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Introdução
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Arthur Rogoski Gomes é Mestrando em Literatura pelo Programa de Pós Graduação em Literatura
da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Artigo escrito para disciplina de Crítica Feminista
e Estudos de Gênero sob orientação da Professora Dra. Rosana Cássia dos Santos. Março de 2021.
O personagem que tece a história é o carismático Ediwaldo Pedro de
Oliveira, profissional da renda de bilro, curioso aprendiz que na adolescência não
afetado pela pesca aproximou-se do fazer artístico da renda de bilro, ressignificando
a tradição manézinha2 estabelecida na comunidade destinada ao corpo masculino.
Ediwaldo é Dinho Rendeiro, homem gay em processo de envelhecimento, corpo em
trânsito, inquieto e revolucionário.
O documentário apresenta as vivências de Dinho enquanto um respiro acerca
do fazer tradicional da renda de Bilro, bem como elucida questões referente a
sexualidade, afetividade, velhice, o resgate de memórias e principalmente o lugar da
tradição nas vivências açorianas.
A partir da análise do documentário, proponho um olhar crítico acerca dos
papéis de gênero perpetuados pelas tradições, bem como o saber popular da renda
de bilro enquanto fruto de um imaginário binário estabelecido pela heterocisnorma,
causando estranhamento aos corpos que venham romper e ressignificar o lugar do
existir em tradição.
Desenvolvimento
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Expressão utilizada para descrever pessoas nascidas em Florianópolis-SC.
3
Ver Tradição - Dicio, Dicionário Online de Português. Acesso em 22/03/2021.
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Vale destacar que a pesca já era uma prática presente no litoral catarinense através dos Carijós.
Com a chegada dos europeus, o método da pesca foi modificado e assim inseriram-se novos modos
de pesca, mas não se pode inviabilizar que essa prática já existia por aqui. A legitimação da pesca
através dos europeus, além de ser uma prática colonial, é destacado por Moacir Ávila (2010, p. 17)
como um processo de ensinar os Carijós a “pescarem como gente”. Ver: Moacir Carlos Patricio
Avila.pdf (unesc.net), acesso em 24/03/2021.
afazeres para homens e mulheres brancos-europeus5. Enquanto os homens
pescavam, para trazer o alimento para casa, as mulheres cuidavam dos filhos e
assim utilizavam do fazer da renda de bilro como passa-tempo, utilizando das peças
para ornamentar casa e igrejas.
O lugar da empregabilidade e tradição que hoje conhecemos da renda, seu
fazer artístico e profissional, foi desenvolvendo seu caráter mercantil no processo
das décadas, afinal, a emancipação financeira da mulher não era uma problemática
do século XVIII no litoral catarinense, mas que mulher era essa?
A partir dessa construção dos papéis de gênero, o lugar da mulher enquanto
responsável pela perpetuação da renda de bilro foi cada vez mais pontuado, seu
fazer manual era legitimado pela pesca praticada pelos homens, surgindo assim a
célebre frase “onde há rede, há renda”.
No obra de Adrienne Rich (2010)6, o conceito de heterossexualidade
compulsória dialoga muito bem com as questões da tradição, principalmente ao
pensar que “[...] a heterossexualidade pode não ser uma “preferência”, mas algo
que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido por
força.”. Para além do desejo pelo gênero oposto, a heterossexualidade compulsória
é responsável por delimitar quais são as responsabilidades sociais dos corpos,
principalmente como o gênero deve ser orquestrado.
Ao adentrar na contemporaneidade, as discussões de gênero e sexualidade
foram reverberando não apenas nos modos comportamentais da sociedade como
também em sua composição. Perceber o lugar da tradição enquanto elemento de
perpetuação dos mecanismos das heterocisnormatividade é observar o passado
para que seja ressignificado o futuro da norma.
No documentário dirigido por Adriane Canan, As Rendas de Dinho, filmado e
produzido no ano de 2019 em Florianópolis, temos em cena o personagem principal
que é Dinho Rendeiro, figura conhecida e querida por todes7 no Pantâno do Sul.
