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Graça Cardoso, Antonio Luengo, Bruno Trancas, Carlos Vieira, Dóris Reis

Aspectos Psicológicos do Doente Oncológico


Graça Cardoso*, Antonio Luengo**, Bruno Trancas***, Carlos Vieira**, Dóris Reis****

RESUMO: patient and family. From the moment


of the diagnosis on, the patient has to
A doença oncológica é acompanhada de develop a great number of
marcado sofrimento psicológico que atinge mechanisms and tasks of adjustment to
o doente e a família. O doente enfrenta, a
partir do momento do diagnóstico, um the illness and its circu‑ mstances. The
conjunto de mecanismos e de tarefas de high prevalence of anxiety and
adaptação à doença e suas circunstâncias. A depressive disorders during the course
grande prevalência de quadros de ansiedade e of cancer increases in the end stage
depressão no seu decurso é mais acentuada disea‑ se. Therefore, a global plan of
na fase terminal. Destes fatos decorre a intervention integrating somatic and
necessidade de um plano terapêutico global psychological/ psychiatric care
integrando os cuidados somáticos e throughout all the phases of the illness
psicológicos/psiquiátricos em todos os is crucial in the treatment of these
estágios da doença oncológica. Os profissionais patients. Health professionals working
de saúde também estão sujeitos a reações on this field can also experience
emocionais face ao sofrimento que emotional reactions to their patients’
presenciam, pelo que, é importante estarem suffering. They should be aware of the
atentos aos aspectos emocionais e emotional aspects involved and
desenvolverem formação que lhes permita develop training to help them intervene
intervir de forma adequada junto do doente e adequately with the patient and the
da família. A articulação de oncologistas e family. The articulation between onco‑
profissionais de cuidados paliativos com as logists, palliative care professionals,
equipes de saúde mental pode ter um papel and mental health care teams can be
importante para a prestação de cuidados de of great help in providing good quality
qualidade a doentes oncológicos. of care to cancer patients.
Palavras‑Chave: Doença Oncológica; Key‑Words: Cancer; Psychological
Aspectos Psicológicos; Intervenção Aspects; Psychosocial Intervention.
Psicossocial.
INTRODUÇÃO
POSGyICAHLO L ASPECTS OF CANCER As doenças oncológicas atingem atualmente
PATIENTS uma parte importante da população e o
Abstract: risco de apresentar uma ao longo da vida é
de
40,9%1. Em contrapartida, a probabilidade de
Cancer is accompanied by important sobreviver a uma doença oncológica
psychological distress experienced by aumentou de forma dramática nos últimos
both anos,

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* Directora de Serviço: Serviço de Psiquiatria do Hospital Prof. Doutor Fernando Fonseca, EPE; CEDOC, Departamento de Saúde Mental, Faculdade de Ciências
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devido ao diagnóstico mais precoce e às inter‑ melhor qualidade de vida e melhor adaptação
venções terapêuticas mais incisivas. Uma em cada à doença oncológica.
duas doenças oncológicas é curável. No entanto, Diversos aspectos da doença são susceptíveis de
apesar dos avanços técnicos, 23,1% das mortes em desencadear reações emocionais intensas e
2004 nos EUA 1 e 21,3% das mortes em 2003 em prolongadas. A incerteza em relação ao
Portugal 2 foram devidas a doenças oncológicas. futuro, o sofrimento e dor física, a
O diagnóstico de doença oncológica, ainda muito dependência, a perda de controle sobre os
associado a uma evolução fatal, e os tratamentos acontecimentos, os efeitos secundários dos
que a acompanham são fonte de intenso sofrimento tratamentos, a recorrência da doença e os
psicológico para o doente e para a família. Apesar de problemas da separação e da morte, são
alguns doentes con‑ seguirem adaptar‑se à doença, alguns dos aspectos com maior impacto
outros apre‑ sentam dificuldades nessa adaptação psicológico. Os profissionais também não
após o diagnóstico (ou até antes), sendo possível a estão imunes a reações emocionais face ao
ocorrência de perturbações emocionais, como é o sofrimento a que assistem e às difíceis
caso de ansiedade e/ou depressão clinicamente decisões que têm de enfrentar na sua
significativas. A presença de comorbi‑ lidade atividade clínica.
psicológica nestes doentes é elevada, sendo
frequentemente acompanhada por sintomas físicos
como a fadiga, a insónia, a perda de apetite ou 1. IMPLICAÇõES PSICOLÓGICAS PARA O
perturbações na esfera sexual. Provavelmente não DOENTE, FAMÍLIA E PROFISSIONAIS
existe uma forma única de resposta psicológica à
doença oncológica que se possa considerar uma 1.1 Implicações Psicológicas para o Doente
“adaptação adequada”. Cada doente lida com a
doença oncológica de forma pessoal e individual, Os problemas emocionais e o sofrimento
contudo, o fato de alguns doentes oncológicos psicossocial são comuns quando os indivíduos
tenderem a suprimir a expressão das suas emoções, se confrontam com uma doença oncológica e
pode contribuir para o aumento dos níveis de a iminência da sua morte.
ansiedade e depressão. Pelo contrário, os doentes A vulnerabilidade psicossocial à doença on‑
que utilizam estratégias focadas no problema e que cológica é específica para cada indivíduo e
procuram apoio psicossocial, conseguem manter depende, além das circunstâncias em que ela
uma auto‑estima elevada, ocorre, do significado pessoal atribuído à
doença. Este é afetado pela percepção individual
do impacto da doença no próprio e no seu
plano de vida. Engloba também a percepção
do indivíduo acerca da sua capacidade em
atin-

