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a idéia segundo a qual se pode realizar um ato pelo fato de se afir- tado: "Quando você pergunta Quem veio?

veio?, seu enunciado comporta


mar explicitamente realizá-lo. Daí minha análise de Dizer-obrigado * o pre~suposto que alguém veio. Então, segundo você, ele serve para
no começo deste capítulo e no Cap. VI. realizar um ato de pressuposição. Mas é impossível, porque todo mun-
do sabe que o enunciado Quem veio? serve para realizar um ato de
IX . Uma vez apresentado o quadro geral do qual acabo de indi- perguntar. Se o ato realizado é a pergunta, não pode ser a pressupo-
car as características principais, posso ir ao tema próprio deste capí- sição." Vê-se de · imediato que a objeção repousa no princípio segun-
tulo, que é, relembro, criticar e ~ub~~ituir a te~ria da unicida?: ~? do o qual o enunciado deve, ser caracterizado por um único ato ilo-
sujeito da enunciação. E esta teona, um enunciado - um suJelto cutório. Certamente faço agora certas reservas à noção de um ato de
que permite empregar a expressão "o sujeito", ?ressupondo c~mo uma pressuposição, ou, pelo menos, nós o veremos, eu a apresento dife-
evidência que há um ser único autor do enunciado ,e responsav~l ~pe~o rentemente da época de Vire et ne pas Vire *. mas o que me orienta
que é dito no enunciado. Então, se não se tem escrupul~ ou rehcencia nesta retratação não é certamente o receio de dever admitir, se hou-
para empregar esta expressão, é porque sequer se coglta colocar em ver um ato ilocutório de pressuposição, a existência de vários atos
dúvida a unicidade da origem da enunciação. ligados a um só enunciado. Ao contrário, divido ainda mais que
Quais são as propriedades deste sujeito?. Primeiro ele é dotado anteriormente a atividade ilocutória em uma pluralidade de elemen-
de toda atividade psico-fisiológica necessária à produção do enuncia- tos pragmáticos disjuntos.
do. Assim dizer que um certo X é o sujeito do enunciado "O tempo Além da produção física do enunciado e a realização dos atos
está bom': dito em um certo momento, num certo lugar, é atribuir a ilocutórios, é habitual atribuir ao sujeito falante uma terceira pro-
X o trabalho muscular que permitiu tornar audíveis as palavras o priedade, a de ser designado em um enunciado pelas marcas da pri-
tempo está bom; e é atribuir-lhe também a atividade intelectual s~~­ meira pessoa - quando elas designam um ser extra-lingüístico: ele
jacente - formação de um julgamento: escolha d~s. palavras, uhh- é, neste caso, o suporte dos processos expressos por um verbo cujo
zação de regras gramaticais. Segundo atnbuto do suJ:ltO: ser o a~tor, sujeito é eu, o proprietário dos objetos qualificados por meus, é ele
a origem dos atos ilocutórios realizados na produçao do enu~~1ad~ que se encontra no lugar denominado aqui. . . Considera-se como
(atos do tipo da ordem, da pergunta, da asserção, etc.). O suJeito e óbvio que este ser designado por eu é ao mesmo tempo o que produz
aquele que ordena, pergunta, afirma, etc. Para voltar ao exemplo pre- o enUI).ciado, e também aquele cujo enunciado expressa as promessas,
cedente, dir-se-á que o mesmo X que produziu as palavras O . tempo ordens, asserções, etc. Certamente chocamo-nos neste caso com con-
está bom é também aquele que afirmou o bom tempo. Na medida em tra-exemplos do discurso relatado em estilo direto, onde muito fre-
que uma só pessoa é o produtor do enunciado, ~erá ne~essário .admi- qüentemente o pronome eu não refere a pessoa que o pronuncia. Mas,
tir que há uma só pessoa na origem dos ato~ ilocutónos re~hzados para eliminar este contra-exemplo, basta recorrer a uma concepção do
através dele. Vai-se, aliás, freqüentemente mais longe nesta via e se discurso relatado direto (criticado aqui mesmo no § XI) segundo a
pretende - ou sobretudo pretende-se como evidente,--:- que c~da qual as ocorrências que aparecem entre aspas não referem seres extra-
enunciado realiza um só ato ilocutório (donde a especie de escan- lingüísticos, mas constituem a simples menção de palavras da língua.
dalo que resulta da existência dos atos indiretos). Uma tal suposição Assim, o eu de Pedro disse "eu venho" designaria uma entidade gra-
não é certamente necessária para admitir que há uma só origem para matical, o pronome de primeira pessoa; e o enunciado global signifi-
a atividade ilocutória realizada através de um enunciado, mas ela .é, caria somente que Pedro empregou este pronome, seguido da palavra
em todo caso, suficiente para justificar esta tese. portuguesa venho.
