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Teoria dos atos de fala

Neste capítulo vamos apresentar o conceito de atos de fala, que está


relacionado ao estatuto dos enunciados utilizados cotidianamente nas in-
terações entre os falantes. Procuraremos expor de forma simplificada os
fundamentos da análise dos atos de fala, conforme formulados por dois
filósofos britânicos: J. L. Austin e John Searle. Segundo esses pensadores,
os enunciados produzidos pelos falantes podem ser divididos em dois
grupos. Há, por um lado, aqueles que são utilizados como forma de rep-
resentação de alguma coisa do mundo, seja esse mundo real ou fictício,
pouco importa se o que se afirma sobre esse mundo seja falso ou verda-
deiro. Mas há, por outro lado, enunciados que não têm esse caráter de
representação e que não são nem falsos nem verdadeiros. Trata-se de
enunciados que se caracterizam por serem formas de realização de ações.
Austin e Searle mostram que há determinados tipos de ações que são re-
alizadas pela fala: cumprimentar, despedir-se, prometer, pedir, mandar,
advertir, desculpar-se, entre muitas outras.

Pretendemos, inicialmente, apresentar o conceito de atos de fala, most-


rando sua contribuição para a compreensão sobre o funcionamento das
línguas. Procuraremos também mostrar as dificuldades que limitam o uso
desse conceito como instrumento de análise da linguagem em uso.

A seguir, procuraremos aprofundar um pouco a apresentação do con-


ceito de atos de fala. Iniciaremos focalizando a análise que Austin faz de
um conjunto de verbos usados tipicamente para realizar atos de fala: os
verbos performativos1. Prosseguiremos discutindo o desdobramento dos
atos de fala proposto por Searle. Para ele, não basta considerar a inten-
ção que o falante tem de realizar determinadas ações pela linguagem.
É necessário distinguir a simples produção de um enunciado (ato locu-
cionário ou locucional), a intenção com o que o falante produz esse enun-
ciado (ato ilocucionário ou ilocucional) e as conseqüências que a produção
do enunciado acarreta (ato perlocucionário ou perlocucional).
1
Trask (2004, p. 227) apresenta a seguinte definição de enunciados e verbos performativos: “PERFORMATIVO (performative) – um enun-
ciado que é por si só um ato de fazer algo; um enunciado comum, como Estou indo para o cinema, não pode ser facilmente considerado
como um ato de fazer algo; proferir esse anunciado não constitui uma ida ao cinema. Mas alguns outros enunciados são diferentes. Dizer
Prometo comprar para você um ursinho de pelúcia, por si só, constitui um ato de prometer comprar um ursinho de pelúcia, e nada mais
é exigido para completar (não confundir com cumprir) a promessa. Um enunciado desse tipo é chamado um enunciado performativo
(explícito), e um verbo que se presta a esse uso, no caso prometer, é um verbo performativo.
Lingüística III

O conceito de atos de fala:


origem, contribuições para a Lingüística e limites
O conceito de atos de fala foi formulado inicialmente pelo filósofo britânico J.
L. Austin, em um conjunto de conferências publicadas em 1962 com o sugestivo
título How to Do Things with Words (Como Fazer Coisas com Palavras)2. Nesse tra-
balho, Austin chama a atenção para os limites de uma abordagem que considere
que as frases produzidas em uma língua qualquer sejam formas de representa-
ção da realidade e que possam ser avaliadas simplesmente como verdadeiras
ou falsas. Ele mostra que um grande número de frases produzidas usualmente
pelos falantes não fazem representações do mundo, mas são formas pelas quais
os falantes realizam determinadas ações.

A formulação de Austin foi posteriormente retomada por outro filósofo


britânico, John R. Searle, no livro Speech Acts: an essay in the philosophy of langua-
ge (Atos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem)3, obra na qual aprofundou o
tratamento dos atos de fala, sobretudo pela discussão das conseqüências que a
produção de determinados tipos de sentença desencadeia.

Antes desses estudos, os enunciados eram tomados como afirmações sobre


um determinado estado de coisas. Por exemplo, uma afirmação como (1) é uma
forma de representação de um determinado mundo (seja real ou não) e será
considerada verdadeira se corresponder ao que acontece nesse mundo:

(1) O gato subiu no telhado.

