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As igrejas de Cachoeira

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO


Camila Fernanda Guimarães Santiago
Igor Roberto de Almeida Moreira
Sabrina Mara Sant’Anna (Org.)
As igrejas de Cachoeira
HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO

Camila Fernanda Guimarães Santiago


Igor Roberto de Almeida Moreira
Sabrina Mara Sant’Anna (Org.)

2020
Copyright © As Igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e ornamentação
Copyright © Clio Gestão Cultural e Editora

EDITORA: CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA

EDITORA EXECUTIVA:
Tânia Maria T. Melo Freitas
CONCEPÇÃO DA CAPA:
Ludmila Andrade Rennó
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Ludmila Andrade Rennó
REVISÃO GRAMATICAL:
Simone Mara de Jesus
REVISÃO GERAL:
Tânia Maria T. Melo Freitas
REGISTRO E CATALOGAÇÃO:
Gislene Rodrigues da Silva

CONSELHO EDITORIAL DA CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA:


Profª. Drª. Adalgisa Arantes Campos - UFMG - Brasil
Prof. Dr. Alfredo Morales - USE - Espanha
Profª. Drª. Ângela Brandão – UNIFESP – Brasil
Prof. Dr. Antônio Emílio Morga - UFAM - Brasil
Pe. Mestre Carlos Fernando Russo - UP – Portugal
Eng.º Mestre Fernando Roberto de Castro Veado – UFMG/IEPHA - Brasil
Prof. Dr. Luiz Alberto Ribeiro Freire – UFBA - Brasil
Prof. Dr. Luiz Carlos Villalta – UFMG - Brasil
Prof. Dr. Magno Moraes Mello – UFMG - Brasil
Profª. Drª. Mary del Priori - UNIVERSO - Brasil
Prof. Dr. Saul António Gomes – UC - Portugal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S235i Santiago, Camila Fernanda Guimarães.


As igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e ornamentação/
Camila Fernanda Guimarães Santiago; Igor Roberto de Almeida
Moreira; Sabrina Mara Sant’Anna. –
Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2020.
194f. : il.

Ebook formato pdf.


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E-ISBN: 978-65-89378-01-3

1. Bahia - história. 2. Patrimônio. 3. Arquitetura. 4. Igreja católica -


história. 5. Arte e religião. I. Título.

CDU – 930.85

Elaborada pela bibliotecária Gislene Rodrigues da Silva, CRB-6/MG 3293.

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ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem
a prévia autorização por escrito da Editora.

As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seus organizadores


e autores; não expressam necessariamente a posição da editora.

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As igrejas de Cachoeira
HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO

Camila Fernanda Guimarães Santiago


Igor Roberto de Almeida Moreira
Sabrina Mara Sant’Anna (Org.)

Belo Horizonte

2020
AS IGREJAS DE CACHOEIRA
HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO

FICHA TÉCNICA

Pesquisa
Camila Fernanda Guimarães Santiago
Igor Roberto de Almeida Moreira
Sabrina Mara Sant’Anna

Tradução latim-português
Francisco Taborda, SJ

Desenhos
Antônio Wilson Silva de Souza
Samantha Úrsula Sant’Anna

Fotografia
Chico Brito

Edição de imagens
Dionísio Silva
Juninho Motta
Magno Tavares
CONTEÚDO

Agradecimentos................................................................................................... 7

Apresentação...................................................................................................... 11

Capítulo 1: A formação do núcleo urbano de Cachoeira: dos primórdios


da colonização ao século XIX............................................................................15

Capítulo 2: Barroco, Rococó e Neoclássico: origens, principais


características e manifestações artísticas nas igrejas de cachoeira......................35

Capítulo 3: A Capela de Nossa Senhora d’Ajuda............................................. 49

Capítulo 4: A Capela da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo........ 59

Capítulo 5: A Capela da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora


do Monte do Carmo..........................................................................................79

Capítulo 6: A Matriz de Nossa Senhora do Rosário...................................... 105

Capítulo 7: A Capela do Hospital São João de Deus -


Santa Casa da Misericórdia..............................................................................133

Capítulo 8: A Capela de Nossa Senhora da Conceição do Monte................ 145

Capítulo 9: A Capela de Nossa Senhora do Rosário do Santíssimo


Coração de Maria do Monte Formoso............................................................159

Capítulo 10: A Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres............. 169

GLOSSÁRIO................................................................................................... 175
6 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
AGRADECIMENTOS

O livro As igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e orna-


mentação foi idealizado por três historiadores: professora doutora
Camila Fernanda Guimarães Santiago (Universidade Federal do Re-
côncavo da Bahia; Centro de Artes, Humanidades e Letras), professo-
ra doutora Sabrina Mara Sant’Anna (Universidade Federal do Recôn-
cavo da Bahia; Centro de Artes, Humanidades e Letras) e mestrando
Igor Roberto de Almeida Moreira (Universidade do Estado da Bahia;
Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local). Integra-
ram a equipe do projeto o professor doutor Antônio Wilson Silva de
Souza (Universidade Estadual de Feira de Santana; Departamento de
Letras e Artes), autor dos desenhos a nanquim que ilustram o livro, e
o fotógrafo Chico Brito. A equipe contou com a gentil colaboração de
estudiosos, de profissionais de áreas diversas e de membros da comu-
nidade cachoeirana. O livro, portanto, é fruto de um esforço coletivo.
Agradecemos imensamente a todos os envolvidos, cujas contribuições
foram fundamentais e imprescindíveis.
Agradecemos ao padre professor doutor Francisco Taborda, SJ
(Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia) pelo criterioso trabalho de
tradução das inscrições em latim presentes na ornamentação de algumas
igrejas de Cachoeira e pela erudita orientação acerca dos aspectos
teológicos que envolvem a arte sacra cristã. Ao professor doutor Luiz
Alberto Ribeiro Freire (Universidade Federal da Bahia; Escola de Belas
Artes) por compartilhar conosco seu profundo conhecimento sobre a
talha barroca, rococó e neoclássica na Bahia. As plantas arquitetônicas
das igrejas foram meticulosamente desenhadas pela arquiteta e urbanista
Samantha Úrsula Sant’Anna, a quem muito agradecemos. Todas as

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 7


imagens que ilustram o livro receberam tratamento adequado para
publicação; agradecemos a colaboração, o empenho e a dedicação dos
seguintes profissionais: Juninho Motta, Dionísio Silva e Magno Tavares.
Nossa gratidão é também dirigida a todos que nos ajudaram na produção
do recinto interno das igrejas para a realização do serviço fotográfico:
Balbino dos Santos Ramos, Alexandre Inácio de Matos, Antônio Jorge
Cerqueira Machado, Fábio dos Santos Sacramento, Germano Mendes
Vilas Boas, Rodrigo de Oliveira da Silva e Sandro Araújo.
Contamos com o atencioso acompanhamento dos responsáveis
pelas igrejas de Cachoeira nas várias vezes em que estivemos nos edifícios
para a realização de estudos, desenhos e fotografias. Nestas ocasiões,
testemunhamos o zelo, a preocupação e o carinho que todos eles dedicam
ao patrimônio. Muitíssimo obrigado por viabilizarem o nosso trabalho
e contribuírem prestando-nos as informações solicitadas:
- Capela de Nossa Senhora D’Ajuda: Aldo Santos Figueiredo (presidente
da Irmandade de Nossa Senhora D’Ajuda), Maria Aparecida Vasconcellos
Pelegrini (diretora de patrimônio da Irmandade de Nossa Senhora
D’Ajuda);
- Capela da Ordem Primeira de Nossa Senhora do Carmo: Frei
Raimundo Brito de Carvalho, Sandro Araújo (zelador);
- Capela da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte
do Carmo: Anderson Luis de Jesus Pinto (prior da Venerável Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo), Fábio dos Santos
Sacramento (zelador);
- Matriz de Nossa Senhora do Rosário: Padre Hélio Cezar Leal Vilas
Boas (pároco), Kátia Soares (secretária), Alexandre Inácio de Matos
(zelador);
- Capela do Hospital São João de Deus/Santa Casa da Misericórdia:
Luís Antônio Costa Araújo (provedor da Santa Casa da Misericórdia),
Raquel Rodrigues;
- Capela de Nossa Senhora da Conceição do Monte: Isaac Tito dos
Santos Filho (juiz presidente da Irmandade de Nossa Senhora da
Conceição), Narciso Moniz;

8 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
- Capela de Nossa Senhora do Rosário do Santíssimo Coração de Maria:
Fausto Cruz;
- Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres: Jocelina Lima da
Conceição.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 9


10 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
APRESENTAÇÃO

O livro As igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e


ornamentação é produto do projeto Guia das igrejas de Cachoeira –
séculos XVI a XIX, que contou com o apoio do Conselho Municipal
de Política Cultural de Cachoeira, e com o apoio financeiro do 1º
Edital Setorial de Cultura de Cachoeira, através do Fundo Municipal
de Cultura, da Secretaria de Cultura e Turismo e da Prefeitura de
Cachoeira – Tesouro Cultural da Bahia.
Localizada a aproximadamente 120 quilômetros da capital do
estado, Cachoeira faz parte da região do Recôncavo Baiano e situa-se
à margem esquerda do rio Paraguaçu. A história da colonização e
ocupação do território que corresponde ao atual município remonta
ao século XVI. A importância do patrimônio material da cidade foi
reconhecida no final da década de 1930, quando o recém-criado Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, atual Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN) tombou várias
edificações, dentre as quais destacamos: o Convento e a Capela de
Nossa Senhora do Carmo (tombada em 1938), a Casa de Oração e a
Capela da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do
Carmo (1938), a Capela de Nossa Senhora D’Ajuda (1939), a Matriz de
Nossa Senhora do Rosário (1939) e a Capela do Hospital São João de
Deus (1943). Em 1971, o IPHAN tombou o conjunto arquitetônico
e paisagístico de Cachoeira, ano em que o município ganhou o status
de Cidade Monumento Nacional.
O livro As igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e
ornamentação tem o objetivo de apresentar para o leitor os templos

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 11


católicos edificados entre os séculos XVI e XIX no núcleo urbano da
cidade. Nossa proposta é que a publicação auxilie aqueles que desejam
conhecer e compreender a configuração arquitetônica e a decoração
desses antigos edifícios.
O primeiro capítulo, A formação do núcleo urbano de Cachoeira:
dos primórdios da colonização ao século XIX, oferece um panorama
histórico do desenvolvimento da área urbana do município, desde a
chegada dos primeiros portugueses até o final do século XIX, período
em que as igrejas apresentadas no livro foram edificadas e ornamentadas.
O segundo capítulo, Barroco, Rococó e Neoclássico: origens, principais
características e manifestações artísticas nas igrejas de Cachoeira, introduz
conceitos da História da Arte, contextualizando os períodos de vigência
e as características dos estilos que serão observados nos antigos templos
cachoeiranos. Os capítulos seguintes, do 3 ao 10, apresentam informações
sobre a invocação padroeira dos edifícios sagrados, as ordens religiosas
e as associações de leigos devotos que patrocinaram essas construções,
o processo de edificação e a decoração das igrejas.
O livro convida o leitor a observar a estrutura arquitetônica e
compreendê-la, posicionando-o de frente para o templo e descrevendo
sua fachada principal. Para facilitar o entendimento e a identificação
de cada elemento da fachada, os textos são acompanhados de desenhos
didáticos. Tendo o leitor assimilado a história do edifício e analisado
o seu exterior, é hora de adentrar e conhecer o interior. A planta baixa
é apresentada e a ornamentação descrita. Cada recinto é devidamente
explorado: capela-mor, nave, sacristia e outros mais, quando for o caso.
Em cada um desses espaços, o olhar não fica à deriva, mas é conduzido
mediante explicações sobre a talha, a pintura, a azulejaria, os personagens
e os episódios representados. Fotos acompanham o texto e facilitam a
identificação do que está sendo abordado. A publicação conta também
com um glossário.
Salientamos que o livro ora apresentado tem como delimitação
espacial o núcleo urbano do município. Por isso, notáveis edifícios
religiosos não foram aqui tratados, como, por exemplo, a Capela
do Seminário Jesuíta de Belém e o Convento Franciscano de Santo
Antônio do Paraguaçu. Esclarecemos que importantes associações

12 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
religiosas de leigos estabelecidas em Cachoeira nos séculos passados
não edificaram capela própria e, por isso, não foram destacadas. É o
caso, por exemplo, da Irmandade do Santíssimo Sacramento, sediada
na Matriz de Nossa Senhora do Rosário, da Irmandade do Bom Jesus
da Paciência, que teve sede na Capela da Ordem Primeira de Nossa
Senhora do Carmo, da Irmandade de São Benedito, que funcionava na
Capela de Nossa Senhora D’Ajuda, e da Irmandade de Nossa Senhora
da Boa Morte, originalmente sediada na Capela da Ordem Primeira do
Carmo. Atualmente, a Irmandade da Boa Morte tem uma casa-sede
e um memorial na rua 13 de maio. A celebração da festa que as irmãs
tradicionalmente realizam no mês de agosto é acompanhada pelos
moradores da cidade e também por muitos turistas.
O livro As igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e
ornamentação foi elaborado com base em pesquisas e critérios
metodológicos da História e da História da Arte. Foram consultados
documentos manuscritos no Arquivo Histórico Ultramarino (Projeto
Resgate), no Arquivo Público do Estado da Bahia, no Laboratório
Reitor Eugênio Veiga (Universidade Católica do Salvador), no
Arquivo Municipal de Cachoeira, no Arquivo da Venerável Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo e no Arquivo da Santa
Casa da Misericórdia de Cachoeira. As fontes documentais foram
minuciosamente analisadas e interpretadas, possibilitando-nos conhecer
alguns aspectos até então desconhecidos da história de Cachoeira e de
seus templos. Fontes impressas também foram alvo de pormenorizado
estudo. Muitas são antigas, contemporâneas de algumas edificações,
como o tomo nono do Santuário Mariano, de frei Agostinho de
Santa Maria, publicado em 1722. Outras, posteriores, nos legaram
valiosíssimos testemunhos sobre o estado das fachadas e ornamentação
dos templos, como é o caso do relato ilustrado de Epiphanio José de
Meirelles, publicado em 1866 na obra Brasil Histórico, de Alexandre José
de Mello Moraes. Importantes também foram os trabalhos pioneiros
de Pedro Celestino da Silva e as Ephemerides Cachoeiranas de Aristides
Milton. Outras fontes de informação foram o Inventário de Proteção do
Acervo Cultural: monumentos e sítios do Recôncavo e os Inventários de
Bens Móveis e Integrados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional. Além disso, a pesquisa abarcou a produção acadêmica: livros,

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 13


artigos, teses de doutorado, dissertações de mestrado e trabalhos de
conclusão de curso.

Desejamos a todos uma agradável e proveitosa leitura.

Camila Fernanda Guimarães Santiago


Igor Roberto de Almeida Moreira
Sabrina Mara Sant’Anna

14 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
CAPÍTULO 1
A FORMAÇÃO DO NÚCLEO URBANO DE CACHOEIRA:
DOS PRIMÓRDIOS DA COLONIZAÇÃO AO SÉCULO XIX

O início da ocupação do território e o papel da família Adorno

A ocupação do território que corresponde à atual cidade de


Cachoeira fez parte do processo mais amplo de conquista do Recôncavo
da Baía de Todos os Santos pelos portugueses. Em 1549, após a chegada
do primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza, à Capitania
da Bahia, o desbravamento da região intensificou-se.
No início da segunda metade do século XVI, Álvaro da Costa,
filho de Dom Duarte da Costa, segundo governador geral do Brasil,
liderou uma ofensiva contra os índios que habitavam o Recôncavo
Baiano. Em remuneração pelos seus serviços, ele foi agraciado com
terras situadas entre os rios Paraguaçu e Jaguaripe e mais 10 léguas no
sentido do continente. Ele loteou parte desse território entre lavradores
que começavam a cultivar cana de açúcar, milho e mandioca. A situação
de insegurança causada pelo confronto constante com os indígenas só
foi amenizada a partir das violentas campanhas de ocupação das terras
em torno do rio Paraguaçu empreendidas por Mem de Sá, terceiro
governador geral do Brasil. 1
Na segunda metade do século XVI, a consolidação da presença
portuguesa refletiu-se na criação das seguintes freguesias pelos bispos
D. Pedro Leitão (1559-1575) e D. Antônio Barreiras (1576-1600): São
Bartolomeu de Pirajá, Nossa Senhora do Ó de Paripe, Nossa Senhora
da Piedade de Matoim, Nossa Senhora da Encarnação de Passé,

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 15


Nossa Senhora do Monte do Recôncavo, Nossa Senhora do Socorro
(Mataripe), São Miguel de Cotegipe, Santo Amaro do Ipitanga, São
Tiago do Iguape, Bom Jesus da Vera Cruz de Itaparica, São Gonçalo da
Patatiba e Madre de Deus do Boqueirão.2 Freguesia, também chamada
paróquia, é uma povoação que tem igreja matriz e pároco (padre) fixo para
prestar assistência espiritual aos devotos, celebrar missas e administrar
os sacramentos (batismo, confissão, eucaristia, crisma, matrimônio e
unção dos enfermos).
No caso específico da área que corresponde à atual cidade de
Cachoeira, segundo Gabriel Soares de Sousa, autor do Tratado Descritivo
do Brasil em 1587, havia um “engenho de água muito bem acabado, o
qual fez um Rodrigo Martins, mameluco, por sua conta, e de Luiz de
Brito de Almeida, junto do qual vivem muitos mamelucos com suas
fazendas”.3 A palavra mameluco foi amplamente utilizada no período
colonial para identificar os indivíduos que possuíam ascendência
europeia e indígena.
No final do século XVI, o capitão Álvaro Rodrigues Adorno
estabeleceu-se onde hoje é Cachoeira. Ele edificou um engenho e uma
ermida (pequena capela sem jurisdição paroquial) dedicada a Nossa
Senhora do Rosário.4 Essa ermida foi a primeira edificação católica
do povoado. No século XVII, conforme veremos mais adiante, ela foi
reconstruída e reformada para ser a sede paroquial e, desde o final do
século XVIII, passou a ter Nossa Senhora D’Ajuda como padroeira.
No início da segunda metade do século XVII, o capitão Gaspar
Rodrigues Adorno, neto de Álvaro Rodrigues Adorno, avançou na
conquista, submetendo os indígenas e integrando muitos deles em
seu regimento. Assim, gradativamente, a presença colonizadora e a
aglomeração populacional foram crescendo no território.5
A família Adorno acumulou muitas terras. Desde fins do século
XVII, o capitão João Rodrigues Adorno, bisneto de Álvaro Rodrigues,
era o grande proprietário da região. Algumas das edificações religiosas
que se ergueram nos séculos XVII e XVIII assentaram-se sobre terrenos
doados por esse importante personagem da história local.

16 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
A criação da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Porto
da Cachoeira e seu desenvolvimento no final do século XVII

Até meados do século XVII, a ermida dedicada a Nossa Senhora


do Rosário era usada, principalmente, para a realização de cerimônias
religiosas relacionadas aos próprios membros da família Adorno, como
revela o registro de casamento abaixo:

Em vinte e quatro de novembro de mil seiscentos e


cinquenta e seis, recebeu o Pe. Pantaleão Alvares com
minha licença na capela de Gaspar Rodrigues Adorno,
a Afonso Rodrigues Adorno, com Maria Dias de Souza.
Testemunhas: João de Aragão e Clara de Souza. Manoel
Coelho Bernardes. 6

O crescimento populacional do povoado trouxe a necessidade


de se fundar uma freguesia. Primeiramente, criou-se um curato da
Paróquia de São Tiago do Iguape, com sede na capela dos Adorno.7
Isso quer dizer que o povoado passou a ter um sacerdote residente,
subordinado à autoridade do pároco do Iguape, para prestar assistência
espiritual aos moradores, e que a capela dedicada a Nossa Senhora do
Rosário tornou-se, oficialmente, o centro da vivência religiosa local.
Em 1674, o capitão João Rodrigues Adorno doou a capela para
servir de igreja matriz, fornecendo a condição básica para a criação da
Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira. As
autoridades portuguesas relataram ao rei de Portugal o que o sobrinho
de João Rodrigues Adorno, chamado Cosme Rodrigues de Araujo,
informou sobre essa doação:

[...] dando o dito seu tio doador espontaneamente


ao Padroado de V. Majestade assistindo uma igreja
aparentada de todo o necessário para servir de freguesia
nas suas terras da Vila de Cachoeira em grande
benefício daquele povo pois a freguesia antiga [São

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 17


Tiago do Iguape] ficava muito distante causando
grande detrimento principalmente ao povo feminino
sem que por este serviço, nem pelos mais tivesse de V.
Majestade prêmio algum [...].8

Segundo frei Agostinho de Santa Maria – autor da obra


Santuário Mariano, cujo tomo referente ao Arcebispado da Bahia e
outros cinco bispados da América Portuguesa foi publicado em 1722
– a Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira foi
erigida em 18 de fevereiro de 1674 pelo chantre da Sé Francisco Pereira,
então visitador geral do recôncavo.9
Desde o último quartel do século XVII, a freguesia recém-criada
encontrava-se em franco crescimento populacional e econômico devido
a sua privilegiada posição geográfica: no ponto final da área navegável do
rio Paraguaçu. Essa localização tornava Cachoeira passagem obrigatória
na ligação de Salvador com o sertão; gente e mercadorias transitavam
do seu porto para a Cidade do Salvador e dele para o interior.
Em 1686, os jesuítas instalaram um seminário em Belém da
Cachoeira, que se tornaria uma importante instituição de ensino. No
ano de 1688, a Ordem Carmelita fixou-se na freguesia, onde construiu
um hospício (pequeno convento que abrigava religiosos em missionação
na região) e uma capela em terreno doado pelo capitão João Rodrigues
Adorno.10 O vigésimo nono governador da Bahia, Antônio Luís
Coutinho da Câmara, em carta endereçada ao rei Pedro II, em 1693,
mencionou a importância dos carmelitas na Paróquia de Nossa Senhora
do Rosário do Porto da Cachoeira:

Quanto ao hospício da Cachoeira, ali não há donde os


Religiosos possam fazer missão: mas necessita aquela
povoação dele: porque além de ser um porto donde se
embarca tudo o que vem do Sertão para esta Cidade
está hoje uma povoação muito grande, e necessita de ter
confessores para poderem ajudar o Pároco. Eu advertirei
ao Provincial, que tenha Religiosos de capacidade, e
de bom exemplo. Este é o meu parecer. 11

18 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Em 1691, foi criada a Venerável Ordem Terceira de Nossa
Senhora do Monte do Carmo. As ordens terceiras são associações de
leigos que se reúnem em torno de uma devoção comum e são submetidas
a uma ordem religiosa, no caso, à Ordem Carmelita. A vinculação a
uma ordem religiosa é o principal diferencial entre as ordens terceiras e
as irmandades de compromisso, que também são agremiações de leigos.
Esses dois tipos de associações regem-se por documentos chamados
estatutos, no caso das ordens terceiras, e compromissos, no caso das
irmandades. Há também outra categoria, denominada irmandade de
devoção. Esta se distingue por não ser oficialmente instituída, ou seja,
não é regida por livro de compromisso chancelado pelas autoridades
competentes; sua função é primordialmente devocional.
Os estatutos e compromissos estabelecem os deveres dos
agremiados, como o pagamento de taxas de entrada e anuidades, a
participação nas celebrações em honra da invocação padroeira (missas e
procissões) e o acompanhamento dos ritos fúnebres dos outros irmãos;
estabelecem também os seus direitos, dentre os quais destacamos a
celebração de missas em intenção de suas almas e a garantia de uma
sepultura digna.
As ordens terceiras e irmandades de compromisso, especialmente
durante o período colonial, desempenharam, na América Portuguesa,
importante papel social, religioso e cultural, posto que funcionaram
como agentes da caridade cristã, prestando assistência material e
espiritual aos seus agremiados, contribuíram para o desenvolvimento
do culto santoral e atuaram como patrocinadoras das artes, edificando
templos e contratando os serviços de entalhadores, pintores, santeiros,
músicos, etc.12

A criação da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da


Cachoeira e seu desenvolvimento no século XVIII

O rei de Portugal, em carta régia de 27 de dezembro de 1693,


apontou a necessidade de serem criadas vilas na Capitania da Bahia a fim
de submeter os indivíduos de localidades remotas à tutela portuguesa.13

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 19


A elevação de uma povoação à condição de vila significava que, a partir
de então, funcionários régios seriam ali estabelecidos, principalmen-
te juízes e vereadores. A sede administrativa, onde esses funcionários
exerciam suas funções, chamava-se Casa de Câmara e Cadeia. Como
símbolo da administração da justiça, era fixada uma coluna, o pelou-
rinho, em lugar público.
No dia 07 de janeiro de 1698, um grupo de residentes no sí-
tio do porto da Cachoeira reuniu-se para resolver questões relativas à
construção da Casa de Câmara e Cadeia:

E logo e no mesmo dia de 7 do mês de janeiro e ano


atrás declarado depois dos moradores deste sítio e seu
distrito que são todos aqueles que se acham assinados ao
pé do termo atrás e outros mais que por inadvertência
deixaram de assinar concordarem assentarem e
convirem que era útil e conveniente pelas razões já
alegadas, que em este sítio do porto da Cachoeira,
Freguesia de Nossa Senhora do Rosário se fizesse
erigir em ele Vila pela utilidade que com a fatura dela
concebiam o direito desembargador Estevam Ferraz de
Campos lhe propôs que era também útil e necessário
que com a criação desta Nova Vila aonde havia um
tão dilatado número de moradores extenso território
aonde viviam pessoas muito ricas e abastadas de bens
tivesse princípio uma casa convenientemente para que
houvesse de servir de casa da câmara e a audiência para
os despachos dela por baixo da qual ficasse uma cadeia
forte e conveniente para recolhimento dos presos que
a ela por crime ou cível houvessem de vir, para qual
despesa parecia acertado e justo concorrerem os que
se achassem com suficiência para o poderem fazer com
aquele tanto ou quanto que cada um voluntariamente
quisesse lhe parecesse pois era tudo em utilidade e
bem comum de todos. Revistas e ponderados por
eles todas estas razões que cada um deles abraçou se
comprometeram todos uniformemente e suas livres
vontades.14

O documento mencionado foi assinado por 50 moradores


e apresenta a doação de cada um deles. Destacamos algumas, como

20 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
a do português João Peres Ribeiro (quatro mil réis), a do capitão
Sebastião Pereira (dez mil réis), a de Cristóvão da Rocha Pita (duas
sacas de açúcar branco), a de Antônio Carvalho Pereira (uma dúzia
de panos). Nota-se, assim, a presença de uma elite já assentada e com
peso político e econômico. A Vila de Nossa Senhora do Rosário do
Porto da Cachoeira foi definitivamente instalada no dia 29 de janeiro
do referido ano de 1698.15
No século XVIII, a Vila da Cachoeira e seu termo possuíam
significativa dimensão territorial. A palavra termo designava a região
que fazia parte da jurisdição dos juízes da vila,16 como se fossem distritos
submetidos à administração da câmara. Vejamos, abaixo, um fragmento
do documento que descreve os limites da jurisdição da Câmara da Vila
da Cachoeira:

[...] deu termo a esta Vila desde o rio a que chamam


Subauma por esta parte da freguesia de São Domingos
com a freguesia de São Thiago, correspondente a
uma e outra freguesia pelos Mulundús a buscar
o Cae Quiabo, a buscar o engenho do coronel
Pedro Garcia e daí cortando pela mata que divide
os caminhos entre Sergipe do Conde e São Gonçalo
dos Campos da Cachoeira, cortando sempre pela dita
mata das Ouriçangas ao lugar onde mora Francisco de
Barros Lobo e daí cortando pela estrada que chamam
Subauma até chegar a passagem do Inhambupe e deste
rio Inhambupe cortando direito à praia e daí cortando
por costa até intestar com o Rio Real cujos moradores
todos que houverem de ficar e forem moradores desta
demarcação e divisão que se dá de termo o distrito desta
Vila, viverão de hoje em diante a ela sujeitos, obrigados
às suas posturas e jurisdição [...].17

A Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira


e seu termo passaram a abrigar, desde sua criação e ao longo do século
XVIII, as povoações das seguintes freguesias: Nossa Senhora do Rosário
do Porto da Cachoeira (sede), São Tiago do Iguape, São Gonçalo
dos Campos, São José das Itapororocas, Nossa Senhora do Desterro

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 21


do Outeiro Redondo, São Pedro do Monte da Moritiba, Santana do
Camisão e Santo Estevão do Jacuípe, sendo que as quatro últimas foram
criadas após a ereção da vila.
Por volta do ano de 1723, a Vila da Cachoeira possuía cerca de
1.000 habitantes e já era um importante núcleo urbano.18 Seu processo
de urbanização esteve ligado à construção dos edifícios católicos. Como
vimos, antes mesmo da criação da vila, o povoado já contava com o
templo da família Adorno e com o primitivo convento e capela que os
frades carmelitas edificaram. Em 1700, aproximadamente, a Capela
da Venerável Ordem Terceira do Carmo começou a ser ereta; em data
desconhecida, mas também por volta dessa mesma época, iniciou-se
a edificação da nova Matriz de Nossa Senhora do Rosário. Em 1729,
a Capela do Hospital de Nossa Senhora de Belém (a partir de 1756
chamado Hospital São João de Deus e, desde 1826, administrado pela
Santa Casa da Misericórdia) começou a ser construída. Esses edifícios
religiosos foram norteando a ocupação do espaço urbano de Cachoeira
e motivando uma maior concentração populacional ao seu redor.19
De acordo com os registros da época, podemos afirmar que, nas
primeiras décadas do século XVIII, a maioria das residências situava-se
em torno do templo dos Adorno e na via que abriga a Matriz do Rosário,
a Casa de Câmara e Cadeia e as Capelas das Ordens Primeira e Terceira
do Carmo. Estimamos que a Rua da Matriz, como era então chamada
a atual rua Ana Nery, concentrava boa parte das edificações.20 Outra
via bem movimentada era a orla do rio Paraguaçu, na época conhecida
como Rua da Praia, onde estavam instalados dois armazéns de fumo,
importante produto cultivado na região. Um desses armazéns pertencia
a Manoel da Costa Pinheiro e o outro a João Rodrigues Adorno. 21
O impulsionamento socioeconômico exigiu da câmara maior
preocupação com a infraestrutura da vila. Segundo o historiador Luiz
Cláudio Dias do Nascimento, no período correspondente aos anos de
1741-1745, ocorreram obras de aterramento, pavimentação de ruas e
outras de maiores dimensões como a “construção de uma ponte sobre o
riacho Pitanga, que ligava a área urbana da vila ao rossio (espaço agrícola
contíguo ao espaço urbano)”,22 e o cais de pedra da vila.23

22 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Em meados do século XVIII, Cachoeira consolidava-se como
a maior e mais próspera vila da Capitania da Bahia. Sua já mencionada
localização privilegiada, no trecho final do percurso navegável do rio
Paraguaçu, transformou-a na porta de entrada e saída de algumas das
principais rotas comerciais. Tal posição geográfica conferiu ao porto da
Cachoeira o status de um dos mais importantes entrepostos comerciais
da América Portuguesa. Por ele, era escoada a produção de tabacos
advinda das cercanias da vila, além de um grande volume de mercadorias
provenientes do alto sertão e das minas, que seguiam com destino a
Salvador, como testemunha o relato abaixo de 1752.

Que por este rio, que é invadiavel, por ser muito largo e
profundo, costumam atravessar de uma parte para outra
parte, não só aqueles moradores circunvizinhos, mas
todos os passageiros e comerciantes que vão, e vem das
minas com seus comboios de escravos, fazendas, muitas
boiadas, que transportam por negociação dos sertões,
do norte para os do sul, donde ei dão consumo e não
tem outro trajeto, e por isso se fundou ali aquela Villa,
e se chama porto da Cachoeira desde então até agora. 24

No final do século XVIII, a vila continuava vivenciando


significativo aumento populacional. Em 1775, foi realizado um censo
que contabilizou 5.814 moradores na Freguesia de Nossa Senhora
do Rosário, sede da vila. Passados cinco anos, foi feito um novo
levantamento que apontou 6.524 moradores, perfazendo um aumento,
em relação ao censo de 1775, que ultrapassa 12%.25
Segundo o testemunho do padre Manoel da Costa Carvalho,
no ano de 1780, contava a vila com “seis ruas principais e alguns becos”.
As edificações não seguiam um padrão regular, sendo cada residência
arruada de forma individual, o que resultava, consequentemente, em
vias públicas tortuosas e desalinhadas. Ainda segundo o relato do padre,
em 1781, para “aformosear” a vila, iniciou-se a construção do chafariz,
localizado na atual praça Aristides Milton, obra que só seria concluída
no século seguinte. 26

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 23


Em 1784, mais um empreendimento religioso estava sendo
finalizado: a antiga casa de oração do Monte fora reedificada em Capela
de Nossa Senhora da Conceição do Monte.27 Assim, ao final do século
XVIII, a Vila da Cachoeira contava com as seguintes edificações católicas:
Capela dos Adorno, Capela da Ordem Primeira do Carmo, Capela
da Ordem Terceira do Carmo, Capela do Hospital São João de Deus,
Matriz de Nossa Senhora do Rosário e Capela da Irmandade de Nossa
Senhora da Conceição do Monte.
É possível reconhecer esses templos, bem como se ter uma
ideia da configuração urbana da vila, suas principais vias e espaços mais
densamente edificados no final do século XVIII a partir do “Mappa
da Villa da Cachoeira”, desenho aquarelado que acompanhava o
manuscrito de Joaquim de Amorim e Castro, intitulado Memória
sobre as Espécies de Tabaco.

Figura 1 – Mappa da Villa da Cachoeira, c. 1792, autor não identificado. Desenho


aquarelado que acompanhava o manuscrito de Joaquim de Amorim e Castro: Memória
sobre as Espécies de Tabaco. Coleção George Arents, Biblioteca Pública de Nova York.

24 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
A elevação da Vila da Cachoeira à Heroica Cidade e seu
desenvolvimento no século XIX

No alvorecer do século XIX, a Vila da Cachoeira continuava


apresentando aumento populacional e urbanístico. Comerciantes
passaram a investir na construção de prédios para angariar recursos
provenientes dos aluguéis.
No ano de 1805, teve início a construção da Capela da
Irmandade de Nossa Senhora do Amparo, composta por pardos (como
eram denominados os mestiços na época). No local escolhido para a
edificação existia, anteriormente, uma pequena casa de oração dedicada
a São Francisco de Paula.28 Dez anos após o começo das obras, a imagem
da Virgem do Amparo deixou a igreja matriz, transferindo-se para o
novo templo. Na década de 40 do século XX, a capela, lamentavelmente,
foi demolida.
Nos primeiros anos do século XIX, a cultura do algodão,
produzido no alto e baixo sertão, diversificaria a economia da vila. É o
que podemos concluir a partir do parecer do décimo terceiro arcebispo
da Bahia, frei José de Santa Escolástica Alvares Pereira, emitido no ano
de 1806, aprovando a solicitação da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário dos Pretos, que pretendia construir sua capela no Caquende.
Como veremos no capítulo 9, referente à Capela de Nossa Senhora
do Rosário do Santíssimo Coração de Maria do Monte Formoso, o
mencionado templo só seria edificado bem mais tarde, na década de
1840, no Monte da rua Formosa, e não no Caquende.

Acresce que a Vila da Cachoeira se vai estendendo, e


povoando cada vez mais por causa do novo, e grande
comércio dos algodões, que produzem felizmente as
terras circunvizinhas donde vem, que uma nova ca-
pela construída nos arrabaldes povoados da dita Vila,
como pretendem os suplicantes, não é somente útil ao
público, mais necessário por tornar mais cômodo mais
prontos, e fáceis os santos exercícios da nossa religião. 29

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 25


O relato do arcebispo é relevante, pois, além de citar o incre-
mento de mais um produto que seria escoado pelo porto da Cachoeira,
o algodão, também revela a existência de um núcleo residencial no
Caquende (que já estava em formação desde o final da primeira metade
do século XVIII).
Em 1816, a ideia, já presente entre os cachoeiranos desde
1754, de se construir uma ponte ligando a Vila da Cachoeira ao arraial
30

de São Félix ganhou um projeto (fig. 2). Nele, é possível percebermos


vários sobrados, bem como visualizarmos os seguintes edifícios reli-
giosos, dispostos da direita para a esquerda: Matriz de Nossa Senhora
do Rosário, Capela de Nossa Senhora do Amparo, Capela de Nossa
Senhora D’Ajuda, Capela do Hospital São João de Deus e Capela de
Nossa Senhora da Conceição do Monte, esta última ainda sem a torre.

