o termo
com certeza jamais pretendeu lhe atribuir. (Ele garantiu-me certa ocasião já parece ter pervertido o pensamento da geração mais jovem está
numa conversa, que, na sua opinião, não era preciso que a economia de demonstrado numa recente tese de um doutor de Oxford, 'Social Justice '
mercado ser tornada social pois já o era por sua origem). Mas embora o (Miller, 1976), na qual se faz referência ao conceito tradicional de justiça
estado de direito e o mercado sejam, desde o início, conceitos bastante com a extraordinária observação de que ''parece existir uma categoria
claros, o atributo "social" esvazia-os de qualquer significado claro. A de justiça privada''.
partir destes usos da palavra 'social', os estudiosos alemães chegaram à Já vi sugerido que ''social'' se aplica a tudo que reduz ou acaba com
conclusão de que seu governo está sujeito por constituição ao Sozials- as diferenças de renda. Mas, por que chamar essa ação "social"? Talvez
taatsprinzip, o que singnifica pouco menos do que a suspensão do estado por ser um método para garantir maiorias, ou seja, mais votos do que
de direito. Do mesmo modo, esses estudiosos alemães identificam um esperamos obter por outras razões? Parece que é assim mesmo, mas
conflito entre o Rechtsstaat e Sozialstaat e entricheiram o soziale Rec- também significa, é claro, que toda exortação para que sejamos'' sociais''
tsstaat em sua constituição - a qual foi redigida pelos parvos fabianos é um apelo para que se avance rumo à "justiça social" do socialismo.
160 A Arrogância Fatal
A Nossa Linguagem Envenenada 161
Portanto, o emprego do termo' 'social'' torna-se praticamente equivalen- mente moral. A humanidade está dividida em dois grupos hostis por
te à exortação à' 'justiça distributiva''. No entanto, isto é irreconciliável promessas que não têm um conteúdo realizáv~l. Os ~otivos desse
com uma ordem de mercado competitiva e com o desenvolvimento ou conf1ito não podem ser dissipados pelo compromisso, pms ~oda ~o?c~s
até mesmo a manutenção da população e da riqueza. Assim, por causa são ao erro factual simplesmente cria novas expectativas Irreahzaveis.
destes erros, as pessoas passaram a chamar "social" o que constitui o Contudo, uma ética anticapitalista continua evoluindo sobre a base de
principal obstáculo à própria manutenção da "sociedade". O "social" erros cometidos por pessoas que condenam as instituições geradora~ de
deveria em realidade ser chamado · 'anti -social''. riqueza às quais elas próprias devem sua existência. Fingindo-se amigas
Provavelmente é verdade que os homens seriam mais felizes em da liberdade elas condenam a propriedade particular, o contrato, a
termos de suas condições econômicas, se sentissem que as posições concorrência: a propaganda, o lucro, e até o dinheiro. Imaginando que
relativas dos indivíduos são justas. Contudo, todo o conceito contido na sua razão pode lhes dizer como organizar os esforços humanos para
expressão justiça distributiva- pela qual cada indivíduo deveria receber atender melhor aos seus desejos inatos, elas representam uma grave
o que moralmente merece - está desprovido de sentido na ordem ameaça à civilização.
espontânea da cooperação humana (ou da catalaxis ), porque o produto
disponível (sua dimensão e inclusive sua existência) depende em certo
sentido de uma forma moralmente indiferente de alocar suas partes. Por
razões já examinadas, o deserto moral não pode ser determinado objeti-
vamente. e em todo caso a adaptação do todo maior aos fatos a serem
o
descobertos exige que aceitemos que'' sucesso se baseia nos resultados,
não na motivação" (Alchian, 1950:213). Qualquer sistema amplo de
cooperação deve se adaptar constantemente às mudanças de seu meio
natural (que inclui a vida, a saúde e a força de seus membros); é ridículo
exigir que só devam ocorrer mudanças cujo efeito seja justo. Quase tão
ridículo quanto a convicção de que a organização deliberada da resposta
a tais mudanças possa ser justa. A humanidade nem poderia ter alcançado
e tampouco manter agora sua dimensão atual sem uma desigualdade que
não é determinada nem se concilia com qualquer juízo moral deliberado.
O esforço evidentemente melhorará as chances individuais, mas o esforço
apenas não pode garantir resultados. A inveja daqueles que se esforçaram
com o mesmo afinco, embora plenamente compreensível, contraria o
interesse comum. Portanto, se o interesse comum é realmente nosso
interesse, não devemos ceder a este aspecto instintivo bastante humano,
mas ao contrário, permitir que o processo de mercado determine a
recompensa. Ninguém pode avaliar, salvo por intermédio do mercado, a
dimensão de uma contribuição individual ao prot)uto global, tampouco
seria possível determinar, de outro modo, que r~muneração deve ser
proposta a alguém para que possa escolher a atividade mediante a qual
poderá prestar uma contribuição maior ao fluxo de bens e serviços
oferecidos em conjunto. É claro que se estes últimos são considerados
moralmente bons, o mercado passa a produzir um resultado suprema-
zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Capítulo VIII
A Ordem Espontânea
e o Crescimento Populacional
163
164 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 165
interação humana não constitui uma descoberta nova. A afirmação de aceitando a relação entre o crescimento populacional e a evolução da
que 'como é o poder de troca que possibilita a divisão do trabalho, a civilização. Ao contrário, ao constatar a atual densidade de nossa popu-
extensão dessa divisão deve ser sempre limitada pela extensão desse lação e, mais especificamente, a aceleração da taxa de aumento popula-
poder, ou, outras palavras, pela extensão do mercado', foi uma das mais cíonal nos últimos trezentos anos, ficaram enormemente alarmadas e
profundas intuições de Adam Smith ( 1776/1976:31 ); vejam-se também criaram a perspectiva de um crescente e desastroso aumento da popula-
os dois "Fragmentos sobre a divisão do trabalho'' em Lectures on ção, digna de um pesadelo. Até mesmo um filósofo sensato como A.G.N.
Jurisprudence ( 1978:582-586). Também foi constatado desde cedo que Flew (1967:60) louvou Julian Huxley por reconhecer de início, "antes
aqueles que seguiam práticas de mercado, ao crescer numericamente que isto fosse tão amplamente admitido como é agora, que a fertilidade
suplantariam outros que seguiam costumes diferentes. Baseando-se do homem representa a ameaça número um para o bem-estar presente e
numa afirmação semelhante de John Locke em Second Treatise futuro da raça humana''.
(1690/1887), o historiador americano James Sullivan observava, já em Afirmei que o socialismo constitui uma ameaça para o bem estar
1795. que os indígenas americanos haviam sido desalojados e expulsos presente e futuro da raça humana, no sentido de que nem o socialismo
pelos colonos europeus, e que agora quinhentos entes racionais prospe- nem qualquer outro substituto da ordem de mercado que conhecemos
ravam na mesma região em que anteriormente um único selvagem poderão sustentar a atual população mundial. Mas reações como aquela
''arrastava uma existência faminta" de caçador (1795:139). (As tribos que acabei de citar. muitas vezes de pessoas que não advogam o socia-
indígenas americanas que continuaram a se dedicar primariamente à caça lismo. sugerem que uma ordem de mercado que produz uma população
foram desalojadas também por outro elemento: pelas tribos que haviam tão numerosa, e é por ela também produzida, representa uma grave
aprendido a praticar a agricultura). ameaça para o bem estar da humanidade. Obviamente, esse conflito deve
Embora a expulsão de um grupo por outro e a substituição de um ser resolvido agora.
conjunto de práticas por outro, tenha sido muitas vezes sangrento, não A modema idéia de que o crescimento populacional ameaça com o
tem de ser necessariamente sempre assim. Sem dúvida. o curso dos empobrecimento mundial é simplesmente um erro. Ela é em grande parte
eventos variou de um lugar para outro, e não podemos entrar em detalhes conseqüência de uma excessiva simplificação da teoria malthusiana da
aqui, mas é possível imaginar várias e diferentes seqüêncías dos aconte- população; a teoria de Thomas Malthus foi um primeiro enfoque razoável
cimentos. Em alguns lugares quase que avassalados pela ordem espon- do problema na época, mas as condições modernas tomaram-na irrele-
tânea, aqueles que seguiam novas práticas, que conseguiam explorar vante. A suposição malthusiana de que o trabalho humano poderia ser
melhor a terra recebida, muitas vezes poderiam oferecer a outros ocupan- considerado um fator de produção mais ou menos homogêneo (ou seja,
tes, em troca do acesso à sua terra (sem que os ocupantes precisassem ter a mão-de-obra assalariada era toda da mesma categoria. empregada na
qualquer trabalho, e sem que os "invasores'' precisassem usar a força), agricultura. com os mesmos implementas e as mesmas oportunidades)
o mesmo que seus ocupantes conseguiam mediante uma dura labuta, e não estava longe da verdade na ordem econômica então existente (uma
às vezes até mais. Por outro lado. a própria densidade de seus núcleos economia teórica de dois fatores). Para Malthus, que foi também um dos
coloniais teria permitido a um povo mais avançado resistir às tentativas primeiros descobridores da lei dos lucros decrescentes, isto deve ter
de expulsão dos amplos territórios que utilizavam, e de que necessitavam, indicado que todo aumento do número de trabalhadores levaria a uma
nas épocas nas quais praticavam métodos mais primitivos de utilização redução do que chamamos agora de produtividade marginal, e portanto
da terra. Muitos desses desenvolvimentos podem ter ocorrido de modo da renda do trabalhador. particularmente se a terra melhor havia sido
totalmente pacífico, embora o maior poderio militar de pessoas comer- ocupada por lotes de tamanho ótimo. (Sobre a relação entre os dois
cialmente organizadas muitas vezes tenha acelerado o processo. teoremas de Malthus ver McCleary, 1953:111).
Mesmo que a extensão do mercado e o crescimento populacional No entanto, isto deixa de ser válido. nas condições modificadas que
pudessem ser conseguidos inteiramente por meios pacíficos. pessoas bem analisamos, quando a mão-de-obra não é homogénea mas diversificada
informadas e ponderadas hoje relutam cada vez mais em continuar e especializada. Com a intensificação do intercâmbio e a melhoria das
166 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 167
técnicas de comunicação e transporte, um aumento numérico da popula- Com isto não pretendo negar que um aumento populacional possa
ção e da densidade de ocupação torna vantajosa a divisão do trabalho, levar a uma redução das rendas médias. Mas esta possibilidade também
leva à diversificação radical, à diferenciação e especialização, permite é equivocada- o equívoco no caso seria devido à fusão da renda média
desenvolver novos fatores de produção e eleva a produtividade (ver de um número determinado de pessoas existentes em diferentes classes
Capítulos II e III, e também os seguintes). Especializações diferentes, de renda com a renda média de um número posterior, maior, de pessoas.
naturais ou adquiridas, tornam-se distintos fatores escassos, muitas vezes O proletariado é uma população adicional que, sem novas oportunidades
sob vários aspectos complementares; isto faz com que seja vantajoso para de emprego, nunca teria crescido. A queda da renda média ocorre
os trabalhadores adquirir novas especializações que então obterão preços simplesmente porque o grande crescimento populacional em geral impli-
diferentes no mercado. A especialização voluntária é orientada por níveis ca um aumento maior das camadas mais pobres de uma população. e não
diferentes no que se refere às recompensas esperadas. Portanto, o trabalho das mais ricas. Mas é incorreto concluir que alguém deva empobrecer ao
pode render lucros crescentes e não decrescentes. Uma população mais longo do processo. Nenhum membro específico de uma comunidade
densa pode também empregar métodos e tecnologia que seriam inúteis existente precisa empobrecer (embora seja provável que algumas pessoas
em regiões menos densamente ocupadas; e se essas tecnologias já foram abastadas, no decorrer do processo, sejam deslocadas por alguns dos
desenvolvidas em outra parte podem ser importadas e rapidamente recém-chegados e desçam a um nível mais baixo). Na realidade, todos
adotadas (desde que seja possível obter o capital exigido). O simples fato os que já existiam poderiam ter ficado um pouco mais ricos; e contudo
de viver em paz em constante contato com um número maior de pessoas as rendas médias podem ter diminuído se um número maior de pessoas
permite utilizar de forma mais plena os recursos disponíveis. pobres foi se somar às já existentes. É verdade e é óbvio que uma redução
Quando, dessa maneira. o trabalho deixa de ser um fator de produção da média é compatível com todos os grupos de renda que aumentaram
homogêneo, as conclusões de Malthus não podem ser aplicadas. Ao numericamente, os grupos de rendas mais elevadas tenham crescido
contrário, um aumento da população pode agora. devido à maior diferen- menos que os de renda mais baixas. Ou seja, se a base da pirâmide da
ciação, permitir novos aumentos da população e por períodos indefinidos renda aumenta mais do que sua altura. a renda média desse total maior
o aumento populacional pode ter um efeito auto-acelerador e ser também será menor.
um pré-requisito para qualquer avanço material da civilização e (graças Mas seria mais correto concluir disto que o processo de crescimento
à possibilidade de individualização), também espiritual. beneficia o número maior de pessoas pobres mais do que o número menor
Portanto, não é apenas um número maior de homens. mas de homens de pessoas ricas. O capitalismo criou a possibilidade do emprego. Ele
diferentes. que leva a um aumento da produtividade. Os homens se criou as condições pelas quais as pessoas que não receberam dos pais os
tornaram poderosos porque se tornaram tão diferentes: novas possibili- instrumentos e a terra necessária para se manterem e a seus filhos
dades de especialização - dependendo não tanto de um aumento da pudessem ser dotadas por outros, em benefício mútuo. Pois o processo
inteligência individual mas da crescente diferenciação dos indivíduos- permitiu que vivessem de maneira pobre e tivessem filhos, pessoas as
são o fundamento de uma utilização mais bem sucedido dos recursos da quais, de outro modo, sem a oportunidade de trabalho produtivo, sequer
terra. Isto por sua vez exige uma ampliação da rede de serviços recíprocos teriam alcançado a idade adulta e se multiplicariam: fez nascer e manteve
indiretos garantidos pelo mecanismo sinalizador do mercado. Como o milhões de pessoas vivas que, caso contrário. não estariam sequer vivas
mercado revela oportunidades de especialização sempre novas, o modelo e que, se tivessem vivido por algum tempo, não teriam condições de
de dois fatores, com suas conclusões malthusianas. torna-se cada vez procriar. Dessa forma, os pobres foram mais beneficiados pelo processo.
menos aplicável. Karl Marx estava portanto certo quando afirmou que o · 'capitalismo ·'
O temor predominante de que o crescimento populacional que criou o proletariado: O capitalismo deu e dá vida ao proletariado.
respalda e fomenta tudo isto possa levar ao empobrecimento e à catástrofe Assim, a idéia de que os ricos arrancaram dos pobres aquilo que,
geral. portanto, é fruto em grande parte de uma interpretação errêonea de não fosse por tais atos de violência, lhes pertenceria. ou pelo menos lhes
um cálculo estatístico. poderia pertencer, é absurda.