Uma frase como essa contém tipicamente a representação de elementos do


mundo. Há seres (gato, telhado) e um desses seres (o gato) executa uma deter-
minada ação (subir) que afeta o outro ser (o telhado). O falante que enuncia essa
frase representa lingüisticamente um evento (o gato subiu no telhado) e sua
frase será verdadeira se o gato tiver efetivamente subido no telhado no mundo
representado, caso contrário, será falsa.

Mas nas interações correntes entre os falantes, há vários tipos de proposições


que não se restringem a uma representação de situações do mundo. Para iniciar
a discussão, observe os seguintes enunciados:

(2) Pedro continua solteiro.


2
Estamos utilizando a edição francesa do livro – Quand Dire c’est Faire – publicada em 1970. Há também uma edição brasileira: AUSTIN, John Lang-
shaw. Quando Dizer é Fazer. Palavras e ações. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
3
Estamos usando a edição portuguesa deste livro – Os Actos de Fala – publicada em 1984.

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Teoria dos atos de fala

(3) Pedro continua solteiro?

(4) Pedro, continue solteiro!

(5) Tomara que Pedro continue solteiro.

Considerando que um falante use esses enunciados em contextos apropria-


dos, podemos observar que há diferenças entre o tipo de ação que ele realiza
em cada caso. Na frase (2), há uma asserção, uma afirmação sobre determinado
estado de coisas, análoga ao exemplo (1) comentado acima. Já ao enunciar a
frase (3), o falante não faz uma afirmação (verdadeira ou falsa) sobre a realidade,
mas formula uma pergunta. Ao enunciar a frase (4), ele faz um pedido, dá uma
ordem, faz uma sugestão. Na frase (5) manifesta uma vontade.

Esses exemplos simples mostram que, ao falar, os indivíduos executam atos


diversos, esses atos são chamados de atos ilocucionários por Austin e Searle. Os
exemplos anteriores (1) a (5) seriam representativos de alguns desses atos: afir-
mar, perguntar, pedir, manifestar um desejo.

Além dos que foram exemplificados, poderíamos identificar vários outros.


Searle (1984, p. 35) aponta os seguintes: afirmar, descrever, advertir, observar,
comentar, solicitar, ordenar, pedir, criticar, pedir desculpas, censurar, aprovar, cum-
primentar, prometer, contrapor-se, exigir, alegar. Além desses, basta pensar um
pouco para aumentar bastante a lista.

Sintetizando, podemos adotar a seguinte conceituação de atos de fala:


Ato de fala (speech act) – uma tentativa de fazer alguma coisa simplesmente falando. Há uma
quantidade de coisas que podemos fazer, ou tentar fazer, apenas falando. Podemos fazer
uma promessa ou uma pergunta, ordenar ou exigir que alguém faça alguma coisa, fazer uma
ameaça, dar nome a um navio, declarar duas pessoas marido e mulher, e assim por diante.
Cada uma dessas coisas é um ato de fala específico. (TRASK, 2004, p. 42)

É interessante observar que a definição de Trask não caracteriza os atos de fala


como “fazer algu­ma coisa simplesmente falando”, mas como “uma tentativa de
fazer alguma coisa simplesmente falando”. O que ele procura destacar com essa
definição é que não basta alguém fazer um pedido, dar uma ordem, dizer que
alguém está nomeado ou demitido. Para tanto são necessárias várias condições
relacionadas às circunstâncias em que a frase é produzida e aos interlocutores.

Tomemos a conhecida frase usada nas cerimônias de casamento: “Eu vos de-
claro marido e mulher.” Esse enunciado tem o poder de transformar o estatuto

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Lingüística III

da relação entre duas pessoas, alterando substancialmente os direitos e deveres


entre os noivos e do novo casal perante a sociedade. No entanto, para que a
frase produza tais resultados, é necessário que ela seja pronunciada por alguém
investido da autoridade para tal – um padre – no interior de uma cerimônia reli-
giosa altamente convencional. É necessário também que seja precedida da con-
cordância explícita dos noivos em aceitar as condições do estatuto de casados
que passarão a assumir daí em diante.