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gir objetivos futuros e manter a viabilidade através dos meios de comunicação, de


de aações interpessoais. situações semelhantes ou sempre que o doente
Um estudo canadense demonstrou a existência tem uma consulta médica de seguimento.
de sofrimento psicossocial significativo em 18% Perante uma remissão alguns doentes
a 79% dos doentes oncológicos, dependendo conseguem lidar melhor com o receio de
da fase da doença, enquanto que na recorrência de doença, enquanto outros vivem
população geral este era de 21%. No mesmo atormentados por este receio.
estudo, em doentes internados por outros Numa fase mais avançada da doença, o fim da
motivos, a prevalência de sofrimento vida torna‑se, para muitos doentes,
psicossocial era de cerca de 66% e nos doentes dolorosamente real, assim como as suas
em regime de ambulatório, esta era de consequências, nomeadamente a perda de
aproximadamente 30%3. Valores semelhantes continuidade com o futuro e das relações com
foram encontrados noutros estudos4 em que o os que ficam. A tomada de consciência do
aumento da pre‑ valência de sofrimento afastamento que irá ocorrer em breve pode
psicológico esteve asso- ciado à fase terminal ser antecipado e, mesmo na presença de
da doença. outros, o doente pode sentir‑se sozinho e
Este sofrimento atribuível à doença isolado.
oncológica é, em grande parte, adequado à
situação e envolve mecanismos de adaptação Busca de um Significado
(descritos por vários autores, de entre os Quando as pessoas são confrontadas com
quais se destaca Kübler‑Ross5). Deste processo alguma adversidade, lidam melhor com ela
pode depender um maior ou menor risco de se conseguem encontrar uma explicação
desenvolver uma perturbação psiquiátrica, aceitável para a mesma. Para a maioria das
que venha tornar necessária uma doenças oncológicas contudo, existem poucos
intervenção terapêutica. fatores de risco claramente identificados
(para além do tabagismo, por exemplo),
Incerteza Acerca do Futuro deixando um vazio onde os doentes projetam
Os doentes confrontam‑se com a incerteza acerca as suas fantasias.
do curso da doença e a possibilidade de morte Perda de Controle
prematura. A ideia da sua própria morte torna‑se A adaptação à situação de doença é mais fácil
mais tangível e quaisquer sintomas físicos podem quando existe a possibilidade de fazer algo
ser interpretados como um possível agravamento que tenha algum impacto benéfico na sua
clínico, com repercussões sobre os níveis de evolução, como por exemplo, cumprimento
ansiedade. Estes receios podem ainda ser desenca‑ de determinada dieta alimentar ou realização
deados por qualquer descrição, nomeadamente de exercício físico na doença coronária. Na
doença oncológica os doentes não dispõem
deste tipo de fatores modificáveis, mas ain-