168 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 169
O volume de capital de um povo, juntamente com suas tradições e áreas diferentes. O problema real está na possibilidade de o número de
práticas acumuladas para a captação e comunicação da informação, habitantes de determinadas regiões, por qualquer razão, ser superior aos
determinam se aquele povo pode manter grandes números de indivíduos. recursos daquelas áreas (inclusive os recursos que eles podem utilizar
Empregam-se pessoas e produzem-se matérias primas e implementas para comerciar).
para atender às necessidades futuras de pessoas desconhecidas somente Na medida em que o aumento populacional foi permitido pela
se aqueles que podem investir o capital para fechar o hiato existente entre crescente produtividade das populações nas regiões envolvidas ou por
o atual desembolso e o lucro futuro conseguem com isto um incremento uma utilização mais eficiente de seus recursos, e não pelo apoio externo,
pelo menos tão grande quanto o que poderiam obter usando aquele capital artificial e deliberado, não há razões para preocupações. Do ponto de
de outras formas. vista moral, temos tão pouco direito de impedir o crescimento da popu-
Portanto sem os ricos -sem aqueles que acumularam capital -os lação em outras partes do mundo quanto o dever de ajudá-la. Por outro
pobres que tivessem condições de existir seriam na realidade muito mais lado, um conflito moral poderá de fato surgir se os países materialmente
pobres, arrancando a duras penas seu sustento de terras marginais nas avançados continuarem a assistir e em realidade até mesmo a subsidiar
q~is cada seca acabaria matando com a maioria dos filhos que tentassem o crescimento das populações em regiões, como por exemplo na zona do
cnar. Sahel na África Central, em que parecem existir poucas perspectivas de
A geração de capital alterou essa situação mais do que qualquer sua população atual, e menos ainda uma população maior, num futuro
outra coisa. previsível, ter condições de se manter por seus próprios esforços. Qual-
Quando o capitalista pôde empregar outras pessoas para seus pro- quer tentativa de manter uma população além do volume no qual o capítal
pósitos. sua capacidade de alimentá-las beneficiou tanto a elas quanto a acumulado atualmente ainda poderia ser reproduzido, o número de
ele. Essa possibilidade aumentou ainda mais à medida que alguns indi- pessoas que poderia ser mantido diminuiria. A não ser que haja uma
víduos tiveram condições de empregar outros não apenas díretamente, interferência de nossa parte, somente aumentarão aquelas populações que
para atender à suas próprias necessidades, mas para comerciar bens e podem se sustentar. Os países avançados, ajudando populações como a
serviços com um número incontável de outras pessoas. Portanto, a do Sahel a aumentar, estão alimentando expectativas, criando situações
propriedade, o contrato, o comércio e o uso do capital não beneficiariam que envolvem obrigações, e portanto assumindo uma grave responsabi-
apenas uma minoria. lidade à qual muito provavelmente mais cedo ou mais tarde faltarão. O
A inveja e a ignorância levaram as pessoas a considerar a posse de homem não é onipotente, e reconhecendo os limites de seus poderes
mais do que uma pessoa necessita para o consumo presente um motivo poderá chegar mais perto da realização de seus desejos do que seguindo
de condenação mais que de mérito. Contudo, a idéia de que este capital seus impulsos naturais para aliviar um sofrimento remoto a respeito do
seja acumulado ·'às custas de outros'', é um retrocesso a posições qual, infelizmente, pouco ou nada ele pode fazer.
económicas que, por mais óbvios que possam parecer a alguns, são de Em todo caso, não há nenhum perigo de que, num futuro previsível
fato infundadas e tornam impossível um conhecimento preciso do desen- que pode nos dizer respeito, a população do mundo em seu conjunto
volvimento da economia. superará além de seus recursos de matérias primas, e há todas as razões
para se supor que forças inerentes deterão este processo muito antes que
isso possa acontecer. (Ver os estudos de Julian L. Simon [1977, 1981 a
& b], Esther Boserup [1981], Douglas North [1973, 1981] e Peter Bauer
O Caráter Regional do Problema
[1981], bem como meu próprio livro [1954:15 e 1967:208]).
Pois, nas zonas temperadas de todos os continentes, com exceção
Outra fonte de equívocos é a tendência a considerar o crescimento da Europa, existem vastas regiões que não só podem suportar um
populacional em termos puramente globais. O problema da população aumento populacional, como também seus habitantes podem esperar
deve ser visto como um problema regional, com aspectos diferentes em alcançar os padrões de riqueza, conforto e civilização geral que o mundo
170 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 171
cimento e pela propriedade, mas também por certa acumulação indivi- Conseqüentemente, exisrem fortes razões para duvidar que seja
dual de novas formas de capital), isto se torna a base de novo crescimento. correta a extrapolação da tendência dos últimos séculos - de uma
Graças à multiplicação, diferenciação, comunicação e interação através aceleração indefinidamente crescente do crescimento populacional -
de distâncias cada vez maiores, e à transmissão através do tempo, a para o futuro indefinido. Podemos aguardar e esperar que quando as
humanidade tornou-se uma entidade distinta preservando certas caracte- últimas reservas de povos que estão agora ingressando na ordem espon-
rísticas estruturais que podem produzir efeitos benéficos para um novo tânea estiverem esgotados, seu crescimento numérico, que tanto preocu-
aumento numérico. pa as pessoas, gradativamente regredirá. Afinal, nenhum grupo razoavel-
Pelo que sabemos, a ordem espontânea é provavelmente a estrutura mente afluente mostra essa tendência. Não temos um conhecimento
mais complexa do universo - uma estutura na qual os organismos suficiente para dizer quando alcançaremos o momento crítico, mas
biológicos que já são extremamente complexos adquiriram a capacidade podemos corretamente pressupor que ainda levará muito tempo até nos
de aprender, de assimilar partes das tradições suprapessoais que lhes aproximarmos dos horrores criados pelo fantasma, do inelutável cresci-
permitem adaptar-se a cada instante a uma estrutura constantemente mento indefinido da humanidade.
variável que possui uma ordem de um nível de complexidade ainda mais Presumo que o problema já esteja diminuindo: a taxa de crescimento
elevado. Passo a passo, impedimentos momentâneos a ulteriores aumen- populacional está agora se aproximando, ou já alcançou o seu ápice, e
tos da população são vencidos, os aumentos populacionais fornecem o não aumentará muito mais, mas ao contrário declinará. Evidentemente,
fundamento para novos aumentos, e assim por diante, levando a um não podemos afirmar com certeza, mas parece que - mesmo que isto
processo progressivo e acumulativo que não termina enquanto todas as ainda não tenha ocorrido- em algum momento da última década nesse
regiões férteis ou ricamente dotadas sobre a terra também não forem século o crescimento populacional alcançará um máximo e depois decli-
densamente ocupadas. nará, a não ser que ocorra uma intervenção deliberada para estimulá-lo.
Já em meados da década de 60 a taxa anual de crescimento das
regiões em desenvolvimento alcançava um pico por volta de 2.4%. e
começou a declinar ao nível atual de aproximadamente 1%. E a taxa
de crescimento populacional de outras regiões mais desenvolvidas já
O Centro e a Periferia estava em declínio nessa mesma época. Em meados daquela década, a
população alcançou aparentemente uma elevada taxa anual de crescimen-
to permanente recuando em seguida (Nações Unidas, 1980, e J. Cohen,
E posso de fato parar aqui: eu não acho que a tão temida explosão 1984:50-51 ). Como escreve Cohen: "a humanidade começou a exercer
populacional -as pessoas seriam tão numerosas que só poderiam viver ou experimentar a limitação que governa todas as espécies a ela seme-
comprimidas -vá ocorrer. A história inteira do crescimento da popula- lhantes''.
ção mundial pode estar se aproximando do fim, ou pelo menos de um Os processos em andamento podem se tornar mais compreensíveis
novo nível. Pois o aumento populacional mais elevado jamais ocorreu se analisarmos mais atentamente as populações das periferias das econo-
nas economias de mercado desenvolvidas mas sempre nas periferias mias em desenvolvimento. Os melhores exemplos se encontram talvez
destas, entre os pobres que não possuíam terra fértil e equipamentos que nas cidades que mais crescem no mundo em desenvolvimento -Cidade
lhes permitissem manter-se, mas aos quais os "cqpitalistas" ofereciam do México, Cairo, Calcutá, São Paulo, Djakarta, Caracas, Lagos, Bom-
novas oportunidades de sobrevivência. baim - onde a população mais do que dobrou num breve espaço de
Essas periferias, entretanto, estão desaparecendo. Além disso, não tempo e onde os antigos centros urbanos tendem a ser circundados por
há mais países para ingressar na periferia: o processo explosivo da favelas ou "bidonvilles".
expansão populacional, nas duas últimas gerações, quase alcançou as O aumento populacional que ocorre nessas cidades é oriundo do fato
derradeiras regiões remotas do globo. de que as pessoas que vivem nas periferias das economias de mercado,
174 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 175
embora já se beneficiando por partiCiparem de tais economias (por pessoas têm sentimentos tão românticos) como lugares para subsistir.
exemplo, pelo acesso a uma medicina mais avançada, a melhores infor- Contudo, como Engels descobriu em seu tempo nas favelas de Manches-
mações de todo tipo e as insituições e práticas econômicas avançadas), ter, em relação aos camponeses irlandeses e ingleses, foi o que aconteceu.
não se adaptaram plenamente às tradições, à moral e aos costumes dessas A sordidez dessas áreas periféricas deve-se principalmente à própria
economias. Por exemplo, elas podem seguir ainda os costumes de pro- marginalidade econômica que obrigou as pessoas a residir nesses locais
criação originados de circunstâncias externas à economia de mercado e não no campo. Também não devem ser ignorados os efeitos "cíclicos"
onde, por exemplo, a primeira reação dos pobres a um pequeno aumento negativos das tentativas dos governos do terceiro mundo de administrar
da riqueza foi gerar um número de descendentes pelo menos suficiente suas economias, e da capacidade desses governos de retirar as oportuni-
para prover a eles na velhice. Esses costumes antigos estão agora desa- dades de emprego dos grupos periféricos como concessões a interesses
parecendo aos poucos, em certos lugares até rapidamente, e esses grupos trabalhistas estabelecidos ou a reformadores sociais equivocados.
periféricos, em particular os mais próximos do centro, estão absorvendo Finalmente - e nesse caso podemos às vezes testemunhar o pro-
as tradições que lhes permitem regular melhor sua propagação. Afinal, cesso de seleção quase em primeira mão e em sua forma mais patente -
os centros comerciais em desenvolvimento se tornam pólos de atração os efeitos da moral comercial não recaem de modo mais cruel e visível
em parte exatamente por oferecerem modelos de como alcançar pela sobre aqueles que já aprenderam a praticá-los de uma forma relativamen-
imitação aquilo que muitos desejam. te mais avançada, mas ao contrário, nos recém-chegados que ainda não
Essas favelas, interessantes em si, também ilustram muitos outros aprenderam a lidar com elas. Os que vivem nas periferias ainda não
temas desenvolvidos anteriormente. P9r exemplo, a população da zona observam plenamente as novas práticas (e portanto são quase sempre
rural ao redor dessas cidades não foi depauperada às custas das favelas; considerados "indesejáveis" e freqüentemente até mesmo beirando a
em geral ela também se beneficiou com o crescimento das cidades. As criminalidade. E também experimentam pessoalmente o primeiro impac-
cidades ofereceram sustento a milhões de pessoas que de outro modo to de algumas práticas de civilização mais avançada sobre as pessoas que
teriam morrido ou jamais teriam nascido se elas (ou seus pais) não ainda sentem e pensam de acordo com a moral da tribo e da aldeia.
tivessem migrado para aqueles centros. Os que migraram para as cidades Por mais penoso que este processo possa ser para estas pessoas, elas
(ou suas periferias) não foram levados para lá pela benevolência dos também, ou especialmente elas, se beneficiam com a divisão do trabalho
habitantes das cidades que lhes ofereceram empregos c equipamentos formada pelas práticas das classes econômicas; e muitos mudam grada-
nem pelo conselho benévolo de seus '"vizinhos' rurais em melhores tivamente sua maneira de ser, só então melhorando a qualidade de vida.
condições de vida, mas ao contrário deram ouvidos a boatos dando conta Pelo menos uma segurança mínima de conduta de sua parte será uma
de pobres desconhecidos (talvez em algum remoto vale serrano) que se condição para que lhes seja permitido ingressar no grupo maior, já
salvaram por terem sido atraídas para as cidades em desenvolvimento constituído, e ganhar aos poucos uma parcela cada vez maior de seu
pelas notícias de que lá encontrariam trabalho remunerado. Foi a ambi-
produto total.