As condições específicas que tornam válido um ato de fala são chamadas


de condições de felici­dade. Trask (2004, p. 42) define nos seguintes termos as
condições de felicidade:
Na maior parte dos casos, não faz sentido perguntar se um enunciado que constitui um ato
de fala é verdadeiro ou falso. Enunciados como Arrume seu quarto; Você me emprestaria uma
caneta; Prometo comprar um ursinho de pelúcia para você; e eu vos nomeio cavaleiro, dom Eurico
não têm valor de verdade, mas podem ser mais ou menos adequados às circunstâncias ou,
como também se diz, podem ser mais ou menos felizes. Um enunciado como Arrume seu
quarto! é um enunciado infeliz se a pessoa não tiver autoridade sobre a outra, e um enunciado
como Eu vos declaro marido e mulher não surte efeito a menos que tenham sido preenchidas
uma série de condições. Assim como se diz que os enunciados podem ser mais ou menos
felizes, as condições exigidas para que um ato de fala tenha sucesso são freqüentemente
chamadas condições de felicidade.

O conceito de atos de fala é muito interessante e esclarece o funcionamento


de aspectos relevantes do uso da linguagem. No entanto, a incorporação desse
conceito para os estudos lingüísticos traz uma série de dificuldades. Uma é a
complexidade inerente à interpretação do conjunto de condições necessárias
para a realização de qualquer ato de fala. Além da complexidade da interpre-
tação das condições de felicidade, estas apresentam diferenças consideráveis
entre uma cultura e outra.

Outra dificuldade encontrada no uso dos atos de fala é a ausência de uma


correspondência regular entre as formas lingüísticas e os atos de fala que real-
izam. Observe o enunciado (6):

(6) Você tem horas?

Embora esse enunciado tenha a forma de uma pergunta, o falante está fa-
zendo um pedido, tanto que se a resposta for simplesmente “Tenho”, esta será
considerada uma resposta inadequada e não cooperativa.

Suponha que o gerente de uma empresa faça a seguinte pergunta a um


funcionário:

(7) Você poderia trazer o relatório de custos do último mês?

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Teoria dos atos de fala

É evidente que o ato de fala realizado não é uma pergunta. Considerando


a relação hierárquica entre o gerente e o funcionário e o contexto de trabalho
em que a pergunta foi feita, ela é interpretada como uma ordem. Se a mesma
pergunta fosse feita por um colega de trabalho, ela seria interpretada como um
pedido.

Essas dificuldades de interpretação e a necessidade de uma análise cuidado-


sa das circunstâncias em que cada enunciado é produzido tornam pouco produ-
tivo o uso da teoria dos atos de fala para as análises lingüísticas.

As enunciações performativas
Conforme Austin (1970, p. 40) aponta, é possível reconhecer em qualquer
língua casos em que a enunciação de certas frases corresponde à realização de
ações. Veja alguns exemplos:

(8) Eu batizo este barco com o nome de Rainha Elizabeth.

(9) Se o Flamengo ganhar o jogo no domingo, prometo que vou pagar


meia dúzia de cervejas.

(10) Deixo para meu irmão a coleção de discos dos Beatles.

(11) Por este instrumento de procuração, nomeio José da Silva meu rep-
resentante junto à Receita Federal.

Os verbos utilizados nesses exemplos têm a propriedade de realizarem ações,


por isso foram chamados por Austin de performativos. Como se faz uma promes-
sa? Dizendo “eu prometo”. Como se faz uma nomeação? Dizendo “eu nomeio”.

Mas não é qualquer uso do verbo prometer que constitui o ato ilocucionário de
fazer uma promessa. Para tanto, é necessário que a forma seja usada na primeira
pessoa, no tempo presente e na voz ativa (AUSTIN, 1970, p. 26). Caso contrário, o
enunciado que contêm esse verbo passará a ser um enunciado comum, que faz
a representação de um evento ocorrido no mundo. Compare as frases (8) a (11)
com as correspondentes (8’) a (11’):

(8’) Pedro batizou o barco com o nome de Rainha Elizabeth.

