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Corpo, Identidade e Bom-Mocismo - Cotidiano de Uma Adolescã Ncia Bem-Comportada
Corpo, Identidade e Bom-Mocismo - Cotidiano de Uma Adolescã Ncia Bem-Comportada
Belo Horizonte
2000
Copyright © 2000 by Alex Branco Fraga
Capa
Jairo Alvarenga Fonseca
(sobre imagem, s/título, de Flávio Gonçalves)
Editoração eletrônica
Waldênia Alvarenga Santos Ataide
Revisão
Cilene De Santis
CDU 37
37.013
2000
Autêntica Editora
Rua Tabelião Ferreira de Carvalho, 584
31170-180 - Belo Horizonte - MG
PABX: (31) 481 4860
www.autenticaeditora.com.br
Apesar de parecer um trabalho solitário o processo de
construção desse livro contou com o apoio de pessoas
especiais que gostaria de agradecer. Profissionais e estu-
dantes da escola Maria Fausta, em particular a professo-
ra Andrea; Parceiras do GEERGE, especialmente Dagmar
e Jane pela dedicação na leitura das versões prelimina-
res; Luís Henrique companheiro de estudo em diferentes
momentos; Flávio amigo de sempre pela produção da ima-
gem que compõe a capa; Guacira pela forma atenta, crítica
e afetiva com que tratou cada escrito que lhe entregava,
idéia que lhe trazia, dúvida que me assaltava; Estelita pela
paciência em escutar cada trecho que não fluía; Gicelda
pela compreensão e carinho partilhados em quase uma
década de convívio e Hector que há pouco mais de um
ano vem reinventando nossa vida.
S UMÁRIO
APRESENTAÇÃO 09
INTRODUÇÃO 15
DOCUMENTOS DE PERCURSO 19
A materialidade do documento 21
SUJEITOS E LUGARES 25
Construção de um sentimento de cidade 27
Anatomias urbanas 32
Escola Maria Fausta 39
A turma de 8ª série 42
As aulas de educação física 48
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I NTRODUÇÃO
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1
Essa pesquisa resultou na dissertação de mestrado “Do corpo que se distin-
gue: a constituição do bom-moço e da boa-moça nas práticas escolares”
(1998), desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, orientada por Guacira Lopes Lou-
ro. O presente texto é integralmente baseado nessa dissertação.
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Conforme Michel de Certeau, 1996.
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DOCUMENTOS DE PERCURSO
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As citações das falas dos(as) alunos(as) que estão ao longo do texto
foram extraídas desse documento.
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A materialidade do documento
O documento não é uma “matéria inerte”, no qual se ten-
ta reconstituir o que se disse ou o que se fez em um outro mo-
mento; ele tem sua própria dinâmica, capaz de operar sucessivas
reformulações no projeto teórico-metodológico que se tinha de-
senhado. Portanto para se evitar cristalizações dentro do cam-
po de análise, é preciso trabalhar sobre a materialidade do
documento, não para distinguir os acontecimentos pela sua
maior ou menor importância, valor ou coerência, mas sim para
tentar articular as diversas coisas ditas e não-ditas em relação a
um determinado campo discursivo.
Procurei estruturar o texto em uma dinâmica que pudesse
costurar em cada trecho as referências teóricas às análises do
documento; acentuando-as aqui e ali — mas sem colocá-las em
um lugar soberano —, para que pudessem partir ou para onde
pudessem convergir todos os fatos. Tampouco se tratava do con-
trário, usar uma prática como lugar de nascimento de uma futu-
ra construção teórica (FISCHER, 1996). Era, então, necessário
construir um texto que procurasse alinhavar essa complexidade.
Para me movimentar dentro dessa lógica, tomei como
referência teórica autores e autoras relacionadas com pesqui-
sas na área dos Estudos Culturais, mais especificamente em
sua articulação com o aporte teórico dos Estudos Feministas,
de Gênero, Corpo, Sexualidade e Educação, bem como autores
e autoras que se relacionam com algumas das teorizações de
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2
Aqui a noção de discurso não se encontra alicerçada somente sob o ponto
de vista lingüístico, mas sim como uma força constituinte do sujeito, na
qual a preocupação não é tanto com o que as palavras querem dizer ou
com o que elas escondem, mas sim perceber como o conjunto das coisas
ditas/não-ditas e as práticas relacionadas funcionam e se fazem funcio-
nar no sujeito. Esse, por sua vez, não é entendido como “uma consciência
que fala, o autor da formulação, mas uma posição que pode ser ocupada,
sob certas condições, por indivíduos indiferentes” (FOUCAULT, 1995a, p.
133). Nessa perspectiva, um indivíduo só se torna sujeito quando se en-
contra identificado em algum discurso, isto é, quando se sujeita a ele
(PINTO, 1989). Conforme Jorge Larrosa, “o discurso não admite nenhuma
soberania exterior a si mesmo, nem a de um mundo de coisas da qual seria
uma representação secundária, nem a de um sujeito que seria sua fonte ou
sua origem (...) É inserindo-se no discurso, aprendendo as regras de sua
gramática, de seu vocabulário e de sua sintaxe, participando dessas prá-
ticas de descrição e redescrição de si mesma, que a pessoa se constitui e
transforma sua subjetividade (1995, p. 66-68).
