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TONY TCHEKA
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DESENVOLVIMENTO
Arrefecida a euforia dos primeiros anos da libertação do jugo estrangeiro, a traição aos
ideais revolucionários anuviou o entusiasmo do passado recente e a auto colonização
recrudesceu, ulcerando a dignidade e o amor próprio da classe dirigente, ao lado do
descalabro dos governantes, desiludindo a população que, cada vez mais, foi buscar
possibilidades de sobrevivência fora do país. A falta de oportunidades profissionais na
Guiné Bissau, a estagnação económica, o mau estado da agricultura e das infra
estruturas sociais (provocando o êxodo rural), a ausência de indústrias que criariam
lugares de trabalho são muitas das razões que movem o emigrante: “É gente nossa
partindo/ desesperadamente/ semana/ a /semana/ vôo/ a/ vôo”, registra Tony Tcheka num
poema intitulado “Ilusão”, consciente da falácia dessa vã esperança (Tcheka, Noites de
insónia, p. 63).
A identificação com o meio social e físico onde cresceu e viveu tem grande relevância
para o posicionamento do indivíduo dentro da sociedade e em sua interação com ela, e
propicia uma ligação emocional com esse território. Desenvolve-se uma identidade
espacial que constitui uma necessidade emocional e psicológica do indivíduo (Mai, p. 5).
Longe, na cidade estrangeira, a saudade envolve o emigrante, ampliando na memória o
espaço físico
do torrão natal, o que pode provocar uma desestruturação no indivíduo, assunto muito
tratado nas ciências políticas e também presente na literatura guineense, como se vai
apresentar exemplarmente na lírica de Tony Tcheka.
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copo três/ tinto/do tinto que queima o peito/[...] manhãs de invernia/ em pleno verão/[...]
’uma sandes/ de chouriço’/ sem manteiga/[...] e mais.../ um copo/ e outro/ no papo seco/ é
uma ceia operária/ às duas da tarde./ Lisboa coisa boa/ disseram-me um dia!!!” (Noites de
insónia, p.58).
Carlos Lopes, em “Do poilão à cova”, um dos contos de Corte Geral, refere se ao costume
de muitos emigrantes que não dispensam os produtos da terra para assim, na situação de
marginalidade em que vivem, fazerem face emocionalmente a uma relação social
assimétrica, de outro modo insuportável: “Sobretudo os mais velhos não dispensavam os
sabores mais exóticos que tinham pautado a sua vida: papaia, mango (que nós não
dizemos isso no feminino), goiaba, mas sobretudo fole, azedinha, veludo e miséria. Para
já não falar de chabéu e outros suculentos molhos pré preparados. Essas coisas não se
vendem nos hipermercados, nem tão pouco ’baguitche’ ” (Lopes,p.36).
O africano procura adaptar se, pelo menos exteriormente, ao ambiente e aos costumes
europeus, vestindo-se e comportando-se como aqueles que os rodeiam, mas tem
consciência de continuar sendo um corpo estranho. Carlos Semedo, a primeira voz
poética guineense, como poema “Ansiedade”, datado de Bissau, 1962, enquadra-se muito
bem nessa temática. A saudade o atormenta e o emigrante anseia pelos ruídos, cores e
aromas de sua terra: “Visto fato/ de corte moderno/ gravata condizente// A camisa de
Vibra sintética/ assenta impecavelmente// Sou peça sombria/ d’uma Europa/ patética//
Minha África distante...// A saudade faz-me louco” (Semedo, [p.27]).
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Mais de uma década depois de ter escrito os poemas que integram seu livro inaugural,
Tony Tcheka mostra se, em “Guiné sabura que dói”, continuadamente solidário e
vinculado a seus compatriotas, com eles identificando se empaticamente. Em
“Diasporando”, empregando a primeira pessoa do plural, Tcheka define-se a si, e aos
demais marginalizados na grande metrópole, com dolorosas metáforas, chamando a
atenção para a vida mofina dos desterrados: “chegamos/ asados/ africanamente [...]/
sublimamos os partos adiados/ aprendemos a falar de boca fechada/ e a saborear a
saliva amarga de desgraça (“Guiné sabura”, p.38).
