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Graça Cardoso, Antonio Luengo, Bruno Trancas, Carlos Vieira, Dóris Reis

Aspectos Psicológicos do Doente Oncológico


Graça Cardoso*, Antonio Luengo**, Bruno Trancas***, Carlos Vieira**, Dóris Reis****

Resumo: patient and family. From the moment of


the diagnosis on, the patient has to develop
A doença oncológica é acompanhada de mar‑ a great number of mechanisms and tasks
cado sofrimento psicológico que atinge o of adjustment to the illness and its circu‑
doente e a família. O doente enfrenta, a partir mstances. The high prevalence of anxiety
do momento do diagnóstico, um conjunto de and depressive disorders during the course
mecanismos e de tarefas de adaptação à doen‑ of cancer increases in the end stage disea‑
ça e suas circunstâncias. A grande prevalência se. Therefore, a global plan of intervention
de quadros de ansiedade e depressão no seu integrating somatic and psychological/
decurso é mais acentuada na fase terminal. psychiatric care throughout all the phases
Destes factos decorre a necessidade de um of the illness is crucial in the treatment of
plano terapêutico global integrando os cui‑ these patients. Health professionals working
dados somáticos e psicológicos/psiquiátricos on this field can also experience emotional
em todos os estadios da doença oncológica. Os reactions to their patients’ suffering. They
profissionais de saúde também estão sujeitos should be aware of the emotional aspects
a reacções emocionais face ao sofrimento que involved and develop training to help them
presenciam, pelo que, é importante estarem intervene adequately with the patient and
atentos aos aspectos emocionais e desenvolve‑ the family. The articulation between onco‑
rem formação que lhes permita intervir de for‑ logists, palliative care professionals, and
ma adequada junto do doente e da família. A mental health care teams can be of great
articulação de oncologistas e profissionais de help in providing good quality of care to
cuidados paliativos com as equipas de saúde cancer patients.
mental pode ter um papel importante para a
prestação de cuidados de qualidade a doentes Key­‑Words: Cancer; Psychological Aspects;
oncológicos. Psychosocial Intervention.
Palavras­‑Chave: Doença Oncológica; Aspec‑
tos Psicológicos; Intervenção Psicossocial. Introdução
Psychological Aspects of Cancer As doenças oncológicas atingem actualmente
Patients uma parte importante da população e o ris‑
Abstract: co de apresentar uma ao longo da vida é de
40,9%1. Em contrapartida, a probabilidade de
Cancer is accompanied by important sobreviver a uma doença oncológica aumen‑
psychological distress experienced by both tou de forma dramática nos últimos anos,

8 • Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE


* Directora de Serviço: Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE; CEDOC, Departamento de Saúde Mental, Faculdade de Ciências Médicas,
Universidade Nova de Lisboa, gracacardoso@gmail.com.
** Interno de Psiquiatria: Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE.
*** Interno de Psiquiatria: Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE; CEDOC, Departamento de Saúde Mental, Faculdade de Ciências Médi‑
cas, Universidade Nova de Lisboa.
**** Assistente Hospitalar: Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, Hospital S. Francisco Xavier, Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, EPE.
Aspectos Psicológicos do Doente Oncológico

