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Acta Urológica 2003, 20; 3: 51-55 51

Microlitiase testicular:
apresentação de 3 casos clínicos
e revisão da literatura

José Pedro Cadilhe, M. Ramos, F. Marcelo, A. Pimenta

Serviço de Urologia – Hospital Geral de Santo António – Porto – Portugal

Correspondência: José Pedro Cadilhe


Rua Dr. Manuel Monteiro, nº9, 4490 PÓVOA DE VARZIM
Tel. 252 617 083 – Tlm. 919 877 171– E-mail: jpcadilhe@oninet.pt

Resumo

Introdução: A microlitíase testicular (MT) é uma patologia pouco comum que atinge
geralmente os dois testículos e é caracterizada por pequenas calcificações no lumen
dos tubulos seminiferos. Trata-se na maioria das vezes de um achado incidental no
decurso de uma ultrassonografia escrotal uma vez que é por norma assintomática e
pode ocorrer em testículos normais. Sabe-se que 90 a 95% dos tumores testiculares
são carcinomas de células germinativas (CCG) e que o carcinoma in situ (CIS) é o
percursor desses tumores. Portanto o diagnóstico no estadio pré invásivo de CIS
seria óptimo, mas difícil devido a este ser assintomático. O facto do CIS estar asso-
ciado a um determinado número de patologias pode ajudar a detectar a neoplasia, e
a microlitíase testicular é uma dessas patologias.
Método: Revisão da literatura e apresentação de três casos clínicos.
Resultados e Conclusão: A microlitíase testicular é uma patologia benigna (?), mas
está associada a patologia testicular maligna pelo que sugerimos um “follow up”
regular a estes doentes. No caso de existir MT em US sem quaisquer sinais de neo-
plasia, nós acreditamos poder limitar as biópsias aos doentes com risco aumentado
de cancro testicular, como sejam os criptorquidicos, os testículos pequenos e atró-
ficos, e aqueles que progrediram na MT entre dois exames de US. Os doentes com
tumor num testiculo e MT no testiculo contralateral também devem ser submetidos a
biopsia.

Palavras-chave: Microlitíase testicular; Carcinoma in situ.

Introdução tumores no adulto com excepção do seminoma es-


permatocítico [1]. Portanto o diagnóstico no estadio
A grande maioria dos carcinomas testiculares são pré invásivo de CIS seria óptimo, é contudo difícil de-
CCG e o carcinoma in situ (CIS) é o percursor desses vido a este ser assintomático. No entanto o CIS pode
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estar associado a determinados achados que podem


Escore Padrão Prevalência
remeter para o seu diagnóstico, como é o caso da
microlitíase. Mas as “microcalcificações” testiculares
1 Regular 68%
nem sempre estão associadas a condições malignas 2 Ligeira/ irregular
e nem sempre o diagnóstico ecografico consegue 3 Moderada/ irregular 25%
ser confirmado histologicamente [2]. Os dados bi- 4 Mto irreg., incluindo ecos 4%
bliográficos sugerem que 40% a 50% dos adultos brilhantes ou Microcalcif.
com CIS acabam por desenvolver carcinoma invasi- 5 Suspeita Tumor 0.7%