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SUJEITOS E LUGARES
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Extraído do poema “O mapa” de Mário Quintana.
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Depois de algumas modificações, tanto de posição quanto de estrutura,
essa ponte passou a se chamar “Travessia Francisco Medeiros”.
3
Segundo Mombach (1991), nesse período, devido ao grande contingente
de migrantes provenientes do estado vizinho ao Rio Grande do Sul,
Cachoeirinha passa a ser considerada a “capital de Santa Catarina”.
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“Estiveram engajados no movimento a Associação dos Vicentinos, apostolado
da oração e muitos outros moradores que se encarregaram do abaixo-
assinado para a realização do plebiscito. Assim, em quinze dias realizaram
o pleito e montaram o processo, que foi enviado e aprovado pela Assem-
bléia Estadual em 9 de novembro de 1965” (MOMBACH, 1991, p. 83).
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A forte tutela da igreja no processo de construção das escolas em Cachoeirinha,
de alguma forma se relaciona com o surgimento da escola pública há pouco
mais de um século. Historicamente, a escola para a classe popular surgiu
como uma necessidade, primeiramente católica, de formar o sujeito cristão
ancorando-se na perspectiva moral da reclusão, tal como nos conventos.
Depois, ao ser absorvida pelo estado, vai se pôr a corrigir a classe trabalha-
dora nos seus desvios de conduta, considerados extremamente prejudiciais
para si mesma e para os desígnios da espécie. A escola, então, vai aos
poucos burilando esse sujeito, tornando-o progressivamente um bom traba-
lhador — herdeiro legítimo de um saber racional e de uma lógica religiosa;
isto é, de um bom aprendiz e de um bom cristão (JONES, WILLIAMSOM, 1979;
VARELA, ÁLVAREZ-URÍA, 1992; BOOM, NARODOWISKI, 1996).
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Anatomias urbanas
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Toda esta luta tinha por trás uma revolta, pois senti-
am-se discriminados não só administrativamente,
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As paradas do transporte coletivo intermunicipal foram e são referências
fundamentais dentro dessa longa avenida. Essas paradas incorporadas
na geografia urbana atual, conservam um sentimento de cidade-passa-
gem que tem seus pontos de fixação entre aqueles/as que estão lá “pa-
rados” por mais tempo.
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A formulação desse conceito se deu no âmbito da organização policial e
médica imposta às cidades entre os séculos XVIII e XIX. Definia-se dentro
do traçado urbano os lugares de maior probabilidade de ocorrência de
crimes ou doenças. Relacionava-se diretamente as características físicas do
lugar, tais como ruas estreitas e mal ventiladas, ausência de escolas, esgoto
a céu aberto, etc., às características morais dos habitantes. Dessa forma,
acreditava-se que as doenças contagiosas e a criminalidade, se desenvolviam
em função da predisposição topográfica de determinados locais que influen-
ciavam os hábitos e as atitudes da população. (JONES e WILLIAMSON 1979).
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Na região metropolitana de Porto Alegre esse termo popular tem o mes-
mo significado que avenida.
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Neste trabalho, as referências espaciais em relação à avenida Flores da
Cunha serão tomadas sempre no sentido Porto Alegre/Cachoeirinha.
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Na região metropolitana de Porto Alegre, geralmente o termo “vila” é usado
em um sentido depreciativo. O sujeito “vileiro” é aquele que representa
algum tipo de risco ao bom cidadão. No entanto em Cachoeirinha pratica-
mente todas as localidades da cidade, independentemente da posição so-
cial, são reconhecidas por esse termo. Dentro dessa lógica, a Vila Márcia e
a Vila Regina são tidas como localidades bem situadas pela proximidade
com a faixa. Mas nessa complexa distribuição geográfica, a “nobreza” da
cidade ocupa o lado direito da avenida, onde se destaca a Vila Eunice.
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A turma de 8a série
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O conselho de classe participativo é um ritual escolar realizado sempre
ao final de cada bimestre, no qual todos os alunos são defrontados com
todo o corpo docente para uma avaliação e projeção de seus desempe-
nhos escolares. A escola dedica um dia de aula exclusivamente para
esta atividade. Aos alunos é dado o direito de “falarem tudo” o que
estiverem achando de errado em relação à escola ou aos professores.
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A figura do regente corresponde a uma espécie de “professor-confessor”
escolhido pela própria turma para ouvir as queixas e dificuldades
trazidas pelos alunos dentro da escola, ou até mesmo fora, dependendo
do relacionamento entre o regente e a turma.
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Tradução minha a partir do original em espanhol (BOOM, NARODOWISKI,
1996, p. 9).
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Este é um termo bastante popular entre escolares. Identifica um grupo
de pessoas pela relação de estreita afinidade entre si. As panelas não se
limitam apenas à própria turma, existem alunos(as) que pertencem a
panelas ligadas a uma ou outra turma em função dos laços de amizade
construídos em outras instâncias fora da escola.
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Essa é a atual denominação oficial para “futebol de salão”.
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Esse é um termo usado para definir um campo de atuação na educação
física que compreende diferentes manifestações ginásticas. No entanto,
uso esse termo para designar um conjunto de atividades realizadas
naquela escola com seqüência de movimentos ritmados, acompanhados
por música e não enquadrados em nenhuma referência padronizada ou
regra oficial.