Este que aprende a tecer a renda com sua prima, filho de militar, criado em uma vila
de pescadores, é agente de ressignificação e reescrita de uma tradição delimitada
pelos papéis de gênero.
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Destaco aqui o local da branquitude-eurocentrada para que se possa observar quais corpos detém
as “liberdades” de escolha.
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RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas - Estudos gays:
gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, 2010.
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Utilizo a terminologia todes de modo a reconhecer todas as expressões de gênero.
A tradição presente na comunidade onde Dinho nasceu delimita os lugares
destinados aos corpos, ou seja, para os homens o manuseio da rede de pesca e
para as mulheres a renda de bilro. Para ele, a prática da renda ensinada pela prima
Nezinha às escondidas, organiza-se não apenas enquanto perpetuação e
valorização da cultura popular, mas como ressignificação dos binarismos de gênero
influenciados pela tradição.
O choque da sociedade da heterocisnorma ao reconhecer Dinho enquanto
um agente cultural, que perpetua a tradição porém ressignificando-a, é perceptível
nos relatos durante a obra audiovisual. Para além de demarcar na história a
existência política de Dinho, o cinema que aborda a linguagem do gênero e da
sexualidade desviante, ou melhor des(viada), age como material pedagógico de
emancipação de narrativas marginais, formando plateia crítica e atenta para as
problemáticas do gênero.
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Imagem 1: Dinho rendeiro no Mercado Público. Foto por Pedro Mafalda, 2015.
Ainda que no documentário Dinho narre suas histórias e vivências enquanto
um homem gay que vem a romper com a tradição estabelecida aos corpos
masculinos e femininos logo em sua adolescência, é importante observar o recorte
temporal, espacial e de classe9 do sujeito.
Dinho valoriza as tradições, perpetua através de sua prática artística o lugar
da tradição, mesmo ele sendo um corpo abjeto. É perceptível durante o
documentário o lugar do querer fazer parte da tradição a partir de seu modo de
existir, sem inviabilizar a história dos processos culturais mantidos na cidade.
Os espaços legitimados através da tradição possibilitam que determinados
corpos detenham o lugar a ser aceito perante a sociedade. Para o professor Clóvis
de Barros Filho, em seu curso O Pensamento de Bourdieu,
[...] a ideia de legitimidade é um atributo do exercício de poder. É o
poder que é legítimo. E o poder é legítimo quando ele é exercido por
alguém que é entendido como autorizado para exercê-lo. E quando é
que alguém é entendido como autorizado para exercê-lo? Quando
este alguém ocupa uma posição social que o autoriza a exercer.
(FILHO, 2015, p. 15)10
E quando esse corpo que detém o poder não é legítimo a essa ação? Dinho
detém o poder acerca do fazer a renda de bilro, ensina e compartilha conhecimento
para outras pessoas a praticarem e a perpetuarem a cultura da renda, mas essa
posição por diversas vezes não é legitimada. Clóvis questiona
E quando é que o poder não é legítimo? Quando ele não é aceito
como autorizado. Quando quem exerce o poder não é entendido
como autorizado para exercê-lo. E quando é que isso acontece?
Quando esse alguém não ocupa uma posição de direito. Em outras
palavras, toda vez que uma situação de fato que autoriza o poder, ela
se transforma num poder legítimo, ela só fará isso se esta situação
de fato esconder o arbitrário da gênese da sua condição por
intermédio de um regulador, que mascarando essa situação de fato,
torne o exercício do poder aceitável.
Assim, o lugar de Dinho enquanto agente cultural é legitimado por corpos que
não detém o poder, não é por menos que a direção do documentário seja de
Adriane Canan, mulher, mãe-solo, nascida e criada no interior do oeste catarinense,
agente cultural que por diversas vezes teve sua prática artística deslegitimada.
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É necessária a observação dos diálogos entre luta de classes, gênero e sexualidade para que se
possa ter uma dimensão de quais corpos são abjetificados e também quais são os maiores
violentados diante disso.
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Ver em <Bourdieu, aula 3 legitimidade by Espaço Ética - issuu>. Acesso em 24/03/2021.