ção, e até mesmo cobiça, de uma vida melhor, e não a benevolência, que
Pois as multidões mantidas vivas por sistemas diferentes de normas
salvou estas vidas: contudo, foi melhor do que a benevolência poderia
decidem qual será o sistema que predominará. Esses sistemas de normas
ter feito. As pessoas que migraram do campo aprenderam dos sinais do
mercado -embora não pudessem compreender o problema em termos não serão necessariamente aqueles que as próprias massas (das quais os
tão abstratos - que a renda não consumida atualmente pelos ricos das habitantes das favelas são apenas um exemplo dramático) já adotaram
cidades estava sendo usada para suprir outras pess6as de implementos ou plenamente, mas aqueles seguidos por um núcleo ao redor de cuja
de meios de subsistência em pagamento por seu lrabalho, permitindo a periferia vai-se concentrando um número crescente de indivíduos para
sobrevivência de pessoas que não haviam herdado terra arável e imple- participar dos ganhos do produto total cada vez maior. Os que adotam
mentos para cultivá-la. pelo menos em parte as práticas da ordem espontânea, e delas se benefi-
Evidentemente, pode ser difícil para alguns aceitar que os que vivem ciam, freqüentemente o fazem sem ter consciência dos sacrifícios que
nessas favelas as prefiram deliberadamente ao campo (sobre o qual as estas mudanças eventualmente implicarão. Tampouco os primitivos ha-
176 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 177
bitantes do campo que tiveram de aprender duras lições foram somente A vantagem de substituir propósitos concretos determinados por
cruéis: os conquistadores militares que dominaram uma população sub- normas abstratas manifesta-se claramente em casos como estes. Ninguém
metida e inclusive destruíram sua elite muitas vezes, mais tarde. apren- previu o que iria acontecer. Não foi um desejo consciente de fazer com
deram, para seu pesar, que para desfrutar dos benefícios locais teriam de que a espécie humana crescesse o mais rapidamente possível, nem a
adotar práticas locais. preocupação com determinadas existências conhecidas que levou a esse
resultado. Nem sempre foram os descendentes diretos daqueles que
iniciaram novas práticas poupança, propriedade privada e coisas seme-
lhantes) assim melhores oportunidades de sobrevivência não preservam-
O Capitalismo Gerou o Proletariado determinadas vidas, mas aumentam as possibilidades( ou perspectivas ou
probabilidades) de uma propagação mais rápida do grupo. Tais resultados
Nas secções que restam podemos talvez resumir alguns dos nossos não foram desejados nem previstos. Na realidade, algumas destas práticas
principais argumentos e observar algumas de suas implicações. podem ter implicado menor apreço por algumas vidas em particular, uma
Se perguntarmos o que os homens devem em primeiro lugar às disposição ao sacrifício pelo infanticídio, a abandonar os velhos e doen-
práticas morais dos chamados capitalistas a resposta é: sua própria vida. tes, ou a matar os indivíduos perigosos, com a finalidade de melhorar as
A literatura socialista que atribui a existência do proletariado à explora- perspectivas de sustento e multiplicação dos que restavam.
ção de grupos que já eram capazes de se manter é totalmente fictícia. A Não podemos afirmar que aumentar a humanidade é bom no sentido
maioria dos indivíduos que agora constituem o proletariado não teria absoluto. Sugerimos apenas que essa conseqüência, o aumento de deter-
condições de existir se outros não lhes proporcionassem os meios de minadas populações pela obediência a determinadas normas, levou à
subsistência. Embora essas pessoas possam se sentir exploradas, e os seleção das práticas cujo predomínio se tornou a causa de ulterior
políticos possam estimular e jogar com estes sentimentos para ganhar multiplicação. (Tampouco, como vimos no Capítulo I, sugerimos que a
poder. a maior parte do proletariado ocidental e dos milhões que vivem moral evoluída que limita e suprime certos sentimentos inatos suplantaria
no mundo em desenvolvimento deve sua existência às oportunidades que totalmente esses sentímentos. Nossos instintos inatos ainda são impor-
os países avançados criaram para eles. Tudo isso não se restringe aos tantes nas relações com nossos semelhantes mais próximos, e também
países ocidentais e ao mundo em desenvolvimento. Os países comunistas em certas outras situações).
como a Rússia estariam morrendo de fome hoje se suas populações não Contudo, se a economia de mercado na realidade predominasse
fossem sustentadas vivas pelo mundo ocidental - embora os líderes sobre outros tipos de ordem por permitir aos grupos que adotaram suas
desses países jamais venham a admitir publicamente que nós só podemos normas básicas se multiplicarem melhor, então, o cálculo em valores de
sustentar a atual população mundiaL inclusive a dos países comunistas, mercado é um cálculo em termos de vidas: os indivíduos guiados por este
preservando com sucesso e melhorarmos a base da propriedade privada cálculo fizeram o que mais contribui para que aumentassem a sua
que torna possível nossa ordem espontânea. população, embora não fosse esta sua intenção.
O capitalismo também introduziu uma nova maneira de obter renda
com a produção que liberta as pessoas ao tornar a elas e freqüentemente
à sua progênie também, independentes dos grupos familiares ou das
tribos. Isto ocorre mesmo que o capitalismo às vezes seja impedido de O Cálculo dos Custos é um Cálculo de Vidas
proporcionar tudo o que poderia àqueles que desejam se beneficiar dele
por monopólios de grupos organizados de trabalhadores. os' 'sindicatos'·,
os quais criam uma escassez artificial de sua categoria de mão-de-obra Embora o conceito de ''cálculo de vidas'' não possa ser tomado em
impedindo que aqueles que assim desejam trabalharem por um salário seu sentido literal, ele é mais do que uma metáfora. Talvez não existam
inferior o façam. simples relações quantitativas governando a preservação da vida humana
178 A Arrogância Fatal A Ordem Espontânea... 179
pela ação econômica, mas não se pode superestimar a importância dos tal objetivo jamais pautou o comportamento no pequeno grupo ou em
efeitos últimos da conduta do mercado. Contudo, é preciso acrescentar nossas reações inatas. Portanto, somos impelidos a levantar a questão da
várias qualificações. Em geral, somente vidas desconhecidas contarão moralidade ou da validade do princípio.
como outras tantas unidades quando se trata da questão de sacrificar Contudo, como acontece com todos os outros organismos, o ''pro-
algumas delas a fim de satisfazer a um número maior em outro lugar. pósito" principal ao qual se adapta a constituição física do homem bem
Mesmo que não gostemos de encarar tal fato, constantemente temos como suas tradições é gerar outros seres humanos. Nisso ele foi surpreen-
de tomar essas decisões. Vidas desconhecidas não constituem valores dentemente bem sucedido, e sua luta consciente terá o efeito mais
absolutos nas decisões pessoais ou públicas, e o construtor de rodovias, duradouro somente se, consciente ou não, contribuir para este resultado.
de hospitais ou de equipamento elétrico jamais tomará as precauções Não há realmente sentido em perguntar se algumas de suas ações que
máximas contra acidentes mortais, porque evitando os custos que isto contribuem de fato para tal coisa são realmente ''boas'', em particular se
acarretaria em outras partes os riscos gerais para as vidas humanas podem desse modo se pretende indagar se gostamos dos resultados. Pois, como
ser bastante reduzidos. Quando o cirurgião militar depois de uma batalha vimos, jamais podemos escolher nossa moral. Embora exista uma ten-
realiza uma 'triagem' -quando deixa morrer um soldado que poderia dência a interpretar a bondade de uma maneira utilitária, a afirmação de
ser salvo, porque no tempo que ele teria de dedicar a salvá-lo poderia que "bom" é aquilo que produz resultados desejados, não é nem verda-
salvar três outras vidas (ver Hardin, 1980:59, que define "triagem" "o deira nem útil. Mesmo que nos limitemos ao uso comum, verificamos
procedimento que salva o máximo de vidas")- está agindo com base que a palavra' 'bom'' em geral se refere àquilo que a tradição nos diz que
num cálculo de vidas. Este é o outro ex_emplo de como a alternativa entre devemos fazer sem saber por quê - o que não é negar que sempre se
salvar mais ou menos vidas determina nossa visão, mesmo que seja como estejam inventando justificativas para determinadas tradições. No entan-
um vago sentimento a respeito do que deveria ser feito. A exigência de to, podemos perfeitamente perguntar quais entre as muitas e conflitantes
se preservar o maior número de vidas não significa que todas as vidas normas que a tradição considera boas tendem, em determinadas condi-
sejam consideradas igualmente importantes. Pode ser mais importante ções, a preservar e multiplicar os grupos que as seguem.
salvar a vida do médico, em nosso exemplo acima, do que salvar a de um
seu determinado paciente: caso contrário ninguém poderia sobreviver.
Algumas vidas evidentemente são mais importantes porque criam ou
preservam outras. O bom caçador ou defensor da comunidade, a mãe A Vida Não Tem Nenhum Objetivo
prolífica e talvez até mesmo o velho sábio podem ser mais importantes Além de si Própria
do que a maioria dos bebês e dos idosos. Da preservação da vida de um
bom chefe podem depender inúmeras outras. E o indivíduo extremamen-
te produtivo pode ser mais valioso para a comunidade do que outros A vida existe somente na medida em que prove a sua própria
indivíduos adultos. A evolução tenderá a maximizar o atual número de continuação. Qualquer que seja o motivo pelo qual os homens vivem,
vidas, mas não o esperado caudal de vidas futuras. Se num grupo fossem hoje a maioria vive por causa da ordem de mercado. Nós nos tornamos
preservados todos os homens em idade fértil, ou todas as mulheres, e o civilizados graças ao aumento numérico da humanidade somente porque
número de pessoas necessário para defendê-los e alimentá-los, as pers- a civilização permitiu esse aumento: podemos ser poucos e selvagens, ou
pectivas de crescimento futuro não seriam prat1camente afetadas, en- muitos e civilizados. Se a humanidade fosse reduzida à sua população de
quanto a morte de todas as mulheres com menos de quarenta e cinco anos há dez mil anos, não poderia preservar a civilização. Na realidade, mesmo
destruiria toda possibilidade de preservação da estirpe. que o conhecimento já conquistado fosse preservado em bibliotecas, os
Mas se por esta razão todas as vidas desconhecidas devem ter igual homens pouco poderiam usá-lo se não existissem em número suficiente
valor na ordem espontânea - e em nossos própios ideais chegamos para ocupar os empregos exigidos pela ampla especialização e divisão
bastante próximos desse objetivo no que concerne à ação do Estado- do trabalho. Todo conhecimento disponível nos livros não evitaria que
A Ordem Espontânea... 181
180 A Arrogância Fatal
dez mil pessoas poupadas em algum lugar após um holocausto nuclear cias utópicas de uma vida livre de qualquer conflito, de dor, de insatis-
tivessem de voltar à vida de caçadores e catadores, embora provavelmen- fação, e, em realidade, e memo de moral - poderemos pensar que os
te reduzisse a duração total de tempo em que a humanidade teria de prazeres e os estímulos da civilização não constituem um mau negócio
permanecer nessa condição. para aqueles que ainda não os desfrutam. Mas provavelmente não pode-
Quando as pessoas começaram a construir melhor do que já sabiam remos responder de modo definitivo com estas especulações à pergunta
porque começaram a subordinar objetivos concretos comuns a normas se estamos em situação melhor com ou sem civilização. O segundo ponto
abstratas que lhes permitiam participar de um processo de colaboração é que a única coisa que se aproxima de uma avaliação objetiva da questão
organizada que ninguém poderia verificar ou sistematizar e a qual é ver o que fazem as pessoas quando têm uma oportunidade -como não
ninguém poderia ter previsto, elas criaram situações involuntárias e é nosso caso. A rapidez com a qual as pessoas comuns do Terceiro Mundo
freqüentemente indejadas. Poderão nos desagradar o fato de nossas - em contraposição aos intelectuais formados no Ocidente -parecem
normas terem sido moldadas principalmente por sua adequação ao au- abraçar as oportunidades que lhes são oferecidas pela ordem espontânea,
mento numérico da humanidade, mas não temos muita escolha nesse mesmo que isto implique morar por algum tempo nas favelas da periferia,
sentido agora (se é que já tivemos), pois temos de lidar com uma situação complementa as evidências concernentes às reações dos camponeses
anteriormente criada. Já existem tantas pessoas; somente uma economia europeus à introdução do capitalismo urbano, mostrando, que tendo essa
de mercado pode manter a maioria delas vivas. Graças à rápida transfe- possibilidade, as pessoas em geral escolhem a civilização.
rência de informações, por toda parte os homens conhecem agora os
elevados padrões de vida possíveis. A maioria dos que vivem em lugares
menos povoados só podem esperar alcançar tais padrões multiplicando-
se e ocupando suas regiões de forma mais densa - aumentando assim
muito mais o número de pessoas que podem ser mantidas com vida por
uma economia de mercado.