devido ao diagnóstico mais precoce e às inter‑ melhor qualidade de vida e melhor adaptação
venções terapêuticas mais incisivas. Uma em à doença oncológica.
cada duas doenças oncológicas é curável. No Diversos aspectos da doença são susceptíveis
entanto, apesar dos avanços técnicos, 23,1% de desencadear reacções emocionais intensas
das mortes em 2004 nos EUA 1 e 21,3% das e prolongadas. A incerteza em relação ao fu‑
mortes em 2003 em Portugal 2 foram devidas turo, o sofrimento e dor física, a dependência,
a doenças oncológicas. a perda de controlo sobre os acontecimentos,
O diagnóstico de doença oncológica, ainda os efeitos secundários dos tratamentos, a re‑
muito associado a uma evolução fatal, e os corrência da doença e os problemas da se‑
tratamentos que a acompanham são fonte de paração e da morte, são alguns dos aspectos
intenso sofrimento psicológico para o doente e com maior impacto psicológico. Os profissio‑
para a família. Apesar de alguns doentes con‑ nais também não estão imunes a reacções
seguirem adaptar­‑se à doença, outros apre‑ emocionais face ao sofrimento a que assis‑
sentam dificuldades nessa adaptação após o tem e às difíceis decisões que têm de enfren‑
diagnóstico (ou até antes), sendo possível a tar na sua actividade clínica.
ocorrência de perturbações emocionais, como
é o caso de ansiedade e/ou depressão clinica‑
mente significativas. A presença de comorbi‑ 1. Implicações psicológicas para o
lidade psicológica nestes doentes é elevada, doente, família e profissionais
sendo frequentemente acompanhada por sin‑
tomas físicos como a fadiga, a insónia, a perda 1.1 Implicações Psicológicas para o Doente
de apetite ou perturbações na esfera sexual.
Provavelmente não existe uma forma única de Os problemas emocionais e o sofrimento psi‑
resposta psicológica à doença oncológica que cossocial são comuns quando os indivíduos se
se possa considerar uma “adaptação adequa‑ confrontam com uma doença oncológica e a
da”. Cada doente lida com a doença oncoló‑ iminência da sua morte.
gica de forma pessoal e individual, contudo, A vulnerabilidade psicossocial à doença on‑
o facto de alguns doentes oncológicos tende‑ cológica é específica para cada indivíduo e
rem a suprimir a expressão das suas emoções, depende, além das circunstâncias em que ela
pode contribuir para o aumento dos níveis ocorre, do significado pessoal atribuído à do‑
de ansiedade e depressão. Pelo contrário, os ença. Este é afectado pela percepção individual
doentes que utilizam estratégias focadas no do impacto da doença no próprio e no seu pla‑
problema e que procuram apoio psicossocial, no de vida. Engloba também a percepção do
conseguem manter uma auto­‑estima elevada, indivíduo acerca da sua capacidade em atin‑

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gir objectivos futuros e manter a viabilidade através dos media, de situações análogas ou
de acções interpessoais. sempre que o doente tem uma consulta médica
Um estudo canadiano demonstrou a existên‑ de seguimento. Perante uma remissão alguns
cia de sofrimento psicossocial significativo em doentes conseguem lidar melhor com o receio
18% a 79% dos doentes oncológicos, depen‑ de recorrência de doença, enquanto outros vivem
dendo da fase da doença, enquanto que na atormentados por este receio.
população geral este era de 21%. No mesmo Numa fase mais avançada da doença, o fim da
estudo, em doentes internados por outros mo‑ vida torna­‑se, para muitos doentes, dolorosa‑
tivos, a prevalência de sofrimento psicossocial mente real, assim como as suas consequên‑
era de cerca de 66% e nos doentes em regime cias, nomeadamente a perda de continuidade
de ambulatório, esta era de aproximadamente com o futuro e das relações com os que ficam.
30%3. Valores semelhantes foram encontrados A tomada de consciência do afastamento que
noutros estudos4 em que o aumento da pre‑ irá ocorrer em breve pode ser antecipado e,
valência de sofrimento psicológico esteve asso‑ mesmo na presença de outros, o doente pode
ciado à fase terminal da doença. sentir­‑se sozinho e isolado.
Este sofrimento atribuível à doença oncoló‑
gica é, em grande parte, adequado à situação Busca de um Significado
e envolve mecanismos de adaptação (descri‑ Quando as pessoas são confrontadas com al‑
tos por vários autores, de entre os quais se guma adversidade, lidam melhor com ela se
destaca Kübler­‑Ross5). Deste processo pode conseguem encontrar uma explicação aceitável
depender um maior ou menor risco de de‑ para a mesma. Para a maioria das doenças on‑
senvolver uma perturbação psiquiátrica, que cológicas contudo, existem poucos factores de
venha tornar necessária uma intervenção risco claramente identificados (para além do
terapêutica. tabagismo, por exemplo), deixando um vazio
onde os doentes projectam as suas fantasias.
Incerteza Acerca do Futuro Perda de Controlo
Os doentes confrontam­‑se com a incerteza acer‑ A adaptação à situação de doença é mais fá‑
ca do curso da doença e a possibilidade de morte cil quando existe a possibilidade de fazer algo
prematura. A ideia da sua própria morte torna­‑se que tenha algum impacto benéfico na sua
mais tangível e quaisquer sintomas físicos podem evolução, como por exemplo, cumprimento
ser interpretados como um possível agravamento de determinada dieta alimentar ou realização
clínico, com repercussões sobre os níveis de an‑ de exercício físico na doença coronária. Na
siedade. Estes receios podem ainda ser desenca‑ doença oncológica os doentes não dispõem
deados por qualquer descrição, nomeadamente deste tipo de factores modificáveis, mas ain‑