Quando o existir político de Dinho rompe com a tradição e assim ressignifica
a mesma, sem inviabilizar a existência de práticas subversivas aos papéis de
gênero, sua arte transgride e torna-se elemento de referência para que outros
corpos possam ocupar diferentes espaços sem seguir a lógica da heterocisnorma.
Ainda que as discussões de sexualidade e gênero venham a possibilitar o
olhar crítico acerca da construção dos dispositivos de poder, vale destacar que as
engrenagens do CIStema11 delimita os lugares sociais a serem ocupados por
determinados corpos.
Dinho enquanto um homem branco, cisgênero, gay, morador do Pantâno do
Sul, teve em seu processo de guerrilha a fuga do lugar que o violentava. A
heterocisnorma faz de nossos corpos um eterno exílio. Dinho morou em São Paulo
e logo depois partiu para o Canadá, onde pôde exercer sua sexualidade sem que as
violências limitassem seu existir. Ainda que os privilégios tenham possibilitado o seu
reconhecimento e o processo de emancipação, o lugar do corpo abjeto é sempre o
espaço fronteiriço entre o ser aceito e a recusa.
Para Pocahy & Dornelles (2010) “um corpo abjeto, muitas vezes, é tornado
objeto exemplar de punição àqueles e àquelas que ousarem cruzar as fronteiras da
norma, do que é estabelecido como normal.” (p. 130). E cruzar as fronteiras da
norma é ser um corpo agente de transformação sócio-cultural, mesmo que as dores
e dissabores sejam naturalizadas pelo CIStema.
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Termo proposto para descrever o poder da cisgeneridade em gerir os corpos.
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Imagem 2: screenshot do documentário As Rendas de Dinho.
lugares de fala e abrir caminho para que as violências sejam naturalizadas. Não
deve-se dissociar sexualidade e gênero da luta de classes.
Embora os significados possam variar de uma cultura para outra,
qualquer sistema de sexo-gênero está sempre intimamente
interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade. Sob
essa ótica, a construção cultural do sexo em gênero e a assimetria
que caracteriza todos os sistemas de gênero através das diferentes
culturas (embora cada qual de seu modo) são entendidas como
sendo “sistematicamente ligadas à organização da desigualdade
social”. (LAURETIS, 1994, p. 211)
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Não me debruçarei a especificar teoricamente a cultura popular. Para isso, ver ARANTES, Antonio
Augusto. O que é cultura popular. São Paulo, Brasiliense (Primeiros Passos), 1981.
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Termo utilizado para descrever e identificar corpos não hegemônicos, grotescos, abjetos, travestis,
bichas afeminadas e todas aquelas expressões não reconhecidas como “normais” perante a norma
heterocentrada.
Sendo o protagonista um homem gay, praticando a renda, ação essa estabelecida
pela tradição enquanto espaço destinado às mulheres, a obra caberia neste
catálogo?
Para Nagime (2016), "pensando sob o prisma da transgressão, boa parte do
que hoje consideramos como principais filmes representativos do cinema queer
apresentam personagens que rompem regras e são marginalizadas da sociedade”
(NAGIME, 2016, p.48.). O cinema queer é uma ruptura, não apenas em apresentar
vivências LGBTQIA+15, como em As Rendas de Dinho, mas em auxiliar na
reverberação de narrativas que rompem com a heterossexualidade compulsória,
elencada por Rich.
A composição de um cinema queer diz respeito também, segundo Nagime
”[...] à sexualidade dos artistas responsáveis pelo filme, seja atrás das câmeras (em
especial, mas não somente na direção, roteiro e produção) ou à frente delas.”
(NAGIME, 2016, p. 49). É o protagonismo que entra em cena, de modo que o lugar
de fala seja potencializado.
Em As Rendas de Dinho, a direção fica por conta de uma mulher
heterossexual, que diante da heterossexualidade compulsória desdobra-se
enquanto feminista e ativista pela mulher do campo e trabalhadora da cultura. O
lugar de fala da diretora também é marginalizado. Assim, o documentário não faria
parte de um cinema queer, mas sim um cinema revolucionário do gênero.