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Educativos são exercícios decompostos de atividades físicas mais ge-
rais, que têm por objetivo o aprimoramento de certas habilidades.
Procura-se, por meio dessa técnica, fazer com que determinado movi-
mento requerido por uma atividade esportiva possa ser aprimorado
fora do contexto do jogo.
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As preferências musicais recaíam sobre Daniela Mercuri, Lulu Santos,
Skank, Legião Urbana, Shakira e alguns grupos de dance music.
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O TEMPO “TATUADO” NO CORPO
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Rosa Maria Bueno Fischer trabalha detalhadamente esse tema em sua
tese de doutorado intitulada Adolescência em discurso: mídia e produção de
subjetividade (1996).
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“O termo ‘pedagogia cultural’ refere-se à idéia de que a educação ocorre
numa variedade de locais sociais incluindo a escola, mas não se limitan-
do a ela. Locais pedagógicos são aqueles onde o poder se organiza e se
exercita, tais como bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos,
anúncios, videogames, livros, esportes, etc...” (STEINBERG, 1997, p.101-2).
3
Dentro dessa lógica transgressora, a juventude dos anos 60 e 70 tornou-se
fonte de contestação política e social, impulsionando grandes movimentos
contra os tradicionais padrões de comportamento, principalmente o sexu-
al. Algo que nos anos 80 toma outros rumos com o surgimento de “tribos
urbanas” e dos “modos espetaculares de aparecimento” (ABRAMO, 1994 e
FISCHER, 1996).
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“Árbitros del deseo” são os “cientistas do sexo”, os guardiões das defi-
nições acerca da normalidade/anormalidade do comportamento huma-
no do século XX (WEEKS, 1993. Tradução minha).
5
Trata-se de um relação de poder e saber que o sujeito estabelece sobre si,
“um intenso voltar-se para si mesmo e em si encontrar a verdade, em
nome de uma estilização da vida” (FISCHER, 1996, p. 81).
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Aberastury e Knobel relacionam a adolescência a certos distúrbios psico-
lógicos. A angústia gerada pela dificuldade de renunciar a algo, a altera-
ção freqüente de conduta diante de uma mesma situação, as crises de
personalidade, entre outros, dependendo do momento de vida em que
apareçam, são catalogadas como atitudes normais ou anormais (1981).
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“Demonização” da adolescência:
é na rua que mora o perigo
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Termo utilizado por Helena Abramo (1994) para se referir a um sentimento
emergente sobre o adolescente na década de 50 na Europa; e também por
Green e Bigum (1995) que apontam “uma onda crescente de pânico moral,
cujo foco é o suposto desvio da juventude contemporânea — não apenas
sua diversidade ou sua diferença, mas mais radicalmente, sua alteridade,
e a ameaça que isso apresenta para o observador” (p. 212).
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Conforme Roszak apud Abramo, 1994, p. 40.
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Pesquisa publicada pelo jornal Correio do Povo, 1997, p. 8, grifos meus.
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Conforme Varela, Alvarez-Uría, 1992.
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Na esteira desses casos, tantos outros passaram a ser notados no cenário
escolar: alunos(as) de 8ª série de uma escola municipal puseram fogo
no cabelo de uma professora. Em uma outra os(as) alunos(as) se diver-
tiam colocando fogo em latas de lixo ou em trabalhos expostos nas
paredes. Em uma escola particular um aluno, ciente do risco iminente
de explosão, resolveu abrir o gás utilizado no laboratório de ciências,
repleto de alunos(as) que realizavam experimentos com materiais infla-
máveis. Com isso, é possível apontar um desdobramento “incendiário”
dessa identidade adolescente “fora-de-controle”, que escandaliza e põe
à prova os valores mais estimados do bem-viver coletivo.
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Filme norte-americano produzido em 1995 a partir do roteiro de um adoles-
cente de 19 anos de idade. Foi dirigido por Larry Clark, reconhecido pelo
trabalho fotográfico que desenvolve junto a adolescentes desde 1960. No
filme todos os atores e atrizes são jovens amadores, praticantes de skate e
amigos do roteirista, que empresta ao filme um caráter de documentário,
reforçando a idéia de “realidade” do mundo jovem (FISCHER, 1996).
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Conforme conceito de Edward Said, 1996.
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Adolescência “endeusada”:
o bom filho (e a boa filha) à casa torna
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Rosa Fischer (1996) cita em seu trabalho uma pesquisa feita por uma
agência de publicidade americana e publicada no Brasil pela revista
Veja, em que foram entrevistados mais de seis mil jovens entre 15 e 18
anos de idade de 26 países diferentes. Alguns dados são interessantes,
como por exemplo o fato de que a maioria dos(as) jovens anseia por
emprego e uma vida estável; sonha com o consumo de bens que propor-
cionem maior conforto e informação; não confia na classe política e tem
preocupações com o dinheiro e a saúde, a própria e a dos pais, em quem
confiam plenamente.
