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AS RENDAS DE DINHO: A RESSIGNIFICAÇÃO DOS PAPÉIS DE

GÊNERO NA TRADIÇÃO DA RENDA DE BILRO EM


FLORIANÓPOLIS-SC

Arthur Rogoski Gomes1


Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar o documentário As Rendas de Dinho


(2019), com direção de Adriane Canan, realizado em Florianópolis-SC. O
documentário narra a vida de Dinho, homem gay, nascido na comunidade do
Pântano do Sul, com forte cultura açoriana. Dinho descobriu cedo seu interesse pela
renda com sua prima, mas diante da tradição que delimita os papéis de gênero,
escondeu-se por medo das repressões. Através do fazer artístico, Dinho ressignifica
a tradição, rompe com expectativa da heterocisnorma e reescreve a cultura
manézinha. Pretende-se através deste artigo observar como a tradição age
enquanto perpetuação dos lugares aceitos aos corpos.

Palavras-chave: tradição; heterocisnorma; papéis de gênero; cinema.

Introdução

Os processos da construção das identidades de gênero e de sexualidades


perpassam também pelos ritos sociais criados a partir das tradições. Os papéis de
gênero que dialogam com o binarismo homem e mulher, agem diversas vezes a
partir das tradições criadas pela humanidade como fios condutores de perpetuação
das relações de poder, auxiliando na enraizamento da hetorocisnormatividade.
Para elucidar os questionamentos acerca da tradição como potencial de
perpetuação dos papéis de gênero, analiso o documentário dirigido pela cineasta
Adriane Canan em 2019, na cidade de Florianópolis-SC, As Rendas de Dinho. O
cenário é a região ao sul da ilha, na comunidade do Pântano do Sul, vila conhecida
pela tradição da pesca e da renda de bilro, além das belezas naturais que enchem
os olhos.

1
Arthur Rogoski Gomes é Mestrando em Literatura pelo Programa de Pós Graduação em Literatura
da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. Artigo escrito para disciplina de Crítica Feminista
e Estudos de Gênero sob orientação da Professora Dra. Rosana Cássia dos Santos. Março de 2021.
O personagem que tece a história é o carismático Ediwaldo Pedro de
Oliveira, profissional da renda de bilro, curioso aprendiz que na adolescência não
afetado pela pesca aproximou-se do fazer artístico da renda de bilro, ressignificando
a tradição manézinha2 estabelecida na comunidade destinada ao corpo masculino.
Ediwaldo é Dinho Rendeiro, homem gay em processo de envelhecimento, corpo em
trânsito, inquieto e revolucionário.
O documentário apresenta as vivências de Dinho enquanto um respiro acerca
do fazer tradicional da renda de Bilro, bem como elucida questões referente a
sexualidade, afetividade, velhice, o resgate de memórias e principalmente o lugar da
tradição nas vivências açorianas.
A partir da análise do documentário, proponho um olhar crítico acerca dos
papéis de gênero perpetuados pelas tradições, bem como o saber popular da renda
de bilro enquanto fruto de um imaginário binário estabelecido pela heterocisnorma,
causando estranhamento aos corpos que venham romper e ressignificar o lugar do
existir em tradição.

Desenvolvimento

“Ilha da moça faceira da velha rendeira tradicional”


(Hino Oficial de Florianópolis, de Cláudio Alvim)

Segundo o dicionário online Dicio3 tradição é o ato de entregar, de


perpetuação de hábitos, de transmissão. Esses hábitos podem estar na oralidade,
no vestuário, na gastronomia, nas artes e em diferentes espaços. É na tradição que
a heterocisnorma enquanto sistema sexo-gênero, estabelece os papéis destinados
aos corpos e suas utilidades.
Através da chegada dos Açorianos no litoral catarinense, na metade do
século XVIII, a pesca4 e a renda de bilro foram elementos que delimitaram os