Seja dito entre parêntesis, a crença na unicidade do ato ilocutó-
* A concepção desenvolvida em Dire et ne pas Dire é a do artigo de 1969
rio é uma das razões que levaram muitos filósofos da linguagem a retomado no primeiro capítulo. A concepção a que cheguei, a partir da
repelir [repousser] como francamente levia~a a c~ncepção da pressu- idéia de polifonia, fundamenta-se no "reexame" realizado em um trabalho de
posição desenvolvida em Dire et ne pas Dzre. E ~sto ?orque falo ?e 1977 (cf. aqui mesmo, Cap. II), mas se situa numa perspectiva totalmente
um ato il~cutório de pressuposição. A que se tem 1mediatamente Ob]e- diferente.

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Admitamos, provisoriamente, esta concepção do discurso rela- mas. Todo trapeiro, uma vez ou outra, ouviu em um refúgio, ao ama-
tado direto. E tão evidente que as três propriedades de que acabo de nhecer, um diálogo como o que segue. A alguém que tenha impru-
falar são, nos outros tipos de discurso, atribuídas a um ser único?. dentemerrte afirmado não ter pregado os olhos à noite, um compa-
Que possa ser assim, quando se trata de enunciados simples, produzi- nheiro fe.s ponde amavelmente: Pode ser que você não tenha dormido,
dos em contextos simples, não procurarei discutir (eu não penso que mas, de qualquer forma, você, roncou solenemente". O autor, no sen-
se possa me censurar por utilizar aqui, sem definição, uma noção tão tido físico, deste enunciado não poderia ser visto como responsável,
pouco clara que a de simplicidade: não a utilizo com efeito para esta- ao mesmo tempo, pelas duas afirmações que aí são feitas uma depois
belecer minha própria tese, mas para fazer uma concessão a meus da outra. Se parece razoável atribuir-lhe a segunda, não se poderia
adversários - o que poderia exprimir - se, recorrendo à termino- fazer o mesmo com a primeira, a que é corrigida pelo "mas .. . " E
logia que introduzirei daqui a pouco, dizendo que o enunciador do é deste modo para um grande número de empregos de mas, notada-
que eu digo aqui não é assimilável ao locutor enquanto tal). Como mente para aqueles que entram nos enunciados de estrutura "Pode
exemplo de enunciado simples em um contexto simples, tomemos a ser p mas q" (o que eu digo aqui de mas, e o faço de passagem,
réplica "Na semana passada, eu estava em Lyon", utilizada para res- constitui uma certa modificação na descrição que J. C. Anscombre e
ponder à pergunta "Onde você estava na semana passada?". Não há eu temos dado freqüentemente para mas, descrição que modificamos
dificuldade em atribuir à mesma pessoa as três propriedades consti- atualmente introduzindo-a na nossa teoria da polifonia) 1 •
tutivas do sujeito falante. Se representamos por "L" o indivíduo a
X . E esta teoria da polifonia que vou agora apresentar de uma
quem a pergunta é endereçada e que articula a resposta, é L que é
maneira positiva, depois de ter mostrado as dificuldades da concepção
designado por eu (é de L que se diz que estava em Paris) e é ainda
L que assume a responsabilidade do ato de afirmação veiculado pelo "unicitária" à qual ela se opõe. Para isto desenvolverei certas indi-
enunciado. cações que se podem encontrar no primeiro capítulo de Les Mots du
Discours, corrigindo-as em alguns aspectos.
Mas, desde que se emprega um enunciado, mesmo simples, em
um diálogo um pouco mais complexo, a tese da unicidade começa a Relembrei há pouco que o sentido de um enunciado, para mim, ,...
apresentar dificuldade. Por exemplo, quando há uma retomada (em é a descrição de sua enunciação. Em que consiste esta descricão?. '""(.
