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ARTIGO ARTICLE 1

A legislação da atenção básica do Sistema Único


de Saúde: uma análise documental

Legislation on primary care in Brazilian Unified


National Health System: document analysis

Leyes de atención primaria del Sistema Único de


Salud: un análisis documental

Carolina Milena Domingos 1


Elisabete de Fátima Polo de Almeida Nunes 1
Brígida Gimenez Carvalho 1
Fernanda de Freitas Mendonça 1

Resumo

A reflexão sobre as normas jurídicas voltadas para a atenção básica cola- 1 Universidade Estadual de Correspondência
Londrina, Londrina, Brasil. C. M. Domingos
bora na compreensão de como está sendo conduzida a política de saúde Rua Amador Bueno 321,
no Brasil. Assim, este artigo tem como objetivo analisar as normas jurí- apto. 304, Londrina, PR
86010-620, Brasil.
dicas fortalecedoras da atenção básica. Este estudo utilizou a análise do- carolinamdomingos@gmail.com
cumental referente às ações, programas e estratégias de fortalecimento da
atenção primária priorizados pelo Ministério da Saúde. Foram encontra-
das um total de 224 normas referentes a dois grupos de documentos deno-
minados: normas instituidoras e normas complementares. As instituido-
ras, além de trazerem os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde
(SUS), também significaram, principalmente, a ampliação de ações. O
tema financiamento ocupou um lugar central no quantitativo de normas,
especialmente em relação às complementares. Por fim, esta análise leva à
reflexão sobre o quanto essas estratégias podem induzir a articulação de
gestores e sociedade civil na construção de um projeto político que resulte
em melhorias e atenda às necessidades de saúde da população.

Normas Jurídicas; Poder Executivo; Política de Saúde

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00181314 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(3):e00181314, mar, 2016


2 Domingos CM et al.

Introdução programas e estratégias do Ministério da Saúde


para o fortalecimento da atenção básica, institu-
Na década de 1990 e, principalmente, a partir de ídos por meio de normas jurídicas. O DAB inte-
2000, houve uma intensificação de estudos sobre gra a Secretaria de Atenção à Saúde e tem como
questões legislativas com ênfase no que foi es- funções: estabelecimento de diretrizes nacionais
tabelecido na Constituição Federal brasileira de facilitadoras do processo de gestão; formação e
1988, destacando a expressiva interferência do educação permanente de gestores e profissionais
poder executivo federal na produção legal 1. de saúde; cooperação técnica com estados e mu-
Com relação ao setor saúde, são escassos os nicípios para a organização e a qualificação da
trabalhos que debatem a produção legislativa re- atenção básica; e normatização e coordenação
guladora da política nacional 1,2,3, e ainda mais de ações e programas considerados estratégicos
raros os que direcionam esta questão sob a pers- para o fortalecimento da atenção básica e que
pectiva da atenção básica 4,5. Uma pesquisa que compõem o Saúde Mais Perto de Você, um con-
analisou a produção legislativa em saúde no pe- junto de iniciativas do departamento para a pres-
ríodo de 1990 a 2002, demonstrou característica tação de cuidado à população (Departamento de
indutora e concentradora do Poder Executivo Fe- Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde,
deral (Ministério da Saúde) na relação com as de- Ministério da Saúde. http://dab.saude.gov.br/
mais esferas de governo e na relação estabelecida portaldab/, acessado em 12/Abr/2014).
com o Poder Legislativo (Congresso Nacional) 6. O arcabouço legal brasileiro é composto por
O Ministério da Saúde tem sido responsável normas jurídicas distribuídas em normas cons-
por uma quantidade expressiva de portarias (nú- titucionais, infraconstitucionais e infralegais. As
mero superior a mil por ano), a partir do final da normas infraconstitucionais devem respeitar as
década de 1990, que induzem à adoção de polí- constitucionais e não podem prever nada além
ticas públicas, refletindo o modo de atuação do do que dita o texto constitucional. Estão nesse
Estado brasileiro, característica também de ou- grupo leis, resoluções, tratados, entre outros. Já
tros setores 7,8. Embora o Ministério da Saúde te- as normas infralegais, inferiores às infraconsti-
nha poder decisório sobre as políticas de saúde, tucionais, surgem da normatização interna da
há crescente e inquestionável responsabilização administração pública e buscam a execução da
dos municípios pela gestão, organização da ofer- lei, detalhando-a. Fazem parte desse grupo os
ta e qualidade dos serviços de saúde 9. decretos, as portarias e as instruções normativas
O radical processo de descentralização para e operacionais 13.
o ente municipal, ocorrido no sistema de saúde A análise da produção legislativa sobre as
brasileiro, diverge do praticado em países que prioridades do Ministério da Saúde para o incre-
também optaram por sistemas de saúde univer- mento da atenção básica contribui para a com-
sais, como França, Inglaterra e Canadá. Nesses preensão da condução da política de saúde na
sistemas de saúde, a gestão é centralizada (no área, uma vez que a legislação faz parte das ações
caso da França) ou descentralizada para o nível desenvolvidas pela gestão do sistema de saúde,
regional, províncias ou distritos, como é o caso nas três esferas de governo. Diante disso, surgi-
do Canadá e da Inglaterra, respectivamente 10. ram os seguintes questionamentos: “Quais são
Entretanto, a autonomia da gestão, no caso brasi- as políticas prioritárias para o fortalecimento da
leiro, continua sendo um objeto de disputa entre atenção básica segundo a agenda federal?”, “Qual
os entes federados. é o arcabouço legal dessas políticas?”, “O que es-
No debate setorial, nas últimas décadas, ses documentos normatizam?”. Desse modo, es-
encontra-se uma série de medidas governamen- te artigo tem como objetivo analisar as normas
tais orientadas para o fortalecimento do Siste- jurídicas das políticas fortalecedoras da atenção
ma Único de Saúde (SUS), ressaltando a atenção básica no SUS.
básica como ponto primordial para o enfrenta-
mento do modelo de assistência no país, marca-
do pela concepção hospitalocêntrica, individu- Bases metodológicas
alizante e de baixa resolutividade 11. A Portaria
no 2.488/2011 12, que aprova a Política Nacional Estudo descritivo, de análise documental, que
de Atenção Básica (PNAB), estabelece a revisão consiste em método de recolha e análise de da-
das diretrizes para a reorganização da atenção dos, composto por duas fases: na primeira, ocor-
primária e ressalta a atenção básica como orde- re a localização da fonte e a seleção dos docu-
nadora das Redes de Atenção em Saúde. mentos; na segunda, o tratamento das informa-
Diante desse cenário, diversas políticas de ções recolhidas e sua análise 14.
saúde têm sido priorizadas pelo Departamento Decidiu-se por analisar as normas jurídicas
de Atenção Básica (DAB), constituindo ações, referentes às ações, aos programas e estratégias

