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Simone Caputo Gomes

Érica Antunes Pereira


(Organizadoras)

LITERATURA
CABO-VERDIANA

SELETA DE POESIA E PROSA

EM LÍNGUA PORTUGUESA

1
SUMÁRIO

5 APRESENTAÇÃO (CORSINO FORTES)


9 LITERATURA E CULTURA EM CABO VERDE
12 POESIA
13 ARMÉNIO VIEIRA
15 Construção na vertical
16 Toti Cadabra (Vida e morte severina)
18 CORSINO FORTES
20 Do nó de ser ao ónus de crescer
26 Oráculo
28 DAVID HOPFFER ALMADA
30 Ilhas de Cabo Verde
31 Canto a Cabo Verde
38 EUGÉNIO TAVARES
40 A Pedro Cardoso (Hino)
41 A emigração
42 Triste regresso

45 FILINTO ELÍSIO
47 Fuligem, riso e vertigem
48 Ora sou água
49 quem te tatuaria?

51 JOÃO VARELA
53 Prólogo
61 JORGE BARBOSA
63 Pretinha dos picos
73 Balanço

2
78 JORGE CARLOS FONSECA
80 Diálogos com o silêncio
87 JOSÉ LUÍS HOPFFER ALMADA
89 Raízes
92 Colina de pedra
95 JOSÉ LUÍS TAVARES
97 Onde habita o trovão
98 Percurso do método (segundo Melo Neto)
100 MÁRIO FONSECA
102 Quem tem ouvidos para ouvir
105 MÁRIO LÚCIO SOUSA
107 Prelúdio
108 Da mulher
111 OSWALDO OSÓRIO
113 Senhora de si
114 poema invertido no espelho
115 VERA DUARTE
117 Os meninos
118 A canção do corpoamor

3
126 PROSA
127 ANTÓNIO AURÉLIO GONÇALVES
129 Nas nossas ruas, ao entardecer
136 BALTASAR LOPES
138 Chiquinho (excerto)
148 DINA SALÚSTIO
150 A traição do tempo
153 EVEL ROCHA
155 Marginais (excerto)
159 FÁTIMA BETTENCOURT
161 Secreto compasso
167 GERMANO ALMEIDA
169 Um erro de Deus
172 KAKÁ BARBOZA
174 Castelo Conde
181 LUÍS ROMANO
183 Caminhos (excerto de Famintos)
191 MANUEL LOPES
193 Os flagelados do vento leste (excerto)
201 ORLANDA AMARÍLIS
203 Salamansa

4
APRESENTAÇÃO

A presente antologia, produzida a partir da recolha,


seleção e organização de textos a cargo das professoras
Simone Caputo Gomes e Érica Antunes Pereira, ganha
importância inusitada quer na divulgação, quer quanto à
possibilidade de aprofundamento dos estudos sobre literatura
e cultura cabo-verdianas, por constituir um dentre os muitos
resultados de interlocução com alunos de Letras (mais
especificamente de Literaturas Africanas de Língua
Portuguesa), fundamentados por quase quatro décadas de
docência e pesquisa.
A visibilidade que tem sido dada à produção literária
cabo-verdiana, especialmente em poesia e prosa, vem sendo
revertida em teses, dissertações, pesquisas de Pós-
Doutoramento e de Iniciação Científica (em nível de
Graduação), com base, sobretudo, no trabalho realizado pela
Professora Doutora Simone Caputo Gomes nas universidades
brasileiras do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Nos últimos anos, a atuação da professora tem
concentrado esforços na coordenação do Grupo de Estudos
Cabo-verdianos de Literatura e Cultura da Universidade de
São Paulo e dos convênios estabelecidos pela USP com as
5
mais prestigiadas universidades de Cabo Verde, ensejando
que, junto a um dos membros daquele grupo, Érica Antunes
Pereira, possa disponibilizar em antologias como esta textos
significativos da história da literatura de Cabo Verde, muitos
ainda desconhecidos do leitor brasileiro e de outras partes do
mundo.
Várias obras, especialmente as pertencentes a um
período mais recente, que ainda não constavam de recolhas,
têm sido objeto de estudos e ensaios que dignificam a
produção literária cabo-verdiana e possibilitam o alargamento
do cânone, dando ensejo à discussão de novos temas, para
além daqueles tradicionalmente enfocados, e de novas
estratégias e processos por meio dos quais a literatura, como
arte de representação, percebe o arquipélago, a diáspora
crioula e o mundo.
A seleção de textos realizada abrange um espectro que
vai da relação intrínseca do discurso literário com aspectos
culturais relevantes da cultura cabo-verdiana até experiências
de linguagem consideradas como mais inovadoras. É de se
destacar, ainda, a pluralidade temática e de dicções (lírica,
trágica, grotesca e humorística) que a recolha descortina, ao
eleger excertos de autores (quase todos consagrados como
membros da Academia Cabo-verdiana de Letras) que se
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debruçam sobre questões variadas e pertinentes ao universo
crioulo.
A partir dos excertos escolhidos pelas organizadoras,
enumero algumas: o senso de pertença ou cabo-verdianidade
(Corsino Fortes, David Hopffer Almada, João Varela-
Timóteo Tio Tiofe, Jorge Silva, José Luís Hopffer Almada,
Mário Fonseca), a geografia, os aspectos climáticos, a
história e a mitologia das ilhas (Dina Salústio e Mário Lúcio,
Jorge Barbosa, Kaká Barboza, Luís Romano, Manuel Lopes,
Germano Almeida, respectivamente), a emigração e a
diáspora (Eugénio Tavares, Baltasar Lopes e Orlanda
Amarílis), as relações sociais de gênero e os discursos
periféricos (Evel Rocha, Fátima Bettencourt, Oswaldo Osório
e Vera Duarte), o diálogo do discurso literário com outras
literaturas, culturas e com outros saberes (como a filosofia, o
cinema, as artes plásticas, entre outros) e a metalinguagem,
levado a cabo por Arménio Vieira, Filinto Elísio, Jorge
Carlos Fonseca e José Luís Tavares, na poesia, e António
Aurélio Gonçalves, na prosa.
Pelos motivos expostos e por outros que aqui poderia
enumerar, recomendo ao leitor uma imersão atenta nos textos
coletados, de modo a descobrir as suas qualidades e a sua
força de representação de uma boa amostra da literatura cabo-
7
verdiana. Por aliar textos literários fundacionais a
experiências ainda pouco divulgadas pela crítica
especializada, considero esta obra mais um valioso contributo
das pesquisadoras para a divulgação e o enriquecimento do
patrimônio cultural cabo-verdiano expresso em língua
portuguesa.
Esta iniciativa acrescenta-se aos fortes e legítimos
motivos de ter sido a eminente pesquisadora Simone Caputo
Gomes condecorada, por toda a sua magnânima atividade
sobre a Literatura Cabo-verdiana, com a Medalha do Vulcão
de Primeira Classe, pelo Presidente da República de Cabo
Verde em 2007, e de ter sido escolhida e agraciada para fazer
parte da Academia Cabo-verdiana de Letras, a partir de sua
fundação em 2013, como Membro Honorário.

Corsino António Fortes


Presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras

8
LITERATURA E CULTURA EM CABO VERDE

País africano de desenvolvimento médio composto de


dez ilhas que flutuam no Oceano Atlântico, Cabo Verde
desponta muito interesse, na atualidade, por sua riqueza
cultural, expressa principalmente na música e na produção
literária.
Optamos, nesta seleta de textos, voltada
principalmente para quem começa a conhecer a produção
cabo-verdiana, por apresentar autores e obras expressas em
língua portuguesa que têm contribuído para desenhar o rosto
do que poderíamos denominar um corpus literário cabo-
verdiano, que caminha em paralelo com as facetas e
processos da identidade plural que este povo vem construindo
no decurso da história.
Esclarecemos, para justificar possíveis lacunas (rasura
que toda antologia acaba por cometer), em primeiro lugar,
que a escolha dos textos derivou diretamente das atividades
acadêmicas, mormente as exercidas na Universidade de São
Paulo (Brasil), no último setênio, em cursos específicos de
Literatura Cabo-verdiana (no âmbito da disciplina Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa) dos quais participaram
alunos de Graduação, Mestrado, Doutorado e pesquisadores
9
de Pós-Doutorado, e nas reuniões e realizações do Grupo de
Estudos Cabo-verdianos de Literatura e Cultura (CNPq)
liderado por Simone Caputo Gomes, do qual faz parte Érica
Antunes Pereira.
Destaque é dado, por tal motivo, a textos ou excertos
que têm frequentado mais constantemente os trabalhos e
pesquisas realizados pelos membros daquele grupo e pelos
alunos dos diferentes cursos ministrados em diferentes níveis.
Portanto, outras obras de reconhecido mérito literário (e até
em língua cabo-verdiana) poderiam ter sido elencadas nesta
antologia, mas ressalvamos que, desta feita, nossa opção foi
por apresentar aquelas que têm sido reiterado objeto de
preferência dos estudantes para tema de suas pesquisas.
Face ainda à existência de antologias que têm incluído
em seu corpus mais textos de períodos iniciais da literatura
cabo-verdiana, preferimos, nesta recolha, privilegiar outros,
mais recentes ou de conhecimento de reduzido público, que
circulam − por vezes minimamente − somente no
arquipélago, ou não chegam facilmente ao Brasil. Nosso
intuito principal é ampliar o seu campo de recepção.
Outro esclarecimento oportuno reside no fato de que
esta seleta se desdobrará num segundo volume, já em
adiantado preparo, com textos, inclusive inéditos, que se
10
ancoram nas relações entre Cabo Verde e Brasil,
acrescentando à primeira recolha autores e obras não
apresentados neste volume inicial.
Vale ressaltar ainda que respeitamos aqui a grafia
original dos textos literários, pois que alguns introduzem
elementos antropológicos específicos da cultura híbrida cabo-
verdiana, tais como: a língua oral (o crioulo) que convive
com o português escrito herdado do colonizador; a morna, a
coladeira e o funaná, assim como o batuque, modalidades
musicais e rituais que aliam traços das culturas portuguesa e
africanas transportadas para o arquipélago; e a culinária à
base do milho, de origem afro-americana.
Com amplo espectro de produções em poesia e prosa,
gêneros mais praticados por autores que vive(ra)m nas ilhas
ou na diáspora, pretendemos apontar alguns caminhos para
que o leitor possa mergulhar seus pés no chão cabo-verdiano,
convivendo com a sua maior riqueza.

Érica Antunes Pereira e Simone Caputo Gomes

11
POESIA

12
Arménio Vieira

13
Arménio Adroaldo Vieira e
Silva nasceu em 1941, na ilha
de Santiago, cidade da Praia.
Foi professor, jornalista,
redator do jornal Voz di Povo
e membro fundador do grupo
Sèló. Sua veia satírica e
crítica é exercitada em participações nas revistas Vértice,
Raízes, Makua, Alerta, dentre outras, e lhe valeu dois anos de
prisão na PIDE, na década de sessenta. Poeta e ficcionista,
publicou: Poemas (1981), MITOgrafias (2006), O poema, a
viagem, o sonho (2009), O Brumário (2013 e Derivações do
Brumário (2013), em poesia; na ficção, O eleito do sol (1990)
e No inferno (1999). Recebeu o Prémio Camões em 2009.
Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras.

14
Construção na vertical

Com pauzinhos de fósforo


podes construir um poema.

Mas atenção: o uso da cola


estragaria o teu poema.

Não tremas: o teu coração,


ainda mais que a tua mão,
pode trair-te. Cuidado!

Um poema assim é árduo.


Sem cola e na vertical,
pode levar uma eternidade.

Quando estiver concluído,


não assines, o poema não é teu.

VIEIRA, Arménio. Mitografias. Mindelo: Ilhéu, 2006, p. 28.

15
Toti Cadabra
(Vida e morte severina)

“Toti Cadabra”, nome exacto para um


ser marginal.
Estes versos são o teu epitáfio; depois
deles nunca mais falarão de ti.