Figura 2 - Projeto da ponte entre a Vila da Cachoeira e o arraial de São Félix, 1816.
Desenho aquarelado, 38 x 49 cm. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

26 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Em 1817, passavam por Cachoeira os naturalistas alemães Carl
Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix. Eles iniciaram
sua longa jornada científica pelo Brasil no Rio de Janeiro e rumavam
para o norte, onde alcançariam o rio Amazonas. Impressionados com
a intensa atividade comercial da Vila da Cachoeira, eles escreveram o
seguinte:

A vista deste lugar, belamente edificado e animado


de atividade europeia, foi um verdadeiro prazer para
nós, que passamos tão grande temporada no sertão...
É, sem dúvida, a mais rica, populosa e uma das mais
agradáveis vilas de todo o Brasil. Numerosas vendas e
armazéns, cheios de vários artigos europeus, revelam o
alto grau de movimentação do seu comércio.
A vila conta cerca de mil casas e mais de dez mil habi-
tantes, entre os quais se acham, relativamente, muitos
portugueses.31

Em 1822, a vila destacou-se no cenário político da Bahia por


participar ativamente do processo de Independência do Brasil. No
dia 25 de junho de 1822, reunidos em sessão do Senado da Câmara,
os cachoeiranos aclamaram Dom Pedro I como regente perpétuo e
defensor do Brasil. O ato desencadeou o primeiro confronto armado
entre os cachoeiranos e as tropas portuguesas, que utilizaram a canho-
neira situada no rio Paraguaçu para bombardear a vila. Com a Cidade
do Salvador ocupada pelo brigadeiro português Inácio Luís Madeira
de Melo, Cachoeira assumiu o comando da província, passando a ser
sede do governo provisório e exercendo papel estratégico em todo o
processo que culminaria na expulsão definitiva dos portugueses do solo
baiano, no amanhecer do dia 02 de julho de 1823.
A Vila da Cachoeira teria sua importância reconhecida no re-
cém-criado Império do Brasil. No ano de 1826, Dom Pedro I realizou
uma viagem à Província da Bahia. Cachoeira foi a única vila que recebeu
o augusto imperador. Dessa visita resultou a fundação da Santa Casa
da Misericórdia da Cachoeira, que passou a administrar o Hospital São
João de Deus e sua capela.32

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 27


A opulência da Vila da Cachoeira e seu desenvolvimento
urbano continuavam a impressionar os viajantes que transitavam por
suas ruas. É o caso do cronista Domingos José Rebello, negociante,
natural da Cidade do Salvador, que buscou elaborar uma obra que seria
destinada aos órfãos do colégio São Joaquim a fim de incrementar seus
estudos sobre a geografia local. Domingos Rebello esteve em Cachoeira
em 1828. Segundo ele, a vila possuía “bom cais; ruas todas calçadas,
suntuosos edifícios, muitas lojas de fazendas, armazéns de molhados,
e outros gêneros mais de comércio”.33
A lei provincial nº 43, de 13 de março de 1837, atendeu a um
antigo desejo dos cachoeiranos, elevando a vila à categoria de cidade
com o honroso título de Heroica Cidade da Cachoeira. No segundo
quartel do século XIX, começava o processo de ocupação da área co-
nhecida como Recuada, que agrupava quatro núcleos residenciais de
Cachoeira: Curral-Velho, Corta-jaca, Galinheiro e Bitedô.34 Segundo
Luiz Cláudio Dias do Nascimento, o processo de urbanização levou
a população menos favorecida socioeconomicamente a se agrupar em
áreas afastadas do centro comercial e urbano.35 Nessa zona, em 1842,
teve início a construção da Capela da Irmandade de Nossa Senhora do
Rosário do Santíssimo Coração de Maria do Monte Formoso.36 Em
1850, a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, agremiação
de negros sediada na capela da Ordem Primeira do Carmo, iniciou a
reedificação da casa de oração dedicada a Nossa Senhora dos Remédios,
também situada na Recuada.37 Infelizmente, a capela de Nossa Senhora
dos Remédios encontra-se em estado de ruína, não sendo possível visitar
seu interior, onde quase nada resta de sua ornamentação.
Em 1853, a Recuada foi tomada por um incêndio, que:

[...] principiando em uma casa de palha, arremessou


as labaredas sobre outras e, no fim de algumas horas,
70 casas ardiam, desmoronavam-se e caiam por terra.
Dentro em poucas horas, a Recuada já não existia, e
era apenas alumiada pelas chamas causadoras desse
destroço.38

Esse registro expõe o isolamento da localidade do restante da malha


urbana da cidade, além de revelar a fragilidade das habitações do local.

28 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
No ano de 1855, Cachoeira foi acometida pela famigerada
epidemia de colera morbus, que durante a sua vigência modificou por
completo a dinâmica da cidade. As primeiras vítimas residiam nos
bairros do Caquende e Pitanga, locais onde corriam dois pequenos
rios que serviam de esgoto. Foram vitimados 3.000 cachoeiranos. Se
contabilizarmos os óbitos ocorridos nos distritos da cidade, o total de
mortos chegou a 8.500.39 Nesse mesmo ano, foi iniciada a construção
da Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres, no Caquende.40
Em 1859, a cidade recebeu a visita do Imperador Dom Pedro II
e da Imperatriz Tereza Cristina. Os ilustres hóspedes ficaram instalados
no imponente sobrado pertencente a dona Maria de Santa Rosa de
Lima (atual sede da Fundação Hansen-Bahia), localizado no número
13 da então Rua de Baixo (atual rua 13 de Maio).41 Durante a estadia
na Heroica Cidade da Cachoeira, o imperador visitou todos os edifícios
religiosos. As crônicas da viagem revelam que, naquele momento, dez
templos já haviam sido erigidos:

[...] além da igreja matriz, há na cidade as capelas do


Convento do Carmo, Ordem Terceira do Carmo,
Nossa Senhora D’Ajuda, Nossa Senhora do Amparo,
Conceição do Monte, Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos, São João de Deus, Conceição dos Pobres
e Remédios”.42

Encerramos esta breve apresentação da história de Cachoeira


entre os séculos XVI e XIX, período da edificação dos templos contem-
plados neste livro, com a menção ao grande empreendimento realizado
no século XIX: a construção, iniciada em 1882, da Imperial Ponte Dom
Pedro II, a maior ponte de ferro da América do Sul na época.43 Esteve
à frente do projeto o engenheiro civil Francisco Merey, subordinado à
companhia Brazilian Imperial Central Bahia Railway, cujo empre-
sário era o engenheiro inglês Hugh Wilson, também responsável pelas
construções das imponentes estações ferroviárias de Cachoeira e São
Félix. A ponte foi inaugurada na tarde do dia 07 de julho de 1885, con-
tando com a presença do presidente da província, conselheiro Almeida
Couto, que desembarcou em São Félix e foi conduzido até o trem que
realizaria a travessia inaugural entre as duas localidades.44

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 29


Notas
1 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores. 1866. Tomo I. p. 30.
2 SILVA, Marcelo Pereira Leite da. O preço da salvação: rendimentos paroquiais
na Bahia colonial. 2016, f. 51-54. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2016. É importante frisar que
algumas datas de criação de paróquias não são precisas. Eventualmente, pode-se
encontrar estimativas diferentes.
3 SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.  2. ed. Rio de
Janeiro: Tipografia de João Ignacio da Silva, 1879. p. 133.
4 Consulte o verbete ERMIDA em BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portugez e
latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, vol. 3. p. 189.
5 NEVES, Juliana Brainer Barroso. Colonização e resistência no Paraguaçu – Bahia
1530-1678. 2008, 140 f. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. Sobre a família Adorno em Cachoeira,
consulte MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas. Salvador: UFBA, 1979. p.
12-13 (Coleção Cachoeira, v. 1)
6 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral,
Habilitações, Afonso, maço 3, doc. 49, fl.140.
7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral,
Habilitações, Afonso, maço 3, doc. 49, fl.143.
8 Petição de Cosme Rodrigues de Araujo ao Rei, 1736. Apud OTT, Carlos. História
da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira. Salvador: Centro de Estudos
Baianos, 1978. p. 27. A grafia foi atualizada na transcrição.
9 SANTA MARIA, Fr. Agostinho de. Santuario Mariano, e Historias das Imagens
milagrosas de Nossa Senhora, e milagrosamente manifestadas, e apparecidas em o Ar-
cebispado da Bahia, e mais Bispados, de Pernambuco, Paraiba, Rio Grande, Maranhão,
e Grão Pará. Lisboa: na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1722. Tomo 9. p. 213.
10 Consulte o verbete HOSPICIO em BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portugez
e latino Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728. p. 64. v. 4
11 DOCUMENTOS HISTÓRICOS DA BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1936, p. 174. v. XXXIV
12 BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizado-
ra em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. 254 p. SANT’ANNA, Sabrina Mara.
A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades mineiras
(1721-1822). 2006. 128 f. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2006. CAMPOS, Adalgisa

30 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Arantes. As irmandades de São Miguel e as almas do Purgatório: culto e iconografia
no setecentos mineiro. Belo Horizonte: C/Arte, 2013. 247 p. REIS, João José. A
morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. 357 p.
13 ANDRADE, Adriano Bittencourt. O Recôncavo colonial e a formação da rede
urbana regional no século XVIII. In: REIS, Adriana Danta; ADAN, Caio Figueiredo
Fernandes. (Org.). Estudos em história colonial: a Baía de Todos os Santos e outros
espaços luso- americanos. Feira de Santana: UEFS Editora, 2018. p. 268.
14 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Requerimento do procurador da Câmara da
vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira Mathias da Guerra ao rei
[D. João V] solicitando mandar que o escrivão da mesma Câmara passe certidão do
que constar nos livros sobre os rolos de tabaco transportados da dita vila para a cidade
da Bahia. Anexo: 4 docs. Caixa 103, doc. 8104.
15 MEMÓRIA HISTÓRICA DA CACHOEIRA, 1698-1998: salve os 300 anos
da instalação da Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira. Salvador:
Fundação Maria América da Cruz; Reconcentro; Fundação Cultural do Estado da
Bahia, 1998. p. 5-10.
16 Consulte o verbete TERMO em BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e
Latino. Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728. vol. 8. p. 114.
17 MEMÓRIA HISTÓRICA DA CACHOEIRA... op. cit., p. 5-10. A grafia foi
atualizada na transcrição.
18 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Representação dos oficiais da câmara da vila
da Cachoeira ao rei [D. João V] solicitando privilégios de nobreza. Caixa 24, doc.
2216. CARRARA, Angelo A. A população do Brasil, 1570-1700: uma revisão
historiográfica. Revista Tempo, vol. 20, p. 1-21, 2014.
19 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Seção Judiciário, Livros de Notas
Cachoeira, n. 022, fls. 88-98.
20 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Seção Judiciário, Livro de Notas
Cachoeira, n. 022, fls. 88-98.
21 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Seção Judiciário, Livro de Notas,
n. 022, fls. 97v.
22 NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do. Terra de Macumbeiros: Redes de Socia-
bilidades Africanas na Formação do Candomblé Jeje - Nagô em Cachoeira e São Felix.
2007. 42 f. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2007.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 31


23 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA; INSTITUTO DO PATRIMÔ-
NIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (UFBA; IPHAN). Introdução
ao estudo da evolução urbana: plano urbanístico de Cachoeira. Salvador: Centro de
Estudos da Arquitetura da Bahia, 1976.
24 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Consulta do Conselho Ultramarino ao rei D.
José sobre a passagem do rio da Vila de Cachoeira. Anexo: docs. comprovativos (11
docs.) Caixa 111, doc. 8658. A grafia foi atualizada na transcrição.
25 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Eduardo de Castro Almeida (1613-1807). Ofício do Governador
Manoel da Cunha Menezes para Martinho de Melo e Castro, no qual informa larga-
mente sobre o recrutamento dos Marinheiros para as naus de guerra e os documentos
estatísticos que tem anexos, muito bem elaborados interessantes. Caixa 47, doc.
8745; Ofício do governador Marquês de Valença para Martinho de Melo e Castro,
sobre a estatística da população da capitania da Bahia, a respeito da qual dá diversas
informações. Caixa 55, doc. 10.700.
26 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Eduardo de Castro Almeida (1613-1807). Representação do padre
Manuel da Costa de Carvalho, na qual expõe os abusos e irregular procedimento de
alguns juízes de Fora e os inconvenientes de estes exercerem cumulativamente o lugar
de presidente da Câmara. Caixa 56, doc. 10823.
27 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Seção de Arquivos Colonial e
Provincial, nº 611.
28 MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas... op. cit., p. 326.
29 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do arcebispo da Bahia D. frei José de
Santa Escolástica ao príncipe regente (D. João) sobre a representação do juiz e irmãos
da Mesa da Confraria de Nossa Senhora do Rosário da vila de Cachoeira, na qual
solicitavam licença para construir uma capela onde pudessem colocar a imagem da
dita Santa. Anexo 10. docs, Caixa 242, doc. 1673.
30 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA; INSTITUTO DO PATRIMÔ-
NIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL (UFBA; IPHAN). Introdução
ao estudo da evolução urbana: plano urbanístico de Cachoeira. Salvador: Centro de
Estudos da Arquitetura da Bahia, 1976.
31 VON SPIX e VON MARTIUS. Através da Bahia: Excertos da obra Reise e Brasi-
lien. Trasladados a português pelos Drs. Pirajá da Silva e Paulo Wolf. 3. ed. São Paulo,
Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 76.
32 CERQUEIRA, João Batista de. Caridade, política e saúde: o Hospital São João

32 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
de Deus e a Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira, Bahia (1756 a 1872). 2015.
23 f. Tese - Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciên-
cias, Universidade Federal da Bahia e Universidade Estadual de Feira de Santana,
Salvador, 2015.
33 REBELLO, Domingos José Antônio. Corografia ou abreviada história geográfica
do Império do Brasil. Salvador: Bahia na Tipografia Imperial e Nacional, 1829. p. 190.
34 NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do. Terra de Macumbeiros: Redes de So-
ciabilidades Africanas na Formação do Candomblé Jeje - Nagô em Cachoeira e São
Felix... op. cit., p. 53.
35 NASCIMENTO, Luiz Cláudio Dias do. Terra de Macumbeiros: Redes de So-
ciabilidades Africanas na Formação do Candomblé Jeje - Nagô em Cachoeira e São
Felix... op. cit., p. 43-44.
36 MORAES, Alexandre José de Melo. Brasil Histórico... op. cit., p. 78.
37 NASCIMENTO, Luís Cláudio Dias do. “Igreja de Nossa Senhora dos Remédios
vai desmoronar.” Disponível em: <http://cacaunascimento.blogspot.com.br/2013/07/
igrejade-nossa-senhora-dos-remedios.html>. Acesso em 20 de julho de 2020.
38 Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Periódico O Constitucional, edição 11, 1853,
01/03/1853, p. 3.
39 MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas ... op. cit., p. 259-261.
40 MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas ...op. cit., p. 323.
41 SOUSA, Bernardo Xavier Pinto de. Memórias da Viagem de S.S Magestades
Imperiaes às Provincias da Bahia, Pernambuco, Parahiba, Alagoas, Sergipe, e Espi-
rito-Santo, dividida em 6 partes e um additamento: com retratos de SS. Magestades,
e das Serenissimas Princezas as Senhoras D. Isabel e D. Leopoldina. Rio de Janeiro:
Pinto de Sousa, 1861. p. 145.
42 SOUSA, Bernardo Xavier Pinto de. Memórias da Viagem de S.S Magestades
Imperiaes às Provincias da Bahia, Pernambuco, Parahiba, Alagoas, Sergipe, e Espiri-
to-Santo, dividida em 6 partes e um aditamento... op. cit., p. 154.
43 Arquivo Municipal de Cachoeira. Requerimento enviado à Câmara Municipal.
Documentos Avulsos.
44 Biblioteca Nacional, Periódico Diário de Notícias, edição do dia 14/07/1885, p. 2.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 33


34 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
CAPÍTULO 2
BARROCO, ROCOCÓ E NEOCLÁSSICO: ORIGENS,
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS E MANIFESTAÇÕES
ARTÍSTICAS NAS IGREJAS DE CACHOEIRA

Este capítulo objetiva apresentar para o leitor as origens, as


principais características e os períodos de vigência do Barroco, do
Rococó e do Neoclássico, destacando e contextualizando a presença
desses estilos nas igrejas edificadas em Cachoeira. Cabe dizer que
adotamos uma periodização abrangente. A duração e até mesmo as
manifestações do Barroco, do Rococó e do Neoclássico no continente
europeu, na América Portuguesa e na América Espanhola, por exemplo,
assim como nos diferentes estados e localidades que formam o nosso
atual e extenso território nacional, ocorreram em tempos distintos e
de modo particular.
A origem da palavra barroco é incerta. Alguns especialistas
defendem que ela surgiu no século XVI, em Portugal, e que nessa época
era usada para denominar um tipo de pérola de formato irregular;
menos valiosa do que as perfeitamente esféricas. Quando foi usada pela
primeira vez em relação às manifestações artísticas, no século XVIII,
ela continha teor pejorativo e nomeava obras consideradas bizarras,
exageradamente ornamentadas e que não respeitavam as boas regras
da arte.1 Atualmente, o termo barroco não carrega mais esse sentido
depreciativo e é usado em História da Arte para designar a produção
artística que se desenvolveu no século XVII e parte do XVIII.
Na Europa católica, especialmente na Itália, onde o estilo surgiu,
e na Península Ibérica (Portugal e Espanha), o Barroco caracterizou-
se, resguardadas as devidas peculiaridades, pela integração das artes

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 35


(arquitetura, talha, pintura, escultura e outras) com vistas à criação de
ambientes inebriantes, capazes de maravilhar o espectador e arrebatá-lo
emocionalmente. Tais efeitos eram efetivados no interior dos templos por
meio dos forros pintados e do revestimento completo das superfícies
das paredes com obras de talha, pintura e azulejaria – concepção
decorativa caracterizada pelo “horror ao vazio” –, uso de cores quentes,
aplicação de folhas de ouro ou prata sobre as estruturas de madeira
entalhada, utilização de materiais nobres, como o mármore, e profusão
de representações figuradas, frequentemente em atitudes dramáticas
e com gesticulação expressiva. Nas criações barrocas, o observador é
tomado por um conjunto de formas difíceis de serem apreendidas
separadamente. A teatralidade se faz presente, auxiliada por artificiosos
e intensos jogos de luz e sombra e pela representação marcante do
movimento, características que acentuam a dramaticidade desse estilo2.
Com o avançar do século XVIII, na França, assistiu-se a uma
mudança de gosto protagonizada pela nobreza e pelos burgueses. Com
o objetivo de decorarem seus ambientes privados, essas camadas sociais
preferiram um estilo menos “carregado” e passaram a valorizar formas
mais leves e graciosas, cores mais claras, fundos brancos e douramento
restrito aos ornatos em relevo. Surgia, então, o Rococó, termo usado
em História da Arte, desde fins do século XIX, para denominar o estilo
artístico que se desenvolveu na Europa entre as décadas de 1730 e 1770. A
origem do termo rococó é a palavra rocalha, que originalmente referia-se
a um tipo de decoração de jardins comum na França do século XVIII,
formada por fontes e grutas enfeitadas com conchas. A palavra passou
a ser usada para nomear motivos ornamentais derivados da estilização
de conchas. A rocalha é o ornato predominante no Rococó.3
Nos séculos XVIII e XIX, a Europa estava vivenciando grandes
transformações históricas – Revolução Francesa, Iluminismo, Revolução
Industrial – que dinamizaram a superação do chamado Antigo Regime,
marcado pelas monarquias e pelo grande poder da nobreza e da Igreja
Católica. Neste contexto de transformações, o Barroco e o Rococó
passaram a ser vistos como ultrapassados, posto que estavam associados
ao Antigo Regime. Buscava-se uma arte menos rebuscada, despojada
de excessos ornamentais, menos dramática e mais racional, orientada

36 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
por linhas retas e desenhos precisos. A arquitetura e a arte clássicas
– obras realizadas pelos gregos e romanos na Antiguidade – eram
consideradas modelos de rigor e perfeição formal. As escavações e
importantes descobertas arqueológicas da cidade de Herculano, em
1738, e de Pompéia, em 1748, bem como a publicação e a circulação
de livros sobre a antiga arte greco-romana favoreceram o entusiasmo
pela retomada do padrão estético clássico. O novo estilo, denominado
Neoclássico, predominou na Europa entre as últimas décadas do século
XVIII e a primeira metade do século XIX.4
Sabemos que durante os períodos de vigência do Barroco, do
Rococó e do Neoclássico na Europa, a presença do colonizador na
América Portuguesa já era uma realidade bem consolidada. Entre o final
do século XVII até por volta da sexta década do século XVIII, as ordens
religiosas e as associações de leigos, principais patrocinadoras da arte
sacra no território americano português, não pouparam esforços para
ornamentar o interior de seus templos conforme a tendência estilística
do Barroco.5 É importante considerar que a colonização intencionava
disseminar o universo cultural europeu, suas crenças e formas de
compreensão do mundo. Os exuberantes interiores barrocos, capazes
de extasiar os sentidos dos que neles adentravam, serviram muito bem
para esse fim. Em Cachoeira, podemos conhecer a concepção decorativa
desse estilo no interior da Capela da Venerável Ordem Terceira do
Carmo, como teremos oportunidade de demonstrar no capítulo 5. Nesse
templo, há dois tipos de retábulo barroco: o nacional português e o
joanino.6 O primeiro foi assim denominado pelos especialistas porque é
uma criação portuguesa, sem precedentes em outros países da Europa;
o segundo, derivado do barroco italiano, foi chamado joanino porque
vigorou na época de Dom João V, monarca português que durante o
seu longo reinado (1706-1750) muito incentivou e patrocinou a arte
no vasto território sob o seu domínio.
Os retábulos do tipo nacional português e do tipo joanino
apresentam características peculiares e muito distintas, perceptíveis
nos modelos executados no templo da Venerável Ordem Terceira do
Carmo de Cachoeira (fig. 3 e 4). No primeiro caso, destacam-se os arcos
concêntricos, no coroamento, com tarja ao centro; no segundo caso,

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 37


destaca-se o dossel, no arremate, ladeado por figuras antropomorfas
(que apresentam forma humana).

Figura 3 – Retábulo barroco do tipo nacional português. Capela da Ordem Terceira


do Carmo, Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

38 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Figura 4 – Retábulo barroco do tipo joanino. Capela-mor do templo da Ordem
Terceira do Carmo, Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

Durante a segunda metade do século XVIII, as ordens


religiosas e as associações de leigos foram assimilando o padrão estético
do Rococó nos seus edifícios sagrados.7 Em Cachoeira, podemos
identificar manifestações isoladas desse estilo nos conjuntos azulejares
existentes nas capelas da Ordem Primeira e Terceira do Carmo e na
Matriz de Nossa Senhora do Rosário; na pintura ornamental sob o
coro dos dois últimos templos citados; nos retábulos que ladeiam o
arco cruzeiro da Capela do Hospital São João de Deus (Santa Casa
da Misericórdia) e em outras obras apontadas ao longo dos capítulos
que se seguem.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 39


A ornamentação da sacristia da Matriz de Nossa Senhora do
Rosário destaca-se por ser predominantemente Rococó. Ali, podemos
verificar a concepção decorativa desse estilo que, ao contrário de
ambientes onde o Barroco predomina, apresenta ornamentação mais
leve e delicada. Rocalhas e arranjos florais estão por toda parte: no
forro pintado, no lavabo, nas molduras dos quadros dependurados
nas paredes e também nas sanefas das janelas. O retábulo, em especial,
além de apresentar rocalhas e flores na mesa de altar, no corpo e no
arremate, está com a policromia característica do Rococó: superfície
da estrutura pintada de branco e douramento restrito aos ornamentos
em relevo.

Figura 5 – Retábulo rococó. Sacristia da Matriz de Nossa Senhora do Rosário,


Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

40 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Decoração importantíssima nos interiores barrocos e rococós
das igrejas edificadas na América Portuguesa são as pinturas dos forros.
Inicialmente, destacavam-se as pinturas realizadas em painéis de
madeira circundados por molduras salientes, os chamados caixotões.
Em Cachoeira, podemos observar esse tipo de ornamentação no forro
da nave da Capela da Venerável Ordem Terceira do Carmo.

Figura 6 – Pinturas em caixotões. Forro da nave da Capela da Venerável Ordem


Terceira do Carmo, Cachoeira. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 41


Na primeira metade do século XVIII, Salvador começou a
embelezar os forros de suas igrejas com pinturas de perspectiva, que se
tornaram mais numerosas na segunda metade do século. Elas passaram
a conviver com as já realizadas pinturas em caixotões. Sobressaíram-
se, entre os mestres da pintura de perspectiva, os pintores Antônio
Simões Ribeiro, Domingos da Costa Filgueiras e José Joaquim da
Rocha. É de José Joaquim da Rocha, por exemplo, a magnífica
pintura de perspectiva do forro da nave da Matriz de Nossa Senhora
da Conceição da Praia, realizada por volta de 1774.8
As pinturas de perspectiva também são chamadas de pinturas
de falsa arquitetura, pinturas de arquiteturas fingidas ou quadraturas.
Elas caracterizam-se por simularem a continuidade ascendente do
edifício para além das paredes, retratando elementos arquitetônicos
como mísulas, colunas, entablamentos, arcos, balaustradas,
balcões, cúpulas e outros. Esse tipo de pintura apresenta um
medalhão figurado no seu centro, chamado pelos historiadores da arte
de quadro recolocado. Na tradição portuguesa, da qual fazemos parte,
esse medalhão central apresenta-se de frente para o observador, ou
seja, não acompanha a perspectiva de baixo para cima da arquitetura
fingida.9 Cria-se, assim, a ilusão de que, do interior da igreja, o fiel
vislumbra anjos, santos, Maria, Jesus, Deus Pai e o Espírito Santo no
Paraíso Celeste; como se o teto do edifício tivesse sido arrombado.
As pinturas de falsa arquitetura na Bahia foram influenciadas
por um importante livro, cuja história é a seguinte. Entre 1685 e
1694, o jesuíta italiano Andrea Pozzo (1642-1709) realizou uma
grande pintura de perspectiva no forro da Igreja de Santo Ignácio,
em Roma. O processo de realização de desenhos de perspectivas
para essa pintura foi por ele didaticamente explicado em um tratado
publicado em dois volumes, o primeiro em 1693 e o segundo em 1700,
intitulado Perspectiva Pictorum et Architectorum. Esse livro foi várias
vezes reimpresso e editado, tendo, assim, circulado muito durante o
período moderno, inclusive na América Portuguesa.10 Em Cachoeira,
podemos admirar pinturas de perspectiva nos forros da capela-mor,
nave e sacristia da Capela da Ordem Primeira do Carmo e no forro da
nave da Matriz de Nossa Senhora do Rosário.

42 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Figura 7 – Detalhe da pintura de falsa arquitetura. Forro da nave da Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, Cachoeira. Foto: Chico Brito, 2020.

Entre o final do século XVIII e o início do XIX, o Neoclássico


foi assimilado na América Portuguesa. As novidades, de maneira geral,
chegavam primeiro nas regiões litorâneas e depois se espalhavam para
o interior. No que diz respeito ao nosso assunto, ou seja, a decoração
interna das igrejas, podemos dizer que, no começo do XIX, Salvador
já vivenciava a atualização estilística. Em alguns casos, as manifestações
artísticas do Barroco e do Rococó foram completamente substituídas.
Em outros, somente parte da ornamentação foi renovada, razão pela
qual coexistem em um mesmo edifício sacro obras do Barroco, do
Rococó e do Neoclássico.
Entre 1804 e 1813, o retábulo da capela-mor da Matriz de
Nossa Senhora da Vitória, em Salvador, foi refeito. Em 1813, iniciou-
se a reforma ornamental da Capela de Nosso Senhor do Bom Jesus do
Bonfim, começando pelo retábulo principal. A atualização estilística
da decoração interna desse último templo desencadeou uma onda
de reformas.11 O modelo do retábulo principal da capela do Bonfim

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 43


– classificado pelo professor Luiz Freire como tipo 1: baldaquino
arrematado por cúpula vazada sobre volutas – muito repercutiu na
Bahia, sendo reinterpretado em outros templos localizados na Cidade
do Salvador, no Recôncavo e no Sertão.12 Em Cachoeira, esse modelo
é encontrado na Matriz de Nossa Senhora do Rosário e na Capela de
Nossa Senhora da Conceição do Monte.

Figura 8 – Retábulo neoclássico. Capela-mor da Matriz de Nossa Senhora do


Rosário, Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

Antes de passarmos para a leitura dos capítulos que tratarão


da história, arquitetura e ornamentação de oito templos edificados
em Cachoeira, é importante lançarmos algumas luzes sobre os sujeitos
envolvidos na construção e decoração desses sagrados edifícios nos
séculos XVI, XVII, XVIII e XIX.

44 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Conforme explicamos no capítulo anterior, Cachoeira
desenvolveu-se e tornou-se próspera graças a sua privilegiada localização
geográfica – no último trecho navegável do rio Paraguaçu – e, também,
devido ao cultivo do açúcar, especialmente na região do Iguape,
e do tabaco. Açúcar, tabaco e atividades portuárias assentaram-se,
principalmente, sobre a mão de obra africana e crioula (negros nascidos
na América Portuguesa) escravizada. Embora ainda careçamos de
estudos acadêmicos sobre esse assunto em relação a Cachoeira, é lógico
e plausível pressupor, baseando-se em pesquisas realizadas para outras
localidades, que o trabalho de construção e ornamentação dos templos
que iremos analisar neste livro também contou com a mão de obra dos
escravizados.13 Não devemos pensar nesses sujeitos históricos apenas
como executores de trabalhos braçais que desempenhavam tarefas
gerais, como desbastar e carregar pedras ou transportar madeiras. É
preciso considerar e destacar que muitos dominavam ofícios, como o
de pintor ou entalhador, e passaram a desempenhá-los com maestria. É
verdade que o aprendizado de um ofício os tornava mais valorizados no
mercado de escravizados, mas também possibilitava a alguns a conquista
da liberdade (alforria).14
Afrodescendentes alforriados ou nascidos livres, a maioria
pardos, como eram chamados os mestiços na época, ascenderam
à condição de mestres, sendo requisitados pelas ordens religiosas
e associações leigas para executarem obras artísticas nos templos.
Seus trabalhos foram aclamados e muitos alcançaram destaque. Eles
adaptaram os modelos europeus, criaram obras ímpares, aclimatadas
ao gosto e cultura locais e dirigiram suas oficinas e equipes de trabalho,
normalmente integradas por aprendizes e ajudantes livres, alforriados
e escravizados. Como exemplo, citamos José Teófilo de Jesus, pintor
pardo que se destacou no cenário artístico de Salvador no final do
século XVIII e início do XIX, responsável por importantes pinturas,
como a do forro da nave da Capela da Ordem Terceira do Carmo de
Salvador,15 e Joaquim Francisco de Mattos (Roseira), mestre entalhador
pardo, nascido em Cachoeira por volta de 1792, atuante em Salvador
entre 1818 e 1851, onde executou várias obras, dentre elas o retábulo-
mor e toda a talha da Matriz do Santíssimo Sacramento e da Matriz de
Nossa Senhora do Pilar.16

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 45


Lamentavelmente, grande parte da antiga documentação das
igrejas de Cachoeira não chegou aos nossos dias. Um dos fatores que
muito contribuiu para isto foi a ocorrência sucessiva de enchentes do
rio Paraguaçu até a década de 1980. Os documentos que rastreamos
até o presente momento não nos permitiram registrar os nomes dos
arquitetos e artistas que trabalharam nos templos cachoeiranos, mas
continuaremos empreendendo esforços para alcançar esse objetivo.

46 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Notas
1 BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: EdUFBA, 2012. p. 19-22.
2 Sobre o barroco consulte ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão: ensaios
sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. WOLFFLIN, Heinrich.
Conceitos Fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
3 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus
antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 23-25.
4 SOUZA, Antônio Gilberto Abreu de. Arquitetura neoclássica e cotidiano social do
centro histórico de Fotaleza – da Belle Époque ao ocaso do início do século XXI. 2012.
f. 81-86. Tese - Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2012. MIRABENT, Isabel Coll. Saber ver a arte neoclássica. São Paulo:
Martins Fontes, 1991. 78 p. ANACLETO, Regina. História da Arte em Portugal:
neoclassicismo e romantismo. Lisboa: Alfa, 1986. 184 p. v. 10
5 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Maneirismo, barroco e rococó na arte
religiosa e seus antecedentes europeus. In: BARCINSKI, Fabiana Werneck (Org.).
Sobre a arte brasileira: da Pré-história aos anos 1960. São Paulo: Edições SESC/WMF,
Martins Fontes, 2014. p. 104-117.
6 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A talha no período colonial. In:
SANT’ANNA, Sabrina Mara; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro; CAMPOS, Adalgisa
Arantes. Cultura Artística e Conservação de acervos Coloniais. Belo Horizonte: Clio
Gestão Cultural, 2015. p. 51-60. FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha na Bahia do
século XVIII. Cultura Visual, Salvador, n. 13, p. 137-151, maio, 2010. BOHRER,
Alex Fernandes. A Talha do Estilo Nacional Português em Minas Gerais: contexto
sociocultural e produção artística. 2015. 427 f. 2 v. Tese - Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
PEDROSA, Aziz José de Oliveira. A produção da talha joanina na capitania de Minas
Gerais: retábulos, entalhadores e oficinas. 2016. 591 f. Tese - Escola de Arquitetura,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. SANT’ANNA, Sabrina
Mara. Sobre o meio do altar: os sacrários produzidos na região centro-sul das Minas
Gerais setecentistas. 2015. 208 f. - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
7 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus
antecedentes europeus... op. cit., p. 183.
8 GUIMARÃES, Francisco de Assis Portugal. Pintura Religiosa na Cidade de
Salvador, Bahia: séculos XVII, XVIII e XIX, In: _____ (Coord.) Museu de Arte
Sacra: Universidade Federal da Bahia. Salvador: Impressão Bigraf, 2008. p. 159-160.
Sobre o assunto, consulte VICENTE, Mônica Farias Menezes. Tesouros no alto:
o patrimônio artístico, científico e iconográfico nas pinturas de teto da Bahia. In:
SANT’ANNA, Sabrina Mara; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro; CAMPOS, Adalgisa

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 47


Arantes. Cultura Artística e Conservação de acervos Coloniais. Belo Horizonte: Clio
Gestão Cultural, 2015. p. 163-181.
9 MELLO, Magno Moraes. A pintura de tectos em perspectiva no Portugal de D. João
V. Lisboa: Estampa, 1998.
10 SILVA, Mateus Alves. O Tratado de Andrea Pozzo e a pintura de Perspectiva em
Minas Gerais. 2012. f. 21-23. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. Sobre a circulação de
tratados, livros e gravuras europeias que influenciaram os pintores atuantes na América
Portuguesa, consulte SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Usos e impactos de
impressos europeus na configuração do universo pictórico mineiro (1777-1830). 2009.
379 f. Tese - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.
11 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro:
Versal, 2006. p. 20-63.
12 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As relações centro-periferia nos retábulos baianos
do Recôncavo. In: SANT’ANNA, Sabrina Mara; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro;
CAMPOS, Adalgisa Arantes (Org.). Cultura artística e conservação de acervos coloniais.
Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural, 2015. p. 71-72.
13 Sobre o assunto, consulte ARAUJO, Emanuel. A mão afro-brasileira: significado
da contribuição artística e histórica. São Paulo: Tenenge, 1988.
14 SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Cativos da Arte, artífices da liberdade:
a participação de escravos especializados no Barroco Mineiro. In: PAIVA, Eduardo
França; IVO, Isnara Pereira (Orgs). Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas.
São Paulo: Annablume, 2008. p. 77-88.
15 ALVES, Marieta. Dicionário de Artistas e Artífices na Bahia. Salvador: Universidade
Federal da Bahia, Centro Editorial e Didático, Núcleo de Publicações, 1976. p. 89.
Uma relação de pintores afrodescendentes atuantes na América Portuguesa pode
ser consultada em CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque. A Pintura Religiosa na
Bahia, 1790-1850. 2003. f. 249-527. Tese - Departamento de Ciências e Técnicas do
Patrimônio, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2003.
16 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia... op. cit., p. 492-494.