Como só podemos preservar e garantir o número atual de seres
humanos aderindo aos mesmos princípios gerais, é nosso dever- a não
ser que desejemos realmente condenar milhões de pessoas à inanição -
rechaçar às afirmações de certos credos que tendem a destruir os princí-
pios básicos dessas morais, como a instituição da propriedade individual.
Em todo o caso, nossos desejos e anseios são em grande parte
irrelevantes. Quer desejemos novos aumentos da produção e da popula-
ção ou não, devemos -apenas para manter a população e a riqueza
existentes, e para protegê-los da melhor maneira possível contra a cala-
midade - lutar em favor daquilo que, em condições favoráveis, conti-
nuará levando, pelo menos por algum tempo, e em muitos países, novo
crescimento.
Embora não pretendesse avaliar se, tendo a possibilidade, havería-
mos de querer escolher a civilização, o exame das questões relativas à
população suscita dois pontos importantes. Primeiramente, a ameaça de
uma explosão populacional que tornaria as vidas em geral miseráveis
parece, como vimos, infundada. Uma vez conjurado esse perigo, se
considerarmos as realidades da vida ''burguesa'' -mas não as exigên-
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CAPÍTULO IX
A Religião e os Guardiães
da Tradição
Adam Smith
Bernard Mandeville
183
184 A Arrogância Fatal A Religião e os Guardiães da Tradição 185
anos, onde companheiros conhecidos aprenderam a servir um ao outro e Mas isto não é ainda suficiente para que qualquer seleção real
a perseguir objetivos comuns. Curiosamente, essas atitudes e emoções ocorra, uma vez que tais crenças e os ritos e cerimônias associados a elas
mais primitivas arcaicas, são agora defendidas em grande parte pelo deverão também operar em outro nível. As práticas comuns deverão ter
racionalismo e pelo empirismo, pelo hedonismo e o socialismo a ele a oportunidade de produzir seus efeitos benéficos sobre determinado
associado. Do outro lado, está o desenvolvimento mais recente da evo- grupo em escala progressiva, antes que a seleção por evolução possa
lução cultural, no qual já não servimos mais principalmente os compa- tornar-se efetiva. Entretanto, como são transmitidas de geração para
nheiros conhecidos ou não mais perseguimos objetivos comuns, mas geração? Diferentemente das propriedades genéticas, as propriedades
onde se deu a evolução das instituições, dos sistemas morais e das culturais não são transmitidas automaticamente. A transmissão e a não
tradições que produziram e agora mantêm com vida um número muitas transmissão de geração a geração constituem tanto contribuições positi-
vezes maior de indivíduos do que aquele que existia antes da aurora da vas ou negativas para um "estoque' acumulado de tradições quanto
civilização, os quais se dedicam, em geral de modo pacífico embora quaisquer contribuições por parte de indivíduos. Muitas gerações serão
competitivo, à busca de milhares de fins diferentes que elas próprias provavelmente obrigadas a assegurar que qualquer dessas específicas
escolheram em colaboração com milhares de outros indivíduos que tradições sejam, de fato, continuadas, e que ocorra poderá haver a
jamais poderão conhecer. necessidade de crenças míticas de alguma espécie, especialmente no que
Como isto pode ter acontecido? Como é possível que tradições que diz respeito a regras de conduta que conflitem com o extinto. Uma
as pessoas não apreciam ou não conhecem, cujos efeitos em geral elas explicação meramente utilitária, ou mesmo funcionalista dos diferentes
não percebem e tampouco podem perceber ou prever, e que ainda ritos ou cerimônias, será insuficiente e até mesmo implausível.
combatem, ardorosamente, tenham sido transmididas de geração para Devemos em parte às crenças místicas e religiosas e, acredito,
geração? particularmente às principais crenças monoteístas, o fato de que as
Em parte, é claro, a resposta é aquela com a qual começamos, a tradições benéficas tenham sido preservadas e transmitidas, pelo menos
evolução das ordens morais pela seleção do grupo: grupos que se com- durante tempo suficiente para possibilitar que os grupos que a seguem
portam dessa maneira simplesmente sobrevivem e proliferam. Mas isto crescessem e tivessem a oportunidade de espalhar-se mediante seleção
não pode ser tudo. Se não foi pela compreensão de seu efeito benéfico natural ou cultural. Isso significa que, gostemos ou não, devemos a
na criação de uma ordem espontânea que até aquele momento era persistência de certas práticas, e a civilização que delas resultou, em parte
inimaginável, quando então surgiram tais normas de conta? Mais impor- ao apoio proveniente de crenças que não são verdadeiras ou passíveis de
tante, como elas foram então preservados em face da forte oposição dos verificação ou teste, da mesma forma que constituem enunciados cientí-
instintos e mais recentemente contra a razão? Agora chegamos à questão ficos, e que não são certamente o resultado de argumentação racional.
da religião. Algumas vezes penso que poderia ser apropriado chamar pelo menos
O costume e a tradição, ambos adaptações não racionais ao ambien- alguns deles, ainda que como gesto de apreciação, "verdades simbólica-
te, têm maior probabilidade de orientar a seleção do grupo quando s', uma vez que ajudaram os seus adeptos a "serem fecundos, multipli-
sustentados por totens e tabus ou crenças mágicas ou religiosas- crenças car-se e encher a terra e submetê-la" (Genesis 1:28). Mesmo aqueles
que desenvolveram-se da tendência de interpretar qualquer ordem que os entre nós, como eu mesmo, que não estão preparados para aceitar a
homens encontrassem de uma maneira animística. No início, a principal concepção antropomórfica de uma divindade pessoaL deveriam admitir
função de tais restrições à ação individual pode ter sido a de servir como que a perda prematura do que consideramos como crenças não factuais
sinais de reconhecimento entre os membros do gnipo. Posteriormente a teriam privado a humanidade de um apoio poderoso do longo desenvol-
crença em espíritos que puniam os transgressores fez com que tais vimento da ordem espontânea de que agora desfrutamos e que mesmo
restrições fossem preservadas. 'Os espíritos são geralmente concebidos agora a perda dessas crenças, quer verdadeiras ou falsas, cria grandes
como guardiães da tradição ... Nossos ancestrais vivem agora como dificuldades.
espíritos no outro mundo ... Eles se zangam e fazem coisas más se não Em qualquer hipótese, a visão religiosa de que a moral era determi-
obedecemos o costume' (Malinowski, 1936:25). nada por processos incompreensíveis para nós pode de qualquer maneira
186 A Arrogância Fatal A Religião e os Guardiães da Tradição 187
ser mais verdadeiras (ainda que não exatamente da maneira pretendida) numa polis especificamente estruturada, uma sociedade racionalmen-
~ue a desilusão racionalista de que o homem, ao exercer sua inteligência, te 'organizada' (citada em Jay, 1973: 119). Para ver o que esta
'racionalidade' significa, vide ibid., 49, 57, 60, 64, 81, 125., et
mventou a moral que lhe deu o poder para obter mais do que ele jamais
passim ). Neste último caso. a 'teologia da libertação' poderá fundir-se
poderia prover. Se mantivermos esses fatos em mente, poderemos melhor
com o nacionalismo, para prodzudir uma nova religião poderosa com
entender a apreciar os clérigos que, segundo dizem, tornaram-se de conseqüências desastrosas para povos já em horríveis dificuldades
alguma forma céticos quanto à validade de alguns de seus ensinamentos econômicas (vide O'Brien. 1986).
e que no entanto continuaram a ensiná-los porque temiam que a perda da
te levaria ao declínio da moral. Não dúvida de que estavam certos; e até De que forma teria a religião sustentado os costumes benéficos? Os
mesmo o agnóstico deveria admitir que devemos à nossa moral e a costumes cujos efeitos benéficos eram imperceptíveis por parte daqueles
tradição que ela nos deu, não apenas nossa civilização mas nossas que os praticavam deviam provavelmente ser preservados o suficiente
próprias vidas. à aceitação de tais alegações factuais cientificamente para aumentar sua vantagem seletiva somente quando apoiados por
inaceitáveis.
algumas outras fortes crenças; e algumas fés poderosas supernaturais ou
. A indu~ítável conexão histórica entre religião e os valores que
mági,cas encontravam-se prontamente disponíveis para exercer este pa-
formaram e favoreceram nossa civilização, como a família e aproprie-
pel. A medida em que determinada ordem de interação humana se tornava
dade individual, não significa obviamente que existe qualquer conexão
mais extensa e ainda mais ameaçadora aos reclamos instintivos, poderiam
intrínseca entre religião como tal e os referidos valores. Entre fundadores
por algum tempo tornar-se bastante dependente da influência contínua
das religiões, nos últimos dois mil anos, muitos se opuseram à proprie-
dade e à família. Mas as únicas religiões que sobreviveram são aquela,.,· de algumas dessas crenças religiosas -razões falsas que influenciavam
que apoiaram a propriedade e a família. Dessa forma, a perspectiva para os homens a fazerem o que fosse necessário para manter a estrutura que
o comunismo. que é tanto anti-propriedade quanto anti-família (e tam- possibilitava a eles nutrir os seus grupos em expansão (vide Apêndice G).
bém anti-religião ), não é promissora. Pois ele é, acredito, em si mesmo Mas assim como a própria criação da ordem mais espontânea nunca
uma religião que teve seu tempo, e que está agora declinando rapidamen- foi premeditada, não há razão para supor que o respaldo representado
te. Em países comunistas e socialistas estamos observando como a pela religião fosse em geral cultivado de maneira deliberada, ou que
seleção natural de crenças religiosas faz desaparecer os inadaptados. existisse muitas vezes um elemento "conspiracional" a seu respeito. É
ingênuo- em especial para nossa tese de que não podemos observar os
O declínio do comunismo de que falo está obviamente ocorren- efeitos da moral -imaginar uma elite de sábios calculando friamente os
do principalmente onde ele tem sido efetivamente implementado - efeitos das várias morais. selecionando-os, e conspirando para persuadir
e tem portanto podido desapontar esperanças utópicas. Ela continua
as massas com ''nobres mentiras" platônicas a consumir um "ópio do
a viver, contudo. nos corações daqueles que não experimentaram seus
efeitos reais: em intelectuais do ocidente e entre os pobres na periferia
povo" e portanto a obedecer aquilo que promovia os interesses de seus
da ordem espontânea, isto é. no Terceiro Mundo. Dentre os primeiros. governantes. Indubitavelmente a escolha de determinadas linhas de
parece haver em certa medida o sentido crescente de que o raciona- crenças religiosas fundamentais se deu muitas vezes por decisões opor-
lismo do tipo aqui criticado é um falso deus; mas a necessidade de tunas de governantes seculares. Além disso, o respaldo religioso foi
um deus de algum tipo persiste e é encontra em parte mediante meios adotado de tempos em tempos deliberada e até mesmo cinicamente, pelos
tais como o retorno a uma visão curiosa dà;dialética Hegueliana que governantes seculares, mas freqüentemente eles se envolviam em dispu-
possibilita que a ilusão da racionalidade coéxistia com um sistema de tas momentâneas que não foram tão significativas nos longos períodos
crença fechado ao criticismo pelo compromisso inquestionável e com evolucionários períodos nos quais a possibilidade de a norma privile-
uma "totalidade humanística' (e, de fato. é em si mesma supramente
giada contribuir para o aumento da comunidade era uma questão mais
racionalística, exatamente no sentido construtivista que critiquei).
Conforme diz Herbert Marcuse, 'A liberdade real para a existência
decisiva do que saber qual a camarilha dirigente que poderia tê-la
individual (e não meramente no sentido liberalista) é possível apenas acalentado num determinado período.