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da assim, alguns procuram aderir a métodos necessário7. Muitos doentes “escolhem” um


psicológicos, como o relaxamento ou grupos de número restrito de pessoas com quem falam
auto‑ajuda. Os doentes que investem na do‑ ença abertamente acerca das suas dificuldades,
de uma forma construtiva com vista a melhorar a mostrando‑se reservados a partilhar o seu
sua evolução, adaptam‑se melhor do que os que sofrimento com terceiros.
acham que não há nada a fazer. Estes últimos têm um Os sentimentos de exclusão podem ser
maior risco de desenvolver perturbação intensificados se o doente oncológico se
depressiva. apercebe que os outros se afastam. Alguns
Na fase terminal os doentes debatem‑se com perdas familiares e amigos têm dificuldade em
reais que são consequência da doença, mas também manter com o doente um nível de contato
com algumas perdas antecipadas relacionadas equivalente ao que antecedia o período de
com a morte iminente. A sensação de perda de doença, porque se sentem desconfortáveis em
controle pode aumentar, devido ao agravamento da relação aos assuntos a abordar e receiam a
doença e à presença de sintomas que não remitem reação do doente aos seus comentários ou
apesar do tratamento. receber más notícias. Em regra, o doente que
Podem estar presentes, relacionados com uma não consegue ultrapassar alguma destas
possível redução da capacidade funcional e do status barreiras psicológicas tem maior
social, uma diminuição da auto‑estima, sentimentos probabilidade de desenvolver um estado de
de auto‑desvalorização e ainda alte‑ rações da imagem ansiedade ou depressão, ou uma combinação
corporal6. dos dois, no primeiro ano de diagnóstico,
para além de outras implicações possíveis
Necessidade de Diálogo resultantes do próprio tratamento da doença
Um dos temas mais importantes para os doentes oncológica7.
oncológicos é o da comunicação com os elementos
do seu meio social, familiar ou laboral acerca da O Sexto Sinal Vital
doença e dos tratamentos. O sentimento de O sofrimento psicológico associado à doença
serem estigmatizados pela doença, ou o receio oncológica pode tomar várias formas – vai
de provocar sofrimento nos outros, leva‑os a desde o medo, a preocupação e a tristeza até
falarem menos abertamente acerca da sua problemas incapacitantes como a depressão, o
patologia. Esse “secretismo” pode dificultar a pânico, a ansiedade ou o isolamento. Este é
adaptação psicológica à doença e aumentar o um elemento da saúde do doente oncológico
isolamento. Pelo contrário, a possibilidade de de tal forma relevante que, em Junho de
diálogo permite ao doente receber o apoio 2004, a Canadian Strategy for Cancer
emocional Control 8 apoiou a proposta de incluir o
sofri‑ mento emocional (emotional
distress) como o sexto sinal vital a ser
avaliado por rotina, justamente com a
frequência cardíaca, pressão arterial,
respiração, temperatura e dor.

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Serviu de racional a esta proposta o fato de As famílias são profundamente afetadas pela
vários estudos de prevalência, já referidos, doença aguda e crónica de um dos seus
revelarem níveis elevados de sofrimento membros e a doença oncológica é uma das
associado à doença. Apesar deste situações vividas com maior envolvimento. As
conhecimento, verifica‑se que na prática atividades do quotidiano, os papéis, as relações
clínica, em geral, poucos esforços têm sido com os outros e o significado da vida ficam
realizados no sentido de alterar e valorizar alterados, uma vez que a vida muda de um
esta dimensão dos cuidados aos doentes estado de saúde para um de doença. A doença
oncológicos. Um inquérito9 realizado no oncológica acrescenta uma nova dimensão
Canadá em centros de tratamento de doença mesmo para os que enfrentam uma doença
oncológica demonstrou que o total de gastos mais prolongada. O doente e a família lutam,
com cuidados psicossociais era inferior aos não apenas com o presente e tudo o que
dispendidos em limpeza, por exemplo. O fato de envolve a doença oncológica e seus cuidados,
os recursos económi‑ cos serem limitados não mas com os aspectos avassaladores associados à
justifica esta falta de investimento, uma vez doença e a transcendência para além da doença3.
que o sofrimento psicológico tem associados Além dos receios e preocupações partilhados
custos elevados – maior recurso a consultas pelos doentes, os familiares preocupam‑se com
médicas e serviços de urgência e a tratamentos as alterações na condição física do seu ente
dispendiosos de quarta e quinta linha, entre querido e com um processo de luto
outros, numa tentativa de aliviar a ansiedade antecipatório, mas também com problemas
dos doentes. Pelo contrário, alguns estudos práticos, como a escolha dos serviços onde irão
realizados9 vieram apoiar a redução de custos ser prestados os cuidados, a avaliação da
decorrente do desenvolvimento de qualidade dos mesmos e o local para onde o
intervenções psicossociais. A população com doente transitará na fase termi‑ nal. A família
doença oncológica está em rápida expansão de um doente oncológico tem ela própria
prevendo‑se que nos países ditos necessidades diversas3: a) estar com a pessoa
desenvolvidos esta venha a du‑ plicar nos doente; b) poder ajudar na evolução e
próximos quinze anos. Este fato, associado aos desfecho da doença; c) receber apoio,
elevados níveis de sofrimento emocional confirmação e reforço da sua contribuição para
decorrentes, tem vindo a aumentar a o conforto do doente; d) ser informado acerca da
sensibilização dos profissionais de saúde para condição do doente e da sua morte iminente; e)
que este seja avaliado, por rotina, em todos poder exteriorizar emoções; f) receber
os doentes oncológicos, tal como os restantes conforto e apoio dos membros da família; e, g)
sinais vitais9. Existe neste momento uma receber aceitação, apoio e conforto dos
escala – a Distress Thermometer10 – de profissionais de saúde.
aplicação simples, permitindo o rastreio,
monitorização frequente e, quando necessário,
tratamento adequado.