48 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
CAPÍTULO 3
A CAPELA DE NOSSA SENHORA D’AJUDA

No final do século XVI, o capitão Álvaro Rodrigues Adorno


estabeleceu-se no sítio que posteriormente seria a Vila da Cachoeira.1
Ele instalou um engenho de açúcar e construiu, em um outeiro, um
sobrado e uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário.
Essa foi a primeira edificação católica de Cachoeira e, como veremos
mais adiante, somente séculos depois o templo ganhou a configuração
arquitetônica e a padroeira que tem hoje: Nossa Senhora D´Ajuda.
Na falta de documentos conclusivos, supõe-se que a pequena
capela foi construída entre os anos de 1595-1606, pois acredita-se que
ela já estava pronta antes da morte de Álvaro Rodrigues Adorno, que
ocorreu em 1607.2 Esse templo foi reconstruído pelo seu bisneto, João
Rodrigues Adorno, e elevado à condição de igreja matriz em 1674, ano
em que foi fundada a Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Porto
da Cachoeira. Estima-se que as obras prosseguiram até 1687, pois há
notícias de que na sua fachada havia o registro dessa data em alto-
relevo.3 No começo do século seguinte, conforme o testemunho de frei
Agostinho de Santa Maria, publicado em 1722, a igreja permanecia em
bom estado: “Tem esta Igreja, que hoje está com grande reformação, e
muito adorno, a sua situação com as portas para o Ocidente, e as costas
para o Oriente”.4
Com o passar dos anos, o templo já não comportava o número
crescente de fiéis e foi necessário construir outra igreja matriz (confira o
capítulo 6). Por volta de 1722, quando a função paroquial foi transferida
para a nova sede, a capela voltou para o domínio privado da família

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 49


Adorno. No último quartel do século XVIII, os herdeiros cederam o
sagrado edifício para a Confraria de São Pedro dos Clérigos.5 Com a
extinção dessa confraria de sacerdotes, um grupo de músicos da vila,
organizado pelo padre José Henriques da Silva, instituiu uma corporação
musical na referida capela em 1795, sendo o próprio padre Henriques
seu primeiro diretor.6 Essa corporação deu início aos festejos de Nossa
Senhora D’Ajuda, que passou a ser a padroeira do templo.7
Após o falecimento do padre José Henriques, o cargo de diretor
da corporação musical foi ocupado por seu sobrinho, o padre Manuel
do Nascimento de Jesus. Na sua gestão, o padre Manuel “fez grandes
melhoramentos na capela” e autorizou a instituição no edifício, em
1819, da Irmandade de São Benedito, que agremiava homens forros
e escravizados.8 Em 1835, essa irmandade recebeu autorização para
construir um salão em terreno adjacente à capela, onde foi erigido
um altar para São Benedito. Até a conclusão dessa obra, em 1839, a
irmandade utilizou a sacristia e o arcaz da corporação musical.9
Em 1852, a Irmandade de São Benedito pretendeu contratar
outra corporação musical para tocar na festa que celebraria em honra
de seu padroeiro na Capela de Nossa Senhora D’Ajuda, o que acabou
não acontecendo. Por volta de 1870, com o intuito de garantir sua
exclusividade como executora das músicas nas solenidades promovidas na
capela, a corporação musical D’Ajuda redigiu seu livro de compromisso
e nele assegurou essa prerrogativa.
O compromisso foi aprovado pelo arcebispo de Salvador e pelo
presidente da província.10 Foi nessa ocasião que a Irmandade de Nossa
Senhora D’Ajuda oficializou-se. Sobre isso, Pedro Celestino da Silva
escreveu o seguinte: “os músicos, chamando de todo a si este encargo,
organizaram em 1872 a Irmandade de N. S. d’Ajuda, cujo compromisso
não sabemos em que data teve aprovação canônica”.11 Foi localizado
um compromisso datado de 1880, provavelmente uma reforma do
anterior. Nele, descobrimos que a filiação à Irmandade D’Ajuda estava
restrita aos músicos, integrantes da corporação musical, mas admitia-
se também, na condição especial de irmãos benfeitores, a entrada de
devotos dispostos a contribuir financeiramente com o culto divino e
suas demandas.12

50 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 9 – Frontispício da Capela de Nossa Senhora D’Ajuda. Desenho de Antônio


Wilson Silva de Souza, 2020.

O frontispício da Capela de Nossa Senhora D’Ajuda tem um


alpendre saliente coberto por telhado de copiar com três águas. Esse
telhado, apoiado na parede da fachada, é sustentado por seis pilares
ligados por mureta, gradil e portão de madeira. Ao fundo do alpendre
está o portal do templo com aro de pedra, ladeado por duas janelas
retangulares baixas e uma placa que contém a inscrição “LOUVADO
SEJA O SANTSMo SACRAMENTo” (Santíssimo Sacramento).
Acima do telhado de copiar, há outras duas janelas retangulares e um
óculo circular. No alto do frontispício, arrematado por beira-sobeira,
vemos uma cruz (símbolo cristão que normalmente coroa as edificações
sagradas). À esquerda da fachada, está a torre sineira com vãos em arco
pleno e cobertura piramidal; no lado oposto, encimando o cunhal,
há um pináculo.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 51


A Capela de Nossa Senhora D’Ajuda nem sempre teve as
características arquitetônicas que apresenta atualmente. Em 1866,
segundo o texto e a gravura que Alexandre José de Mello Morais publicou
no livro Brasil Histórico, o alpendre era “um átrio amurado, coberto
de telhas e fechado por uma grade de madeira”13. A torre sineira ficava
um pouco recuada em relação ao frontispício e não apresentava os vãos
em arco pleno nem a cobertura piramidal. Naquela época, os cunhais
da fachada principal eram coroados por pináculos; atualmente só o do
lado direito se faz presente.

Figura 10 – Gravura publicada em 1866, Brasil Histórico, p. 29.

Em uma fotografia datada de 1950, quase um século depois da


publicação de Alexandre José de Mello Moraes, o “átrio amurado” da
Capela de Nossa Senhora D’Ajuda estava completamente diferente: tinha
portal composto por três arcos abatidos e um frontão triangular
contornado por ornamentos em forma de “C”. No centro do frontão,
havia a representação de uma lira e, acima dela, um óculo quadrilobado.
A parede lateral, encimada por uma platibanda, apresentava outros
dois óculos quadrilobados separados por uma pilastra. A torre sineira,
por sua vez, já estava bem parecida com a atual: tinha vãos em arco
pleno e cobertura piramidal (para visualizar a fotografia da Capela de

52 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Nossa Senhora D’Ajuda, 1950, acesse: <http://acervodigital.iphan.
gov.br>, doc. F037676).
De acordo com o Inventário de Proteção do Acervo Cultural
da Bahia, publicado em 1982, a Secretaria do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (SPHAN, atual Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, IPHAN) realizou obras de restauração e conservação
na capela em 1940, 1959 e 1965. Sobre a arquitetura do templo e o
resultado das intervenções feitas, a equipe que preencheu o citado
inventário registrou o seguinte:

[...] interessantíssima capela do século XVII


prejudicada por restaurações pouco fiéis. A capela
possuía nártex fechado, que foi substituído por
um alpendre aberto, com cobertura de três águas.
Copiares fechados são muito raros no Brasil. Na
Bahia, além da Capela da Ajuda, tem-se notícia
apenas do copiar da Capela de N. Sra. de Nazaré, do
Eng. Passagem dos Teixeiras, em Candeias, também
destruído. Por outro lado, acréscimos relativamente
recentes, sem méritos arquitetônicos, como a
torre e o salão da Irmandade de S. Benedito, foram
respectivamente conservados e refeitos.14

Em 2015, o IPHAN/Programa Monumenta realizou obras


de restauração na capela. “As principais intervenções foram no
piso e no madeiramento de sustentação da cobertura, que estavam
extremamente precários”.15

A planta baixa

A figura 11 nos apresenta a planta baixa da Capela de Nossa


Senhora D’Ajuda. No térreo, estão localizados o alpendre saliente coberto
por telhado de copiar com três águas (1), a nave única (2), a capela-mor
(3), a sacristia (4), um depósito (5) e o salão edificado pela Irmandade
de São Benedito (6). No primeiro pavimento está o coro (7).16

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 53


5

6 3 4

Térreo Primeiro Pavimento


0 5 10 0 5 10

Figura 11 – Planta baixa da Capela de Nossa Senhora D’Ajuda, Cachoeira. Desenho


de Samantha Úrsula Sant’Anna, 2020.

A ornamentação interna

Em 1866, conforme consta na publicação de Alexandre José de


Mello Moraes, havia no interior da Capela de Nossa Senhora D’Ajuda
três retábulos: o principal, localizado na capela-mor, abaixo da cúpula,
e dois colaterais, assim chamados por situarem-se nas ilhargas do arco
cruzeiro. As paredes do templo eram “lisas e sem ornamentos”. No lado
do evangelho, ficava o púlpito e, no lado da epístola, abaixo do coro,
a pia batismal descrita como “uma imensa pedra de cantaria cavada,
tendo a forma de uma taça”.17 Na década de 1940, Pedro Celestino da
Silva descreveu o interior do templo de maneira muito semelhante.18
Atualmente a Capela de Nossa Senhora D’Ajuda não tem
retábulos nem pia batismal. De excelente fatura são as obras de cantaria,
em especial o arco cruzeiro com ornamentos em relevo.

54 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Figura 12 - Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 55


Notas
1 SANTA MARIA, Fr. Agostinho de. Santuario Mariano, e Historias das Imagens
milagrosas de Nossa Senhora, e milagrosamente manifestadas, e apparecidas em
o Arcebispado da Bahia, e mais Bispados, de Pernambuco, Paraiba, Rio Grande,
Maranhão, e Grão Pará. Lisboa: na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1722. p.
212. Tomo 9.
2 SILVA, Pedro Celestino da. Datas e Tradições Cachoeiranas. Anaes do Arquivo
Público da Bahia, Salvador, v. 29, 1943, Imprensa Oficial, 1946, p. 332.
3 SILVA, Pedro Celestino da. Datas e Tradições Cachoeiranas... op. cit., p. 332-333.
4 SANTA MARIA, Fr. Agostinho de. Santuario Mariano, e Historias das Imagens
milagrosas de Nossa Senhora... op. cit., p. 213. A grafia foi atualizada na transcrição.
5 SILVA, Pedro Celestino da. Datas e Tradições Cachoeiranas... op. cit., p. 333-334.
6 SILVA, Pedro Celestino da. Datas e Tradições Cachoeiranas... op. cit., p.334.
7 Universidade Católica do Salvador, Laboratório Reitor Eugênio Veiga, fundo
Governo Arquidiocesano, grupo Chancelaria, subgrupo Irmandades Obras Pias,
série Irmandade de São Benedito da Cachoeira, fl. 1.
8 Universidade Católica do Salvador, Laboratório Reitor Eugênio Veiga, fundo
Governo Arquidiocesano, grupo Chancelaria, subgrupo Irmandades Obras Pias,
série Irmandade de São Benedito da Cachoeira, fl. 1 v.
9 Universidade Católica do Salvador, Laboratório Reitor Eugênio Veiga, fundo
Governo Arquidiocesano, grupo Chancelaria, subgrupo Irmandades Obras Pias,
série Irmandade de São Benedito da Cachoeira, fl. 2.
10 Universidade Católica de Salvador, Laboratório Reitor Eugênio Veiga, fundo
Governo Arquidiocesano, grupo Chancelaria, subgrupo Irmandades Obras Pias,
série Irmandade de São Benedito da Cachoeira, fl. 2 e 2v.
11 Pedro Celestino da. Datas e Tradições Cachoeiranas... op. cit., p. 334.
12 AMORIM, Rodrigo do Nascimento. Práticas sociais e religiosas em Cachoeira
entre os anos de 1840 1883: Um estudo sobre a Irmandade do Bom Jesus da Paciência.
2016. 70 f. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2016.
13 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 36.
14 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção
do Acervo Cultural da Bahia. Salvador: Secretaria da Indústria e Comércio, 1982. v.
III Monumentos e Sítios do Recôncavo, II parte. p. 50.

56 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
15 Notícia publicada no dia 12/08/2015. < http://iphanba.blogspot.com/2015/08/
capela-de-nossa-senhora-da-ajuda-em.html>. Acesso em: 06/09/2020.
16 Desenho baseado na planta baixa publicada em: BAHIA. Secretaria da Indústria
e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia... op.
cit., p. 49.
17 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 36-37.
18 SILVA, Pedro Celestino da. Datas e Tradições Cachoeiranas... op. cit., p. 335.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 57


58 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
CAPÍTULO 4
A CAPELA DA ORDEM PRIMEIRA DE
NOSSA SENHORA DO CARMO

A devoção a Nossa Senhora do Carmo é muito antiga e


relaciona-se com a história e as tradições da Ordem Carmelita.
Próximo ao Mar Mediterrâneo, entre a Galileia e a Samaria, na
planície de Esdrelon, na Palestina, encontra-se o Monte Carmelo.
Ali, o Profeta Elias teria vivido momentos de reclusão e realizado
prodígios no século IX a.C. Inspirados nesse importante personagem
do Antigo Testamento, ermitões passaram a viver no Monte Carmelo.
A eles, desde o século XI d.C, juntaram-se alguns participantes das
Cruzadas (expedições militares patrocinadas pela Igreja Católica
e organizadas pela cristandade medieval, visando libertar cristãos
do domínio muçulmano no Oriente e recuperar relíquias e lugares
santificados).1
A Ordem dos Carmelitas Calçados foi oficialmente criada em
1226, quando o papa Honório III aprovou a Regra Albertina (assim
chamada porque as normas para reger a vida religiosa daquele grupo
foram redigidas por Alberto, patriarca de Jerusalém). Ainda no século
XIII, os carmelitas abandonaram o Monte Carmelo e difundiram-se
pela Europa, onde edificaram vários conventos. De lá, com o processo
de expansão ultramarina, chegaram ao Novo Mundo (América). Entre
1580 e 1583, os carmelitas que aportaram na América Portuguesa
construíram o primeiro convento em Olinda e, logo em seguida, em
1586, estabeleceram-se em Salvador.2
No final do século XVII, foram enviados para Cachoeira –
naquela época um pequeno arraial – missionários carmelitas para

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 59


catequizar os nativos. Em 1688, o capitão João Rodrigues Adorno
e sua esposa, Úrsula de Azevedo, doaram o terreno onde foram
edificados um primitivo hospício para hospedagem dos missionários
e uma capela. Inicialmente, instalaram-se ali três sacerdotes, dentre
eles frei Manoel da Piedade, o fundador. Já em 1692, seis religiosos
habitavam o hospício.3 Algum tempo depois, em data desconhecida,
a primitiva hospedagem e a capela foram demolidas e os carmelitas
transferiram-se para o convento que ergueram em área localizada um
pouco abaixo. Estima-se que o convento tenha sido construído entre
1715 e 1722.4 O novo templo, muito provavelmente, foi edificado
entre as décadas de 1720 e 1730, pois há notícias de que no seu
interior, mais precisamente na capela lateral dedicada ao Santíssimo
Sacramento, havia uma sepultura com a data de 1734.5
No século XX, por volta de 1955, “o convento estava
praticamente desabitado, com graves problemas na cobertura”.6
Entre 1981 e 1983, o Governo Federal e o Governo do Estado
da Bahia, por meio do Programa Integrado de Reconstrução das
Cidades Históricas do Nordeste, promoveram obras de restauração
e intervenções necessárias para transformar o convento em pousada,
função que o faustoso edifício tem até hoje.7 Entre 2003 e 2006, o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Programa
Monumenta realizou obras de restauração na Capela da Ordem
Primeira do Carmo de Cachoeira.

Arquitetura e ornamentação

O frontispício

O frontispício da Capela da Ordem Primeira do Carmo


divide-se horizontalmente em três partes. Na primeira, podemos
observar os arcos plenos da galilé sobrepostos por cimalhas de
sobreverga e composições decorativas em estuque. Os três arcos
centrais são fechados por portas de madeira, enquanto os arcos das

60 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
extremidades, vedados por alvenaria, apresentam óculos circulares.
Logo acima, emoldurando essa primeira parte, está a cimalha.
Na sequência, seguindo a mesma disposição dos arcos da galilé,
observamos cinco janelas de guilhotina sobrepostas por cimalhas
de sobreverga e decoração em estuque. No alto da fachada estão
a cimalha real e o frontão de cartela. Este último elemento é
contornado por rocalhas e constituído por três peças separadas por
tocheiros; ornamento que coroa as pilastras e cunhais do edifício.
A peça central do frontão, encimada por cruz, apresenta um óculo e o
brasão da Ordem Carmelita. À direita, em posição recuada, destaca-se
a torre sineira com arremate bulboso sobre cúpula.

Figura 13 – Frontispício da Capela da Ordem Primeira de Nossa Senhora do


Carmo, Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 61


O brasão da Ordem Carmelita é composto pelos seguintes
símbolos: um monte, três estrelas e uma coroa. Não se sabe ao certo
a sua origem e nem há consenso sobre o significado de cada um dos
seus componentes. O monte, de maneira geral, é reconhecido como
uma referência ao Monte Carmelo. Segundo frei Pereira da Costa, a
estrela localizada sobre a terra, disposta no centro da base do monte,
representa o Profeta Elias; as outras duas simbolizam a dupla natureza
de Cristo – humana e divina. Outra interpretação considera que a
estrela central representa Maria, mãe de Jesus, e as outras duas, Elias
e Eliseu. A coroa que arremata o brasão é sempre associada à Virgem
Maria (neste caso, a Nossa Senhora do Carmo).8
Voltando o nosso olhar para a composição decorativa que
encima o arco central da galilé, lemos na tarja o número 1773. Esta
inscrição, muito provavelmente, registra o ano da conclusão de obras
no frontispício. Cabe destacar que a fachada e a entrada da capela nem
sempre tiveram a configuração que observamos atualmente. Em 1866,
conforme a descrição publicada por Alexandre José de Mello Morais
no livro Brasil Histórico, o acesso principal ao interior da capela tinha
as seguintes características: “penetra-se neste templo, depois de subidos
alguns degraus de pedra que ficam na parte exterior, passando-se por
arcadas gradeadas, que dirigem à larga porta principal”.9 Portanto, na
segunda metade do século XIX, os arcos da fachada não tinham as
portas de madeira, nem os óculos que têm hoje, e o acesso ao recinto
interno do templo se dava por uma “larga porta” localizada ao fundo
da galilé, ou seja, após as “arcadas gradeadas”. O frontispício da capela
não foi descrito em detalhes, mas a publicação de Alexandre José de
Mello Morais nos legou uma gravura (fig. 14) e também as seguintes
palavras a respeito das torres sineiras:

(...) existe só uma torre que fica à esquerda do


frontispício; a da direita, não acabada, foi cedida pelos
religiosos aos irmãos terceiros, os quais, sem que tenham
cuidado de concluí-la, têm negligentemente deixado
arruinar-se a tal ponto, que parece ameaçar a cada
invernada levar em seus destroços uma boa parte deste
sagrado edifício10.

62 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Figura 14 – Gravura publicada em 1866, Brasil Histórico, p. 37.

A planta baixa

9
8

6 7

4
5

Térreo 2 1 3
0 5 10 20

12

Primeiro Pavimento 11 11
0 5 10 20

10

Figura 15 – Planta baixa da Capela da Ordem Primeira de Nossa Senhora do


Carmo, Cachoeira. Desenho de Samantha Úrsula Sant’Anna, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 63


A Capela da Ordem Primeira do Carmo faz parte de um
conjunto arquitetônico e tem acessos para o extinto convento, situado
à direita, e para o edifício da Ordem Terceira, situado à esquerda. A
planta baixa do templo, em destaque na figura 15, nos apresenta o
térreo e o primeiro pavimento. No térreo, estão a galilé (1) ladeada
pelo batistério (2) e pela torre sineira (3), a nave única (4), o corredor
lateral (5), as antigas capelas de Santa Teresa (6) e do Santíssimo
Sacramento (7), a capela-mor estreita e profunda (8) e a sacristia
(9). No primeiro pavimento estão o coro (10), a galeria de tribunas
(11) e o consistório (12).11

A ornamentação interna

O interior do templo perdeu quase toda a ornamentação


original. Na atualidade, podemos observar as colunas helicoidais
remanescentes do antigo retábulo principal, os forros pintados que
cobrem a capela-mor, a nave, a capela do lado da epístola e a sacristia, a
pintura sob o coro, além de dois grandes painéis de azulejos portugueses
e outros vestígios da decoração proveniente do século XVIII.

Figura 16 – Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

64 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Segundo a descrição publicada em 1866 por Alexandre José
de Mello Morais, as artes no interior do templo já estavam muito
deterioradas:
O corpo da igreja é vasto e um pouco escuro, o solo
é coberto de tijolos de barro, quadrados; as paredes
estão nuas e despidas dos enfeites e molduras que, por
estragadas, têm pouco a pouco caído em destroços. Os
retábulos e forros acham-se partidos e corroídos pelo
cupim; as pinturas, quadros e emblemas tudo está
coberto de grossa camada de pó e arruinado.
A capela-mor, tão rica de ornatos de escultura e de gosto
arquitetônico, segue com rapidez para a sua completa
ruína. Os finos dourados dos remates das colunas, dos
enfeites e dos arabescos, que adornavam os altares, estão
enegrecidos pela poeira e nodoados pelos morcegos.
A capela do Santíssimo Sacramento, onde está uma
belíssima e veneranda imagem do Crucificado, está
muito estragada pelas chuvas que penetram pela
claraboia, que é interiormente forrada de madeira.
Aspira-se ao penetrar nesta capela um ar pouco
agradável, talvez devido às águas que durante as
invernadas descem-lhe pelas paredes.
Esta capela foi feita, segundo se supõe, pelo coronel
Lourenço Corrêa Lisboa, em cuja campa aí está
colocada a data de 1734.
Fronteira a esta capela fica a de Santa Tereza, concedida
pelos religiosos aos irmãos terceiros, que comunica, por
duas portas laterais, para a ordem terceira.
Na capela-mor está a formosa imagem de Nossa Senhora
do Monte do Carmo, e aos lados os patriarcas S. Elias
e S. Eliseu. Aí, nas paredes e nos intervalos das janelas
das tribunas, estão alguns quadros, cobertos de pó e
enfumados, representando santos bispos e cardeais
que pertenceram a esta ordem.
Aos lados da capela-mor ficam dois altares; o da esquerda
é consagrado a Sant’Anna. No supedâneo deste está
uma campa privilegiada da família do comendador
Navarro de Andrade; o da direita é de São José, junto

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 65


ao qual fica a capela de Santa Tereza, que é fronteira a
do Santíssimo Sacramento.
No corpo da igreja há quatro altares laterais; de uma
parte estão o de Nossa Senhora da Conceição e o do
Senhor dos Martírios; da outra parte os de Nossa
Senhora da Boa Morte e o do Senhor da Paciência:
todos estes altares se acham um tanto estragados e
carecem de custosos reparos.12

Em 1872, a Ordem Primeira do Carmo de Cachoeira conseguiu


recursos para fazer reparos no coro e no arco cruzeiro. Também nessa
época, os quadros danificados foram retirados das paredes do templo
e o retábulo principal foi refixado para não cair. Entre 1928 e 1931,
sob a direção de frei Pedro Tomás Margallo, o retábulo da capela-mor
(onde ficava a imagem de Nossa Senhora do Carmo), bem como os
quatro que se localizavam na nave (dedicados, conforme a descrição
do século XIX, a Nossa Senhora da Conceição, Senhor dos Martírios,
Nossa Senhora da Boa Morte e Senhor da Paciência)13 foram retirados
e substituídos por outros de alvenaria revestida por escaiola; os dois
que ficavam junto ao arco cruzeiro (o de São José e o de Sant’Ana) e
os dois que se localizavam nas capelas laterais (o de Santa Teresa e o do
Santíssimo Sacramento) foram eliminados. Além disso, o piso original
de “tijolos de barro” foi coberto por revestimento cerâmico – essa obra
ocultou as sepulturas que havia no interior do templo – e, no pavimento
superior, foi iniciada a construção da galeria de tribunas no lado do
evangelho. 14 Na década de 1970, o forro pintado da nave desabou.
Em 1985, o carroceiro Antero Gomes de Freitas, seu Doró, procurou
um arquiteto do SPHAN/FNPN informando-lhe que estava inseguro
quanto ao descarte de umas velhas tábuas pintadas que saíram do
convento; serviço que lhe fora contratado. Eram fragmentos dos forros
da nave, do coro e da capela do lado da epístola. Recolhidos, limpos
e acondicionados, esses fragmentos foram restaurados e remontados
entre 2003 e 2006, quando o IPHAN/Programa Monumenta geriu
as obras.15 A equipe de restauro optou por deixar evidentes as partes
faltantes das pinturas, completando os forros com tábuas novas, sem
figura alguma. O objetivo era resguardar os vestígios do passado e

66 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
deixar claro para os observadores que os forros e as pinturas originais
não chegaram intactos aos nossos dias.

Capela-mor

Na capela-mor está o retábulo principal do templo. Sua estrutura


de alvenaria com revestimento em escaiola apresenta coroamento,
camarim e falso sacrário em arco pleno. Recentemente, à frente do falso
sacrário, foi encaixada uma urna eucarística dourada, datada do século
XVIII.16 As quatro colunas helicoidais que estão integradas ao retábulo
testemunham a exuberância da talha barroca que se perdeu. Elas são de
madeira, atualmente estão sem policromia e apresentam ornamentação
fitomorfa (folhas e flores) e zoomorfa (aves). No templo vizinho,
construído pela Venerável Ordem Terceira do Carmo, observaremos
retábulos barrocos com colunas similares.
O forro da capela-mor tem pintura a óleo sobre um tabuado de
madeira que mede 1064 cm de comprimento por 800 cm de largura.17
Exibe medalhão central representando Nossa Senhora do Carmo
entregando o escapulário para frei Simão Stock, emoldurado por
pintura de perspectiva (fig. 17). A autoria da obra não é conhecida.
Valentim Calderón considera que ela teria sido realizada entre 1770 e
1775 e estaria ligada à escola de José Joaquim da Rocha.18
Na parte central da pintura está a Virgem do Carmo – coroada
e vestida com o hábito carmelita (túnica marrom e manto branco) –
segurando o Menino Jesus no colo. São Simão Stock está ajoelhado
recebendo um tecido marrom das mãos da Virgem. Em volta dessa
cena, há vários anjos. Um deles segura um ramo de lírios sobre um livro
aberto, onde está escrito DECO[R] ET INDUMENTUM EIUS (O
decoro e a veste Dela). Outros dois anjos representados na cena carregam
faixas com as inscrições ECCE SIGNVM SALVTIS (Eis o sinal da
salvação) e TIBI ET CVNCTIS CARMELITIS (Para ti e para todos
os carmelitas). O lírio representa a castidade, a pureza e a inocência;
também simboliza a eleição, a escolha de um ser amado.19 O frei Simão
Stock conservou sua virgindade e foi escolhido pela mãe de Jesus para
receber a dádiva do escapulário (peça de tecido que os carmelitas usam
sobre o hábito).

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 67


Figura 17 - Forro da capela-mor. Foto: Chico Brito, 2020.

68 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Simão Stock nasceu por volta de 1165 na Inglaterra. Aos 12
anos consagrou-se a Deus e retirou-se para uma floresta, abrigando-se,
como ermitão, no tronco de uma árvore por mais de 15 anos.20 Passou
a integrar a Ordem Carmelita, na qual foi eleito prelado em 1247.21
Segundo a tradição carmelitana, Simão Stock suplicava à Virgem
Maria algum privilégio para os carmelitas. Em 1261, atendendo suas
orações, Nossa Senhora apareceu para ele e entregou-lhe o escapulário
dizendo:

Recebe amado filho Simão, este Escapulário da tua


Ordem, sinal da minha Irmandade, único e singular
privilegio para todos os meus Carmelitas: será
demonstração, e prenda de meu favor, e patrocínio
para todos os que o trouxerem, que a todos favorecerei
na vida, e na morte: aquele, que morrer com este
Habito, não padecerá fogo eterno. Este escapulário é
sinal, e aliança de paz, e amizade sempiterna.22

A partir de então, o hábito carmelita passou a contar com uma peça


tecida e presenteada pela própria Mãe de Jesus, o que conferia bastante
prestígio à Ordem. Além de prestígio, o escapulário favoreceria aqueles
que o usavam. Auxiliava os vivos a perseverarem nos preceitos cristãos
e impedia que os mortos fossem condenados ao fogo eterno, ou seja,
ao Inferno.
A arquitetura fingida que envolve a cena da entrega do
escapulário é formada por mísulas que sustentam um entablamento
sobre o qual se erguem colunas que sustentam outro entablamento,
mais robusto. Em cada lado da pintura, há um balcão onde estão duplas
de carmelitas. No balcão do lado do evangelho, lemos MONSTRA
[TE] ESSE MATREM (Mostra que és Mãe). No balcão do lado da
epístola, as palavras latinas são SUMAT PER TE PR[ECES] (Receba
por ti as preces). Ladeando cada um dos dois balcões, um pouco abaixo,
identificamos representações das virtudes personificadas por figuras
femininas. No lado da epístola, estão as virtudes teologais: a Esperança,

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 69


com uma cornucópia de onde saem flores e frutos; a Fé, segurando
uma cruz; a Caridade, com uma criança; e, novamente, a Esperança,
cujo atributo é uma âncora. Em frente, no lado do evangelho, estão as
virtudes cardeais: a Prudência, cujo atributo é de difícil identificação
na pintura, mas parece ser uma serpente; a Temperança, que aponta
para uma trombeta; a Fortaleza, que aponta para uma coluna com a
mão esquerda e a toca com a direita; e a Justiça, que segura algo que se
assemelha a uma espada. As virtudes, segundo a Igreja, devem conduzir
moralmente as ações dos homens.

Nave

Na nave, podemos observar o arco cruzeiro coroado pelo


brasão da Ordem Carmelita em estuque e duas capelas laterais. No
lado do evangelho, está a capela antigamente dedicada a Santa Teresa
D’Ávila. Seu forro não é original e foi pintado no século XX, conforme
assinatura e data nele evidentes: J. Pedro Borges, 1935. Na parte central,
está a Virgem Maria com o Menino Jesus no colo e, acima deles, uma
custódia (peça usada para expor solenemente o Santíssimo Sacramento
= a hóstia consagrada) envolta em nuvens. Nas extremidades do forro há
anjos. Em uma das laterais, está o cálice eucarístico ladeado por cacho
de uvas (alusão ao vinho = o sangue de Cristo) e trigo (alusão ao pão =
o corpo de Cristo). Sobre o cálice, há uma hóstia com a representação
do Sagrado Coração de Jesus. Na outra lateral do forro, está o Cordeiro
(personificação de Cristo, pois ele é “o Cordeiro de Deus, aquele que
tira o pecado do mundo”, Jo 1:29).
No lado da epístola, está a capela originalmente dedicada ao
Santíssimo Sacramento. A pintura do seu forro está bastante deteriorada
e apresenta arquitetura fingida e alguns ornamentos. Nas ilhargas dessa
capela constam dois painéis de azulejos em estilo Rococó com cenas
figuradas em tons de azul. Cada um dos painéis mede, aproximadamente,
3,80 m de altura. Nas palavras do especialista João Miguel dos Santos
Simões: “o  desenho é correto, acusando todas as características da
fabricação lisboeta”, sendo os azulejos datados, provavelmente, de 1760-

70 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
1770.23 As cenas representadas são: o transporte da Arca da Aliança
(tema inspirado no Antigo Testamento e que expressa a presença de
Deus no meio do seu povo) e o milagre da multiplicação de pães (tema
inspirado no Novo Testamento: narrativas sobre a primeira e a segunda
multiplicação de pães e peixes registradas, respectivamente, em Mt
14:13-21; Mc 6:31-44; Lc 9:10-17; Jo 6:1-13; Mt 15:32-39; Mc 8:1-10).

Figura 18 – Painel de azulejos. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 71


O primeiro painel citado tem, na parte superior, uma tarja
com um molho de trigo e, na parte inferior, outra que exibe o pelicano
alimentando três filhotes (símbolo do sacrifício de Cristo). O segundo
painel tem, na parte superior, uma tarja com um cacho de uvas e, na parte
inferior, outra com a fênix (ave mítica que morre e renasce das cinzas
e que na tradição cristã simboliza a ressurreição de Cristo). Conforme
nos explicou o teólogo Francisco Taborda, SJ, os dois painéis de azulejos
se complementam e destacam a eucaristia enquanto ação litúrgica (o
milagre da multiplicação de pães; episódio que antecede e se relaciona
simbolicamente com o momento em que Cristo, na última ceia, pegou
o pão, pronunciou a bênção, partiu e deu aos seus discípulos dizendo:
“isto é o meu corpo”) e enquanto presença permanente (Deus no meio
do seu povo: a Arca da Aliança; o Santíssimo Sacramento).24
Nas ilhargas da nave há quatro retábulos de alvenaria com
revestimento em escaiola. Cada um deles apresenta mesa retangular,
duas colunas, camarim em arco pleno e ornamentos em alto-relevo:
cabeças de anjos, rosas e, no arremate, um vaso de flores ladeado por
duas folhas de acanto em volutas e dois pináculos.
A pintura do forro da nave também apresenta, como a do
forro da capela-mor, pintura de perspectiva, na qual se destacam as
arcadas ornamentadas com festões. A simplificação da arquitetura
fingida, as cores claras e as flores levaram Valentim Calderón a estimar
que essa obra teria sido realizada por volta de 1780. 25 O estado de
conservação desse forro e possíveis repinturas realizadas entre 1928
e 1930 dificultam uma precisa identificação iconográfica (fig. 19). A
cena central divide-se em três segmentos. A parte mais próxima do arco
cruzeiro é a mais deteriorada. Percebe-se um emaranhado de corpos
humanos contorcidos em diversas posições. Nos pulsos de algumas
figuras é possível identificar correntes. No plano intermediário, vemos
um grupo de santos e santas carmelitas. Acima, na cena principal,
assistida por anjos, está Nossa Senhora do Carmo carregando o
Menino Jesus e entregando um pergaminho para um santo carmelita
que toca o coração com a mão direita e segura uma flâmula (símbolo
da vitória) com a esquerda.

72 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Figura 19 - Forro da nave. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 73


Apesar da dificuldade, podemos ler no pergaminho o seguin-
te: RELIGIO [...] CARMELITA[...] IN FINEM USQUE SAECULI
EST PERSEVERATUR[...]. Essas palavras são pistas de que o san-
to que está com a Virgem pode ser Pedro Thomaz (nascido na vila
francesa de Salimanso por volta de 1305). Desde cedo, ele demostrava
gosto pelos estudos e tinha grande talento intelectual. Ingressou no
convento carmelita de Condom, desempenhou várias missões diplo-
máticas da Igreja e foi elevado à patriarca de Constantinopla.26 Em
1351, o frei Pedro Thomaz estava aflito com os destinos da Ordem
Carmelita, pois muitos frades tinham sucumbido com uma peste. Na
noite do Espírito Santo, ele suplicou o auxílio da Virgem Maria. Ela
apareceu para ele e revelou a promessa que Cristo teria feito ao Profe-
ta Elias de que a Ordem Carmelita continuaria a existir até o final dos
tempos. Foram estas as palavras da Mãe de Jesus: CONFIDITO PE-
TRE, RELIGIO ENIM CARMELITARUM IN FINEM USQUE
SAECULI, EST PERSEVERATURA: ELIAS NAMQUE EJUS IS-
TITUTOR JAM OLIM À FILIO MEO ID IMPETRAVIT.27 A par-
te por nós grifada corresponde ao trecho registrado no forro da nave.
O significado de todo o pronunciamento da Mãe de Jesus, inclusive
da parte evidente na pintura em análise, também grifada na tradução
adiante, é: “Confia, Pedro, pois a Ordem Religiosa dos Carmelitas há
de perseverar até o fim do[s] tempo[s]. Efetivamente Elias, seu funda-
dor, já o obteve outrora de meu filho”.