A Religião e os Guardiães da Tradição 189
1 88 A Arrogância Fatal
Apêndices
191
192 A Arrogância Fatal O "Natural" Versus o "Artificial" 193
Capítulo I) freqüentemente contrastam com as normas evoluídas da o desenvolvimento "artificial" guiado pelo plano consciente, e o que se
conduta. Se somente tais reações inatas são definidas como "naturais", supõe ser "natural" por exibir características instintivas imutáveis.
e se para piorar as coisas - somente o que é necessário para preservar Embora as interpretações construtivistas sejam sem dúvida superiores às
uma situação existente, em particular a ordem do pequeno grupo ou da ··explicações" organiscistas (agora em geral rejeitada por serem consi-
comunidade imediata, é definido como ''bom'', temos de designar como deradas vazias) que meramente substituem um processo inexplicado por
"não-naturais" e "maus" até mesmo os primeiros passos dados rumo à outro, deveríamos reconhecer que existem dois tipos distintos de proces-
observância de normas e portanto à adaptação a condições mutáveis - so evolucionário- ambos perfeitamente naturais. A evolução cultural,
ou seja, os primeiros passos rumo à civilização. embora um processo distinto, continua sob importantes aspectos mais
Ora se "natural" deve ser usado para indicar inato ou instintivo, e semelhantes à evolução genética ou biológica do que os desenvolvimen-
''artificial'' para significar o produto do plano, os resultados da evolução tos guiados pela razão ou pela previsão dos efeitos das decisões.
cultural (como as normas tradicionais) evidentemente não são nem uma A semelhança da ordem da interação humana à dos organismos
coisa nem outra - e portanto, não estão apenas "entre o instinto e a biológicos, evidentemente, foi observada muitas vezes. Mas na medida
razão", como também, é claro, entre "natural" (í.e instintivo) e "artifi- em que enquanto éramos incapazes de explicar a formação das estruturas
cial" (i.e o produto do plano racional). A dicotomia excludente entre ordenadas da natureza, na medida em que não possuímos uma história
"natural" e "artificial", bem como a dicotomia análoga e relacionada da seleção evolucionária, as analogias percebidas eram de pouca valia.
entre "paixão" e "razão" -que, sendo excludente, não permite qual-
Com a seleção evolucionária, entretanto, agora temos a chave para uma
quer espaço entre estes termos -contribui assim em grande parte para
compreensão geral da formação da ordem na vida, na mente e nas
que se negligencie e se confunda o crucial processo exosomático da
evolução cultural das tradições que determinaram a evolução da civili- relações interpessoais.
zação. De fato, essas dicotomias definem área e processos como não Casualmente, algumas daquelas ordens. como a da mente, podem
existentes. formar ordens de um grau inferior, contudo elas não são o produto de
Contudo, se formos além dessas rígidas dicotomias, veremos que o ordens de um nível superior. Isto nos ensina a reconhecer a limitação do
verdadeiro oposto da paixão não é a razão e sim a moral tradicional. A nosso poder de explicar ou planejar uma ordem pertencente a um estágio
evolução de uma tradição de normas de conduta- que se encontra entre inferior da hierarquia de ordens. bem como a incapacidade de explicar-
os processos da evolução do instinto e os da razão - é um processo mos ou planejarmos outra ordem de uma categoria superior.
distinto considerado equivocadamente um produto da razão. Essas nor- Tendo estabelecido o problema geral que interfere com o claro
mas tradicionais na realidade se desenvolveram naturalmente no curso emprego desses termos tradicionais, podemos assinalar brevemente,
da evolução. tomando como exemplo David Hume, que o próprio pensamento de um
O crescimento não é uma propriedade exclusiva dos organismos dos mais importantes pensadores de nossa tradição foi contaminado pelo
biológicos. Da proverbial bola de neve aos depósitos de vento ou à equívoco decorrente dessas falsas dicotomias. Hume é um exemplo
formação de cristais - ou a areia da água, o surgimento de montanhas particularmente adequado pois, infelizmente, escolheu para definir as
e a formação de moléculas complexas - a natureza está repleta de tradições morais, que de fato, eu preferiria chamar naturais, o termo
exemplos de crescimento em tamanho ou estrutura. Quando estudamos ''artificial'' (provavelmente tomando emprestada a expressão ''razão
o surgimento de estruturas de inter-relações entre.organismos, descobri- artificial'' dos autores do direito consuetudinário). Ironicamente, isso fez
mos que é também perfeitamente correto, do ponv:> de vista etimológico com que ele fosse considerado o fundador do utilitarismo, apesar de ter
e lógico, usar a palavra "crescer", para defini-los; e é assim que eu salientado que, "embora as normas de justiça sejam artificiais, não são
entendo a palavra: para designar um processo que ocorre numa estrutura arbitrárias" e que portanto não é sequer "impróprio chamá-las leis da
que se auto-sustenta. natureza" ( 1739/1886: IL 258). Ele tentou defender-se dos equívocos
Portanto, continuar a contrapor a evolução cultural à natural nos construtivistas explicando que "supunha apenas que essas ref1exões se
conduz de volta à armadilha mencionada- a dicotomia excludente entre formassem de repente, quando em realidade aparecem insensivelmente
194 A Arrogância Fatal O "Natural" Versus o "Artificial" 195
e por degraus" (1739/1886: II, 274). (Hume utilizou no caso o artifício rado tanto. Mesmo o discípulo de Aristóteles, Tomás de Aquino, não
que os filósofos da moral escoceses chamavam "história conjeturar' podia ocultar de si próprio que multae utilitates impedirentur si omnia
(Stewart, 1829: VIL 90 e Medick, 1973: 134-176)- a um artifício mais peccata disricte prohiberentur -muitas coisas úteis seriam impedidas
tarde denominado freqüentemente ''reconstrução racional'' - de uma - obstadas - se todos os pecados fossem rigorosamente proibidos
maneira que pode produzir equívocos e que seu contemporâneo mais (Summa Theologica, II, ii, q. 78 i).
jovem Adam Ferguson aprendeu sistematicamente a evitar). Como estes Embora Smith tenha sido reconhecido por vários escritores como o
trechos sugerem, Hume chegou perto de uma interpretação evolucioná- criador da cibernética (Emmet, 1958:90, Hardin, 1961:54), análises
ria, mesmo percebendo que "forma alguma pode persistir a não ser que recentes dos cadernos de Charles Darwin (Vorzimmer, 1977; Gruber,
possua os poderes e os órgãos necessários à sua sobrevivência: uma nova 1974) sugerem que sua leitura de Adam Smith no ano crucial de 1838
ordem ou economia deve ser experimentada e continuamente, sem inter- levou Darwin à sua decisiva descoberta.
rupção; até por fim encontrar-se uma ordem capaz de se sustentar e se Portanto, dos filósofos da moral escoceses do século XVIII partem
manter"; e que o homem não pode "pretender isentar-se do destino de os impulsos principais para uma teoria da evolução, a variedade de
todos os animais vivos [porque a] perpétua guerra entre todas as criaturas disciplinas agora conhecidas como cibernética, teoria geral dos sistemas,
vivas" deve prosseguir (1779/1886: II, 429, 436). Como foí dito, ele sinergética, autopoiesis, etc., bem como o conhecimento do poder auto-
praticamente reconheceu que ''existe uma terceira categoria entre o ordenador superior do sistema de mercado, e também da evolução da
natural e o artificial que possui certas características de um e de outro'' linguagem, da moral e do direito (Ullman-Margalit, 1978 e Keller, 1982).
(Haakonssen, 1981 :24). Não obstante, Adam Smith permanece alvo de piadas, mesmo entre
Contudo é grande a tentação de t~ntar explicar a função das estru- os economistas, muitos dos quais ainda não descobriram que a análise
turas auto-organizadoras mostrando que essas estruturas poderiam ter dos processos auto-ordenadores deve ser a principal tarefa de toda ciência
sido formadas por uma mente criadora; e portanto é compreensível que da ordem de mercado. Outro grande economista, Carl Menger, pouco
alguns seguidores de Hume interpretassem seu termo "artificial" dessa mais de cem anos depois de Adam Smith, percebeu claramente que ''esse
maneira, construindo sobre ele uma teoria utilitária da ética segundo a elemento genético é inseparável da concepção da ciência teórica'' (Men-
qual o homem escolhe conscientemente sua moral por sua reconhecida ger, 1883/1933:11, 183 e ver seu emprego anterior do termo ''genético''
utilidade. Pode parecer uma idéia curiosa a ser atribuída a alguém que em sua obra de 187111934:1, 250). Foi em grande parte graças a este
salientou que "as normas da moral não são as conclusões da razão" esforço visando à compreensão da formação da interação humana pela
(1739/1886: II, 235), mas foi um equívoco em que caiu naturalmente um evolução e da formação espontânea da ordem que tais enfoques se
racionalista cartesiano como C.V. Helvetius, de quem Jeremy Bentham tornaram os instrumentos principais no tratamento desses fenômenos
teria reconhecidamente tirado suas próprias construções (ver Everett, complexos para a explicação daquelas "leis mecânicas" de causação
1931 :110). unidirecional que não são mais adequadas (ver Apêndice B).
Embora em Hume, e também nas obras de Bernard Mandeville, Nos anos recentes, a difusão desse enfoque evolucionário afetou de
possamos observar o surgimento gradativo dos conceitos gêmeos das tal forma o desenvolvimento da pesquisa que um relatório do encontro
formações das ordens amplas e da evolução seletiva (ver Hayek, da Gesellschafi Deutscher Naturforscher und Arzte de 1980 dizia que
1967/78:250, 1963/67:106-121 e 1967/78a:249-266), foram Adam ''para a moderna ciência da natureza o mundo das coisas e dos fenômenos
Smith e Adam Ferguson que empregaram pela pri~eira vez esse enfoque se tornou o mundo das estruturas e das ordens".
de modo sistemático. A obra de Smith marca o surgimento de um enfoque Esses recentes avanços da ciência natural mostraram que o estudioso
evolucionário que suplantou progressivamente a visão estática aristoté- americano Simon N. Patten estava certo quando, há cerca de noventa
lica. O entusiasta do século XIX que afirmou que a Riqueza das Naçties anos, escreveu que ''assim como Adam Smith foi o último dos moralistas
só vinha em segundo lugar depois da Bíhlia em termos de importância e o primeiro dos economistas, Darwin foi o último dos economistas e o
foi freqüentemente ridicularizado; mas é possível que não tenha exage- primeiro dos biólogos ( 1899, XXIII). Smith mostra ter sido bem mais do
196 A Arrogância Fatal O "Natural" Versus o "Artificial" 197
que isto: o paradigma que ele ofereceu tornou-se a partir de então um foi constatado há mais de cem anos por nada menos que James Clerk
instrumento de grande poder em muitos campos da conquista científica. Maxwell, o qual, em 1877, escreveu que o termo "ciência física"
Nada ilustra melhor a origem humanista do conceito de evolução freqüentemente é aplicado "de uma forma mais ou menos restrita aos
do que o fato de a biologia ter de tomar emprestado seu vocabulário das campos da ciência em que os fenômenos considerados são os mais
ciências humanas. O termo "genético", que agora se tornou talvez o simples e mais abstratos, excluindo o estudo de fenômenos mais comple-
termo técnico fundamental para a teoria da evolução biológica ao que xos como aqueles observados nas coisas vivas''. E mais recentemente
tudo indica foi usado pela primeira vez em sua forma alemã (genetisch) um ganhador do Prêmio Nobel da física. Louis W. Alvarez. salientou
(Schulze, 1913:1, 242), nas obras de J.G. Herder (1767), Friedrich que, em realidade, a física é a mais simples de todas as ciências ... Mas
Schiller (1793) c C.M. Wicland (1800), muitos antes de Thomas Carlylc no caso de um sistema infinitamente mais complicado, como a população
introduzi-lo na língua inglesa. Foi usado particularmente na linguística de um país em desenvolvimento como a Índia, ninguém ainda pode
depois que Sir William Jones descobriu em 1787. a origem comum das decidir qual a melhor maneira de mudar as condições existentes (Alvarez,
línguas indo-européias; e na época que havia sido elaborado em 1816 por 1968).