um sentido muito largo deste termo, e que não Implica nem repetição Tenho assinalado alguns de seus aspectos mencionando as indic~ções
literal, nem paráfrase) . L, a quem se censurou por ter cometido um argumentativas e ilocutórias, assim como as relativas às causas da
erro, retruca: "Ah! eu sou um imbecil; muito bem, você não perde fala. Estas indicações, de que falei para levar a compreender o que
por esperar!". L é aqui ainda o produtor das palavras e é ele igual- entendo por "descrição da enunciação", são, na verdade, secundárias
mente que é designado pelo eu. Mas a responsabilidade do ato de em relação às indicações mais primitivas que estão pressupostas por
afirmação realizado no primeiro enunciado não é certamente L que tudo que se pode dizer sobre os aspectos ilocutório, argumentativo e
assume - já que justamente L tem a imodéstia de o contestar: ao expressivo da linguagem. Trata-se de indicações, que o enunciado
contrário, L o atribui a seu interlocutor I (mesmo que I não tenha, apresenta, no seu próprio sentido, sobre o (ou os) autor(es) even-
de · fato, falado de bobeira. Mas s&>mente feito uma censura que, se- tual(ais) da enunciação. Certamente quando defini a nocão de enun-
gundo L, implica em boa lógica para I, a crença na imbecilidade de L). ciação tal como a utilizo enquanto lingüista que descreve ·a linguagem, -
recusei-me explicitamente, de aí . introduzir a idéia de um produtor
Assim, pois, desde que haja uma forma qualquer de retomada da fala: minha noção é neutra em relação a tal idéia. Mas não se
(e nada é mais freqüente que a retomada na conversação), a atribui-
ção das três propriedades a um sujeito falante único, torna-se proble- 1. No que diz respeito aos enunciados de estrutura "Certamente p mas q"
mática - mesmo quando se trata de um enunciado sintaticamente ver o final do § XVlll. Eles apresentam um acordo sobre a verdade de p:
mas. ~xcluem to~a _tomada de posição argumentativa de p. Não poderei
simples. A demonstração é ainda mais fácil com enunciados comple- exphcttar a opostçao destas duas noções senão depois de ter no § XII
xos, por ex_emplo, com enunciados constituídos através da conjunção analisado o conceito do locutor distinguido L e À· ' '

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dá o mesmo com esta descrição da enunciação que é con~titutiva do abaixo-assinado e, em situação "normal", da assinatura. Mas, desde tr'?
sentido dos enunciados - a que é constitutiva do que o enunciado que eu tenha assinado, aparecerei como o locutor do enunciado (lem- /'
quer dizer e não mais do que o lingüista diz. Ela contém, ou pode bro que considero "enunciado" uma...ocorrência particular da fra.§_~~ t .)
conter, a atribuição à enunciação de um ou vários sujeitos que se- Por um lado me responsabilizarei por ele - e o próprio enunciado,
riam sua origem. A tese que quero defender aqui é que é necessário uma vez assinado, indicará que assumi esta responsabilidade. Por
distinguir entre estes sujeitos pelo menos dois tipos de personagens, outro lado, serei o ser designado pelas marcas da primeira pessoa,
os enunciadores e os locutores; apresentarei primeiro a noção de serei quem autoriza seu filho a fazer isto ou aquilo. Tenho assinado,
"locutor". a administração da escola poderá me dizer: "O s.e nhor nos mandou
um documento em que autoriza seu filho a ... "
Se falo de locutores - no plural - não é para cobrir os casos
em que o enunciado · é referido a uma voz coletiva (por exemplo, Um parêntesis a este propósito, sobre o papel da assinatura. Para
quando um artigo tem dois autores que se designam coletivamente que serve a assinatura?. Base<j.ndo-me em trabalhos de Christian Plan-
por um nós). Visto que, neste caso, os autores pretendem constituir tio, considerarei dupla sua função. Em primeiro lugar, ela serve algu-
uma só pessoa moral, falante de uma única voz: sua pluralidade apre- mas vezes para indicar quem é o locutor, o ser designado pelo eu e
senta-se fundida em uma personagem única, que engloba os indivíduos a quem é imputada a responsabilidade do enunciado. Mas este papel
diferentes. O que me motiva o plural é a existência, para certos enun- é acessório e circunstancial, somente: ela o realiza só quando é legí-
ciados, de uma pluralidade de responsáveis, dados como distintos e vel (o que não é de forma nenhuma necessário: Cf. os riscos que
irredutíveis. Assim, nos fenômenos de dupla enunciação (§ XI), prin- servem muitas vezes para assinar) e quando o texto que a precede
- cipalmente no discurso relatado em estilo direto. Por definição, enten- não contém indicação do locutor (indicação que é dada, no meu