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da assim, alguns procuram aderir a métodos necessário7. Muitos doentes “escolhem” um


psicológicos, como a relaxação ou grupos de número restrito de pessoas com quem falam
auto­‑ajuda. Os doentes que investem na do‑ abertamente acerca das suas dificuldades,
ença de uma forma construtiva com vista a mostrando­‑se reservados a partilhar o seu
melhorar a sua evolução, adaptam­‑se melhor sofrimento com terceiros.
do que os que acham que não há nada a fazer. Os sentimentos de exclusão podem ser inten‑
Estes últimos têm um maior risco de desenvol‑ sificados se o doente oncológico se apercebe
ver perturbação depressiva. que os outros se afastam. Alguns familiares
Na fase terminal os doentes debatem­‑se com e amigos têm dificuldade em manter com o
perdas reais que são consequência da doença, doente um nível de contacto equivalente ao
mas também com algumas perdas antecipa‑ que antecedia o período de doença, porque se
das relacionadas com a morte iminente. A sentem desconfortáveis em relação aos assun‑
sensação de perda de controlo pode aumentar, tos a abordar e receiam a reacção do doente
devido ao agravamento da doença e à presen‑ aos seus comentários ou receber más notícias.
ça de sintomas que não remitem apesar do Em regra, o doente que não consegue ultra‑
tratamento. passar alguma destas barreiras psicológicas
Podem estar presentes, relacionados com uma tem maior probabilidade de desenvolver um
possível redução da capacidade funcional e do estado de ansiedade ou depressão, ou uma
status social, uma diminuição da auto­‑estima, combinação dos dois, no primeiro ano de
sentimentos de auto­‑desvalorização e ainda alte‑ diagnóstico, para além de outras implicações
rações da imagem corporal6. possíveis resultantes do próprio tratamento da
doença oncológica7.
Necessidade de Diálogo
Um dos temas mais importantes para os O Sexto Sinal Vital
doentes oncológicos é o da comunicação com O sofrimento psicológico associado à doença
os elementos do seu meio social, familiar ou oncológica pode tomar várias formas – vai
laboral acerca da doença e dos tratamen‑ desde o medo, a preocupação e a tristeza até
tos. O sentimento de serem estigmatizados problemas incapacitantes como a depressão,
pela doença, ou o receio de provocar sofri‑ o pânico, a ansiedade ou o isolamento. Este
mento nos outros, leva­‑os a falarem menos é um elemento da saúde do doente oncológi‑
abertamente acerca da sua patologia. Esse co de tal forma relevante que, em Junho de
“secretismo” pode dificultar a adaptação psi‑ 2004, a Canadian Strategy for Cancer Con‑
cológica à doença e aumentar o isolamento. trol 8 apoiou a proposta de incluir o sofri‑
Pelo contrário, a possibilidade de diálogo mento emocional (emotional distress) como
permite ao doente receber o apoio emocional o sexto sinal vital a ser avaliado por rotina,