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A LEGISLAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 3

de fortalecimento da atenção primária prioriza- Resultados e discussão


das pelo Ministério da Saúde. Para a identifica-
ção dos documentos, foi utilizado o portal virtual Normas jurídicas fortalecedoras da atenção
de acesso aberto do DAB, por sua relevância na básica: características gerais
explicitação das prioridades do Ministério da
Saúde para a atenção básica e pelo potencial de Foram encontradas 224 normas jurídicas rela-
abrangência na divulgação de deliberações para cionadas a ações, programas e estratégias que
os gestores, profissionais de saúde e para a socie- objetivam induzir mudanças na atenção bási-
dade. Fizeram parte do estudo os documentos ca. Os documentos referem-se a 22 políticas de
disponibilizados pelo DAB no período de março saúde: Academia da Saúde; Consultório na Rua;
a maio de 2014 (http://dab.saude.gov.br/portal Doenças Crônicas; Estratégia Saúde da Família
dab/, acessado em 12/Abr/2014), na seção de (ESF); E-SUS; Melhor em Casa; Núcleo de Apoio à
ações, programas e estratégias. Saúde da Família (NASF); Programa Nacional de
Após coleta dos documentos, a interpretação Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção
dos mesmos foi feita considerando-se os prin- Básica (PMAQ); Práticas Integrativas e Comple-
cípios e diretrizes da PNAB 12 e os seguintes ter- mentares (PIC); Projeto de Expansão e Consoli-
mos: financiamento, infraestrutura, ampliação dação da Saúde da Família (PROESF); Programa
das ações, avaliação e monitoramento, e capa- de Requalificação de Unidades Básicas de Saú-
citação do trabalhador de saúde. Esses termos de (RUBS); Rede Cegonha; Programa Saúde na
foram definidos considerando-se as fases (está- Escola (PSE); Telessaúde; Unidades Básicas de
gios) de formulação de uma política proposta por Saúde Fluviais (UBSF); Amamenta e Alimenta
Howlet & Ramesh, em 1995 15. Brasil (AAB); Bolsa Família; Prevenção e Controle
Esses autores sistematizaram o ciclo da po- de Agravos Nutricionais (PCAN); Promoção da
lítica em cinco estágios. No primeiro, ocorre a Saúde e da Alimentação Adequada e Saudável
montagem da agenda (fase de reconhecimento (PSAAS); Programa Nacional de Suplementação
do problema com relevância pública); no segun- de Vitamina A (PNSVA); Vigilância Alimentar e
do, a formulação da política (definição de pro- Nutricional (VAN); e Brasil Sorridente. Fizeram
postas de solução para o problema); no terceiro, parte do estudo as normas jurídicas de saúde bu-
a tomada de decisão (escolha de uma solução cal referentes à atenção básica.
ou de uma combinação de soluções para o pro- As normas foram publicadas predominan-
blema) – o segundo e o terceiro estágios podem temente por meio de portarias (91,5%), resolu-
significar a ampliação de ações, por definirem os ções, leis, decretos e instrução normativa e ope-
princípios e as diretrizes para o desenvolvimento racional. As políticas de saúde Melhor em Casa
de ações e explicitarem a escolha política de uma (23,2%) e Brasil Sorridente (11,6%) apresentaram
autoridade central. o maior quantitativo de documentos (Tabela 1).
No quarto estágio, é desenvolvida a imple- Da análise dos documentos emergiram du-
mentação da política (momento de pôr uma as categorias: normas jurídicas instituidoras e
solução em andamento) – o financiamento e a normas jurídicas complementares ao instituí-
infraestrutura têm importante destaque nesta do, para as políticas de saúde na atenção bá-
fase, pois fazem parte de sistemas logísticos e sica. A primeira refere-se a documentos que
operacionais para colocar determinada solução apresentam características direcionadoras aos
em prática. Ressalta-se, também, a capacitação princípios, diretrizes, objetivos e organização
do trabalhador de saúde, pois os envolvidos na das ações, programas e estratégias. A segunda
implementação devem estar de acordo, conhe- corresponde a documentos que trazem maior
cer e compreender a política traçada. Contudo, detalhamento das políticas instituídas pelas
considera-se que a capacitação do profissional normas contempladas na primeira categoria.
de saúde deve perpassar todos os estágios do ci- Para efeitos didáticos da apresentação dos resul-
clo. Já o quinto estágio corresponde à avaliação tados, denominaram-se “normas instituidoras”
(monitoramento de resultados), que consiste em os documentos que estão inseridos na primeira
julgar uma intervenção por meio de comparação categoria, e “normas complementares” os refe-
dos recursos empregados, serviços produzidos rentes à segunda.
e resultados obtidos, com critérios e normas 15. Verificou-se que as normas jurídicas tiveram
Posteriormente, as informações foram con- expressivo aumento a partir de 2011, tendo si-
densadas segundo a frequência de temas em do encontrados 163 documentos (72,7%). Houve
categorias de análise, utilizando-se o programa predominância de documentos complemen-
Epi Info, versão 3.5.3 para Windows (Centers tares ao longo dos anos, pois, das 163 normas
for Disease Control and Prevention, Atlanta, publicadas, 137 (84,4%) eram complementares
Estados Unidos). (Figura 1).