Sacristia

Na sacristia, há um lavabo de pedra de lioz da segunda


metade do século XVIII, ornamentado com conchas, flores e pal-
mas.28 Sua torneira encaixa-se na boca de uma carranca de orelhas
pontiagudas. O forro tem uma pintura de perspectiva, em cujo me-
dalhão central está representado o mesmo tema retratado no forro da
capela-mor: a entrega do escapulário pela Virgem Maria a São Simão
Stock. Sobre a pintura do forro da sacristia, Valentim Calderón, em

74 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
sua obra O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, pu-
blicada em 1976, destacou os “elementos de gosto rococó” e o “colori-
do suave e harmonioso” da cena central.29

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 75


Notas
1 Consulte o verbete CRUZADAS em AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral;
LACERDA, Rodrigo. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos. 2. ed. rev. e
ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
2 REZENDE, Leandro Gonçalves de. O Monte Carmelo nas montanhas de Minas:
arte, iconografia e devoção nas Ordens Terceiras do Carmo de Minas Gerais (séculos
XVIII e XIX). 2016. f. 13-14, 85-87. Dissertação - Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016. CAMPOS,
Adalgisa Arantes. Arte Sacra no Brasil Colonial. Belo Horizonte: C/Arte, 2011.
3 CALDERÓN, Valentim. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira.
Salvador: UFBA, 1976. p. 11-12.
4 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do
Acervo Cultural da Bahia. Salvador: Secretaria da Indústria e Comércio, 1982. vol.
III Monumentos e Sítios do Recôncavo, II parte. p. 40.
5 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 45. A mencionada sepultura com a data de 1734
provavelmente foi coberta pelo piso cerâmico assentado no templo entre os anos 1928
e 1931. O Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário que conseguimos
localizar tem registros do período 1740-1749. Nessa fonte, há informações sobre a
ocorrência de sepultamentos no interior da Capela da Ordem Primeira do Carmo.
Consulte: Universidade Católica do Salvador. Laboratório Reitor Eugênio Veiga.
Livro de Óbitos da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário, Cachoeira, 1740-1749.
Como exemplo, citamos o registro de óbito de Antônio Mendes, datado de 1741. fl. 8v.
6 FLEXOR, Maria Helena Ochi (Org.); LACERDA, Ana Maria; SILVA, Maria
Conceição da Costa e; CAMARGO, Maria Vidal de Negreiros. O Conjunto do Carmo
de Cachoeira. Brasília, DF: IPHAN/Programa Monumenta, 2007. p. 95.
7 FLEXOR, Maria Helena Ochi (Org.); LACERDA, Ana Maria; SILVA, Maria
Conceição da Costa e; CAMARGO, Maria Vidal de Negreiros. O Conjunto do Carmo
de Cachoeira... op. cit., p. 87-88 e 95-96.
8 COSTA, F.A. Pereira da. A Ordem Carmelitana em Pernambuco. Pernambuco:
Arquivo Público Estadual, 1976. p. 34. HONOR, André Cabral. O Verbo mais que
perfeito: uma análise alegórica da Cultura Histórica Carmelita na América Portuguesa.
Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p. 133.
9 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 44. A grafia foi
atualizada na transcrição.
10 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 45. A grafia foi
atualizada na transcrição.

76 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
11 Desenho baseado na planta baixa publicada em: BAHIA. Secretaria da Indústria
e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia... op.
cit., p. 39.
12 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 44 e 45. A grafia
foi atualizada na transcrição.
13 O livro de compromisso da Irmandade do Nosso Senhor Bom Jesus dos Martírios
dos Homens Pretos Nação Jeje é de 1765. A Irmandade de Nosso Senhor Bom Jesus
da Paciência dos Crioulos aprovou seu compromisso em 1853, mas há indícios de
que tenha existido desde o início do século XIX. A Irmandade de Nossa Senhora da
Boa Morte não se regia por um livro de compromisso aprovado pelas autoridades
competentes, sendo classificada, portanto, como irmandade de devoção. Teve início
no século XIX, em data desconhecida. Em 1866, o texto publicado por Alexandre
José e Mello Moraes assim tratou da festividade da Boa Morte, sempre realizada no
mês de agosto: “Esta devoção pertence às crioulas, que, vestidas no clássico gosto de
cores garridas, acompanham o palio, misturando-se com padres e freiras!!” MORAES,
Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 44 e 45. A grafia foi atualizada
na transcrição.
14 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção
do Acervo Cultural da Bahia... op. cit., p. 40. FLEXOR, Maria Helena Ochi (Org.);
LACERDA, Ana Maria; SILVA, Maria Conceição da Costa e; CAMARGO, Maria
Vidal de Negreiros. O Conjunto do Carmo de Cachoeira... op. cit., p. 51-52, 55, 57 e
87-97.
15 FLEXOR, Maria Helena Ochi. (Org.); LACERDA, Ana Maria; SILVA, Maria
Conceição da Costa e; CAMARGO, Maria Vidal de Negreiros. O Conjunto do Carmo
de Cachoeira... op. cit., p. 157-161. Agradecemos a Jomar Lima pelas informações
prestadas sobre esse assunto.
16 Sobre esta urna eucarística, consulte: Inventário Nacional de Bens Móveis e
Integrados. Bahia. Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, Cachoeira, v. 1, módulo
I, Recôncavo. Salvador: MinC/Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, 1994.
Ficha Ba/94-0001.0077.
17 CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque. As pinturas dos tectos da Igreja do Convento
e Ordem Terceira do Carmo e da Igreja de Nossa Senhora da Purificação no Recôncavo
Baiano. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DO BARROCO, 2., 2001, Porto.
Actas. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2001. p. 504.
18 CALDERÓN, Valentim. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira...
op. cit., p. 19.
19 Consulte o verbete LÍRIO. HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos:
imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p. 222-223.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 77


20 JANSEN, Frei Thomaz. (comp.). Vida dos Santos da Ordem Carmelitana.
Renânia: Typographia de Butzon & Bercker Kevelaer, 1930. p. 142.
21 HONOR, André Cabral. O Verbo mais que perfeito... op. cit., p. 101.
22 MARIA, Frei José de Jesus. Thesouro Carmelitano. Lisboa: na Officina de Miguel
Menescal da Costa, 1750. p. 37.
23 SIMÕES, João Miguel dos Santos. Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822).
Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1965. p. 56-57.
24 Agradecemos o teólogo Francisco Taborda, SJ, pela gentil colaboração. As
informações e traduções latim-português foram enviadas por e-mail no dia 19 de
fevereiro de 2020.
25 CALDERÓN, Valentim. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira
... op. cit., p. 20.
26 JANSEN, Frei Thomaz. (comp.). Vida dos Santos da Ordem Carmelitana... op.
cit., p. 56-61.
27 ENCARNAÇÃO, Frei Manoel. Compêndio da Regra dos irmãos da venerável
ordem terceira de Nossa Senhora do Carmo. Lisboa: Officina de Miguel Menescal da
Costa, 1750. p. 33-34.
28 CALDERÓN, Valentim. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira...
op. cit., p. 21.
29 CALDERÓN, Valentim. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de
Cachoeira ... op cit., p. 21.

78 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
CAPÍTULO 5
A CAPELA DA VENERÁVEL ORDEM TERCEIRA
DE NOSSA SENHORA DO MONTE DO CARMO

A criação das ordens terceiras do Carmo, compostas por


leigos devotos, foi reconhecida e autorizada pelo papa Sixto IV em
1476.1 Em Lisboa, Portugal, a Ordem Terceira do Carmo foi oficia-
lizada em 1630. Seis anos depois, em 1636, foi fundada a da Cidade
do Salvador, na Bahia.2 No final do século XVII, após a instalação dos
frades carmelitas em Cachoeira, fundou-se a Venerável Ordem Tercei-
ra de Nossa Senhora do Monte do Carmo. Essa associação religiosa,
criada em 1691, reunia-se no templo primitivo edificado pela Ordem
Primeira. Depois, quando os frades construíram o novo templo, as-
sunto que tratamos no capítulo anterior, os terceiros passaram a usar
a capela de Santa Teresa D’Ávila localizada no lado do evangelho, em
frente àquela dedicada ao Santíssimo Sacramento.
Em 1696, frei Manuel Ferreira da Natividade, padre comis-
sário, reformador e visitador geral da Ordem do Carmo, promulgou
estatuto para reger as Ordens Terceiras carmelitas fundadas na Amé-
rica Portuguesa.3 Os terceiros de Cachoeira, ao que parece, seguiram
esse documento até 1915. Neste ano, no dia 10 de maio, frei Manoel
Baranera Serra, superior provincial da Ordem Carmelita nos estados
da Bahia, Sergipe e Alagoas, aprovou o estatuto da Venerável Ordem
Terceira do Carmo de Cachoeira.4 Esse documento foi reformado no
final do século XX, tendo sido aprovado no dia 9 de março de 1999
pelo delegado provincial frei Nuno Alves Corrêa.5 Em outubro de
2018, pequenas alterações foram feitas no estatuto.6

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 79


O terreno onde se construiu o edifício da Venerável Ordem
Terceira do Carmo foi doado, conforme consta na escritura pública
datada de 30 de novembro de 1702, pelo frei Antônio de Santa
Rosa (vigário geral do convento de Cachoeira).7 Lamentavelmente,
não podemos contar a história da construção e da ornamentação
do templo em detalhes e nem os nomes dos arquitetos e artistas que
nele trabalharam, pois a documentação do século XVIII que nos
permitiria tal intento não chegou aos nossos dias.

Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 20 – Frontispício do edifício da Venerável Ordem Terceira do Carmo,


Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

O frontispício do edifício da Venerável Ordem Terceira do


Carmo é composto por três partes bem distintas correspondentes
a recintos internos diferentes. Na parte principal, delimitada por
pilastras, está o portal da capela: um arco pleno, fechado por
porta de madeira, emoldurado por pilastras e frontão rompido em
volutas com dois pináculos nas extremidades. Nesse frontão há uma

80 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
inscrição numérica que alguns estudiosos interpretam como 1724 e
outros como 1742, sendo a dúvida suscitada pela disposição dos
algarismos.8 Em todo caso, é provável que a data registrada indique
o ano de conclusão das obras na fachada principal da capela. Logo
acima, está o brasão da Ordem Carmelita, no qual se destacam, além
da representação do Monte Carmelo, das três estrelas e da coroa, dois
braços humanos: o do Profeta Elias, do lado esquerdo, segurando uma
espada, e o de Santa Teresa D´Ávila, do lado direito, segurando uma
pena. A espada refere-se à passagem do Antigo Testamento em que
Elias degolou os profetas de Baal (deus pagão) no Monte Carmelo
(1 Rs 18:40). A pena simboliza a atividade de Santa Teresa D’Ávila
como escritora, pois, como veremos adiante, ela escreveu vários
livros religiosos. Ladeando o brasão, há duas janelas de guilhotina
com cimalhas de sobreverga. No alto, arrematando essa parte do
edifício, está o frontão triangular com óculo circular ao centro; nas
extremidades, sobre o telhado, há dois pináculos.
Na parte esquerda da fachada, delimitada por cunhal e
pilastra, há um arco pleno vedado por alvenaria e ladeado por dois
óculos ovalares. Acima desses elementos, há uma cimalha com
terminações em volutas e uma janela de guilhotina.
Voltando o nosso olhar para a parte direita da fachada,
observamos duas fileiras de arcos, uma sobre a outra, separadas por
cimalha com terminação em voluta (correspondente e alinhada com
aquela que ornamenta a parte esquerda do edifício). A lógia inferior
é formada por cinco arcos plenos e a lógia superior por cinco arcos
rebaixados com balaustrada de madeira.
À frente do edifício da Venerável Ordem Terceira do Carmo
há um muro com grades de ferro e dois portões. Sobre o portão da
direita, consta o número 1810; registro que, provavelmente, marca
o ano de sua construção. Em 1866, tendo como fonte a gravura que
acompanha a descrição publicada no livro de Alexandre José de Mello
Moraes, o muro não tinha as grades que apresenta hoje e o outro
portão, localizado na frente da entrada principal da capela, não existia
(fig. 14, no capítulo anterior).9

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 81


A planta baixa

5
2

3 1 4

Térreo
0 5 10 20

7 8
9
6
Primeiro Pavimento
0 5 10 20

Figura 21 – Planta baixa da Capela da Venerável Ordem Terceira do Carmo,


Cachoeira. Desenho de Samantha Úrsula Sant’Anna, 2020.

O edifício construído pela Venerável Ordem Terceira integra


o conjunto arquitetônico do Carmo de Cachoeira e tem acessos para
o templo da Ordem Primeira, situado à direita. A planta baixa em
destaque na figura 21 nos apresenta o térreo e o primeiro pavimento
da capela dos terceiros e dos anexos que lhe servem. No térreo, estão a
nave única (1), a capela-mor estreita e profunda (2), o cemitério (3)
e a sacristia (4), que é acessada pelo pátio interno (5). No primeiro
pavimento estão o coro (6), a galeria de tribunas do lado do evangelho
(7), o consistório (8) com acesso para as tribunas do lado da epístola
e a sala de milagres (9).10

82 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
A ornamentação interna

O interior da Capela da Venerável Ordem Terceira do


Carmo conservou a ornamentação original. Na atualidade, este é o
único templo edificado em Cachoeira que nos permite contemplar e
compreender a concepção decorativa do Barroco, que expressa a ideia
do “horror ao vazio”. Por esta razão, há obras de talha dourada, ou
policromada, painéis de azulejos e pinturas por toda parte.

Figura 22 - Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

Capela-mor

Na capela-mor podemos admirar a talha que ornamenta o


forro, as ilhargas e, claro, a obra mais importante: o retábulo principal
do templo. Este retábulo é Barroco e apresenta características do tipo
joanino.11 Logo acima da mesa do altar, em cuja parte frontal está
pintado o brasão da Ordem Carmelita, podemos observar o sacrário

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 83


eucarístico. Sua portinhola em arco pleno foi decorada com uma cena
celestial: Deus, representado pelo triângulo que irradia luz, está rodeado
por cabeças de anjos adoradores e, mais abaixo, um anjo ajoelhado em
nuvem segura um cacho de uvas (alusão ao sangue de Cristo) sobre um
cálice. Ladeando o sacrário, há quatro atlantes que simulam sustentar
as colunas helicoidais com ornamentação fitomorfa (folhas e flores)
e zoomorfa (pássaros). Entre essas colunas, há pilastras decoradas com
acantos em volutas e suportes para imagens de santos. No arremate do
retábulo, sentadas sobre quartelas, duas figuras antropomorfas (que
apresentam forma humana) ladeiam o dossel. Na parte interna desse
elemento, há uma pomba (símbolo do Espírito Santo) representada
em alto-relevo. Na base do camarim, à frente do trono em degraus,
foi encaixado um nicho em estilo Rococó para abrigar a imagem da
padroeira.
Nas ilhargas da capela-mor, há quatro painéis de azulejos
com cenas figuradas em tons de azul margeadas por rocalhas. O
especialista João Miguel dos Santos Simões, “a julgar pelo estilo dos
enquadramentos”, considera que esses painéis – e também os que se
localizam na nave do templo – “são de uma mesma época e oficina”.
Eles teriam sido produzidos em Lisboa, Portugal, entre 1745 e 1750.12
Lamentavelmente, os dois painéis mais próximos do retábulo-mor
sofreram mutilações e apresentam peças desconexas que prejudicam
a visualização das cenas. No entanto, as inscrições contidas neles
e a observação atenta dos azulejos nos permitiram compreender o
seguinte: os quatro painéis se complementam e devem ser vistos num
movimento que começa por aquele que está mais afastado do retábulo-
mor, no lado da epístola, e termina naquele que está à sua frente, no lado
do evangelho. Seguindo essa sequência temos a seguinte interpretação:
- O primeiro painel nos apresenta o arrebatamento do Profeta Elias,
personagem do Antigo Testamento que a tradição carmelitana considera
como o fundador de sua Ordem. Ele foi levado ao céu numa carruagem
de fogo e deixou cair seu manto para Eliseu, o seu sucessor. Na Bíblia
usada nos dias atuais, esse episódio é narrado no Segundo Livro dos Reis,
capítulo 2, mas conforme nos explicou o teólogo Francisco Taborda,
SJ, na Vulgata (versão latina da Bíblia autorizada pela Igreja Católica

84 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
e usada no século XVIII), esse livro é denominado Quarto Livro dos
Reis. Por esta razão, consta no painel o registro “Lib 4° Reg Cap. 2º nº
11” e a inscrição em latim correspondente Ecce currus igneus et equi
ignei diviserunt utrumque, et accendit Elias per turbinem in caelum,
cuja tradução para o português é “Eis que ambos avistaram um carro
de fogo e cavalos de fogo e Elias subiu ao céu num torvelinho”.13
 - O segundo painel é o mais deformado do conjunto, mas a inscrição
em latim e sua respectiva referência bíblica estão legíveis. A inscrição
foi tomada da Vulgata e, conforme nos esclareceu o teólogo Francisco
Taborda, SJ, nesta antiga versão da Bíblia a passagem encontra-se
registrada no Livro do Eclesiástico (não confundir com Eclesiastes),
capítulo 24, versículo 22, onde se lê: Ego quase terebinthum extendi
ramos meos (“Como um terebinto estendi meus ramos”). O terebinto,
citado várias vezes no Antigo Testamento, é uma árvore frondosa de
porte médio, típica da Bacia Mediterrânea, que dá flores de cor púrpura
avermelhada. A desconexão dos azulejos não nos permite identificar
a cena representada. Em todo caso, a inscrição menciona o terebinto.
- No terceiro painel, menos danificado que o anterior, é possível
ver claramente a Virgem Maria sentada e suas mãos segurando as
extremidades de um tecido. À sua frente está um homem vestido com
o hábito carmelita e com as mãos cruzadas sobre o peito. A cabeça e os
ombros dele estão sob um pano. É provável que, na montagem original
dos azulejos, o homem estivesse um pouco abaixo da Virgem e o tecido
que ela segura se estendesse sobre ele. Considerando essa possibilidade
e a referência bíblica registrada no painel – “Prov. Cap. 31 nº 21” – é
plausível pensar que a cena apresentava a mãe de Jesus cobrindo o frei
Simão Stock com um manto, simbolizando, portanto, a sua benção e
proteção. Além disso, o manto sinaliza que Simão Stock recebeu sobre
si o legado de Elias e Eliseu, tendo ele a missão de zelar pela perpetuação
e expansão da Ordem do Carmo.14 A história de São Simão Stock e sua
importância na tradição carmelita foram tratadas no capítulo anterior.
- O quarto painel nos apresenta Nossa Senhora do Carmo (o brasão da
Ordem está nas suas vestes) cobrindo frades e freiras carmelitas com seu
manto (fig. 23). A referência bíblica registrada nesse painel é a mesma
que consta no anterior: “Prov. Cap. 31 nº 21”. O trecho do versículo

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 85


inscrito nos azulejos foi tomado da Vulgata e segue aqui sublinhado:
Non timebit domui suae a frigoribus nivis; omnes enim domestici ejus
vestiti sunt duplicibus (“Sua casa não temerá os frios da neve, pois todos
os seus empregados [literalmente: os de sua casa] estão vestidos com
[vestes] duplas”).
Os quatro painéis de azulejos contam, portanto, a seguinte
história: o Profeta Elias, considerado o fundador da Ordem Carmelita,
foi arrebatado numa carruagem de fogo e, ao deixar cair seu manto,
instituiu Eliseu como seu sucessor; a Ordem Carmelita expandiu-se
como os ramos do terebinto; a Virgem Maria abençoou e protegeu o
frei Simão Stock, herdeiro do legado de Elias e Eliseu; como padroeira
da Ordem, sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo, a mãe de Jesus
acolhe e protege todos os carmelitas.

Fig. 23 – Painel de azulejos da capela-mor. Foto: Chico Brito, 2020.

Logo acima dos painéis de azulejos da capela-mor, intercalando-


se com as janelas que imitam tribunas, há seis pinturas a óleo sobre

86 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
madeira realizadas no século XVIII. Elas medem 110 cm de altura e 78
cm de largura e possuem belas molduras douradas e ornamentadas.15 Os
nomes de cada um dos personagens representados estão inscritos nas
pinturas. No lado do evangelho, lemos: “S. Zacarias p.” (São Zacarias
profeta), “S. Proto” (São Proto) e “S. Pelagia” (Santa Pelágia). No lado
da epístola, os nomes são: “S. Ozias. p.” (Santo Oséias profeta), “S.
Jacinto” (São Jacinto) e “S. M.a Egipçiaca” (Santa Maria Egipcíaca).
Apenas as Santas Pelágia e Maria Egipcíaca não estão vestidas com o
hábito carmelitano.
- Santo Oséias, um dos profetas do Antigo Testamento, viveu no século
VIII a.C e, por exigência divina, casou-se com a prostituta Gomer (Os
1:2-3). Na pintura, destacamos um ferro, ou flecha, que lhe transpassa
a fronte. A cena não condiz com a história do Profeta Oséias narrada
nos textos bíblicos. Entretanto, representa bem o Profeta Amós, que
foi martirizado por outro Oséias com uma flecha na cabeça.16
- O quadro de São Zacarias, profeta que viveu no século VI a.C,
apresenta-o dormindo, maneira como teve as visões que estão descritas
na primeira parte do seu livro (Zc 1:7-17).
- São Proto e São Jacinto estão representados lendo livros. Eles viveram
no século III d.C e foram servos de Eugênia, filha do governador
de Alexandria. Eugênia, Proto e Jacinto dedicavam-se aos estudos,
converteram-se ao cristianismo e entraram para um convento. Proto
e Jacinto foram presos e, como se recusaram a realizar sacrifícios para
deuses pagãos, foram martirizados: suas cabeças foram cortadas.17
- Santa Maria Egipcíaca e Santa Pelágia viveram no século III d.C.
Foram pecadoras, entregues à luxúria e à vaidade até o momento de
suas conversões ao cristianismo, quando se arrependeram e passaram
a seguir a vida em penitência e isolamento.18
Embora todos os personagens retratados nas pinturas tenham
vivido bem antes da criação da Ordem Terceira do Carmo (1476),
eles foram considerados exemplos de terceiros carmelitas, pois,
tradicionalmente, como já informamos, os carmelitas remetem a
fundação de sua Ordem – tanto o ramo primeiro, quanto o terceiro –
aos tempos do Profeta Elias.19

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 87


Nave

Na nave podemos observar seis retábulos. Os dois que ladeiam


o arco cruzeiro são os mais antigos do templo. Eles são barrocos como
o da capela-mor, mas apresentam características do tipo nacional
português (anterior ao joanino).20 Na estrutura deles, destacamos os
arcos concêntricos sobre o camarim, em especial o arco ressaltado que
repete a forma helicoidal e a ornamentação fitomorfa das colunas.

Figura 24 – Retábulo e detalhe da talha que recobre a ilharga, lado da epístola, do


arco cruzeiro. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

88 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
A talha que recobre as ilhargas do arco cruzeiro se funde com
a dos retábulos, criando uma harmoniosa junção entre o nacional
português e o joanino. Nos nichos simulados no lado da epístola e no
lado do evangelho, estão representados, respectivamente, o pelicano
alimentando três filhotes (símbolo do sacrifício de Cristo) e a fênix
(símbolo da ressurreição de Cristo). Acima desses pássaros há dosséis
representados em alto-relevo. Os nichos simulados são ladeados por
figuras antropomorfas que fingem sustentar os guarda-pós que pendem
das paredes.
Os outros quatro retábulos localizados na nave são da segunda
metade do século XVIII. Eles são do tipo joanino com dossel bulboso.
Apresentam figuras antropomorfas – anjos trombeteiros e atlantes
com corpos terminados em volutas – e estrutura ornamentada com
folhas de acanto, flores, volutas, feixe de plumas e conchas. Os frontões
de cartela que coroam esses retábulos e a decoração na parte frontal
de suas mesas de altar são introduções do Rococó.21 Também o coro,
localizado acima da entrada principal do templo, tem balaústres e
elegante movimento sinuoso típicos do estilo Rococó. A grade de
madeira que separa os retábulos da parte central da nave e que sustenta
seis confessionários – treliças contornadas por madeira recortada em
curvas e contracurvas decorada com volutas – é da segunda metade
do século XVIII.22 Os dois púlpitos, localizados no lado da epístola
e no lado do evangelho, respectivamente, são Neoclássicos e datam,
portanto, do século XIX; ambos são decorativos, pois não existe
acesso para os seus balcões (as portas são falsas).23
Atualmente constam na nave oito painéis de azulejos com
cercadura em estilo Rococó e cenas representadas em tons de azul. Ao
que tudo indica, no século XVIII havia dez, mas dois painéis foram
mutilados e sobraram apenas suas respectivas tarjas com inscrições.
As cenas são inspiradas em passagens do Antigo Testamento e, assim
como na capela-mor, as referências bíblicas estão registradas conforme
a Vulgata. Seguindo a ordem da disposição dos painéis no templo,
elaboramos uma lista dos temas representados; transcrevemos todas as
inscrições contidas nas tarjas e, para facilitar a compreensão, oferecemos

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 89


ao leitor a atualização da grafia e a correspondência das referências
registradas na Vulgata e na Bíblia moderna.
No lado do evangelho, começando pela entrada principal do
templo e seguindo até o arco cruzeiro, os temas são os seguintes:
- “Sacrifício de Abraham. Genes 22” (Sacrifício de Abraão. Gn 22).
- “Escada de Jacob. Genes. 28” (Escada de Jacó. Gn 28).
- “Juízo de Salomão. 3 Reys 3” (Juízo de Salomão. Na Bíblia atual 1
Rs 3). A cena que compunha o painel foi eliminada, provavelmente
para a colocação do púlpito, ficando apenas a tarja com a inscrição
que transcrevemos.
- “Volta de Jacob. Genes 31” (Volta de Jacó. Gn 31).
- O tema representado é a construção do templo por Salomão. A tarja
com a inscrição e a referência bíblica foi suprimida deste painel. Na
Bíblia atual, a narrativa que se relaciona com o tema identificado está
registrada em 1 Rs 6.
No lado da epístola, começando pelo arco cruzeiro e seguindo
até a entrada principal do templo, os temas são os seguintes:
- A reconciliação de Labão e Jacó. A tarja com a inscrição e a referência
bíblica foi suprimida deste painel. Na Bíblia atual, a narrativa que se
relaciona com o tema identificado está registrada em Gn 31.
- “Apareçeo Deos a Salomão em sonhos, e lhe mostrou que o amava
em contemplacaõ de seu pay David. Reys” (Apareceu Deus a Salomão
em sonhos, e lhe mostrou que o amava em contemplação de seu
pai Davi. Reis). A referência bíblica não foi registrada de maneira
completa neste painel, mas é provável que a cena tenha sido inspirada
em 3 Reys 3 (Na Bíblia atual: 1 Rs 3).
- “Jacob na prezensa de Laban, Rachel e Lia. Genes. 29” (Jacó na
presença de Labão, Raquel e Lia. Gn 29). A cena que compunha
o painel foi eliminada, provavelmente para a colocação do púlpito,
ficando apenas a tarja com a inscrição que transcrevemos.
- “Rainha de Sabá. 3 Reys 10” (na Bíblia atual: 1 Rs 10).

90 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
- “Sol parado. Josue 10” (Js 10).
Acima dos altares laterais, alternando-se com as tribunas da
nave, há seis pinturas a óleo sobre madeira com molduras douradas
e ornamentadas. Cada quadro mede 134 cm de altura e 90 cm de
largura e apresenta um único personagem identificado por seus
respectivos atributos e nome inscrito. São obras do século XVIII,
muito parecidas com os quadros localizados entre as falsas tribunas
da capela-mor, diferenciando-se deles pelas dimensões maiores e pela
ornamentação de suas molduras.24
No lado da epístola, partindo do arco cruzeiro, podemos
ler os seguintes nomes: “S. Franco” (São Franco), “Santa Izabel R.”
(Santa Izabel Rainha), “S. Espiridão. B.” (Santo Esperidião Bispo).
No lado do evangelho, no mesmo sentido, lemos: “S. Eduardo R.
de ingltr.a” (São Eduardo Rei de Inglaterra), “S. Joanna” (Santa
Joana) e “S. Luis R. de frança” (São Luís Rei de França). Os quadros
de Santo Esperidião, Santa Izabel, São Luís Rei de França e Santa
Joana encimam os altares laterais da nave em que estão entronizadas
as imagens desses mesmos santos. Todos os personagens retratados
vestem o hábito carmelita.
No século XVIII, publicaram-se várias edições de um livro
sobre a Ordem Terceira do Carmo no mundo português, intitulado
Thesouro Carmelitano.25 Esse livro considerava que os seguintes
santos, dentre outros, pertenceram à Ordem Terceira:
- Santo Esperidião: bispo, nascido em Chipre, viveu entre 270 d.C e
350 d.C.26
- Santa Izabel Rainha da Bohemia: trata-se, provavelmente, de Santa
Izabel Rainha da Hungria, uma vez que, em alguns períodos, Hun-
gria e Boêmia estavam unidas sob o domínio de uma mesma dinastia.
27
Viveu entre 1207 e 1231.
- São Luís Rei de França: viveu entre 1215 e 1270.
- Santa Joana de Régio: seria a Beata Joanna Scopelli, nascida em Ré-
gio, ducado de Mântua. Viveu entre 1428 e 1491.28
- Eduardo Mártir, Rei de Inglaterra: viveu no século X.29

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 91


Dos personagens representados nos quadros da nave, só São
Franco não teria sido irmão terceiro. Trata-se do Beato Franco, religioso
carmelita que viveu entre 1211 e 1291.30 Certamente, o objetivo dessas
pinturas era apresentar para os membros da Venerável Ordem Terceira
do Carmo de Cachoeira seus honrados irmãos que viveram conforme
os ideais carmelitas. Assim, os terceiros de Cachoeira teriam, diante
de seus olhos, representados nos quadros da capela-mor e da nave, um
passado para se orgulhar e exemplos para seguir.
Na nave, também podemos admirar três medalhões pintados
sob o coro e um conjunto de onze pinturas nos caixotões do forro. Elas
foram realizadas no final do século XVIII ou início do XIX e apresen-
tam características como fundos claros e comedida representação de
movimentos. A principal temática retratada refere-se às vidas dos san-
tos reformadores da Ordem Carmelita: Santa Teresa D’ Ávila, também
conhecida como Santa Teresa de Jesus, e São João da Cruz.
Santa Teresa pertenceu a uma família de cristãos novos (judeus
convertidos ao cristianismo) de Toledo. Nasceu em Ávila em 28 de março
de 1515. Em 1535, entrou para o Convento Carmelita da Encarnação.
Algumas leituras levaram Teresa à prática da oração mental, através da
qual entrava em contato íntimo com Deus e sentia intensamente seu
amor. Foi considerada mística e teve muitas visões de santos, de Cristo,
de Deus Pai e da Virgem Maria. Com o objetivo de viver plenamente
essa espiritualidade, passou a defender regras mais rígidas para as car-
melitas, o que a motivou a empreender a reforma da Ordem, criando
os Carmelitas Descalços. Fundou o primeiro convento de carmelitas
descalças em 24 de agosto de 1562 e vários outros posteriormente.31 Em
1567, Teresa conheceu o frei João da Cruz, que encabeçou a reforma
da Ordem na vertente masculina.32 Teresa e João da Cruz escreveram
vários livros sobre suas experiências e a vivência do catolicismo.
Sob o coro, conforme mencionamos anteriormente, há três
pinturas com molduras estilizadas sobre um elegante fundo branco
ornamentado com delicadas flores vermelhas e rocalhas em tom cinza
azulado, de gosto Rococó. A que está no centro representa Nossa Se-
nhora do Carmo protegendo os carmelitas com seu manto, cena muito
semelhante à de um dos painéis de azulejos da capela-mor. As pinturas

92 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
laterais representam visões que Santa Teresa D’Ávila e São João da Cruz
tiveram da Virgem do Carmo com o Menino Jesus.33

Figura 25 – Pintura sob o coro. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 93


Seguem breves descrições das onze pinturas que ornamentam
os caixotões do forro da nave (fig. 6, no capítulo 2, e fig. 26).

Figura 26 - Forro da nave. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

94 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
1-Cristo entrega seu coração para Santa Teresa D’Ávila. Cristo está de pé,
sobre uma nuvem, e estende a mão direita com seu coração para Santa
Teresa, que está ajoelhada a sua frente. Na pintura, estão representados
também a Santíssima Trindade (Deus Pai, Cristo e a pomba que sim-
boliza o Espírito Santo); Santa Catarina de Siena (1347-1380) vestida
com o hábito dominicano (túnica branca e manto preto) e usando a
coroa de espinhos sobre a cabeça; o mártir Santo Ângelo Carmelita
(1185-1220) com espada no coração e palma com três coroas.
2-São João da Cruz cura uma monja carmelita. João da Cruz está em pé
abençoando uma carmelita deitada com olhos fechados segurando um
crucifixo e um terço. Na cena, há três outras religiosas e um religioso,
todos com hábito carmelita, duas velas acessas, uma delas sobre a mesa
que também sustenta um crucifixo e um livro, provavelmente a Bíblia.
No chão, está a caldeira de água benta.
3-Virgem do Carmo, Menino Jesus, Profeta Elias e Santa Teresa D’Ávila.
Elias, representado com o hábito carmelita, segura um livro cuja inscrição
ressalta ser ele o fundador da Ordem do Carmo: EGO PLANTAVI (Eu
plantei). Teresa segura uma pena, atributo relacionado ao fato dela ter
escrito vários livros. Abaixo da Virgem do Carmo, estão as habitações
dos primitivos carmelitas no Monte Carmelo, a fonte de Elias e outras
construções que representam os conventos fundados por Teresa.
4-São João da Cruz tem a visão do Cristo da Paixão. João da Cruz está
ajoelhado diante de Jesus que está com a coroa de espinhos e a cruz às
costas. Anjinhos seguram tarjas com os seguintes dizeres: QUID VIS
PRO LABORIBUS [?] (Que queres pelos trabalhos [?]); PATI, ET
CONTE[M]NI PRO TE (Padecer e ser desprezado por ti [por causa,
por amor a ti]).
5-São João da Cruz salvo pela Virgem de um poço. O episódio teria
ocorrido quando João tinha apenas cinco anos.34 Na pintura, à esquerda,
um anjinho segura uma fita com a seguinte frase TRANSIERUNT
AMBO PER SICCUM (Ambos passaram pelo [leito] seco).
6-A entrega do escapulário a São Simão Stock. Simão Stock recebe
das mãos da Virgem do Carmo o escapulário que passaria a compor
o hábito carmelita. O episódio foi detalhadamente apresentado no

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 95


capítulo anterior, pois também está retratado em dois forros pintados
da Capela da Ordem Primeira do Carmo de Cachoeira.
7- Teresa e as carmelitas descalças são guiadas por São José. A cena
refere-se aos percursos da santa na intenção de fundar conventos de
carmelitas descalças.
8-O casamento místico de Santa Teresa com Cristo. Santa Teresa está
ajoelhada e segurando um dos cravos que prenderam Jesus na Cruz.
Nessa cena, o cravo simboliza a união dela com Cristo. Santa Teresa
estende a outra mão para Jesus, que está sentado sobre uma nuvem.35
9-A Virgem do Carmo e o Menino Jesus entregam escapulários para
Santa Teresa e São João da Cruz. Os escapulários aparecem com a forma
de bentinhos. A Virgem entrega um para São João da Cruz e o Menino
Jesus entrega outro para Santa Teresa. Abaixo da nuvem onde está a
Virgem, ruínas fazem referência às primitivas construções carmelitas
no Monte Carmelo.
10-São João da Cruz recebe aspargos de frei Ângelo a caminho de
Úbeda. Episódio do fim da vida do santo, quando, em viagem a Úbeda,
parou para descansar e pediu aspargos para o companheiro de jornada,
frei Ângelo.36
11-Transverberação. Essa palavra vem do latim, transverberare, e significa
atravessar. Santa Teresa entrou em êxtase ao ver e sentir um anjo que
transpassava seu peito com uma flecha de ouro. Na pintura, vemos o
anjo e a santa segurando seu coração. Teresa descreveu o episódio na
sua autobiografia, chamada Livro da Vida.

Nesta visão o Senhor quis que assim o visse: não era


grande, senão pequeno, formosíssimo, o rosto tão
incendiado, que deveria ser dos anjos que servem
muito próximo de Deus, que parecem abrasar-se
todos. Presumo que seja dos chamados querubins,
pois eles não me dizem seus nomes. [...]
Via-lhe nas mãos um comprido dardo de ouro. Na
ponta de ferro julguei haver um pouco de fogo.
Parecia algumas vezes metê-lo pelo meu coração

96 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
adentro, de modo que chegava às entranhas. Ao
tirá-lo tinha eu a impressão de que as levava consigo,
deixando-me toda abrasada em grande amor de
Deus.37

Cemitério

Na nave existem dois acessos para o cemitério anexo, localizado


no lado do evangelho. Este recinto funerário, desativado há muito
tempo, foi ornamentado na segunda metade do século XVIII.38 Nele
há um retábulo em  estuque  com dossel bulboso – imitação dos
retábulos laterais da nave – e três blocos de carneiras (gavetas para o
sepultamento dos irmãos e irmãs da Venerável Ordem Terceira) com
decoração Rococó. As carneiras são fechadas por tampas de madeira
ornamentadas com imagens e inscrições pintadas por um mesmo
artista. Originalmente eram trinta tampas decoradas, mas uma delas
perdeu a policromia por completo.39  Em cada uma podemos ver
duas tarjas sobrepostas: na superior estão as imagens e na inferior as
inscrições em latim acompanhadas de referências bíblicas registradas
conforme a Vulgata.