No enterro de Toti
nem padre nem gente
na campa de Toti
nem flor de finado

Na campa-buraco
teu corpo mirrado
já eras da larva
bem antes da cova

Toti Cadabra
de vida macabra

16
já eras cadáver
bem antes da morte

Bem antes da morte


já eras cadáver
Toti Cadabra
de vida sinistra

o grogue e a fome
são traças são bichos
já eras da larva
bem antes da cova

No enterro de Toti
nem padre nem gente
na campa de Toti
nem flor de finado.

VIEIRA, Arménio. Poemas. Mindelo: África, 1981, p. 14-15.

17
Corsino Fortes

18
Corsino António Fortes nasceu em
1933, na ilha de São Vicente.
Licenciado em Direito pela Faculdade
de Direito de Lisboa (1966), exerceu a
sua atividade profissional na
Magistratura em Angola, onde foi Juiz
do Tribunal de Trabalho de Benguela.
Diplomata, atuou como Embaixador extraordinário e
plenipotenciário de Cabo Verde em Portugal, Espanha,
França, Itália, Noruega e Islândia, entre 1975 e 1981; em
Angola, foi embaixador entre 1986 e 1989, exercendo função
semelhante em São Tomé e Príncipe, Zâmbia, Moçambique e
Zimbabwe. De 1989 a 1991 desempenhou o cargo de
Ministro da Justiça e, até recentemente, foi Presidente da
Fundação Amílcar Cabral. Poeta, publicou a trilogia A
cabeça calva de Deus (2001), composta dos livros Pão &
fonema, Árvore & tambor e Pedras de sol & substância.
Atualmente, preside a Associação de Escritores Cabo-
verdianos (AEC) e o Conselho de Administração da
Companhia de Seguros Ímpar, em Cabo Verde. Faz parte de
antologias em várias línguas, como inglesa, francesa, italiana,
holandesa. Presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras.

19
Do nó de ser ao ónus de crescer

ILHA

Do nó de ser ao ónus de crescer


Do dia ao diálogo
Da promoção à substância
Romperam-se
As artérias
Em teu património
Agora povo agora pulso
agora pão agora poema

Ilha
Ilhéu ilhota
noite
noite alta
E o batuque não pára
Em nossas ancas

AGORA POVO AGORA

20
Que as colinas nascem
na omoplata dos homens
Com um cântico na aorta
Árvore & Tambor tambor & sangue
Punho
pulso de terra erguida
Agora
No crânio da Boa Vista
Naufragam mastros e caravelas
E
O mar é rosto que advoga
Entre os tambores e as ilhas em matrimónio
Agora povo agora pulso
agora pão agora poema
Ilha
Ilhéu ilhota
noite
noite alta
E o batuque não pára
nas nossas ancas de donzela

AGORA PULSO AGORA

21
Que todo o pão é exequível
Depois da árvore antes do tambor
Depois da fonte antes do fonema
Antes da gengiva
dente e embrião
Que morde
Na mó de pedra
lasca e lisa
O tegumento na sua casca
Agora
Que a ilha cresce na viola do exílio
E
No violão do trovador
Um coração de napalm
Agora povo agora pulso
agora pão agora poema

Ilha
Ilhéu ilhota
noite
noite alta

22
E o batuque não pára
Em nossas ancas

AGORA PÃO AGORA

Que o pilão viaja com pés de Portinari


Ultrapassando o abcesso
Das ribeiras em viagem
Com hélices de pedra
Ao redor da pedra
E teias de aranha no poente da boca
Agora
Que navios descem
Cadamosto
As terras de pozolana
Carregados de cio E selo branco
E ressonam
Osso osso de caprino sono
E
O milho é datio pro solvendi
Com o timbre de moeda na retina
A usura dos mercados debaixo da língua

23
Agora povo agora pulso
agora pão agora poema

Ilha
Ilhéu ilhota
noite
noite alta
E o batuque não pára
nas nossas ancas de donzela

AGORA POEMA AGORA

Que do marulho
às pedras de sílaba longa
Os joelhos rompem
ilhas da tua boca
O violão da unha
a viola e o vento
Viola do tempo ao tempo grávida
De sub
ou

24
de substância
E todo o fósforo Que soma
A árvore do teu lábio

Ao tambor de tal tâmara


E
Do som E da saliva
Volva o ovo o colmo
Que te apelidam
Do fonema ao fruto
Dedo a dedo polegar e seiva
Na tosse tosse da carne óssea
Tossindo verde
De gema-fogo no poço dos joelhos...
Agora povo agora pulso
agora pão
agora poema agora

FORTES, Corsino. A cabeça calva de Deus. Lisboa: Publicações Dom


Quixote, 2001, p. 75-78.

25
Oráculo

Quando o arquipélago aperta


perto! longe
A mão dos continentes

Quando a ilha rasga no deserto


uma cicatriz de pedra
Jamais o crânio de sol! no mastro da solidão...
Uma pedra no deserto + um dragoeiro
Um anjo da guarda! no útero da paisagem

Não! na ilha

Toda palavra é útero de sete pedras


E
Toda a pedra é um poeta bissexto
Leva quatro anos de pudor
E quarenta & tantos de paixão
Para inundar o deserto da estiagem
Com o dilúvio de chama que bebe
Nas crateras do jazz & batuque da esperança

26
FORTES, Corsino. A cabeça calva de Deus. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 2001, p. 217.

27
David Hopffer Almada

28
David Hopffer Almada nasceu em
1945, em Santa Catarina, na ilha de
Santiago. Licenciado em Direito
(Coimbra), é advogado e consultor
jurídico. Foi Ministro e Secretário de
Estado em vários governos; membro da
Comissão da Revisão Constitucional;
representante do Parlamento Cabo-verdiano na Assembleia
Parlamentar dos Países da África, Caraíbas e Pacífico, dentre
inúmeros cargos de relevo. Atuou ainda como deputado na
Assembleia Nacional. Autor de: Canto a Cabo Verde (1988),
Vivências (2004) e Cabo Verde de esperança (2013), em
poesia. Ensaios: Cabo-verdianidade e tropicalismo (1992),
Pela cultura e pela identidade – em defesa da cabo-
verdianidade (2006) e Cabo Verde e os caminhos do futuro
(2012), dentre outros. Membro da Associação de Escritores
Cabo-verdianos, da Sociedade Cabo-verdiana de Autores e
Presidente da Assembleia Geral da Academia Cabo-verdiana
de Letras.

29
Ilhas de Cabo Verde

Verdes de nome
Castanhas de rosto
Quais grãos de pedra
Ao mar azul lançadas
Das entranhas do negro continente
Vomitadas
Adormecidas no oceano
Abraçando o mundo
Mirando o futuro
Cheias de esperança
Prenhas de amor
São as Ilhas
De Cabo Verde chamadas!

ALMADA, David Hopffer. Cabo Verde de esperança. Praia: Artemedia,


2013, p. 116.

30
Canto a Cabo Verde

Quero
Um canto diferente
Para CABO VERDE!

Quero
Uma canção diferente
Para estas Ilhas
Para este País.
Para este Povo!

Já não somos
Os Flagelados do Vento Leste...
Dominámos os ventos!
Já não somos os contratados
Como animais de carga para o Sul...
Conquistámos a dignidade de Gente!

Por isso
É preciso que se cante
Uma canção diferente

31
A Cabo Verde...

Por isso
Vou cantar
De forma diferente
Um novo canto
Para esta Pátria do Meio do Mar!
Vou esquecer, enterrar
Os lamentos, as lamúrias
A tristeza
De quem quer ficar
Com o destino de ter que partir!

Não vou chorar


A pobreza, fraqueza
A seca
A natureza madrasta...!

Canto
O heroísmo deste Povo
Que desafiando o destino
E desobedecendo aos deuses

32
Doma a natureza
Vence os mares
E adormece os ventos
Que teimosamente
Vai vestindo de verde
A terra feita seca e árida
Que água doce bebe
Bebendo nas salgadas ondas
Do oceano
Que faz pedras germinar
E espinhos florir
Que sobre lavas
Planta jardins
E sobre rochas
Cultiva pomares
Que do vento quente do deserto
Faz deliciosa e suave brisa
De lindas noites tropicais!

Canto
Este Cabo Verde triunfante
Que do dia de ontem

33
Se vai libertando
Erguendo numa das mãos
A bandeira da paz e da concórdia
Na outra segurando
O facho da tolerância e liberdade!

Canto
Estes dez grãozinhos de África
Postados no meio do Oceano e dos Continentes
E do meio do mar
E do meio do mundo
Vão distribuindo rotas
Assinalando caminhos
A todos oferecendo
Em ofertório permanente
O calor de sua morabeza
E o aconchego
Do seu abraço!

Canto
Estes Homens e Mulheres
Que

34
Sulcando mares
Para terra longe
Ou voando ares
Para destino incerto
Errantes em terra alheia
A todos vão levando o progresso e bem-estar!

Canto
Este País
Independente, Soberano e Livre
Canto
Este Cabo Verde
Senhor do seu destino
Arquitecto dos seus caminhos
Obreiro dos seus passos!

Canto
Este País de mar azul
Céu aberto
E montanhas altivas!

Canto

35
A tabanca de Santiago
O carnaval do Mindelo
E o “um de Maio” de S. Filipe!

Canto
A alegria deste Povo
Do funaná
Do batuque
Da morna
E da coladeira!

Canto
Para este Povo
Um canto de alegria
De sabura
De confiança
De certeza
De amanhã
Quebrando as sinas
E os destinos
Quebrando as tristezas
E o desespero

36
De ter que caminhar
Pelos caminhos que vão a S. Tomé
Quebrando todas as cadeias
De contratado
De dominado!

Sim
Quero
Um novo canto
Para Cabo Verde
Um novo canto
Para este País
Que pedra a pedra
Se está a construir
Que lentamente
Do nada do passado
Vigorosamente
Se levanta para o futuro!

ALMADA, David Hopffer. Cabo Verde de esperança. Praia: Artemedia,


2013, p. 98-105.

37
Eugénio Tavares

38
Eugénio Nozolini de Paula
Tavares nasceu em 1867, na ilha
Brava, onde faleceu, em 1930.
Poeta, ficcionista, jornalista,
compositor. Autodidata, como
jornalista dominou o cenário
crioulo de 1890 a 1930 e foi também considerado o maior
poeta em língua cabo-verdiana. Teve efêmera passagem pela
vida oficial do arquipélago, sendo forçado a emigrar para
América, por motivo de perseguição política. Fez sua estreia
literária aos quinze anos, no Almanaque de Lembranças
Luso-brasileiro. A sua vastíssima obra vai da poesia à
música, da retórica à ficção, passando pelos ensaios, e dela
destacamos: Mornas: cantigas crioulas (1932), Eugénio
Tavares: pelos jornais... (Recolha, organização e prefácio de
Félix Monteiro, 1997); Viagens, tormentas, cartas e postais
(Recolha, organização e notas biográficas de Félix Monteiro,
1999). Patrono da Academia Cabo-verdiana de Letras.

39
A Pedro Cardoso (Hino)

Revolução ou morte! eis o nosso dever.


A paz é, já, um crime; e morte infame, a vida.
E se havemos de, irmãos, um dia apodrecer
No ventre desta terra infausta, tão querida;

Se a Pátria santa ao mal temos que ver rendida,


Se a aurora do combate um dia há-de romper,
Se a lágrima, e o suor, e o sangue há-de correr,
Avermelhando o mar e a terra envilecida;

E se hão-de um futuro incerto, derramá-los,


Filhos do nosso amor, às mãos dos mercenários,
Pátria e filhos — irmãos! — tentemos nós salvá-los!

Morte ou Revolução: que não há cobardia


Que iguale a de legar a filhos os calvários
De nomes com brasões de lodo e vilania!

40
TAVARES, Eugénio. Poesia, contos, teatro. Recolha de Félix Monteiro;
organização e introdução de Isabel Lobo. Praia: Instituto Caboverdiano
do Livro e do Disco, 1996, p. 31.

A emigração

(A propósito da emigração para S. Tomé e Príncipe)

Como é triste e é desolador,


Ver partir, aos magotes, esta gente,
Entregue ao seu destino, indiferente
A tanto sofrimento, tanta dor!

Se a sorte ainda a traz à terra amiga


Macilenta, tristonha, depaup’rada,
Com a doença do sono, já minada,
Ao cemitério um só coval mendiga!