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4 Domingos CM et al.

Tabela 1

Distribuição das normas jurídicas segundo as políticas de saúde de fortalecimento da atenção básica priorizadas pelo Ministério da Saúde, Brasil, 2014.

Ações, programas e estratégias Normas jurídicas


Lei Decreto Resolução Instrução normativa Instrução operacional Portaria Total

Academia da Saúde - - - - - 1 1
Consultório na Rua - - - - - 3 3
Doenças Crônicas 2 - - - - 9 11
ESF - - - - - 1 1
E-SUS - - - - - 4 4
Melhor em Casa - - 1 - - 52 53
NASF - - - - - 4 4
PMAQ - - - - - 10 10
PIC - 1 7 2 - 13 23
PROESF - - - - - 2 2
RUBS - - - - - 12 12
Rede Cegonha - - - - - 11 11
PSE - 1 - - - 22 23
Telessaúde - - - - - 7 7
UBSF - - - - - 3 3
AAB - - - - - 5 5
Bolsa Família 1 - - - 1 1 3
PCAN 1 - 1 - - 5 7
PSAAS 1 - - - - 2 3
PNSAA - - - - - 1 1
VAN - - - - - 11 11
Brasil Sorridente - - - - - 26 26
Total 5 2 9 2 1 205 224

AAB: Amamenta e Alimenta Brasil; ESF: Estratégia Saúde da Família; NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família; PCAN: Prevenção e Controle de Agravos
Nutricionais; PIC: Práticas Integrativas e Complementares; PMAQ: Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica;
PNSVA: Programa Nacional de Suplementação de Vitamina A; PROESF: Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família; PSAAS: Promoção da
Saúde e da Alimentação Adequada e Saudável; PSE: Programa Saúde na Escola; RUBS: Programa de Requalificação de Unidades Básicas de Saúde;
UBSF: Unidades Básicas de Saúde Fluviais; VAN: Vigilância Alimentar e Nutricional.
Fonte: Elaborada com base nas informações disponíveis na página de Internet oficial do Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde,
Ministério da Saúde, obtidas entre março e maio de 2014 (http://dab.saude.gov.br/portaldab/, acessado em 12/Abr/2014).

Esse resultado pode estar relacionado aos in- O Decreto no 7.508 regulamentou a Lei no
vestimentos para a implementação do SUS des- 8.080/1990 e dispôs sobre: organização do SUS,
de a sua criação, sobretudo com a republicação planejamento da saúde, assistência à saúde e ar-
da PNAB (Portaria no 2.488) 12, e do Decreto no ticulação interfederativa, entre outros aspectos,
7.508 16, ambos em 2011. A primeira manteve a colocando a rede de saúde como ponto estraté-
essência de sua publicação anterior, em 2006, gico para a melhoria da qualidade da assistên-
mas apresentou mudanças: incorporou o NASF, cia. É inegável que tal decreto trouxe impactos
as equipes de saúde da família ribeirinhas e as relevantes no tocante às normativas referentes
unidades de saúde fluviais, além de regulamen- à atenção básica, uma vez que esta é assumida
tar os Consultórios na Rua e, no âmbito da aten- como elemento central para o alcance dos prin-
ção básica, o PSE, entre outros. A PNAB de 2011 cípios e das diretrizes do sistema 16.
também ressaltou a Educação Permanente em Além dessas publicações, outras normativas
Saúde como instrumento de formação do traba- podem ser destacadas: Portaria GM no 648, de
lhador de saúde, e reconheceu a atenção básica 2006, que aprovou a PNAB; Portaria no 154, de
como ordenadora e coordenadora da rede de 2008, que criou os NASF; Portaria no 4.279, de
atenção à saúde 17. 2010, que estabeleceu diretrizes para a organi-

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A LEGISLAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 5

Figura 1

Gráfico de distribuição das normas jurídicas instituidoras e das normas complementares segundo o ano de publicação. Brasil,
período de 2001 a 2014.