1.2. Implicações Psicológicas para


a Família
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limitações nos tratamentos atuais para a sua


1.3. Implicações Psicológicas para os doença e podem pressionar ou exigir a
Profissionais de Saúde continuação do tratamento atual, ou o início
Os técnicos que lidam com doentes de tratamentos experimentais. Quando há
oncológicos necessitam ter a capacidade de recurso a quimioterapia ou radioterapia
identificar, avaliar e, quando possível, paliativas para o controle de sintomas é
minorar os sintomas físicos da doença, mas imperativo que a equipe transmita
também a incapacidade crescente, as alterações claramente ao doente e à família que o
nos papéis sociais e o isolamento social objetivo é o controle sintomático e não o
associados com a doença e o processo de prolongamento da vida3. Ao providenciarem
morte. Simultaneamente, devem saber cuidados a doentes com uma esperança de
distinguir quando o isolamento social ou as vida previsivelmente curta, os profissionais
alterações nos papéis sociais são sinais de de saúde confrontam‑se inevitavelmente
uma depressão clínica e quando a dor e com a ideia da sua própria morte. Este
sintomas da doença têm um forte confronto resulta por vezes na
componente psicológico, requerendo uma identificação (muitas vezes de uma forma
abordagem psiquiátrica ou psicológica. A simples, “Se fosse eu…”)5, podendo
intervenção deve ser feita a um ritmo funcionar positivamente como um reforço
adequado às necessidades do doente e da empático e útil na tomada de decisões
família, em vez de acontecer ao ritmo das mais próximas às necessidades e vontade do
expectativas e agenda do prestador de doente. Corre, no entanto, o risco de se
cuidados acerca do que “deve ser feito”. extremar de forma prejudicial, levando o
Os movimentos de defesa dos direitos dos profissional a experienciar intensa e
doentes têm enfatizado o direito à informação excessivamente a experiência do doente.
sobre a doença, que é atualmente consensual. Pode haver também a identificação do
Potencialmente mais problemáticas poderão doente com determinada pessoa próxima
ser a quantidade e o timing da informação a ou familiar do profissional, com o risco de
ser transmitida ao doente e à família sobre a excessivo envolvimento, prejudicial ao
situação clínica e o seu prognóstico. A profissional e, provavelmente, ao próprio
informação deve ser prestada de forma sensível doente. É importante que os profissionais
e com‑ preensiva, tendo em conta a tenham consciência das suas próprias reações
dificuldade que os doentes e a família possam emocionais e atitudes na relação com os
ter em aceitá‑la e a possibilidade de negarem doentes oncológicos, contribuindo para que
a realidade do que é comunicado. Alguns adquiram uma maior capacidade para lidar
profissionais, provavelmente devido a com as dificuldades psicológicas/emocionais
dificuldades próprias, tomam por vezes a desencadeadas na prestação de cuidados a estes
decisão de não comunicar ao doente e à família doentes.
o provável curso da doença. Outros, pelo
contrário, podem dar informação “negativa”
demasiado cedo e com demasiada frequência,
não deixando espaço à esperança. Para alguns
doentes pode ser difícil aceitar que existam
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