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O Onda é um retiro espiritual no qual dezenas de jovens passam um fim-
de-semana juntos em um lugar afastado do centro da cidade sob os cuida-
dos da igreja. O grupo é dividido em equipes que cumprem funções previ-
amente estabelecidas. Os “marujos da sala de máquinas” ficam responsá-
veis pela organização em “terra firme”; os “surfistas” são participantes
mais velhos vinculados ao CLJ que “deslizam” sobre o “Onda” e se envol-
vem com os menores; os “marujos de apoio” cuidam da programação
cultural do retiro; os “marujos de cozinha” são responsáveis pela alimenta-
ção e os “marujos maré-mansa” fazem a ligação entre “terra” (família) e o
“mar” (o retiro). Os adultos que participam também têm suas funções: O
“timoneiro” é o coordenador-geral; o “intermediário” é o vice-coordenador;
o “clandestino” faz a ligação entre as equipes; o “casal âncora” é que o
representa os pais, atua como conselheiro e confessor; e o “casal bóia”
substitui eventualmente o “casal âncora”. Todas as atividades são cuida-
dosamente montadas como um quebra-cabeça, no qual o objetivo princi-
pal é descobrir quem é afinal o “capitão” que os conduz habilmente na
travessia deste mar turbulento. No último dia a grande verdade se revela:
o capitão é Jesus Cristo.
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Tradução minha a partir do original em espanhol (FOUCAULt, 1991, p. 48).
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Com a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, em outubro de 1997, várias
reportagens vêm expondo um jeito de ser jovem bastante diferente da-
queles “demonizados” que normalmente ocupam esse recanto da mídia.
Como por exemplo um jovem padre carioca, surfista e líder de um
grupo de jovens denominado “Deus é 10”; o padre Marcelo Rossi, com
sua “aeróbica de Cristo”, que ganhou notoriedade a partir de 1998,
além da exposição de várias cenas referentes ao estilo de vida de outros
tantos jovens que partilham dessa nova “onda”: curtir as delícias da
adolescência, mas com a benção de Deus.
18
Essa foi a opinião de um padre convidado a debater a relação entre o
jovem e a igreja no mundo de hoje no programa “Falando abertamente”
da TVCOM de Porto Alegre (1997). Nesse programa participaram do
debate quatro jovens envolvidos com a organização de uma grande pas-
seata pela paz promovida pela Igreja naquele ano e realizada em Porto
Alegre. Segundo os dados fornecidos pelo padre, o CLJ é um movimento
muito forte que está presente em 47 paróquias da capital, o que para ele
significa um movimento constante de revitalização da Igreja católica,
pois “o CLJ é jovem, inteligente e alegre”.
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Conforme Varela; Alvares-Uria (1992), as práticas de recristianização se
constituíram no processo de recuperação implementado pela igreja para
reinstaurar uma doutrina cristã que se via afetada no período renascentista.
Em função de uma necessidade de afirmação em um mundo em mudan-
ça, a Igreja católica passa a apostar na própria reestruturação, investindo
seu arcabouço moral na educação de crianças e jovens, na crença de que
pela sua fraqueza física e moral se abriria a possibilidade, desde cedo, de
se inculcar hábitos, atitudes e comportamentos voltados para a retidão
do caráter e a educação da vontade.
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Essa atividade foi elaborada basicamente pelas turmas da 6ª série. Este
grupo fez o Onda sob a coordenação de duas meninas da turma de 8ª
série que pertenciam ao CLJ.
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Bom-mocismo: configuração
de um modo de ser adolescente
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Ah! eu pedi por favor para ele sair e ele não saiu; pedi
mais duas vezes e ele não saiu; daí eu fiquei pensan-
do... se eu não fizer nada esse cara vai pensar que tô
“arregando” para ele; então eu peguei e olhei pro
lado e vi que tinha uns amigos meus por ali; um deles
fez sinal como quem diz vai; e aí eu dei com o “taco”
na cabeça do cara...
21
Conforme Aurélio (1986), arrego é uma gíria que exprime impaciência
ou irritação. Essa definição não corresponde ao uso desse termo no Rio
Grande do Sul, pelo menos na região metropolitana de Porto Alegre.
Encontrei nesse dicionário uma palavra similar: arreglo que é o ato ou
efeito de arreglar; ajuste, combinação. A maneira como o termo foi
empregado me pareceu mais próxima desse sentido, pois quando se diz
que fulano “arregou” para ciclano, entende-se que fulano aceitou as
condições que estavam sendo impostas por ciclano. Aproxima-se mais
da idéia de ceder a algo que está sendo pleiteado por uma pessoa ou
grupo: “Pô, fulano, tu vais deixar assim, não vais pegar o que é teu de
volta!... tu vais arregar para ele!... Nessa lógica, arregar seria acovardar-
se diante de algo ou alguém.
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Para Christian Pociello (1995), a combatividade, bravura, valentia, alti-
vez, etc. compõem basicamente o que ele chama de “virtudes viris”,
sentimentos masculinos tradicionais prestigiados em alguns esportes
coletivos, como no caso do futebol.
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Conforme Michel de Certeau, 1996.
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A constituição do
bom-moço e da boa-moça
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Sistema educacional estruturado para comportar meninos e meninas de
forma conjunta.
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Utilizo a palavra “criado” no sentido atribuído pelo dicionário Aurélio
(1986); como um modo de ser educado pela família/escola e também
como sinônimo de moço: alguém obediente que se põe à disposição dos
outros. Sujeito bem-criado, diferente do mal criado.