Ainda que as identidades queers venham a subverter os padrões sociais e
emancipar vivências marginais, o cinema brasileiro que dialoga com as temáticas de
gênero e sexualidade, por diversas vezes, encontra-se no lugar da guerrilha. Os
protagonismos de LGBTQIA+, mulheres, povos originários, negros e negras, no
cenário cultural brasileiro foi e continua sendo negligenciado, seja pelas políticas
públicas de um governo fascista ou pela recepção de um público careta.
Fazendo parte do cinema queer ou não, As Rendas de Dinho é
representativo ao marcar na história o reconhecimento de um corpo político,
subversivo, agente de transformação e de pedagogia cultural que é Ediwaldo Pedro
de Oliveira. Um homem gay, em processo de envelhecimento, nativo de
Florianópolis e que encontrou no fazer da renda de bilro o seu potencial de
existência.
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Sigla correspondente a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneres, travestis, queers, intersexos,
assexuais e outros.
A tradição é um processo intenso de reprodução dos papéis de gênero e
cabe assim observar quem somos nós diante da tradição. Ainda que seja
naturalizado o lugar binário do homem e da mulher, esse lugar é validado pela
heterossexualidade-cisgênera-branca, cabendo aos corpos que venham a interferir
nesse CIStema a invalidade da existência. O existir de Dinho é político, age
enquanto fator de reescrever a tradição manézinha e assim o documentário pontua
do início ao fim.
O cinema para Lauretis é uma tecnologia do gênero, é o lugar que a partir
das discussões apresenta novos olhares para as reproduções do corpo generificado
ou ainda enraíza o centramento e universalização do corpo aceito. Para a autora
[...] a construção do gênero ocorre hoje através das várias
tecnologias do gênero (p. ex., o cinema) e discursos institucionais (p.
ex. a teoria) com poder de controlar o campo do significado social e
assim produzir, promover e “implantar” representações de gênero.
Mas os termos para uma construção para uma construção diferente
do gênero também existem, nas margens dos discursos
hegemônicos. Propostos de fora do contrato social heterossexual, e
inscritos em práticas micropolíticas, tais termos podem também
contribuir para a construção do gênero e seus efeitos ocorrem ao
nível “local” de resistências, na subjetividade e na
auto-representação. (LAURETIS, p. 228)
Conclusão
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Imagem 3: screenshot do documentário As Rendas de Dinho.
A tradição manézinha construída a partir dos binarismos de gênero, é um
campo de pesquisa fértil, principalmente nos ditos populares e no que temos hoje
enquanto cultura popular no litoral catarinense. Para além do lugar da tradição,
corpos dissidentes são agentes de suas próprias narrativas e culturas, seja através
do ato de se maquiar e agir enquanto personagem nas festas populares, como é
mostrado no documentário, mas também no ato de demarcar na história espaços de
existência.
Os papéis sociais destinados ao sistema sexo-gênero, criados e fortemente
pautados pelo CIStema da heterocisnorma, estão em constante ressiginificação e
suas obrigatoriedades através da heterossexualidade compulsória caminham para
que se borre as narrativas naturalizadas das funções sociais aos corpos.
As memórias de Dinho Rendeiro, o resgate de suas vivências e a inquietação
de seu corpo político, colaboram para que possamos nós, LGBTQIA+, nos
sentirmos parte da sociedade construída nas exclusões, mas principalmente
possibilitar que outras narrativas abjetas sejam resgatadas e reivindicadas.
Enquanto houver um corpo fronteiriço e marginal tornando-se estatística, a
luta pelo lugar de fala será constante. As tradições existem para que possamos
ressignificá-las e adaptá-las no desenvolvimento das sociedades. Perpetuar o
enraizamento daquilo que afeta diretamente os corpos generificados colabora para
que as violências sejam naturalizadas.
Diante do documentário As Rendas de Dinho, o resgate de um cinema
catarinense LGBTQIA+ é força para que novas produções sejam realizadas e que
ocorra visibilidade para as discussões que afetam nossos corpos e nossas
memórias.