Tony Tcheka tematizou em muitos poemas a experiência da guerra intestina que abalou o
país de junho de 1998 a maio de 1999, quando a visão dos “magotes de guineenses” em
fuga arrancou-lhe pungentes e irados versos, como em “Êxodo”: “Balaios/ de mágoas/
corpos/ sofridos/dores/ encruadas/ cruzam-se em estradas/ de ninguém/ caras/ tisnadas
de sofrimento/ baldeados/ sem caminhos/ magotes/ de guineenses/ fugindo da sua Guiné/
terra seca/ insuflada/ de pólvoras/de ódio” (p.37).
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TERRA TÍSICA
terra sahel
POVO ADORMECIDO vento
cinzento
Há chuvas
esboçando
que o meu povo não canta voos amargos
Há chuvas movediços
que o meu povo não ri esperança a esvaiar
Perdeu a alma das alturas do futa djalon
na parede alta do macaréu -o bombolom
Fala calado lamina ventos
e canta magoado anuncia eventos
repica forte
Vinga-se no tambor e geme
na palma e no caju no corpo
mas o ritmo não sai do vento saheliano
Dobra-se sob o sikó dores saheis
como o guerreiro vergado em contravento
cala o sofrimento no peito
a seca
O meu povo é um gemido ululante
chora no canto sublimado
canta no choro nas cordas adelgaçadas
e fala na garganta do bombolon do nhanhero griot
Grei silêncio a chuva
quebrado que o vento
nas gargalhadas de Kussilintra levou
em quedas de água mora no imaginário
moldando pedras sumido
esfriando corpos de um choro
esculpidos sem tambores
no corpo do bissilão sem cana sem
lágrimas
o vento
deixou-nos
a ânsia gotejando
no pulmão da terra tísica
CONCLUSÃO
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E Concluímos com excertos de um longo poema do recente livro de TonyTcheka, como
título “Angulazada na Tugalândia!”,neologismos invulgares que ressaltam as diferentes
interseções dos ajustes e compromissos da aculturação, marcando a distância existente
entre os dois mundos, mas também a inevitável, e mesmo desejável, coexistência:
“Obtuso/ ângulo/na interceção/ de um tempo fronteira/ configurou se/ a 360 graus//
angulei//[...] e /quando o mar/ desadamastado/ anuiu aos encantos do korá/ o nhanhero
traçou a nobel rota/ cantado o último fado/ [...]//benzidas com cálices de porto e palma/ as
novas caravelas zarparam/ ligando o Tejo ao Geba/ sem adamastores e sem recear
bojadores// angulei/ voltei/ à terra branco das sete colinas/ de infantes conquistadores/ de
Camões e de Alegre/ de Eça e de Negreiros/ penas afiadas/ que cortaram amarras/ quais
santos milagreiros// – Capitães de Abril – // não vi a rainha santa/ mas saboreei a
multiplicação/ de cravos vermelhos/[...] rasgando sorrisos/ dessa lusa gente minha irmã//
[...] soltei/ o tempo/ fui às docas catingadas de suor antigo/ de cais em cais fui ouvindo
Zeca Afonso/ interpretado na dança das gaivotas// os soldados já não embarcam/ as
mães guardaram os lenços de acenos temerosos// uma lágrima de negro/ juntou se às
águas ternurentas do Tejo/ falando mantenhas de saudade da Guiné reencontrada// essa
Guiné que embala o sono/de soldadinhos de chumbo/ que nunca mais voltaram/ ao
regaço da Tugalândia// subi/ subi/ subi/ animei/ fui à Mouraria Alfama Bairro Alto/ becos
de saudade[...]// eu estava na Tugalândia/ sem mordaça//[...] fintei/ a saudade/ de um
espaço/ que não era meu[...]// lembrei/ tempos estéreis/ tempos em que/ eu/ tu/ nós/
éramos/ os outros/ o segundo/ o terceiro/ o quarto/ de um outro qualquer// regressei/ hoje
estou aqui/ sem lanhos biliosos/ aliviado de um peso/ que não é meu/ nem teu// e/ sem
precisar de/ crucificar caravelas/ ou de permutar/ santos e/ aguardentes// angulei//
exorcizei !“ (Guiné sabura, p.40).
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA