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ORGANIZANDO O CONHECIMENTO: das bibliotecas à

arquitetura da informação
Cláudio Gnoli, Vittorio Marino, Luca Rosati

INTRODUÇÃO

POR QUE ESTE LIVRO E DO QUE ELE TRATA

Com a revolução informática tivemos a ilusão que a tecnologia pudesse resolver de


um golpe o problema da organização e da gestão das informações, com vistas a
auxiliar sua recuperabilidade e daí a transformação em conhecimento. Esta ilusão foi
vista também por setores que há séculos se envolveram com a organização do
saber, como a biblioteconomia, a arquivologia e até a filosofia.

Atualmente, depois da primeira fase de vida da grande Rede, tal ilusão se


manifestou claramente como tal, trazendo de novo como crucial o problema da
organização dos conteúdos.

Uma Web de qualidade não pode prescindir de uma correta organização da


informação, com muitos níveis: no nível de uma aplicação completa (sítio, intranet ou
software), de uma única página e no mínimo de um menu simples.

Este livro nasce então por duas questões fundamentais:

 A tecnologia é um suporte para a gestão do conhecimento, que não elimina o


problema da organização do próprio conhecimento;

 A organização do conhecimento se baseia em princípios independentes em


grande parte de seu suporte físico (papel, digital ou outro).

Por isso quisemos indagar como os princípios de organização semântica, fruto de


mais de um século de pesquisas e experimentações em disciplinas tradicionais
como a biblioteconomia, podem dar uma contribuição também para as disciplinas
emergentes como arquitetura da informação para a Web e para a organização da
informação em ambientes digitais em geral.

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A QUEM SE DESTINA

Este livro se destina a todos aqueles que, não só no âmbito da Web, lidam com a
organização da informação: dirigentes de empresas, da administração pública, de
instituições, operadores nos setores da documentação, das bibliotecas, dos
arquivos, responsáveis por projetos Internet e intranet, projetistas de aplicações e
interface, webmasters; mas também estudantes, pesquisadores, docentes que por
vários motivos se veem envolvidos com as temáticas da classificação e da
arquitetura da informação.

COMO ESTÁ ORGANIZADO

O livro está estruturado em três partes principais.

A primeira parte (capítulos 1-4) introduz os fundamentos da organização do


conhecimento, e traça sua evolução da biblioteconomia à Web.

A segunda parte (capítulos 5-8) é dedicada especificamente à problemática da


classificação da informação em ambientes digitais: através da análise de casos
concretos, mostram-se como os conceitos apresentados na primeira parte podem
ser aplicados com sucesso na arquitetura da informação para a Web.

A última parte (capitulo 9) apresenta a análise de um projeto concreto de arquitetura


da informação para a administração pública.

OS AUTORES

O livro é fruto do trabalho integrado de seus três autores. Mas Cláudio Gnoli redigiu
os capítulos 1-4 e o Glossário, Vittorio Marino os capítulos 5 e 7; Luca Rosati a
Seção “Em síntese: Algumas regras práticas” do capítulo 5, e os capítulos 6, 8 e 9. A
primeira parte do capítulo 9 (o modelo monodimensional italiano e o modelo
multidimensional anglo saxônico em paralelo) é de Simone Fuchs. As seções sobre
tesauros e cabeçalhos de assunto nos capítulos 1 e 3 valeram-se da colaboração de
Emanuela Casson. Os desenhos são de Belinda Worsley.

AGRADECIMENTOS

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Por seus conselhos e ajuda recebidos, os autores agradecem a Paolo Ciancarini,
Viviana Doldi, Franco Federici, Benedetta Gizzi, Alejandro Marcaccio, Rosana
Masiola, Fulvio Mazzocchi, Alberto Monteverdi, Hans-Peter Ohly, Riccardo Ridi, Aldo
Stella, Federico Venier, Giulia Visintin, aos estudantes da graduação em
comunicação internacional e em Técnica publicitária da Università per Stranieri de
Perugia, aos serviços bibliográficos da Biblioteca da Região Toscana.

TRADUÇÃO LIVRE DO ITALIANO PARA O PORTUGUÊS DA

PROFA. HAGAR ESPANHA GOMES – BRASIL 2011-2012.

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Capítulo 1

A ORGANIZAÇÃO DO CONHECIMENTO

[Os homens] poderiam ter em mãos os remédios para a maioria de seus


males, se utilizazem adequadamente em conjunto os riquíssimos dados
recolhidos neste século, as observações e a verdadeira análise.
Atualmente, o conhecimento humano da natureza me parece semelhante a
um bazar, provido de todos os tipos de mercadoria, mas carecendo de
ordem e de inventário.

Esta reflexão foi escrita por um famoso autor, cuja identidade pode-se tentar
adivinhar antes de ser revelada ao final deste capítulo (não por acaso, trata-se de
um bibliotecário).

Com efeito, organizar os conhecimentos é indispensável para poder utilizá-los,


encontrando, dentre as muitas disponíveis, informações que atendam ao interesse
do momento. Mas não apenas isto: é também uma fase fundamental para a
pesquisa de conhecimentos novos; pesquisadores que trabalham para o
desenvolvimento de conhecimentos que outros já possuem, sem estarem cientes
disto, estão na verdade perdendo seu precioso tempo e não contribuem para o
avanço do saber. O ponto de partida para qualquer pesquisa é saber quais
conhecimentos são já conhecidos e como estão estruturados. Não por acaso, na
sabedoria tradicional chinesa o termo equivalente a “ciência” (kho hsüeh) significa
elaboração ou classificação do conhecimento [Needham 1973].

UMA HISTÓRIA MUITO ANTIGA

Pois bem. A organização do conhecimento é importante desde a Antiguidade.


Existem de fato pensadores propensos a sistematizar as idéias e apresentá-las de
maneira ordenada, mas sabemos também que outros, ainda que geniais, não
oferecem um sistema verdadeiro e próprio de pensar. A sistematização é um valor
agregado ao saber, pois a torna imensamente compreensível e consultável, mesmo

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se com a evolução do conhecimento um sistema específico se destine a modificar-
se ou a ser absolutamente desmontado.

Um grande estudioso e também um grande sistematizador foi Aristóteles. Na


verdade, ele se ocupou de muitos aspectos do saber e tratou isso de forma
ordenada em diversas obras. Seus trabalhos eram tão válidos e completos que se
constituíram num ponto de referência por muitos séculos, pelo menos até o fim da
Idade Média (e em alguns campos, como a lógica, são importantes ainda hoje). Para
cada setor do saber se consultava Aristóteles no respectivo livro. Como
conseqüência, também a organização aristotélica do saber continuou a ser a
referência principal. Por exemplo, aquilo que hoje chamamos ciências naturais é
tratado por Aristóteles num conjunto de obra ditas de física, do grego phýsis
“natureza”. Em seguida a estas, na organização das obras de Aristóteles, seus
alunos transmitiam algumas especulações filosóficas sobre a natureza do mundo:
por isso eram chamadas de meta-física, ou seja, “os argumentos que vêm depois de
ciências naturais”. É emblemático o fato do próprio nome de uma disciplina, a
metafísica, derivar diretamente da seqüência em que os temas estão organizados!

Aristóteles reagrupou todos os campos do saber em três grandes classes: teórica,


de theoréin, “contemplar”, ou seja, o conhecimento do mundo como ele é; prática, de
prássein “agir”, ou seja, as disciplinas técnicas voltadas para a realização de algo;
poética, de poiêin “fazer”, ou seja, as artes e a literatura. Esta tripartição, como
dizíamos, atravessou os séculos e foi retomada ainda por volta de 1600 por Francis
Bacon, filósofo inglês que almejava a pesquisa de um saber objetivo e livre de erros
e condicionamentos, antevendo o futuro desenvolvimento das ciências. Voltando-se
para as três classes de Aristóteles, Bacon distinguia as ciências segundo as
faculdades cognitivas que as produzem: memória, imaginação e razão. Tal
seqüência chegará (com a ordem modificada para razão, imaginação e memória) até
Dewey, o criador da tabela homônima de classificação difundida hoje em dia em
todo o mundo, cujas classes principais não por acaso compreendem primeiro a
filosofia e as ciências, depois as artes e a literatura e por fim a história.

A estruturação do saber de Bacon foi uma referência para os estudiosos franceses


que pela metade do século XVIII realizaram a primeira grande enciclopédia, o
símbolo do Humanismo. Esta gigantesca obra, apresentada em ordem alfabética, é
na realidade estruturada implicitamente sobre a base de um esquema bem
engendrado dos tópicos do saber. Os artigos incluem de fato cuidadosas remissivas
para outros tópicos realizando assim uma rede de ligações que hoje podemos definir
como um hipertexto.

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A CLASSIFICAÇÃO DE PLANTAS E ANIMAIS
Entretanto, quem se interessou muito pela sistemática foram os botânicos,
empenhados em descrever e catalogar as espécies de plantas cada vez mais
numerosas levadas aos museus pelos viajantes de retorno das colônias de todas as
partes do mundo. Um dos mais importantes foi o suíço Konrad Gesner, que viveu
por volta do século XVI, e catalogou plantas e animais utilizando como critério
principal seus órgãos reprodutores. Gesner devia ter mesmo mania de organizar o
conhecimento, visto que também redigiu uma monumental bibliografia dos livros
então conhecidos no mundo, intitulada “Bibliotheca universalis sive Catalogus
omnium scriptorum locupletissimus in tribus linguis, latina, graeca et hebraica”.

Dentre os vários botânicos sistemáticos que se sucederam naqueles séculos, ocupa


lugar especial o sueco Karl Linné que, por volta de 1750 introduz o sistema de
classificação até hoje utilizado pelos biólogos de todo o mundo. Cada planta ou
animal descrito é identificado por Lineu com um par de palavras em latim (a língua
internacional dos cientistas da época), ditas o gênero e a espécie. Cada gênero
pode compreender mais espécies: o gênero Panthera compreende Panthera leo
(leão), Panthera tigris (tigre), Panthera pardus (leopardo) e Panthera onca (onça
pintada). Os gêneros foram por sua vez agrupados por Lineu em categorias
superiores: as ordens (por exemplo, carnívoros). As ordens foram por sua vez
agrupadas em classes (por exemplo, mamíferos e as classes em tipos (por exemplo,
animais). A classificação de Lineu é assim uma grande árvore hierárquica de todos
os organismos vivos (biólogos sucessivos juntaram entre os gêneros e as ordens as
famílias, e quando necessário, criaram muitos outros agrupamentos de nível
intermediário como subordens, superclasses etc; os tipos chamam-se atualmente
phyla, enquanto um grupo de nível não especificado se denomina táxon).

Lineu pensava que as espécies tivessem sido criadas por Deus com o aspecto que
ele as observava, então classificar era um modo de descrever a criação, quase uma
oração. Um século depois, com a introdução da idéia de evolução biológica com a
obra de Lamarck e de Darwin, parece natural considerar que a árvore hierárquica de
Lineu seja de fato uma árvore genealógica: todo organismo se assemelha a outro
porque deriva deles ou é seu parente de algum modo. A biologia sistemática de
hoje é filogenética¸ isto é, busca individuar grupos que correspondam às relações
evolutivas entre uma forma viva e outra e não apenas por sua semelhança.

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A taxonomia numérica, introduzida pelos estatísticos R.R. Sokal e P. H. A. Sneatth
[1973], oferece uma série de técnicas matemáticas para criar grupos de organismos
(ou de qualquer outro tipo de objetos: no Capítulo 4 veremos sua aplicação na
classificação de textos) com base no número de características comuns. Os
agrupamentos são representados em forma de árvores chamadas dendrogramas
que não são necessariamente árvores genealógicas. De fato, algumas semelhanças
podem ser enganosas.

Na realidade, não convém classificar as baleias junto com os peixes, embora


tenham o corpo afilado e barbatanas, porém junto aos mamíferos: a razão é que as
baleias derivam de outros mamíferos, como mostra um estudo mais profundo de sua
estrutura corpórea (têm pulmões, amamentam os filhos, etc.). Estudando os
organismos, compreende-se bem que algumas de suas características são mais
importantes e significativas do que outras. Assim, agrupar os organismos segundo
sua origem comum, e não apenas segundo sua semelhança, se revela mais útil com
o tempo para se fazer afirmações gerais e fundamentais, ou seja, permite um
conhecimento mais profundo e substancial. É certo que cada um poderia inventar
outras classificações a seu gosto, como agrupar todos os organismos com as
barbatanas ou todos aqueles cinzentos: não é proibido, mas, para fins do
conhecimento, isso não leva muito longe [Mayr 1982].

De outra parte, se usamos a origem comum como critério único, acontecem coisas
estranhas. O entomólogo alemão Willi Hennig introduz na metade do século XX um
método muito rigoroso chamado taxonomia cladística para agrupar os organismos
exclusivamente com base em suas características comuns. Um grupo pode de fato
ser formado somente por organismos que tenham em comum caracteres que
nenhum outro organismo possui, portanto presentes pela primeira vez na Terra em
seus antepassados comuns. Deste modo se obtém árvores genealógicas muito fiéis
àquela que deve ter sido a história evolutiva real daqueles organismos. Todavia
estas árvores nem sempre são satisfatórias: por exemplo, as aves, segundo os
critérios da cladística, fazem parte dos répteis! No sentido genealógico de fato as
aves são parentes mais próximos dos lagartos tanto quanto os crocodilos. Só que as
aves, quando se separaram dos lagartos, também se modificaram para adaptar-se
aos novos ambientes, aéreos. O método cladístico não dá conta desta diversidade.
Segundo o grande evolucionista Ernst Mayr, portanto, a classificação mais
equilibrada é aquela que leva em consideração seja a origem comum, seja a
diversidade: as aves serão enumeradas próximo aos répteis, visto que descendem
delas, mas constituirão uma classe distinta, porquanto se diferenciaram muito.

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A CLASSIFICAÇÃO DE LIVROS
A idade moderna se caracteriza por uma enorme quantidade de conhecimento
produzido no curso do tempo pelas ciências e escolas de pensamento e difundido
graças às técnicas de comunicação, sobretudo a partir da invenção da imprensa.

Há milênios os conhecimentos escritos são coletados e conservados nas bibliotecas,


lugares onde se concentrou em pouco espaço a maior quantidade de
conhecimentos. Enquanto uma biblioteca qualquer possuía algumas centenas ou um
milheiro de volumes, um único bibliotecário hábil podia saber de memória o lugar e o
assunto de todos os livros, ou de algum modo sabia encontrá-los facilmente
buscando numa ou noutra estante. Por exemplo, na casa de Giacomo Leopardi em
Recanati, que se pode visitar acompanhado de um guia, pode-se ver a grande
biblioteca organizada por seu pai em estantes de madeira maciça, nas quais o poeta
passava muito tempo imerso em todo o tipo de estudo: em cada estante existe uma
placa que indica literatura, filosofia, etc. De fato, era comum reunir os livros segundo
a disciplina tratada para que fosse mais fácil encontrá-los. Até hoje alguns de nós,
os mais organizados, adotam em sua casa um sistema deste tipo.

Mas com a explosão da quantidade de conhecimentos publicados nem mesmo


bibliotecários mais competentes e estudiosos conseguem isso em pouco tempo. É
difícil encontrar as informações desejadas simplesmente percorrendo estantes com
milhares de volumes, reunidos sob uma etiqueta genérica, por exemplo, medicina,
economia. Exatamente como é difícil encontrar o que nos interessa percorrendo os
108253 itens recuperados por um motor de busca na Internet depois de haver feito
uma pergunta, ou ainda encontrar entre os inúmeros arquivos no computador do
escritório aquele documento que um colega nosso redigiu há dois anos.

PRIMEIRAS TABELAS DETALHADAS


Este problema já se manifestava ao final do século XIX. Melvil Dewey (Figura 1.1),
bibliotecário de um Colégio em Nova York, o enfrentou de cara, inventando um
sistema bastante engenhoso para ordenar os livros nas estantes de modo mais útil e
significativo.

Em vez de fazer agrupamentos genéricos como literatura ou ciência, cada um dos


quais conteria muitíssimos livros, Dewey subdivide cada disciplina em subclasses e
estas por sua vez em subsubclasses e assim por diante, para discriminar igualmente

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assuntos muito específicos. Para indicar cada classe, Dewey utilizou números,
inicialmente com três dígitos: assim, 800 significava literatura em geral, mas 810
significava literatura americana, 850 literatura italiana, etc. Especificando ainda, a
literatura italiana podia ser discriminada em poesia italiana 851, dramaturgia italiana
852, narrativa italiana 853, etc.

Como se pode observar, este sistema permite distinguir até mil classes diversas, de
000 (que, para Dewey significa generalidades) até 999 (que indica a história dos
mundos extraterrestres). Mas mil classes se esgotam rapidamente! Por exemplo,
535 significa luz e ótica, mas como marcar os livros que tratam apenas dos
fenômenos de dispersão da luz? Continuando a dividir por dez podemos expressar
as dez subclasses de um número inteiro com números decimais: 535.1 indicará em
particular as teorias sobre a luz, 535.2 a ótica física e 535.4 a dispersão da luz.
Estas subclassses por sua vez poderão ser divididas, indicando, por exemplo, com
535.84 a espectroscopia, com 535.844 a espectroscopia no ultravioleta e assim por
diante, potencialmente ao infinito, visto que os dígitos decimais de um número
podem ser infinitos! O novo sistema toma então o nome de Classificação Decimal
de Dewey (CDD, em inglês DDC).

Se vocês derem um pulo na biblioteca pública mais próxima, poderão observar que
os livros estão etiquetados com números como estes: três dígitos seguidos
eventualmente de um ponto e por um número variável de outros dígitos. Na verdade,
a classificação decimal de Dewey teve extraordinário sucesso e por mais de um
século é usada por muitas bibliotecas de todo o mundo para dispor os livros nas
estantes. Poderão assim observar as vantagens deste sistema: visto que os livros
estão dispostos em ordem progressiva de classe, livros de assuntos semelhantes se
encontram próximos. Mesmo que não conheçam o significado dos dígitos, uma vez
localizado um livro procurado, em suas vizinhanças imediatas poderão encontrar
algum outro de seu interesse.

Existe um outro aspecto engenhoso no sistema de Dewey: as etiquetas são


atribuídas aos livros e não às estantes como na biblioteca de Leopardi ou naquela
de seu vizinho de casa maníaco pela ordem. Deste modo, se acontecer de deslocar
os livros de um grupo porque a estante ficou cheia ou se toda a biblioteca se muda,
todo o sistema continua a funcionar sem necessidade de reclassificar os livros. Esta
localização relativa foi uma das invenções mais importantes na história da
organização dos conhecimentos. Ela permite na verdade abstrair a classificação das
informações do lugar físico em que estão temporariamente; isto significa que se
pode utilizar a classificação de Dewey (ou uma outra tabela baseada em princípios

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similares) ainda para organizar os textos de uma bibliografia ou de um repertório de
sítios Web.

No início de 1900 dois advogados belgas, Paul Otlet e Henri-Marie Lafontaine


(Figura 1.2) admiradores do sistema de Dewey, pensaram em aplicá-lo num
ambicioso projeto. Tratava-se de desenvolver um grande repertório bibliográfico que
registrasse os artigos especializados publicados em todo o mundo. Os códigos não
seriam então aplicados aos livros, mas às fichas bibliográficas; era preciso, portanto,
exprimir e organizar conteúdos também muito específicos, empregando então
numerosos dígitos para cada título.

Animados por este propósito de longo alcance, Otlet e Lafontaine fundaram o Institut
International de Bibliographie (que mais tarde se torna a Fédération Internationale de
la Documentation) obtendo de Dewey a permissão para utilizar sua tabela e, em
seguida, modificá-la adaptando-a a todas as suas necessidades específicas. Nasce
assim uma prima da CDD, a Classificação Decimal Universal (CDU, em inglês
UDC), que continuou a se desenvolver de modo independente até hoje. Os códigos
da CDU têm um aspecto semelhante ao da CDD, mas além dos dígitos e do ponto
contém outros sinais de pontuação que permitem combinar as classes de maneira
mais flexível. A CDU é utilizada também em muitas partes do mundo, sobretudo na
Europa central e oriental, especialmente em repertórios bibliográficos e bibliotecas
científicas.

Outra tabela que obteve um bom sucesso é a classificação adotada na Biblioteca do


Congresso dos Estados Unidos conhecida como Library of Congress
Classification (LCC). Esta tabela, que usa letras do alfabeto e dígitos, não tem
méritos particulares com respeito às outras, ou melhor, possui uma estrutura rasa
que se limita a enumerar todas as disciplinas e os tópicos segundo os livros que a
biblioteca possui, de modo claramente influenciado por seu acervo: por exemplo,
considera como classes de primeiro nível as ciências militares e as ciências navais,
subdivisões que resultariam pouco úteis numa biblioteca suíça. Todavia, a
Biblioteca do Congresso desenvolve um conjunto de serviços importantes para
muitas outras bibliotecas, norte-americanas e estrangeiras. Em especial, ela divulga
as fichas de seu rico e respeitável catálogo, que contém também o código da LCC
correspondente a cada livro: por este motivo muitas bibliotecas têm adotado os
mesmos códigos de classe, sem ter que investir tempo e competência em novas
operações de classificação. Numa perspectiva semelhante, aproximadamente 140
bibliotecas da Europa central adotam a Regensburger Verbundklassifikation (RVK)
produzida pela biblioteca universitária de Ratisbona na Baviera.

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Sem o mesmo sucesso estariam outras tabelas de classificação elaboradas pelos
bibliotecários anglo-saxões nas primeiras décadas do século XX, como a Expansive
Classification de Charles Ammi Cutter, a Subjetc Classification de James Duff Brown
e a Bibliographic Classification de Henry Evelyn Bliss. Este último autor ocupa um
lugar importante na história da organização do conhecimento: escreveu dois livros
intitulados The organization of knowledge and the system of the sciences e The
organization of knowledge in libraries and the subject approach to books.

Bliss estudou profundamente os critérios a utilizar para decidir a sucessão das


classes. Afirmou que a classificação bibliográfica deve se basear no consenso
acadêmico, ou seja, deve reproduzir os agrupamentos reconhecidos pelos
especialistas de todo o mundo na condução de suas pesquisas, e não impor
categorias artificiais criadas pelos bibliotecários (coisa de que a CDD
freqüentemente é acusada). Além disso, para Bliss, a sequência deve seguir uma
gradação na especialidade, ou seja, os assuntos gerais devem preceder os mais
especializados. Este princípio é muito importante na construção das tabelas também
no nível do detalhe: música (em geral) deve vir antes de música tradicional que por
sua vez vem antes de música tradicional na Itália. Mas disciplinas como um todo
podem ser consideradas gerais como Física, ou mais especializadas, como
Antropologia, conforme se apliquem a todos os objetos da realidade ou somente a
alguns. Em sua tabela Bliss listou, então, a Física e a Química antes da Biologia,
esta antes da Sociologia e das disciplinas humanísticas, etc.

CABEÇALHOS DE ASSUNTO
Além de sua tabela de classificação, a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos
tem divulgado em todo o mundo seu sistema alfabético para indexar os assuntos
tratados nos livros. Ele nasce por obra de seu ilustre bibliotecário Charles Ammi
Cutter, lá pelo final do século XIX, quando a biblioteca é transferida para sua nova
sede. Muito conhecido e importante para a história da profissão bibliotecária, Cutter
se desentendeu muitas vezes com seu conterrâneo Dewey, detalhe que não impediu
que colaborassem para fundar a associação dos bibliotecários americanos.

Para a Biblioteca do Congresso Cutter preparou um catálogo-dicionário no qual


eram listados, juntos, em ordem alfabética, autores, títulos e assuntos dos livros.
Este tipo de catálogo ainda é utilizado atualmente, sobretudo em pequenas
bibliotecas públicas1. Com o tempo, os termos do catálogo foram sendo refinados e
1
No Brasil, o catálogo-dicionário deixou de ser adotado. (N. T.)

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formalizados, enriquecendo-se de remissivas para as formas preferidas de um termo
ou para suas variantes. Deste modo, quando os usuários procuram um termo não
utilizado pelo catálogo são então reenviados ao termo corrente. Na verdade,
enquanto a identificação de autores e de títulos na maior parte dos casos é bastante
imediata, para os assuntos é necessário seguir algumas regras convencionais para
se assegurar que:

 um conceito seja representado sempre com a mesma forma (uniformidade);

 a mesma forma represente sempre o mesmo conceito (univocidade);

 o tema de cada documento seja descrito de modo completo (exaustividade);

 um conceito seja representado exatamente na linguagem de indexação


(especificidade);

 o catálogo responda a todas as expectativas dos usuários (previsibilidade).

Deste modo, progressivamente se consolidaram as Library of Congress Subject


Headings (LCSH), tornando-se logo os cabeçalhos mais importantes do mundo,
atualmente em sua 28ª. Edição. Do mesmo modo que sua tabela de classificação, a
LCSH se difundiu graças à distribuição das fichas da Biblioteca do Congresso para
outras bibliotecas, depois em forma de fitas magnéticas e atualmente em formato
digital.

O mais utilizado na Itália é o cabeçalho de assuntos inspirado na LCSH.Também no


caso italiano o vocabulário controlado se baseia no catálogo de assuntos da
Biblioteca Nacional Central de Florença (BNCF), que é encarregada por lei de definir
os instrumentos catalográficos.

No que respeita à ordem sistemática, o alfabético apresenta pelo menos duas


vantagens evidentes: é de compreensão imediata dos usuários e possibilita a
inserção a qualquer momento (e lugar) de novos cabeçalhos, a chamada
hospitalidade. Por outro lado, temas afins descritos por diversos termos, como
antílopes e zebras, encontram-se distantes sem qualquer regra sistemática.

DESENVOLVIMENTOS MODERNOS
Enquanto a CDD, a CDU, a LCC e as LCSH continuavam a se difundir, nos anos
trinta surge no cenário um indiano com o difícil nome de Shiyali Ramamrita
Ranganathan. Era um matemático que havia sido encarregado de gerenciar a
biblioteca universitária de Madras. Para adquirir uma boa formação em

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biblioteconomia foi estudar na Inglaterra no University College London, importante
centro de estudos neste setor. Enquanto estava em Londres, concebeu uma nova
técnica para descrever o conteúdo de um documento: a análise de faceta. Tal
método consiste em decompor o tema num conjunto de aspectos que o compõem,
segundo determinadas regras, para recompô-lo num código combinado. Ele mesmo
escreve que teve essa idéia observando uma caixa de jogos Meccano enquanto
estava numa grande loja da famosa cadeia Selfridges: os diversos aspectos tratados
num livro poderiam ser combinados como as partes de um Meccano!

Voltando à India, por todo o resto da vida Ranganathan trabalhou muitíssimo para
desenvolver a biblioteconomia em seu país (criou ainda uma fundação dedicada à
sua mulher Sarada). Era um homem de caráter disponível e muito dedicado a seu
trabalho, com hábitos muito frugais [Gnoli 2000] e concebia a biblioteca como um
serviço útil para toda a Humanidade, basilar para o desenvolvimento da cultura e do
conhecimento. Formulou cinco “leis da biblioteconomia” de tom nada acadêmico,
voltadas ao contrário para a idéia que um biblioteca, além de burocracias e
tecnicismos, não deve nunca perder de vista seu objetivo, o de ser útil às pessoas:

1. os livros foram feitos para serem usados;

2. para cada leitor seu livro;

3. para cada livro seu leitor;

4. poupe o tempo do leitor;

5. a biblioteca é um organismo em crescimento.

Mas como se pode fazer encontrar “a todo leitor seu livro” e vice-versa?
Classificando todos os livros! A técnica da análise de faceta, que consiste em
especificar os assuntos de maneira muito precisa e detalhista, deve permitir
encontros mais frutuosos entre os leitores que buscam determinados conhecimentos
e livros que melhor satisfaçam suas necessidades [Gatto 2006].

A agudeza do pensamento, a clareza na expressão, a exatidão na


comunicação, a presteza na resposta e a precisão no serviço dependem em
última análise da sequência conveniente, ou Classificação. [Ranganathan
1967 parágrafo CP2]

Apesar da simplicidade do objetivo, as técnicas de classificação que Ranganathan


elaborou no curso de dezenas de anos de trabalho em torno da idéia original são
muito engenhosas e complexas. Seus livros são escritos de forma sistemática,
quase como um tratado de matemática, ainda que não faltem metáforas sugestivas

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e eficazes. Assim ele deu uma grande contribuição à teoria da classificação, ainda
que a tabela na qual experimentou as técnicas que inventou, a Colon
Classification, tenha divulgação muito limitada. Quem percebeu o valor de sua obra
foram, sobretudo, alguns ingleses que trabalharam quase sempre em bibliotecas
especializadas de grandes empresas e organizações, como a refinaria de açúcar
Tate & Lyle e a RAF, a aviação militar britânica. Eles estiveram em contato com
Ranganathan e o encontraram em diversos congressos. Os estudiosos ingleses
reconheceram que a análise de faceta era mesmo o que se queria para indexar de
modo cuidadoso e eficiente também os documentos muito especializados [CRG
1955]. Em 1952 formaram uma espécie de círculo dedicado à pesquisa sobre a
classificação bibliográfica, com sede em Londres: o Classification Research Group
(CRG). O grupo existe ainda hoje, mas foi sobretudo nos anos cinqüenta e sessenta
que seus mais eminentes representantes estiveram ativos: Derek Austin, Eric
Coates, Jason Farradane, Robert Fairthorne, Douglas Foskett, Barbara Kyle, Jack
Mills, Brian Vickery etc.

O CRG aprofundou a técnica da análise de faceta, aplicando-a à construção de


numerosas tabelas de classificação dedicadas a setores especializados [Vickery
1960]. Além disso, por incumbência da OTAN estudou a possibilidade de realizar
uma nova tabela de classificação geral, baseada não apenas em facetas mas na
teoria dos níveis integrativos e na teoria dos sistemas [Spiteri 1995]. Estes estudos
avançados são muito interessantes e merecem ser reconsiderados ainda nas
aplicações em ambiente digital e na Web [Gnoli 2005], mas à época não chegaram
diretamente à realização de uma nova tabela.

Os membros do CRG , ao contrário, terminaram por empenhar suas energias em


várias direções. Jason Farradane implementou sua teoria de indexação relacional.
Derek Austin desenvolveu para a British National Bibliography um refinado sistema
de indexação alfabética por facetas, o PRECIS: uma vez implementado, viajou para
ensiná-lo a bibliotecários de todo o mundo, incluindo os italianos que nos anos
noventa derivaram dele as normas do GRIS. Barbara Kyle, depois de haver
contribuído para a teoria da classificação com críticas ocasionais muito inovadoras,
ficou doente e morreu em 1966. Brian Vickery continuou a publicar excelentes
estudos sobre as ciências da informação, inclusive as aplicações informáticas mais
recentes. Finalmente, Jack Mills assumiu uma revisão radical da velha classificação
de Bliss, com base na análise de facetas; junto com Vanda Broughton e outros
colaboradores, a partir de 1977 vem publicando os volumes de uma nova e grande
tabela geral facetada, apresentada como a segunda edição da Classificação

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Bibliográfica de Bliss (BC2). Assim, a BC2 é a mais avançada das tabelas de
classificação geral disponíveis atualmente.

Outra estudiosa importante e ativa é a alemã Ingetraut Dahlberg (Figura 1.2).