Figura 27 – Vista do cemitério. Foto: Caroline Moraes, 2017.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 97


O programa visual/textual desse conjunto de carneiras baseia-
se na máxima Memento mori (Lembra-te da morte). Seu objetivo é
suscitar nos observadores a reflexão sobre a efemeridade da vida e a
fugacidade dos prazeres, vaidades e glorias vãs. No contexto do século
XVIII, trazer a morte à lembrança não era um hábito estranho, ou
mórbido, como pode parecer hoje. Este exercício tinha uma finalidade
espiritual: conduzia o cristão a examinar sua consciência, reconhecer
seus pecados, arrepender-se deles e consertar seus erros enquanto
havia tempo. Afinal, como está escrito na tampa de uma das carneiras:
Hodie est et cras morietur (Hoje existe e amanhã morrerá). Em 1866,
Alexandre José de Mello Morais publicou o seguinte testemunho
sobre esse cemitério:

Há trinta carneiras, otimamente preparadas com


asseio, tendo em suas tampas de madeira pinturas e
emblemas adequados, extraídos dos livros sagrados.
Ai está a imagem de Nossa Senhora da Soledade, em
cujo altar os fiéis vem depositar suas preces em favor
dos mortos. Ninguém, por mais estoico que seja,
penetrando nesta lúgubre morada de finados, deixará
de sentir a niilidade e a vaidade de nossa tresloucada
espécie. 40

A decoração das carneiras do cemitério anexo a Capela da


Venerável Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira é muito especial.
Não se tem notícias de outro recinto funerário com programa visual/
textual semelhante.

Sacristia

No centro do forro da sacristia há uma pintura realizada no


século XVIII e que representa Nossa Senhora do Carmo retirando
almas do Purgatório. A passagem ilustra o chamado Privilégio Sabatino,
segundo o qual, os carmelitas seriam resgatados do Purgatório no sábado
seguinte a sua morte. A Virgem teria revelado esse privilégio ao papa
João XXII em 1322.

98 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
Em uma das paredes da sacristia há um belo armário, cuja
pintura decorativa aproxima-se da estética oriental (fig. 28). A partir
do século XVI, os portugueses expandiram suas fronteiras comerciais,
dinamizando trocas de produtos, circulação de pessoas e influências
artísticas entre o oriente e o ocidente. Exibir um objeto oriental, ou
inspirado nas formas orientais, passou a ser considerado chic, distinto.
O armário da sacristia da capela dos terceiros carmelitas, produzido no
século XVIII, insere-se nesse contexto. Esse móvel serve para guardar
imagens alusivas aos passos da paixão: Cristo no Horto, Cristo da Prisão
(chamado localmente de Cristo Manietado), Cristo Flagelado (ou da
Coluna), Cristo Coroado de espinhos (ou Senhor da Pedra Fria), Ecce
Homo (Eis o Homem; chamado localmente de Cristo da Paciência
ou Atado), Cristo Ressuscitado, São João Evangelista e Santa Maria
Madalena. Essas imagens, muito provavelmente, eram usadas nas
antigas procissões da Semana Santa. Excetuando o Cristo Flagelado
e o Ressuscitado, todas as demais eram vestidas e ornamentadas por
ocasião das celebrações e, por isso, apresentam articulações nos membros
superiores, o que facilita vesti-las e mudá-las de posição.41 Nota-se
influência oriental nos olhos amendoados das cinco primeiras imagens
de Cristo que citamos.

Figura 28 – Armário da sacristia. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 99


Ainda na sacristia, há um lavabo de pedra de lioz, datado do
século XVIII, com torneiras em forma de águias, um arcaz de madeira,
no qual se sobressaem ornatos em forma de indígenas estilizados e
também um conjunto composto por mesa de altar e nicho em estilo
Rococó.

Consistório

No centro do forro do consistório há uma pintura representando


o brasão carmelita. Neste recinto, está a antiga imagem do Senhor dos
Passos que ainda hoje é levada às ruas em procissão durante a Semana
Santa. A imagem é do tipo de vestir, tem olhos de vidros, cabeleira e coroa
de espinhos. Ao longo do ano, os devotos costumam ir ao consistório
para rezar aos pés do Senhor dos Passos.42 Tantos são os pedidos e os
agradecimentos pelas graças alcançadas que, ao lado do consistório,
está a Sala dos Milagres: espaço onde se depositam os ex-votos, ou
seja, objetos de diversos tipos – pinturas, fotografias, moldagens em
cera representando partes do corpo humano, dentre outros – que
testemunham os milagres alcançados.
O armário do consistório, datado do século XVIII, apresenta
influência oriental nas 24 pinturas que decoram as gavetas e as portas.
O fundo é branco, imitando a técnica oriental de aplicação de laca, e
as figuras são em tons de marrom.43 As cenas representadas exibem
paisagens com árvores, folhas, arbustos, pássaros, além de homens e
mulheres com vestes chinesas interagindo com a natureza: pescando,
descansando, soltando pipas, conversando, etc.

100 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Notas
1 CÚRIA GERAL CARMELITANA. Viver o Carmelo. Regra da Ordem Terceira
do Carmo ou da Ordem Carmelita Secular. 2003.
2 COSTA, F.A. Pereira da. A Ordem Carmelitana em Pernambuco. Recife: Arquivo
Público Estadual, 1976. p. 143-145. OTT, Carlos. Atividade Artística da Ordem 3ª
do Carmo da Cidade do Salvador e de Cachoeira. Salvador: Secretaria da Cultura e
Turismo, Fundação Cultural, EGBA, 1998. p. 21
3 COSTA, F.A. Pereira da. A Ordem Carmelitana em Pernambuco... op. cit., p. 147.
CALDERÓN, Valentim. O Convento e a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira.
Salvador: UFBA, 1976. p. 38.
4 Arquivo da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo,
Cachoeira. Certidão informando que o estatuto (contendo nove capítulos, quarenta
e dois artigos e setenta parágrafos) aprovado por frei Manoel Baranera Serra no dia
10 de maio de 1915 foi registrado no Cartório de Registros de Imóveis e Hipotecas,
Títulos e Documentos da Comarca de Cachoeira, no Livro nº 1 Registro de Títulos
e Documentos e papéis, nº 94.
5 Arquivo da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo,
Cachoeira. Estatuto do Sodalício da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira/BA
aprovado pelo frei Nuno Alves Corrêa, Delegado Provincial da Ordem Terceira do
Carmo, Rio de Janeiro, 09 de março de 1999.
6 Arquivo da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo,
Cachoeira. Alteração do estatuto da Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Monte do Carmo – Sodalício de Cachoeira – Bahia. Aprovado na Assembleia Geral
Extraordinária, realizada aos dois dias do mês de outubro de dois mil e dezoito, às
dezenove horas e seis minutos. Conforme preceitua a Carta Circular nº 001/2018
de 25 de setembro de 2018 em anexo.
7 SILVA, Pedro Celestino da. A Cachoeira e seu município: escôrço; physico, politico,
economico e administrativo. Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Salvador, n. 64, 1938. p. 265.
8 FLEXOR, Maria Helena Ochi (Org.); LACERDA, Ana Maria; SILVA, Maria
Conceição da Costa e; CAMARGO, Maria Vidal de Negreiros. O Conjunto do
Carmo de Cachoeira. Brasília, DF: IPHAN/Programa Monumenta, 2007. p. 67-68.
9 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 37.
10 Desenho baseado na planta baixa publicada em: BAHIA. Secretaria da Indústria e
Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia. Salvador:

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 101


Secretaria da Indústria e Comércio, 1982. vol. III Monumentos e Sítios do Recôncavo,
II parte. p. 41.
11 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira, v. 3, módulo I, Recôncavo. Salvador: MinC/
Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, 1994. ficha Ba/94-0003.0001.
12 SIMÕES, João Miguel dos Santos. Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822).
Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1965. p. 62. cf. SENHORINHO, Darlane
Silva. Iconografia Carmelitana: análise dos painéis azulejares da capela-mor da Ordem
Terceira do Carmo de Cachoeira. 2014. 282 f. Dissertação - Escola de Belas Artes,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
13 Agradecemos o teólogo Francisco Taborda, SJ, pela gentil colaboração.
14 Sobre a simbologia do manto na iconografia carmelita, consulte HONOR,
André Cabral. O Verbo mais que perfeito. Uma análise alegórica da Cultura
Histórica Carmelita na América Portuguesa. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013. p.
108.
15 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira... op. cit., fichas Ba/94-0003.0015 até Ba/94-
0003.0020.
16 MARIA, Frei José de Jesus. Thesouro Carmelitano. Lisboa: na Officina de Miguel
Menescal da Costa, 1750. p. 178.
17 VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 766.
18 VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea...op. cit., p. 352-354 e 849-851.
19 SANTIAGO, Camila Fernanda Guimarães. Profecia, martírio e penitência: as
origens da Ordem Terceira do Carmo nas pinturas da capela-mor da capela dos terceiros
carmelitas de Cachoeira. In: OLIVEIRA, Carla Mary S., HONOR, André Cabral.
(Editores). O Barroco na América Portuguesa: novos Olhares. João Pessoa: Editora da
CCTA – UFPB, Sevilha: Universidad Pablo de Olavide/EnRedArs, 2019. p. 74-92.
20 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira... op. cit., fichas Ba/94-0003.0022 e Ba/94-
0003.0023. Sobre as características dos retábulos nacional português, joanino e rococó
na Bahia, consulte FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha na Bahia do século XVIII.
In: Cultura Visual, n. 13, maio/2010. Salvador: EDUFBA. p. 137-151.
21 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira... op. cit., ficha Ba/94-0003.0024 até Ba/94-
0003.0027.

102 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


22 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira... op. cit., ficha Ba/94-0003.0088.
23 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira... op. cit., ficha Ba/94-0003.0051/52.
24 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja e Casa de Oração
da Ordem Terceira do Carmo, Cachoeira... op. cit., fichas Ba/94-0003.0034 até Ba/94-
003.0039.
25 MARIA, Frei José de Jesus. Thesouro Carmelitano... op. cit., Capítulo XVII.
26 JANSEN, Frei Thomaz. (comp.). Vida dos Santos da Ordem Carmelitana. Renânia:
Typographia de Butzon & Bercker Kevelaer, 1930. p. 332-336.
27 HONOR, André Cabral. A Pinacoteca dos irmãos terceiros carmelitas do Recife
na capitania de Pernambuco: revisitando a pintura de Manoel de Cláudio Francisco
da Encarnação (séc. XIX). In: Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, vol.10, n. 1,
jan-jul, 2017. p. 198.
28 JANSEN, Frei Thomaz. (comp.) Vida dos Santos da Ordem Carmelitana... op.
cit., p. 173-177.
29 PADRE ROHRBACHER. Vidas dos Santos. São Paulo: Editora das Américas,
1959. v. 4. p. 131-133.
30 JANSEN, Frei Thomaz. (comp.) Vida dos Santos da Ordem Carmelitana... op.
cit., p. 336-344.
31 HONOR, André Cabral. O Verbo mais que perfeito... op. cit., p. 115-122.
32 ORAZEM, Roberta Bacellar. A Representação de Santa Teresa D’Ávila nas igrejas
da ordem terceira do Carmo de Cachoeira/ Bahia e São Cristóvão/ Sergipe. 2009. f. 38.
Dissertação - Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.
33 ORAZEM, Roberta Bacellar. A Representação de Santa Teresa D’Ávila nas
igrejas da ordem terceira do Carmo de Cachoeira/ Bahia e São Cristóvão/ Sergipe...
op. cit., p. 144.
34 ORAZEM, Roberta Bacellar, CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque. Imagens
da Contrarreforma Espanhola no Brasil: a vida de São João da Cruz na Igreja
da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, Bahia. In: Domínios da Imagem,
Londrina, ano IV, n. 8, maio 2011. p. 96.
35 ORAZEM, Roberta Bacellar. A Representação de Santa Teresa D’Ávila nas igrejas
da ordem terceira do Carmo de Cachoeira/ Bahia e São Cristóvão/ Sergipe... op. cit., p.171.
36 ORAZEM, Roberta Bacellar, CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque. Imagens
da Contrarreforma Espanhola no Brasil... op. cit., p. 102.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 103


37 JESUS, Santa Teresa. Livro da Vida. São Paulo: Paulus, 1983. p. 236.
38 Agradecemos a gentil colaboração da fotógrafa Caroline Moraes.
39 LIMA, Jomar. Ars Moriendi. Salvador: P55 Edição, 2018. SILVA JÚNIOR,
Adeildo José Leão da. Documentação Museológica do conjunto de tampas das carneiras
do cemitério anexo a Capela da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira. 2018. 87
f. Trabalho de Conclusão de Curso - Bacharelado em Museologia; Orientadora:
Sabrina Mara Sant’Anna; tradução das inscrições em latim Francisco Taborda, SJ,
- Centro de Artes, Humanidades de Letras, Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia, Cachoeira, 2018. LIMA, Jomar. Ars Moriendi. Salvador: P55 Edição, 2018.
40 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 46.
41 BRUSADIN, Lia Sipaúba Proença. O Programa imagético da Paixão de Cristo das
Ordens Terceiras do Carmo: contraponto entre história, iconografia, materiais e técnicas
de esculturas devocionais nos séculos XVII- XIX no Brasil. 2019. f. 259-262. Tese -
Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
42 Sobre o culto à imagem do Senhor dos Passos, consulte SANTOS, Miriam
Silva dos. O culto à imagem de Nosso Senhor dos Passos na Ordem Terceira do
Carmo de Cachoeira/Ba. 2017. 83 f. Trabalho de conclusão de curso - Bacharelado
em museologia; Orientadora: Suzane Pinho Pêpe. Centro de Artes, Humanidades
e Letras, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, 2017.
43 CAMPOS, Maria de Fátima Hanaque, ORAZEM, Roberta Bacellar. Presença
de motivos chineses na arte sacra baiana: estudo do armário da Ordem Terceira do
Carmo de Cachoeira – Bahia. In. ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS DA
IMAGEM; ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS DA IMAGEM.
4;1. Londrina, 2013. p. 2178.

104 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


CAPÍTULO 6
A MATRIZ DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

Rosário é um objeto composto por contas unidas por um


cordão, ou corrente, usado pelos católicos durante a recitação seriada
de orações. Serve para auxiliar o devoto a não perder o número nem
a sequência do ciclo de rezas que está fazendo. Incialmente, as contas
tinham o formato de rosas, mas, pouco tempo depois, elas foram
substituídas por esferas. No total, o rosário tinha 150 contas menores,
cada uma delas representando uma oração Ave Maria, e 15 maiores,
cada uma correspondendo a um Pai Nosso.
O culto a Nossa Senhora do Rosário surgiu no século XV,
mas a tradição da Ordem dos Pregadores, também conhecida como
Ordem Dominicana, remonta a origem dessa devoção ao tempo de
São Domingos de Gusmão (1170-1221). Segundo contam, enquanto
São Domingos se dedicava a combater franceses da região de Albi
que estavam contrariando os princípios da Igreja, a Virgem Maria
teria aparecido e ensinado para ele um método de oração guiado pelo
rosário. Na ocasião, ela entregou o rosário para São Domingos.1
A primeira confraria do Rosário foi fundada em 1475
no convento dominicano da Cidade de Colônia, na Alemanha, e
foi aprovada pelo papa Sisto IV em 1478.2 Daí por diante, o culto
espalhou-se pela Europa e, com a expansão marítima, chegou aos
outros continentes. Na América Portuguesa, a Virgem do Rosário foi
eleita padroeira de várias freguesias e irmandades.
Em Cachoeira, a devoção a Nossa Senhora do Rosário
estava presente desde a edificação da primitiva capela no interior da

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 105


propriedade do capitão Álvaro Rodrigues Adorno. Esse templo foi
reconstruído e elevado à condição de igreja matriz em 1674, quando
foi criada a Freguesia de Nossa Senhora do Rosário do Porto da
Cachoeira. O referido edifício sagrado, conforme explicamos no
capítulo 3, é a atual Capela de Nossa Senhora D’Ajuda.
De acordo com o testemunho de frei Agostinho de Santa
Maria, autor do Santuário Mariano, obra publicada em 1722, a
Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Matriz de Cachoeira,
nessa época, ainda não tinha sido oficialmente instituída, mas já
atuava como irmandade de devoção:

O não ter até aqui a Senhora do Rosário Irmandade


com estatutos confirmados, e Compromisso, há
sido inadvertência, e grande descuido: mas tem
Mordomos, que anualmente se elegem, e todos se
desejam empregar em servir a Senhora pela grande
veneração, em que todos a tem, e também como é
orago daquela Freguesia, não há nela morador, que
não tenha particular devoção à Senhora, e que não
aceite como favor seu ter ocasião de a poder servir. 3

A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da Matriz de Cachoeira foi


devidamente oficializada no dia 22 de abril de 1749; data da aprovação
do seu compromisso.4
A primeira Matriz de Cachoeira, ao que tudo indica, logo tornou-
se pequena para abrigar o número crescente de fiéis (paroquianos).
Decidiu-se, então, construir um templo maior. Não conhecemos fontes
da época capazes de nos informar com precisão quando as obras da
nova igreja matriz começaram. De acordo com o testemunho registrado
no livro Brasil Histórico, publicado em 1866, a edificação foi iniciada
ainda no século XVII.5
Soubemos da doação do terreno para a construção do novo
templo a partir de uma solicitação enviada por Cosme Rodrigues de
Araújo, sobrinho de João Rodrigues Adorno, ao rei de Portugal. Cosme
pedia que lhe fosse dada uma passagem em um rio no caminho de São

106 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Pedro de Muritiba. Como argumento para conseguir o que queria, ele
mencionou todos os bons serviços que seus ascendentes, especialmente
seu tio, tinham prestado à coroa. Dentre esses serviços, citou a doação
de um terreno e de esmola para a construção da nova igreja matriz de
Cachoeira, posto que “havendo depois de mais anos acréscimo de
Povo, e querendo este fazer nova Freguesia por ser aquela pequena,
deu terras na mesma Vila que valem 200$000 reis para se ela fazer, e
400$000 reis em dinheiro para ser adjutório”,6 ou seja, para ajudar a
construir o templo. O documento não informa a data da doação nem
quando a construção da igreja começou.
Naquela época, era costume os reis de Portugal ajudarem
financeiramente os paroquianos a construírem as igrejas matrizes,
especialmente as sacristias e capelas-mores.7 Sendo assim, os
administradores das obras da Matriz de Nossa Senhora do Rosário da
Vila da Cachoeira encaminharam alguns pedidos de esmolas à coroa,
com o objetivo de arrecadarem recursos para prosseguirem na construção
do templo. Os processos gerados por esses pedidos exigiram trocas de
correspondência entre diversos órgãos da administração portuguesa
e os cachoeiranos. Através da leitura desses documentos, foi possível
conhecer um pouco sobre as etapas de edificação e ornamentação da
nova sede paroquial.
Um desses processos nos informa que, em 1722, o templo
ainda estava em construção, mas já funcionava como matriz, pois nele
eram realizados os ofícios religiosos e a administração dos sacramentos
católicos, embora de maneira muito precária. Nesse ano, o administrador
das obras era Manoel da Costa Pinheiro. Ele enviou uma solicitação de
esmolas ao rei. Para comprovar a necessidade dos recursos, ele coletou
testemunhos de destacados moradores da vila. Estes atestaram que a Vila
da Cachoeira era uma das maiores e principais do Império Português,
além de ser muito útil e proveitosa pela grande quantidade de tabacos
que fabricava e pelos impostos que eram pagos por seus moradores.
Disseram, também, que, até pouco tempo, os sacramentos e os ofícios
religiosos eram feitos na capela de João Rodrigues Adorno, que, por
ser pequena, não acomodava bem os fiéis, especialmente durante a
Semana Santa. Com a devida licença do arcebispo da Bahia, a edifi-

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 107


cação da nova igreja matriz foi iniciada. Contudo, as esmolas que os
paroquianos e devotos doaram para financiar as obras foram suficientes
para construir apenas metade do templo, que foi protegido por um
frontispício provisório de barro e madeira para que os ritos católicos
nele acontecessem. Mesmo em construção, a nova igreja era maior e,
portanto, mais cômoda do que a capela do capitão Adorno. Naquela
ocasião, as obras estavam paradas, pois os paroquianos não tinham
mais condições de contribuir.8 Vejamos um trecho do testemunho de
Manoel Martins Cronello:

[...] disse sabe pelo ver que na metade da dita igreja


que está feita cabe mais gente que na dita capela do
capitão João Roiz Adorno que dito tem, e a parede que
fizeram no meio da dita igreja que serve de frontispício,
esta tapada de barro e madeira, que antepara de se
administrarem nela os sacramentos e administrarem
os ofícios divinos.9

Através de processo semelhante ao que acabamos de mencionar,


que tramitou desde pelo menos 1743, pudemos conhecer o estágio das
obras de edificação da Matriz de Cachoeira entre, aproximadamente,
1727 e 1743. Entre outros detalhes que seguimos apresentando,
descobrimos que nessa época o frontispício provisório de barro e madeira
foi substituído pelo permanente, embora ainda não estivesse concluído.
Em 1743, ou pouco antes, outra solicitação de esmolas
para a construção da matriz foi encaminhada a Portugal pelo então
administrador das obras, o padre José da Costa Vale. Nele, o padre
afirmou que as obras do templo, realizadas até então com esmolas
recolhidas dos moradores da Vila da Cachoeira e de seus arredores,10
encontravam-se paradas por dezesseis anos, ou seja, aproximadamente
desde 1727, por falta de dinheiro. Segundo informou o padre José, a
situação do templo, naquela ocasião, era a seguinte: “da dita igreja se
não acha feito mais do que o corpo dela, com o princípio de duas torres,
e os altares sem retábulos, e sem a sacristia, nem tribunas”.11 Sabemos,
portanto, que a fachada principal “com princípio de duas torres” e “o
corpo” do templo estavam erguidos. A igreja ainda não tinha sacristia

108 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


construída e nem a galerias de tribunas, mas no seu interior havia
“altares sem retábulos”.
A coroa, para decidir se daria ou não a esmola, pediu o parecer
do provedor da Fazenda Real de Salvador. Para emitir sua opinião,
o provedor ordenou que se fizesse uma vistoria nas obras. A vistoria
foi feita pelos oficiais sargento-mor engenheiro Nicolao de Abreo e
Carvalho, o mestre pedreiro Felipe de Oliveira Mendes e o carpinteiro
João de Miranda Ribeiro. Os profissionais listaram ao provedor, em
1745, o que faltava na Matriz de Cachoeira para que ela chegasse a sua
“última perfeição”. Segundo eles, o templo necessitava de:

[...] duas Torres do frontispício por estarem mais de


a metade por fazer, as Tribunas dos lados, Sacristia, e
Casa da Fábrica, por que as que tem são pro interim,
Retábulo da Capela-mor, e seu forro, e também o da
igreja, cinco portas de madeira, três no frontispício e
duas nos lados, e grades na capela-mor, e cruzeiro, e
também no coro [...].12

O engenheiro, o pedreiro e o carpinteiro apresentaram, também,


orçamentos para o que faltava realizar: as obras da capela-mor, sacristia
e casa de fábrica custariam, aproximadamente, dezesseis mil cruzados;
já o conjunto de tudo o que a igreja precisava totalizaria trinta e cinco
mil cruzados.13 O rei deu despacho final para este processo em doze
de julho de 1747, quando destinou oito mil cruzados de esmola para
as obras da capela-mor, sacristia e casa da fábrica. Considerando as
informações da vistoria apresentadas em 1745, podemos concluir que
as obras na capela-mor seriam a fatura do retábulo e do forro. No caso
da sacristia e da casa de fábrica, a doação arcaria com suas construções,
pois foi apontado que os espaços que estavam sendo usados como
sacristia e casa de fábrica eram provisórios (pro interim). 14
Em 1748, juntaram-se à esmola real outros recursos para as obras
da igreja. Em 23 de abril, a Irmandade do Santíssimo Sacramento assinou
um contrato público com Francisco de Amorim Silva, o administrador
das obras da matriz na ocasião, comprometendo-se a doar um conto de

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 109


reis “para as obras da dita matriz e retábulo que [se] pretende fazer na
capela-mor” com a condição do “administrador fazer e preparar a casa
da tribuna que há de ficar por cima da sacristia”. O acordo estabelecia
que “a casa da tribuna” (recinto que antecede as tribunas) seria de
uso exclusivo da Irmandade do Santíssimo Sacramento e servir-lhe-ia
como consistório, bem como assegurava que a irmandade teria local na
sacristia para guardar seus ornamentos e pratas.15 Cabe dizer que, no
caso das igrejas matrizes, normalmente o retábulo e a ornamentação
da capela-mor eram financiados pelas associações religiosas de leigos
dedicadas ao Santíssimo Sacramento e à invocação padroeira do templo.
Contudo, sabemos que, no ano de 1748, a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário ainda não tinha condições de contribuir, pois, como já foi
mencionado, ela só foi oficialmente instituída em 1749.16
Em 1753, Francisco de Amorim Silva requereu que as obras
recém-concluídas, para as quais o rei havia doado oito mil cruzados
em 1747, fossem vistoriadas. A vistoria foi realizada pelo engenheiro
sargento-mor Manoel Cardoso de Saldanha, o pedreiro Felipe de
Oliveira Mendes e o carpinteiro João de Miranda Ribeiro. Estes oficiais
avaliaram que as obras estavam “bem feitas”, embora o retábulo da
capela-mor ainda não estivesse dourado, e que teriam custado cinco
contos, dezesseis mil cento e três reis (5:016$103) a mais do que a esmola
recebida em 1747. Com o objetivo de adquirir esse valor excedente, o
administrador da obra enviou outra solicitação ao rei. Francisco de
Amorim Silva explicou que essa quantia, usada para concluir as obras
da capela-mor, casa da fábrica e sacristia, foi retirada das esmolas que
os paroquianos tinham dado para se fazer outras obras na matriz. Os
fiéis, entretanto, não tinham condições de dar mais dinheiro para suprir
os gastos de dourar o retábulo da capela-mor e fazer as demais obras
de que o templo ainda carecia, daí a necessidade do rei complementar
a primeira doação.17 Para decidir sobre a questão, o monarca pediu
o parecer do vice-rei do Brasil e da Mesa de Consciência e Ordens
(órgão da administração portuguesa destinado a cuidar das questões
referentes à religião). O vice-rei sugeriu que a doação fosse feita; a Mesa
de Consciência e Ordens, conforme consta no parecer datado de 6 de
maio de 1757, aconselhou o seguinte: “de justiça não está a Fazenda
Real obrigada a dar mais do que os oito mil cruzados”, pois não havia

110 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


participado da decisão de se fazer obra tão “suntuosa” que necessitou de
valor superior ao da primeira doação. Além disso, se o administrador não
se satisfez com a quantia de oito mil cruzados, deveria ter se manifestado
antes, pois desta maneira:

[...] se mandaria formar planta, e pôr a obra em lanço


para ser arrematada, e pagar na conformidade das
ordens, que há para a arrecadação da Fazenda Real, e
não faria o suplicante [administrador] a obra pela sua
fantasia, talvez sem proporção ao corpo da igreja, ao que
tudo se deve atender para não fazer exemplo em que se
fundem outros semelhantes requerimentos depois de
terem aceitado a quantia que se lhe arbitrara, e assim
fica este requerimento sendo de mera graça o que Vossa
Majestade definirá como for servido, quando se digne
dar por esmola alguma quantia para ajuda dessa obra. 18

Não sabemos se o rei decidiu doar o valor excedente que


Francisco de Amorim Silva gastou nas obras da “suntuosa” matriz, ou
se ela foi concluída com novas emolas recolhidas dos fiéis.
As informações apresentadas sobre o histórico de edificação
e ornamentação da atual Matriz de Nossa Senhora do Rosário de
Cachoeira podem ser assim resumidas:
1) não se sabe exatamente quando o terreno para construção da igreja
foi doado e nem quando as obras começaram;
2) alguns autores acreditam que as obras teriam tido início ainda no
século XVII;
3) em 1722, a igreja já servia como matriz, mas estava inacabada: apenas
metade estava edificada e tinha um frontispício provisório de barro e
madeira;
4) entre, aproximadamente, 1727 e 1743, o corpo e o frontispício do
templo já estavam erguidos, mas faltava terminar as duas torres e, no
interior da igreja, havia mesas de altar (sem retábulos);
5) em 1753, foram concluídas as obras na capela-mor e a edificação da
sacristia e da casa da fábrica.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 111


Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 29 – Frontispício da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, Cachoeira.


Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

O frontispício da Matriz de Cachoeira divide-se verticalmente


em três partes. Na parte central, delimitada por pilastras, está o portal
em pedra de lioz, composto por três arcos plenos fechados por portas
de madeira. O arco do meio, o maior do conjunto, tem a bandeira
de sua porta decorada com a representação de dois anjos adorando o
Santíssimo Sacramento. Logo acima, está o nicho com a imagem de
Nossa Senhora do Rosário ladeado por dois pináculos. Esse nicho e
os outros dois arcos menores são encimados por frontões rompidos
em volutas com cruz em alto-relevo ao centro. Um pouco acima,
acompanhando a disposição triangular dos elementos que integram

112 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


o portal, há duas janelas retangulares com cimalhas de sobreverga
e um grande óculo circular. No alto da fachada está a cimalha real.
Coroando o edifício vemos o frontão triangular com um pequeno
óculo ao centro. As duas torres sineiras têm cobertura piramidal revestida
de azulejos arrematada por pináculo. Abaixo de cada torre, entre as
pilastras e os cunhais, há duas janelas retangulares com cimalhas
de sobreverga. Essas janelas estão dispostas verticalmente e alinhadas
horizontalmente com os vãos que encimam o portal.
O relógio da paróquia, provavelmente, foi instalado na fachada
lateral esquerda, abaixo do vão da torre sineira, para não alterar a simetria
do frontispício. As rocalhas representadas nos azulejos que formam
o mostrador desse relógio nos permitem supor que ele foi fixado na
segunda metade do século XVIII, junto com os painéis de azulejos que
ornamentam o interior do templo.
No século XX, três placas comemorativas foram assentadas na
fachada principal da matriz. Nelas podemos ler as seguintes inscrições:

“Em 25-6-1822, os cachoeiranos invocaram aqui, num solemne Te-


Deum, a graça de Deus para o movimento libertador. Memorando este
facto, os seus descendentes, passado um século, assentam esta pedra.
25-6-1922”.

“O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia assinala com o maior


júbilo o terceiro centenário da criação da freguesia de Nossa Senhora
do Rosário do Porto da Cachoeira. 1674 – 18 de fevereiro – 1974”.

“A Cachoeira Católica ao seu Pastor Dom Avelar Cardeal Brandão Vilela


Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil no transcurso do
Jubileu de Ouro de sua ordenação sacerdotal, Cachoeira 06-10-1985”.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 113


A planta baixa

9 12

8 8
7
11 11

5 6

4 3 4
11 11

1 2 10

Térreo Primeiro Pavimento


0 5 10 0 5 10

Figura 30 – Planta baixa da Matriz de Nossa Senhora do Rosário, Cachoeira.


Desenho de Samantha Úrsula Sant’Anna, 2020.

A figura 30 nos apresenta a planta baixa da Matriz de


Cachoeira. No térreo estão o batistério (1), a capela atualmente
dedicada ao Sagrado Coração de Jesus (2), a nave única (3) ladeada
por corredores (4), as capelas do Santíssimo Sacramento (5) e de São
José (6), a capela-mor (7) também ladeada por corredores (8) e a
sacristia (9). No primeiro pavimento estão o coro (10), a galeria de
tribunas (11) e o consistório (12).

A ornamentação interna

Na década de 1860, a Matriz de Cachoeira passou por uma


reforma ornamental e, por isso, no seu interior observamos a concepção

114 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


decorativa do Neoclássico. A talha dourada e a ornamentação excessiva
típicas do Barroco – como vimos na Capela da Ordem Terceira do
Carmo – estavam fora de moda no século XIX; eram consideradas
ultrapassadas, pois já não representavam os valores culturais e estéticos
da época. Seguindo a nova tendência, a decoração interna da Matriz
de Cachoeira foi atualizada, mas isso não significou a destruição e a
substituição de todas as obras artísticas do período anterior. Ao longo
deste capítulo, demonstraremos que há no templo painéis de azulejos,
obras de talha e pinturas do século XVIII. O especialista Luiz Freire,
em seu livro A talha neoclássica na Bahia, explica que,

[...] o sistema ornamental oitocentista vai se afirmando


dentro das possibilidades das organizações religiosas.
Por causa disso, muitas igrejas não farão a reforma por
completo, preservando um ou outro elemento de talha,
principalmente os tetos pintados em perspectiva, típicos
da segunda metade do século XVIII.19

Figura 31 - Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 115


Capela-mor

Em 1866, de acordo com o testemunho publicado no livro


de Alexandre José de Mello Morais, a capela-mor tinha acabado de
ser reformada.20 Embora o relato mencionado não nos tenha legado
uma descrição do recinto, sabemos que o forro pintado em tom de
azul celeste com estrelinhas brancas em alto-relevo e o retábulo que
podemos observar nos dias atuais são típicos do Neoclássico. Esse
retábulo apresenta mesa com formato de trapézio, camarim em arco
pleno, nicho com a imagem da padroeira, trono escalonado em sentido
piramidal com quatro degraus, sendo o último encimado por pequeno
nicho com a imagem do crucificado, seis plintos sustentando colunas
estriadas com terço inferior demarcado por anel, entablamento em
seção circular e coroamento em baldaquino arrematado por cúpula
vazada sobre volutas. A ornamentação da estrutura, despojada dos
excessos valorizados na época barroca, prioriza o uso de acantos, festões,
florões, volutas, flores, folhas e pérolas. O retábulo principal da Matriz
de Cachoeira, de acordo com os estudos do professor Luiz Freire, é
derivado do modelo do retábulo-mor da Capela de Nosso Senhor do
Bom Jesus do Bonfim de Salvador, executado pelo entalhador Antônio
Joaquim dos Santos entre 1813 e 1814.21
Conforme mencionamos anteriormente, a reforma neoclássica
não eliminou todas as obras do século XVIII. Nas ilhargas da capela-
mor, podemos admirar quatro painéis de azulejos com ornamentação
típica do estilo Rococó e cenas figuradas em tons de azul. O especialista
João Miguel dos Santos Simões estima que eles foram produzidos em
Lisboa por volta de 1750 e destaca “que esta esplendorosa decoração
foi encomendada com cuidados especiais, não só na escolha dos
temas apropriados mas, sobretudo, na exigência de boa qualidade
e nos pormenores dos enquadramentos que se ajustam por forma
surpreendente aos acidentes arquitetônicos”.22 As cenas escolhidas
retratam episódios da vida de Cristo narrados no Novo Testamento,
desde o milagre do vinho nas bodas de Caná até a última ceia. No lado
da epístola, estão representados os seguintes temas:

116 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


- As bodas de Caná (Jo 2:1-11): Maria, seu filho Jesus e os discípulos
estavam em uma festa de casamento. Maria informou a Jesus que o vinho
tinha acabado e ele transformou a água em vinho. Esse é o primeiro
milagre de Cristo registrado na Bíblia.
- Instituição da eucaristia (Mt 26:20-29; Mc 14:17-25; Lc 22:14-30):
durante a última ceia, Jesus pegou o pão e pronunciou a benção.
Depois, partiu-o e deu para os discípulos, dizendo que era o seu corpo.
Pegou um cálice de vinho, pronunciou a benção e disse que aquele era
o seu sangue; o sangue da Nova Aliança. Também durante a última
ceia, Jesus anunciou que um dos discípulos iria traí-lo, e eles ficaram
se perguntando quem haveria de ser.

Figura 32 – Painel de azulejos da capela-mor. Foto: Chico Brito, 2020.

No lado do evangelho estão representados os seguintes temas:


- A pecadora que ungiu os pés de Jesus (Lc 7:36-50): um fariseu chamado
Simão convidou Jesus para jantar em sua residência. Quando estavam à
mesa, uma mulher entrou na casa com um frasco de perfume e, choran-
do, pôs-se a lavar os pés de Jesus. Depois, ela enxugou os pés do mestre

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 117


com seus cabelos, beijou-os e ungiu-os com o perfume. Vendo isso, o
anfitrião falou: “Se este homem fosse profeta, saberia quem é a mulher
que está tocando nele: é uma pecadora!” Jesus respondeu ao dono da
casa e perdoou os pecados da mulher. Espantados, os convidados do
fariseu comentaram entre si: “Quem é este que até perdoa pecados?”.23
- O lava-pés (Jo 13:1-20): durante a última ceia, quando “o diabo já
tinha seduzido Judas Iscariotes”, Jesus levantou-se da mesa e pôs-se a
lavar os pés dos discípulos. Pedro, inicialmente, recusou-se a ser lavado
pelo mestre, mas Jesus o advertiu dizendo: “Se eu não te lavar, não terás
parte comigo”.

Nave

Na nave, podemos observar a delicada talha neoclássica que


recobre o arco cruzeiro. No seu coroamento, há uma trama de ornatos
vazados e entrelaçados envolvendo a tarja que exibe o monograma de
Maria.24 Ladeando o arco cruzeiro, há dois retábulos com caracterís-
ticas semelhantes ao da capela-mor; o modelo deles é uma variante do
retábulo principal do templo.25
A reforma neoclássica também renovou a decoração das capelas
laterais próximas ao arco cruzeiro. No lado da epístola está a capela
dedicada a São José. Em 1866, de acordo com o testemunho publicado
no livro de Alexandre José de Mello Moraes, esta capela “então intei-
ramente arruinada e caída em destroços” estava “reformada de altares
e molduras”.26 Atualmente, nela encontra-se o retábulo executado no
século XIX composto por mesa trapezoidal, camarim em arco pleno,
quatro nichos para imagens de santos, trono escalonado, seis colunas
estriadas, entablamento em seção circular e coroamento incompleto
apresentando aro oval sobre volutas verticais.27
No lado do evangelho, vedada por uma grande porta com duas
folhas vazadas (gradil de madeira dourado) está a capela do Santíssimo
Sacramento. Dentro dela há um retábulo neoclássico com mesa trape-
zoidal, camarim em arco pleno, seis colunas estriadas e coroamento em
aro oval interligado e concluído por trama de ornatos vazados. Logo

118 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


acima da mesa do altar, à frente do trono escalonado, repousa o sacrá-
rio de prata datado do século XIX, cujo formato lembra um peque-
no templo coroado por cúpula e cruz. Na parte frontal desse sacrário,
há uma pomba (símbolo do Espírito Santo) representada com as asas
abertas e o bico voltado para a hóstia (o corpo de Cristo) que paira so-
bre uma nuvem.28 Nas paredes laterais da capela do Santíssimo Sacra-
mento, há um conjunto de pinturas a óleo sobre tela, também datadas
do século XIX, com aproximadamente 151 cm de altura e 93 cm de
largura cada uma.29 Nelas estão representados os evangelistas Mateus,
Marcos e Lucas (autores dos três primeiros livros do Novo Testamen-
to) acompanhados de seus respectivos símbolos: um anjo, um leão e
um boi. Lamentavelmente, esse conjunto perdeu a pintura que retra-
tava o evangelista João, cujo símbolo é uma águia. A associação desses
símbolos aos quatro evangelistas é antiga. São Gregório Magno, papa
entre 540 e 604, nos explica o seguinte:

Basta-nos abrir o Livro dos Santos Evangelhos para


entender que estes quatro seres misteriosos nos repre-
sentam perfeitamente os quatro Evangelistas. Quando
nós vemos que São Mateus começa seu evangelho pela
geração humana do Filho de Deus, estaremos total-
mente de acordo que, com razão, ele representa-se a
nós sob a figura de um homem [rosto de anjo]. Por sua
vez, São Marcos nos é representado sob a figura de um
leão, pois começa seu evangelho com a pregação de São
João Batista clamando no deserto; e que o touro, que
é uma vítima ordinária, convém perfeitamente à São
Lucas, que começa pelo sacrifício que oferece Zacarias.
Enfim, a águia nos representa admiravelmente São
João, que começa com essas palavras: “No Princípio
era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era
Deus”. Elevando seu olhar diretamente para a própria
substância da Divindade, ele é como uma águia que
fixa os seus olhos no sol.30

As paredes da nave, desde as capelas laterais próximas ao arco


cruzeiro até a entrada principal do templo, são cobertas por painéis de
azulejos com cercadura rococó e cenas figuradas em tons de azul. Suas

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 119


tarjas exibem símbolos que representam a santidade e os atributos de
Nossa Senhora louvados na Ladainha Lauretana (oração de súplica
cantada).31
No lado do evangelho, começando pela entrada principal do
templo, está a representação de São Francisco de Assis recebendo os
estigmas; um dos episódios mais importantes da vida desse santo que
buscou viver como Jesus. Segundo a tradição franciscana, em 1224,
Francisco (1182-1226) estava orando no Monte Alverne, Itália, por
ocasião da festa da Exaltação da Cruz. Cristo, sob a forma de um sera-
fim (figura angélica que tem seis asas), apareceu para ele e atendeu suas
preces. Inundado pelo amor divino, Francisco recebeu em seu corpo o
que seu coração desejava: os estigmas das chagas de Cristo, ou seja, as
feridas decorrentes da crucificação.32 À frente deste painel está a cena
de São Domingos recebendo o rosário das mãos de Nossa Senhora;
assunto que já apresentamos na introdução deste capítulo. Os outros
seis painéis retratam episódios relativos à vida de Maria e infância de
Jesus narrados no Novo Testamento, especificamente nos evangelhos
de Mateus e Lucas, e também em livros apócrifos (textos que não fazem
parte do cânon da Bíblia). No lado do evangelho, estão representados
os seguintes temas:
- A concepção imaculada de Maria: textos apócrifos escritos a partir
do século II contam-nos que os pais de Maria se chamavam Joaquim e
Ana. Eles eram estéreis e estavam tristes por isso. Um anjo apareceu para
ambos, separadamente, e anunciou que Ana conceberia uma criança
e que esta seria conhecida em todo o mundo. No painel de azulejos,
Joaquim e Ana estão ajoelhados. Diante deles, envolta em nuvens, está
a filha concebida sem pecado: Maria (Nossa Senhora da Conceição).
- A anunciação do nascimento de Jesus (Lc 1:26-38): o Anjo Gabriel
apareceu para Maria, saudou-a com as palavras “Alegra-te, cheia de
graça! O Senhor está contigo” e revelou que ela conceberia um menino
pela graça do Espírito Santo. No painel de azulejos, o Espírito Santo
aparece na forma de uma pomba.33
- A circuncisão de Jesus (Lc 2:21): o menino foi levado para ser cir-
cuncidado, conforme o costume da época, com oito dias de nascido,

120 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


e recebeu o nome de Jesus. No lado da epístola estão representados os
seguintes temas:
- O compromisso de Maria e José: textos apócrifos contam-nos que,
quando Maria completou quatorze anos, foram convocados os homens
solteiros da casa de Davi. Todos eles deviam depositar suas varas (instru-
mento tradicionalmente utilizado pelos pastores de ovelhas) no altar do
templo. Aquele cuja vara florescesse e sobre a qual pousasse o Espírito
Santo (normalmente representado na forma de uma pomba) deveria
casar-se com a Virgem Maria. José escondeu a sua vara, pois considera-
va-se velho demais para desposar Maria. Contudo, as varas que os mais
jovens levaram não germinaram. Quando José finalmente depositou
a sua, ela floresceu e sobre ela pousou uma pomba vinda do céu. No
painel azulejar, está representado o momento em que o casamento de
José e Maria foi firmado. O sacerdote, entre os noivos, segura a mão de
José com uma de suas mãos e, com a outra, um pequeno pano. Atrás de
Maria estão duas de suas colegas virgens. José está rodeado por jovens
imberbes e segura a sua vara florida.34
- O nascimento de Jesus (Lc 2:6, 7): José e Maria saíram de Nazaré e
foram para Belém participar de um recenseamento. Quando chegou a
hora do parto, não havendo lugar para eles na hospedaria, Maria deu
à luz a Jesus, envolveu-o em tecidos e deitou-o em uma manjedoura.
No painel de azulejos, o bebê está no colo da mãe, e José parece estar
arrumando a manjedoura. A cena está repleta de anjos. O boi e o asno
representados no canto esquerdo não são mencionados na Bíblia, mas
constam nas narrativas apócrifas.
- A adoração dos magos (Mt 2:1-12): magos do Oriente foram guiados
por uma estrela até a casa onde Jesus estava com seus pais. Ao encon-
trarem o menino, eles o adoraram e lhe ofereceram presentes: ouro,
incenso e mirra. O número de magos, tradicionalmente representa-
dos em três, e também seus nomes (Melchior ou Belchior, Baltazar
e Gaspar) não constam na Bíblia; essa tradição provém da literatura
apócrifa. No painel de azulejos, Jesus está no colo de Maria e José está
junto deles. A família, postada na entrada de uma edificação, recebe a
visita e os presentes de três magos que chegam acompanhados de uma
grande caravana.35

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 121


Nas ilhargas da nave também podemos observar dois púlpitos
e seis tribunas com talha característica da fase de transição do Rococó
para o Neoclássico.36 O coro, localizado sobre a entrada principal do
templo, tem balaustrada em curvas e ornamentação que nos indicam
o final do século XVIII e o início do XIX.37 Na parte debaixo de sua
estrutura, há três pinturas a óleo sobre madeira, de caráter bastante
popular, sobretudo no tratamento da anatomia dos corpos humanos,
emolduradas por frisos e rocalhas.38 Uma delas representa o batismo
de Cristo por São João Batista, que carrega em seu cajado a inscrição
ECCE AGNUS DEI (“Eis o Cordeiro de Deus”, conforme Jo 1: 29;
o batismo propriamente dito é narrado em Mt 3:13-17, Mc 1:9-11 e
Lc 3:21-22). A pintura central retrata Cristo a caminho do Calvário,
local onde foi crucificado (Mt 27:31-33, Mc 15:21, 22, Lc 23:26-32,
Jo 19:17-18). A outra pintura representa a transfiguração, episódio em
que Cristo foi visto por três de seus discípulos – Pedro, João e Tiago
– com o rosto resplandecendo como o sol, as vestes alvas como a luz,
conversando com Moisés e Elias. (Mt 17:1-8, Mc 9:2-8, Lc 9:28-36).
Abaixo do coro, no lado do evangelho, há uma capela equipada
com pia batismal de pedra de lioz. No lado da epístola, há uma capela
com a imagem do Sagrado Coração de Jesus sobre um pedestal.
O forro da nave exibe pintura de perspectiva datada do final do
século XVIII ou do século XIX. O forro mede, aproximadamente, 23
m de comprimento e 15 m de largura.39 No medalhão central, podemos
ver Cristo com um dos braços erguido segurando três lanças (fig. 33).
Ao seu lado direito há um anjo com uma espada – atributo geralmente
associado a São Miguel – simbolizando a justiça divina.40 Ao lado es-
querdo de Cristo está Maria, sua mãe, mostrando-lhe os personagens
que estão abaixo: São Francisco, identificado pelo hábito marrom com
cordão na cintura, e São Domingos com o hábito preto e branco dos
dominicanos, tendo abaixo de seus joelhos um cachorro com uma
tocha na boca. Esse cachorro teria sido visto em um sonho que a mãe
de São Domingos teve enquanto estava grávida dele. Significa que São
Domingos nasceria para combater os hereges como um cão fiel e que
ele iluminaria o mundo.41 Entre os dois santos, há uma representação
do globo terrestre, referência reforçada pelas personificações dos qua-

122 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


tro continentes conhecidos na época: ao lado de São Francisco estão a
Europa e a América; ao lado de São Domingos, a Ásia e a África.
A cena representada no medalhão central diz respeito a uma
visão que São Domingos teve enquanto estava em Roma esperando a
aprovação da Ordem dos Pregadores. Ele viu Cristo no céu zangado
com a humanidade e disposto a arremessar três lanças no mundo para
eliminar os vícios da soberba, avareza e luxúria. Ao lado do Salvador,
Maria tentava acalmá-lo, mostrando-lhe dois frades que lutariam contra
esses vícios e disseminariam as virtudes da obediência, pobreza e cas-
tidade.42 É interessante notar que esse mesmo tema está retratado nos
forros que cobrem as naves de outras duas capelas baianas: a da Ordem
Terceira de São Domingos, em Salvador, e a do convento franciscano
de Santo Antônio, em São Francisco do Conde. Acima da cena prin-
cipal que acabamos de descrever, na parte mais próxima do coro, está
a representação do tema da visitação narrada no evangelho de Lucas
1:39-45: a Virgem Maria grávida de Jesus foi visitar sua prima Isabel que
estava grávida de São João Batista. Na pintura, ao lado de Maria, está São
José e, ao lado de Isabel, está seu marido Zacarias. Abaixo do medalhão
central, na parte mais próxima ao arco cruzeiro, a cena representada é a
assunção da Virgem Maria. De acordo com os textos apócrifos escritos
entre os séculos IV e VIII, passados três dias da morte de Maria, Jesus
apareceu no lugar que sua mãe tinha sido sepultada e, diante dos seus
apóstolos, ressuscitou-a e levou-a para o Paraíso Celeste.43
Nas quatro extremidades da pintura de falsa arquitetura pode-
mos observar atlantes sentados sobre volutas, simulando sustentar o
peso da arquitetura fingida. Destacamos, também, mísulas, balcões,
colunas, pilastras e entablamentos, além da balaustrada que emoldura
o medalhão central. O pintor criou uma pintura bastante complexa,
mesmo não dominando completamente as técnicas de criar a ilusão
de profundidade de baixo para cima. Em meio aos elementos arqui-
tetônicos, apresentam-se anjos e figuras humanas, inclusive os quatro
evangelistas, que estão entre pares de colunas. Mateus e Lucas estão no
lado da epístola, Marcos e João, no lado do evangelho (fig. 7, capítulo 2).

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 123


Figura 33 – Forro da nave. Foto: Chico Brito, 2020.

124 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Sacristia

A sacristia fica atrás da capela-mor e apresenta ornamentação


predominantemente Rococó. Rocalhas podem ser observadas no re-
tábulo, no lavabo de pedra de lioz que está a sua frente, nas molduras
dos quadros dependurados nas paredes, nas sanefas das janelas e tam-
bém no forro pintado.

Figura 34 – Vista da sacristia. Foto: Chico Brito, 2020.

No forro, há um medalhão com cercadura em rocalhas emoldu-


rando a cena da Virgem Maria entregando o rosário a São Domingos;
tema também representado no painel de azulejos da nave que fica logo
na entrada principal do templo, no lado da epístola.
Doze quadros estão expostos nas quatro paredes do recinto. As
pinturas são bem equilibradas, com contornos bem definidos e retratam
apenas os personagens principais de cada cena, evitando excessos. Seis
são mais largas, apresentando as cenas horizontalmente, e seis mais

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 125


estreitas, assumindo uma disposição verticalizada. Dez quadros narram
passagens da vida de Maria. Entre esses dez, temos seis pinturas mais
largas e quatro mais estreitas. As mais largas representam passagens
que constam na Bíblia, as mais estreitas ilustram momentos descritos
em textos apócrifos.
Os quadros com pinturas que retratam cenas bíblicas da vida de
Maria estão dependurados nas duas paredes mais estreitas da sacristia e
na parede em que estão encostados os arcazes e o retábulo. Os temas
dessas pinturas são os seguintes:
-A circuncisão de Jesus (parede mais estreita próxima da entrada da
sacristia): trata-se do mesmo tema abordado em um dos painéis de
azulejos da nave, localizado no lado do evangelho.
-A anunciação (parede em que estão os arcazes e o retábulo): trata-se
do mesmo tema evidente em um dos painéis de azulejos da nave, loca-
lizado no lado do evangelho. Na pintura, o Anjo Gabriel segura um
lírio, símbolo da pureza e da virgindade de Maria.44
-A visitação (parede em que estão os arcazes e o retábulo): trata-se do
mesmo tema abordado na pintura do forro da nave, na parte mais
próxima ao coro.
-A adoração dos pastores (Luc 2:8-20) (parede em que estão os arcazes e
o retábulo): o Anjo do Senhor avisou um grupo de pastores que Jesus,
o Salvador, havia nascido. Vários anjos juntaram-se ao mensageiro e co-
meçaram a cantar. Os pastores foram para Belém e encontraram Maria,
José e Jesus deitado numa manjedoura. Na pintura, um anjo carrega
uma faixa com os dizeres GLORIA IN EXCELSIS DEO (“Glória a
Deus nas alturas”).45
-A adoração dos magos (parede em que estão os arcazes e o retábulo):
trata-se do mesmo tema abordado em um dos painéis de azulejos da
nave, localizado no lado da epístola.
-A apresentação de Jesus no templo (Luc 2:22-28) (parede estreita do
fundo da sacristia): o menino Jesus foi levado ao templo, em Jerusalém,
para ser apresentado ao Senhor. Um par de pombinhos, que na pintura
está sendo carregado por José, foi oferecido em sacrifício, como era

126 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


o costume. Simeão, a quem fora revelado que não morreria antes de
conhecer Jesus, foi ao templo ver o menino.
Os quadros mais estreitos, com pinturas que ilustram narrativas
apócrifas, estão dependurados na parede em que fica o lavabo. Os temas
retratados são os seguintes:
-A apresentação de Maria no templo: quando Maria deixou de mamar,
aos três anos, seus pais a levaram para ser consagrada a Deus. A menininha
subiu sozinha, sem ajuda alguma, os 15 degraus que levavam ao altar. 46
-O nascimento de Maria: Ana, mãe de Maria, está na cama recostada.
No primeiro plano da pintura estão representadas mulheres preparando
o banho da recém-nascida. 47
-Cristo despedindo-se de sua mãe antes de ser preso e crucificado: na
pintura, Maria chora e um anjo carregando uma cruz é a pista para
identificarmos o motivo de sua tristeza: seu filho será preso, julgado,
condenado e crucificado.
-A assunção da Virgem Maria: trata-se do mesmo tema abordado na
pintura do forro da nave, na parte mais próxima ao arco cruzeiro.
Nas extremidades da sacristia, no encontro das paredes, há
dois quadros mais estreitos que os outros e que nos apresentam os
seguintes temas:
-A Divina Pastora: a Virgem Maria é representada como uma pastora
de ovelhas. Esse tema foi criado na arte espanhola no século XVII
e difundiu-se a partir de 1750. Não foi muito comum na América
Portuguesa.48
-Judite (Jt 13:15): o livro de Judite, no Antigo Testamento, conta a histó-
ria da vitória dos judeus sobre os assírios. A nação judaica encontrava-se
em Betúlia cercada pelo poderoso exército chefiado por Holofernes.
Judite embelezou-se e deixou Betúlia rumo ao acampamento do inimigo.
Lá, todos ficaram encantados com a sua beleza. Ela participou de um
banquete com Holofernes, que se embriagou. Judite, então, aproveitou
a oportunidade e cortou a cabeça do líder do exército inimigo. De volta
a Betúlia, ela exibiu a cabeça de Holofernes. Judite é considerada uma
antecipação da figura da Virgem Maria, pois era uma mulher temente
a Deus, sábia e corajosa.49

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 127


Notas
1 Consulte o verbete LA VIRGEM DEL ROSÁRIO em RÉAU, Louis. Iconografía
del Arte Cristiano: Iconografía de la Bíblia, Nuevo Testamento. Barcelona: Ediciones
del Serbal, 2008. T.1, V.2. p. 129-130. MEGALE, Nilza Botelho. Invocações da Virgem
Maria no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 429.
2 RÉAU, Louis. Iconografia del Arte Cristiano. Iconografia de la Bíblia, Nuevo
Testamento...op cit. T.1, V. 2. p. 130.
3 SANTA MARIA, Fr. Agostinho de. Santuario Mariano, e Historias das Imagens
milagrosas de Nossa Senhora, e milagrosamente manifestadas, e apparecidas em
o Arcebispado da Bahia, e mais Bispados, de Pernambuco, Paraiba, Rio Grande,
Maranhão, e Grão Pará. Lisboa: na Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1722.
Tomo 9. p. 214.
4 Relaçáo das Irmandades, e Confrarias existentes na Freguesia da Cidade de
Cachoeira com declaração do ato que as constituiu, e nota dos bens que formão o seo
patrimonio. 1862. Universidade Católica de Salvador. Laboratório Reitor Eugênio
Veiga, Capelas Filiais.
5 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 46.
6 Arquivo Público do Estado da Bahia, Ordens Régias 1735-1736, 1,1/33. Fls. 240-
242. Apud OTT, Carlos. História da Igreja de Nossa Senhora do Rosário de Cachoeira.
Salvador: UFBa, 1978. p. 28. A grafia foi atualizada na transcrição.
7 Sobre o costume da Coroa Portuguesa conceder esmolas para as construções das
igrejas matrizes consultar BASTOS, Rodrigo Almeida. A Maravilhosa Fábrica de
Virtudes. O decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822).
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, 2013. p.71-76.
8 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate. Requerimento dos moradores da vila do Porto da Cachoeira ao rei [ D.João
V] solicitando ordenar ao provedor da fazenda real que faça a doação de uma ajuda de
custo para continuarem as obras de edificação da nova igreja matriz Nossa Senhora
do Rosário. Caixa 19, doc. 1663. Fls. 4-6.
9 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate. Requerimento dos moradores da vila do Porto da Cachoeira ao rei [D.João
V] solicitando ordenar ao provedor da fazenda real que faça a doação de uma ajuda de
custo para continuarem as obras de edificação da nova igreja matriz Nossa Senhora
do Rosário. Caixa 19, doc.1663. Fls. 14-15. A grafia foi atualizada na transcrição.
10 Esta informação nos indica que, provavelmente, o pedido anterior de esmolas,
enviado por Manoel da Costa Pinheiro ao rei, não foi atendido.

128 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


11 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate. Carta do provedor-mor da Fazenda Real Manuel Antônio da Cunha de
Souto Maior ao rei [D. João V] dando parecer sobre o requerimento do administrador
das obras da igreja matriz de Nossa Senhora do Rosário da Vila da Cachoeira padre
José da Costa Vale, em que pede uma esmola para concluir as obras da referida igreja.
Caixa 85, doc. 6966. Fls. 3.
12 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate. Carta do provedor-mor da Fazenda Real Manuel Antônio da Cunha de
Souto Maior ao rei [D. João V] dando parecer sobre o requerimento do administrador
das obras da igreja matriz de Nossa Senhora do Rosário da Vila da Cachoeira padre
José da Costa Vale, em que pede uma esmola para concluir as obras da referida igreja.
Caixa 85, doc. 6966. Fls. 2.
13 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate. Carta do provedor-mor da Fazenda Real Manuel Antônio da Cunha de
Souto Maior ao rei [D. João V] dando parecer sobre o requerimento do administrador
das obras da igreja matriz de Nossa Senhora do Rosário da Vila da Cachoeira padre
José da Costa Vale, em que pede uma esmola para concluir as obras da referida igreja.
Caixa 85, doc. 6966. Fls. 2.
14 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Consulta do Conselho Ultramarino ao rei
D. José sobre a solicitação de Francisco de Amorim e Silva para concluir as obras
da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do
recôncavo da cidade da Bahia. Anexo: Provisão (cópia). Caixa 131, doc. 10235, Fl.
3. A grafia foi atualizada na transcrição.
15 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Livro de notas de Cachoeira, n.
031, fls 1-2v.
16 Universidade Católica de Salvador. Laboratório Reitor Eugênio Veiga. Capelas
Filiais. Relação das Irmandades, e Confrarias existentes na Freguesia da Cidade de
Cachoeira com declaração do ato que as constituiu, e nota dos bens que formão o
seo patrimonio. 1862, fl. 1.
17 Documentos transcritos por Carlos Ott no Arquivo Público do Estado da Bahia
e na Biblioteca Nacional. Apud OTT, Carlos. História da Igreja de Nossa Senhora
do Rosário de Cachoeira...op cit. p.29-34.
18 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Baía. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Consulta do Conselho Ultramarino ao rei
D. José sobre a solicitação de Francisco de Amorim e Silva para concluir as obras
da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do
recôncavo da cidade da Bahia. Anexo: Provisão (cópia). Caixa 131, doc. 10235, fl. 2.
A grafia foi atualizada na transcrição.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 129


19 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro:
Versal, 2006. p. 183.
20 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 52.
21 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia... op. cit., p. 203.
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As relações centro-periferia nos retábulos baianos do
Recôncavo. SANT’ANNA, Sabrina Mara; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro; CAMPOS,
Adalgisa Arantes (Org.). Cultura artística e conservação de acervos coloniais. Belo
Horizonte: Clio Gestão Cultural, 2015. p. 67-71.
22 SIMÕES, João Miguel dos Santos. Azulejaria Portuguesa no Brasil (1500-1822).
Fundação Calouste Gulbenkian: Lisboa, 1965. p. 59. Cf. SANTOS, Denise Pereira
dos. Os painéis azulejares da igreja matriz de Cachoeira- Ba: um estudo documental.
Cachoeira: CAHL/UFRB, 2016. Trabalho de Conclusão de Curso. (Bacharelado
em Museologia; Orientação: Camila Fernanda Guimarães Santiago). 79 p.
23 As transcrições bíblicas foram feitas conforme a seguinte edição: BÍBLIA. Português.
CNBB.; KONINGS, Johan. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO
BRASIL. Bíblia sagrada. 14. ed. São Paulo: Canção Nova, 2012. 1653 p.
24 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, Cachoeira, v. 1, módulo I, Recôncavo. Salvador: MinC/Instituto
Brasileiro do Patrimônio Cultural, 1994. Ficha Ba/94-0001.0002.
25 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As relações centro-periferia nos retábulos baianos
do Recôncavo... op. cit., p. 70-71.
26 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 52.
27 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Rosário, Cachoeira... op. cit., Ficha Ba/94-0001.0013.
28 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, Cachoeira... op. cit., Fichas Ba/94-0001.0005, Ba/94-0001.0015
e Ba/94-0001.0158.
29 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, Cachoeira... op. cit., Fichas Ba/94-0001.0036, Ba/94-0001.0037,
Ba/94-0001.0038, Ba/94-0001.0039.
30 SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homilia IV das Homilias sobre Ezequiel. Tradução
de Gustavo Cambraia Franco, 2015.
31 BASADONNA, G.; SANTARELLI, G. Ladainhas de Nossa Senhora. São Paulo:
Loyola, 2000. 215 p.
32 LORÊDO, Wanda Martins. Iconografia Religiosa: dicionário Prático de identificação.
Rio de Janeiro: Pluri Edições, 2002. p. 182.

130 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


33 CASIMIRO, Luís Alberto. Iconografia da Anunciação: símbolos e atributos.
In: Revista Ciências e Técnicas do Patrimônio. Porto: Faculdade de Letras, I série, v.
VII-VIII, 2008-2009. p. 151-174.
34 VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
p.750. CASIMIRO, Luís Alberto. A Pintura no museu de Arouca: contributos dos
Apócrifos e Tratados Pós-Tridentinos para a Iconografia Mariana. In: FERREIRA-
ALVES, Natália Marinho (coord.). A Encomenda. O Artista. A Obra. Porto: CEPESE,
2010. p. 279-290.
35 CASIMIRO, Luís Alberto. A Pintura no museu de Arouca: contributos dos
Apócrifos e Tratados Pós-Tridentinos para a Iconografia Mariana... op. cit., p. 279-290.
36 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja Matriz de
Nossa Senhora do Rosário, Cachoeira... op. cit., Fichas Ba/94-0001.0026-27 e Ba/94-
0001.0016-21
37 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja Matriz de Nossa
Senhora do Rosário, Cachoeira... op. cit., Fichas Ba/94-0001.0032.
38 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja Matriz de Nossa Senhora
do Rosário, Cachoeira ...op cit. Fichas BA/94-0001-0033, BA/94-0001-0034, BA/94-
0001-0035.
39 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja Matriz de Nossa Senhora
do Rosário, Cachoeira... op cit. Ficha BA/94-0001-0006.
40 MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 1983. p.274-275.
41 VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea... op. cit., p. 614-615. RÉAU, Loius. Iconografia
del Arte Cristiano. Iconografía de los santos. Barcelona: Ediciones del Serbal, 2000.
T.2, V.3. p. 394.
42 VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea... op cit. p. 618. RÉAU, Louis. Iconografia
del Arte Cristiano. Iconografía de los santos... op. cit., T2, V3. p. 399-400.
43 SANT’ANNA, Sabrina Mara. A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina,
iconografia e irmandades mineiras (1721-1822). Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, 2006. Dissertação de
mestrado, p. 3-55.
44 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário de Símbolos: imagens e sinais da arte cristã.
São Paulo: Paulus, 1994. p. 222-223.
45 CASIMIRO, Luís Alberto. A Pintura no museu de Arouca: contributos dos
Apócrifos e Tratados Pós-Tridentinos para a Iconografia Mariana... op. cit., p. 279-290.
46 VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea...op cit. p. 749-750.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 131


47 Consulte o verbete LA NATIVIDAD DE LA VIRGEM em RÉAU, Louis.
Iconografia de la Bíblia, Nuevo Testamento...op cit. T.1, V.2. p. 170.
48 Consulte o verbete LA DIVINA PASTORA em RÉAU, Louis. Iconografia del
Arte Cristiano..,op cit. T.1, V.2. p. 133. FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Divina
Pastora e as heroínas do Antigo Testamento. Mouseion, Canoas, n. 24, 2016, p. 5.
49 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A Divina Pastora e as heroínas do Antigo
Testamento. Mouseion...op cit, p. 17.

132 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


CAPÍTULO 7
A CAPELA DO HOSPITAL SÃO JOÃO DE DEUS -
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA

O conjunto arquitetônico da Santa Casa da Misericórdia de


Cachoeira é formado pelo edifício do Hospital São João de Deus e
pela capela que lhe é contígua. Essa história começou no convento
franciscano de Santo Antônio do Paraguaçu, localizado a poucos
quilômetros de Cachoeira.
Em 1649, os franciscanos chegaram na região do Iguape,
rica em solos férteis para a produção da cana de açúcar e, quase uma
década depois, em 1658, iniciaram a construção do Convento de
Santo Antônio do Paraguaçu. Ali, frei Bernardo da Conceição (1676-
1728) dedicou-se a tratar pessoas doentes das mais variadas condições
sociais que a ele recorriam. A Ordem Franciscana autorizou, então, a
construção de uma enfermaria no citado convento. Essa enfermaria,
chamada naquela época de “Hospital de Nossa Senhora de Bellem
do Paraguaçu”, foi edificada e mantida com as esmolas de devotos
e homens ricos da região. Em 1727, após a morte de frei Bernardo
da Conceição, o rico capitão Antônio Machado Velho (1686-1770)
assumiu a administração do “hospital” do convento e decidiu transferi-
lo para a sede da Vila da Cachoeira.1 O capitão João Rodrigues
Adorno e sua esposa Úrsula de Azevedo doaram o terreno para a nova
edificação.
A construção do novo “Hospital de Nossa Senhora de
Bellem” e de sua capela estendeu-se de 1729 até 1734. Vinte anos
depois, em 1754, o hospital e o templo anexo foram doados para a
Ordem dos Hospitaleiros de São João de Deus. De Portugal vieram,

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 133


em 1755, três religiosos para tomar posse do hospital e se juntarem
ao capitão Antônio Machado Velho. Ele entrou para a Ordem dos
Hospitaleiros e passou a ser chamado de frei Antônio Machado de
Nossa Senhora de Bellem. Em 1756, os religiosos mudaram o nome
da primeira casa de saúde edificada em Cachoeira para “Hospital São
João de Deus”. Entre 1756 e 1769, essa instituição foi administrada
pelo frei João de São Tomaz e Castro; entre 1770 e 1778, pelo frei José
de Sant’Anna Lyra. Em 1778, ano da morte desse último religioso,
a Coroa Portuguesa decidiu intervir na instituição. O então Juiz de
Fora de Cachoeira, José Antônio Alves de Araújo, nomeou o alferes
José Martins Bastos para a administração do hospital. Terminava,
assim, a atuação da Ordem de São João de Deus nessa instituição
que, até o ano de 1826, passou a ser dirigida por representantes régios
nomeados.
Em 18 de abril de 1826, D. Pedro I visitou Cachoeira e
recebeu a demanda, articulada pelo Juiz de Fora Dr. Antônio Vaz
de Carvalho, de autorizar a criação de uma irmandade da Santa
Casa da Misericórdia em Cachoeira para que esta administrasse o
hospital. A Decisão Imperial n. 64 de 20 de abril de 1826 estabeleceu
“que o hospital de S. João de Deus da dita vila seja ereto em Casa de
Misericórdia, com aqueles privilégios e prerrogativas que geralmente
são concedidos aos mais estabelecimentos de caridade”.2 A sociedade
cachoeirana organizou-se, então, para eleger a primeira mesa
administrativa da irmandade, que tomou posse no dia 28 de agosto
de 1826. Essa recém-fundada associação de leigos adotou, no início,
o compromisso da Irmandade de Nossa Senhora, Mãe de Deus,
Virgem Maria da Misericórdia criada em Lisboa no ano de 1498. A
irmandade fundada em Portugal dedicava-se à caridade e, desde 1564,
administrava o Hospital lisboeta de Todos os Santos, tendo servido de
modelo para a criação de associações semelhantes em outras partes do
território sob o domínio português. A Misericórdia de Cachoeira teve
compromisso próprio aprovado em 1853.3
Conforme mencionamos anteriormente, a capela que faz
parte do conjunto arquitetônico da Santa Casa da Misericórdia
de Cachoeira foi construída entre 1729 e 1734. Ela foi reformada e

134 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


ornamentada na época em que o hospital estava sob a administração
da Ordem dos Hospitaleiros de São João de Deus, como podemos
concluir a partir do seguinte registro:

Fazemos saber que estando em ato de visita nesta


Freguesia de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira,
mandamos visitar pelo reverendo Cônego José
de Oliveira Bessa, secretário da visitação, a igreja,
que novamente fez edificar para o hospital de São
João de Deus o padre João de São Tomaz e Castro
administrador que foi do mesmo hospital.4

Nessa ocasião, o visitador pediu que o citado administrador – atuante


entre 1756 e 1769 – apresentasse as confirmações de que a capela
do hospital havia recebido as licenças necessárias e que tinha sido
devidamente benzida. Também solicitou documentos sobre o dote que
“se animou para a fábrica, reparação e ornamentos da mesma igreja”.
No século XIX, outras obras foram realizadas na capela.5 A
pesquisa nas atas das reuniões da mesa administrativa da Santa Casa
da Misericórdia de Cachoeira revela os debates e as decisões acerca de
reparos e reformas no templo, bem como a origem da quantia que
seria investida: esmolas e loterias que a Santa Casa podia fazer para
arrecadar fundos. Na sessão de 27 de agosto de 1843, o irmão provedor
mostrou a necessidade de se consertar a capela-mor e o telhado do
templo. Nessa mesma ocasião, a mesa administrativa solicitou o
fornecimento de cal para a obra “projetada de frente da igreja”.6 Na
sessão de 17 de novembro de 1844, o irmão provedor sugeriu que
a quantia de cento e cinquenta mil réis, produto das loterias, fosse
investida no levantamento da torre da capela, o que foi aprovado pela
mesa.7
O testemunho publicado por Alexandre José de Mello
Morais, em 1866, nos informa que a fachada principal do templo foi
“acabada em 1845”, que a única torre sineira ficou pronta em 1847 e
que, naquela época, intencionava-se acrescentar outra “para o lado da
rua travessa que lhe corresponde”, mas essa obra nunca foi realizada.8

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 135


Segundo Aristides Milton, autor das Ephemérides Cachoeiranas, em
1846 a Santa Casa contratou o arquiteto dinamarquês Christ Ruge
para construir a torre sineira, sendo essa obra concluída por outro
profissional.9 No Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia,
consta que o frontispício da capela foi novamente reformado em
1890.10

Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 35 – Frontispício da Capela do Hospital São João de Deus, Santa Casa da


Misericórdia, Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

O frontispício da Capela do Hospital São João de Deus divide-


se verticalmente em duas partes. À direita da pilastra, está o portal

136 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


do templo composto por três arcos rebaixados emoldurados por
colunas nichadas e arcos plenos em alto-relevo. A porta principal,
a mais alta, é encimada pelo brasão da Misericórdia e as outras duas, as
menores que a ladeiam, por florão. Logo acima do portal da capela, há
duas fileiras sobrepostas de janelas de guilhotina. No alto da fachada,
após a cimalha real, está o frontão ondulado – com decoração em
alto-relevo e dois óculos – arrematado por cruz. À esquerda do frontão,
está a torre sineira encimada por uma balaustrada com pináculos nas
extremidades. Essa torre apresenta coroamento bulboso. Abaixo dela,
entre o cunhal da esquerda e a pilastra, há duas janelas de guilhotina
dispostas verticalmente e alinhadas horizontalmente com as outras
que compõem o frontispício. Mais abaixo, há um vão em arco pleno
fechado por porta de madeira e emoldurado por colunas nichadas e
arco pleno em alto-relevo.

A planta baixa

6 9

5 3 4
8 8

2 1 8

Térreo Primeiro Pavimento


0 5 10 0 5 10

Figura 36 – Planta baixa da Capela do Hospital São João de Deus, Santa Casa da
Misericórdia, Cachoeira. Desenho de Samantha Úrsula Sant’Anna, 2020.