do por locutor um ser que é, no próprio sentido do enunciado, ªpr~ exemplo, desde que a fórmula "abaixo-assinado ... " tenha sido preen-
sentado como seu responsá_yel, ou seja, como alguém a quem se deve chida). A segunda função, essencial, é a de assegurar a identidade
imputar a responsabilidade deste enunciado. É a ele que refere o pro- entre o locutor indicado no texto e um indivíduo empírico, e a assi-
nome eu e as outras marcas da primeira pessoa. Mesmo que não se natura realiza tal função em virtude de uma norma social que exige
leve em conta, no momento, o discurso relatado direto, ressaltar-se-á que a assinatura seja "autêntica" (meu filho não tem o direito de
que o locutor, designado por eu, pode ser distinto do 'ftutor empmco assinar por mim), entendendo por isto que o autor empírico da assi-
do enunciado, de seu produtor - mesmo que as duas personagens natura deve sei- idêntico ao ser indicado no sentido do enunciado,
coincidam habitualmente no discurso oral. Há de fato casos em que, como seu locutor. Na conversação oral cotidiana, é a voz que realiza
de uma maneira quase evidente, o autor real tem pciuca relação com as duas funções da assinatura. Por um lado ela pode servir para dar
o locutor, ou seja, com o ser, apresentado, no enunciado, como aquele a conhecer quem é o locutor, ou seja, quem é designado pelos mor-
a quem se Q.eve atribJ.tir -ª-!esponsabilidade da ocorrência do enun- femas de primeira pessoa (Cf. os diálogos "quem está aí?" - "Eu").
ciadó. E, por outro lado, ela autentica a assimilação do locutor a um indi-
Suponha que meu filho me traga uma circular da escola, em que víduo empírico particular, aquele que produz efetivamente a fala.
está escrito: "Eu, abaixo-assinado~... autorizo meu filho a[ . .. ]. As- Como no caso da assinatura, é, aliás, uma norma social que torna
sinado . . . " Só terei pessoalmente que escrever meu nome no branco possível esta segunda função, a norma impedindo "contradizer" a voz
que segue a expressão abaixo-assinado (a menos que meu filho tenha .de qualquer outra pessoa.
tido a cortesia de fazê-lo por mim) e assinar (a menos que meu filho Não somente o locutor pode ser diferente do sujeito falante efe-
tenha tido a imprudência de fazê-lo ele mesmo). Ora, é claro que não tivo, mas pode ser que certas enunciações, tal como são descritas no
sou o_au..!Q_r em:Qírico_ do texto~autor, aliás, difícil de identificar: é o sentido do enunciado, não apareçam como o produto de uma subjeti-
diretbr, sua secretária, a secretária da educação, etc?. Quando mui to vidade individual" (é o caso dos enunciados que Benveniste chama
corro o risco de ser o autor da ocorrência de meu nome depois de "históricos", enunciados caracterizados pelo fato de não veicularem

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nem marca explícita, nem indicação implícita de primeira pessoa, não dente no discurso relatado em estilo direto. Se Pedro diz "João .!lle.
atribuindo, pois; a nenhum locutor, a responsabilidade de sua enun- disse: eu virei", como analisar, no que concerne ao locutor, o discurso
ciação). Vê-se porque escolhi uma definição da enunciação que não de Pedro tomado na sua totalidade?. Encontram-se aí duas marcas de
contenha nenhuma alusão a uma pessoa que fosse seu autor, nem primeira pessoa que remetem a dois seres diferentes. Ora, não se
mesmo a uma pessoa a quem fosse endereçada - já que é essencial pode ver aí dois enunciados sucessivos, o segmento João me disse
para mim que a enunciação, na · medida em que ela é o tema do não pode satisfazer a exigência de independência contida na minha
sentido, o objeto das qualificações contidas nos sentidos, não seja vis- definição de enunciado: ele não se apresentaria como "escolhido por
ta, enquanto objeto destas qualificações, como devendo ter necessaria- si mesmo" . Sou, pois, obrigado a dizer que um enunciado único
mente uma fonte e um alvo. Quero poder dizer que a existência de apresenta aqui dois locutores diferentes, o primeiro locutor sendo
uma fonte e de um alvo estão entre as qualificações que o sentido assimilado a Pedro e o segundo a João. Assim, é possível que uma
- atribui (ou não) à enunciação. Assim poderei descrever as "enuncia- parte de um enunciado imputado globalmente a um primeiro locutor
ções históricas" como não comportando, no seu sentido, nenhuma seja, entretanto, · imputado a um segundo locutor (do mesmo modo
menção a sua origem - entendendo por isso, não que o sentido des- que, num romance, o narrador principal pode inserir no seu relato
tes enunciados atribui a origem de sua enunciação a alguma subjetivi- o relato que lhe fez um segundo narrador).