Franz Bopp, o conceito de evolução cultural se tornara um lugar comum. Os métodos e modelos mecânicos da simples explicação causal se
O termo é empregado novamente em 1836 por Wilhelm von Humboldt aplicam cada vez menos à medida que avançamos para os fenômenos
(1977:III, 389 e 418). que na mesma obra também argumentava que ··se complexos. Em particular, os fenômenos cruciais que determinam a
concebemos a formação da linguagem, como é mais natural, como sendo formação de muitas estruturas extremamente complexas da interação
sucessiva, torna-se necessário atribuir-lhe, como a toda origem na natu- humana, ou seja, os valores económicos ou preços, não podem ser
reza, um sistema evolucionário" (agradeço ao professor R. Keller, de
interpretados por simples teorias causais ou 'nomotéticas'. mas exigem
Düsseldorf, por esta referência). Teria sido por acidente que Humboldt
uma interpretação em termos dos efeitos conjuntos de uma quantidade
foi também um grande advogado da liberdade individual? E após a
publicação da obra de Charles Darwin encontramos juristas e linguistas de elementos distintos maior do que jamais poderíamos observar ou
sabedores de seu parentesco já na antiga Roma (Stein. 1966: Capítulo 3 ), manipular individualmente.
protestando que já eram "darwinistas antes de Darwin" (Hayek, Somente a ''revolução marginal'' da década de 1870 nos deu uma
1973:153 ). Só depois da obra Problems ofGenetics de William Bateson explicação satisfatória dos processos do mercado que Adam Smith muito
( 1913) é que ''genética'' se tornou rapidamente o nome característico da antes havia descrito com sua metáfora da "mão invisível". expressão
evolução biológica. Aqui, ater-nos-emos ao seu emprego moderno, que. apesar de seu caráter ainda metafórico e incompleto, foi a primeira
estabelecido por Bateson. no sentido de herança biológica através dos descrição científica de tais processos auto-ordenadores. James e John
"gens", para distingui-lo de herança cultural através do aprendizado- Stuart Mill. ao contrário. não conseguiram conceber a determinação dos
o que não significa que a distinção possa ser sempre feita com exatidão. valores de mercado de outra maneira que não pela determinação causal
As duas formas de herança freqüentemente interagem, em particular pela por alguns elementos precedentes, e essa incapacidade impediu-lhes,
herança genética que determina o que se pode e o que não se pode herdar como ocorre com muitos "fisicalistas", modernos. de compreender os
pelo aprendizado (i.e culturalmente). processos auto-orientadores do mercado. O conhecimento das verdades
subjacentes à teoria da utilidade marginal foi retardado ainda mais pela
influência decisiva de James Mil! sobre David Ricardo. bem como a
B própria obra de Karl Marx. As tentativas de chegar a interpretação
mono-causais nessas áreas (de duração ainda maior na Inglaterra pela
A Complexidade dos Problemas da lnteração Humana decisiva influência de Alfred Marshall e sua escola) persistem até o
presente.
Embora os físicos às vezes não pareçam dispostos a reconhecer a John Stuart Mill desempenhou talvez o papel mais importante a esse
maior complexidade dos problemas da interação humana, o fato em si respeito. Ele já sofrera a influência socialista e devido a esta tendência
198 A Arrogância Fatal O "Natural" Versus o "Artificial" 199
adquiriu grande apelo junto a intelectuais 'progressistas', tornando-se como protótipos dos processos auto-ordenadores que nos permitem
conhecido como o principal liberal e o 'santo do racionalismo'. Contudo, chegar à explicação de fenômenos extremamente complexos. No entanto,
ele provavelmente levou mais intelectuais ao socialismo do que qualquer é preciso dizer que, como Joachim Reig salientou (em sua Introdução à
outra pessoa: o fabianismo, no início, constituía-se essencialmente de um tradução espanhola de E. von Bohm-Bawerk sobre a teoria da exploração
grupo de seus seguidores. de Marx ( 1976)), depois de tomar conhecimento das obras de Jevons e
Mill impedira-lhe de compreender a função orientadora dos preços Menger. o próprio Karl Marx teria abandonado completamente qualquer
assegurando doutrinamente que "nada mais resta nas leis do valor a ser obra futura sobre o capital. Se é assim, seus seguidores evidentemente
esclarecido por qualquer escritor atual ou do e o futuro ( 1848/1965, não foram tão sábios quanto ele.
Works III, 456), o que fez acreditar que às 'considerações de valor
estavam relacionadas unicamente à distribuição da riqueza' e não à sua
produção (1848/1965, Obras III, 455). Mill não enxergou a função dos
preços por pressupor que somente um processo de causação mecânica c
produzido por acontecimentos anteriores observáveis constituía uma
explicação legítima em termos dos modelos da ciência natural. Devido à
influência exercida por tanto tempo pelo pressuposto de MilL a "revo-
O Tempo e o Surgimento
lução marginal''. ocorrida vinte e cinco anos mais tarde, teve um efeito e a Reprodução das Estruturas
explosivo quando ocorreu.
O fato de algumas estruturas poderem se formar e multiplicar porque
Entretanto, é preciso mencionar que somente seis anos depois
certas estruturas semelhantes já existentes podem transmitir suas proprie-
da publicação do texto de Mill, H.H. Gossen. um pensadorqueé quase
totalmente negligenciado. antecipava a teoria da utilidade marginal
dades a outras (sujeitas a variações ocasionais), e as ordens abstratas
ao reconhecer já de forma clara que a produção ampla depende da poderem assim sofrer um processo de evolução no curso do qual passam
orientação fornecida pelos preços e ao enfatizar que "somente com de uma materialização para outras que aparecerão somente porque o
o estabelecimento da propriedade privada é possível descobrir a modelo já existe. deu ao nosso mundo uma nova dimensão: a flecha do
medida que determina a quantidade ótima de cada mercadoria a ser tempo (Blum, 1951 ). No decorrer do tempo surgem novas características
produzida em determinadas circunstâncias ... A maior proteçào pos- que antes não existiam: estruturas que evoluem e se auto-perpetuam.
sível da propriedade privada é definitivamente a maior necessidade embora representadas a cada momento apenas por materializações espe-
para a continuação da sociedade humana'' ( 1854: 1983:254-5). cíficas, tornam-se entidades distintas que persistem sob várias manifes-
tações através do tempo.
Apesar do grande dano produzido por sua obra, devemos talvez A possibilidade de formar estruturas por um processo de reprodução
perdoar Mill por sua paixão pela senhora que mais tarde se tornou sua fornece os elementos que têm a capacidade de realizar com melhores
esposa -cuja morte, na opinião dele, ''esse país perdeu a maior mente chances de multiplicação. Os elementos de preferência selecionados para
que ele possuía" e que, segundo seu testemunho, "na nobreza de seu se multiplicarem são aqueles capazes de constituir estruturas mais com-
objetivo público ... jamais deixou de ter como m,eta última a perfeita plexas, e o aumento de seus membros levará à formação de muitas outras
justiça distributiva como meta final, implicando portanto uma sociedade estruturas semelhantes. Esse modelo torna-se um elemento constitutívo
totalmente comunista na prática e em espírito" (1965, Obras: XV, 601 da ordem do mundo assim como qualquer objeto material. Nas estruturas
e ver Hayek, 1951 ). de interação, os modelos de atividades dos grupos são determinados por
Seja qual for a influência de MilL a economia marxista ainda hoje práticas transmitidas pelos indivíduos de uma geração aos indivíduos da
tenta explicar ordens de interação extremamente complexas em termos geração seguinte; e essas ordens preservam seu caráter geral somente pela
de certos efeitos causais singulares corrí.o fenômenos mecânicos e não constante mudança (adaptação).
O "Natural" Versus o "Artificial" 201
200 A Arrogância Fatal
1681, quando Sir Willian Petty (colega de Sir Isaac Newton, um pouco
E mais velho do que este e um dos fundadores da Royal Society) ficou
tàscinado com as causas do rápido crescimento de Londres. Para surpresa
de todos, ele verificou que a cidade se tomara maior do que Paris e Roma
O Jogo, a Escola das Normas juntas, e num ensaio sobre The Growth, Increase and Multiplication of
Mankind explicou como uma maior densidade populacional tomava
possível uma maior divisão do trabalho:
As práticas que levaram à formação da ordem espontânea possuem
muito em comum com as normas observadas no jogo. Tentar determinar Cada indústria será dividida em tantas partes quantas possíveis.
a origem da competição no jogo nos desviaria muito do caminho, mas Na fabricação de um relógio, se um homem fizer os mecanismos,
podemos aprender muitas coisas da análise primorosa e reveladora do outro a mola, outro gravará o mostrador, o relógio será melhor e mais
papel do jogo na evolução da cultura feita pelo historiador Johan Huizin- barato do que se o mesmo trabalho tivesse sido confiado apenas a um
ga, cuja obra não foi suficientemente apreciada pelos estudiosos da ordem homem.
humana (1949: esp. 5, 11, 24, 47, 51, 59 e 100 e ver Knight,
1923/1936:46, 50, 60-66; e Hayek, 1976:71 e n. 10). E também verificamos que nas cidades e nas ruas das grandes
Huizinga escreve que "as grandes forças instintivas da vida civili- cidades, onde quase todos os habitantes se dedicam a uma só profis-
são, a mercadoria peculiar a esses lugares é de melhor fabricação e
zada têm sua origem no mito e no ritual: lei e ordem, comércio e lucro,
mais barata do que em qualquer outro. Além disso, quando todos os
artesanato e arte, poesia, sabedoria e ciência. Todas têm suas raízes no
tipos de manufaturas são fabricados num só lugar, cada navio que
solo primitivo do jogo" (1945:5); o jogo "cria a ordem, é ordem"
parte pode ter repentinamente uma carga com tantas particularidades
(1950: 1O) ... ''Ele avança no interior de suas próprias fronteiras de tempo e espécies quantas o porto ao qual se dirige pode receber
e de espaço segundo normas fixas e de uma maneira ordenada'' ( 194 9: 15 (168111899:11, 453 e 473).
e 51).
Um jogo, na realidade, é um claro exemplo de um processo no qual Petty reconheceu também que "a escassez de gente é a verdadeira
a obediência a normas comuns por elementos que buscam propósitos pobreza; e uma Nação na qual existem oito milhões de pessoas é mais
diferentes e até mesmo conflitantes resulta numa ordem global. Além que duas vezes rica do que a mesma superfície de terra em que vivem
disso, a moderna teoria do jogo demonstrou que, enquanto alguns jogos apenas quatro; para os Governadores que são o grande gasto tanto podem
fazem com que os ganhos de um lado sejam igualmente contrabalançados servir ao número maior quanto ao menor" (1681/1899:11, 454-55 e
pelos ganhos do outro, outros jogos podem produzir um ganho global. O 1927:11,48). Infelizmente, o ensaio especial que ele escreveu sobre A
desenvolvimento da estrutura ampliada de interação tornou-se possível multiplicação da humanidade ao que parece se perdeu (1681/1899:1,
pelo ingresso do indivíduo nestas últimas formas de jogo, aquelas que 454-55 e 1927:I,43), mas é evidente que seu conceito geral foi transmi-
levam a um aumento global da produtividade. tido através dele por Bernard Mandeville (1715/1924:I, 356) a Adam
Smith, o qual observou, como notamos no Capítulo VIII, que a divisão
do trabalho é limitada pela dimensão do mercado, e que aumento popu-
F lacional é crucial para a prosperidade de um país.
Se os economistas se preocuparam desde cedo com tais questões,
Observações Sobre a Economia
os antropólogos, em tempos recentes, não deram a atenção suficiente à
e a Antropologia da População evolução da moral (que evidentemente não pode ser 'observada'); e não
As questões analisadas no Capítulo VIII dizem respeito à economia só as imperfeições do darwinismo social mas também os preconceitos
desde suas origens. Pode-se dizer que a ciência da economia iniciou em socialistas desencorajaram a busca de enfoques evolucionistas. Não
O "Natural" Versus o "Artificial" 205
204 A Arrogância Fatal
obstante. um eminente antropólogo socialista, num estudo da Revolução explicava que tentava "separar as sementes do bem das sementes do
urbana definiu ''revolução'' como a culminação da mudança progressi- mal··. O estudo trata do meu tema central de uma maneira semelhante
va na estrutura económica e na organização social das comunidades a sob muitos aspectos. mas. sendo obra de um famoso antropólogo como
qual provocou, ou foi acompanhada, por um aumento dramático da ele. consegue apresentar. particularmente sobre a primitiva evolução da
população afetada'' (Childe, 1950:3). Importantes conclusões são encon- propriedade e da família. um número tão maior de provas empíricas que
tradas também nas obras de M.J. Herskovits, o qual afirma: eu gostaria de poder reproduzir todas as suas 84 páginas como apêndice
ilustrativo a este livro. Entre as conclusões que são pertinentes a este
A relação entre as dimensões da população e o ambiente e a livro. ele explica que a superstição, fortalecendo o respeito pelo casamen-
tecnologia, de um lado, e a produção per capita, do outro. representa to. contribuiu para a observância mais rígida das normas da moral sexual
o maior desafio na pesquisa das combinações que contribuem para tanto entre os casados quanto entre os não casados. Em seu capítulo sobre
um excedente econômico num determinado povo ... a propriedade privada ( 17). Frazer salienta que "quando urna coisa se
Em geral, parece que o problema da sobrevivência é mais torna tabu tem o efeito de dotá-la de uma energia sobrenatural ou mágica
pre:nente nas sociedades menores. Por outro lado, é entre os grupos que a faz praticamente inacessível a todos salvo seu proprietário. Portanto
matores, um que aparece a especialização essencial para a produção o tabu transformou-se num poderoso instrumento para fortalecer os laços.
de um número de bens maior do que bastaria para manter todo o povo talvez nossos amigos socialistas dissessem reforçar os rebites das corren-
que se toma possível a fruição o gozo do lazer social ( 1960:398).
tes da propriedade privada··. E mais tarde ( 19), ele cita um autor anterior
que refere que na Nova Zelândia uma .. forma de tabu era um grande
O que freqüentemente os biólogos (por exemplo, Carr-Saunders, preservador da propriedade". e uma obra anterior ainda (20) sobre as
1921.... , Wynne-Edwards, 1962, Thorpe, 1976) representam antes de tudo Ilhas Marquesas onde, '"sem dúvida. a primeira missão do tabu era
como um_ mecanismo destinado a limitar a população, poderia também estabelecer a propriedade como base de toda a sociedade''.
ser defimdo como um mecanismo visando a aumentar. ou melhor a Frazer concluiu também (82) que "a superstição prestou um grande
adaptar a população a um equilíbrio a longo prazo co~ o poder de serviço à humanidade. Ela forneceu às multidões um motivo. um motivo
sustentação do território, aproveitando de novas possibilidades para errado é verdade. para a ação certa: e. com certeza. é melhor para o mundo
manter um número maior de pessoas bem como de qualquer dano que que os homens estejam certos por motivos errados do que façam o mal
um excesso temporário poderia causar. A natureza é tão criativa num com as melhores intenções. O que importa à sociedade é a conduta. não
aspecto quanto em outro, e o cérebro humano foi provavelmente a a opinião: se somente nossas ações são justas e boas. aos outros não
estrutura mais bem sucedida permitindo que uma espécie superasse todas importa minimamente se nossas opiniões estão equivocadas".
as outras em poderio e alcance.
