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Carta de Vilanova Artigas, de 1945, aponta vantagens de se contratar

arquitetos
Data: 06/05/2015
Departamento: Nacional

Superfaturamento, prazos de execução


desrespeitados, custos elevados e construções
com qualidade técnica duvidosa são alguns dos
problemas apontados, há décadas, por arquitetos
e urbanistas nas licitações de obras sem projeto
completo. Em empreendimentos privados, a
situação não é diferente. Carta do arquiteto
Vilanova Artigas, de julho de 1945, já discutia o
assunto e explicava o porquê de se contratar um
arquiteto a um cliente. O texto de Artigas viralizou
no início deste mês, via e-mail, entre associados
do IAB e membro do Conselho Superior do
Instituto (Cosu).

“É vezo brasileiro fazer as coisas sem plano inicial perfeitamente elaborado; quando se
pergunta sobre como ficarão estes e aqueles pormenores, a resposta é sempre a mesma:
Ah! Isso depois, na hora, veremos”, diz carta assinada por Artigas.

Para o ex-presidente do IAB e IAB-SP e atual presidente do Conselho de Arquitetura e


Urbanismo de São Paulo (CAU/SP), Gilberto Belleza, a legislação brasileira que contrata
obras e projetos públicos, como a Lei de Licitações (Lei nº 8.666/93), é péssima no sentido
de qualificar o projeto. “É preciso que haja uma mudança na legislação para que a
sociedade perceba que sem um projeto de qualidade não haverá obra de qualidade e,
consequentemente, qualidade de vida e cultura para a sociedade”, afirmou.

Para a arquiteta Salma Cafruni, de Porto Alegre, cuja atuação se concentra na área de
planejamento urbano e na assessoria às prefeituras municipais, a valorização profissional é
um objetivo que ainda precisa ser perseguido.

“Com a interiorização de novas escolas de arquitetura, muitos profissionais se


estabeleceram no interior do estado. Isso contribuiu para uma melhor divulgação e
reconhecimento das nossas atividades. Porém, é preciso continuar a luta pela valorização.
O IAB, a Federação Nacional dos Arquitetos (FNA) e as demais entidades coirmãs têm
papel fundamental”, explicou Salma Cafruni.

Segundo Gilberto Belleza, que publicou a carta no site do IAB-SP em 2002, o texto foi
inicialmente divulgado numa publicação muito pequena e simples, de uma época que não
soube precisar. Posteriormente, o material foi publicado no livro Vilanova Artigas –
Arquitetos Brasileiros, do Instituto Lina Bo. E P. M. Bardi e Fundação Vilanova Artigas, em
1997.

Ações de valorização da profissão e do projeto de arquitetura

Em 2013, O IAB foi um participante ativo das principais discussões que envolveram o
arquiteto e a profissão. O Instituto puxou para si a responsabilidade de explicitar o que se
entende por projeto, capitaneou a elaboração da nova tabela de honorários, participou de
audiências públicas para a modernização dos processos de licitação e acompanha, desde
aquele ano, as discussões sobre o processo de revitalização da Lei de Licitações.

O documento “Anotações sobre PROJETO” (clique aqui para baixar) teve como objetivo
servir de contribuição para um indispensável ajuste na legislação que tumultua a profissão.
A explicitação do que se entende por projeto entrou no programa de trabalho da Direção
Nacional do Instituto, em resposta ao bombardeio de leis, decretos e normas que dificultam
o exercício profissional de arquitetura.

“Na minha opinião, as entidades profissionais, e principalmente o IAB, entidade da qual


Artigas foi um dos grandes nomes de militância, é um dos principais porta-vozes hoje em
defesa do projeto de Arquitetura”, defendeu Belleza.
Por que contratar um arquiteto?
Carta ao cliente,

Confesso que não me assustei muito ao ler sua carta contando o resultado da conferência
para autorização de um projeto para o São Lucas. Estas coisas acontecem sempre porque,
por falta de costume, quem constrói, nem sempre avalia o plano de como deveria fazê-lo. Se
eu insisto em aconselhá-lo mais uma vez para que consiga um arquiteto para dirigir os
trabalhos de seu hospital, não é somente porque desejo muito trabalhar para um hospital
modelo, mas porque, e principalmente porque, não posso crer que uma obra, da importância
da sua, possa nascer sem estudo prévio. É vezo brasileiro fazer as coisas sem plano inicial
perfeitamente elaborado; quando se pergunta sobre como ficarão estes e aqueles
pormenores, a resposta é sempre a mesma: Ah! Isso depois, na hora, veremos.