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juntamente com a frequência cardíaca, pres‑ restantes sinais vitais9. Existe neste momento
são arterial, respiração, temperatura e dor4. uma escala – a Distress Thermometer10 – de
Serviu de racional a esta proposta o facto de aplicação simples, permitindo o rastreio, mo‑
vários estudos de prevalência, já referidos, re‑ nitorização frequente e, quando necessário,
velarem níveis elevados de sofrimento asso‑ tratamento adequado.
ciado à doença. Apesar deste conhecimento,
verifica­‑se que na prática clínica, em geral, 1.2. Implicações Psicológicas para a Fa‑
poucos esforços têm sido realizados no sen‑ mília
tido de alterar e valorizar esta dimensão dos
As famílias são profundamente afectadas pela
cuidados aos doentes oncológicos. Um inqué‑
doença aguda e crónica de um dos seus mem‑
rito9 realizado no Canadá em centros de tra‑
bros e a doença oncológica é uma das situações
tamento de doença oncológica demonstrou
vividas com maior envolvimento. As activida‑
que o total de gastos com cuidados psicosso‑
des do quotidiano, os papéis, as relações com
ciais era inferior aos dispendidos em limpeza,
os outros e o significado da vida ficam altera‑
por exemplo. O facto de os recursos económi‑
dos, uma vez que a vida muda de um estado de
cos serem limitados não justifica esta falta
saúde para um de doença. A doença oncológica
de investimento, uma vez que o sofrimento
acrescenta uma nova dimensão mesmo para os
psicológico tem associados custos elevados –
que enfrentam uma doença mais prolongada.
maior recurso a consultas médicas e serviços
O doente e a família lutam, não apenas com
de urgência e a tratamentos dispendiosos de
o presente e tudo o que envolve a doença on‑
quarta e quinta linha, entre outros, numa
cológica e seus cuidados, mas com os aspectos
tentativa de aliviar a ansiedade dos doentes.
avassaladores associados à doença e a transcen‑
Pelo contrário, alguns estudos realizados9
dência para além da doença3. Além dos receios
vieram apoiar a redução de custos decorrente
e preocupações partilhados pelos doentes, os
do desenvolvimento de intervenções psicos‑
familiares preocupam­‑se com as alterações na
sociais. A população com doença oncológica
condição física do seu ente querido e com um
está em rápida expansão prevendo­‑se que nos
processo de luto antecipatório, mas também
países ditos desenvolvidos esta venha a du‑
com problemas práticos, como a escolha dos
plicar nos próximos quinze anos. Este facto,
serviços onde irão ser prestados os cuidados, a
associado aos elevados níveis de sofrimento
avaliação da qualidade dos mesmos e o local
emocional decorrentes, tem vindo a aumen‑
para onde o doente transitará na fase termi‑
tar a sensibilização dos profissionais de saú‑
nal. A família de um doente oncológico tem ela
de para que este seja avaliado, por rotina,
própria necessidades diversas3: a) estar com a
em todos os doentes oncológicos, tal como os
pessoa doente; b) poder ajudar na evolução e

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desfecho da doença; c) receber apoio, confirma‑ situação clínica e o seu prognóstico. A informa‑
ção e reforço do seu contributo para o conforto ção deve ser prestada de forma sensível e com‑
do doente; d) ser informado acerca da condição preensiva, tendo em conta a dificuldade que
do doente e da sua morte iminente; e) poder ex‑ os doentes e a família possam ter em aceitá­‑la
teriorizar emoções; f) receber conforto e apoio e a possibilidade de negarem a realidade do
dos membros da família; e, g) receber aceita‑ que é comunicado. Alguns profissionais, pro‑
ção, apoio e conforto dos profissionais de saúde. vavelmente devido a dificuldades próprias, to‑
mam por vezes a decisão de não comunicar ao
1.3. Implicações Psicológicas para os Pro‑ doente e à família o provável curso da doença.
fissionais de Saúde Outros, pelo contrário, podem dar informação
“negativa” demasiado cedo e com demasiada
Os técnicos que lidam com doentes oncoló‑
frequência, não deixando espaço à esperança.
gicos necessitam ter a capacidade de identi‑
Para alguns doentes pode ser difícil aceitar
ficar, avaliar e, quando possível, minorar os
que existam limitações nos tratamentos actu‑
sintomas físicos da doença mas também a
ais para a sua doença e podem pressionar ou
incapacidade crescente, as alterações nos pa‑
exigir a continuação do tratamento actual, ou
péis sociais e o isolamento social associados
o início de tratamentos experimentais. Quan‑
com a doença e o processo de morte. Simul‑
do há recurso a quimioterapia ou radioterapia
taneamente, devem saber distinguir quando o
paliativas para o controlo de sintomas é impe‑
isolamento social ou as alterações nos papéis
rativo que a equipa transmita claramente ao
sociais são sinais de uma depressão clínica e
doente e à família que o objectivo é o controlo
quando a dor e sintomas da doença têm um
sintomático e não o prolongamento da vida3.
forte componente psicológico, requerendo
Ao providenciarem cuidados a doentes com
uma abordagem psiquiátrica ou psicológica.
uma esperança de vida previsivelmente cur‑
A intervenção deve ser feita a um ritmo ade‑
ta, os profissionais de saúde confrontam­‑se
quado às necessidades do doente e da família,
inevitavelmente com a ideia da sua própria
em vez de acontecer ao ritmo das expectativas
morte. Este confronto resulta por vezes na
e agenda do prestador de cuidados acerca do
identificação (muitas vezes de uma forma
que “deve ser feito”.
simples, “Se fosse eu…”)5, podendo funcio‑
Os movimentos de defesa dos direitos dos
nar positivamente como um reforço empá‑
doentes têm enfatizado o direito à informação
tico e útil na tomada de decisões mais pró‑
sobre a doença, que é actualmente consensual.
ximas às necessidades e vontade do doente.
Potencialmente mais problemáticas poderão
Corre, no entanto, o risco de se extremar de
ser a quantidade e o timing da informação a
forma prejudicial, levando o profissional a
ser transmitida ao doente e à família sobre a