zação da rede de atenção à saúde no âmbito do los de tempo. Isso fragiliza o acompanhamento
SUS; e a Lei Complementar no 141, de 2012, que de mudanças importantes, que ficam sem a parti-
regulamentou a Emenda Constitucional no 29, cipação dos atores envolvidos, como a participa-
de 2000. ção social, impedindo a compreensão precisa do
Apesar de sua relevância, o grande quantita- direcionamento da política nacional de saúde 20.
tivo de normas não significa a execução de todas O acentuado processo de descentralização
as ações previstas. Em 2014, o SUS completou 26 da gestão do SUS para o ente municipal pode
anos e, de fato, tem sido uma das maiores políti- favorecer o respeito aos valores democráticos
cas públicas brasileiras de inclusão social, pois em situações de elevada diferenciação política,
estabeleceu o acesso universal e igualitário aos econômica, cultural, religiosa ou social. Por ou-
brasileiros e proporcionou melhoria nos indi- tro lado, a implementação de políticas sociais de
cadores básicos de saúde da população. Mas a abrangência nacional, em casos de marcantes
construção do SUS tem muitos problemas, sen- desigualdades e exclusão social, como ocorre no
do sua implementação lenta e, por vezes, apre- Brasil, é complexa 21. Além disso, a implementa-
sentando retrocessos 18. ção de políticas sociais, especialmente a da saú-
A estruturação da rede de atenção básica vem de, em um sistema federativo, requer a explicita-
sendo pontuada como desafio para a maioria dos ção das funções das diferentes esferas de governo
municípios, que tem a tarefa de coordenar seu e a adoção de cooperação e articulação entre os
incremento, cumprindo com os princípios da entes federados para que se alcance a garantia de
integralidade, muitas vezes com fragilidades no acesso e atenção integral a toda população. Esse
corpo técnico-burocrático, dependência finan- processo de articulação e cooperação deve fazer
ceira frente ao governo federal, persistência de parte de um projeto político para a saúde do país,
arranjos políticos clientelistas, descontinuidade envolvendo gestores federais, estaduais, munici-
administrativa e dificuldade de contratação e fi- pais e a sociedade civil, e não estratégias de curto
xação de profissionais qualificados nos peque- prazo, de cada gestão de governo 3.
nos municípios 19. No Brasil, o ente federal, representado pelo
Os gestores estaduais e municipais do Conse- Ministério da Saúde, tenta promover a unifor-
lho Nacional de Saúde ressaltaram a dificuldade mização da organização da atenção em todo o
de permanecerem informados com o expressivo território nacional por meio de normativas das
número de normas instituídas em curtos interva- políticas de saúde. Apesar de ser necessária a

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6 Domingos CM et al.

regulamentação dessas ações e programas, nem de descrever a relação de estabelecimentos de