Assim fazem-se as casas, os prédios, as cidades; nesse empirismo vive a lavoura, a


indústria e o próprio governo. O planejamento, mercadoria altamente valorizada em todo o
mundo para qualquer realização, não encontrará entre nós o ambiente propício enquanto
nós moços não nos capacitarmos da sua necessidade imprescindível. Poderia continuar
conversando com você sobre a grande vantagem de planejar com antecedência, até
amanhã, sem esgotar todos os argumentos e provavelmente terminaria por dizer que é até
demonstração de patriotismo e inteligência. Mas com isso não convenceríamos ninguém;
talvez muito mais vantajoso seria confinar a discussão entre os limites das vantagens
particulares, individuais de aplicar o método. Então vejamos. A pergunta é sempre a mesma;
-”que vantagem poderíamos ter em gastar CR$ 65.000,00 em um projeto somente? O
projeto não é o prédio; muito pelo contrário, somente uma despesa a mais! Contratando a
construção o projeto viria de graça, feito pelo próprio construtor e nós economizaríamos 5%
sobre o valor do prédio. Com esses 5%, no caso de querermos gastá-lo, até poderíamos
melhorar algumas condições do edifício; enriquecer alguns materiais etc…”

Garanto que os argumentos acima lhe foram expostos mais de uma vez. São os que sempre
vejo empregados em ocasiões dessas e nunca mudam. São também os mais fáceis de
rebater e os menos inteligentes.

Senão vejamos: “…O projeto sempre custa alguma coisa. O construtor que o fizer terá, sem
dúvida que empregar engenheiros e desenhistas para isso. Terá de empregar gente para
calcular concreto, para calcular aquecimento, eletricidade, etc… O construtor cobrará essa
despesa do proprietário através da comissão para a construção. Tanto isso é verdade que,
se você apresentar aos construtores um projeto completamente pronto, ele cobrará
percentagem menor para a construção porque dirá, “não terei despesas no escritório”.
Suponhamos que a taxa de honorários para a construção seja de 10 a 12%, inclusive o
projeto. Se você der o projeto, encontrará quem lhe faça por 6 ou 8%. Daí você conclui que
o projeto que você pagou ao arquiteto 5%, já representa nessa ocasião somente 1% ou 2%
a mais do que o preço geralmente previsto.

Mas eu desejo provar que o plano geral, feito com antecedência, é economia e não
despesa. Então vamos continuar. Ninguém pode negar, nenhum construtor, nenhum cliente,
que o projeto feito pelo técnico, contém em si uma previsão maior dos diversos detalhes do
que o projeto rabiscado pelo construtor e verificado pelo proprietário. Faça uma experiência.
Tome um plano que esteja em início de construção e pergunte a quem o dirige: por onde
passam os canos de aquecimento? Por onde passam os canos de esgoto? O senhor vai
fazer antes isso ou aquilo? Garanto que não sabem.

Responderão: “provavelmente passarão por aqui ou ali, farei isto ou aquilo antes. Se na
ocasião de executar um serviço, verificar-se um contratempo qualquer, um cano que não
pode passar porque tem uma porta, um esgoto vai ficar aparecendo no andar de baixo; o
construtor resolve em função do problema, no momento. Ele dá voltas com o cano ou faz
um forro falso para esconder o esgoto que iria aparecer em baixo. Entretanto se isso tivesse
sido previsto, não precisaria de forro falso ou qualquer outra coisa. No papel, teria sido
procurada e encontrada a solução mais econômica, para o caso, a mais bonita.