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experienciar intensa e excessivamente as em fase terminal, estas tarefas de adaptação


vivências do doente. Pode haver também a podem ser vivenciadas noutras situações de
identificação do doente com determinada perda ou alteração, sentidas como significa‑
pessoa próxima ou familiar do profissional, tivas, e sobre as quais o indivíduo não tem a
com o risco de excessivo envolvimento, pre‑ capacidade ou possibilidade de induzir mo‑
judicial ao profissional e, provavelmente, ao dificação (ou esta ocorreria à custa de um
próprio doente. maior sofrimento).
É importante que os profissionais tenham O conhecimento destas fases de adaptação é
consciência das suas próprias reacções emo‑ imprescindível para os técnicos de saúde com‑
cionais e atitudes na relação com os doentes preenderem as reacções dos doentes perante
oncológicos, contribuindo para que adquiram a angústia da doença e da morte, terem uma
uma maior capacidade para lidar com as difi‑ resposta terapêutica e poderem prestar­‑lhes
culdades psicológicas/emocionais desencade‑ uma ajuda adequada11.
adas na prestação de cuidados a estes doentes.
2.1. Fases de Adaptação à Doença
a) Fase de Negação ou Denegação
2. Tarefas de adaptação à doença Quando confrontado com a notícia de que tem
oncológica uma doença potencialmente mortal, o doen‑
te recusa­‑se a aceitar a totalidade ou grande
Elizabeth Kübler­‑Ross5 foi a primeira au‑ parte do que lhe é comunicado. Kübler­‑Ross5
tora a estudar de uma forma sistemática a constatou que muitos dos doentes entravam
adaptação psicológica de pessoas a quem é num estado de choque inicial e verbalizavam
diagnosticada uma doença oncológica com não acreditar no que lhes era comunicado. Na
prognóstico reservado. Entrevistando doen‑ maioria dos casos, esta é uma fase transitória
tes oncológicos apercebeu­‑se da existência que tem como função permitir uma progressi‑
de várias fases de adaptação possíveis que va aceitação da realidade. É frequente existir
não são obrigatórias nem se sucedem pela uma negação parcial, isto é, os doentes recu‑
mesma ordem podendo, inclusivamente, sarem a existência da doença e/ou a sua gra‑
coincidir várias fases. Chegou também à vidade e, apesar de tudo, permanecerem inter‑
conclusão que nem todos os doentes enfren‑ nados nas instituições de saúde e continuarem
tam todas as fases identificadas, embora a efectuar os tratamentos médicos. A negação
experimentem, em geral, pelo menos duas poderá, igualmente, ocorrer noutras situações
delas. Ainda que descritas originalmente a quando o doente já se encontra num estado
partir da observação de doentes oncológicos emocional diferente e em fases mais tardias