Mas por que ides, assim arrebanhada,


A essa maldita terra de desterro?
É a fome que vos leva acorrentada?

41
Aproveitai melhor a mocidade
E ide mais distante, ide à América
A terra do trabalho e liberdade!
(Orion)

TAVARES, Eugénio. Poesia, contos, teatro. Recolha de Félix Monteiro;


organização e introdução de Isabel Lobo. Praia: Instituto Caboverdiano
do Livro e do Disco, 1996, p. 38.

Triste regresso

A José Bernardo Alfama

Dentro da claridade plúmbea da manhã


A Ilha, sobre o mar, lembra uma catedral.
As nuvens em silêncio imergem devagar
Qual um fumear de incenso
Num ascetismo intenso,
Num perfume subtil de velha fé cristã,
Pelas naves glaciais da brônzea catedral,

42
A ilha, sobre o mar.
E sobem vagamente em lágrimas banhando
A dura fronte augusta e grave dos rochedos.
Bebe em fundo silêncio a terra fulva, adusta,
A lágrima que cai;
E a nuvem passa, vai,
Numa insondável mágoa imensa rorejando,
Em gélido suor, dos túrbidos rochedos
A dura fronte augusta.
Mas, já da opa cinzenta a Ilha se desnuda,
Beija-a com fúria o sol, dentes de fogo a comem
O vento reduziu-lhe a trapos o lençol.
Emerge, se acentua,
Do mar, imóvel, nua,
Transida de tristeza, em uma angústia muda...
E enquando ao longe as nuvens álgidas se somem
Beija-a com fúria o sol.
Da c’roa do platô à fímbria da leveza
As árvores sem vida estorcem-se de sede
E o sol — bem como um rei fanático, homicida, —
Fustiga-as a matar.
E ri-se ao incendiar

43
Os ramos — como mãos erguidas de quem reza —
E as folhas — como mãos abertas de quem pede —
Das árvores sem vida.
Enfim, o meu Navio, aos poucos, se aproxima.
Nos tristes olhos meus em lágrimas, rebrilha
A dita de ancorar após mil escarcéus.
E, pois que as nuvens vão
Fugindo na amplidão
Sem que uma gota de água enviem lá de cima,
Darei à tua sede o pranto — ó minha Ilha! —
Dos tristes olhos meus.

TAVARES, Eugénio. Poesia, contos, teatro. Recolha de Félix Monteiro;


organização e introdução de Isabel Lobo. Praia: Instituto Caboverdiano
do Livro e do Disco, 1996, p. 75.

44
Filinto Elísio

45
Filinto Elísio de Aguiar Correia e
Silva nasceu em 1961, na ilha de
Santiago. Poeta, cronista e
romancista, é bibliotecário e
administrador de empresas, por
formação. Foi professor em Boston e em Somerville (EUA).
Foi assessor do Ministro da Cultura e hoje é Conselheiro do
Primeiro-Ministro de Cabo Verde. Colaborador do semanário
A Nação. Publicou: Do lado de cá da rosa (1995), O inferno
do riso (2001), Das frutas serenadas (2007), LiCores &
AdVinhos (2009), Me_xendo no baú. Vasculhando o U
(2011), em poesia. Na prosa, Prato do Dia (2001, crônicas),
Das Hespérides (prosa, poesia e fotografia), 2005, Outros
sais à beira-mar (2010). É um dos escritores mais produtivos
e mais versáteis quanto à pluralidade de gêneros da literatura
cabo-verdiana contemporânea. Membro da Academia Cabo-
verdiana de Letras.

46
Fuligem, riso e vertigem

Na pedra — água que romoreja.


No gargalo do mar — ali gorjeia:
Ave sem voo, rima e penugem,
Viagem contida num âmbar...

Tornar — algo sem azo, zoeira,


Poeira que, suspensa, se esvai
Do cimo do monte, e nas dunas
Insular de areia, broa da ilha...

O Tempo — ruinoso e tão à-toa,


Longínquo no travo e na treva,
Réstias de cacimba, névoa e griso...

De vide, fuligem, sendo verso


Dessa margem, riso e vertigem
Ou fonema virando poema...

ELÍSIO, Filinto. Li Cores & Ad Vinhos. Lisboa: Letras Várias, 2009, p.


49.

47
Ora sou água

Ora sou água, ora sou fogo,


E se me invento terra, ar
Que lhe leva o vento, ora
Sou nuvem, pura miragem.

Em verdade, nem por enfado


Ou por desafio, eu seria outro;
Mesmo que a vida, por um fio,
Preciosa, se remira em ouro.

Mais que a abelha à roda da rosa


Ou do mar lambido na praia
Ora sou prosa, ora sou poema.

Poente que sou, mirante de nada,


Cavaleiro andante, aventureiro,
Puro horizonte tudo o que sou...

ELÍSIO, Filinto. Li Cores & Ad Vinhos. Lisboa: Letras Várias, 2009, p.


61.

48
quem te tatuaria?

quem,
me_xendo no baú
de tua tatuagem
desenhou-te
(em lápis de cor
ou, sei lá, tinta da China)
negro dragão
tão alva lua
e graciosa borboleta?

quem,
vasculhando o U
de tanta miragem
navegando-te
(em teu corpo-delito)
pecou maçã
tâmara
e manga-rosa?

sabê-lo ser alguém


de ditoso e de distante
(que é do vaga-lume sem sua noite?);

sabê-lo,
por teus cantos, demorado
(como pão quente, chá de manjerico e milho novo);

sabê-lo,
silente de guardado,

49
ou tão-somente silenciado
(tresandado sândalo e seu pecado)...

ah, sem tanto alarde,


desoficinar poesia
(e sabê-lo Deus, todavia);

ah, mesmo que tarde,


seres lacre que sela
carta já fechada à língua;

seres ainda que cifra,


toda a mensagem de olhos
tua nuvem virando viagem...

ou luar,
que comigo assim mexe
agora que nua te pressinto

re_mexendo...

ELÍSIO, Filinto. Me_xendo no baú. Vasculhando o U. Lisboa: Letras


Várias, 2011, p. 68.

50
João Varela

51
João Manuel Varela, neurocientista
e escritor, nasceu na ilha de São
Vicente, em 1937 e faleceu em
2007. Utilizou, na sua obra, vários
heterônimos, desdobrando-se entre a
poesia, a ficção e o ensaio. Estudou
Medicina nas universidades de Coimbra e de Lisboa e
doutorou-se na universidade de Antuérpia, na Bélgica, onde
foi professor. Ao jubilar-se, depois de viver em Angola e no
Lesoto nos anos setenta e oitenta, regressou à sua terra natal,
o Mindelo, após uma ausência de quarenta anos. Sua
atividade literária iniciou-se com Horas sem carne (Coimbra,
1958, poemas). Usando o heterônimo João Vário, publicou
Exemplos 1-9, volume que reúne os Exemplos Geral (1966),
Relativo (1968), Dúbio (1975), Próprio (1980), Precário
(1981), Maior (1985), Restreint (1989), Irréversible (1989) e
Coevo (1998). Como Timóteo Tio Tiofe, publicou O
Primeiro e o Segundo livros de Notcha (1975 e 2001). Na
ficção, como G. T. Didial, deu à estampa Contos da
Macaronésia (contos, 2 volumes, 1992 e 1999) e o romance
O Estado impenitente da Fragilidade. Membro da Academia
Cabo-verdiana de Letras.

52
Prólogo

E, então, viemos do litoral desse continente.


Escravos, éramos escravos.
Sem mamíferos, sem árvores de fruta,
sem grãos de semear ou de rendimento,
aqui nos estabelecemos para fundar cidades.
Sem cursos de água. Com tormentos e cadáveres.

E cavámos poços para dar de beber às crianças


e covas para sepultar os pais mortos,
diante dos olhos dos filhos de Europa. Oh
sepultámos os nossos mortos, nesta terra
os sepultámos. Sem madeira nem óleos.
Depois, fendemos lenha, levantámo-nos
e procurámos um lugar limpo para o pranto.
(Éramos já velhos e adiantados em idade
e o sono se fora de nossos olhos).

E, chegados ao lugar, fizemos aos nossos mortos


um grande e suavíssimo pranto e por nove dias o fizemos.
E tais eram as nossas solenidades.

53
E muitos e penosos trabalhos
temos passado e não ainda passaram
como os passados dias que já foram
sem que fôssemos também nós com eles
e os trabalhos em que estamos que nos deram,
porque as vidas com que ficamos
são trabalhos de deus, e os trabalhos
desta sorte coisas são da carne
e, quando não da carne, de sua maneira,
porque o mundo não toda esta terra,
e, tal como é nossa, outra coisa não é
boa ou melhor, e para ela vamos
como imortalidade ou milho de comarca
ou mesma coisa dos ossos, por que choramos,
e aqui fica na terra, melhor ou pior
que antigamente, e o escuro.

Muitos e penosos trabalhos


temos passado e não ainda disseram
das frestas das portas do arquipélago
ou do seu fogo, do seu betume ou da bosta do seu gado.

54
Como, pois, não será livre o meu povo?

E, aos três do mês quinto, à tarde, de uma tarde


a outra tarde, celebramos a libertação dos escravos.
E a oferta queimada de cheiro suave aos mortos
eram as nossas solenidades. Porque eles estão mortos,
abandonados na terra larga, inúmeros
- irmãos, irmãs, pais, filhos, homens, mulheres e crianças,
escravos de África, mortos desse tempo, cada um
em seu tempo, vítimas da escravatura e da expatriação.
E assim se disse: não há resgate para coisas consagradas.
Eles eram os antigos moradores e foram expulsos
das suas casas e trazidos para estas terras
e o sangue é hoje sobre os que chegaram
e os expatriaram e os puseram sob o bronze,
os timões da servidão e o ferro da morte.
Ah para esses, para esses não há terra limpa.
Debalde gastarão seus olhos procurando-a sobre o mundo.

Estepes de mimosas do litoral, ervas


endémicas, arbustos, fanerogâmicas

55
escassas e líquenes de lavas seculares,
plantas espontâneas, endémicas,
plantas trazidas pelos colonizadores e
clareiras abertas pelo dente do gado,
pela queimada, a enxurrada, as
quebradas, a fixação das culturas e os
ventos dominantes – e a armação dos
solos (solos salinos, argilosos,
basálticos, eólicos, de poeiras silicosas
vindas com as lestadas, e os solos
formados por capilaridade e
evaporação, solos alcalinos, solos do
litoral e solos do interior destas terras –
de sítios chãos e dos lugares abrigados,
húmidos solos, solos férteis, solos dos
andares altos destes climas – de húmus
e tufos, água e ventos gerais,
condensação de humidade e menos
incertas chuvas) – ó plantas
disseminadas pelas aves e os insectos
que chegam com as lestadas ou plantas
de inflorescências anódinas, de azul

56
vivo ou amarelo dourado, plantas de
lugares abandonados e dos pousios, das
bordas dos campos e dos rochedos
inacessíveis, plantas da curtimenta das
peles ou plantas raramente úteis, tal o
lentisco, e plantas que dão a morte no
tempo das estiagens, em que se comem
para enganar a fome, tal fêdagoza que
nos matou a mãe, que nos matou o pai,
que nos matou os irmãos, que nos
matou os avós. Mas ele diz: “havemos
de encontrar nosso lugar no mundo”.

E mesmo para aquele que lamenta “E


por que nos trouxeram do continente
para este lugar inóspito, lugar não de
semente, nem de figos, nem de história,
nem fauna, nem água para beber” ah
também para esse se agita a língua de
Blaida, dizendo: “há um tempo para
todas as coisas, todas passam debaixo
do céu segundo seu tempo e há um

57
tempo para todo o propósito debaixo do
céu”.

Que rotas seguiram as gentes do Sudeste


e do centro daquele outro país?
Sabemos muito pouco destas coisas:
do cruzamento destas civilizações, dos homens
do Mediterrâneo e dos homens do Norte,
dos escravos de Benin, do Senegal, do Goreu e das Antilhas
e ignoramos se estas terras eram, na realidade, desabitadas.
E que sabemos, em verdade, das ilhas ditas das Tartarugas?
Porque outros falam de préhistória, de antigas feitorias,
de reinos, de tribos, de comunas, de latifúndios,
de tipos de minérios e de relevo,
de rede hidrográfica e de monopólios,
de arcaísmos dominantes e de pecuária.

Mas nós escrevemos: “São alguns quilómetros


quadrados de terra emersa. E diz-se que nada
se passou neles antes da chegada dos portugueses”.

58
Foi um povoamento lento e difícil,
contrariado pelas erupções que
incendiaram ou cobriam os tufos
incipientes de vegetação e pela
formação morosa dos solos em luta com
uma erosão brutal.

“Eu sei, eu sei que preferimos os lugares


altos, os arbustos ramosos, as culturas
de rendimento e o vento que sopra para
a floração”.

Trata-se de uma população em


panmixia e em notável equilíbrio
genético.

Tal os homens crescem para um tempo de razão


ou história e afogam na terra, ainda
larga e molhada de mulheres,
as maçãs do rosto, que não há outras
nem maçãs menos mortas, e de mulheres, que houve tantas.
Azeite sobre tais corpos remotos.

59
Azeite. Azeite puro e próprio. E
círios nativos.

TIOFE, Timóteo Tio. Prólogo (terceira parte). In: O primeiro livro de


Notcha. Mindelo: Publicações Gráfica do Mindelo Ltda, 1975, p. 49-52.

60
Jorge Barbosa

61
Jorge Vera-Cruz Barbosa nasceu em
1902, na ilha de Santiago, e faleceu na
Cova da Piedade, Portugal, em 1971.
Juntamente com Baltasar Lopes e
Manuel Lopes fez parte do primeiro
grupo da revista Claridade, publicada
de 1936 a 1960. Firmou-se como o mais significativo poeta
da sua geração e sua obra compreende: Arquipélago (1935),
Ambiente (1941), Caderno de um ilhéu (1956) e Poesia
inédita e dispersa (1993). Teve colaboração dispersa em
vários periódicos, como Certeza, Atlântico, Claridade, Cabo
Verde, Nôs vida, Jornal da Europa, Seara Nova, Presença,
entre outros. Teceu claro diálogo com a poesia modernista
brasileira de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Ribeiro Couto.
Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras.

62
Pretinha dos Picos

Agora não,
pretinha.

Quando a chuva cair


e os frutos cobrirem
os campos de fartura,
então, sim,
o amor será contigo.

Assim esfarrapada,
escanzelada e faminta,
o amor não é contigo.
Não é mais ardor
no teu coração,
nem chama,
nem miragem,
nos teus olhos tristes
de verem a terra
desolada e ressequida.

63
Pretinha de um povoado
algures nos Picos,
quem sabe que existes?
Quem sabe do teu
pequeno direito
à vida e aos sonhos?
Pretinha ignorada,
pretinha esquecida,
o amor
agora não é contigo.

Sem força,
os teus braços magros já não servem
para apertares
o teu namorado
de encontro ao peito.
Nem tua fala tem mais
palavras de ternura.
Ficou-lhe apenas
o hábito das rogativas,
humildes, com que estendes
a mão pelos caminhos

64
e das súplicas tementes
ao São Salvador do Mundo,
orago festejado
da tua freguesia,
para que as águas do céu
não tardem mais.

Agora, pretinha,
a terra desamparada
é um deserto à tua volta.
No seu colorido
vermelho escuro e pesado,
os campos áridos parecem,
ao sol que os abrasa,
cobertos de sangue
pressago e coagulado.

Agora
tudo é silêncio
e um mudo desespero
à tua volta, pretinha.

65
Onde o harmónio,
velho companheiro
dos teus avós?
Não mais o seu canto
confidenciando queixas
e males antigos,
ainda sem remédio,
não mais o seu canto
longínquo e melancólico,
pairando na calma
nocturna da ilha.

Onde os batuques,
contigo dançando
no terreiro?
Nos passos sincopados,
no quadril ondeando,
nos seios pequenos
vibrando ajustados
à blusa apertada,
na volúpia do corpo
flexível e ágil,

66
ora coleante
e fugidio,
ora em delírio,
ora em pânico,
ora em êxtase,
tu vivias e continuavas
a dança ancestral,
mas agora
o amor não é contigo.

Onde os batuques,
contigo dançando
na toada dolente
e metálica da viola,
ao compasso insistente
do coro e das palmas?
Vozes remotas de África,
rumores seculares
da África-Mãe,
ressoando nas almas,
ecoando ao longe
na noite quente

67
da ilha esquecida!

O amor, pretinha,
agora não é contigo.
Quando a chuva cair
e as espigas
e as vagens
forem já ofertas
da terra revivida
e as melancias,
os melões,
as abóboras
rolarem sobre os campos,
quando a chuva cair
quando as violas e os harmónios
voltarem com seus cantos

Arrastados e lentos,
enchendo de melodias
a tranquilidade da noite,
então, pretinha,
o amor será contigo.

68
Quando a chuva cair,
tudo será bom depois.

Haverá animação pela festa


de São Salvador do Mundo,
com procissão presidida
pelo Bispo da Diocese.
Homens graves dos Picos
pegando as varas do pálio,
solenemente.

Haverá foguetes
e bombas, reboando
pelos montes,
grog escorrendo,
ardendo nas gargantas,
incitando conversas,
afastando tristezas
e lembranças recentes.

Levarás vestido novo,

69
brincos de fantasia,
colar de contas pesadas
pendentes sobre o peito
arfante de emoção.
Teu namorado dará
anel dourado com uma
pequenina pedra de vidro,
cor de estrela brilhando.

Escanchado na montanha,
a mão firme na rédea,
o americano fará,
por tua causa somente,
rodeios e habilidades
no pequeno largo da igreja
e abalará pela estrada
no macho respigão.

Quando a chuva cair,


o amor será contigo.

A limpidez da água

70
corrente das ribeiras,
o cintilar argênteo
do orvalho na folhagem,
terão reflexos no brilho
dos teus olhos úmidos.

Treinados nos trabalhos


duros da lavoura,
sentirão os teus braços
outra vez o vigor,
com que apertarás
o moço que tu amas
de encontro ao seio.

Na tua voz segredada


dir-lhe-ás então as palavras
mais ternas e líricas
de amor e de sonho
e os teus beijos terão
o açucarado e ácido
sabor a laranja
ainda mal madura.

71
Quando a chuva cair,
não mais a perspectiva
do alistamento e do êxodo
para São Tomé,
ilha longe e sombria
do Golfo da Guiné.

Não mais, pretinha,


a tua mão estendida,
humilde, pelos caminhos.

Pelos caminhos irás


com os frutos da terra
sustidos à cabeça,
em equilíbrio ajustado
à flexão ágil do tronco,
ao lançamento das pernas
musculosas e firmes,
ao balanço dos braços
e ao ritmo certo
da marcha apressada.

72
Quando a chuva cair,
o amor será contigo,
pretinha dos Picos.

Teu namorado
levar-te-á pela cintura
para um recanto escondido
detrás da folhagem.

BARBOSA, Jorge. “Pretinha dos Picos”, in Cabo Verde, n. 123, dez.


1959, p. 20-21.

Balanço

5 séculos
sem História
mas com muitas
histórias pra contar.

5 séculos

73
tristes e lentos
de longa penitência
vincados e sofridos
na alma
atormentada das ilhas
guardados ainda
nos recessos da memória.

5 séculos
o Porto Grande
(agora
tardiamente lembrado)
desde sempre abandonado
na rota do Atlântico.

Por pouco sentíamos


as sereias dos vapores
os guindastes
os vagons
os rumores mecânicos
do porto vizinho de Dacar.

74
5 séculos
5
estradas talvez.

Mas não vale


a pena contar
as estradas
a água
os fios telefónicos
as bibliotecas
as pequenas escolas rurais
(sem carteiras
sem mapas
sem giz).

Portos
cais
guindastes
(mecânico
apenas um)
não vale

75
a pena contar.

Médicos
enfermeiros
hospitais
maternidades
raios X
postos sanitários
(sem pensos
sem quinino
sem tintura)
não vale
a pena contar.

5 séculos
não vale
a pena contar
o pouquíssimo que ficou
da longa
jornada sem venturas
não vale

76
a pena contar
o muito
quase tudo
que nunca tivemos.

5 séculos
homens
mulheres
crianças
amontoados nos porões
da nossa frota imperial
no rumo de São Tomé
não vale a pena
não podemos
contar.

BARBOSA, Jorge. Poesia inédita e dispersa. Prefácio, organização e


notas de Elsa Rodrigues dos Santos. Lisboa: Edições ALAC, 1993, p. 82-
83.

77
Jorge Carlos Fonseca

78
Jorge Carlos de Almeida Fonseca nasceu
na ilha São Vicente, em 1950. É poeta,
jurista, professor universitário e,
atualmente, o Presidente da República de
Cabo Verde. Foi Diretor-Geral da
Emigração de Cabo Verde entre 1975 e
1977 e Secretário-Geral do Ministério dos Negócios
Estrangeiros de Cabo Verde entre 1977 e 1979; entre 1991 e
1993 foi Ministro dos Negócios Estrangeiros no primeiro
Governo da II República. Presidente do Conselho de
Administração da Fundação Direito e Justiça, fundador e
diretor da revista Direito e Cidadania. Publicou, no campo da
poesia: Silêncio Acusado de Alta Traição e de Incitamento ao
Mau Hálito Geral (1995), Porcos em Delírio (1998), tendo
ainda participado em diversas revistas e antologias, como
Mirabilis – de veias ao sol, antologia organizada por José
Luis Hopffer Almada (1998) e Destino de bai (antologia de
poesia inédita cabo-verdiana, organizada por Francisco
Fontes (2008). Membro da Academia Cabo-verdiana de
Letras.

79
Diálogos com o silêncio

1
(quem diria poder
um dia
curvar-se
a morte
perante
a colorida tribuna do silêncio?!)

ACONTECEU!
Deram-se as mãos
apaixonadas
as vértebras listadas do silêncio
e a esguia corola das palavras.

2
quisera reter-te

um instante que fosse

80
aprisionar
o sorriso prateado
de seus silêncios sem freios

porém
o vento
mais que
teus bolorados seios
pervertera já
as palavras
que jaziam
frescas
em teus olhos.

3
aquele tempo
de monges e de amancebados touros

aquela terra longínqua


de fantasmas e ajuramentado milho

81
o silêncio rebela-se:
não há olhos
que não queiram ver
e sentir
o martírio da palavra.

4
de um trago

possuiu-me
o silêncio

traiçoeiramente

de tuas mãos
soletrava o sal de uma fuga

de meu corpo
sobravam teclas de uma conjura.

82
5
ao acariciar
o silêncio
detestei
a morte.

escrevi
então
o poema

sabiamente
inimigo da loucura.

6
o silêncio em juízo
acusado de alta traição
e de incitamento
ao mau hálito geral

CONFISSÃO:

83
na noite de núpcias
engoli a ingratidão da morte
enquanto meditava
nas palavras
que
teria que sacrificar
na madrugada que
irremediavelmente acabaria por chegar.

7
enquanto o silêncio
se interroga

a negra poltrona
sonolenta
ea
viúva folha de papel químico

decidem
dizer NÃO

84
à bicha
da Caixa de Previdência.

8
nada soubera
se o tempo se fantasmas de labirintos perversos

na dança miúda das falanges


no balouço dos umbigos distantes
quem poderia enxergar o céu de uma ausência
selar o busto de uma dor
que numa só noite
desventrara todos os sonhos?!

9
repreeendendo o silêncio

eis-nos
enfim
náufragos do silêncio.

85
(de nada servirão mais palavras)

na hora incerta
do reencontro
estaremos selados
pela negrura dos ossos
e
pela nostalgia
das estações perdidas

FONSECA, Jorge Carlos. O silêncio acusado de ALTA TRAIÇÃO e de


incitamento ao MAU HÁLITO GERAL. Praia: Spleen Edições, 1995, p.
42-50.

86
José Luís Hopffer Almada

87
José Luís Hopffer Cordeiro Almada
nasceu na ilha de Santiago, em 1960, e
reside atualmente em Lisboa. Foi co-
fundador do Núcleo e do Movimento Pró-
Cultura e da Revista de Artes, Letras e
Cultura Fragmentos e um dos principais
dinamizadores do Voz di Letra (suplemento cultura do
jornal Voz di Povo, 1986-1987). Co-fundador da Spleen-
Edições (1993, organizou Mirabilis – de veias ao sol:
antologia dos novíssimos poetas cabo-verdianos (1998) e a
coletânea de ensaios O Ano Mágico de 2006 – Olhares
Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-Verdianas
(2008). Tem publicado com os heterônimos Nzé di Santý
Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral
de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e
Dionísio de Deus y Fonteana (crônica literária e prosa de
ficção), destacando-se em sua obra poética: À sombra do sol,
I e II, (1990); Assomada nocturna (1993) e Assomada
nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Águ (2005), Praianas
(revisitações do tempo de da cidade), 2009. Membro da
Academia Cabo-verdiana de Letras.

88
Raízes (POEMA DE NZÉ DE SANT´ Y AGO)

À memória de Ano Nobo, trovador e dramaturgo,e Carlos


Alberto Martins, imortalizado como Katxás dos Bulimundo

Eis que me descubro


prolixo adorador do Deus das montanhas
de Santiago
silenciosas e extáticas
contemplando o sol hipócrita
por entre a bruma

Eis que me descubro


vadia criatura de Adão e Eva
(serei Abel serei Caim?)
em pedra exprimindo
a origem sísmica do riso
na ofegante respiração dos cieiros

Eis que me descubro


vagabundo de todas as rebeldias
amadurecendo clandestinas sob os poilões
criança bon-enfant da mão afagando

89
o txopu as flores silvestres e os rudes pés de árvore
e afogando o grasnar dos corvos
no longo eco que nasce
do faiscar da camuga
na memória dos Valentes de Djulangue

Eis que me descubro


crucificado rebelado
revelado na negra estrela
arvorando numa única ponta
os lábios madrigais de Nacho
e o silêncio cataclísmico de Gervásio
caminhando sob o arbusto antiquíssimo
da memória das rezas
eclodindo leves como nuvens
no cume do Pico’l Ntoni

Eis que me descubro


quase-cadáver
transportado ao Monte Birianda
em diáfano esquife em despojada jangada
agasalhado com uma túnica azul

90
e demais indumentária campestre um
gorro de pano de algodão uma súmbia
tingida de urzela uma sulada azulejada
de esperança os velhos sambarcos
dos cultivadores de cana sacarina
e o fixo olhar alvo dos minhotos e milhafres

Eis que me descubro


humidamente caboverdiano
ou badio ou rebelde ou criança bon enfant
ou vadio ou vagabundo ou poilão ou louco
ou txopu ou crucificado ou rebelado ou revelado
ou estrela ou Nacho ou Gervásio ou Valente de Djulangue
ou Amílcar ou lucidamente Serra Malagueta
ou simples memória verde e caprichosa
vomitando solene
um repentino grito
um soberbo fuco-fuco
no rosto arrogante da insolência

ALMADA, José Luís Hopffer C. À sombra do sol (seis cadernos de


poesia). V.1; Praia: Edições "Voz di Povo"; Grafedito, 1990, p. 35-36.

91
Colina de Pedra (POEMA DE NZÉ DE SANT´ Y AGO)

Ao meu irmão Nhônhô Hopffer

Eia estrangeiros
que chegais fraternos
ao ventre da ilha

Eu vos saúdo
com o sorriso
bafejado de cieiro
com as minhas mãos calosas
com o meu diminuto esqueleto
de sobrevivente da fome

Eia estrangeiros
ouvi este som dolente
percutindo
o fado da saudade
das almas ancestrais
dos degredados

92
A morna é um crepúsculo de lágrima
desta súbita e antiga recordação

Eia estrangeiros
não se pasmem
com o frenesim dos meus ossos
marejados de revolta
como uma colina de pedra
sitiada pelo mar

O funaná é uma remota recordação


de outros horizontes
e nele deambulam
o negro e o negreiro
no imenso rio
da farsa sobre a ilha

Eia estrangeiros
ouvi ainda
o batuco o colá sanjon a coladera
o galope o rabolo o xotis o maxixe
a mazurca a trau o landum o rabolo

93
a talaia-baxu os ritmos da bandera
oh! a música da tabanca

Mas ah! estrangeiros


já não me vêem
perdidos entre o rumor dos ritmos

Continuo sendo
o sobrevivente do hostil silêncio
como uma parda colina de pedra
no meio do mar….

ALMADA, José Luís Hopffer C. À sombra do sol (seis cadernos de


poesia). V.1; Praia: Edições "Voz di Povo"; Grafedito, 1990, p. 44-45.

94
José Luís Tavares

95
José Luís (Luiz) Tavares C. Almeida
nasceu na ilha de Santiago, em 1967.
Reside em Portugal desde 1987, onde
estudou Literatura e Filosofia. Seu
primeiro livro, Paraíso apagado por um
trovão, recebeu o Prêmio Mário António
de Poesia 2004, atribuído pela Fundação
Calouste Gulbenkian. Em 2005, seu segundo livro, Agreste
matéria mundo, foi contemplado com o Prêmio Jorge
Barbosa, da Associação de Escritores Cabo-verdianos.
Publicou ainda Cabotagem & ressaca (2008), Lisbon blues
seguido de desarmonia (2008), Cidade do mais antigo nome
(2009). Vencedor do Prémio de Poesia Cidade de Ourense,
atribuído à obra As irrevogáveis trevas de Baldick Lizandro,
2010. Em 2008 e 2009 José Luís Tavares venceu por duas
vezes consecutivas o prêmio “Literatura para Todos”, do
Ministério da Educação do Brasil, com os livros À bolina em
redor do Natal e Lisbon blues. Em Cabo Verde, seria ainda
distinguido, em 2009, com o prémio Pedro Cardoso, com o
livro Tempu di Dilubri. Membro da Academia Cabo-verdiana
de Letras.

96
Onde habita o trovão

Fere. A magmática negrura desses poiais.


Bois augustos ruminando a manhã,
fazem do nada a mais tenra erva.

Fêvero, o calor fabricando seus ácidos


nas amibas mais secretas. Só de roldão
poisa o deus a vista em paisagens tão severas.

O verde, aqui, há que inventá-lo:


várzeas amarelas como se de gogh;
pedras uterinamente se alisando,
compõem essa inconclusiva tela.

O resto é contorno onde, por certo,


a vida se decompõe; sob tórridos céus
vertendo seus punhais; à míngua doutros
mais benévolos sinais.

TAVARES, José Luís. Paraíso apagado por um trovão. 2. ed. Praia:


Spleen, 2004, p. 25.

97
Percurso do Método
(Segundo Melo Neto)

modelo: oficina
modo: artesão
ferramentas: trampolim balestra
escopro (de afiar arestas)

ritmo: toada
(não essa que convoca a sesta
mas a que fuzil vergasta
escarpada brida que só abismo
cava em sua ida)

misturar no balde o duro e o sujo


a chispa realçar a convulsa dicção de tosse
no trampolim afinar a vocação de seta
essa que em pouco se ferra

erva também serve dessa rasteira


e perra (avessa portanto da palha)
a quem nem a geada requebra

98
(seu dentro é mesmo capaz de pedra
quando o estio vareja a serra)

a seco
triturar na usina mais escura
onde só à lupa se divisa a pista
do suor a limalha da cor

se der pedra ou metal


até mesmo fio cristal
não é lance acidental
mas ofício tão letal
ao umbral de dias tais

TAVARES, José Luís. Agreste matéria mundo. Lisboa: Campo das


Letras, 2004, p. 65-66.

99
Mário Fonseca

100
Mário Alberto de Almeida
Fonseca nasceu na cidade da Praia,
capital de Cabo Verde, na ilha de
Santiago, em 1939, e faleceu em
2009. Perseguido durante a
ditadura salazarista devido à sua oposição ao regime colonial,
trabalhou como professor de francês, inglês e português, além
de tradutor em países como Senegal, Mauritânia e Turquia.
De regresso a Cabo Verde, o escritor colaborou ativamente
em quase todos os jornais e revistas que circularam no
arquipélago após a independência, em 1975. Tem poemas
dispersos em revistas, jornais e antologias – Boletim de Cabo
Verde, Sèló (que fundou juntamente com os poetas Arménio
Vieira e Oswaldo Osório), África, Internacional, Solidarité,
Raízes, Poésie du monde noir (Presence africaine
d´expression portuguese). De sua obra poética constam O
mar e as rosas, confiscado em Lisboa, em 1964, à época do
encerramento forçado da então Associação Portuguesa de
Escritores pela Polícia Política, e Se a luz é para todos
(1998); em língua francesa, Mon pays est une musique (1986)
e La mer a tous les coups (1990). Membro da Academia
Cabo-verdiana de Letras.

101
Quem tem ouvidos para ouvir

quem tem ouvidos para ouvir


abra os ouvidos e ouça

mulheres parindo
em casebres
de nenhuma higiene
e muito vento

homens chorando
em tabernas
de nenhuma revolta
e muito grogue

cabras comendo
pedras
em campos
de nenhuma planta
e muita rocha

prostitutas de 13 anos

102
alugando
virgindades
por nenhum dinheiro
e muita sífilis

meninos transportando
barrigas
de nenhuma comida
e muita lombriga

senhores
de casaco
e gravata

violentando
mocinhas
por metros de chita
e muito automóvel

doidos trucidando
crianças
em ruas

103
de nenhum manicómio
e muita pide

criaturas apodrecendo
em porões
de nenhuma luz
e muita roça
e gentes
gritando
pelas ruas
viva salazar!

quem tem ouvidos para ouvir


abra os ouvidos e ouça!

FONSECA, Mário. Se a luz é para todos. Praia: PUBLICOM, 1998, p.


50-51.

104
Mário Lúcio Sousa

105
Mário Lúcio Matias de Sousa
Mendes nasceu na ilha de
Santiago, em 1964. Em 1984,
obteve bolsa do governo cubano
para estudar Direito em Havana,
regressando a Cabo Verde seis
anos depois. De 1996 a 2001, foi deputado no Parlamento.
Fundador do grupo Simentera, que reivindicou a africanidade
como elemento identitário, e da Associação Cultural Quintal
da Música. Autor dos projetos musicais que representaram o
seu país nas Expo 92 e 98, é multi-instrumentista. Atual
Ministro da Cultura. Obras: na poesia, Nascimento de um
mundo (1990); Sob os signos da luz (1992), Para nunca mais
falarmos de amor (1999); na ficção, Os trinta dias do homem
mais pobre do mundo (2000 – prêmio do Fundo Bibliográfico
da Língua Portuguesa), Vidas paralelas (novela, 2003), O
Novíssimo testamento (Prêmio Carlos de Oliveira, 2009); no
teatro, Adão e as sete pretas de fuligem (2001), Salon (2004),
Vinte e quatro horas na vida de um morto (2006) e Teatro
(coletânea, 2008). Membro da Academia Cabo-verdiana de
Letras.

106
Prelúdio

O prenhe barro que sustinha o mar


abriu-se como uma boca ou uma flor
e o sopro de um deus imaginário
- que já existia antes de Deus –
fez abrir um pedaço do Mundo
cuja alma já não cabia no corpo...
e nasceram as ilhas
que nadavam e nadavam.
As ilhas nascem nadando como as crianças nascem chorando,
mas no gérmen tudo é diferente:
as crianças nadam muito tempo antes de chorar
e as ilhas choram muito tempo antes de nadar
os dois prantos sob o signo de um parto mestiço
de água e fogo.
(a)
LUZ
LAVA e
(a)DOR.
Assim será. Assim foi, creio eu:
Dez embriões num ventre

107
dez vozes num parto
dez ilhas no mar e
dez mares para conter a alegria do meu peito.
Eu assisti ao nascimento de um mundo
ali onde se gerou o fogo
que gerou o fogo
e ficou elevado o umbigo da terra
ou vulcão
ou a raiz que evoca a diferença e a identidade.
Tudo passou num segundo
e depois – conceito que foi instante, logo e agora –
o deserto... o inaudível... a luz
e eu mil novecentos e sessenta e quatro anos atrás.

SOUSA, Mário Lúcio de. Nascimento de um mundo. Praia: Instituto


Caboverdiano do Livro e do Disco, 1991, p. 7-8.