26
Segundo Denise Sant’Anna (1995b), durante boa parte da primeira meta-
de deste século se estruturaram rígidas prescrições médicas, baseadas na
moral católica, que procuravam manter sob controle o embelezamento
feminino: “A mulher de mais má pinta é a que mais a cara pinta”. Assim,
qualquer extravagância poderia pôr em risco a moral das “boas moças de
família”, caso não primassem pela modéstia no trato da própria beleza.
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Louro e Meyer (1993) citam que essas habilidades fizeram parte do
currículo de algumas escolas destinadas a educação de mulheres, con-
forme pesquisa na Escola Técnica Ernesto Dornelles em Porto Alegre
(1946-1970). Lá as mulheres se formavam nos “ofícios caseiros”. Esse
tipo de escola já não existe mais, no entanto, “sob novas formas, a
escola continua imprimindo sua ‘marca distintiva’ sobre os sujeitos. Por
meio de múltiplos e discretos mecanismos, escolarizam-se e distinguem-
se os corpos e as mentes masculinos e femininos” (LOURO, 1997, p. 62).
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Essa música trata basicamente do desejo masculino em relação à mulher
do tipo “gostosa”, acentuando o dilema entre resistir ou se entregar aos
prazeres da carne. Tal situação fica mais evidente na seguinte passa-
gem: “Eu detesto o jeito dela, mas pensando bem, ela fecha com meus
sonhos como ninguém”.
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“Na construção social da identidade do gaúcho brasileiro há uma refe-
rência constante a elementos que evocam um passado glorioso no qual
se forjou sua figura, cuja existência seria marcada pela vida em vastos
campos, a presença do cavalo, a fronteira cisplatina, a virilidade e a
bravura do homem ao enfrentar o inimigo ou as forças da natureza, a
lealdade, a honra, etc.” (Oliven, 1993, p. 24).
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A “pilcha” é um conjunto de vestes tradicionais dos antigos gaúchos
compreendendo basicamente a bombacha, botas, lenço e chapéu. Foi
oficializada como traje de honra e de uso preferencial no Rio Grande do
Sul, a partir de uma lei estadual de 1989 (Oliven, 1993).
95
vida rural a um modo de vida urbano, quase sempre em uma
perspectiva urbana. No Rio Grande do Sul, apesar da diversi-
dade interna, a contraposição que se estabelece é entre o gaú-
cho, cavaleiro e peão de estância originário da Campanha, região
rural da fronteira sudoeste do estado31 e o rural do restante do
país, representado na figura do caipira. Essa associação não
deixa de investir na mesma hierarquia que organiza a relação
rural/urbano nas outras regiões do país.
Na parte da paródia musical, a 8ª série compôs sua letra a
partir de uma canção do CLJ, que tratava das mágoas do homem
caipira em relação a sua esposa. A canção começava contando
que certa vez o pobre caipira havia sentido uma imensa atração
por outra mulher mas que sublimara em respeito à esposa e à
família. Não quis lhe “cornear”. Porém no final da história des-
cobre o que menos esperava: a esposa já havia lhe “corneado”
com o compadre. A letra retratava a desgraça de um homem mo-
ralmente bom e cumpridor de suas obrigações familiares. Apon-
tava para o perigo que constantemente ronda as mulheres e o
quanto é necessário manter a vigilância sobre seu comportamen-
to nas mais diferentes instâncias. Aqui o fato também preponde-
rante é que nessa narrativa a traição é tratada de maneira diferente
para cada gênero. Em muitos lugares essa é uma atitude indistin-
tamente recriminada, mas para os homens há uma certa licença
social concedida em nome do instinto de macho. Quando é a
mulher quem trai, a “tragédia” se instala. Para Valerie Walkerdi-
ne “os comportamentos não são ‘lidos’ de uma forma equivalen-
te. O que é lido como natural na masculinidade pode ser lido
como não-natural e ameaçador na feminilidade” (1995, p. 217).
Nesse conjunto, o processo de conformação dos(as) ado-
lescentes rumo à sonhada maturidade toma por base as regula-
mentações sociais exercidas sobre o núcleo familiar fundamental:
à mulher cabe a maternidade e o posterior cuidado com os(as)
filhos(as), enquanto ao homem cabe prover o sustento da família.
31
Conforme Ruben G. Oliven, 1993.
CORPO EM DISCURSO
1
Gilles Deleuze ao comentar a obra de Foucault aponta que a visibilidade
não é algo dado a ver na realidade, assentado no sujeito ou no objeto. “É
preciso apoderarmo-nos das coisas para lhes extrairmos as visibilida-
des. E a visibilidade numa dada época é o regime de luz, o resplandecer,
os reflexos, os relâmpagos que se produzem pelo contato da luz com as
coisas. Da mesma maneira, é preciso fender as palavras, ou as frases,
para lhes extrairmos os enunciados (1996, p. 72).
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2
Michel Foucault, 1996a, p.125.
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3
Para maiores detalhes sobre essa relação ver Michel de Certeau (1996).
4
Termo utilizado por Foucault que se refere a um saber sobre o corpo que
não se restringe ao seu funcionamento, mas também ao controle de suas
forças na tentativa de suprimi-las. É uma instrumentação multiforme
que não se localiza em nenhum ponto específico do tecido social, mas
que o atravessa em todos os sentidos.