A figura 36 nos apresenta a planta baixa da capela que


integra o conjunto arquitetônico da Santa Casa da Misericórdia de

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 137


Cachoeira. No térreo estão a nave única (1) ladeada por um corredor
(2), a capela-mor (3) ladeada por uma sala (4) e um corredor (5) com
acessos para a sacristia (6) que, por sua vez, tem acessos para o jardim.
No primeiro pavimento estão o coro (7), a galeria de tribunas (8) e o
salão nobre para as reuniões da mesa administrativa (9).11

A ornamentação interna

No interior da capela, há obras artísticas e decorativas dos


séculos XVIII, XIX e XX. A Ordem dos Hospitaleiros de São João de
Deus empreendeu reforma ornamental na segunda metade do século
XVIII e a Irmandade da Misericórdia realizou outras nos séculos
seguintes.

Figura 37 – Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

138 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Capela-mor

O retábulo da capela-mor é Neoclássico.12 Sua estrutura –


bastante simples se comparada aos exemplares que observamos no
capítulo anterior – é composta por mesa convexo-côncava, sacrário,
trono em degraus, pilastras, camarim e coroamento em arco pleno.
A ornamentação do retábulo prioriza o uso de fitas entrelaçadas,
festões, folhas, flores e vasos com flores. Na parte frontal da mesa do
altar, estão representados os instrumentos da paixão de Cristo: cruz,
coroa de espinhos, vara com esponja, lança, martelo e torquês. No
centro da portinhola do sacrário eucarístico, estão figurados os três
cravos que feriram as mãos e os pés do filho de Deus; eles estão na base
do crucifixo que irradia luz, simbolizando o sacrifício e a vitória de
Cristo sobre a morte.
No forro da capela-mor, há um medalhão pintado sobre um
fundo azul claro com representações de nuvens (fig. 38). Esse medalhão
é cercado por moldura ornamentada com folhagens, flores e quatro
tarjas. A cena central representa Nossa Senhora de pé sobre uma
nuvem, vestindo túnica vermelha e manto preto. Ela está cercada por
anjos. Um deles carrega um pequeno buquê de rosas, enquanto outro
segura uma coroa de flores e uma palma. A Virgem carrega o Menino
Jesus no braço esquerdo e, com a mão direita, estende uma coroa de
espinhos na direção de um frade que está ajoelhado. Considerando
que o religioso não tem tonsura, tem um cajado sob os joelhos e recebe
uma coroa de espinhos da Mãe de Jesus, podemos afirmar que se trata
de São João de Deus.13
João Cidade foi o nome que João de Deus recebeu ao nascer,
em 1495, na Vila de Montemor-o-novo, região do Alentejo, Portugal.
Aos oito anos, foi levado sem que seus pais soubessem para a Espanha,
onde foi pastor e soldado, tendo, inclusive, participado de algumas
campanhas militares. Aos quarenta e dois anos, entre 1538 e 1539,
assistiu a festa de São Sebastião, em Granada, quando ouviu o sermão
do padre mestre João de Ávila. As palavras desse sacerdote tocaram de
tal maneira o seu coração que ele saiu correndo pela cidade, gritando
que era pecador e clamando pela misericórdia divina. Enquanto gritava

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 139


e chorava, batia em seu peito com uma pedra, arranhava seu rosto e
chafurdava em poças de lama. João foi considerado louco e internado
no Hospital Real de Granada, onde foi açoitado.

Figura 38 – Forro da capela-mor. Foto: Chico Brito, 2020.

140 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


A pintura da capela do hospital de Cachoeira representa uma
importante passagem da vida de São João de Deus, ocorrida logo após
ele deixar o Hospital Real. João passou uma tarde diante de um altar
com as imagens do Cristo Crucificado, da Virgem Maria e de São João
Evangelista, pedindo fervorosamente algum sinal que indicasse como ele
deveria servir a Deus. Foi nessa ocasião que ele teve a visão de Maria e João
Evangelista descendo do altar e colocando uma coroa de espinhos sobre
a sua cabeça. Maria disse para ele: “Por espinhos e trabalhos, João, quer
meu filho que alcances grandes merecimentos”. Inundado pelo amor
divino, ele respondeu: “Trabalhos e espinhos, dados de vossa bendita
mão, rosas e cravos serão para mim”. A partir dessa visão, João Cidade
compreendeu que a sua missão era cuidar de pobres enfermos e, em
1540, abriu um hospital.14 O nome João de Deus foi-lhe conferido em
seguida por um bispo de Granada. João de Deus congregou religiosos
dedicados ao cuidado dos enfermos, mas a Ordem dos Hospitaleiros
só foi oficializada em 1556, seis anos após a sua morte.15
Não encontramos documentos escritos que nos permitam
afirmar que a pintura do forro da capela-mor do hospital de Cachoeira
foi realizada na época em que os frades da Ordem dos Hospitaleiros
administravam a instituição; talvez durante as intervenções empreendidas
pelo frei João de São Tomaz e Castro. Contudo, é possível que a
pintura mencionada no livro Brasil Histórico seja a mesma que estamos
analisando. Se assim for, ela é anterior a 1866, data da citada publicação
que nos legou o seguinte registro: “Há no forro da igreja uma pintura
de um desenho pouco aperfeiçoado, alusivo ao fim da instituição do
hospital de S. João de Deus”.16

Nave

Na nave podemos observar a talha neoclássica que recobre o


arco cruzeiro. Coroando esse elemento arquitetônico está o brasão da
Irmandade da Santa Casa da Misericórdia. Os dois retábulos colaterais
apresentam profusão de rocalhas e são, portanto, anteriores ao retábulo
da capela-mor e talha do arco cruzeiro.17

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 141


Os púlpitos nas ilhargas da nave têm elementos ornamentais
e estruturais correspondentes ao gosto estético dos séculos XVIII e
XIX. As tribunas localizadas no lado do evangelho, bem como as
falsas tribunas no lado da epístola, apresentam esquema decorativo
familiar ao Neoclássico. Entretanto, conforme ponderou o especialista
Luiz Freire, a composição tem uma “interpretação particular que pode
ter sido feita no século XX”.18
O coro, ao fundo da nave, ergue-se sobre duas colunas assentadas
sobre plintos. Em 1866, de acordo com o testemunho publicado por
Alexandre José de Mello Moraes, a irmandade pretendia erguer uma
galeria acima do coro “para as educandas e órfãs assistirem aos atos
religiosos”.19

142 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Notas
1 SANTANA, Tânia Maria Pinto de. Caridade, devoção e assistência hospitalar
aos pobres: o Hospital de São João de Deus da Vila da Cachoeira (1734-1770). In:
História e Cultura – Revista discente do Programa de Pós-graduação em História
da UNESP. Franca, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 35-55, ago-nov. 2017.
2 CERQUEIRA, João Batista de. Caridade, Política e Saúde: o Hospital São João
de Deus e a Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira, Bahia (1756-1872). 2015. f.
272, anexo E. Tese - Programa de Pós-Graduação em Ensino, Filosofia e História das
Ciências, Universidade Federal da Bahia, Universidade Estadual de Feira de Santana,
Salvador, 2015.
3 CERQUEIRA, João Batista de. Caridade, Política e Saúde: o Hospital São João de
Deus e a Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira, Bahia (1756-1872)... op. cit., p.167.
4 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Eduardo de Castro e Almeida (1613-1807). Provimento do Arcebispo
D. Joaquim Borges de Figueirôa, sobre a Capella do Hospital de S. João de Deus,
da Villa da Cachoeira. Caixa 49, doc. 9118. A grafia foi atualizada na transcrição.
5 BAHIA, Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do
Acervo Cultural da Bahia. Salvador: Secretaria da Indústria e Comércio, 1982. v. III
Monumentos e sítios do Recôncavo, II parte. p. 70.
6 Memorial da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira. Livro 04 Actas da Mesa
Administrativa, 1842-1847, p. 26-28.
7 Memorial da Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira. Livro 04 Actas da Mesa
Administrativa, 1842-1847, p. 66.
8 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 52-63.
9 MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas. Salvador: UFBA, 1979. p. 336
(Coleção Cachoeira, v. 1).
10 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção
do Acervo Cultural da Bahia... op. cit., p. 70.
11 Desenho baseado na planta baixa publicada em: BAHIA. Secretaria da Indústria
e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia... op.
cit., p. 69.
12 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção
do Acervo Cultural da Bahia... op. cit., p. 69.
13 Borges, Augusto Moutinho. Azulejaria de S. João de Deus em Portugal. Séculos
XVIII -XXI. Roteiro Cultural e Turístico. Lisboa: CLEPUL, 2013. p. 25.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 143


14 GOUVEA, Antonio de. Historia de la vida y muerte del glorioso S. Ivan de Dios
fundador del Ordem de la Hospitalidad. Madrid: por Melchor Alegre, 1669. p. 77-78.
15 PADRE ROHRBACHER. Vida dos Santos. São Paulo: Editora das Américas,
1959. p. 256.
16 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 52.
17 BAHIA. Secretaria da Indústria e Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção
do Acervo Cultural da Bahia... op. cit., p. 69.
18 Agradecemos o professor Luiz Freire pela gentil colaboração. Informação enviada
por e-mail no dia 06 de agosto de 2020. Sobre o neoclássico, consulte: FREIRE, Luiz
Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2006.
19 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 52.

144 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


CAPÍTULO 8

A CAPELA DE NOSSA SENHORA DA


CONCEIÇÃO DO MONTE

De acordo com a doutrina da Imaculada Conceição,


proclamada dogma no dia 08 de dezembro de 1854 pelo papa Pio IX,
Maria foi preservada imune de toda mancha do pecado original no
primeiro instante de sua concepção, ou seja, no exato momento em
que ela foi concebida no ventre de sua mãe. Assim está escrito na bula
papal Ineffabilis Deus:

[...] declaramos, proclamamos e definimos: a


doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem
Maria, no primeiro instante de sua conceição, por
singular graça e privilégio do Deus onipotente, em
vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero
humano, foi preservada imune de toda mancha da
culpa original, é revelada por Deus e por isso deve ser
crida firme e constantemente por todos os fiéis.1

O culto à Conceição de Maria é antigo entre os cristãos. Desde


a Idade Média têm-se notícias da realização de sua festa. Em 1477, por
determinação do papa Sisto IV, a celebração litúrgica (missa e ofício)
em louvor a Nossa Senhora da Conceição foi adotada em Roma.
Em 1708, o papa Clemente XI determinou que essa solenidade,
tradicionalmente comemorada no dia 08 de dezembro, fosse realizada
em todas as igrejas católicas do ocidente.2

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 145


Em Portugal, a devoção foi assimilada pela monarquia e
institucionalizada em 1646, quando o rei Dom João IV consagrou
o Reino e todas as suas colônias a Nossa Senhora da Conceição.3 Na
América Portuguesa, essa invocação mariana foi eleita padroeira de
muitas freguesias e suscitou a formação de várias irmandades.
Em Cachoeira, o culto a Nossa Senhora da Conceição foi
incentivado pelos frades carmelitas. De acordo com o livro escrito
pelo frei Agostinho de Santa Maria – obra publicada no ano de 1722
– havia na primitiva capela da Ordem Primeira um altar colateral com
a imagem da Conceição. Os moradores de Cachoeira rendiam-lhe
“grande veneração” e, já por volta de 1713, formaram irmandade. Em
seu relato, frei Agostinho de Santa Maria destacou a zelosa devoção
desses irmãos:

[...] estes a servem com fervor, e a festejam com muita


grandeza, em oito de Dezembro. Neste dia concorrem
todos os seus devotos a visitá-la, e não só neste dia, mas
em todo o decurso do ano a buscam, e com particular
devoção vão fazer na presença da Senhora as suas
novenas, encomendando-se a ela em todos os seus
trabalhos, doenças, e enfermidades, e em tudo acham
o favor, e amparo naquela milagrosa Mãe de Deus,
que é formosíssima.4

A Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Monte foi


oficialmente instituída em 1780.5 O livro Brasil Histórico de Alexandre
José de Mello Moraes nos informa que, em 1736, já havia princípios de
uma capela no “morro” localizado “no extremo de NO [Noroeste]”
de Cachoeira.6
Aristides Milton afirma nas Ephemérides Cachoeiranas que, em
1746, a casa de orações dedicada à Conceição de Nossa Senhora estava
pronta.7 Essa edificação foi reformada e ampliada na segunda metade
do século XVIII, pois, segundo Alexandre José de Mello Moraes, havia
“um velho livro” com registros de despesas referentes às obras realizadas
na capela-mor e no corpo do templo desde 1779 até 1795.8

146 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Em 1796, de acordo com Aristides Milton, as obras para
embelezar o edifício foram levadas adiante pelo administrador Manoel
Freire de Almeida e, em seguida, por Antônio João Bellas.9 A única
torre sineira ficou pronta em 1846.10
Em 1922, a torre sineira foi atingida por um raio. A notícia sobre
o ocorrido, publicada no jornal cachoeirano A Ordem, traz a informação
de que, naquela época, a capela era cercada por um gradeado de ferro:

Uma faísca desprendida em consequência do encontro


de nuvens sobrecarregadas de eletricidade diferente,
caiu, derrubando parte considerável da torre da igreja
da Conceição do Monte, fazendo na mesma estragos
de notável monta.

O bloco de pedra, rolando da altura de muitas dezenas


de metros, danificou completamente uma grande
extensão do gradeado de ferro que circunda a igreja,
cujo passeio de cimento ficou em estado lastimável,
ameaçando vir abaixo ainda outra parte não menor
da referida torre, que está a exigir urgente atenção de
quem de direito.

A versão popular é que é sobremodo interessante:


acreditou-se num castigo do céu, mandado por N. S.
da Conceição, em vista da respectiva irmandade não
haver feito celebrar-se este ano, a imponente festividade
em louvor da excelsa padroeira do universo.11

Curiosamente, segundo a notícia, o raio teria atingido a torre


no dia de Nossa Senhora da Conceição, oito de dezembro.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 147


Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 39 – Frontispício da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Monte,


Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

O frontispício da capela de Nossa Senhora da Conceição


do Monte divide-se verticalmente em três partes. Na parte central,
delimitada por pilastras, está o portal do templo composto por
três arcos rebaixados fechados por portas de madeira e sobrepostos
por cimalhas de sobreverga que simulam frontões triangulares.
Logo acima, há uma fileira de três janelas com arcos e ornamentação
semelhantes aos do portal. No alto da fachada, após a cimalha real,
está o frontão contornado por volutas e encimado por uma cruz. À
sua esquerda, observamos a torre sineira com base trapezoidal, vão

148 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


em arco pleno e cobertura piramidal revestida de embrechados de
louça. Abaixo da cimalha real, nas partes delimitadas por cunhais e
pilastras, há duas janelas alinhadas horizontalmente com as outras
três que encimam o portal do templo.

A planta baixa

8 9 11 11
7

5 6

4 3 4 11 11

1 2 10

Térreo Primeiro Pavimento


0 5 10 0 5 10

Figura 40 – Planta baixa da Capela de Nossa Senhora da Conceição do Monte,


Cachoeira. Desenho de Samantha Úrsula Sant’Anna, 2020.

A figura 40 nos apresenta a planta baixa da Capela de Nossa


Senhora da Conceição do Monte. No térreo estão o batistério (1), a
capela de Santa Cecília (2), a nave única (3) ladeada por corredores (4),
as capelas do Santíssimo Sacramento (5) e de São João (6), a capela-mor
(7), a sacristia (8) e o consistório (9). No primeiro pavimento estão
o coro (10) e as galerias de tribunas (11).12

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 149


A ornamentação interna

A ornamentação interna da Capela de Nossa Senhora da


Conceição do Monte é predominantemente Neoclássica, mas, como
veremos mais adiante, algumas obras artísticas foram realizadas no
século XX.

Figura 41 - Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

Capela-mor

O forro azul celeste com estrelinhas douradas em alto-relevo


e o retábulo principal do templo são típicos do gosto estético vigente
no século XIX. O retábulo apresenta mesa com formato de trapézio,
nicho para a imagem da padroeira, trono em degraus e seis plintos
sustentando colunas estriadas. Segundo o especialista Luiz Freire,
esse retábulo neoclássico – assim como o da Matriz de Cachoeira – foi

150 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


inspirado no modelo do retábulo-mor da Capela de Nosso Senhor
do Bom Jesus do Bonfim, localizada em Salvador. O citado modelo,
classificado pelo estudioso como tipo 1 – baldaquino arrematado por
cúpula vazada sobre volutas – muito repercutiu na Bahia durante o
século XIX, tendo sido reinterpretado em outros retábulos-mores de
igrejas localizadas em Salvador, no Recôncavo e no Sertão. Analisando
a estrutura e o arremate do retábulo principal da Capela de Nossa
Senhora da Conceição do Monte, Luiz Freire destacou o seguinte:

[...] sua estrutura rege-se pelo ritmo de um semicírculo,


de maneira que as seis colunas se sucedem, três em
cada lado sustentando duas seções de entablamento
curvilíneo, uma em cada lado, sobre as quais se ergue
um arco, no qual repousa uma calota semiesférica.
Essa calota é sustentada nas laterais por volutas que
se assentam nas seções de entablamentos. Dessa
calota partem volutas em “C” que se abrem para fora
e convergem para o teto da capela-mor, contrariando
o modelo [do retábulo-mor da Capela do Bonfim]
por suprimir a cúpula. Tivemos notícias de alterações
realizadas nesse retábulo-mor na ocasião do último
restauro promovido pelo IPHAN. Uma fotografia
em preto e branco, um pouco ilegível, publicada no
Inventário de Proteção do Acervo Cultural, induz-nos
a pensar que havia uma cúpula menor finalizando o
arremate.13

Nave

Na nave, podemos admirar a ornamentação neoclássica do


arco cruzeiro, cuja parte superior, contornada por volutas em “C”,
folhagens e rosas, apresenta tarja ao centro com o monograma de
Maria encimado por uma coroa.14 Ao lado do arco cruzeiro, há dois
retábulos com estrutura similar ao da capela-mor. Eles apresentam
mesa trapezoidal côncava, dois nichos sobrepostos para a colocação
de imagens de santos, quatro plintos encimados por colunas estriadas,
entablamento curvilíneo, arco, volutas, calota e cúpula vazada.15

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 151


Nas proximidades do arco cruzeiro, imediatamente ao lado
dos dois retábulos neoclássicos que acabamos de descrever, há duas
capelas laterais. Em 1866, de acordo com a descrição publicada por
Alexandre José de Mello Morais, o retábulo da capela de São João –
localizada no lado da epístola – estava “sendo reconstruído e coberto de
madeiramento”.16 Sobre a capela do Santíssimo Sacramento – localizada
no lado do evangelho – a única informação registrada em 1866 é que
nela ficava “a imagem do Senhor do Bonfim, a qual é bastante venerada
e reverenciada dos fiéis”.17 É provável que o retábulo e os ornatos dessa
capela tenham sido concluídos em 1872; data registrada na bandeira
do gradil de ferro que veda a sua entrada. 18
No interior da capela do Santíssimo Sacramento, há dois quadros
com molduras douradas contornadas por trama de ornatos típicos do
Neoclássico. As pinturas a óleo sobre tela medem aproximadamente
220 cm de altura e 188 cm de largura, cada uma.19 No quadrado da
direita, destaca-se um sacerdote hebreu com os braços abertos, situado
no centro da composição e posicionado de frente para o observador.
Ele segura um pão com a mão esquerda, colocando-o ao lado de um
cálice e de uma jarra de vinho que estão sobre a mesa (altar). Ao fundo
da cena, há outro sacerdote e, posicionado a sua frente, está um homem
ajoelhado com uma vela nas mãos. Diante do altar, há um homem de
perfil e, sentado no chão, um anjinho carregando a mitra do sacerdote.
Essa pintura representa a passagem do Antigo Testamento em que
Melquisedec, rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo, trouxe vinho e
pão e abençoou Abraão, prefigurando, assim, o sacramento da eucaristia
(Gn 14: 18-20). No outro quadro, estão representados dois personagens à
esquerda e dois à direita do Santíssimo Sacramento (a hóstia consagrada),
que paira acima de todos. Os personagens à esquerda são: uma figura
com a cabeça coberta por um véu, com as mãos unidas, e um sacerdote
hebreu segurando uma adaga para sacrificar um cordeiro. Na cena,
destaca-se a presença de um papa que toca o sacerdote hebreu com a
mão esquerda, como se quisesse interromper o golpe que será aplicado
sobre o pequeno animal e, com a direita, aponta a hóstia. Ao lado do
papa, há um homem ajoelhado portando a tiara pontifícia (espécie de
coroa usada pelos papas até o pontificado de Paulo VI, iniciado em
1963). A pintura ilustra e reforça a mensagem de que os sacrifícios

152 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


do Antigo Testamento foram superados pelo sacrifício de Cristo (o
Cordeiro de Deus, conforme Jo 1:29).20
De acordo com o Inventário de Bens Móveis e Integrados do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, os púlpitos nas
ilhargas da nave datam do século XX, mas as tribunas e o coro são do
século XIX.21 A pintura parietal que apresenta a repetição de florões
ovais e folhas em volutas, segundo informação prestada pelo professor
Isaac Tito dos Santos Filho, atual juiz presidente da Irmandade de Nossa
Senhora da Conceição do Monte, estava encoberta por camadas de
tinta e foi recuperada durante as intervenções do IPHAN/Programa
Monumenta, em 2008. Dispostos acima dessa pintura e entre as portas
da entrada principal da capela, estão quatorze pequenos quadros de
madeira, com formato quadrilobado, que apresentam, em alto-relevo,
os passos da paixão de Cristo: desde a sua condenação (Mt 27:59-61,
Mc 15:46-47, Lc 23:53-56, Jo 19:40-42) até o seu sepultamento (Mt
27:20-26, Mc 15:6-15, Lc 23:13-25, Jo 19:12-16).
A pintura no forro da nave foi realizada em 1938 pelo sanfelista
Nataniel Ruben Ribeiro Gonçalves (1905-1969), conforme assinatura
e data nela evidentes. Mede 100 cm de altura, 944 cm de largura e 2353
cm de comprimento.22 No medalhão central, emoldurado por ornatos
fitomorfos, está a representação de Nossa Senhora da Conceição
nimbada, com os olhos voltados para o alto, cabelos soltos e mãos
sobre o peito (fig. 42). Ela está cercada por anjos, veste túnica branca
e manto azul. Sob seus pés há uma lua crescente. A presença da lua
remonta às representações da Imaculada Conceição desde fins da Idade
Média. A inspiração bíblica é a mulher descrita no livro do Apocalipse:
“Então apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida com o
sol, tendo a lua debaixo dos pés e, sobre a cabeça, uma coroa de doze
estrelas” (Ap 12:1).
Debaixo do coro, no lado da epístola, está o acesso para a
capela dedicada a Santa Cecília. No seu interior há um retábulo
datado do século XX.23 O número 1888 inscrito na parte frontal da
mesa de altar, segundo nos informou o professor Isaac Tito, refere-se
ao fato desse retábulo ser “fruto de uma promessa pela abolição da
escravidão”.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 153


Figura 42 – Forro da nave. Foto: Chico Brito, 2020.

154 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Sacristia

Na sacristia, há um lavabo de pedra que mede 125 cm de altura,


87 cm de largura e 50 cm de profundidade. Segundo o Inventário de
Bens Móveis e Integrados do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, a peça é, provavelmente, do início do século XIX.24

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 155


Notas
1 DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé
e moral da Igreja Católica. Traduzido com base na 40º edição alemã (2005), aos
cuidados de Peter Hünermann, por José Marino Luz e Johan Konings. São Paulo:
Paulinas; Loyola, 2006. n. 2803, p. 615.
2 Consulte o verbete IMACULADA em FIORES, Stefano de; MEO, Salvatore (Dir.).
Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995. p. 598-620.
3 FARIA, João André de Araújo. A restauração prodigiosa de Portugal, 1640-1668.
Seropédica. 2010. f. 22-87. Dissertação - Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2010.
4 SANTA MARIA, Fr. Agostinho de. Santuario Mariano, e Historias das Imagens
milagrosas de Nossa Senhora, e milagrosamente manifestadas, e apparecidas em
o Arcebispado da Bahia, e mais Bispados, de Pernambuco, Paraiba, Rio Grande,
Maranhão, e Grão Pará. Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galram, 1722. Tomo
9. p. 223. A grafia foi atualizada na transcrição.
5 Universidade Católica do Salvador. Laboratório Reitor Eugênio Veiga, Capelas
Filiais. Relação das Irmandades, e Confrarias existentes na Freguesia da Cidade de
Cachoeira com declaração do ato que as constituiu, e nota dos bens que formão o
seo patrimonio. 1862. fl. 1v.
6 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 64.
7 MILTON, Aristides. Ephemerides cachoeiranas. Salvador: UFBA, 1979. p. 230.
(Coleção Cachoeira, v. 1),
8 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 64.
9 MILTON, Aristides. Ephemerides cachoeiranas... op. cit., p. 230.
10 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 64.
11 Jornal A Ordem. Edição de 13/12/1922. Salvador. Biblioteca Central do Estado
da Bahia. A grafia foi atualizada na transcrição.
12 Desenho baseado na planta baixa publicada em: BAHIA. Secretaria da Indústria e
Comércio. IPAC-BA: Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia. Salvador:
Secretaria da Indústria e Comércio, 1982. vol. III Monumentos e Sítios do Recôncavo,
II parte. p. 77.
13 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As relações centro-periferia nos retábulos baianos
do Recôncavo. In: SANT’ANNA, Sabrina Mara; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro;
CAMPOS, Adalgisa Arantes (Org.). Cultura artística e conservação de acervos coloniais.
Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural, 2015. p. 71-72.

156 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


14 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Bahia. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira, v. 35, módulo II, Recôncavo e Chapada Diamantina.
Salvador: Ministério da Cultura/IPHAN, 1995. ficha BA/95-0085.0019.
15 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira... op. cit., fichas BA/95-0085.0002 e BA/95 0085.0003.
16 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 64.
17 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 64.
18 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira... op. cit., fichas BA/95-0085.0005, BA/95-0085.0022
BA/95-0085.0024, BA/95 0085.0025 e BA/95-0085.0090/91.
19 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira... op. cit., fichas BA/95-0085.0024, BA/95-0085.0025.
20 Agradecemos ao professor Isaac Tito dos Santos Filho, atual juiz presidente da
Irmandade de Nossa Senhora da Conceição do Monte, pela gentil colaboração e
informações prestadas acerca destas pinturas.
21 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora
da Conceição do Monte, Cachoeira... op. cit., fichas BA/95-0085.0007/8, BA/95
0085.0013/18 e BA/95 0085.0020.
22 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira... op cit., ficha BA/95-0085-0023.
23 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira... op. cit., ficha BA/95-0085.0006.
24 Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados. Igreja de Nossa Senhora da
Conceição do Monte, Cachoeira... op. cit., ficha BA/95-0085.0026.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 157


158 AS IGREJAS DE CACHOEIRA
CAPÍTULO 9
A CAPELA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO DO
SANTÍSSIMO CORAÇÃO DE MARIA DO MONTE FORMOSO

A capela do “Rosarinho”, ou dos “ Nagôs”, como é


popularmente conhecida, honra duas invocações marianas: Nossa
Senhora do Rosário e o Santíssimo Coração de Maria. Conforme
explicamos no capítulo 6, o culto à Virgem do Rosário iniciou-se no
século XV. A primeira confraria foi fundada no convento dominicano da
Cidade de Colônia, na Alemanha, em 1475. Essa devoção foi difundida
e rapidamente assimilada em Portugal, onde, desde o século XV, suscitou
a formação de associações religiosas de leigos; muitas delas compostas
“por homens e mulheres de cor”.1 Na América Portuguesa, inúmeras
irmandades denominadas na época “de pretos” elegeram a Virgem do
Rosário como padroeira. Só na Cidade do Salvador, por exemplo, havia
no século XVIII sete agremiações intituladas “Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos”.2
O culto ao Santíssimo Coração de Maria, por sua vez, foi
difundido com grande êxito a partir do século XVII. São João Eudes
(1601-1680) foi chamado “pai, doutor e primeiro apóstolo” dessa
devoção pelos papas Leão XIII (1903) e Pio X (1909). Em 1643, ele
fundou a Congregação de Jesus e Maria em Caen, na França, e, em
1648, celebrou a primeira festa litúrgica do Coração de Maria na
diocese de Autun. Naquela ocasião, a missa e o ofício que ele compôs
para a solenidade foram aprovados pelo bispo. Em 1674, João Eudes
recebeu do papa Clemente X seis bulas com indulgências para as
confrarias do Sagrado Coração de Maria instituídas nos seminários de
sua congregação. Ele fundou também a Sociedade do Coração da Mãe

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 159


Mais Admirável (associação religiosa semelhante às ordens terceiras) e
escreveu o livro Le Cœur Admirable de la Très Sainte Mère de Dieu (O
Coração Admirável da Santíssima Mãe de Deus). Nos séculos seguintes,
o culto desenvolveu-se e outras confrarias, sociedades, congregações e
institutos religiosos foram fundados. Em 1855, o papa Pio IX aprovou
missa e ofício próprios para a festa do Coração de Maria; a composição
autorizada foi inspirada no texto do padre João Eudes.3
Em Cachoeira, a associação religiosa de leigos que construiu a
Capela de Nossa Senhora do Rosário do Santíssimo Coração de Maria
do Monte Formoso foi oficialmente instituída em 1727.4 No século
XVIII, ela era denominada “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
dos Pretos” e os irmãos reuniam-se na matriz. No início do século
XIX, em um documento que compõe o processo de autorização para
essa agremiação religiosa construir sua capela própria, encontramos a
designação “Irmandade do Santíssimo Coração do Rosário de Maria”,
indicando-nos que, nesse período, a devoção ao Coração da Virgem já
havia sido incorporada.5 Em 1852, a irmandade reformou o seu livro
de compromisso e a partir de então as fontes documentais registram
o título “Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Santíssimo
Coração de Maria”, quase sempre seguido do nome do local onde se
edificou a capela: no “Monte Formoso”.6 Salientamos que no século
XVIII havia em Cachoeira duas irmandades dedicadas à Vigem do
Rosário. A primeira oficialmente instituída foi a “dos pretos”. A outra,
composta por “brancos”, só foi legalmente fundada em 1749, conforme
explicitamos no capítulo 6.7 Essas duas irmandades com perfis sociais
distintos conviveram no interior da matriz por muito tempo.
Em 1789, a Irmandade do Rosário dos Pretos recebeu a doação
de 18 braças (medida cuja unidade corresponde ao comprimento de
dois braços abertos e estendidos)8 de terras no Caquende. Os doadores
foram o devoto Ponciano Pereira Lima e sua esposa Dona Jozefa de
Souza. A escritura de doação deixa claro que a finalidade das terras
era a construção de uma capela.9 De posse do terreno, a irmandade
pediu permissão à rainha D. Maria I para edificar seu templo próprio.
Em 1794, a rainha solicitou o parecer do governador da Bahia. Este,
por sua vez, solicitou o parecer do funcionário administrativo que
atuava na região, o ouvidor da comarca, que, antes de emitir opinião,

160 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


averiguou as contas da associação religiosa e as condições em que ela se
encontrava no interior da Matriz de Cachoeira. O ouvidor constatou
que a Irmandade do Rosário dos Pretos tinha rendimentos e que estes
advinham dos anuais que recolhia dos irmãos, das esmolas que recebia
e também da prática de emprestar dinheiro a juros (costume recorrente
na época).10 Os depoimentos das testemunhas que o ouvidor intimou
evidenciaram a necessidade da associação religiosa construir capela
própria. Vejamos o testemunho do alferes José Paes Cardoso:

[...] disse que por ser morador nesta mesma Vila sabe
por ver, que os ditos irmãos tem um altar da senhora
do Rosário na igreja paroquial desta vila porem que em
razão de haver na dita igreja a sacristia da Irmandade
do Santíssimo e a própria do pároco, não tem os ditos
irmãos de fazerem outra própria da sua irmandade nem
casa para o consistório, e mesa dela, a qual fazem com
muito acanhamento em um corredor e igualmente não
tem aonde façam sepulturas próprias da sua irmandade
sendo preciso pagá-las para os irmãos mortos [...]11

Sabemos, portanto, que a Irmandade do Rosário dos Pretos


não tinha instalações adequadas para reunir sua mesa administrativa e
que não possuía sepulturas no interior da matriz para enterrar os seus
irmãos, o que lhe gerava despesas. Diante das informações coletadas,
o ouvidor da comarca, Joaquim Antônio Gonzaga, compreendeu a
necessidade da irmandade construir sua capela própria, mas destacou
a possibilidade da obra não ser concluída por falta de dinheiro, caso os
irmãos planejassem construir um edifício muito suntuoso. Em 1796, o
governador da Bahia sugeriu que a rainha permitisse a edificação com
a ressalva de que os irmãos se obrigassem “a fazer uma capela com as
comodidades que necessitam, que não seja de muito custo e despesa,
e proporcionada aos rendimentos da irmandade”.12 Esse processo de
permissão arrastou-se até o início do século XIX, quando recebeu parecer
positivo do arcebispo da Bahia, em 1806, e despacho final em 1807.13
Não encontramos documentos capazes de elucidar porque a
capela só começou a ser edificada na década de 1840, e não no Caquende,

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 161


mas no Monte Formoso. Segundo escreveu Aristides Milton no seu
livro Ephemérides Cachoeiranas: “em 1841, tratou-se pela primeira
vez de obter o terreno necessário para a edificação da igreja de Nossa
Senhora do Rosário do Monte Formoso, nesta cidade, a qual foi entregue
ao culto público em sete de fevereiro de 1852”.14 Neste mesmo ano,
conforme mencionamos anteriormente, a irmandade reformou o seu
livro de compromisso. As 18 braças de terras que lhe foram doadas
no Caquende ainda lhe pertenciam15 e foram novamente citadas no
inventário de bens da irmandade de 1862.16

Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 43 – Frontispício da “Capela do Rosarinho” ou “dos Nagôs”, Cachoeira.


Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

162 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


O frontispício da Capela de Nossa Senhora do Rosário
do Santíssimo Coração de Maria do Monte Formoso tem portal
composto por três arcos rebaixados fechados por portas de
madeira. Logo acima, há três janelas retangulares dispostas em fileira
horizontal. No alto do edifício, após a cimalha real, está o frontão –
com pequeno óculo circular ao centro – encimado por cruz e ladeado
por dois pináculos que coroam os cunhais. Em 1866, de acordo
com o testemunho publicado por Alexandre José de Mello Moraes,
a irmandade tinha acabado de construir, ao lado de sua capela, o
“pequeno cemitério, que é murado e fechado por grades de ferro”.17

A ornamentação interna

A ornamentação da Capela de Nossa Senhora do Rosário do


Santíssimo Coração de Maria ainda não estava concluída em 1866.
A descrição redigida e publicada nesse mesmo ano nos informa o
seguinte:

Com o auxílio de esmolas, tiradas entre seus fiéis


irmãos, conseguiram aumentar as obras desta capela,
cujos altares laterais precisam ser acabados.
O interior necessita de muito reparo e aperfeiçoamento.
Em um modesto altar-mor está a imagem da padroeira,
no da direita as duas de Nossa Senhora dos Aflitos, e de
Nossa Senhora das Angústias; no da esquerda, que é
provisório, tem um painel da adoração dos Reis Magos
pintado em pano.18

Lamentavelmente, a decoração original do século XIX não


chegou aos nossos dias. Em agosto de 2006, foram finalizadas as obras
de recuperação da capela e do cemitério que lhe é contíguo, por meio
do Programa Monumenta do Ministério da Cultura. De acordo com
o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, antes dessas
obras: “no interior da igreja que estava em desuso não existia vestígio
do altar, elementos decorativos ou qualquer adorno”.19

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 163


Atualmente, há na capela-mor a imagem do Cristo crucificado,
um nicho com a imagem de Nossa Senhora (ela porta o rosário e o
sagrado coração, símbolos que representam as duas invocações marianas
honradas no templo) e uma mesa de madeira entalhada que, segundo
nos informou a especialista Suzane Tavares de Pinho Pêpe:

é da autoria de Boaventura da Silva Filho (Itaberaba,


BA, 7/11/1929 – Cachoeira, 26/06/1992), escultor
autodidata e um dos mais importantes mestres da
escultura brasileira do século XX, que associa o
imaginário religioso católico ao imaginário do
candomblé. Ele assinava “B.S.F. Louco”, apelido que
o tornou conhecido no início dos anos 1970 nas
cidades de Cachoeira e do Salvador, assim como entre
marchands e críticos de arte em Salvador, Recife, Rio
de Janeiro e São Paulo.
Na mesa de altar da Capela de Nossa Senhora do Rosário
do Santíssimo Coração de Maria do Monte Formoso.
se vê representada a última ceia, tema recorrente nos
relevos escultóricos que o artista produziu na década
de 1970, sobretudo. Na apresentação da cena bíblica,
Louco nos mostra a sua independência em relação ao
realismo perspectivo e proporções da figura humana,
além de adaptar as formas ao espaço retangular
inteiramente preenchido. São dois pontos de vista,
um dirigido aos personagens (Cristo e seus discípulos),
outro, à toalha que pende da mesa representada, de
modo que o pão e o vinho devem ser imaginados pelo
observador. A sequência dos rostos talhados cria um
ritmo peculiar, o que também ocorre com os braços
flexionados e texturas estriadas de algumas áreas. A
autoria da mesa é também identificada pelos detalhes
do entalhe: as cabeças alongadas e os traços fisionômicos
dos personagens – olhos e sobrancelhas retos, nariz
longo e fino, lábios finos e cabelos escamados (ou
estriados) – são característicos da maioria das esculturas
do Louco, cujas imagens de olhos fechados enfatizam
a introspeção religiosa e o mistério da espiritualidade,
elemento simbólico da sua obra.20

164 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


Figura 44 - Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 165


Notas
1 SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. São Paulo: Ed.
Nacional, 1978. p. 38.
2 REGINALDO, Lucilene. Os Rosário dos Angolas: irmandades negras, experiências
escravas e identidades africanas na Bahia Setecentista. 2005. f. 75. Tese - Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora
africana no Brasil Colonial. 1999. 402 f. Tese - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
3 Consulte o verbete CORAÇÃO IMACULADO em FIORES, Stefano de; MEO,
Salvatore (Dir.). Dicionário de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995. p. 325-335. LE
BRUN, Charles. BLESSED, Jean Eudes. The Catholic Encyclopedia. v. 5. New York:
Robert Appleton Company, 1909. BARBOSA, David Sampaio. A Irmã Lúcia e a
consagração ao Imaculado Coração de Maria. Enquadramento Histórico de uma
devoção. Didaskalia, Lisboa, XLVII, 2017, p.187-188. MOTT, Luiz. Os Sagrados
Corações de Jesus e Maria no Brasil: história, inventário e roteiro de pesquisa. In:
SANT´ANNA, Sabrina Mara; FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro; CAMPOS, Adalgisa
Arantes (Org.). Cultura Artística e Conservação de Acervos Coloniais. Belo Horizonte:
Clio Gestão Cultural, 2015. p. 114-116.
4 Universidade Católica do Salvador. Laboratório Reitor Eugênio Veiga. Capelas
Filiais. Relação das Irmandades, e Confrarias existentes na Freguesia da Cidade de
Cachoeira com declaração do ato que as constituiu, e nota dos bens que formão o
seo patrimonio. 1862, fl. 1v.
5 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do arcebispo da Bahia D. frei José de
Santa Escolástica ao príncipe regente (D. João) sobre a representação do Juiz e irmãos
da Mesa da Confraria de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Cachoeira, na qual
solicitavam licença para construir uma capela onde pudessem colocar a imagem da
dita santa. Anexo 10 docs. Caixa 242, doc. 16743, fl. 5.
6 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Seção de Arquivos Colonial/
Provincial. Governo da Província. Religião. Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
do Santíssimo Coração de Maria – Capela do Monte Formoso, Cachoeira. Maço 5255.
7 Universidade Católica do Salvador. Laboratório Reitor Eugênio Veiga. Capelas
Filiais. Relação das Irmandades, e Confrarias existentes na Freguesia da Cidade de
Cachoeira com declaração do ato que as constituiu, e nota dos bens que formão o
seo patrimonio. 1862, fl. 1.

166 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


8 Consulte o verbete BRAÇA em BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e
latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728, v. 2, p. 174.
9 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do [governador e capitão-general da
Bahia, D. Fernando José de Portugal] à Rainha [D. Maria I] sobre o requerimento do
juiz e mais irmãos da Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da
Vila de Cachoeira, solicitando licença para construírem uma capela. Anexo 4 docs.
Caixa 200, doc. 14452, fl 9.
10 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do [governador e capitão-general da
Bahia, D. Fernando José de Portugal] à Rainha [D. Maria I] sobre o requerimento do
juiz e mais irmãos da Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da
Vila de Cachoeira, solicitando licença para construírem uma capela. Anexo 4 docs.
Caixa 200, doc. 14452, fl 3.
11 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do [governador e capitão-general da
Bahia, D. Fernando José de Portugal] à Rainha [D. Maria I] sobre o requerimento do
juiz e mais irmãos da Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da
Vila de Cachoeira, solicitando licença para construírem uma capela. Anexo 4 docs.
Caixa 200, doc. 14452, fls 12-13. A grafia foi atualizada na transcrição.
12 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do [governador e capitão-general da
Bahia, D. Fernando José de Portugal] à Rainha [D. Maria I] sobre o requerimento do
juiz e mais irmãos da Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos da
Vila de Cachoeira, solicitando licença para construírem uma capela. Anexo 4 docs.
Caixa 200, doc. 14452, fls. 2. A grafia foi atualizada na transcrição.
13 Arquivo Histórico Ultramarino. Conselho Ultramarino Brasil-Bahia. Projeto
Resgate - Bahia Avulsos (1604-1828). Carta do arcebispo da Bahia D. frei José de
Santa Escolástica ao príncipe regente (D. João) sobre a representação do Juiz e irmãos
da Mesa da Confraria de Nossa Senhora do Rosário da Vila de Cachoeira, na qual
solicitavam licença para construir uma capela onde pudessem colocar a imagem da
dita santa. Anexo 10 docs. Caixa 242, doc. 16743, fls. 1.
14 MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas. Coleção Cachoeira, vol. 1,
Salvador: UFBA, 1979. p. 19. A grafia foi atualizada na transcrição.
15 Arquivo Público do Estado da Bahia, Salvador. Seção de Arquivos Colonial/
Provincial. Governo da Província. Religião. Livro do Tombo dos bens das ordens
terceiras, confrarias e irmandades, Cachoeira, 1852-1870. Doc. 5267, fl. 10 v.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 167


16 Universidade Católica do Salvador. Laboratório Reitor Eugênio Veiga. Capelas
Filiais. Relação das Irmandades, e Confrarias existentes na Freguesia da Cidade de
Cachoeira com declaração do ato que as constituiu, e nota dos bens que formão o
seo patrimonio. 1862. fl. 1v.
17 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 78. A grafia foi atualizada na transcrição.
18 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p.78. A grafia foi
atualizada na transcrição.
19 Notícia publicada no dia 22/08/2006. <http://portal.iphan.gov.br/noticias/
detalhes/1676/ministro-entrega-obras-de-restauro-em-cachoeira-ba>. Acesso em
03/08/2020.
20 Agradecemos a professora Suzane Tavares de Pinho Pêpe pela gentil colaboração.
Texto enviado por e-mail no dia 24/08/2020. Sobre a trajetória e a obra do Louco,
consulte: PÊPE, Suzane Tavares de Pinho. Louco, Maluco e seus seguidores e a formação
de uma escola de escultura em Cachoeira (Bahia). 2015. 304 f. Tese - Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.

168 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


CAPÍTULO 10
A CAPELA DE NOSSA SENHORA DA
CONCEIÇÃO DOS POBRES

Conforme explicamos no capítulo 8, em 1646, Portugal e


suas colônias foram consagradas a Nossa Senhora da Conceição.
Na América Portuguesa, essa invocação mariana foi difundida com
grande êxito e, não por acaso, tornou-se padroeira de muitas freguesias
e irmandades. Em Cachoeira, a primeira associação religiosa de leigos
dedicada ao culto da Imaculada Conceição de Maria foi formada
por volta de 1713. Anos mais tarde, em 1780, a Irmandade de Nossa
Senhora da Conceição do Monte foi oficialmente instituída. Sua
capela própria, localizada “no extremo de NO [Noroeste] desta
cidade, e sobre um morro”, foi edificada e ampliada entre 1736 e o
final do século XVIII.1 A Capela de Nossa Senhora da Conceição dos
Pobres, por sua vez, foi construída na segunda metade do século XIX.
De acordo com as informações registradas por Aristides Milton nas
Ephemerides Cachoeiranas:

Em 1872, alguns devotos comprometeram-se a


reedificar a capela da Conceição dos Pobres, existente
no bairro do Caquende, desta cidade, e cuja primeira
pedra tinha sido lançada em 1º de janeiro de 1855.2

Em 1866, a capela foi descrita no livro de Alexandre José de Mello


Moraes como “uma simples casinha, tendo na frente um adro tijolado,
e com uma cruz erguida de madeira pintada”.3

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 169


Arquitetura e ornamentação

O frontispício

Figura 45 – Frontispício da Capela de Nossa Senhora da Conceição dos Pobres,


Cachoeira. Desenho de Antônio Wilson Silva de Souza, 2020.

O frontispício da Capela de Nossa Senhora da Conceição


dos Pobres divide-se verticalmente em quatro partes, sendo uma delas
delimitada por cunhal e pilastra e outras duas por pilastras. Na parte
mais larga está a entrada principal do templo: um arco pleno fechado
por porta de madeira e encimado por ornamento com cruz ao centro.
Ladeando essa parte, há outros dois arcos plenos menores e mais
estreitos também fechados por portas de madeira. Na extremidade
direita do frontispício, há uma janela retangular. No alto da fachada
está a cimalha e, mais acima, dois pináculos. O frontão dessa capela
é triangular e recuado, apresenta óculo em forma de losango e um
ornato fitomorfo. Esse frontão é arrematado por cruz e não se estende
sobre a parte que apresenta a janela.

170 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


A ornamentação interna

O interior da Capela de Nossa Senhora da Conceição dos


Pobres é simples de decoração. No pequeno salão onde os devotos
se reúnem, há um retábulo neoclássico do tipo parietal arrematado
por sanefa. Ele apresenta mesa trapezoidal, camarim em arco pleno,
três nichos para imagens de santos, trono em degraus e duas colunas
estriadas (fig. 46). Segundo o especialista Luiz Freire, durante
o século XIX – tanto em Salvador, quanto no interior da Bahia –
esse tipo de retábulo “teve uma repercussão considerável graças à
simplicidade e à economia do modelo, com poucas colunas – máximo
quatro – e uma estrutura agarrada à parede, de fácil execução, e que
exigia menor perícia dos entalhadores do que os retábulos de tipo
baldaquino”4 executados, conforme demonstramos nos capítulos 6
e 8, na Matriz de Nossa Senhora do Rosário e na Capela de Nossa
Senhora da Conceição do Monte.

Figura 46 - Vista do interior do templo. Foto: Chico Brito, 2020.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 171


Notas
1 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico. Rio de Janeiro: Typographia
dos Editores, 1866. Tomo I. p. 63-64.
2 MILTON, Aristides. Ephemerides Cachoeiranas. Salvador: UFBA, 1979. p. 323
(Coleção Cachoeira, v. 1)
3 MORAES, Alexandre José de Mello. Brasil Histórico... op. cit., p. 79.
4 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. A talha neoclássica na Bahia. Rio de Janeiro:
Versal, 2006. p. 201.

172 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


GLOSSÁRIO
* A definição de cada verbete foi copiada integralmente, ou
parcialmente, dos seguintes dicionários especializados:

ALBERNAZ, Maria Paula; LIMA, Cecília Modesto. Dicionário


ilustrado de arquitetura. São Paulo: ProEditores, 1997-1998. 2 v.

ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado; MACHADO,


Reinaldo Guedes. Barroco mineiro: glossário de arquitetura e
ornamentação. 3. ed. rev. e ampl. Belo Horizonte: Fundação João
Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1996.

DAMASCENO, Sueli. Igrejas Mineiras: Glossário de bens móveis.


Ouro Preto: Instituto de Artes e Cultura/UFOP, 1987.

Verbetes

ACANTO – Ornato que representa as folhas muito largas e recortadas


da planta também denominada acanto. Nas construções brasileiras foi
utilizado em prédios de estilo barroco e eclético, realçando inúmeros
elementos da edificação feitos de diferentes materiais.

ALPENDRE – Genericamente, espaço coberto e aberto incorporado


à construção. Em geral possui maior comprimento que largura. Pode
ser saliente em relação à edificação da qual faz parte ou formar nesta um
espaço reentrante. Quando forma saliência, pode ser constituído pelo
prolongamento do telhado principal do edifício ou possuir cobertura
independente. No último caso tem usualmente seu telhado sustentado
de um lado por uma parede da construção e do outro por colunas ou
pilares. Foi muito utilizado nas antigas construções, principalmente em
prédios rurais. Seu uso é importante em muitas regiões brasileiras para
amenizar os efeitos do clima quente no edifício. Pode ser totalmente ou
parcialmente fechado por guarda-corpos, rótulas ou até mesmo vidraças.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 177


ALTO-RELEVO – Relevo feito na superfície de um elemento da
construção no qual os motivos representados ressaltam-se inteiramente
ou quase que inteiramente, apresentando-se como que somente pregados
ao fundo. Em geral considera-se com alto-relevo quando mais que 2/3
da profundidade dos motivos representados formam um volume.
ARCADA – 1. Série de arcos contíguos ao longo de um mesmo
paramento. Comumente é usado em fachadas. 2. Passagem ou galeria
que possui pelo menos ao longo de um dos seus lados uma série de
arcos contíguos. É comumente usada em pátios internos. 3. Conjunto
de arcos em sequência e em alinhamento em um mesmo ambiente,
geralmente formando uma galeria.
ARCAZ – Móvel semelhante a uma cômoda, geralmente de dimensões
consideráveis, tampo fixo, gavetões com puxadores metálicos e, às vezes,
portas dispostas nos centros e nas laterais. Quase sempre confeccionado
em madeira de lei, é usado nas sacristias das igrejas para guardar alfaias.
ARCO ABATIDO – Arco formado por círculos de raios diferentes
entre si, sendo sua flecha menor que a metade da distância entre seus
pontos de origem.
ARCO CRUZEIRO – Em igrejas, arco que separa a nave ou o transepto
da capela-mor. Nas antigas igrejas, tem frequentemente um tratamento
especial. Revestido de madeira ou cantaria, possui ricos trabalhos em
talha ou em pedra e composições escultóricas sobrepostas. Muitas
igrejas possuem junto ao arco cruzeiro dois altares ou dois retábulos.
ARCO PLENO – Arco em forma de uma semicircunferência, tendo
portanto sua flecha igual ao raio que serviu para traça-lo.
ARCO REBAIXADO – Arco formado por um segmento de círculo
cujo centro está abaixo da linha das impostas.
ARO – Conjunto de peças de pedra ou madeira que forma o vão de
portas e janelas. É composto por verga, ombreiras e, no caso de janelas,
peitoril.

178 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


ATLANTE – Ornato em forma de figura [ou meia figura] de homem
a sustentar um elemento da construção, como coluna, cornija ou
pilastra. Foi usado na ornamentação interna de muitas das antigas
igrejas barrocas, onde a figura de homem sustentava em geral o coro.
O ornato correspondente com figura [ou meia figura] feminina é
chamado cariátide.

ÁTRIO – 1. Recinto ou compartimento na entrada do prédio. O


termo é mais aplicado quando referido a antigas construções. Quando se
constitui em um compartimento, é frequentemente chamado vestíbulo,
particularmente não se tratando de edifícios suntuosos. 2. Em prédios
de maior porte, em geral suntuosos, amplo recinto de distribuição de
circulação. Comumente possui esmerado acabamento com o uso de
materiais nobres. O termo é mais aplicado quando referido a antigas
construções. Nos edifícios mais recentes é frequentemente chamado hall.

BALAUSTRADA – anteparo de proteção, apoio, vedação ou


ornamentação utilizado frequentemente em balcão, terraço, alpendre,
coroamento de prédio ou como guarda-corpo de escadas. O termo
é mais empregado quando referido ao anteparo formado por uma
série de elementos iguais, principalmente balaústres, com o mesmo
espaçamento, arrematados por corrimão ou travessa.

BALAUSTRE – Pequena coluna ou pilar que forma junto com outros


elementos iguais, dispostos em intervalos regulares, uma balaustrada.
Constitui-se no elemento de sustentação de travessa ou corrimão.

BALCÃO – Corpo saliente em relação à fachada externa ou interna de


uma edificação em geral constituído pelo prolongamento do piso do
andar em que se encontra e no qual se abre porta-janela, permitindo a
passagem do interior do edifício. Pode estar em balanço ou sustentado
por elementos construtivos, como consolos ou mãos-francesas. Possui
como proteção um guarda-corpo vazado ou cheio.

BANDEIRA – Caixilho situado na parte superior de portas e janelas


destinado a melhorar a iluminação e ventilação no interior de uma

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 179


edificação. Em geral é envidraçada. Às vezes possui venezianas. Pode
ser fixa ou móvel. Quando móvel, sua abertura é usualmente feita por
meio de basculante manobrado através de alavanca. Tem também uma
função decorativa, sendo muitas vezes ornamentada.

BEIRA-SOBEIRA – Beirada do telhado cujas telhas extremas se


apoiam em cimalha de boca-de-telha constituída por duas duas fiadas de
telhas engastadas no alto de parede externa. A fiada superior é chamada
de beira e a fiada inferior é chamada de sobeira. É também chamada
beira-seveira, beira sob-beira e beiral em algeroz.

BULBOSO – Atribuição dada aos elementos, em geral arrematantes


de torres, que têm forma de um bulbo. Os coroamentos bulbosos foram
usados principalmente nas torres de igrejas do século XVIII.

CAIXOTÃO – Elemento feito em madeira composto de um painel


retangular ou poligonal circundado por molduras salientes usado na
formação de forros. Os caixotões são unidos no teto por vigas de madeira
chamadas madres ou por peças de madeira não estruturais. Quando
os caixotões formam um reticulado no forro, este é denominado forro
artesoado.

CAMARIM – Em igrejas, vão situado acima ou na parte interna de


altares ou arcos cruzeiros onde se encontra o trono para exposição do
Santíssimo Sacramento ou imagem de santo. Nas antigas construções
muitas vezes era delimitado por molduras ou perfis em talha trabalhada
e possuía pintura decorativa ou talha em baixo-relevo nos panos laterais
e de fundo. É também chamado tribuna do trono.

CANTARIA – Alvenaria de pedras, talhadas uma a uma, de modo a


se ajustarem perfeitamente umas às outras sem necessidade de material
ligante. Para tanto, é necessário seguir regras específicas do corte da
pedra estabelecidas na técnica estereotomia. Em geral [a cantaria] era
utilizada em alguns elementos, como cunhais e entablamentos, ou em
partes nobres dos edifícios. Seu uso foi praticamente abandonado com

180 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


o emprego de materiais e técnicas mais modernos e por haver se tornado
excessivamente dispendioso. Atualmente é mais frequente a utilização
de pedras talhadas de pequena espessura apenas como revestimento,
formando a falsa cantaria.

CAPELA-MOR – Nas igrejas, capela principal onde fica o altar-mor.


Em geral situa-se na frente da entrada principal.

CARRANCA – Cara ou cabeça de pedra, madeira ou metal, com que


se ornam bicas de chafariz ou lavabos, retábulos, argolas ou aldravas
de portas, etc.

CIMALHA – 1. Arremate emoldurado formando saliência na


superfície de uma parede. Em geral situa-se no alto das paredes externas,
constituindo uma saliência contínua ao longo de toda a fachada, ou
sobre as guarnições de portas e janelas, constituindo uma saliência
interrompida. No alto das paredes externas encontra-se abaixo do
beiral do telhado, servindo de apoio a este ou sob platibanda. Em geral
é feita de massa, pedra ou madeira. Pode ter ornatos, além de molduras.
Quando corre no alto de todas as paredes externas do edifício, o prédio
é referido como tendo cimalha em redondo. Sobre portas e janelas é
também chamada cimalha de sobreverga. Situada no alto das paredes
é também chamada cimalha real. É também chamada cornija. 2. Peça
de madeira, com ou sem molduras, disposta obliquamente unindo a
superfície do teto à superfície de parede interna. Serve de arremate
entre estes elementos.

CIMALHA DE SOBREVERGA – ver Cimalha.

CIMALHA REAL – ver Cimalha.

CLAUSTRO – Pátio interior descoberto e geralmente rodeado de


arcadas nos conventos ou edifícios que tiveram esse uso.

COLUNA – Elemento de sustentação vertical diferenciado do pilar


por ter seção horizontal circular. Na arquitetura clássica é comumente

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 181


composta por três partes: base, na parte inferior, que transmite as
cargas verticais para fundações ou pavimento inferior, fuste, na parte
intermediária, que abrange o corpo principal da coluna; e capitel,
na parte superior, que aumenta a superfície de apoio de qualquer
elemento construtivo sobre a coluna. Quando não possui base nem
capitel é dividida em imoscapo, sua parte inferior, e sumoscapo, sua
parte superior. Recebe nomes específicos dependendo da variação de
sua forma, disposição no edifício, destinação ou ornamentação.

COLUNA COROLÍTICA – Coluna que tem ornatos de folhas e


flores em espiral ao longo da extensão vertical do fuste.

COLUNA ESTRIADA – Coluna cujo fuste possui ao longo de sua


extensão vertical caneluras equidistantes. É também chamada coluna
canelada.

COLUNA HELICOIDAL – Coluna cujo fuste tem forma torsa,


espiralada. A coluna helicoidal, também chamada coluna torsa, é
denominada coluna salomônica quando seu fuste apresenta o terço
inferior estriado.

COLUNA NICHADA – Coluna cujo fuste tem metade da superfície


longitudinal embutida no paramento de uma parede.

CONSISTÓRIO – Nas igrejas, sala destinada à reunião dos religiosos.


Nas antigas igrejas, frequentemente situava-se na parte posterior, em
pavimento superior, acima da sacristia. É também chamado sala do
consistório.

COPIAR – 1. Nome dado ao telhado de quatro águas sobre construção


quadrangular. No telhado de copiar, os quatro espigões componentes
do madeiramento do telhado são iguais. Desse modo, nas antigas
construções, dizia-se que para executá-los bastava “copiar” um dos
outros. Quando o telhado de copiar não possui cumeeira é também
chamado telhado de pavilhão. 2. Por extensão, nome dado ao telhado

182 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


de três águas, servindo de cobertura a um pequeno alpendre, que tem
um dos seus lados apoiado na parede da construção, situado sobre uma
área quadrada. 3. Por extensão, espaço externo coberto por telhado de
copiar com três águas, genericamente chamado alpendre.

CORO – Nas igrejas, balcão destinado aos cantores em cerimônias


religiosas. Em geral situa-se acima da porta central de entrada.

CUNHAL – 1. Faixa vertical saliente nas extremidades de paredes ou


muros externos do edifício. Em geral abrange da base ao coroamento
da construção. 2. Ângulo externo e saliente formado pelo encontro
de duas paredes externas convergentes, servindo de proteção à quina
do edifício ou de ornamentação da fachada. Muitas vezes é feito em
material diferente do utilizado na alvenaria das paredes. É às vezes
também chamado quina.

CÚPULA – Abóboda cuja forma é gerada por um arco que gira em


torno de um eixo, de modo que tenha sempre seção horizontal circular.

DENTEADO – Atribuição dada a qualquer elemento ou peça


da construção que possua ornatos ou entalhes em forma de dentes.
As saliências formadas no elemento ou peça são chamadas dentes.
O elemento ou peça denteado é também chamado denticulado ou
denticular.

DOSSEL – Armação saliente, em trabalho de talha e com bordas


franjadas, que forma como que um pequeno teto incorporado ao
camarim ou tribuna do trono de um retábulo. O dossel é o elemento
mais característico do retábulo estilo Dom João V [ou joanino].

EMBRECHADO – Ornamentação feita na superfície de elementos


arquitetônicos, constituída pela incrustação de conchas, pequenas
pedras, cacos de porcelana ou vidro na argamassa ainda não endurecida.

ENTABLAMENTO – 1. Na arquitetura clássica, conjunto de molduras


que coroam uma parede ou uma colunata na fachada do edifício.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 183


Quando completo, é composto de arquitrave, friso e cornija. Nas
antigas construções tinha como função construtiva básica suportar o
peso dos telhados. Às vezes era encimado por frontão. 2. Conjunto de
molduras que rematam e ornamentam a parte superior de um elemento
arquitetônico. Retábulos, portadas, colunas e pilastras podem se
encimadas por entablamento.

ESCAIOLA – Técnica de emassamento aplicada na superfície de


paredes, colunas ou estátuas, para imitar mármore. Em geral utiliza massa
feita com gesso e aglutinante, aos quais são comumente adicionados
pigmentos e fragmentos de materiais coloridos. Depois de aplicada a
massa, a superfície do elemento é polida e revestida com um óleo. Nas
antigas construções foi empregado o óleo de baleia.

ESTUQUE – Argamassa que depois de seca adquire grande dureza


e resistência ao tempo. É usado em revestimentos ou ornatos de tetos
e paredes e na execução de cornijas [também chamada cimalha]. Em
geral é feito com gesso ou cal fina e areia, algumas vezes misturado
com pó de mármore. Eventualmente outros materiais são utilizados
na sua composição, como o cimento branco, a greda e a cola. Pode ser
pintado ou ter na sua composição um pigmento colorido. No interior
da construção pode ainda ser polido. Quando usado em ornatos é feito
à mão ou com auxílio de moldes. Na sua composição, o gesso é usado
em menor proporção e tem como finalidade apressar o endurecimento
da argamassa, evitando trincas ou fendas. O gesso não pode ser usado
no estuque aplicado externamente.

FESTÃO – Ornato em forma de fita pendente, recortada e vazada,


podendo ter feitio de frutos, folhas e flores entrelaçados. Quando tem
feitio de folhas e flores ou frutos entrelaçados é também chamado
guirlanda. Quando tem feitio de folhas e flores entrelaçadas é também
chamado grinalda.

FLORÃO – Ornato em geral circular em feitio de flores.

184 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


FORRO – Elemento da construção utilizado como revestimento ou
rebaixo nos tetos da edificação, destinado principalmente a propiciar
um maior isolamento térmico no interior do edifício. Muitas vezes
possui também uma função decorativa. Usado como rebaixo, pode ter
ainda como finalidade permitir um maior isolamento acústico, oferecer
alternativas de iluminação o proteger e vedar à visão tubulações ou
equipamentos dispostos junto ao teto. É feito de diversos materiais.
Em construções antigas era quase sempre feito de madeira.

FRONTÃO – Elemento de coroamento de fachada em forma triangular,


aproximadamente triangular ou em arco de círculo, situado na parte
superior do edifício ou de parte da edificação ou sobre portais, portadas
ou portões. Originalmente tinha como função arrematar externamente
os telhados de duas águas, decorrendo daí sua forma triangular. Através
do tempo tornou-se um elemento essencialmente decorativo, sua forma
original triangular sofreu alterações e sua localização na fachada tornou-
se arbitrária. Com formas variadas foi muito utilizado no coroamento
superior central das fachadas de antigas igrejas.

FRONTÃO DE CARTELA – Frontão cujo contorno é formado


por diversas curvas e contracurvas caprichosas.

FRONTÃO ONDULADO – Frontão cujo contorno é formado por


linhas curvas. É também chamado frontão curvo ou frontão curvilíneo.

FRONTÃO ROMPIDO – Frontão cujas linhas do contorno são


interrompidas no seu vértice, em geral por ornato.

FRONTÃO TRIANGULAR – Frontão em forma de triângulo.

FRONTISPÍCIO – Fachada principal. Frontaria.

GALILÉ – 1. Em igrejas, pórtico alpendrado formando pequeno


corpo avançado na fachada frontal. Pode ser totalmente aberto ou
parcialmente por grades ou muretas. 2. Em igrejas, pórtico com arcadas

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 185


situado entre a fachada frontal e a parede onde se encontra a porta de
acesso à nave. É também chamado nártex.

GUARDA-PÓ – Peça de cobertura, protetora ou simplesmente


ornamental, colocada acima de alguns retábulos. Tem comumente a
forma retangular e fica pendente da parede.

ILHARGA – 1. Face lateral de um recinto ou uma edificação. O


termo é mais aplicado quando referido às paredes laterais das naves [e
capelas-mores] das igrejas. 2. Por extensão cada uma das faces verticais
que formam o apoio lateral em um elemento que possua vão central,
como retábulos ou arcos cruzeiros.

JANELA DE GUILHOTINA – Janela de duas folhas articulada por


movimento corrediço vertical. Comumente é formada por caixilhos
envidraçados. Não permite abertura total do vão. Uma ou as duas de
suas folhas deslizam em ranhuras feitas no aro do vão, sobrepondo-se
quando se quer abrir. Sua posição é regulada por meio de contrapeso,
mola ou borboleta.

LADO DA EPÍSTOLA – Lado direito do interior da igreja, visto da


entrada principal em direção ao altar-mor [altar principal do templo].

LADO DO EVANGELHO – Lado esquerdo do interior da igreja,


visto da entrada principal em direção ao altar-mor [altar principal do
templo].

LIOZ – Pedra calcária branca, dura e de granulação muito fina,


proveniente de Portugal. Foi muito usado em antigas construções em
portadas, cantarias ou revestimentos de fachadas e escadarias. É também
chamado pedra de lioz, pedra do reino e mármore-lioz.

LÓGIA – Galeria aberta, tendo seus lados abertos, voltados para o


exterior ou interior da construção, em arcada ou pilares.

MÍSULA – Ornato em talha de madeira ou cantaria, estreito na parte


inferior e largo na superior que, à maneira do consolo, ressalta de uma

186 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


superfície, geralmente vertical, para sustentação de imagens ou outras
peças. Aparece em retábulos ou paredes. A mísula pode ser do tipo
invertida, mais larga na parte inferior e estreita na superior.

NAVE – Espaço livre no interior das igrejas destinado àqueles que


assistem aos rituais religiosos. Em geral abrange a área compreendida
entre o pórtico e a capela-mor, sendo disposta no sentido longitudinal
à construção. Pode ser subdividida por colunas, pilares ou arcos.

NICHO – Cavidade feita na espessura de um paramento, usualmente


para nela se dispor uma estátua, um vaso, uma imagem ou qualquer outro
elemento de ornamentação. Pode também ter seu fundo aberto para
colocação de esquadria. Quando fechado, é comumente utilizado em
igrejas ou edifícios públicos suntuosos. Usado em igrejas para colocação
de imagens, é também chamado charola. Quando sua cavidade tem
forma semicilíndrica, o mais frequente, é também chamado nicho de
torre, e quando atinge o nível do solo, nicho sem soco.

ÓCULO – Abertura ou pequena janela, geralmente na forma circular,


oval ou arredondada, disposta nas paredes externas ou em frontões, para
ventilar e às vezes iluminar principalmente os desvãos dos telhados.
Muitas vezes tem também uma função decorativa. Foi comum o uso de
óculos inspirados nas vigias de navios em edifícios influenciados pelos
estilo Art-Déco e nos frontões de muitas igrejas antigas.

PILAR – Elemento estrutural vertical que serve de sustentação às


construções. Em geral, o termo é aplicado quando referido ao elemento
de secção poligonal, usualmente retangular ou quadrado, sendo chamado
coluna o pilar de secção cilíndrica.

PILASTRA – Elemento decorativo com a forma de um pilar,


frequentemente de seção retangular ou quadrada, semi-embutido no
paramento da parede. Em geral, é utilizado nas fachadas, dividindo-as em
panos verticais. Em construções antigas é usualmente dividida em base,
fuste e capitel, muitas vezes acompanhando uma ordem arquitetônica,
principalmente em prédios neoclássicos.

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 187


PINÁCULO – Arremate ornamentado no coroamento do edifício,
usualmente em forma cônica, piramidal ou octogonal. Foi utilizado
principalmente em edificações antigas providas de torres ou frontões,
sobretudo em igrejas.

PLATIBANDA – Elemento vazado ou cheio disposto no alto de


fachadas, coroando a parede externa do prédio, formando uma espécie
de mureta que esconde as águas dos telhados e eventualmente serve
de proteção em terraços. Em geral, é utilizada para dar acabamento
decorativo à fachada da construção.

PLINTO – Base de forma quadrangular e chata, sobre o qual se


assentam um pedestal de coluna, ou estátua.

POLICROMIA – Trabalho de revestimento em pintura ou douramento


de talha, imagens, etc., em que aparecem duas ou mais cores.

PORTAL – Acesso principal de um edifício, composto por uma ou


mais portas, com ornamentação e de aspecto monumental. Quando é
constituído por apenas uma porta é também chamado portada.

PÚLPITO – Em igrejas, espécie de balcão não muito elevado do


piso, disposto frequentemente em um dos lados da nave, destinado às
pregações e aos sermões do sacerdote. Nas antigas igrejas era em geral
muito ornamentado, com lavores em madeira. Pode ou não ser encimado
por um dossel, favorecendo suas condições acústicas.

QUARTELA – Peça que, numa estrutura ornamental, serve de


sustentação a outra.

RETÁBULO – Elemento em talha ou pedra lavrada disposto junto


a parede por trás do altar em igrejas, constituindo-se uma espécie de
nicho ou recanto adornado. Uma igreja pode ter um ou mais retábulos
de acordo com o número de altares que possua. Nas antigas igrejas
recebia tratamento especial. Dependendo do estilo do retábulo, que
se modifica em diferentes momentos, ele possui ornatos diversificados.

188 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


ROCALHA – Ornato cuja forma é derivada dos contornos de pedras
e principalmente de conchas. É um elemento decorativo característico
das construções influenciadas pelo estilo Rococó. Foi usada sobretudo
na ornamentação dos interiores de igrejas, em retábulos, arcos cruzeiros
e painéis.

SACRÁRIO – Nas igrejas, pequeno compartimento ou armário


provido de porta [e chave] onde são guardados objetos sagrados como
hóstias [principalmente] ou relíquias. Quase sempre se situa no centro
do altar-mor. Em antigas igrejas do século XVIII, usualmente era feito
de talha ornamentada. É também chamado tabernáculo.

SACRISTIA – Nas igrejas, dependência para guarda de paramentos


e objetos do culto e onde os padres vestem os hábitos litúrgicos. Em
geral constitui-se em um compartimento próximo à capela-mor ligado
diretamente a esta ou por meio de corredor lateral. Pode situar-se em
edificação adjacente ao prédio da igreja ou no próprio edifício principal.
Frequentemente possui entrada independente.

SANEFA – Tábua que arremata superiormente cortinas ou reposteiros.

TALHA – Obra feita em alto-relevo ou baixo-relevo geralmente na


madeira. Foi muito usada na ornamentação interna de antigas igrejas,
em elementos decorativos como retábulos e arcos cruzeiros.

TARJA – Ornato pintado, esculpido ou desenhado, composto por


um contorno ornamentado que circunda um campo claro onde se
encontra representado símbolo, inscrição ou escudo.

TOCHEIRO – Castiçal para tochas usado em igrejas ou certas


solenidades religiosas. Por extensão, diz-se de um ornato em forma de
tocheira.

TRIBUNA – Nas igrejas, lugar elevado e guarnecido de parapeito


geralmente reservado a pessoas ilustres para assistir às cerimônias
religiosas. Nas capelas de alguns dos antigos engenhos situava-se em

HISTÓRIA, ARQUITETURA E ORNAMENTAÇÃO 189


pavimento superior e destinava-se à família senhorial, evitando seu
contato com o restante dos fiéis.

TRONO – Espécie de pedestal colocado no vão da tribuna do trono


ou camarim do altar [retábulo].

VOLUTA – Ornato de forma espiralada. Frequentemente é encontrada


em capitéis de coluna ou no coroamento de frontões.

190 AS IGREJAS DE CACHOEIRA


CLIO GESTÃO CULTURAL E EDITORA

A presente edição foi composta na fonte EB Garamond, e foi impressa pela


Rona Editora Ltda., em papel couché 115 g.
Tiragem desta edição: 300 exemplares.
O livro As igrejas de Cachoeira: história, arquitetura e ornamentação
apresenta para o leitor os templos católicos edificados entre os séculos
XVI e XIX no núcleo urbano da cidade de Cachoeira, no Recôncavo
Baiano. A publicação foi idealizada por três historiadores com o objetivo
de auxiliar aqueles que desejam conhecer e compreender a história, a
configuração arquitetônica e a decoração desses antigos edifícios.

O livro convida o leitor a observar a arquitetura das igrejas, posicionan-


do-o de frente para os templos e orientando o seu olhar por meio de uma
pormenorizada descrição dos frontispícios. Para facilitar o entendimento
e a identificação de cada elemento da fachada principal, os textos são
acompanhados de desenhos didáticos. O mesmo procedimento ocorre
no interior dos edifícios. A planta baixa é apresentada e a ornamenta-
ção descrita. Cada recinto é devidamente explorado: capela-mor, nave,
sacristia e outros mais, quando for o caso. Em cada um desses espaços,
o olhar não fica à deriva, mas é conduzido mediante explicações sobre a
talha, a pintura, a azulejaria, os personagens e os episódios representados.
Fotos acompanham o texto e facilitam a compreensão do que está sendo
abordado. A publicação conta também com um glossário.

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