(9’) Antônio prometeu pagar meia dúzia de cervejas se o Flamengo gan-


har o jogo no domingo.

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Lingüística III

(10’) Cláudia deixou para seu irmão a coleção de discos dos Beatles.

(11’) Fernando da Silva nomeou José da Silva seu representante junto à


Receita Federal.

Esses exemplos confirmam o que afirmamos anteriormente: a análise dos


atos de fala deve levar em conta tanto as formas lingüísticas empregadas quanto
um conjunto de condições adicionais; ou seja, a realização dos atos de fala leva
em conta, por um lado, a escolha de determinadas formas lingüís­ticas e, por
outro, as condições pragmáticas do seu uso. É o atendimento das condições de
felicidade que faz com que o falante seja ou não bem-sucedido ao realizar ações
com a linguagem.

Tipos de atos de fala


Em seu estudo sobre os atos de fala, Austin mostra também que é possível
distinguir três níveis em qualquer ato de fala:
Ele inicia pela distinção de três aspectos do ato que consiste em fazer qualquer coisa pela
fala: há o ato locucionário (a produção de sons que pertencem a um vocabulário e a uma
gramática, e aos quais são ligados um “sentido” e uma “referência”, ou seja, uma “significação”,
no sentido clássico do termo); o ato ilocucionário (produzido ao dizer qualquer coisa, e que
consiste da manifestação de como as palavras devem ser compreendidas naquele momento
– as mesmas palavras podem ser compreendidas como um conselho, uma ordem etc.); e o ato
perlocucionário (produzido pelo fato de dizer qualquer coisa, ou seja, o ato dá lugar a efeitos –
ou conseqüências para os outros ou para a própria pessoa). (AUSTIN, 1970, p. 28)

Essas distinções são incorporadas e reelaboradas no estudo de Searle, como


veremos a seguir.

Atos locucionários
O reconhecimento de que o falante produz um ato locucionário é o primeiro
estágio da análise dos atos de fala. Trata-se do reconhecimento de que ele se
utiliza de uma seqüência de palavras que constituem frases bem-estruturadas
na língua utilizada.

Com o reconhecimento desse primeiro nível para a análise dos atos de fala,
Austin (1970) e Searle (1981) colocam em evidência que a primeira condição
para que um enunciado possa ser reconhecido como um ato de fala é o fato de
ser produzido segundo as convenções de uma língua natural em todos os seus
níveis: fonologia, sintaxe, semântica. Antes de se atribuir ao enunciado produzi-

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Teoria dos atos de fala

do por um falante uma intenção e de analisar suas conseqüências, é necessário


reconhecer que ele é constituído por frases compreensíveis na língua usada
pelos interlocutores.

Atos ilocucionários
Como comentamos acima, os atos ilocucionários correspondem às ações que
os falantes pretendem realizar quando produzem os enunciados. Os atos ilocu-
cionários correspondem à realização de ações como pedir, cumprimentar, prome-
ter, exigir, desculpar-se, censurar etc. Veja alguns exemplos:

(12) Por favor, traga-me um cinzeiro. (pedido)

(13) Não entre agora, aguarde o chamado da atendente. (ordem)

(14) Boa tarde! (cumprimento)

(15) Se você tirar boas notas vai ganhar uma bicicleta no Natal. (promessa)

(16) Cuidado, o rio é muito fundo. (advertência)

(17) É proibido fumar aqui, você poderia ir para a área de fumantes? (or-
dem)

Para que um ato ilocucionário seja bem-sucedido é necessário que atenda


às condições de felicidade. Searle procura sistematizar as condições para que
alguns atos ilocucionários de ocorrência freqüente sejam bem-sucedidos. Vamos
sintetizar a seguir alguns exemplos de condições de felicidade associadas a esses
atos, a partir dos esquemas apresentados em Searle (1984, p. 88-90):

 Ato de pedir – o ato de pedir corresponde a uma ação a ser realizada no


futuro pelo ouvinte. Uma primeira condição é a sinceridade do pedido: o
falante quer que o ouvinte realize a ação solicitada. Outra condição é que
o falante acredite que o ouvinte esteja em condição de realizar a ação so-
licitada e que este realmente possa fazê-lo. O pedido é uma tentativa que
o falante faz de conseguir que o ouvinte realize a ação solicitada.