Da mulher
a A.

E da minha última costela,

108
a minha primeira dor
dor argilosa e sem dó
como a dor do parto.
Ela, universal como a pedra,
deu à luz o seu primeiro fruto, único pecado
que ainda peco com satânico prazer
para não regressar ao barro como do barro vim.
Grande como para Deus parir
e, ainda maior,
quando
amou antes d’Aquele que amar viria a ensinar,
Ideal... porque parideira de deuses.
Mas, abre as pernas para montar
e, no acto, o cavalo relincha
e os camelos se reduzem sobre as patas
ao ponto de passarem pelo olho de uma agulha.
E eu que levo no lombo a cinza cicatrizada
penso na incicatriz e, logo,
os símbolos correspondentes começam as suas funções:
A génesis da forma,
as curvas celestiais e as pequenas elevações cónicas
os ângulos, derivações astrolábicas, sextantes depois,

109
o género do contrário
foram moldando-se à medida da minha mão:
E da minha vigésima quinta parte veio então,
o VERSUS que
a mim UNI
e tudo passou a ter o seu contrário
- se não na génesis, no género – E,
(é só pelo género
que o galo leva na cabeça uma crista
- divina recompensa por um divino anúncio) –
ela, porque no ventre levou-o no masculino
(deu à luz a luz)
e tem o dom de imitar de Deus o seu único acto,
morro no seu peito a morte íntima
impartilhável com o próprio Deus
e com a própria morte.

SOUSA, Mário Lúcio. Sob o signo da luz. Praia: Spleen Edições, 1994, p.
14-15.

110
Oswaldo Osório

111
Osvaldo Alcântara Medina
Custódio (nome literário
Oswaldo Osório) nasceu na ilha
de São Vicente, em 1937, e
distingue-se como poeta e
contista, sendo um dos
fundadores do caderno de cultura do Notícias de Cabo Verde,
o Sèló. Exerceu várias funções profissionais, como radialista,
funcionário público, empregado de comércio, presidente da
União dos Sindicatos, diretor do Suplemento de Poesia dos
Anos 80, Voz di Povo e co-fundador da página de cultura
Sèló, onde iniciou a sua atividade literária. Da sua produção
literária, destacam-se: em poesia, Caboverdeamadamente
construção meu amor (Poemas de luta, 1975), Cântico do
habitante. Precedido de duas gestas (1977), Os loucos
poemas de amor e outras estações inacabadas (1977),
Clar(a)idade assombrada (1987) e A sexagésima sétima
curvatura (2007). Publicou ainda Cantigas de trabalho –
Tradições orais de Cabo Verde (compilação e ensaio, 1980),
Emergência da poesia em Amílcar Cabral (ensaio, 1985) e
Nimores e Clara & Amores de rua (ficção, 2003). Membro
da Academia Cabo-verdiana de Letras.

112
Senhora de si

Elas agora estão mais belas

e não é na televisão ou nas capas das revistas de moda

é nas ruas nos supermercados


nas universidades nos areópagos
nos desportos nos sonhos

no lar

é o que se espelha nos olhos delas


no seu desembaraço sua desenvoltura
a rosa vitoriosa da segunda mais bela aventura
a de milhões de mulheres anónimas pulsando com a beleza da
emancipação
e como um só coração, amor e sedução

OSÓRIO, Oswaldo. A sexagésima curvatura. Praia: Dada, 2007, p. 31.

113
poema invertido no espelho

na idade da alface é só frescura


o verde mesmo de verdura
que é como quem diz
- sou chuva e fertilizo a terra que molho
quando demais esventro-a no meu mergulho

não há nada que não mude


Agora a chuva cai mansa e serena
Do alto do edifício do ministério
contemplo o mercado ao fundo velho e vazio
e digo a tremer cheio de frio
para a colega que sorri ao meu lado
— Tudo muda tudo tem seu tempo lena

OSÓRIO, Oswaldo. A sexagésima curvatura. Praia: Dada, 2007, p. 49.

114
Vera Duarte

115
Vera Valentina Benrós de Melo Duarte
Lobo de Pina nasceu no Mindelo, ilha de
São Vicente. Poeta e ficcionista, é
formada em Direito (Lisboa). Em seu
retorno a Cabo Verde, fixou-se na
cidade da Praia e começou sua carreira
como Juíza Conselheira do Supremo
Tribunal de Justiça, passando a Procuradora da República e à
Diretoria Geral de Estudos, Legislação e Documentação do
Ministério da Justiça. Foi ainda Conselheira do Presidente da
República, Membro do Conselho Superior da Magistratura,
Diretora Geral de Assuntos Judiciários do Ministério da
Justiça, Presidente da Comissão Nacional para os Direitos
Humanos e a Cidadania e Ministra da Educação e Ensino
Superior. Na literatura, publicou: Amanhã amadrugada
(poemas, 1993); em 2001, O arquipélago da paixão, obtendo
o “Prix Tchicaya U Tam’si de Poésie Africaine”; Preces e
súplicas ou os cânticos da desesperança, em 2005. Em prosa,
A candidata (romance, 2003), recebendo o Prêmio Sonangol
de Literatura, e A palavra e os dias (crônicas, 2013). Vice-
presidente da Academia Cabo-verdiana de Letras.

116
Os meninos
a Jorge Barbosa

Sobre estas praias cheirando a maresia e a peixe podre


brincam os meninos da pobreza, do abandono e do desespero.
De ranho no nariz, pés descalços e calções rotos eles
passeiam seus corpos esqueléticos, alimentados a restos e
gestos de solidariedade humana.
E quando o sol aquecer com inclemência a areia da
praia, eles deixar-se-ão cair inanimados e inertes à sombra
generosa dos botes até que um sopro de brisa ou o
desconforto da fome os conduza a novas vadiagens.
À noite ao relento adormecerão sob o barulho
cadenciado das ondas, sonharão com terras distantes, glórias
inexistentes e banquetes fabulosos até que o romper do sol e a
fome crónica os arranque do sossego cúmplice dos botes para
mais um dia de desesperanças.
Queria então estar ao lado deles e sem qualquer
palavra, passar-lhes a Estrela da Manhã.

DUARTE, Vera. O arquipélago da paixão. Mindelo: Edições Artiletra,


2001, p. 81.

117
A canção do corpoamor

ao Tony Pina
o meu poema mais longo

Ter-te-ei alguma vez dito


homem de cabelos fartos
e lábios de incenso e mel
como o ar se aquece
quando a tua presença
magicamente me envolve
e teu hálito fresco
de tambarinas maduras
acremente me inebria

Ter-te-ei alguma vez dito


homem de olhos de lua
e corpo de animal selvagem
como o meu desejo cresce
quando cresço pelas tuas pernas
de canavial soltas ao vento
para me desfazer arquejante

118
em teu ventre liso e marinho
feito de areias e desertos

Ter-te-ei alguma vez dito


homem de lábios de cana
e olhos de brilho lunar
como se me enlouquece a razão
quando as minhas mãos deslizam
ansiosas provocantes maliciosas
pelo teu corpo de homem
pelos teus músculos de mar
pelas tuas fontes de vida

Ter-te-ei alguma vez dito


homem de tormentas mil
e desassossegos vários
que tu és o meu homem

Quando
desesperada
esbracejo nas ondas furiosas
do teu universo fechado

119
you are my man

Quando
insensata
convoco deuses e tempestades
para acalmar a minha fúria
tu es mi hombre

Quando
em êxtase
cavalgo pelas estepes agrestes
do teu corpo perfeito
bô ê nha ôme

Gotas de água salgada


sulcam tuas planícies
e sinto-te em cheiros distantes
de laranjas ácidas sumarentas
sinto-te em gostos de índias exóticas
misteriosas arábias
áfricas sem fim
e frias europas

120
Tu és guiné
e és berlim
tu és praia
e és salamansa
tu és nicarágua
e es mi hombre

Quero ter-te em paixão


com sabor do maracujá
que me enlouquece os sentidos

Quero beber-te nas canas


que crescem desordenadas
no meu paul esquecido

Quero sentir-te nas mangas


tropicais latinas americanas
de sabores vários e delirantes

Por teu corpo de homem


me faço e refaço

121
desfaço e renasço

Por teus braços de homem


me entrelaço e teço
compasso e enlouqueço

Por teu cheiro de homem


me dou e me troco
vendo e me ofereço

Tu est mon homme

Em ti releio Rimbaud ardente


escandalosamente jovem e predador

Por ti recreio Buonarotti insano


precocemente vivo e delirante

Por ti revivo Biko o africano


intensamente belo e insurrecto
Du bist mein mann

122
Teu corpo é mar tormentoso
onde encalham meus desejos secretos

Teu corpo é desejo ardente


onde se pervertem meus sentidos sequiosos

Teu corpo é porto inseguro


onde se masoquiza meu ser

Teu corpo é vendaval furioso


onde se angustia minha alma

Teu corpo é corpo de homem


onde desagua meu rio de mulher

Tu est mon homme

E pelas noites de lua


beberei felina teu sangue

E nas tardes tranquilas


afagarei cariciosa teus cabelos

123
E nas manhãs luminosas
contemplarei silenciosa teu rosto perfeito

E nos poentes vermelhos


— como só nós vimos —
colherei em meu corpo febril
o fruto ardente de teu corpo
que me atravessa e incendeia
me fecunda, sossegada e serena

You are my man


You are my man

E quando meu corpo renascido


suadamente repousar sobre o teu
ouvirei o som distante
de um batuque original
nas batidas do teu coração
e em teu ventre liso e marinho
abrirei uma clareira luminosa
onde dançarei

124
nua e voluptuosa
essa dança tão africana
de alegria
de amor
e de júbilo

Bó é nha ómi
Bó é nha ómi

DUARTE, Vera. O arquipélago da paixão. Mindelo: Edições Artiletra,


2001, p. 68-73.

125
PROSA

126
António Aurélio Gonçalves

127
António Aurélio Gonçalves, mais
conhecido como Nhô Roque, nasceu na
ilha de São Vicente, em 1901 e faleceu
no Mindelo, em 1984, vítima de
atropelamento. Foi escritor, crítico
literário, historiador e professor . Esteve
ausente da sua terra natal durante vinte e dois anos, fazendo
os estudos liceais no seminário de São Nicolau e partindo
para Lisboa em 1917, para os estudos universitários.
Matriculou-se em medicina, que frequentou durante dois anos
e depois estudou Belas Artes e, finalmente, História e
Filosofia. Voltou à sua terra natal só nos inícios de 1939,
atuando como professor de História e Filosofia no liceu do
Mindelo. Obra literária ficcional (novelas): Terra da
Promissão (2002), Noite de Vento (1951), Recaída (1947,
reimpressão em 1993). Membro da Academia Cabo-verdiana
de Letras.

128
Nas nossas ruas, ao entardecer

Já lá vão alguns anos, a rua produziu-me a mesma


sensação: foi quando saí à tarde, pela primeira vez, depois de
uma febre que durou dias. Uma leveza de corpo e de espírito,
a convicção de que a vida vai recomeçar sobre bases
sonhadas durante muito tempo, esta impressão de
renovamento da sensibilidade, esta necessidade de
movimento vagaroso, uma esperança de coisas imprevistas...
Como é que disposição como esta se declarou, assim
repentinamente, depois de uns poucos dias de tristeza e de
concentração?
A claridade de lâmpadas distantes apanha as frontarias
do lado oposto, caindo sobre elas obliquamente, de tal
maneira que ficam frouxamente iluminadas, como por
reflexos. Têm portas e persianas fechadas e, de momento,
pelo menos, derramam sobre mim um sentimento de
segurança e de intimidade que me penetra. Vultos sobem e
descem, cuja sombra inclinada (alongando-se, encurtando-se)
desliza sobre as paredes: de onde estou – porque a rua é
bastante larga – têm o ar de sombras chinesas projectando-se

129
e movendo-se sobre um fundo de ouro pálido. A cabeça de
uma rapariguita aparece sobre uma meia porta; uma mulher
assenta-se à entrada de outra casa; ambas têm o mesmo ar de
distracção pacífica, da qual tudo, hoje, parece comparticipar.
Automóveis passam, dobram a curva do Palácio, os faróis
descrevem arcos, ferem-nos a vista – os dois feixes de luz
apontados –, mudam de posição e descem ou sobem
continuamente a Rua de Lisboa. À distância, o trepidar surdo
de uma motocicleta repica, à flor da noite, um rufo nervoso.
Estes passeios pelo Mindelo crepuscular foram
sempre do meu gosto. Livre do escritório, banhado, vestido
de fresco, esqueço tudo: visitas de alguma cerimónia,
encargos, tertúlias... num só termo: compromissos. Primeiro,
para me pôr bem-disposto, este intervalo de vadiagem até lá
para as seis e meia da tarde; as coisas sérias ficam para
depois. Ando por toda esta cidade, rastreando a vida e
gozando-a, sem plano, ao acaso. Sem dúvida, conheço os
recantos onde é certo um momento de prazer, quanto mais
não seja, de esquecimento; mas farejo o desconhecido, pronto
para surpreender e cativar o imprevisto. Este não marca
antecipadamente os seus pontos de passagem, mas olhem
que, também, não falta.