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213 Medíck. Hans. 194, 215 Proudhon. Pierre Joseph. 92
Farb, Peter, 34, 21 O Hume, David, 20-. 24, 30, 55, 56. 72, 76. Menger. Anton. 127
Ferguson, Adam, 20, 56, 194, 21 O 96, 99, 103, 104, 107. 119, 193, 194, Menger.Carl,20,49.100.127.131, 133, Quinton. Lord (Anthony Quinton). 218
Ferri. Enrico. 76, 21 O 213,214 134. 195. 199, 215 Radnitzyky. Gerard, 26. 218
Finley, Sir Moses, 50,210 Huxley, Julian, 44, 165. 214 Millikan. R. A .. 87 Rawls, John. 105, 218
Flew, A. G. N., 47, 165.210 Huxley, Thomas Henry, 214 Mil!, James. 197 Rees. D. A., 204
Ford, Henry. 128 MiiL John Stuart. 78. 85. 93. 127, 128. Reig, Joachim. 199
Forster, E. M .. 85, 96 lrons. William. 34. 209 134. 197. 198.214 Renfrew, Colin, 63,218
Foucault, Michel. 92 Mi !ler. David. 215 Ricardo. David, 136. 197
Franklin, Norman, Míses, Ludwig von. 21, 106. 120. 136. Roberts, P. C., 120,218
Jay. Martin, 187. 214
Frazer. Sir James G., 204 152,216 Rock. Kenneth,
Jevons. William Stanley. 133, 134, 199
Friedman. Jeffrey. Johnson. Samuel, 53 Monod, Jacques, 82. 83, 84, 85. 86, 96. Roosevelt, Theodore, 158
Freud. Sigmund. 36. 20 I, 211 216 Rostovtzeff, M .. 69. 218
Jones. E. L .. 214
Jones, Sir William, 43, 196 Montaígne.Michel de, Rousseau, Jean-Jacques, 30. 74. 75. 77.
Gissurarson. Hannes, Jouvenal. Bertrand de. 154. 214 Montes:1uieu. Charles Louis 78, 79, 92.108,117.118.200.201,218
Goethe, Johann Wolfgang von, 146 de Secondat de. 55. 61. 216 Russell. Lord (Bertrand Russell). 47, 86.
Gossen, H. H., 120, 198, 211 Moore. G. E.. 85. 216 89,91,93,96.118.192.218
Green. S .. 63 Kant lmmanuel, 104, 214 MmTis. Walter S ..
Keller, Rudolf E.. 195, 196 Rutland. Peter, 120, 218
Grinder, Walter. Movníhan. Kristin. Ryle,Gi1bert, 110,218,219
Groseclose, Timothy, Kerferd, G. B.,191. 214 My~dal. Gunnar. 76, 216
Gruber, Howard E.. 195, 211 Keynes, John Maynard, 84. 85. 86, 89, 96,
107,201,214 Saint-Simon. Claude Henri de. 76. 79
Kirsch. G., 78, 214 Naumann. Friedrich. 159 Savigny F. C. von. 57. 100.219
Haakonssen. Knud. 92, 194. 211 Schelsky. H .. 150.219
Knight Frank H .. 202,214 Needham. Joseph. 54. 69. 84. 216
Habermas, Jürgen, 92 Schiller. Friedrich von. 196, 219
Kristol, Irving. 208 Newton. Sir Isaac. 203
Hale, Sir Matthew. 56 Schoeck. Helmut. 57. 150,219
North. Douglas C, 169,216
Hardin. Garret James, 32. 178, 195. 211 Schrõdinger. Erwín. 219
Harris ofHigh Cross, Lord (Ralph Harris), Leakey, R. E., 62
Schulze. H .. 196.219
Hawkes, David, 149 Liddell, H. G .. 152 o·Brien. C. C 187.216 Schumacher. E. F.. 200
Hayek, F. A. von, 32, 70, 85, 91, 103, Liggio, Leonard P., Optem, Gene. Schumpeter. Joseph A .. 150. 219
104,110,120,130.134, 141,194,196 Locke,John,55. 74,164.214 Orwell. George, 82. 216 Scitovsky, Tibor, 200. 219
198, 202,21 L 212 Ostwald. Wilhelm. 87 Scott.R .. 152,214
HegeL George Wilhelm Friedrich, 147, Mach Ernst. 124 Segerstedt. Torgny, 76. 219
148 Machlup, Fritz. 59 Seneca, 140
Patten, Simon N .. 195,216
Heilbroner, Robert, 41. 212 Maier, H., 159, 214 Seton-Watson, H .. 80.81
Pei. Mario, 216
Helvetius, C. V .. 194 Maine. Henry Summer. 49, 50, 57.215 Shafarevich. Jgor Rostislavovich. 219
Pejovich. Steve. 58
Herder. Johann Gottfried von, 44. 99, 196, Malinowski. &.. 184 Pettry. Sir William. 203.216 Shakespeare. William. 158
213 Malthus. Thomas. 165. 166 Simon. Julian L.. 169. 170.219.220
Piaget. Jean. 72. 14 7. 217
Herskovits, M. L 62. 204, 213 Mandeville, B~rnard. 29, 30, 99, 119, Simpson. G. G .. 34, 220
Pierson. N. G .. 120
Hessen, Robert, 124.183,194,203.215 Skínner. B. F.. 220
Piggott. Stuart. 64. 217
Hirschmann, Albert 0., 213 Marcuse. Herbert, 186. Smith,Adam, 31,43.56, 119,121,147.
Pirenne, Jacques. 54. 63, 217
Hobbes, Thomas, 28 Marshall. Alfred, 85, 134. 197 163,164,183.194.195,197,203,220
Plant. Sir Arnold, 57
Hobhouse, L. T., 150, 213 Marx, Karl, 45, 76. 79. 126, 128, 147, Soddy, F., 87
Platão, 53, 79. 149
226 A Arrogância Fatal zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Solvay, E., 87 Vorzimmer, Peter 1., 195,221
Sombart. Wemer, 151, 220
Stallybrass, Oliver, 209 · Waley, Arthur, 149
Steín, Peter, 196, 220 Walras Léon, 133 Índice por Assunto
Stephen, Sir Leslie, 85 Wells. H. G., 82. 96, 221
Stewart, Dugald, 194, 220 Wenar. Leif,
Strabo, 220 Wesson, Robert G ..
Sullivan, James, 164, 220 Westermarck. E. A.. 76, 221 A Vida do Dr. Samuel Johnson (por aprendidas. 75; que a humanidade pode
Teilhard de Chardin. P., 220 Whately, (Archbishop) Richard. !52 James Laurel!) dar forma ao mundo de acordo com o
Thorpe, W. H., 204,220,221 Wicksteed, Philip Henry, 134 seu desejo, 46-7. 106
Tucídides, 71 Wieland, C. M. 44, 196, 221
Tocqueville. Alexis de, 78 alienação. fontes de, 93, Apêndice D auto-organização. na economia e nas
Wíese. Leopold von, 155. 221
T rotter, Wilfred, 34. 73, 221 Wieser. Friedrích von. 134 cíências biológicas, 27-8-9; ver ordem
Tylor, Edward B., 76. 221 altruísmo, como fonte de infelicidade, espontânea
Williams, George C .. 221
93; pode impedir a formação da ordem
Ullman-Margalit, Edna, 195, 221 Willians, Raymond. 115, 221 autoridade centralizada, governo da, 21;
espontânea, 112-3; em pequenos grupos,
Wood, John B. comparado à operação descentralizada
36-37
Vico, Giambattista, 99, 221 Woolf, Virgínia. 85 do mercado, 119-21; incapacidade para
Voltaire. F. M. A. de. 91,93 Wyne-Edwards V. C.. 204. 221 o uso completo das informações, I 08-9,
animismo, abandonado no processo
transcendente de auto-ordenamento. 1 19-21; incapacidade para produzir
I 03; na conotação de palavras. 146; na 'justiça social' e desenvolvimento
interpretação de estruturas complexas. económico, 117-9; e propriedade
114: persistência no estudo de assuntos individual, 75-6
humanos. 147-8; na religião, 82-3 cálculo de vida, 177-8
capacidade de aprendizado. nos seres
Antropomorfismo. ver animismo humanos. 35-6, 39-40, li 0-1
227
228 A Arrogância Fatal Índice por Assunto 229
cientismo, ver racionalismo conhecimento, na competição, 126: economia, 3 I -2; e antropologia, 202-4: 44: do conhecimento, 24-5. I 06-7,
construtivista desenvolvimento do. I 06-7; e normas Aristotélica. 68-9; Escola Austríaca de, I O1-2; da moralidade e das tradições
morais, 188 I 88: impossibilidade de uma única morais. 25-6; Joseph Needham sobre 84:
civilização e evolução cultural, 34-5: e consciência, 41-2, adquirida pela explicação causal na, 196-9; não se limita a organismos. 46-7, 111-2:
ordem espontânea, 21-2; fundamentos absorção das tradições. 41-2, como má-compreensão por cientistas da razão, 40-4: das normas, 38-9: ordem
na antigüidade. 49-50: conflitos produto da evolução cultural, 4 I -2 contemporâneos. 87; e moral para espontânea em. 38-9: variedade em, 112
históricos, 35-6: papel limitado do Keynes, 84-5: não versa sobre
governo forte no avanço da, 40-1: não fenômenos físicos, I 34-5. 196-7; evolução cultural. na adaptação a
conservadorismo. não corresponde à
foi feita pela vontade consciente, 38-9: possível influência sobre Darwin, 43; acontecimentos imprevisíveis. 48-9;
posição de Hayek, exceto em algumas
resultado de mudanças graduais processo auto-organizador em, 129-30, diferença entre. e mais veloz do que, a
questões morais restritas, 79
indesejadas na moraL 38-9: refreia o I 96-7: e socialismo, I I 7-8; e estrutura evolução biológica. 44-5. I 92-3: idéia
comportamento instintivo. 28-9; e da ação humana. 107-8 de, 42; incluí a herança das
cooperação. e pequenos grupos. 27-8
propriedade individuaL 49-50, 155-6 características adquiridas. 44-5. I 85-6:
empirismo. 88 linguagem prejudica a compreensão da.