sempre a prescrição uniforme favorece a implan- saúde contemplados com o SAD, e os que estão
tação de tais políticas em realidades tão díspares, habilitados ou desabilitados para o recebimento
pois contextos e processos locais específicos in- de incentivos para o seu funcionamento.
fluenciam o resultado de uma determinada in- Outra estratégia que merece destaque pelo
tervenção 9,19. quantitativo de documentos, na maioria com-
Essa situação ajuda a explicar o porquê do plementares, é o Brasil Sorridente. Essa política
grande quantitativo de publicações de normas tem como finalidade ampliar e qualificar a aten-
complementares. Cabe destacar que as normas ção em saúde bucal em todos os níveis, preconi-
instituidoras prescrevem vários aspectos sobre zando a expansão das equipes de saúde bucal,
cada estratégia, ação ou programa. No entanto, juntamente com a estratégia saúde da família,
há uma complexidade e diversidade de fatores que iniciou em 2001. Em 2002, um movimento de
locais que influenciam sua a implementação, profissionais de odontologia conseguiu colocar a
por exemplo: múltiplas determinações sobre o saúde bucal na agenda de prioridades, propon-
estado de saúde da população e dos indivídu- do ampliação dessa política. De 2002 a 2008, o
os; diversidade das necessidades de saúde; dife- número de equipes de saúde bucal implantadas
rentes tipos de ações e serviços necessários para saltou de 4.261 para 17.349 2.
dar conta destas necessidades; qualificação de A seguir, a análise e a discussão dos docu-
pessoal e recursos tecnológicos requeridos para mentos são apresentadas de acordo com as cate-
atendê-las; entre outros 21. gorias de análise identificadas.
Outra questão é que o grande quantitativo de
portarias remete à reflexão sobre o exercício de Normas jurídicas instituidoras das políticas
controle e indução do Ministério da Saúde. As de saúde na atenção básica
portarias que deveriam definir instruções para
operacionalizar as políticas e efetivar o que foi Do total dos 224 documentos identificados, 28
estabelecido pelas leis, decretos e regulamentos (12,5%) faziam referência às normas que insti-
constituem instrumento de poder do executivo tuem, estabelecem, dispõem, atualizam ou re-
(Ministério da Saúde), que muitas vezes as utiliza definem objetivos, princípios e diretrizes sobre
para instituir novas normas e pactos não previs- as políticas de saúde encontradas. Esses docu-
tos na lei, fato que tem sido criticado por gestores mentos se apresentavam, predominantemente,
estaduais e municipais 6. por meio de portarias que instituem as ações, os
Com relação à natureza dos documentos, os programas e as estratégias voltadas para a aten-
relacionados às Doenças Crônicas (21,4%) foram ção básica.
os que apresentaram a maior quantidade de nor- Tais normas estão em consonância com a
mas instituidoras (Tabela 2). Essas, foram publi- PNAB instituída pela Portaria no 2.488/2011 12.
cadas em 2013, sendo que a primeira publicação Entre os documentos, 16 (57,1%) apontavam os
trata da instituição da rede de atenção à saúde seguintes princípios e diretrizes: universalida-
das pessoas com doenças crônicas no âmbito do de, integralidade, participação popular, equida-
SUS. As demais normas instituidoras referem-se de, acesso, coordenação e responsabilidade da
à organização da prevenção e do tratamento do atenção básica pelo cuidado, continuidade do
sobrepeso e da obesidade como linha prioritária cuidado, ter os usuários e o território adscritos
da rede de atenção a este grupo, atualizam dire- e vínculo. O acesso e a integralidade apareceram
trizes de cuidado para as pessoas tabagistas, dis- em todos os documentos dessa categoria.
põem sobre a aplicação do primeiro tratamento Quando se fala em acesso aos serviços de
à pessoa com neoplasia maligna e instituem a saúde, deve-se considerar a complexidade deste
política nacional para a prevenção e o controle conceito, muitas vezes empregado de forma im-
do câncer na rede de atenção à saúde. precisa na sua relação com o cotidiano do traba-
No que se refere às normas complementares, lho em saúde 22. Para categorizar o acesso e ana-
o Melhor em Casa (25,9%) apresentou predomi- lisar as condições de acessibilidade, Giovanella
nância numérica de documentos (Tabela 2). Em & Fleury 23 abordam o termo sobre as dimen-
2011, a Portaria no 2.527 redefiniu a Atenção Do- sões política, econômica, técnica e simbólica,
miciliar no SUS, estabelecendo normas para ca- dada a sua multifatoriedade, as quais têm como
dastro dos Serviços de Atenção Domiciliar (SAD), objetivo ofertar atenção responsável, integral,
habilitação dos estabelecimentos de saúde onde resolutiva, equânime e de qualidade. Uma eta-
estarão alocados e valores do incentivo para o pa importante é a previsão desse conceito nos
seu funcionamento. A partir dessa portaria, em documentos que instituem estratégias poten-
2012 e 2013, dispara-se grande quantitativo de cializadoras de avanços do cuidado na atenção
publicações complementares com a finalidade básica, no entanto, a legalidade de uma proposta

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A LEGISLAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 7

Tabela 2

Distribuição das normas jurídicas instituidoras e das normas complementares segundo as políticas de fortalecimento da
atenção básica. Brasil, 2014.

Ações, programas e Normas jurídicas Total


estratégias Instituidoras Complementares
n % n % n

Academia da Saúde 1 3,2 - - 1


Consultório na Rua 2 6,5 1 0,5 3
Doenças crônicas 6 19,4 5 2,6 11
ESF 1 3,2 - - 1
E-SUS 1 3,2 3 1,5 4
Melhor em casa 2 6,5 51 26,3 53
NASF 1 3,2 3 1,5 4
PMAQ 1 3,2 9 4,6 10
PIC 2 6,5 21 10,8 23
PROESF - - 2 1,0 2
RUBS 1 3,2 11 5,7 12
Rede Cegonha 2 6,5 9 4,6 11
PSE 1 3,2 22 11,3 23
Telessaúde 1 3,2 5 2,6 6
UBSF - - 3 1,5 3
AAB 3 9,7 2 1,0 5
Bolsa Família 1 3,2 2 1,5 3
PCAN - - 8 4,1 8
PSAAS 1 3,2 2 1,0 3
PNSVA 1 3,2 1 0,5 1
VAN 1 3,2 10 5,0 11
Brasil Sorridente 2 6,5 24 12,4 26
Total 28 100,0 196 100,0 224

AAB: Amamenta e Alimenta Brasil; ESF: Estratégia Saúde da Família; NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família;
PCAN: Prevenção e Controle de Agravos Nutricionais; PIC: Práticas Integrativas e Complementares; PMAQ: Programa
Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica; PNSVA: Programa Nacional de Suplementação
de Vitamina A; PROESF: Projeto de Expansão e Consolidação da Saúde da Família; PSAAS: Promoção da Saúde e da
Alimentação Adequada e Saudável; PSE: Programa Saúde na Escola; RUBS: Programa de Requalificação de Unidades Básicas
de Saúde; UBSF: Unidades Básicas de Saúde Fluviais; VAN: Vigilância Alimentar e Nutricional.
Fonte: Elaborada com base nas informações disponíveis na página de Internet oficial do Departamento de Atenção
Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde, obtidas entre março e maio de 2014 (http://dab.saude.gov.br/
portaldab/, acessado em 12/Abr/2014).

não assegura a sua implementação, pois não se atenção, regionalização, hierarquização e parti-
cria o acesso por lei 22. cipação popular 24.
Chama atenção a relação do acesso com as É válido ressaltar que várias das políticas ins-
condições de vida da população, que vai além tituidoras foram direcionadas para populações
da dimensão geográfica. Engloba, também, os específicas, como as relacionadas às doenças
aspectos econômico e cultural, envolvendo nor- crônicas já descritas. Tal direcionalidade pode
mas adequadas aos hábitos da população e à gerar controversas, pois a proposição de políti-
funcionalidade da oferta de serviços de acordo cas de saúde para grupos pode ser considerada
com as necessidades da mesma. As múltiplas di- contrária à universalidade defendida na Carta
mensões de análise do acesso devem nortear a Magna. O acesso à atenção básica não deve se
construção de políticas públicas. Teriam de ser utilizar de método ou processo que eleja popula-
alicerçadas no princípio da equidade, no estabe- ções prioritárias, visto que, no sistema, esta área
lecimento de caminhos para a universalização da é considerada porta de entrada prioritária 25.