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5
Conforme Paul Virilio, 1996.
6
Produto químico de forte odor utilizado na conservação de cadáveres em
laboratórios de anatomia. Aqui procurei utilizar esse termo como metá-
fora de discursos com pretensões de conservação, que insistem na crista-
lização de uma tradição inventada, procurando manter intacta uma
determinada estrutura narrativa.
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7
“Ser dono de si mesmo significa que a parte superior, a razão, domina a
parte inferior, os apetites (...) Se a alma está dominada pelos apetites,
que são por natureza insaciáveis (...) e estão em perpétuo conflito (lite-
ralmente em guerra civil...), só há inquietude, agitação, excesso, literal-
mente caos. Mas a razão pode impor a ordem (kosmos), a calma e a
harmonia. Pode estabelecer prioridades entre os apetites necessários e os
desnecessários (...) Desse modo, a pessoa ‘ordenada’ pela razão mostra
uma espécie de autopossessão, estabilidade e unidade consigo mesma.
(LARROSA, 1995, p. 39).
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8
O termo moral assume uma série de significados em relação às condutas
humanas, cambiáveis em função de um tempo e de um lugar. Gilles
Deleuze, ao se referir ao conceito empregado por Foucault, define moral
como “um conjunto de regras que coagem, regras de um tipo especial
que consistem em julgar as ações e as intenções a partir de valores trans-
cendentes” (1996, p. 79-80).
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9
Alain de Lille, citado por Schimitt, vai traçar detalhadamente a forma de
se visualizar a “justa medida” da gestualidade cristã: “Ela (a modéstia)
delimita o gesto da cabeça (describit gestum capitis), equilibra com justeza
o rosto que ergue suavemente, para quem com uma fronte voltada e
estendida para o alto, ele não pareça desprezar nossos mortais, desde-
nhando de ver a terra. Um rosto excessivamente abaixado para a terra
indica um espírito ocioso e vazio: ela o eleva, pois, com moderação. Quan-
do o rosto não ultrapassa a medida, nem se elevando nem se abaixando,
é que a constância imprimiu sua marca ao espírito” (1995, p. 155).
10
Segundo Deleuze “o atual não é o que somos, mas aquilo em que vamos
nos tornando (...) a história é o arquivo, é o desenho do que somos e
deixamos de ser, enquanto o atual é o esboço daquilo em que vamos nos
tornando (1996, p. 93).
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11
Querubim era uma personagem literária do século XVIII, na qual Philippe
Ariès vislumbrava alguns traços de uma adolescência emergente. Trata-
va-se de um menino marcado corporalmente pela ambigüidade de gêne-
ro, onde a semelhança com o lado feminino recaía sobre aquele que estava
recém-deixando a infância (1986).
12
Em quase todo o Brasil, até bem pouco tempo atrás, o uniforme era
obrigatório em uma aula de educação física. Consistia em um agasalho
esportivo, geralmente na cor azul-marinho, para os dias mais frios. Nos
dias mais quentes usava-se camisetas brancas, calções azul marinho ou
preto, meias brancas e um calçado fechado. Alguns manuais traziam
toda uma justificativa científica baseada nos preceitos higiênicos, que
via na exigência do uso de tais roupas a possibilidade de se construir
um corpo mais saudável.
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Aqui o termo “goleira” é utilizado como feminino de “goleiro” e não
como “meta”, composta de duas traves e um travessão, lugar onde se
procura fazer o gol. Mesmo com a participação crescente das mulheres
em vários níveis do futebol, esse esporte ainda mantém uma nomencla-
tura que remete a uma tradição masculina.
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Essa peça será abordada em maiores detalhes no texto que leva seu
nome: “Brinquei de médico... deu no que deu!”.
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Pedi que ele me falasse mais sobre como via essa diferença:
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Educação física:
15
um instrumento de escarificação
15
Os instrumentos de escarificação possuem vários formatos e são usados
para produzir diferentes incisões sobre a pele. Para Michel de Certeau
(1996) são instrumentos que trabalham sobre o corpo não apenas de
forma material, mas também de forma simbólica, pois gravam sobre a
superfície corporal dos sujeitos uma determinada lei.
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Em cada aula que envolvia atividades gimno-rítmicas a professora pro-
punha a criação de alguns passos, primeiramente no grande grupo e
depois nos diferentes subgrupos. No final da atividade, pelo menos um
passo era escolhido para compor a seqüência geral. Era um trabalho de
composição diária, onde os movimentos deveriam ser sincronizados,
exigindo uma certa simetria no conjunto.
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Futebol “normal”
No bimestre em que se praticou o futebol, a própria profes-
sora escolheu três meninas e dois meninos para que fossem líde-
res de seus respectivos grupos. Esses por sua vez sorteariam os
nomes dos(as) integrantes do grupo a ser formado. Como se tra-
tava de um sorteio, a distribuição entre meninos e meninas não
ficou equilibrada. Acabou se formando um grupo só de meninos
e a maior parte dos demais grupos só de meninas. A professora
viu-se obrigada a intervir nessa composição. Aqui a preocupa-
ção era manter o equilíbrio nos jogos entre os grupos para não
afetar o ânimo das meninas, pois a idéia não era fazer das parti-
das disputadas uma “guerra dos sexos” — algo bem diferente da
idéia de jogos mistos.