dade superindividual, mas simplesmente que ele não diz nada sobre
Esta possibilidade de desdobramento é utilizada não somente pa-
sua origem, que não exibe nenhum autor de sua fala.
ra dar a conhecer o discurso atribuído a alguém, mas também para
Se eu fizesse intervir um autor na minha definição de enuncia- produzir um eco imitativo (A: "Eu não estou bem" - B: "Eu não
ção, a existência deste autor se tornaria um tema das qualificações estou bem; não pense que você vai me comover com isso"), ou para
contidas no sentido, ou seja, sua especificação seria uma das tarefas apresentar um discurso imaginário ("Se alguém me dissesse vou sair,
necessárias da semântica do enunciado, uma das questões que o sen- eu lhe responderia ... ") . É ela também que permite organizar um
tido devet:ia responder, e deveria imaginar, então, que o enunciado teatro, no sentido próprio, no interior de sua própria fala, pergun-
histórico dá a estas questões uma resposta de ordem metafísica. Pre- tando e respondendo (procedimento freqüentemente utilizado por cer-
firo poder dizer simplesmente que ele deixa na sombra a origem de tas personagens de Moliere, Sosie por exemplo, que na cena I, do
sua enunciação, e isto me é possível na medida em que esta origem primeiro ato do Amphitryon, se representa contando a batalha de
não é um tema necessário das indicações semânticas, mas uma das Alcmene, organizando assim um teatro dentro do teatro). O mesmo
características que . podem atribuir (ou não) à enunciação. Se, utili- desdobramento do locutor permite ainda a alguém fazer-se o porta-
zando com alguma liberdade uma palavra de Jakobson, denomina-se voz de um outro e empregar, no mesmo discurso, eus que remetem
"embrayeur" o aspecto da realidade extra-lingüística relativa às indi- tanto ao porta-voz, quanto à pessoa da qual é porta-voz. Quando, em
cações interiores ao sentido (quer dizer, situada na junção do lingüís- T!lrtarin sur les Alpes, Pascalon, atemorizado pelas imprecações de
tico e do extra-lingüístico), direi que é a enunciação tal como a defini Excourbanies (" Outrel "), as faz acompanhar pela fórmula hipócrita
- abstração feita, pois, do sujeito falante - que é o embrayeur das [tarasconnaise] " ... que vous me feriez dire", o locutor da fórmula
indicações semânticas: a existência
., eventual de uma fonte responsá- pronunciada por Pascalon, quer dizer, a pessoa designada por me, é
vel pela enunciação depende só destas indicações. a que praguejou "Outre! ", a saber, Excourbanies. O que não impede
XI . Sustentei mais acima que a presença de marcas da primeira Pascalon de, no mesmo discurso, empregar eus que designam ele
pessoa apresenta a enunciação como imputável a um locutor, assimi- mesmo.
lado à pessoa à qual remetem. Este princípio deve receber certas Em lugar de considerar o relato em e.stilo direto (abreviado RED)
nuances a fim de dar conta da possibilidade sempre aberta de fazer como um cas() particular de dupla enunciação, ele é descrito com
_ aparecer, em uma enunciação atribuída a um locutor, uma enunciação freqüência de modo isolado, independentemente dos fenômenos que
atribuída a um outro locutor. E isto que se vê de uma maneira evi- classifiquei na mesma categoria - deixa em seguida tomá-lo como

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modelo quando se trata de caracterizar estes outros fenômenos, vistos mente subordinados - o que não é mais extravagante que atribuir-
como sendo formas truncadas, desviantes, até anormais. Esta prática lhe propriedades jurídicas, argumentativas ou causais de que falei
leva a dar ao RED uma imagem que me parece às vezes banal e de mais acima. Certamente do ponto de vista empírico, a enunciação é ...
forma nenhuma evidente, e a desfigurar por ricochete os fatos que ação de um único sujeito falante, mas a imagem que o enunciado...__,.
procedem também, segundo penso, da dupla enunciação: eles apare- dá dela é a de uma troca, de um diálogo, ou ainda de uma hierarquia,...->
cem como uma cópia de má qualidade, feita a partir de um original das falas. Não há paradoxo neste caso senão se se confunde o lo-
cutor - que para mim é uma ficção discursiva - com o sujeito
já desbotado.