Consulte um construtor experimentado ou alguém que já tenha construído e todos serão


unânimes em contar-lhe pequenas calamidades que apareceram. Eu já ouvi diversas vezes,
por exemplo: “Quando colocamos as fundações no terreno nós vimos que o quarto ficaria
enterrado. Então levantamos as fundações mais cinqüenta centímetros para dar certo. Por
isso deu uma escada na entrada e ficou com um porão, etc… Se você calcular quanto mais
caro ficou a imprevisão, você verá a vantagem de ter um projeto estudado. O arquiteto teria
dado uma disposição diferente nos cômodos de maneira que o tal quarto não ficasse
enterrado, sem ter que aumentar as fundações e assim economizaria o dinheiro com o qual
se faria pagar.

Se o proprietário não ganhasse nada, ainda teria para si uma solução melhor e um motivo
para valorizar seu imóvel. O construtor por exemplo não projetaria as instalações elétricas.
Ele chamaria um instalador “prático” e o homem disporia a coisa à sua vontade. Usaria os
canos que ele quisesse e os fios que achasse melhores. Bem curioso, não é ? Poucos
entendem disso e ninguém iria fiscalizar o homem. Acontece, porém que os fios, quando
são fios demais em relação à corrente que transportam, dão muitas perdas, e essas se
traduzem em despesa mensal maior de energia para você durante os 50 ou 100 anos de
funcionamento do hospital; assim você pagaria 100 vezes um bom projeto de distribuição de
eletricidade. Estou apenas repetindo casos cotidianos.

Do funcionamento do hospital ainda mais, o construtor provavelmente não entende e nem


terá tempo suficiente para estudar. Ele não é especializado em hospitais porque isto é Brasil
e depois não estudam porque não é o seu métier. Ora, assim sendo, ele vai confiar em você.
Você conhece hospitais já feitos e em funcionamento, como hospitais, não como
construções. Os seus preconceitos, a respeito, o construtor repetirá com o dinheiro de seu
bolso. As soluções que, para alguns casos que você viu, são soluções econômicas poderão
constituir soluções caríssimas, no seu caso. Rematando, sua casa de saúde não teria o
melhor aspecto porque faltou um artista.
Arquitetura é construção e arte. Arte. Arte não tem livro de regulamento que ensine. Nasce
dentro de cada um e desenvolve-se como conjunto de experiências. Procure um homem
que possa das à sua casa de saúde, além das características de um hospital eficiente pelo
perfeito planejamento das diversas sessões, um valor artístico indiscutível.

O valor artístico é um valor perene, enorme, inestimável. É um valor sem preço e sem
desgaste. Pelo contrário, aumenta com os anos à proporção que os homens se educam
para reconhecê-lo. O valor artístico subsiste até nas ruínas. Os anos correm e desgastam o
material, enquanto valorizam o espiritual.

Com a consciência limpa termino minha proposta. Está em suas mãos a responsabilidade
de decidir entre os caminhos. De um lado eu me coloco, não só, mas como representante
dos arquitetos brasileiros, defendendo a economia, a ordem e acima de tudo, o futuro. De
outro lado, o empirismo, a reação, a imprevisão.

Qualquer solução que você venha a dar não mudará as relações entre nós, nem sua opinião
futura sobre o que acabo de escrever. Se o prédio for bom, bem projetado, bem planejado,
por um bom arquiteto, você gostará, todos gostarão; se ele não prestar, se custar muito, se
não funcionar, ser for feio ou sem personalidade, sem valor artístico, sem plano nenhum, o
resultado será o mesmo. Em todos os dois casos você adquirirá experiência e acabará por
trabalhar sempre do meu lado e com os meus argumentos. Nós venceremos sempre como
eu queria demonstrar.

Pague pois o que eu pedi. É pouco em relação às vantagens futuras. Ou não pague, e as
vantagens serão as mesmas, para a sociedade evidentemente, não para você.

Com um abraço afetuoso do amigo certo,

Vilanova Artigas,
São Paulo, julho de 1945

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