2
Expressão utilizada para descrever pessoas nascidas em Florianópolis-SC.
3
Ver Tradição - Dicio, Dicionário Online de Português. Acesso em 22/03/2021.
4
Vale destacar que a pesca já era uma prática presente no litoral catarinense através dos Carijós.
Com a chegada dos europeus, o método da pesca foi modificado e assim inseriram-se novos modos
de pesca, mas não se pode inviabilizar que essa prática já existia por aqui. A legitimação da pesca
através dos europeus, além de ser uma prática colonial, é destacado por Moacir Ávila (2010, p. 17)
como um processo de ensinar os Carijós a “pescarem como gente”. Ver: Moacir Carlos Patricio
Avila.pdf (unesc.net), acesso em 24/03/2021.
afazeres para homens e mulheres brancos-europeus5. Enquanto os homens
pescavam, para trazer o alimento para casa, as mulheres cuidavam dos filhos e
assim utilizavam do fazer da renda de bilro como passa-tempo, utilizando das peças
para ornamentar casa e igrejas.
O lugar da empregabilidade e tradição que hoje conhecemos da renda, seu
fazer artístico e profissional, foi desenvolvendo seu caráter mercantil no processo
das décadas, afinal, a emancipação financeira da mulher não era uma problemática
do século XVIII no litoral catarinense, mas que mulher era essa?
A partir dessa construção dos papéis de gênero, o lugar da mulher enquanto
responsável pela perpetuação da renda de bilro foi cada vez mais pontuado, seu
fazer manual era legitimado pela pesca praticada pelos homens, surgindo assim a
célebre frase “onde há rede, há renda”.
No obra de Adrienne Rich (2010)6, o conceito de heterossexualidade
compulsória dialoga muito bem com as questões da tradição, principalmente ao
pensar que “[...] a heterossexualidade pode não ser uma “preferência”, mas algo
que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido por
força.”. Para além do desejo pelo gênero oposto, a heterossexualidade compulsória
é responsável por delimitar quais são as responsabilidades sociais dos corpos,
principalmente como o gênero deve ser orquestrado.
Ao adentrar na contemporaneidade, as discussões de gênero e sexualidade
foram reverberando não apenas nos modos comportamentais da sociedade como
também em sua composição. Perceber o lugar da tradição enquanto elemento de
perpetuação dos mecanismos das heterocisnormatividade é observar o passado
para que seja ressignificado o futuro da norma.
No documentário dirigido por Adriane Canan, As Rendas de Dinho, filmado e
produzido no ano de 2019 em Florianópolis, temos em cena o personagem principal
que é Dinho Rendeiro, figura conhecida e querida por todes7 no Pantâno do Sul.
Este que aprende a tecer a renda com sua prima, filho de militar, criado em uma vila
de pescadores, é agente de ressignificação e reescrita de uma tradição delimitada
pelos papéis de gênero.

5
Destaco aqui o local da branquitude-eurocentrada para que se possa observar quais corpos detém
as “liberdades” de escolha.
6
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas - Estudos gays:
gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, 2010.
7
Utilizo a terminologia todes de modo a reconhecer todas as expressões de gênero.
A tradição presente na comunidade onde Dinho nasceu delimita os lugares
destinados aos corpos, ou seja, para os homens o manuseio da rede de pesca e
para as mulheres a renda de bilro. Para ele, a prática da renda ensinada pela prima
Nezinha às escondidas, organiza-se não apenas enquanto perpetuação e
valorização da cultura popular, mas como ressignificação dos binarismos de gênero
influenciados pela tradição.
O choque da sociedade da heterocisnorma ao reconhecer Dinho enquanto
um agente cultural, que perpetua a tradição porém ressignificando-a, é perceptível
nos relatos durante a obra audiovisual. Para além de demarcar na história a
existência política de Dinho, o cinema que aborda a linguagem do gênero e da
sexualidade desviante, ou melhor des(viada), age como material pedagógico de
emancipação de narrativas marginais, formando plateia crítica e atenta para as
problemáticas do gênero.