 Ato de perguntar – há dois tipos de perguntas, as reais e as de exame. Nas


perguntas reais, o falante quer saber (descobrir) a resposta; nas perguntas
de exame, o falante quer saber se o ouvinte sabe. Uma primeira condição
para que o ato de perguntar seja bem-sucedido (no caso da pergunta real)
é que o falante seja sincero, que queira realmente obter a informação.

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Lingüística III

Outra condição é que o falante não saiba a resposta. A pergunta é uma


tentativa de obter a informação.

 Ato de aconselhar – o ato de aconselhar corresponde a um ato futuro do


ouvinte. Uma condição para que o conselho seja bem-sucedido é que o
falante tenha alguma razão para acreditar que o ato beneficiará o ouvinte.
Outra condição é que o falante assume que o ato sobre o qual se dá o
aconselhamento é de grande interesse para o ouvinte. Ao contrário do
que se poderia supor, aconselhar não é uma espécie de pedido. Aconsel-
har alguém não é tentar conseguir que ele faça algo de forma análoga ao
pedido. Aconselhar é dizer a alguém o que é melhor para ele.

 Ato de agradecer – o ato de agradecer remete a um ato passado realizado


pelo ouvinte. Esse ato beneficia o falante e este sabe disso. Uma condição
para que o agradecimento seja bem-sucedido é a sinceridade do falante,
que este seja efetivamente grato ao ouvinte pelo ato. O agradecimento é
uma expressão de gratidão ou apreciação.

 Ato de avisar – o ato de avisar remete a um evento ou estado futuro. Uma


condição para que o aviso seja bem-sucedido é que o ouvinte acredite que
o evento ocorrerá e que não é do seu interesse. Outra condição é a sinceri-
dade do falante, que acredita que o evento sobre o qual recai o aviso não
é do interesse do ouvinte. Avisar é como aconselhar e não como pedir.
Não é necessariamente uma tentativa de fazer com que alguém proceda
de modo a evitar o evento ou estado, mas que esteja preparado para as
conseqüências que virão.

Esses são alguns dos atos ilocucionários que Searle analisa. É interessante
observar que em todas as análises um dos componentes fundamentais das
condições de felicidade é a sinceridade do falante. Toda a análise dos atos ilocu-
cionários tem a sinceridade como um dos seus pilares. Para que esse modelo de
análise fosse adotado por outras comunidades de fala diferentes dos britânicos,
seria necessário um estudo preliminar para avaliar quais seriam as normas de
interação vigentes para cada grupo. As diferenças culturais podem levar à for-
mulação de condições bem diferentes associadas aos atos ilocucionários.

Atos perlocucionários
Finalmente, um terceiro nível proposto por Searle (1984, p. 37) para a análise
dos atos de fala é o perlocucionário:

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Teoria dos atos de fala

Se considerarmos a noção de ato ilocucionário é preciso também considerar as conseqüências


ou efeitos que estes têm sobre as ações, pensamentos ou crenças dos ouvintes. Por exemplo,
ao sustentar um argumento, podemos persuadir ou convencer alguém; se o aviso de
qualquer coisa, posso assustá-lo ou alarmá-lo, pedindo alguma coisa, posso levá-lo a fazê-la;
informando-o posso convencê-lo (esclarecê-lo, edificá-lo, inspirá-lo, fazê-lo tomar consciência).
As expressões em itálico designam atos perlocucionários.

O conceito de ato perlocucionário formulado por Austin e Searle não recebe


na obra desses autores o mesmo destaque que o ato ilocucionário. A análise
desse último tipo de ato de fala implica em um estudo mais aprofundado sobre
as formas de interpretação dos atos de fala produzidos pelos falantes.

Para fazer esse estudo, seria necessário em primeiro lugar fazer um levanta-
mento dos atos ilocucionários e das possíveis conseqüências desses atos para os
ouvintes, ou seja, seria necessário elaborar uma tabela de correspondência entre
os dois conjuntos de atos de fala:

Ato ilocucionário Atos perlocucionários correspondentes

Avisar Assustar, alarmar...