falante - que é um elemento da experiência. Esta tese tem conse-
Se, de fato, contrariamente ao que proponho, considera-se sepa- qüências quando se trata de descrever o relato em estilo direto, se
radamente o RED, duas particularidades se impõem logo de início. este é visto no interior da categoria geral da dupla enunciação. Segu-
A primeira, que ele tem por função informar sobre um discurso efe- ramente manterei que ele visa informar sobre um discurso que foi
tivamente realizado [tenu] . A outra, que ele contém em si mesmo os efetivamente realizado. Mas nada mais obriga a sustentar que as ocor-
termos de um discurso suscetível de ser realizado [tenu] por um lo- rências colocadas entre aspas constituem uma menção que designam
cutor djlerente daquele que faz o relato. A aproximação destas duas entidades lingüísticas, aquelas que foram realizadas no discurso ori-
observações conduz facilmente à idéia - em geral admitida sem dis- ginal. Pode-se admitir ao contrário que o autor do relato, para infor-
cussão - de que o RED procura reproduzir na sua materialidade as 1,1lar sobre o discurso original, coloca em cena, dá a conhecer uma
palavras produzidas pela pessoa de quem se quer dar a conhecer o fala que ele supõe, simplesmente, que ela tem alguns pontos comuns
discurso. O que se expressa, por exemplo, recorrendo à noção lógica com aquela sobre a qual ele quer informar seu interlocutor. A verda-
de menção. Para um lógico, uma ocorrência particular de uma palavra de do relato não implica, pois, se o RED é um caso particular de
constitui uma menção quando seu autor não a utiliza para significar dupla enunciação, uma conformidade material das falas originais e
o sentido desta palavra mas para significar a própria palavra, consi- das falas que aparecem no discurso daquele que relata. Já que este
derada como uma entidade lingüística. Este é o caso nos exemplos não visa necessariamente a uma reprodução literal., nada impede, por
sempiternos do tipo "Mesa tem quatro letras" onde a ocorrência da exemplo, que, para dar a conhecer os pontos importantes da fala ori-
palavra mesa serve para designar este elemento da língua portuguesa ginal, ele coloca em cena uma fala muito diferente, mas que dela
que é a palavra mesa. O mesmo se daria no RED. A parte final da conserva, ou mesmo acentua, o essencial (pode-se, no estilo direto,
seqüência Pedro disse: "estou contente" (a que está entre aspas) de- relatar em dois segundos um discurso de dois minutos: Em uma pala-
signaria simplesmente uma frase da língua, e o sentido global da se- vra, Pedro me .disse "eu tenho o suficiente"). A diferença entre estilo
qüência seria que Pedro pronunciou esta frase, produzindo um enun- direto e estilo indireto não é que o primeiro daria a conhecer a forma,
ciado. Relatar um discurso em estilo direto seria, pois, dizer que o segundo, só o conteúdo. O estilo direto pode também visar só o
palavras foram utilizadas pelo autor deste discurso. Quanto aos outros conteúdo, mas para fazer saber qual é o conteúdo, escolhe dar a
fenômenos que classifiquei na rubrica "dupla enunciação", (os ecos, conhecer uma fala (ou seja, uma seqüência de palavras, imputada a
os diálogos internos, os monólogos, o apagamento do porta-voz em um locutor) . .f. suficiente, para ser exato, que este manifeste efetiva-
relação à pessoa que ele faz falar),. tudo isto não seria senão uma mente certos traços salientes da fala relatada (por isso os .historiado-
forma enganosa do RED - enganosa seja porque ele não se reconhe- res antigos, e boa parte dos historiadores modernos, não têm escrú-
ce como tal, seja porque o discurso que se pretende relatar jamais pulos de reescrever os discursos que relatam). Porque o estilo direto
se deu, ou foi realizado em termos diferentes. implica fazer falar um outro, atribuir-lhe a responsabilidade das falas,
isto não implica que sua verdade tenha uma correspondência literal,
De minha parte, prefiro caracterizar primeiro a categoria toma-
termo a termo.
da na sua totalidade, e direi que ela consiste fundamentalmente em
uma apresentação da enunciação como dupla: o próprio sentido do XII. Já que o locutor (ser do discurso) foi distinguido do sujeito
enunciado atribuiria à enunciação dois locutores distintos, eventual- falante (ser empírico), proporei ainda distinguir, no próprio interior

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