8
Imagem 1: Dinho rendeiro no Mercado Público. Foto por Pedro Mafalda, 2015.
Ainda que no documentário Dinho narre suas histórias e vivências enquanto
um homem gay que vem a romper com a tradição estabelecida aos corpos
masculinos e femininos logo em sua adolescência, é importante observar o recorte
temporal, espacial e de classe9 do sujeito.
Dinho valoriza as tradições, perpetua através de sua prática artística o lugar
da tradição, mesmo ele sendo um corpo abjeto. É perceptível durante o
documentário o lugar do querer fazer parte da tradição a partir de seu modo de
existir, sem inviabilizar a história dos processos culturais mantidos na cidade.
Os espaços legitimados através da tradição possibilitam que determinados
corpos detenham o lugar a ser aceito perante a sociedade. Para o professor Clóvis
de Barros Filho, em seu curso O Pensamento de Bourdieu,
[...] a ideia de legitimidade é um atributo do exercício de poder. É o
poder que é legítimo. E o poder é legítimo quando ele é exercido por
alguém que é entendido como autorizado para exercê-lo. E quando é
que alguém é entendido como autorizado para exercê-lo? Quando
este alguém ocupa uma posição social que o autoriza a exercer.
(FILHO, 2015, p. 15)10

E quando esse corpo que detém o poder não é legítimo a essa ação? Dinho
detém o poder acerca do fazer a renda de bilro, ensina e compartilha conhecimento
para outras pessoas a praticarem e a perpetuarem a cultura da renda, mas essa
posição por diversas vezes não é legitimada. Clóvis questiona
E quando é que o poder não é legítimo? Quando ele não é aceito
como autorizado. Quando quem exerce o poder não é entendido
como autorizado para exercê-lo. E quando é que isso acontece?
Quando esse alguém não ocupa uma posição de direito. Em outras
palavras, toda vez que uma situação de fato que autoriza o poder, ela
se transforma num poder legítimo, ela só fará isso se esta situação
de fato esconder o arbitrário da gênese da sua condição por
intermédio de um regulador, que mascarando essa situação de fato,
torne o exercício do poder aceitável.

Assim, o lugar de Dinho enquanto agente cultural é legitimado por corpos que
não detém o poder, não é por menos que a direção do documentário seja de
Adriane Canan, mulher, mãe-solo, nascida e criada no interior do oeste catarinense,
agente cultural que por diversas vezes teve sua prática artística deslegitimada.

9
É necessária a observação dos diálogos entre luta de classes, gênero e sexualidade para que se
possa ter uma dimensão de quais corpos são abjetificados e também quais são os maiores
violentados diante disso.
10
Ver em <Bourdieu, aula 3 legitimidade by Espaço Ética - issuu>. Acesso em 24/03/2021.
Quando o existir político de Dinho rompe com a tradição e assim ressignifica
a mesma, sem inviabilizar a existência de práticas subversivas aos papéis de
gênero, sua arte transgride e torna-se elemento de referência para que outros
corpos possam ocupar diferentes espaços sem seguir a lógica da heterocisnorma.
Ainda que as discussões de sexualidade e gênero venham a possibilitar o
olhar crítico acerca da construção dos dispositivos de poder, vale destacar que as
engrenagens do CIStema11 delimita os lugares sociais a serem ocupados por
determinados corpos.
Dinho enquanto um homem branco, cisgênero, gay, morador do Pantâno do
Sul, teve em seu processo de guerrilha a fuga do lugar que o violentava. A
heterocisnorma faz de nossos corpos um eterno exílio. Dinho morou em São Paulo
e logo depois partiu para o Canadá, onde pôde exercer sua sexualidade sem que as
violências limitassem seu existir. Ainda que os privilégios tenham possibilitado o seu
reconhecimento e o processo de emancipação, o lugar do corpo abjeto é sempre o
espaço fronteiriço entre o ser aceito e a recusa.
Para Pocahy & Dornelles (2010) “um corpo abjeto, muitas vezes, é tornado
objeto exemplar de punição àqueles e àquelas que ousarem cruzar as fronteiras da
norma, do que é estabelecido como normal.” (p. 130). E cruzar as fronteiras da
norma é ser um corpo agente de transformação sócio-cultural, mesmo que as dores
e dissabores sejam naturalizadas pelo CIStema.