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8 Domingos CM et al.

Por outro lado, esse direcionamento pode A complexidade da operacionalização das


contribuir para o princípio da equidade no SUS, políticas de saúde, a exemplo do que foi apre-
pois o campo da saúde é permeado por diferen- sentado acerca da concretização da participação
tes necessidades, em que cada população possui popular, demanda a discussão sobre a interse-
características específicas. Para contemplar essa torialidade, o que constitui uma perspectiva
diversidade, a distribuição dos serviços de saúde relevante, pois, ao integrar diversos saberes e
deve ser desigual para grupos sociais desiguais, práticas dos vários setores além da saúde, consi-
como forma de diminuir a desigualdade de aces- dera o cidadão na sua totalidade. Isso se faz pela
so a bens, serviços ou oportunidades, sendo im- articulação das políticas sociais para resolver os
prescindível a proposição de políticas equitativas problemas de saúde que afetam a população. A
neste processo 26. intersetorialidade leva a uma nova forma de re-
O acesso, bem como os demais princípios alizar a atenção em saúde para garantir a igual-
e diretrizes que apareceram nas normas jurídi- dade do acesso aos desiguais, e necessita de mu-
cas, fazem parte do arcabouço necessário para o dança na cultura das organizações gestoras das
alcance da integralidade. Todas as instituidoras políticas sociais 32.
dão ênfase a esse conceito. Porém, prever inte- No tocante aos temas selecionados, todas as
gralidade não significa sua concretização no dia a normas significaram ampliação de ações direcio-
dia do serviço de saúde. A integralidade consiste nadas para o fortalecimento da atenção básica,
em um termo que abrange muitos outros, apesar sendo a maioria publicada em 2011 (Figura 2).
de sua definição legal colocá-la como a integra- O resultado decorre da característica implícita
ção de ações curativas, preventivas, individuais e nessas normas de instituir ações, programas e
coletivas nos diversos níveis de complexidade 27. estratégias na perspectiva da PNAB. No entanto,
A integralidade é o princípio que expressa a fina- ressalta-se, mais uma vez, que apesar de contri-
lidade do SUS, é o eixo potencialmente nortea- buírem para o aumento do escopo de ações vol-
dor deste sistema 28. tadas para a atenção básica, as normas não signi-
O princípio menos citado nos documentos ficam, necessariamente, sua implementação na
foi a participação popular, presente na redação prática dos serviços.
de 17 (60,7%) documentos instituidores. Tal re- Os aspectos relacionados à infraestrutura
sultado contradiz a evolução obtida, quando, (96,4%), financiamento (89,2%) e avaliação e
após longo período sob o Estado ditatorial, o SUS monitoramento das ações (71,4%) estavam pre-
foi a primeira política pública no Brasil a propor sentes em expressiva maioria dos documentos,
a adoção constitucional da participação popular ressaltando a preponderância do quarto e do
como um de seus princípios. quinto estágios do ciclo da política. Tratar da im-
Espera-se que a participação da comunidade plementação de uma política implica desvelar
aconteça por meio do incentivo e da garantia de os caminhos entre a formulação das diretrizes e
sua atuação no planejamento, na execução e na sua operacionalização nos serviços de saúde, em
avaliação das ações de saúde 29. Ressalta-se que que o financiamento e a infraestrutura têm im-
esse princípio também se manifesta na formu- portante destaque 33. Esse processo ocorre me-
lação das políticas, orientando a administração diante a negociação entre os entes federativos,
pública no sentido de atender aos legítimos inte- sendo os municípios os protagonistas da exe-
resses públicos 30. cução das políticas. No entanto, o papel indutor
Apesar da importância da presença do princí- do Governo Federal condiciona o recebimento
pio referente à participação popular nas normas de recursos financeiros à adesão a determina-
jurídicas que norteiam as ações, os programas e das políticas, o que contribui para a limitação
as estratégias, considera-se que a participação da autonomia dos municípios na execução
não se realiza por si mesma. Antes, depende de do planejamento das ações, dos programas e
ações complementares e complexas que envol- das estratégias 34.
vem, entre outras: a erradicação do analfabetis- A institucionalização de uma política deve ser
mo; a inclusão de conceitos básicos de demo- acompanhada por contínuo monitoramento e
cracia, cidadania, sistema eleitoral e qualidade avaliação das ações, com retificações de proces-
democrática nos próprios currículos escolares; so, sendo as constantes reformulações inevitá-
a formação de lideranças de jovens e mulheres, veis, desejadas e necessárias para que se mante-
e incentivo ao rodízio de lideranças nas organi- nha a direcionalidade coerente com o conjunto
zações civis e nos conselhos; a participação e a de princípios 15. O dinamismo desse processo
ampliação da capacidade de acompanhamento amplia a possibilidade de gerar um aprendizado
de desempenho das políticas públicas pelos ato- que sirva à formulação de outras políticas com
res sociais 31. características semelhantes 35.