Em função dessa configuração eram necessários cinco
integrantes em cada grupo, como dois ficaram com quatro com-
ponentes, a cada partida alguém que não estivesse jogando na-
quele momento seria “emprestado” para completar essas
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17
Segundo o dicionário Aurélio (1986): “1. Jogo de futebol ligeiro, sem
importância, em geral entre garotos ou amadores, e que se realiza em
campo improvisado.
125
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frases do tipo: “na hora o cara fica com a cabeça quente, mas de-
pois do jogo não dá nada”. Christian Pociello (1995) afirma que
nos esportes mais duros, combativos e violentos como o futebol
talvez ainda sejam encontrados os últimos bastiões de expressão
de uma virilidade tradicional; lugares onde os valores masculi-
nos ainda podem circular publicamente com rara legitimidade e
sem nenhuma vergonha.
O jogo de relações que se estabelecia nessas aulas era bas-
tante interessante. Os meninos, ao mesmo tempo que mantinham
uma postura de seriedade exigida por um discurso masculini-
zante, mostravam-se mais gentis nos jogos, não disputavam ne-
nhum lance de forma mais ríspida, nem mesmo entre eles. Naquele
grupo a dureza e as atitudes agressivas cediam lugar a um com-
portamento na maioria das vezes mais fraterno. Esse comporta-
mento mais sensível, em relação a um esporte que tem na mútua
agressão, na resistência à dor e na virilidade suas principais
características, fazia parte de uma intrincada negociação entre
as diferentes identificações que constituíam os meninos daquela
comunidade. Para eles parecia ser dura a tarefa de ter de nego-
ciar nos seus próprios corpos uma série de solicitações culturais
que lhes diziam como produzir uma masculinidade apropriada.
Segundo Robert Connell há uma narrativa convencional
que aponta referências socialmente fixadas, que visam definir
condutas e sentimentos apropriados para os homens.
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Dava para perceber nos jogos mistos que esse menino era
um dos que apresentava maior habilidade com a bola nos pés,
mas isso não lhe era suficiente, pois a identidade masculina é
coisa “séria”, por isso não bastava o reconhecimento da habili-
dade com a bola nos jogos entre as meninas, era necessário dar
um toque de seriedade às partidas nas aulas. Para ele se torna-
va muito mais importante ter seu talento reconhecido em uma
“verdadeira” partida de futebol. Demonstrar superioridade
técnica ou física sobre um outro menino no futebol é um elemen-
to muito valorizado na cultura masculina brasileira.
Dois fatos interessantes ocorreram em uma das aulas de
futsal. Durante um dos jogos mistos um menino em uma dispu-
ta de bola com uma outra menina levou a pior, caiu no chão,
mas não chegou a se machucar. Ele, enquanto estava caído,
reclamou para a professora da entrada mais agressiva da cole-
ga. A menina reagiu fortemente dizendo: “Ai guri! deixa de ser
florzinha, não pode nem te encostar... tu não tá vendo que tu tá
jogando junto com guria... vê se age que nem homem!” O meni-
no não respondeu, ficou até certo ponto espantado com a rea-
ção. Imediatamente se levantou e continuou jogando como se
nada tivesse acontecido.
Logo que ocorreu a inversão dos grupos, eu me aproxi-
mei dessa menina e lhe perguntei o que realmente tinha aconte-
cido naquele lance. Ela já foi logo dizendo:
128
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada
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sua desenvoltura era considerada boa, mas elas não desfruta-
vam do certificado de posse que por força de tradição é outorga-
do aos meninos. Essa sensação ficou mais explícita no dia em
que os meninos jogaram com as meninas na presença de alguns
amigos mais velhos, que inclusive foram ex-alunos da própria
escola. Aparentemente os meninos da turma estavam menos a
vontade do que o habitual. Em um determinado momento do
jogo um deles sofreu um gol marcado por uma das meninas.
Isso provocou imediata gozação dos ex-alunos. O menino ten-
tou reparar a situação dizendo que tinha deixando a bola pas-
sar para equilibrar o jogo. Entretanto o fato é que não conseguia
reconhecer o mérito da jogada muito bem executada por ela.
Para ele levar um gol de uma guria era uma situação inadmissí-
vel, principalmente na frente de outros meninos; porém aparen-
tava não estar indignado, mas sim muito constrangido. Pelo
que se pôde observar, os meninos suportavam jogar futebol com
as meninas, mas achavam ultrajante serem superados, mesmo
em momentos muito raros de um jogo de caráter escolar.
Pelo que se mostrou, a cada mínimo deslocamento im-
plementado por alguma ação no território alheio, outros tantos
movimentos eram acionados para reafirmar o caráter transcen-
dente das oposições binárias. As fronteiras de gênero já não
estavam mais fixadas nos jogos de futsal ou na composição da
coreografia, mas no quanto cada uma dessas modalidades era
modificada para atender a uma característica feminina ou mas-
culina considerada inata.