11
Termo proposto para descrever o poder da cisgeneridade em gerir os corpos.
12

Enquanto local de análise, pensar os papéis de gênero é direcionar o


pensamento para a observação das construções sociais destinadas ao gênero. Para
Preciado (2017), a constrassexualidade é o projeto que venha dilacerar o local do
gênero na sociedade, ainda que esta possibilidade seja um longo processo de
subversão das normas sociais. O lugar do corpo enquanto ressignificação dos
padrões criados pelo sistema da hetorocisnorma é possível, assim
A contrassexualidade tem por objeto de estudo as transformações
tecnológicas dos corpos sexuados e generizados. Ela não rejeita a
hipótese das construções sociais ou psicológicas do gênero, mas as
ressitua como mecanismos, estratégias e usos em um sistema
tecnológico mais amplo. (PRECIADO, 2017, p. 24)

Me interesso pela filosofia de Preciado, principalmente por colaborar com a


ressignificação dos espaços possíveis aos corpos generificados. Como Dinho que
se ocupou da tradição para reescrever-lá, o lugar estabelecido aos corpos é
possível de ocupação e subversão, porém o processo muitas vezes é carregado de
violências e inquietações.
É importante ressaltar que as discussões de gênero e sexualidade
necessitam de um olhar crítico também para o recorte das camadas sociais. Falar
de gênero e sexualidade sem observar o lugar do corpo no mundo é negligenciar

12
Imagem 2: screenshot do documentário As Rendas de Dinho.
lugares de fala e abrir caminho para que as violências sejam naturalizadas. Não
deve-se dissociar sexualidade e gênero da luta de classes.
Embora os significados possam variar de uma cultura para outra,
qualquer sistema de sexo-gênero está sempre intimamente
interligado a fatores políticos e econômicos em cada sociedade. Sob
essa ótica, a construção cultural do sexo em gênero e a assimetria
que caracteriza todos os sistemas de gênero através das diferentes
culturas (embora cada qual de seu modo) são entendidas como
sendo “sistematicamente ligadas à organização da desigualdade
social”. (LAURETIS, 1994, p. 211)

Ainda que a cultura popular13 seja ampla e abrangente, o lugar de poder da


heterocisnorma delimita o que é cultura e quem pode usufruir dela. Para além da
colonização européia no litoral catarinense, o espaço dos corpos abjetos ressignifica
o que é cultura popular e o seu fazer.
No documentário é perceptível as relações históricas que Dinho resgata,
principalmente ao narrar um passado que se orgulha muito. Encontrar nesse
resgate as vivências que compuseram o sujeito, a narrativa audiovisual é
responsável por marcar no tempo e no público o lugar de fala de corpos LGBTQIA+,
suas memórias, desejos e perspectivas.
No recorte da linguagem, o cinema nacional vem cada vez mais
apresentando as vivências dissidentes enquanto protagonistas de suas próprias
histórias. Com a ascensão de um governo fascista e que marginaliza as discussões
de gênero e sexualidade, a arte torna-se elemento de revolução, mais uma vez, e
possibilita que histórias antes não narradas venham à tona. Transforma-se assim a
dor em potencial artístico.
É através da necessidade em apresentar Dinho Rendeiro e suas histórias
para o grande público que o documentário é criado. Aliado das discussões que
evidenciam o processo subjetivo de Dinho, a abordagem de um cinema com a pauta
de sexualidade e gênero é encontrada na obra, afinal, a subversão cultural e social,
mesmo que alinhada com as vivências tradicionais, nos é apresentado pelo homem
gay, sendo a narrativa construída a partir desse lugar.
Ainda que na contemporaneidade o diálogo acerca de corpos queers14 surja
com maior frequência, o documentário As Rendas de Dinho seria um cinema queer?