Esclarecer, edificar, inspirar, fazer tomar con-


Informar
sciência...

Prometer Criar expectativas...

Etc... Etc...

Nem Austin nem Searle se dedicam ao aprofundamento do conceito de atos


perlocucionários. É significativa a conclusão que Trask (2004, p. 42) apresenta
sobre a incorporação desse conceito aos estudos de pragmática mais recentes:
Austin distinguiu inicialmente três aspectos de um ato de fala: o ato locucionário (ou ato de
dizer alguma coisa), o ato ilocucionário (aquilo que você está tentando fazer, com sua fala)
e o ato perlocucionário (o efeito daquilo que você diz). Hoje, porém, o termo ato de fala é
freqüentemente usado para denotar especificamente um ato ilocucionário e o efeito de um
ato de fala é sua força ilocucionária.

A conclusão de Trask mostra como os estudos recentes de pragmática incor-


poram o essencial da teoria dos atos de fala, sem dar a mesma importância a
algumas distinções menos relevantes formuladas pelos filósofos britânicos.

Conclusão
Os estudos sobre os atos de fala que sintetizamos neste capítulo têm como
um de seus pressupostos nucleares a concepção dos interlocutores como indi-

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Lingüística III

víduos sinceros e cooperativos. Essa representação pode ser resultado de uma


visão idealista da sociedade elaborada pelos filósofos britânicos na década de
1960. Ou pode ser resultado da observação dos valores do grupo social com que
esses intelectuais conviveram na época em que propuseram suas análises.

Essa mesma concepção dos falantes está presente também na proposta


de máximas conver­sasionais formuladas por outro filósofo britânico, H. P.
Grice, contemporâneo de Austin e Searle. Tra­balhos posteriores que analisam
questões relacionadas às interações sociais fazem uso das descobertas sobre
as ações verbais presentes nos estudos desses filósofos, mas incorporam outros
conceitos, como o de ideologia, por exemplo, que resultam em uma visão
menos ingênua dos falantes e das ações realizadas ao falar.

Texto complementar

Teoria dos atos de fala


(FIORIN, 2002, p. 141-186)

A Pragmática, tal como a conhecemos hoje tem início quando Austin


começa a desenvolver sua teoria dos atos de fala. Até então, a Lingüística
pensava que as afirmações serviam para descrever um estado de coisas e,
portanto, eram verdadeiras ou falsas. Uma afirmação como O céu é azul de-
screve o estado do firmamento e, portanto, o falante pode verificar se ela é
verdadeira ou falsa, no momento em que é usada. Austin vai mostrar que a
Lingüística se deixava levar por uma ilusão descritiva, pois é preciso distinguir
dois tipos de afirmações: as que são descrições de estados de coisa, a que ele
vai chamar constativas e as que não são descrições de estados de coisa. São
essas que lhe interessam. Toma, então, certos enunciados na forma afirma-
tiva, na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa,
com as seguintes características: a) não descrevem nada e, por conseguinte,
não são nem verdadeiros nem falsos; b) correspondem, quando são realiza-
dos, à execução de uma ação. A essas afirmações vai chamar performativas.
Quando se observa uma frase como Ordeno que você saia daqui, verifica-se
que o ato de ordenar se realiza, ao se enunciar a afirmação. Por outro lado,
uma ordem não é verdadeira nem falsa, ela pura e simplesmente realiza-se.

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Teoria dos atos de fala

São muitos os exemplos de performativos:

 Declaro aberta a sessão;

 Aceito (resposta à pergunta Aceita essa mulher como sua legítima esposa?,
na cerimônia de casamento);

 Prometo que a situação não vai ficar assim;

 Lamento que isso tenha ocorrido;

 Eu te perdôo.