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da doença. Nalguns casos os doentes podem cura. Trata­‑se de uma tentativa de ter algum
manter­‑se em negação até à morte ou iniciar controlo sobre as más notícias, pactuando
uma peregrinação de médico em médico na com Deus e com os médicos. “Se me curasse,
procura de um diagnóstico diferente que con‑ dedicaria toda a minha vida a ajudar os ou‑
firme o suposto “erro” do primeiro. tros”, “Doutor, ajude­‑me a viver mais alguns
anos, até que os meus filhos não precisem tan‑
b) Fase de Revolta to de mim”. É frequente que o doente siga es‑
O doente reconhece a existência de uma doen‑ crupulosamente o seu tratamento, que come‑
ça grave e mortal mas não a aceita, reagindo ce uma dieta mais saudável, que prometa ser
de forma típica com raiva e exprimindo re‑ mais compreensivo e tolerante com os outros
volta perante a sua má sorte. Esta fase é bas‑ e dedicar mais tempo às práticas religiosas,
tante difícil, tanto para a família como para como “moeda de troca” pelo prolongamento
os profissionais de saúde12. O doente pode ex‑ da sua vida.
primir críticas em relação ao médico por não
ter diagnosticado a tempo a sua doença, aos d) Fase de Depressão
enfermeiros por não serem suficientemente Quando os mecanismos anteriores fracassam,
rápidos na resposta aos seus pedidos e a Deus, o doente pode cair num quadro depressivo
por lhe ter imposto uma “sentença de morte”. grave, apresentando: desânimo generalizado,
Como consequência destes comportamentos, inquietação, alterações do sono e perda de
as pessoas que o rodeiam começam a afastar­ apetite, entre outros sintomas14.
‑se. É importante que esta revolta seja exterio‑ Kübler­‑Ross5 descreveu dois tipos de depressão
rizada e aceite, uma vez que se trata de uma que merecem diferentes abordagens por parte
reacção frequente e quase inevitável13. Kübler­ dos profissionais de saúde e da própria famí‑
‑Ross recomendou uma atitude de tolerância lia: a depressão reactiva e a depressão prepa‑
perante estas manifestações de revolta já que a ratória.
sua expressão poderá resultar em alívio e dará A depressão reactiva aparece devido aos senti‑
lugar posteriormente a uma aceitação mais mentos de impotência, muitas vezes relaciona‑
tranquila. dos com problemas ou necessidades do doente,
que precisam de ser equacionados e resolvidos,
c) Fase de Negociação quando o estado de saúde se deteriora.
Segundo Kübler­‑Ross5 esta fase é a menos co‑ Na depressão preparatória o doente está a
nhecida das várias fases de adaptação, mas das preparar­‑se para a morte e para a separação
mais importantes para o doente durante um daqueles e daquilo a que está mais ligado na
curto período de tempo. O doente já admite a vida. Nesta etapa, o silêncio e a presença de fa‑
existência da doença e tenta “negociar” a sua miliares são fundamentais.

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De início, a depressão é reactiva e o doente O nível de adaptação à doença no momen‑