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A LEGISLAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 9

Figura 2

Gráfico de distribuição das normas jurídicas instituidoras segundo financiamento, infraestrutura, ampliação das ações, avaliação e monitoramento, e
capacitação do trabalhador de saúde. Brasil, período de 2006 a 2014.

Outro tema presente na quarta fase do ciclo princípios e diretrizes do SUS, citados na catego-
político é a capacitação do trabalhador de saúde, ria anterior. Das normas em que eles aparecem,
presente na maioria (82,1%) das normas institui- os princípios integralidade (12,2%) e acessibili-
doras. Essa fase envolve questões estratégicas e dade (12,7%) são os que estão mais em evidência.
vários sujeitos, pois, no momento de implemen- O vínculo não apareceu nos documentos.
tação, descobre-se a real potencialidade de uma Foi significativo o predomínio de documen-
política, os atores que a apoiam, o que cada gru- tos que sinalizavam o financiamento (63,2%) e
po disputa e seus interesses. Muitas vezes, atores a infraestrutura (59,6%), principalmente após o
que não participaram da fase de formulação são ano de 2011, conforme mostra a Figura 3. Desses,
aqueles responsáveis pela prestação direta de 26,5% eram normas que tratavam somente de fi-
serviços e os principais agentes de transforma- nanciamento e 14,2% somente de infraestrutura
ção de uma política 15. Todos os trabalhadores e, ainda, 28,5% das normas faziam referência ao
devem estar envolvidos e preparados para que financiamento e à infraestrutura conjuntamente.
haja sucesso na execução de uma política. Nos últimos anos, a maioria dos documen-
A capacitação do profissional de saúde tos sobre financiamento, proveniente da esfera
tem sido percebida como um dos entraves pa- federal, atrela incentivos de financiamento à
ra o aprimoramento do modelo de atenção à adoção de determinadas políticas e práticas pe-
saúde 36,37. Tal tema requer que se invista na in- los gestores estaduais e municipais. Assim, es-
serção da educação permanente na prática dos sas portarias se destacam no cenário nacional
serviços de saúde de acordo com os preceitos do devido à sua capacidade de indução e de, mui-
SUS, para que ocorram transformações no pro- tas vezes, irem além das discussões das normas
cesso de trabalho das equipes e que sejam signi- instituidoras, quando definem novos critérios,
ficativas para o cotidiano do trabalhador 12. novas prioridades, onde alocar recursos e como
fazê-lo 13. Esse cenário constitui um impasse pa-
Normas jurídicas complementares das ra os gestores, que passam a reivindicar o cum-
políticas de saúde na atenção básica primento do que foi previsto na formulação de
normas instituidoras 13.
Do total de 196 documentos complementares, a Verifica-se a dificuldade que o gestor federal
maioria (82,1%) não apresentou referência aos apresenta em construir outros modos de exercer

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(3):e00181314, mar, 2016


10 Domingos CM et al.

Figura 3

Gráfico de distribuição das normas jurídicas complementares segundo financiamento, infraestrutura, ampliação das ações, avaliação e monitoramento, e
capacitação do trabalhador de saúde. Brasil, período de 2001 a 2014.

o seu papel, que não sejam pelo financiamento finalidade de habilitar ou desabilitar municípios
como forma indutora e concentradora de poder, e/ou serviços de saúde para o recebimento de
pois, por muito tempo, foi influenciado pelo mo- incentivos para o seu funcionamento, e o investi-
delo de gerência do Instituto Nacional de Assis- mento em discussões que trouxessem para cena
tência Médica da Previdência Social (INAMPS) os princípios e diretrizes do SUS foi menor. Tal fa-
ou do Ministério da Saúde pré-SUS. Assim, sem- to fragiliza a construção de uma política de saúde
pre prestou mais serviços do que exerceu a ativi- com bases mais sólidas, capaz de se concretizar
dade de gerência, o que leva a acreditar que seu como um projeto político para a saúde do país.
papel ainda esteja se moldando e necessite de
amplas discussões 13.
A infraestrutura, em menor proporção, tam- Considerações finais
bém assume característica de condição para in-
serir determinada política no serviço. Ressalta-se A análise das 224 normas referentes aos 22 pro-
que dispor sobre financiamento e infraestrutura gramas, ações e estratégias priorizadas pelo
nos documentos legais é importante e necessá- Ministério da Saúde permitiu identificar dois
rio para a consolidação do sistema, entretanto, grupos: o primeiro, composto por documentos
como exposto anteriormente, a forma como isto que apresentam características relacionadas aos
acontece deve ser revista e mais discutida com princípios, diretrizes, objetivos e organização das
todos os atores envolvidos neste processo. ações, dos programas e estratégias; e um segundo
A política que se destacou quanto ao quanti- formado por normas que explicitam com maior
tativo de normas sobre financiamento (40,2%) e detalhamento as políticas já instituídas pelos do-
infraestrutura (35,8%) foi o programa Melhor em cumentos contemplados na primeira categoria.
Casa. Apesar de ter um grande quantitativo de As instituidoras, além de trazerem os prin-
publicações complementares, a maioria tinha a cípios e diretrizes da PNAB, significaram, prin-