13
Não me debruçarei a especificar teoricamente a cultura popular. Para isso, ver ARANTES, Antonio
Augusto. O que é cultura popular. São Paulo, Brasiliense (Primeiros Passos), 1981.
14
Termo utilizado para descrever e identificar corpos não hegemônicos, grotescos, abjetos, travestis,
bichas afeminadas e todas aquelas expressões não reconhecidas como “normais” perante a norma
heterocentrada.
Sendo o protagonista um homem gay, praticando a renda, ação essa estabelecida
pela tradição enquanto espaço destinado às mulheres, a obra caberia neste
catálogo?
Para Nagime (2016), "pensando sob o prisma da transgressão, boa parte do
que hoje consideramos como principais filmes representativos do cinema queer
apresentam personagens que rompem regras e são marginalizadas da sociedade”
(NAGIME, 2016, p.48.). O cinema queer é uma ruptura, não apenas em apresentar
vivências LGBTQIA+15, como em As Rendas de Dinho, mas em auxiliar na
reverberação de narrativas que rompem com a heterossexualidade compulsória,
elencada por Rich.
A composição de um cinema queer diz respeito também, segundo Nagime
”[...] à sexualidade dos artistas responsáveis pelo filme, seja atrás das câmeras (em
especial, mas não somente na direção, roteiro e produção) ou à frente delas.”
(NAGIME, 2016, p. 49). É o protagonismo que entra em cena, de modo que o lugar
de fala seja potencializado.
Em As Rendas de Dinho, a direção fica por conta de uma mulher
heterossexual, que diante da heterossexualidade compulsória desdobra-se
enquanto feminista e ativista pela mulher do campo e trabalhadora da cultura. O
lugar de fala da diretora também é marginalizado. Assim, o documentário não faria
parte de um cinema queer, mas sim um cinema revolucionário do gênero.
Ainda que as identidades queers venham a subverter os padrões sociais e
emancipar vivências marginais, o cinema brasileiro que dialoga com as temáticas de
gênero e sexualidade, por diversas vezes, encontra-se no lugar da guerrilha. Os
protagonismos de LGBTQIA+, mulheres, povos originários, negros e negras, no
cenário cultural brasileiro foi e continua sendo negligenciado, seja pelas políticas
públicas de um governo fascista ou pela recepção de um público careta.
Fazendo parte do cinema queer ou não, As Rendas de Dinho é
representativo ao marcar na história o reconhecimento de um corpo político,
subversivo, agente de transformação e de pedagogia cultural que é Ediwaldo Pedro
de Oliveira. Um homem gay, em processo de envelhecimento, nativo de
Florianópolis e que encontrou no fazer da renda de bilro o seu potencial de
existência.

15
Sigla correspondente a lésbicas, gays, bissexuais, transgêneres, travestis, queers, intersexos,
assexuais e outros.
A tradição é um processo intenso de reprodução dos papéis de gênero e
cabe assim observar quem somos nós diante da tradição. Ainda que seja
naturalizado o lugar binário do homem e da mulher, esse lugar é validado pela
heterossexualidade-cisgênera-branca, cabendo aos corpos que venham a interferir
nesse CIStema a invalidade da existência. O existir de Dinho é político, age
enquanto fator de reescrever a tradição manézinha e assim o documentário pontua
do início ao fim.
O cinema para Lauretis é uma tecnologia do gênero, é o lugar que a partir
das discussões apresenta novos olhares para as reproduções do corpo generificado
ou ainda enraíza o centramento e universalização do corpo aceito. Para a autora
[...] a construção do gênero ocorre hoje através das várias
tecnologias do gênero (p. ex., o cinema) e discursos institucionais (p.
ex. a teoria) com poder de controlar o campo do significado social e
assim produzir, promover e “implantar” representações de gênero.
Mas os termos para uma construção para uma construção diferente
do gênero também existem, nas margens dos discursos
hegemônicos. Propostos de fora do contrato social heterossexual, e
inscritos em práticas micropolíticas, tais termos podem também
contribuir para a construção do gênero e seus efeitos ocorrem ao
nível “local” de resistências, na subjetividade e na
auto-representação. (LAURETIS, p. 228)