Partindo de uma análise dos fundamentos lógicos e filosóficos da classificação, ela
desenvolveu uma teoria dos conceitos, os elementos a partir dos quais se constrói
qualquer tabela semântica. Ela contribuiu ainda para a evolução da CDU e propôs
uma tabela original: a Information Coding Classification (ICC) [Negrini 2003], e
continuou a trabalhar para que a organização do conhecimento se desenvolvesse
como uma verdadeira ciência. Para tal fundou uma revista especializada
(“International Classification” atualmente “Knowledge Organization”) e uma
associação, a International Society for Knowledge Organization (ISKO), que contribui
para manter em contato os especialistas de todo o mundo. Assim Dahlberg conta a
origem do nome ISKO numa mensagem eletrônica de 21 de abril de 2004:

... a sessão constituinte da ISKO em Frankfurt em 22 de julho de 1989, quando


decidimos o nome da nova associação internacional que se criava. Como
sabem, tínhamos tido alguma dificuldade com nossa fundação anterior, a
associação nacional [alemã] para a classificação e buscávamos um nome que
não contivesse a palavra classificação. Assim pensamos numa tradução para
Wissensordnung [“ordenamento do saber”], como o título de meu livro de 1974,
mas em inglês não soava bem. Então se propôs usar as palavras dos títulos da
publicação de Bliss dos anos trinta (“organization of knowledge”) em ordem
inversa: knowledge organization, embora não me agradasse a abreviação KO
por conta da declaração final da luta de boxe. Mas Dr. Fugmann julgou que no
contexto da ISKO isto não seria um problema e assim o termo knowledge
organization foi aceito. Um ano mais tarde tínhamos já nosso primeiro
congresso internacional em Darmstadt, precedido de dois workshops e com
quase 200 participantes inclusive de inúmeros países, os quais levaram depois
para todo o mundo o novo nome deste nosso campo.

NA ERA DIGITAL
Nos últimos decênios, a divulgação crescente da informática e da telemática atraiu a
maior parte das energias nesta direção, mais do que desenvolvimentos teóricos
posteriores. Por outro lado, os estudos de Ranganathan e do CRG já oferecem
estruturas conceituais bastante ricas e refinadas, que ainda não foram exploradas a
fundo. As grandes bibliotecas, seus catálogos em rede, os repertórios gerais dos

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recursos Internet etc. utilizam tabelas de elaboração mais antigas, como LCSH e
CDD, ou tabelas domésticas idiossincráticas. Apenas alguns projetos recentes, que
ilustraremos na segunda parte deste livro, experimentam uma aplicação mais
completa da análise facetada em ambiente digital, uma técnica que atualmente
desperta um forte interesse entre os especialistas da arquitetura da informação e da
gestão do conhecimento (knowledge management).

Neste momento, os estudiosos se perguntam sobretudo sobre os aspectos culturais


e sociológicos da organização do conhecimento. Escolas verdadeiramente de
pesquisa em biblioteconomia e ciência da informação estão ativas, sobretudo nos
Estados Unidos, no Canadá, na Inglaterra e na Dinamarca. Neste último país
ressalta o trabalho de Birger Hjørland, filósofo da informação que introduziu no setor
a análise de domínio, uma perspectiva segundo a qual a documentação sobre
qualquer setor disciplinar é analisada tendo em conta o contexto social e cultural que
a produz. [Hjørland & Albrechtsen 1995].

A abordagem mais “científica” empreendida pelo CRG parece atualmente sair da


moda. Ao mesmo tempo, porém, as pesquisas mais avançadas de representação
do conhecimento em ambiente digital, aplicadas à tradução automática, à
inteligência artificial e à Web semântica, ganham o termo ontologia tirado das mais
antigas especulações filosóficas, e terminam por levar em conta as categorias de
Aristóteles [Poli 1996]. A propósito, sabem quem escreveu as palavras importantes
no início deste capítulo? É um dos maiores filósofos do século XVII, Gottfried
Wilhelm Leibniz [1963], que entre suas muitas atividades também foi bibliotecário!

Como se pode observar, quando se trata de organizar o conhecimento, o antigo e o


moderno se entrelaçam. De um lado, temos hoje à disposição meios
tecnologicamente poderosos para elaborar e coletar informações e uma rede global
e capilar que nos permite uma aceleração revolucionária em seu intercâmbio e
compartilhamento. Por outro lado, esquecer um século e tanto de trabalhos teóricos,
pensando em reinventar tudo do início, seria um gigantesco desperdício de tempo e
recursos. Para ter sucesso devemos misturar em doses adequadas o novo e o
antigo. Nosso intento nestas páginas será o de orientar os leitores, qualquer que
seja a especialização de onde venham, propondo-lhes um panorama das técnicas
disponíveis no momento em que nos encontramos, para poder organizar e utilizar,
da melhor forma, um patrimônio de conhecimento.

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