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A LEGISLAÇÃO DA ATENÇÃO BÁSICA DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE 11

cipalmente, a ampliação de ações. No entanto, previstos nas normas para receber os recur-
apesar de essas características serem fundamen- sos necessários ao desenvolvimento das ações
tais para a implementação do SUS, os temas e de saúde.
princípios que aparecem nessas normas são O fato de alguns programas – como o Melhor
complexos e multifatoriais. em Casa, Brasil Sorridente e Doenças Crônicas –
A necessidade do grande quantitativo de pu- terem se destacado quanto ao quantitativo de
blicações de normas complementares pode ser normas não significa que tenham maior relevân-
indicativa da complexidade que influencia a in- cia ou impacto na atenção básica. A ESF foi re-
serção das políticas no cotidiano dos serviços de presentada por apenas um documento e é consi-
municípios tão díspares, além de demonstrar a derada prioridade para a reorganização da área.
fragilidade das normas instituidoras em garan- Embora o levantamento dos documentos no
tir que se desenvolvam todos os ciclos de uma portal do DAB tenha abarcado as ações, os pro-
política. Mais que a formulação de uma políti- gramas e as estratégias prioritárias para a aten-
ca, parte fundamental e relevante é a sua imple- ção básica, o Programa Mais Médicos, instituído
mentação, e a publicação de uma normativa não pela Lei no 12.871/2013, não foi localizado entre
constitui garantia de que ela seja executada da os documentos disponibilizados no portal. Com
forma proposta pelos serviços de saúde. isso, pode-se inferir que essa constitui uma polí-
As normas jurídicas como ampliadoras de tica de governo para além do DAB, que possibili-
ações têm de ultrapassar o aspecto legal. A pre- tou a ampliação do acesso aos serviços de saúde
sença da atenção básica na agenda do governo a milhares de brasileiros ao selecionar e vincular
deve se constituir em prioridade que alcance cerca de 13 mil médicos brasileiros e estrangeiros
diferentes espaços e promova microprocessos aos serviços de atenção básica em todo o país.
de transformação da política de AB em ações de Por fim, questiona-se em que medida o Mi-
cuidado aos usuários no cotidiano dos serviços. nistério da Saúde consegue promover a constru-
O tema financiamento, relacionado a incen- ção de um projeto político que articule gestores
tivos e transferências de recursos, ocupou um e sociedade civil na atenção às necessidades de
lugar central nas normas publicadas, principal- saúde da população, ou se a utilização desse
mente com relação às complementares. Tal situ- grande quantitativo de normativas cristaliza uma
ação leva a uma reflexão sobre o financiamento relação de tutela do ente federal sobre os entes
como instrumento de controle federal sobre os municipais na condução da política de saúde.
municípios, pois estes têm de cumprir critérios

Colaboradores Agradecimentos

Todos os autores participaram integralmente de todas A pesquisa contou com o apoio financeiro da Fundação
as etapas de preparação do artigo: concepção, análise Araucária: Apoio e Desenvolvimento Científico e Tec-
e interpretação dos dados, redação e revisão crítica re- nológico do Paraná.
levante do conteúdo intelectual do artigo e, aprovação
final da versão a ser publicada.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(3):e00181314, mar, 2016


12 Domingos CM et al.

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Abstract Resumen

A reflection on Brazil’s legislation for primary care Reflexión sobre el marco jurídico destinado a la aten-
helps understand the way health policy is implement- ción primaria, colaborando en la comprensión sobre
ed in the country. This study focuses on the legal pro- cómo se están llevando a cabo las políticas de salud
visions aimed at strengthening primary care, draw- en Brasil. Por lo tanto, este artículo tiene como obje-
ing on an analysis of documents from the Ministry of tivo analizar las normas jurídicas de fortalecimiento
Health’s priority actions, programs, and strategies. A de la atención básica en salud. En este estudio se uti-
total of 224 provisions were identified, in two groups of lizó el análisis documental de acciones, programas y
documents, so-called instituting provisions and com- estrategias para el fortalecimiento de la atención pri-
plementary provisions. The former include the prin- maria, priorizados por el Ministerio de Salud. Se han
ciples and guidelines of the Brazilian Unified National encontrado 224 reglas para dos grupos de documentos:
Health System (SUS) and also involve the expansion of normas fundacionales y normas complementarias.
actions. Financing was a quantitatively central theme, Las normas fundacionales, además de llevar consigo
especially in the complementary provisions. The anal- los principios y directrices del Sistema Único de Salud
ysis led to reflection on the extent to which these strate- (SUS), también significaron una ampliación de accio-
gies can induce linkage between health system manag- nes. El tema de financiación ocupó un lugar central en
ers and civil society in building a political project re- las normas cuantitativas, especialmente en relación
sulting in improvements and meeting the population’s con las complementarias. Por último, este análisis lle-
health needs. va a la reflexión sobre cómo estas estrategias inducen a
la construcción de un proyecto político que responda a
Enacted Statutes; Executive; Health Policy las necesidades de salud de la población.

Normas Jurídicas; Poder Ejecutivo; Política de Salud

Recebido em 07/Dez/2014
Versão final reapresentada 01/Mai/2015
Aprovado em 23/Jul/2015

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 32(3):e00181314, mar, 2016

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