130
É, antes de tudo, esta influência – ao mesmo tempo
sedativa e estimulante – exercida sobre mim pela boca da
noite, a adesão e a conformidade com pessoas e coisas, que
sucedem aos conflitos e oposições do dia. Um fugitivo
sorriso de rapariga, uma anedota de amigo, que, igualmente
em trânsito, pára num momento rápido de conversa risonha;
um cálice de conhaque sorvido num pátio de restaurante em
bairro excêntrico, enquanto o calor abranda; a oferta de uma
intimidade amorosa, quando menos se espera... um sem-conto
de gostos com que a cidade, caprichosa, nos presenteia, em
momentos de descuidada generosidade (no seu movimento
que, aparentemente, não obedece a plano ou desígnio), mas
que exigem olhos de artista para que se deixem surpreender e
treino de voluptuoso para se deixarem apanhar no seu voo de
ave sem destino, à procura de galho onde poisar.
Estoutra é a Rua das Sombras. Procuro o motivo por
que a chamo assim. Soa a nome romântico, de um
romantismo barato e, efectivamente, encontrei esta
designação – lembro-me perfeitamente – num romance
policial. De dia, tem a banalidade e a completa ausência de
gosto de uma velha rua mindelense, com o sol e a ventania
desgastando paredes, descorando a pintura e esfarinhando a

131
caliça. Contudo, à noite – sombria e distante –, o que ela me
lembra é rua velha e carcomida, sobrevivendo numa cidade
em ruínas.
Uma lâmpada ilumina extensa fila de “quartos” e – a
outro lado – de casitas novas e de construções roídas pelo
tempo e pela falta de reparações. Crianças brincam “à
apanhada” na sua luz. Distraio-me, por minutos, a observar
os seus movimentos desencontrados: partidas bruscas,
paragens, fintas, corridas velozes e discussões com uma
gesticulação exaltada. Desconheço a mulher de pé a uma
porta, mas ela fita-me com um sorriso triste e diz-me: “É
assim. Não podem estar quietos: ninguém pode com eles.
Mas, também, se não for assim, a gente está em cuidado... É
só que os deixar”.
Aceito o curto diálogo que ela me propõe, e respondo:
— É próprio da idade deles. Não tem que admirar. Todos nós
fomos assim. Eles, também, têm o direito.
— Senhor Xalino, está dando um passeiozinho?
— É verdade. Uma voltinha.
— Tomando um fresquinho, não é deveras? – O
sorriso dela faz-se um tudo nada mais melancólico, para que

132
eu compreenda que ela conhece o meu desgosto e toma parte
nele:
— É bom. Para distrair... Sim: é bom. Que é que a
gente há-de fazer?
Mais à frente, colocaram outra lâmpada na empena de
um rés-do-chão, anexo a um prédio mais alto, gretado,
manchado pela intempérie. A casa alta e velha serve, assim,
de anteparo e a lâmpada, encontrando-a, não ilumina a rua.
Uma sombra, negra como uma colgadura de câmara fúnebre,
desenrola-se no chão, suspende-se no prédio de alto a baixo e
embrulha o casario na sua espessura lutuosa. Não obstante,
consegue-se descortinar o fim – rampazinha escura, no alto
da qual dois pequenos focos (não se vê onde estáo situados)
furam a treva e arremessam às frontarias, num efeito de palco
iluminado, duas mencheias de cor-de-rosa.
No escuro, a abertura de uma porta deixa ver um
interior muito pobre, cheio de gente. Lá dentro, a atmosfera é
turva, a luz tão amarelenta que o recinto parece iluminado a
resina inflamada e fumegante. No momento da minha
chegada, do interior, vem um rumor de rezas populares, que
se prolongam por instantes, murmuradas por vozes grossas de
muitos homens. Depois, calam-se. Uma voz cansada de

133
mulher soluçou no silêncio breve: “Ó, ti Barba!...” Logo a
seguir, levantou-se lá dentro o choro de toda aquela gente,
que tinha vindo para ali rezar pela alma de algum falecido. O
pranto de certas mulheres vibrava no coro lamentoso com um
timbre de desespero. Como numa lucilação de cérebro
dominado por ideia única, vi cena parecida: o Papá sobre a
cama, mulheres enchendo a casa e chorando. Arrepiei-me,
num confrangimento de todo o meu ser. Fugi.
No ar imóvel, transparente, a fila das luzes, que se
encurva ao de leve na extremidade da avenidazinha, possui
uma linha de elegância suspensa, aérea, que não é vulgar em
S. Vicente. A dois passos, este é bairro com outro tracejado e
outra ambiência. As construções, vulgares, não têm estilo,
mas há sossego digno, há espaço e há um alinhamento que
tem pretensões a estudo de arquitecto paisagista. Sente-se, em
torno, a cidade em repouso. Apanha-se um trecho estreitinho
da baía, em cuja mancha um suceder de luzes de embarcações
torna o aspecto de um gráfico pontilhado a ouro.
Uma alameda sobe e, lá em cima, dois chalets, vistos
através da gaze impalpável da bruma – persianas fechadas –,
tornam o ar sonhador de seres que quisessem isolar-se e
esquecer a vida. A um portão, um automóvel espera; outro

134
desce a avenida vagarosamente, os pneus rangendo sobre o
saibro. Um casal de trabalhadores afasta-se vagarosamente na
artéria solitária para o Madeiralzinho. Atrás, mesmo sem a
olhar, sente-se, sobranceira, uma presença – como de animal
negro, poderoso e manso, ou como sombra sem olhos, mas
atenta –, a montanha, apontando para o céu o seu vértice de
pirâmide. De dia, com a sua farinha de rocha triturada
escorrendo pela encosta, os seus espigões, as suas estrias
marcadas na lava, é árida, indiferente como carcaça
petrificada. Em noite como esta, porém – correndo até à
Ponta de João Ribeiro e contornando o norte da cidade –,
toma o aspecto de barreira veludosa que defendesse este
recanto contra ventanias ou migrações vindas de terras
desconhecidas.

GONÇALVES, António Aurélio. Recaída. Praia; Lisboa: Instituto


Caboverdiano do Livro; Vega, 1993, p. 57-61.

135
Baltasar Lopes

136
Baltasar Lopes da Silva nasceu na
ilha de São Nicolau, em 1907, e
faleceu em Lisboa, em 1989. Foi
escritor, linguista e professor, usando
tanto a língua portuguesa quanto a
cabo-verdiana. Estudou Direito e
Filologia Românica na Universidade
de Lisboa. Regressou a Cabo Verde, onde exerceu o cargo de
professor no Liceu Gil Eanes, em São Vicente, do qual
depois foi reitor. Com Manuel Lopes e Jorge Barbosa, fundou
a revista Claridade, de artes e letras. Em sua obra poética
assinava como Osvaldo Alcântara. O seu romance mais
conhecido é Chiquinho (1947). Descreveu a língua cabo-
verdiana, no opúsculo O Dialecto Crioulo de Cabo Verde
(Lisboa, 1957). Obras: Chiquinho, romance, 1947; Cabo
Verde visto por Gilberto Freyre, ensaio, 1956; O dialecto
crioulo de Cabo Verde, ensaio, 1957; Antologia da Ficção
Cabo-Verdiana Contemporânea, contos, 1961; Cântico da
Manhã Futura, poemas, 1986; Os trabalhos e os dias ,
contos, 1987. Membro da Academia Cabo-verdiana de
Letras.

137
Chiquinho (excerto)

Algumas vezes, depois da ceia, quando mamãe velha


estava de maré e o seu cabecear sonolento tardava em vir,
revezava com Nhá Rosa Calita e contava coisas e loisas que
tinha visto e ouvido. Serviam-lhe de pontos de referência o
ano da ventona1 e a cólera.
— Naquele ano encheram-se os cemitérios e tiveram
de fazer enterros fora do sagrado.
Ela era ainda menininha, mas tinha na lembrança os
horrores daquela quadra maldita da cólera. Na mesma casa
morriam três e quatro pessoas num dia. Não havia lei, nem
rei, nem roque. Os homens sãos tinham-se tornado
verdadeiras feras sem entranhas. Alguns, quando iam enterrar
os mortos, levavam logo de uma vez os moribundos e os
sepultavam, para pouparem o trabalho de lhes irem dar terra
no dia seguinte. Assim, muita gente foi enterrada viva. Os
que tinham posses fugiam da Estância para os pontos do
interior, onde supunham estar mais a salvo da moléstia.

1
Referência a um “grande vento”, possivelmente um ciclone, que
devastou Cabo Verde no século XIX.

138
Saíam à noite, para evitar os ardores do sol, e era uma
verdadeira procissão – homens, mulheres, crianças, transidos
de medo, e as sombras silenciosas dos negros com a carga à
cabeça. Muitos negros foram feitos forros então. Cheios de
pavor perante a idéia da morte, os senhores livraram-nos dos
trabalhos suados nas plantações de milho e hortas de
mandioca.
Grande negreiro era Nhô Maninho Bento, capitão de
navios de escravatura. Ia buscar negros à costa de África para
Cabo Verde, Brasil e Oeste-Índia. Os escravos vinham em
três mastros, a monte, e dizia-se que em viagem muitos
morriam e os botavam ao mar. Mamãe velha ainda conheceu
um escravo trazido por Nhô Maninho. Falava um crioulo
arrevesado, misturado com palavras da língua dele, e todos os
dias prostrava-se no chão, a matutar não se sabe em quê.
Ficaram na tradição as crueldades de Nhô Maninho. Dizem
até que na casa onde ele morreu há todas as noites grande
arrastar de correntes e gritos agoniados. É a alma de Nhô
Maninho, remorsada pelas judiarias com os negros. Nhô
Quinquim Soares era outro senhor cruel com os escravos.
Botava-lhes correntes nos pés para o trabalho. Por qualquer
coisa dava-lhes de rebém e nas cortaduras punha sal e

139
pimenta. Teve um fim triste, Nhô Quinquim. Certo dia, só
por desaforo de corpo, deu dois lanhos na cara a um escravo
da Guiné, rapaz brioso e decidido. O negro suportou a afronta
em silêncio, mas à noite, em companhia de outros negros,
entrou feito um leão no quarto do senhor e amarrou-o.
Levaram Nhô Quinquim para o fundo da tabuga2, abriram
uma grande cova e ali o enterraram vivo. Mas, de uma
maneira geral, os escravos eram tratados quase como família.
Tinham as suas festas e era um gosto vê-los nas danças. Sua
grande festa era a Páscoa do Espírito Santo. Nesse dia tinham
liberdade. Saíam em procissão, mas tudo com governo: havia
reis, rainhas, pajens. À frente ia o meirão3 com a vela
encruzada ao vento, segura por uma linha a servir de escota.
À noite os negros iam foliar para casa de Nhô João Tomé, na
Ladeira, onde dançavam lundum e outras danças trazidas da
costa de África. Mamãe velha gostava de entoar na sua voz
tremida uma dessas músicas de outros tempos, muito
arrastada, que os negros cantavam com palavras que ninguém
da ilha entendia:

2
Cemitério.
3
Grande bandeira que os escravos levavam em sua procissão anual no dia
da Páscoa do Espírito Santo, a Páscoa dos escravos.