Por isso, nem sempre a co-participação em atividades
reconhecidas como de um ou outro gênero resulta em estremeci-
mento na polarização masculino/feminino. Barrie Thorne, ci-
tada por Guacira Louro (1997), argumenta que essa interação
fronteiriça entre gêneros tanto pode abalar e reduzir o sentido
da diferença como pode, ao contrário, fortalecer as distinções e
os limites.
VOZES DA SEXUALIDADE
1
Para Foucault o dispositivo da sexualidade é um dos pontos de passagem
mais significativos nas relações de poder, pois amplia as formas de regulação
social pela estimulação dos corpos, intensificação dos prazeres, incitação
ao discurso e formação de conhecimentos sobre o próprio corpo. “O dispo-
sitivo de sexualidade tem, como razão de ser, não o reproduzir, mas o
proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar nos corpos de maneira cada
vez mais detalhada e controlar as populações de modo cada vez mais
global” (1997, p. 100-1).
131
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2
Para Foucault, o discurso sobre a sexualidade não era algo que se encon-
trava reprimido nos corpos, mas sim disperso por todo o sistema social.
“Consideremos os colégios do século XVIII. Visto globalmente, pode-se
ter a impressão de que aí, praticamente, não se fala de sexo. Entretanto,
basta atentar para os dispositivos arquitetônicos, para os regulamentos
de disciplina e para toda a organização interior: lá se trata continuamen-
te de sexo” (1997, p. 30).
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3
Em algumas sociedades africanas, como também na Índia, ainda hoje é
possível encontrar rituais de extirpação do clitóris quando a menina
atinge a puberdade. Crêem que com esse procedimento de fundo religi-
oso estão preservando o corpo da futura “mulher-esposa-mãe” das
manifestações libidinosas consideradas nefastas a sua condição — uma
identidade que se marca a “ferro” no corpo feminino.
4
Conforme Michel Foucault, 1997.
135
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5
“Brinquei de médico... deu no que deu!” estreou em 1993 e foi uma das
primeiras montagens de um grupo de teatro local, vinculado à Secretaria
Municipal de Educação e Cultura (SMEC). No início de 1997, quando
passaram a atuar de forma independente, remontaram e encenaram até o
final de 1997 esse mesmo roteiro, quando então o grupo se dissolveu. Essa
peça, escrita, dirigida e encenada por pessoas daquela comunidade,
surgiu em um momento em que vários produtos culturais foram (e conti-
nuam sendo) lançados na mídia voltados para o público teen nos mais
variados segmentos: literatura, cinema, programas de televisão, revistas,
complementos de jornais, etc. (FISCHER, 1996).
137
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6
As turmas da escola Maria Fausta assistiram ao espetáculo juntamente com
as turmas de outra escola municipal. Com isso, o público presente naquele
dia na Casa de Cultura municipal era de aproximadamente 250 pessoas.
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7
Não foi por acaso que em 1997 a família foi o tema da campanha da
fraternidade, desencadeada anualmente pela Igreja católica. Algo que
tradicionalmente já tem o apoio e a divulgação da mídia, neste ano rece-
beu um tratamento todo especial em virtude da visita ao Brasil do Papa
João Paulo II. Essa visita deu visibilidade a uma série de grupos de jovens
engajados nos mais diferentes movimentos da Igreja, mostrando a força
interpelativa do discurso católico nessa faixa etária.
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PODE NÃO SER TÃO
BOM QUANTO PARECE
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Em meio a tantas coisas ditas e não-ditas, é preciso esta-
belecer um ponto final que aqui, como nos finais de cada capí-
tulo, significa um ponto de articulação para as inúmeras
possibilidades abertas pelo texto.
O importante não é definir o que há de “mau” em ser
“bom” ou o que há de “bom” em ser “mau”, ou seja, não é
pertinente estabelecer um “juízo final” sobre as ações dos sujei-
tos analisados. Esse grupo de adolescentes compõe uma “anto-
logia de existências”1 que pertence ao nosso tempo mas que
não serve de lição ou receita sobre o que é apropriado ou não no
trato com escolares.
Talvez seja mais prudente apontar que esse dualismo
não é algo naturalmente dado; faz parte de uma complexa in-
venção cultural que procura fixar desigualdades e distinções.
Talvez fosse possível dizer que a construção em si mesmo desse
sujeito bom-moço não se dá sem padecimento, pois para se tor-
nar parte desse discurso é preciso trazer inscrito no próprio
corpo uma lei de obediência que exige renúncias; além de estar
atravessada nessa mesma inscrição a idéia de eliminação do
outro; o reverso desse lado bom — algo que pode não ser tão
bom quanto parece.
1
Conforme Michel Foucault, 1993, p. 89.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
159
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160
Corpo, identidade e bom-mocismo — Cotidiano de uma adolescência bem-comportada
GEERTZ, Clifford. “Estar lá, escrever aqui”. In: Diálogo. v. 22, n. 3, 1989,
p. 58-63.
161
C OLEÇÃO TRAJETÓRIA
________. “El mal social, el vicio solitario y servir el té”. In: FEHER,
Michel, NADDAFF, Ramona, TAZI, Nadia (Org.). Fragmentos
para una historia del cuerpo humano. Madrid: Taurus, 1992b, p.
334-343. (Tomo III).
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163
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SFEZ, Lucien. A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia São Paulo:
Unimarco/Loyola, 1996.
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