Civilização e seus Descontentes Darwinismo social. 42: suas faltas 195: não está sujeita a leis inevitáveis do
(S1gmund Freud). 35-7 equivocadamente costumavam rejeitar a engenharia sociaL 53. 77 desenvolvimento. 45
abordagem evolucionária nos assuntos
coletivismo. e o homem primitivo, 28-9; humanos, 47, 203 Escola Austríaca de Economia, 133-4; exploração, não é inevitável no
e relações econômicas mais amplas. 66-7 ver também utilidade marginal comércio. 128
d~senvolvimento genético, 43-4 esforço físico. e mérito, 126: Carlyle
comércio. no mundo antigo. 49-50: sobre. 126: o minguante papel do. I 26 falácia naturalística, 4 7
atitude de Esparta em relação ao. 52-3:
na ampliação da civilização. 55-6 diferenciação. vantagens da. II O-I: nos especialização. permite o crescimento da
sistemas de intercâmbio. 130-1: e população, 64. 166: aumenta o poder do filósofos pré-socráticos. e conhecimento
crescimento populacionaL 165-6. 171-2, grupo. 1 I I: e uso da informação. 136 de ordens auto-formadas. 70- I
comércio. permite o adensamento da 202-4
ocupação. 64: evidências arqueológicas
espontaneidade. depende de normas fins benéficos. previsão dos. como
do. 62: associado com o crescimento direito. e normas abstraias regulando a gerais. 104 exigência absurda para a ação na ordem
dramático da população, 64, 68: desdém transmissão da propriedade, 51: como espontânea. I I 2-1 3; despotismo
pelo. 123, 130: conclusões equivocadas garantia de liberdade, 56-7: linguagem
ética do conhecimento·. em Monod. 83 benevolente, I 58-9
em relação à regulação ateniense sobre e. 196: Savigny sobre. 57
o, 69: mais antigo contato entre grupos
remotos, 64: e produção, 138; 'tlexadotempo', 199
direitos de propriedade. capítulo 2: evolução biológica. diferenças em
especialização no, 64: espalhou a ordem, como uma noção ainda em relação à evolução cultural. 44: não é
e também rompeu com as tribos desenvolvimento. 57-8 inteiramente anterior à evolução genética. no sentido de herança
primitivas. 63-4: Tucídides sobre, 71 divisão do trabalho. ver especialização cultural. 40-1: como as modificações biológica, I 96
ocorrem na. 32: não se sujeita à leis
competição. de moedas. não permitida dinheiro. fascínio com. 139: invitáveis, 45-6: e estudos de governo. papel exagerado nos livros de
pelo monopólio governamentaL 141-2: ambivalência em relação ao. 139: ódio desenvolvimento cultural, 43 história, 68-9: e crescimento da
na evolução. 45-6: e observação de ao, 139: capítul.o 6. passim primitiva civilização. 53-4: visão de
normas, 37-8: como um processo de evolução, não pode ser justa, I 05: Hume restringindo, 55-6; monopólio do
descoberta para a adaptação a evolução simultânea da mente e da dinheiro pelo, I 41: a estagnação da
domínio privadb, no antigo Egito. 54:
circunstâncias desconhecidas. 3 7-8: civilização, 40-1: cultural análoga mas China, 69
como base na justiça. 55: Frazer sobre
exigida para impedir a violação da tabu e. 205: no mundo greco-romano, 52 não idêntica à biológica, 33-5: não
propriedade. 56-7 economia de mercado, 15 I permite a previsão do futuro. 45: como a Grupo de Bloomsburry, 84
compreensão do. antecedeu à teoria indivíduos. melhor juiz sobre o uso dos
Darwiniana. 43-4: Julian Huxley sobre, próprios recursos. 51. 120-2: não
230 A Arrogância Fatal Índice por Assunto 231
compreendem normas de conduta que do, necessário à civilização, 29-30; mais capítulo 7; e evolução, 196; uso na o conhecimento dos efeitos, I 02-4;
eles seguem, 3 1; vivem dentro de suas antigo que o costume e a tradição, 42; classificação, 32, 45-7 seguem diferente dos feitos conhecidos
ordens de normas, podem ser valores visíveis. esforço físico acima do das, I I O; e regras de jogos. 202
destruídos pela má compreensão das comércio 'misterioso'. 125 lucro, como sinal da atividade produtiva,
noções do que é justo, 47: esforços 71. 1 I falta de compreensão ordem espontânea da cooperação
produtivos dos na ordem de mercado pelos intelectuais. 142 humana. 21: contribuição da religião
beneficia a desconhecidos. 113; instituições monetárias, temidas e para, 187. evoluí ao longo de amplo
ressentem-se da coerção contra o ressentidas, 138-41: monopólios espaço de tempo, 33-7; inclui
governamentais foram a experimentação macro-economia. 135-36
comportamento instintivo, 29-30 sub-ordens que seguem normas
competitiva impossível, 141; resultado diferentes. 36; interpretação mecanicista
da ordem espontânea, 140; capítulo 6, 'mão invisível', de Adam Smith, 3 L 197
da, 95; e dinheiro, 141; a mais complexa
individualismo, e o mito do selvagem passim estrutura conhecida, 172; e práticas
solitário. 28 ~ medo do desconhecido. e comércio,
morais, 21-9; exige o recalque de
129-30
jogo, na evolução cultural, Apêndice E instintos, 30, 57-9: resulta não do
inflação. e a teoria de Keynes, 84-5 justiça social, capítulo 7, passim; e papel mercados. competitivos, 22: na criação desígnio, mas espontâneamente, 21;
da razão, 26. 161 da ordem, 38; distribuí recursos sem papel do primitivo comércio no
resultados líquidos previsíveis, 132: na desenvolvimento da. 61-8; e propriedade
informação, acesso à, 21; como individual, 53-4; uso do conhecimento
vantagem no comércio. 123-4: justiça, 55-6: John Locke sobre, 55; coleta de informações. 32: na visão da
Escola Austríaca, 134 disperso para fins distintos, 32
densidade populacional contribui para a noções conflitantes de. 106-7, 159-60;
diversidade de. 171; na ordem em capítulo 2. passim
método científico. em Max Born. 87 ordem espontânea. criação, 2 I. I 13-15:
expansão, I I 7-8; uso individual da no
surgimento do conceito, 195; e moeda e
comércio. 67, 108; e mercados, 22;
Lamarquismos, 44 crédito, 138; organizações e, 59; e
rápida transferência de. 190-1; moral, não vai, e nenhum código moral exigência para vantagens previsíveis. 105
superioridade das formações possível irá, satisfazer o critério
espontâneas em espalhá-la, 122; visões liberalismo, sentido Americano, 78, 93, racionalista de justificação, 97-8, evolui, ordem, permite a geração de novos
supersticiosas em relação, 138 150: em Hobhouse. 150: visão 'Oid sustenta a ordem espontânea, 99: a poderes, 111: não pode ser explicado ou
inteligência, não foi quem inventou a Whig', liberação, como ameaça à tradição grega difundida pelos romanos, previsto, I I O; seleção evolucionária e.
moral, 185-6 liberdade. 93 52: e filosofia 'liberal', 78; uso preferido 193; pressupõe a ausência de um
do termo, 29; filósofos racionalistas ordenador ou de um arranjo deliberado,
supõem que a busca da felicidade é I 06-7. 14 7-48
inreração. complexidade da, 196-9 liberdades civis. 49-50
razão para a seleção da. 92: rejeição pro
Chisholm como irracional e ordem de mercado. 8; permite o
intenção humana, limites da, 21-2, Iiberdade, e as 'leis fundamentais da não-cientínca, 85; revolta contra, no crescimento do número e da riqueza
106-8; c propósito, W.K. Clifford sobre, natureza' de Hume. 55-6; Grupo de Bloomsbury, 84-5; e direito de relativa. 130. 164, 179: beneficia outros
147-8 impossibilidade sem limitações e propriedade, Hume sobre, 55, 193; papel sem intenção explícita. 112;
delimitações dos direitos individuais. da evolução sobre a formação da, 26; conseqüências que resultariam na
instinto, apelo do socialismo ao, 22: 91: inclui implicitamente a aceitação de mudanças graduais não desejadas na, 26 destruição da, 4 7. 163: contribuição dos
base para a cooperação nos grupos algumas tradições. 90; visão equivocada filósofos morais Escoceses do século
primitivos. 27-8: como o melhor guia de Rousseau sobre, 75; ameaçada por natural'. 193: limitação no uso do que é XVIII para a compreensão da. 194:
para a cooperação emre os homens um governo lorte, 53; dois sentidos de. inato ou instintivo, 192. 200: Apêndice Keynes sobre, 84: o desenvolvimento
56 A
(visão de Rousseau). 74-6; conflito com tardio da, 33; mal compreendida, 38;
as normas adquiridas. 37: contínuo provê a outros além da expectativa
efeito do. 34-5; contribui para as normas liberdade, e sentido das palavras, normas de conduta. como alternativa daqueles que atuam. 106: usa o
do micro-cosmos, 36-7: base Confúcio sobre, 145 para fins comuns. 91; não poderiam ser conhecimento disperso, I 19
insuficiente para a ordem espontânea, planejadas antecipadamente. I 02-3-4;
100-1; contribui para o ódio ao recalque linguagem, adulteração da. 24-5: e independentes de fins, 52: evoluem sem ordem transcendente. I 03
232 A Arrogância Fatal Índice por Assunto 233
organizações. na macro-ordem não-proprietários. I 08-9: como base recursos. direção dos, 21; dispersão dos, tentativa. 179
espontânea. 59 para o crescimento. 55: e civilização. 49: e uso do conhecimento em relação aos,
21. I 09; primeiras tentativas de teoria Malthusiana da população. \65-7
condenação em nome da Liberdade.
população. crescimento. 21. capítulo 8. capturá-los. 69-70; economia no uso trabalho. em Malthus, 165-6
161: desenvolvimento do conceito de.
Apêndice F. passim 49; crescente suspeição depois de dos. 32. 166-7 tradição Benthamista. 78. 194-5
Rousseau. 75-6; investigação do evitado
positivismo, 78. 88 na recente antropologia. 76; e liberdade. religião. antropomorfismos na. 77, tradição. como adaptação ao
49; pré-condição para o comércio, 50: I 03-4; no desenvolvimento das desconhecido. I 07; baseada na intuição,
práticas morais. tradicionais. 22-6; não apoiado nas religiões que sobreviveram. tradições morais. 74. 183; fonte do inconsciência. ou razão. 42. 67:
podem ser justificadas racionalmente, 185: desconhecida para o selvagem. 52: desafio da propriedade. 129-30: capítulo confusão com vontade pessoal. 187;
99: do capitalismo criaram o capítulo 2 9 transmite normas feitas de maneira não
proletariado. 176-77 e liberdades civis. consciente, 28,33-5, 183; repousa entre
49: criadas nem pelo instinto nem pela propriedade privada. ver propriedade renda. distribuição da. 21: e justiça. 22 o instinto e a razão. 42-7; mais antiga do
razão, 26: repúdio às 23. efeito na individual que a razão. 42: papel da superstição em
economia e na vida política, 26; seleção riqueza, crescimento da, 21, 128, 135-36 preservá-la. 204: superior à razão,
evolucionária e. 22. 79: tornou possível prosperidade. Adam Smith sobre. 163 I 06-7; apoiada pela crença religiosa,
o crescimento da razão. 40-1: não são selvagem nobre. o mito do, no \83: transmitida pela religião. 183
baseadas na simples gratificação. 26: no racional. reconstrução. 99, 194 coletivismo, 37: em Rousseau, 74-5; não
em adotá-las. 23: como parte da razão. é livre ou poderoso, 75, 93 tradições subjacentes à ordem de
Locke sobre. 74. expansão das, 23: racionalismo construtivista. 40-1: na mercado. efeito sobre o conhecimento e
impossibilidade de testá-las; tentativa de controlar o sistemas de intercâmbio, 130-1 a riqueza, 22; impossibilidade de
"não-racional' e 'não-científica·. 95 desenvolvimento. 40-1: a adequar-se às exigências construtivistas,
tendenciosidade na arqueologia e 'social' uso do, para conotar 'bom'. 95-7, I 02: rejeição socialista das, 22
preços. e adaptações ao desconhecido. sociologia. 75-7: encarna uma tàlsa 154-5 utilidade coletiva. não descobrível. 134-6
I 07: e distribuição. 128: evolução dos. teoria da razão. quatro exigências do. utilidade marginal. li 0-1; teoria da,
65-8: guiam diversos participantes do 73-4. 90-3: interpretação do direito e da socialismo. 21; objetivo de refazer as 133-4; efeito revolucionário da, \96-8,
mercado. 136. 142: refletem os valores moral. 78-9; limites da experimentação, tradições morais. leis e linguagem. com capítulo 6, passim
do~ meios. 132; papel na formação 80; e noção de que a mente humana bases ·racionais', 21-2,96-8, 147-8,
espontânea da economia. 120 racional introduziu-se no corpo humano 20 I: análise da ordem econômica, 21: utilitarismo. 88: interpretação
em evolução. 40-1; temas recorrentes apelo aos intelectuais. 80: baseado na equivocada de Hum e. 193
princípios dos custos comparativos. 136 no, 88-9; como metodologia socialista. visão Aristotélica e animista, 72. 148;
23-4; divulgação pelam ídia, 81-2: valor, complexidade e, 197; condições
efeito sobre o padrão de vida. 25, \65;
capítulos 4 e 5 que afetam, 129; desdém pelo caráter
produção para o uso. Einstein sobre. 86. erros factuais do. 21-5; influência de
142 'artificial' do, 129; hierarquia de. 130-1;
Mil! sobre a sua aceitação, \97-8;
aumento dos propósitos humanos, 130;
racionalismo. 98. 184: ver racionalismo necessidade de refutá-lo. 21;
erros de Mill em relação ao. 127. 197-8;
produto coletivo. magnitude do. 22-3 construtivista fundamentando na alegada moralidade
da ciência. 81; uso do termo. 151 e produtos tangíveis, 127: no comércio,
proletariado. 15 I. 167 afetado pela relativa escassez. 127
razão. capítulos I. 4. 5. passim: noções
mal consideradas sobre a possibilidade 'sociedade' capítulo 7, passim
propriedade individual, e ferramentas 'verdades simbólicas', na religião. 188
de mudança dos Jàtos. 46; não significa
primitivas. 51: terra como, 51-2: não que normas aprendidas irão substituir solidariedade, característica do pequeno
reconhecida pelos Espartanos. 53 respostas inatas. 42: uso adequado da. grupo. 112. introdução 'vontade geral' de Rousseau, 75
25-6: resultado da seleção evolucionária superstição, na preservação da tradição,
204 xenos. o anfitrião. 66
propriedade individual. 28: vantagens não é fonte da habilidade das técnicas
nas informações dispersas. 119 a 122: adquiridas. 40: usada por Descartes para
permite benefícios amplamente justificar a gratificação dos instintos. 74:
dispersos para proprietários e valor da, comparado a tradições. 78. 81