É preciso observar mais uma coisa sobre os performativos: para que a


ação correspondente a um performativo seja de fato realizada, é preciso
não somente que ele seja enunciado, mas tam­bém que as circunstâncias
de enunciação sejam adequadas. Um performativo pronunciado em circun-
stâncias inadequadas não é falso, mas nulo, ele fracassou. Assim, por exem-
plo, se o irmão da noiva e não o noivo diz aceito, na cerimônia de casamento,
o performativo é nulo, porque quem realizou o performativo não é aquele
que, nessa circunstância de enunciação, deve realizá-lo. Por isso, Austin vai
estudar as condições de felicidade (sucesso)4 e fracasso dos performativos,
ou seja, as circunstâncias de enunciação que fazem com que um performa-
tivo seja efetivamente realizado.

As principais condições de sucesso de um performativo são:

 a enunciação de certas palavras em determinadas circunstâncias tem,


por convenção, um determinado efeito. Portanto, as pessoas e as cir-
cunstâncias devem ser aquelas convenientes para a realização do enun-
ciado em questão. Por exemplo, se um faxineiro, e não o presidente
da Câmara, diz Declaro aberta a sessão, o performativo não se realiza,
porque o faxineiro não é a pessoa que pode executar a ação de abrir a
sessão; por outro lado, se o presidente declara aberta a sessão sozinho
no seu gabinete, o performativo não se realiza, porque não está sendo
executado nas circunstâncias apropriadas para sua realização;

 a enunciação deve ser executada corretamente pelos participantes. O


uso da fórmula incorreta torna nulo o performativo. Assim, no batismo,
é preciso usar a fórmula correta, para que o performativo se realize. Se o
padre diz Eu te perdôo em lugar de Eu te batizo, o batismo não ocorre;

4
A expressão “condições de felicidade” do performativo não é uma boa denominação em português. Seria melhor dizer “condições de sucesso”. No
entanto, a partir da tradução do texto de Austin, essa expressão começou a ser usada e é encontrada em muitos textos de Pragmática.

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Lingüística III

 a enunciação deve ser realizada integralmente pelos participantes.


Assim, quando um performativo exige outro para ser realizado, é
necessário que os dois sejam realizados para que haja sucesso. Por ex-
emplo, quando alguém diz Aposto dez reais como vai chover, para que
o ato de apostar tenha sucesso, é preciso que o outro aceite a aposta,
enunciando a aceitação.

Há duas outras condições para o sucesso dos performativos, que são de


natureza diferente, são as que fazem do performativo um ato puramente
verbal, vazio. Quando sua enunciação exige que o falante tenha certos sen-
timentos ou intenções, é preciso que ele tenha de fato esses sentimentos ou
intenções. Quando alguém diz Quero exprimir-lhe meus pêsames, sem que
sinta nenhuma simpatia pelo pesar do interlocutor, ou Prometo que virei, sem
ter nenhuma intenção de vir, o performativo realiza-se, mas não terá sucesso,
ou seja, realizar-se-á verbalmente, mas não efetivamente. A promessa será
feita, mas o que se prometeu não será realizado; os pêsames serão dados,
mas efetivamente o falante não sente nenhum pesar. Por outro lado, na se-
qüência dos acontecimentos, o falante que executou um performativo deve
adotar o comportamento implicado pelo ato de enunciação. Assim, quando
o falante que diz Prometo que virei não vier, a promessa não será efetivada.
Ela permanece um puro ato verbal.

Na verdade, do estrito ponto de vista da realização dos performativos


na enunciação, as três primeiras condições são mais importantes, porque
sua ausência implica que nem sequer se reconheça que o performativo se
realizou no ato de enunciação.

Como já foi dito, Austin põe em xeque a ilusão descritiva, quando mostra
que há afirmações que descrevem estados de coisas e que podem ser verda-
deiras ou falsas – as constativas – e afirmações que não descrevem nada, mas
pelas quais se executam atos, que podem ser felizes ou infelizes, ter sucesso
ou fracassar – as performativas. Os constativos são verdadeiros se existe o
estado de coisas que eles descrevem, e falsos em caso contrário. Os perfor-
mativos têm sucesso quando certas condições são cumpridas, e fracassam
quando não o são. Em Eu jogo futebol, o fato de jogar independe de minha
enunciação; em Eu me desculpo pelo que ocorreu, o fato de desculpar-se de-
pende de minha enunciação.