exterioriza a sua tristeza. Poderá seguir­‑se to da morte varia de doente para doente:
um período de silêncio, durante o qual o uns continuam a negar a evidência, outros
doente se prepara para morrer, tornando­‑se afundam­‑se na depressão e só alguns atin‑
mais calmo e evitando as visitas. A comuni‑ gem a fase de aceitação. Estes últimos são
cação é, sobretudo, não verbal e o doente de‑ descritos como sendo os que podem manter
seja apenas a presença física dos familiares e conversas profundas, que conseguem aceitar
amigos mais próximos. os aspectos positivos e negativos da vida, de‑
monstrando maior maturidade e uma vida
e) Fase de Aceitação
interior e interpessoal mais fecunda.
Nesta fase, o doente compreende que a doença
Outros autores descreveram movimentos de
e sua evolução são inevitáveis, mas pode reagir
adaptação à doença. Para Stedeford15 estes
fechando­‑se em si mesmo e evitando os fami‑
consistem em a) choque e embotamento, b)
liares. Esta atitude pode ser difícil de aceitar
ansiedade e denegação, c) interrogações, d)
para os mesmos, que não compreendem o pro‑
zanga e culpabilidade, e) luto e, finalmente, f)
cesso e se sentem ofendidos ou irritados com
resignação ou aceitação. Embora pretendam
este comportamento.
ser um contraponto às fases de Kübler­‑Ross e
Kübler­‑Ross5 constatou que os doentes em fase
introduzam alguns matizes, na realidade têm
terminal que receberam apoio apresentavam
muito em comum com as fases anteriormente
um percurso mais fácil até à aceitação. Veri‑
descritas.
ficou também que os doentes mais idosos, que
tinham uma vida construída (filhos adultos e
2.2. Factores que Modificam a Adaptação
uma situação profissional já percorrida), ne‑
cessitavam de menos ajuda para alcançar a A adaptação à doença oncológica é influen‑
fase de aceitação mais rapidamente. ciada por factores pessoais, sócio­‑culturais e
Alguns doentes aceitam, desde o início, a ideia médicos6.
de que são portadores de uma doença que Entre os factores pessoais contam­‑se os aspec‑
os pode levar à morte. Decidem, no entan‑ tos da personalidade, a maturidade afectiva,
to, viver como se estivessem bem e passam a os mecanismos de adaptação habitualmente
comportar­‑se como se os seus projectos para usados (coping), experiências anteriores com
o futuro não fossem afectados pela doença. doenças ou perdas, tanto do próprio como de
Estes doentes não mudam o seu estilo de vida familiares e amigos, a existência de antece‑
e podem esconder a sua doença do resto das dentes psiquiátricos e ainda perspectivas es‑
pessoas, mesmo das mais próximas. pirituais, religiosas ou filosóficas que possam
facilitar a esperança ou a aceitação.

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Aspectos Psicológicos do Doente Oncológico

Os factores sócio­‑culturais incluem as atitudes As características pessoais, as atitudes e os


sociais face à doença e à morte, os recursos conhecimentos dos cuidadores, assim como
sócio­‑económicos e o nível de apoio social. A o local onde os cuidados são ministrados
doença oncológica é actualmente encarada podem ter um efeito mais ou menos tran‑
com mais optimismo nas sociedades desenvol‑ quilizante16.
vidas. Os resultados da investigação permiti‑ A resiliência individual, isto é, a capacidade de
ram criar tratamentos mais selectivos e menos resistir à adversidade é um factor que permi‑
tóxicos, associados ao aumento da sobrevivên‑ te manter a dignidade e a qualidade de vida,
cia e da taxa de cura16. Os avanços científicos mesmo em situações adversas. Doentes cujos
justificam por vezes o pouco interesse pela familiares morreram de doença oncológica
temática da morte e dos que estão a morrer. em grande sofrimento podem ter níveis mais
Nesse contexto, os objectivos da intervenção altos de ansiedade. Outra fonte de ansiedade é
médica podem correr o risco de se tornar emi‑ o receio de serem abandonados pelas pessoas
nentemente curativos, descurando os cuidados que os tratam. Transmitir que tudo será feito
paliativos e considerando­‑os como menos im‑ para evitar o sofrimento e que serão acompa‑
portantes. nhados até ao fim, contribuirá para diminuir
Dentro dos factores médicos estão o tipo de grande parte da sua angústia12.
doença, a natureza dos sintomas e as atitu‑ Em todas as fases descritas por Kübler­‑Ross5, há
des dos técnicos. Os factores decorrentes da um traço comum presente em todos os doentes:
doença incluem o tipo de doença oncológica, a esperança. É ela que permite que se sujeitem
o seu estadio, a sintomatologia (especial‑ a exames e tratamentos médicos, na expectativa
mente a presença de dor e de incapacidade de encontrarem uma derradeira cura.
funcional) e o prognóstico14. A experiência e
a sensibilidade do médico, assim como a pre‑
ocupação manifestada e a disponibilidade na Agradecimentos
prestação de cuidados ao longo da evolução
Os autores agradecem ao Dr. Carlos Carvalho
da doença são enormes fontes de apoio para
o apoio dado na revisão do manuscrito e as
o doente e a família. Um dos aspectos impor‑
sugestões apresentadas.
tantes para uma pessoa em fase terminal é
a possibilidade de falar sobre a sua morte. O
médico deve abordar esta temática disponi‑
bilizando o seu tempo para ouvir e partilhar
experiências sobre o tema13.

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18 • Revista do Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE

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