vo num período de 3 ou 5 anos respectivamente após


Quadro I - Prevalência dos padrões ecográficos descritos
o diagnóstico [3]. No entanto, em alguns doentes o
por Lenz na população geral.
período de latência até crescimento invasivo pode ir
além dos 15 anos, não havendo ainda confirmação
de que todos os casos de CIS progridam para cancro infantil [8] embora os microlitos sejam extremamente
[2]. O CIS é mais frequente nos países Escandinavos raros nos testículos prepuberes normais [9]. A preva-
e menos frequente na Ásia, a sua prevalência é quase lência de MT numa população mista de doentes uro-
nula na 6ª década e está aumentada nos doentes lógicos ronda os 2%, não sendo significativa a dife-
com história de testículos não descidos (2 a 3%), rença em relação à encontrada num grupo voluntário
genitais ambíguos, feminização testicular (25%), des- de homens saudáveis [10, 11].
genesia gonadal (25 a 45%). O diagnóstico de CIS é
feito por biópsia cirurgica de 3 x 3 x 3 mm com supor- Métodos
te imunoistoquimico (CIS-PLAP - placental like alka-
line phosphatase). A procura de processos não inva- A ultrassonografia (US) é uma extraordinária
sivos, sobretudo usando amostras de sémen com ferramenta clinica para o rastreio e a avaliação do
hibridização in situ para hiperploidia do cromossoma escroto. Lens e col. em 1987 propuseram 5 padrões
1 ou a presença de um isocromossoma do cromos- ecograficos testiculares, aos quais atribuíram um
soma 12 têm ainda resultados pouco específicos “score” (fig. 1 e fig. 2) e depois encontraram a pre-
apesar de promissores [2]. Isto tem por base o facto valência desses “scores” na população geral (quadro
de todas as células dos tumores terminativos, semi- 1) [12]. Num estudo, 78 doentes orquiectomizados
nomatosos e não seminomatosos, assim como do por tumor unilateral foram submetidos a ecografia e
CIS serem aneuploides, e apresentarem como única biopsia do testiculo contralateral: 36 doentes apre-
anomalia cromossómica consistente o ganho de sentaram ecograficamente “score” 4 de Lens e des-
braços curtos do cromossoma 12 sobretudo á custa tes 8 tinham CIS; 1 doente com ecografia mais regu-
da formação de um isocromossoma 12 [4]. Por en- lar tinha CIS (foi o único caso em que se detectou CIS
quanto a ultrassonografia é o método não invasivo e a eco não apresentava score 4 ou padrão irregular)
com considerável valor no diagnóstico do CIS uma [13]. Noutro estudo realizado em Viena, de 16 doen-
vez que detecta calcificações até 0,3 mm, e estas po- tes com MT, 7 apresentavam Ca testicular (44%)[14].
dem estar associadas a qualquer forma de Ca testi- Backus et al, em 1994 em 42 doentes com MT detec-
cular, variando esta associação consoante as séries. taram 40% neoplasia testicular primária e defendem
Estão publicadas séries com 30% [5] e com 46% [6] que a MT não pode continuar a ser considerado um
de associação microlitiase versus Ca testicular. O achado benigno [15]. O departamento de Urologia
risco relativo de tumor testicular na presença de MT é do Hospital Militar Central de Utrecht na Holanda fez
de 13,2 [5]. Histologicamente os micrólitos são agre- um estudo retrospectivo das ecografias testiculares
gados calcificados no interior dos túbulos seminí- realizadas a 1535 doentes num período de 6 anos e
feros e evidenciam-se pela coloração de Von Kossa efectuou “follow up” aos 63 (4%) doentes que apre-
para o fosfato de cálcio. A patogénese das microcal- sentaram MT (idades compreendidas entre os 19 e
cificações é obscura e a sua relação com o desenvol- 74 anos); em 29 destes doentes (46%) foi-lhes diag-
vimento de Ca testicular permanece inexplicável [2 e nosticada uma neoplasia testicular concomitante. Há
7]. A associação entre MT e patologia testicular ma- uma correlação estatisticamente significativa entre
ligna também parece ser válida para a população MT e Ca testicular [6]. Bennett e colaboradores (col)
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Holm e col. propõem como gerir um doente com


MT em US (eco Score 4 ou microlitiase): idade 50-60
anos, incidência CIS mínima, portanto não havendo
sinais de tumor pode-se omitir biopsia; nos jovens é
recomendada biopsia testicular bilateral se testículos
pequenos ou não descidos; doentes com tumor uni-
lateral é recomendada biopsia contralateral aquando
orquiectomia; e se não houver qualquer sinal de CIS
numa biopsia viável, não é necessário mais biopsias
de controlo [2 e 18]. A frequência de biopsias falso
negativas para CIS é só de 0.5% [19], sendo a maioria
devido à distribuição não randomizada do CIS no tes-
Fig. 1 - Padrões ecográficos testiculares propostos por ticulo e em alguns casos devido a problemas técni-
Lens e respectiva classificação (score): cos. Daí Dieckmann referir que nos casos de alto
a) score 1: padrão regular; risco a biópsia em dois sítios provavelmente aumen-
b) score 2: padrão ligeiramente irregular; taria a capacidade desta [19]. Jacques Ganen no
c) score 3:padrão moderadamente irregular; Curr. Opin In Urol de Março 2000 defende a realiza-
d) score 4:padrão muito irregular incluindo ecos brilhantes
ção de biopsia testicular aos doentes com MT focal,
ou microcalcificações;
MT unilateral, MT com antecedentes de tumor ipsi-
lateral, e MT com história de infertilidade associada a
criptorquidia ou atrofia testicular.
O tratamento por excelência para o CIS testicular
é a radioterapia (RT) local até 18 Gy [20], e uma vez
que esta pode causar infertilidade o doente deve ser
convenientemente orientado antes de iniciar o trata-
mento (criopreservação de esperma). Quimioterapia
(QT) à base de Cisplatinum mostrou ser capaz de
erradicar o CIS [20], no entanto a resposta é impre-
visível com risco cumulativo de desenvolver CIS após
QT aos 5 e 10 anos de 21% e 42% respectivamente
[21]. Portanto a QT não é recomendada em doentes
com CIS no testículo contralateral, a menos que esta
seja planeada como tratamento adjuvante do tumor
primário.