Até agora, estamos trabalhando com performativos indicados por verbos


na primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa na forma

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Teoria dos atos de fala

afirmativa. Assim, Desejo que você venha jantar comigo é um performativo


porque a ação de desejar se realiza, no ato de enunciar. Nas outras pessoas, nos
outros tempos, nos outros modos, não haveria performativos, mas constativos.
Com efeito, quando se diz Ele ordena que ele saia ou Eu ordenei que ele saísse, o
que temos são constativos que descrevem a realização de um performativo por
uma terceira pessoa ou por mim mesmo num tempo passado. No entanto, a
questão não é tão simples assim. Há performativos que se realizam de maneira
diferente dos que vimos mostrando até agora. Observem-se os exemplos:

 Proibido fumar;

 Os senhores estão autorizados a falar em meu nome;

 Os alunos foram advertidos de que os que não fizerem matrícula na


data determinada perderão sua vaga.

Nesses casos, realizam-se os performativos da proibição, da autorização e


da advertência, sem que sejam utilizadas as formas proíbo, autorizo e advirto.
Poder-se-ia então pensar que o modo, o tempo e a pessoa não bastam para
saber se um performativo existe, mas que certas palavras, como proibido,
autorizado, advertido, seriam necessárias para que eles se realizassem. En-
tretanto, pode haver performativos sem que apareçam no enunciado pala-
vras relacionadas ao ato a ser executado e, ao mesmo tempo, podem estar
presentes no enunciado palavras correspondentes ao performativo, sem
que ele se realize. Assim, em Curva perigosa, existe um performativo de ad-
vertência, mas em Você tinha mandado o aluno ficar quieto não há performa-
tividade, apesar da presença do termo mandado.

Austin abandona a idéia de que possa existir um teste puramente lingüís-


tico para determinar a existência do performativo e volta à própria definição
do performativo, ou seja, ele é a realização, ao enunciar, de um ato pelo fal-
ante. Quando se observam enunciados como Saia e Ordeno que você saia. Eu
virei amanhã quer dizer Prometo que virei amanhã. É proibido fumar significa
Eu proíbo fumar, pois existe alguém que é responsável pela proibição. Assim,
um enunciado será performativo quando puder transformar-se em outro
enunciado que tenha um verbo performativo na primeira pessoa do singular
do presente do indicativo da voz ativa. Os enunciados que não contêm um
verbo performativo na pessoa, no tempo, no modo e na voz indicados serão
chamados performativos implícitos; os que têm o verbo na forma mencio-
nada serão denominados performativos explícitos. [...]

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Lingüística III

Estudos lingüísticos
Leia o trecho a seguir, que é parte de uma crônica em que João Ubaldo Ribeiro
relembra episódios relacionados ao exame vestibular “do seu tempo”, quando
os candidatos eram submetidos a uma prova oral diante de uma platéia.

O verbo “for”
(RIBEIRO, 2000, p. 20)

[...]

Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima,


e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos
diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo,
muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas.

A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas 10 linhas


em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o
que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e
assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a
responder nada.

Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra
“for” tanto podia ser do verbo “ser” quanto do verbo “ir”. Pronto, pensei. Se ele
distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja
o que Deus quiser.

− Esse “for” aí, que verbo é esse?

Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que


resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me en-
carou sorridente.

− Verbo for.

− Verbo o quê?

− Verbo for.

− Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

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Teoria dos atos de fala

− Eu fonho, tu fões, ele fõe − recitou ele, impávido. − Nós fomos, vós
fondes, eles fõem.

[...]

A partir dos elementos fornecidos pelo autor nessa crônica, identifique:

1. Qual é o ato ilocucionário realizado pelo professor quando se dirige ao can-


didato com a frase: Esse “for” aí, que verbo é esse?

2. Quais são as condições de felicidade para a realização desse ato ilocu-


cionário?

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Lingüística III

3. Qual é o ato ilocucionário realizado pelo professor quando se dirige ao can-


didato com a frase: Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.

4. Quais são as condições de felicidade para a realização desse ato ilocu-


cionário?

5. Qual é o ato perlocucionário realizado a partir da frase do professor: Conju-


gue aí o presente do indicativo desse verbo.

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Teoria dos atos de fala

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