A responsabilidade social que uma obra audiovisual detém ao abordar as


temáticas de gênero e sexualidade são necessárias para que não se reproduzam os
lugares das violências, afinal, somos agentes de nossas próprias histórias e as
violências são de responsabilidade da heterocisnorma.
Somos arte, somos história e agimos enquanto ruptura do CIStema, por mais
que todas as violências cometidas contra nossas independências tentem nos
silenciar. O lugar do corpo político é de agência cultural, é de ruptura no tempo e no
espaço. Encontramos em nós aquilo que nos foi silenciado e apagado por tanto
tempo, a esperança que diante da dor possamos dizer e existir.
O documentário é um sopro na normatividade narrada que por tanto tempo
agiu sobre nossas vivências, ou ainda, sobre os estereótipos de gênero que nos
catalogam. Somos pesquisadores, rendeiros, arte-educadores, professores e
principalmente aquilo que quisermos ser.
16

Conclusão

O documentário As Rendas de Dinho além de ser um marco nos diálogos de


sexualidade e gênero em Santa Catarina, colabora para que a ruptura dos papéis de
gênero na tradição sejam discutidos e apresentados ao público. Pensar narrativas
LGBTQIA+ enquanto ruptura da tradição, também é um fator importante quando a
tradição da heterocisnorma nos é concebida enquanto processo de reprodução.
O lugar da heterossexualidade compulsória, tão legitimada e naturalizada na
história da humanidade, desvenda o corpo abjeto enquanto um lugar a ser violado e
inviabilizado, principalmente aqueles que ocupam classes inferiores da norma.
Reitero a importância de se aliar os estudos de gênero e sexualidade com as
discussões de classe, tempo e espaço.
As discussões de gênero e sexualidade são interseccionais, se cruzam,
rompem fronteiras e estabelecem novos caminhos a pensar não apenas o fazer
artístico, mas também os processos de subjetivação. Dinho valoriza a tradição,
possibilita ao compartilhar suas experiências através da renda que ela não seja
esquecida e se perca diante da força do capitalismo.

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Imagem 3: screenshot do documentário As Rendas de Dinho.
A tradição manézinha construída a partir dos binarismos de gênero, é um
campo de pesquisa fértil, principalmente nos ditos populares e no que temos hoje
enquanto cultura popular no litoral catarinense. Para além do lugar da tradição,
corpos dissidentes são agentes de suas próprias narrativas e culturas, seja através
do ato de se maquiar e agir enquanto personagem nas festas populares, como é
mostrado no documentário, mas também no ato de demarcar na história espaços de
existência.
Os papéis sociais destinados ao sistema sexo-gênero, criados e fortemente
pautados pelo CIStema da heterocisnorma, estão em constante ressiginificação e
suas obrigatoriedades através da heterossexualidade compulsória caminham para
que se borre as narrativas naturalizadas das funções sociais aos corpos.
As memórias de Dinho Rendeiro, o resgate de suas vivências e a inquietação
de seu corpo político, colaboram para que possamos nós, LGBTQIA+, nos
sentirmos parte da sociedade construída nas exclusões, mas principalmente
possibilitar que outras narrativas abjetas sejam resgatadas e reivindicadas.
Enquanto houver um corpo fronteiriço e marginal tornando-se estatística, a
luta pelo lugar de fala será constante. As tradições existem para que possamos
ressignificá-las e adaptá-las no desenvolvimento das sociedades. Perpetuar o
enraizamento daquilo que afeta diretamente os corpos generificados colabora para
que as violências sejam naturalizadas.
Diante do documentário As Rendas de Dinho, o resgate de um cinema
catarinense LGBTQIA+ é força para que novas produções sejam realizadas e que
ocorra visibilidade para as discussões que afetam nossos corpos e nossas
memórias.

“Ilha das besha guerreira


da mona rendeira
bora luta!”
(Hino (des)viado de Florianópolis, por Arthur R. Gomes)
Referências

FILHO, Clóvis de Barros. Curso: O pensamento de Bourdieu, aula 3: legitimidade.


Espaço Ética, São Paulo, 2015.

LAURETIS, Teresa. A tecnologia de gênero. In: HOLLANDA, Heloisa B. (Orgª).


Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco.
p. 206-241, 1994.

NAGIME, Mateus. Em busca das origens de um cinema queer no Brasil.


Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016.

PRECIADO, Paul B. Manifesto Contrassexual; Tradução Maria Paula Gurgel


Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2017.

RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Bagoas -


Estudos gays: gêneros e sexualidades, v. 4, n. 05, 2010.

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