Caso clínico 1
Fig. 2 - Score 5: suspeita de tumor. Jovem de 23 anos, solteiro, realizou US escrotal
na sequência de moedeira escrotal esporádica, que
destinguem MT clássica (MTC) e MT limitada (MTL) revelou testículos de normais dimensões com MT bi-
para quando existem 5 ou mais microlitos por ima- lateral (fig. 3). O exame físico nomeadamente escro-
gem US ou menos de 5 microlitos respectivamente, e tal foi normal. Dado o doente não ter nenhum factor
referem nesse estudo publicado no Radiology de de risco acrescido optou-se pela vigilância clínica e
2001 que MTL nunca progrediu para MTC e que os ecografica que se mantém sobreponivel com 3 anos
doentes com MTL têm menor prevalência de malig- de evolução.
nidade associada [16]. Em contrapartida, Middleton
e col. no seu estudo realizado em 1079 doentes refe- Caso clínico 2
renciados para US escrotal entre 1996 e 1999 não Jovem de 24 anos, casado, pai desde os 17 anos,
encontraram diferença significativa entre MTC, MTL e recorreu ao serviço de urgência por dor testicular es-
a coexistência de tumor [17]. querda com dois dias de evolução após traumatismo.
54 José Pedro Cadilhe, M. Ramos, F. Marcelo, A. Pimenta

testículo esquerdo. A TAC toraco-abdominal revelou


micronodulos subpleurais (N0, M1a). O doente foi
referenciado para realizar QT com 3 ciclos de BEP
conseguindo-se normalização dos marcadores tu-
morais e regressão das metástases. O doente man-
tém-se livre de doença e em “follow-up” desde Julho
de 2003. Optou-se por não efectuar RT no testículo
esq. uma vez que o doente fez BEP, o qual mostrou
ser capaz de erradicar o CIS. No entanto, devemos
ter presente que o risco cumulativo de desenvolver
CIS aos 5 e aos 10 anos após QT à base de Cispla-
Fig. 3 - US com MT clássica. tinum é respectivamente de 21% e 42% segundo um
estudo publicado por Christensen em 1998 [21].
O exame físico revela testículo dir. nodular e irregular.
A ecografia confirmou tumor testicular esq. e MT bila- Conclusão
teral (fig. 4). Marcadores tumorais normais. O doente
fez criopreservação de esperma e foi submetido a Microcalcificações no testiculo são com frequên-
orquidectomia radical esq. e biópsia testicular contra- cia associadas a neoplasia testicular. O “score” US
lateral. O estudo anatomopatológico revelou carci- introduzido por Lenz parece ser uma forma de ras-
noma embrionário limitado ao testículo esq. (pT1) e treio útil.
CIS na biopsia do testículo direito. A TAC toraco- A MT é um diagnóstico ecográfico que não é
abdominal de estadiamento foi normal (N0, M0). O específica do CIS, e pode mesmo esporadicamente
doente foi submetido a RT local (14Gy) no testículo ser observada sem patologia testicular.
dir. encontrando-se em “follow-up” apertado desde à Portanto no caso de MT sem quaisquer sinais US
9 meses (Jan.2003) livre de doença. de neoplasia, nós acreditamos poder limitar as bióp-
sias aos doentes com risco aumentado de cancro
Caso clínico 3 testicular, como sejam os criptorquidicos, os testí-
Jovem de 25 anos de idade, que refere tumefac- culos pequenos e atróficos, os doentes com tumor no
ção testicular esq. com 2 meses de evolução. A US testiculo contralateral, e aqueles que progrediram na
escrotal mostrou tratar-se de uma neoformação tes- MT entre dois exames de US. Se não houver qualquer
ticular esq. acompanhada de microlitíase bilateral. sinal de malignidade ou de CIS numa biopsia viável,
Marcadores tumorais: aFeto 44.7 ng/ml e hCG 409 não é necessário mais biópsias de controlo. No caso
IU/l. O doente fez criopreservação de esperma e foi de não estar indicada biópsia, nós recomendamos
submetido a orquidectomia radical esq. e biopsia um “follow up” com exame clínico e US anual, segui-
testicular contralateral. O estudo anatomopatológico dos de maior investigação de acordo com as neces-
revelou carcinoma embrionário com permeação peri- sidades. Estes doentes devem ser incentivados a
vascular no testículo dir. (pT2) e CIS na biopsia do realizar auto palpação testicular regular.

Fig. 4 - US revela
neoformação
testicular com MT
bilateral.
Microlitiase testicular: apresentação de 3 casos clínicos e revisão da literatura 55

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