140
Malé, malé; malé combá lêlé
assim malé, malé;
assim combá samba lêlé;
assim combá samba lêtán...

Quando chegou a S. Nicolau a lei que alforriava os


negros houve grande festa na escravatura. Jireco, negro de
Nhô Miguel Lopes, foi à casa do senhor quando lhe deram
alforria:
— Senhô, já tenho a minha liberdade...
— Para que queres a liberdade, Jireco?
— Para ir beber vinho de palma à minha terra,
nhonhô.
Nesse mesmo dia Jireco apanhou grande bebedeira e
queria trocar a alforria por uma garrafa de grogue. Levantou
um funco4 no Caleijão e lá morreu miserável tempos depois,
à míngua. Alguns negros forros prosperaram com as
encomendas mandadas da América pelos filhos emigrantes.

4
Construção rústica, muito pobre; casinhola em forma cônica com
cobertura de palha.

141
O velho Nhenhano Bandeira, hoje mestre de tenda e dono de
trapiche, era escravo de Nhô Antônio Sabina.
— No tempo do Dr. Júlio apareceram pateados na
terra. Eram encantados que tinham pacto com Aquele
Homem. Em noites de luar desembarcavam na Prainha, de
galeras que ninguém podia ver, vindos de ilhas que ficam
muito longe, no meio do mar. Passavam pela vila em
cavalgadas ruidosas, com grande cantarola, mas nenhum filho
de parida tinha ânimo de abrir a porta para espiar. Subiam a
ladeira do Cachaço e dirigiam-se à Cintinha. Referia o povo
que chegavam à rocha da Cintinha e diziam:
— Sésamo, abre-te!
Abria-se a rocha e lá dentro era uma boniteza de
endoidecer. Um grande palácio, armado de ricas mobílias.
Mesas cobertas das toalhas mais finas. Comidas da melhor
qualidade. Luzes por todos os cantos. Músicas que
levantavam a alma da criatura, tão bonitas como as da igreja
no Sábado Santo, depois da Aleluia. Um ou outro mais
destemido que se afoitava a ir sindicar não via nada, não
ouvia nada. Mas, chegado à Cintinha, era um esmorecimento
no corpo, uma turvação na vista, nem que o mundo estivesse
acabando. E por dias ficava crã, simples, como se a alma lhe

142
tivesse fugido do corpo e a graça do Senhor o houvesse
abandonado.
O que mamãe velha não conhecia, ou não queria
dizer, eram as misérias que tinham levado a maldade dos
homens a inventar a lenda dos encantados. Isto só mais tarde
vim a saber.
Havia ainda os casos dos piratas. Não eram do tempo
de mamãe velha. Ela ouvira-os referir às pessoas antigas. Os
piratas vinham em navios muito veleiros, autênticos cavalos
do mar. Quando sabiam que havia forte, ficavam lá fora a
bordejar, à espera da noite. Assim que vinha o betume da
negrura caíam sobre as povoações, e era uma grande
desgraça. A gente da costa vivia em constante sobressalto.
Por isso quase todos se fixavam no interior, confiados na
defesa das rochas temerosas.
— Raça maldita, a dos cartajanas...5
Estas histórias da ilha impressionavam-me
profundamente. Era a vida da minha terra que ressurgia para
mim nas palavras pausadas da mamãe velha. E delas
desprendia-se este não se sabe o quê que a pouco e pouco ia
formando a minha alma de crioulo.
5
Pirata; espírito mau.

143
***

Fui à Ribeira da Prata assistir a um casamento para


que titio fora convidado. Ribeira da Prata! Este nome soava
dentro do meu coração como um presságio aziago. Era um
grito em noite escura que eu sentia quando evocava os casos
que na ilha contavam daquela ribeira povoada de feiticeiras.
Quando disse que tinha medo de ir, meu tio garantiu-me que
tudo eram histórias. Ele, que já andara Ceca e Meca, nas
horas minguadas da noite, nunca encontrara coisa ruim. As
palavras cépticas do meu tio não conseguiram desagregar da
minha alma o maravilhoso com que as contadeiras de
histórias povoavam o meu mundo.
Titio Joca foi de véspera para aproveitar o batuque. E
com ele quase todas as famílias conhecidas da Praia Branca.
O batuque prometia ser bom. As bandejas eram em
quantidade. Presentes de carneiro, de galinha, de arroz. Havia
vinho do Porto. No dia seguinte fui, cedinho, em companhia
de Guida e de outros olhantes. Mané Pretinho ia à frente,
fazendo habilidades na mulinha briosa. O caminho à beira-
mar seduzia-me pelos aspectos sempre novos que

144
apresentavam os caprichos da costa. E o mar, constantemente
assanhado, batendo nas rochas. Levantavam-se fumaradas de
espuma, que nos salpicavam. À direita, os animais comiam
pachorrentamente o pasto de soca e bredo6. Pegou-me o
medo de passar no Pau. Vinham à minha memória os perigos
que contavam da passagem estreita, com rochas altas de um
lado e o mar lá embaixo, batendo como um leão. E cantava
na minha cabeça a morna7 do Pau Matou o Meu Filho, em
que, numa melopéia muito arrastada, a velha deplora a morte
do filho que, de regresso da América, desembarcou no Barril
e, querendo encurtar caminho, na grandeza de ver a mãe, caiu
no Pau e se afogou no mar. Tudo obra das feiticeiras da
Ribeira da Prata, que não podiam ver um filho abraçando sua
mamãe já muito velhinha, depois de ter trabalhado como um
escravo naquelas terras que ficam lá longe, no meio do mar.
Ou que não feitiço de sereia, penteando seus longos cabelos
no luar bonito de Ferrabrás.
Ribeira da Prata! Não esqueço o seu encanto
penetrante, que vem não se sabe donde. A povoação

6
Soca – erva rasteira que serve de pasto e se emprega na cobertura de
casas; bredo – planta de pequeno porte que serve para a alimentação dos
porcos.
7
Música típica de Cabo Verde.

145
disseminada pela ribeira, com as casas perdidas no meio do
canavial. A sua gente de voz cantante. E o mar, sempre na
boca da ribeira, a envolver-nos o coração de uma mortalha
verde de esperanças. Os bois, no terreiro de trapiche, rodando
lentamente, de focinho levantado, sob a canga, como que a
beberem pensativamente, de olhos fechados, o ópio
adormecedor que vem da voz arrastada dos rapazinhos
tangedores, cantando de mão na boca, para velarem a toada
com maior intimidade crepuscular. E a cintura envolvente das
rochas estrangulando todo o mundo no fundo do vale. A água
corre todo o ano na ribeira, e a terra vermelha cobre-se, na
parte alta das encostas do tapete raso dos batatais e das
barbas-de-bode. Não encontrei feiticeiras, mas ficou-me para
sempre depositado no fundo da alma o respeito pelo mistério
da Rocha Escrevida, em que há letras inscritas pelos piratas
quando desembarcavam aos tiros na praia agreste, atraídos
pelo verde dos canaviaias. Os povos fugiam para as rochas.
Mas o vale cantava de tiros estalando, penedos rolando dos
picos na defesa da casinha que ficou lá embaixo.
A companha do casamento chegou da vila com o seu
cortejo de foguetes. Lembro-me ainda da marcha nupcial com
que os rabequistas e os violeiros esperavam os noivos à porta

146
da casa. Os pais da noiva choravam. Na primeira mesa os
brindes oficiais. O padrinho recitou um discurso que lhe
escreveram na Estância. Titio Joca também falou. Chaleirei8
tudo, bebendo gostosamente as palavras dos oradores. Na
segunda mesa encontrei uma esporinha de galinha. Fui tirar à
sorte com Guida qual de nós queria o companheiro mais. À
noite baile.

LOPES, Baltasar. Chiquinho. São Paulo: Ática, 1986, p. 20-22; 32-34.

8
Chaleirar – bisbilhotar.

147
Dina Salústio

148
Bernardina Oliveira (Dina Salústio)
nasceu em 1941, em Santo Antão, e vive
em Lisboa. Foi professora, assistente
social, jornalista e produtora de rádio,
tendo atuado em Cabo Verde, Portugal e
Angola. Trabalhou no Ministério dos
Negócios Estrangeiros e desempenhou também o cargo de
Conselheira do Ministro da Cultura. É membro da
Associação dos Escritores Cabo-verdianos e da Academia
Cabo-verdiana de Letras. Sócia fundadora das revistas
Mudjer e Ponto & Vírgula, colaborou ainda nos periódicos
Fragmentos, A Tribuna, Voz di Povo, Pré Textos, Révue
Noir, A Semana. Em 1994, foi-lhe atribuído o Prêmio de
Literatura Infantil de Cabo Verde, no mesmo ano em que
publicava a coletânea de contos Mornas eram as noites, e em
1999 ganhou o 3º Prêmio de Literatura Infantil de Cabo
Verde (PALOP), com A estrelinha Tlim Tlim (1998).
Romances: A louca de Serrano (1998) e Filhas do vento
(2009).

149
A traição do tempo

Não sei se pescado no discurso oficial, se por conta


própria, a verdade é que a jornalista disse ao longo da
reportagem que os problemas de São Nicolau e, quiçá, os
problemas de Cabo Verde só se resolverão com as chuvas.
Possivelmente nem terá dito isso e eu ouvi mal, ainda
pensando na notícia anterior. Mas, se ela fez de facto a
afirmação acima e se se referia ao desemprego sem fim, à
falta de bens e a inúmeras outras situações ligadas à pobreza,
então eu não estou de acordo porque seria condenar
desnecessariamente todo um povo à dependência de uma
incógnita que há muito deixou de o ser para tomar o corpo de
uma certeza. Somos um país seco, de seca garantida. Se ela
se referia aos humores do crioulo, então sim, tem razão,
porque, cá entre nós, pensando como eu penso, só poderia
estar certa. Quem disse que quem pensa como eu é
inteligente?
O crioulo, a partir de Junho, começa a incubar dentro
de si um ser ruim, desconfiado, medroso, inseguro. E à
medida que os dias passam e os meses entram e saem, os
olhos ficam enviezados entre o céu e a terra, os lábios

150
desaparecem nos encovados do rosto, resmungando por tudo
e nada sobre a ingratidão das chuvas, a maldição das ilhas, os
pecados cometidos. Traído, porque as nuvens maninhas mais
uma vez cumpriram o seu destino de negar à terra o consolo
da água, o crioulo enraivece-se contra tudo o que o rodeia.
Torna-se insuportável de tão intolerante, tão feio, tão
desamado.
As ruas, os espaços, o tempo tornam-se violentamente
agressivos. E o crioulo com eles.
Eu fujo dos meus patrícios nos meses das águas
frustradas. Eu fujo de mim. Porque há tendência para se
encontrar rapidamente um bode expiatório para as dores, para
as traições sofridas, para os sonhos calcados, para as
humilhações.
E os ruídos, as moscas e a imundícia alastram-se e
entram pelos olhos, pelas narinas, pela pele adentro. Somos
todos uma ameaça colectiva, de tanta tristeza.
A violência toma a dimensão maior e alguém
envergonhado fala em fome.
Afasto-me e, no engano do sonho que me ensinaram a
sonhar, vejo uma rua, uma aldeia, uma ilha, todas as ilhas
regadas, verdes de chuva clara, com gargalhadas de chuva na

151
boca dos meninos, com risos de chuva nos olhos dos homens,
com o perfume da chuva nos corpos das mulheres.
Tudo fica calmo.
Depois, recuso acordar, temendo enfrentar a cidade
seca, as gentes secas, os amores secos.

SALÚSTIO, Dina. Mornas eram as noites. 3. ed. Praia: Instituto da


Biblioteca Nacional, 2002, p. 63-64.

152
Evel Rocha

153
Evel Rocha nasceu na Ribeira Funda,
Ilha do Sal. É formado em Psicologia e
Teologia, com mestrado em Supervisão
Pedagógica, Couseling (Psicologia) e
Pós-Graduação em Desenvolvimento
Local e Comunitário. É investigador na área das Ciências
Sociais e da Cultura, Vice Presidente da Câmara e Vereador
da Cultura e da Educação na Câmara Municipal do Sal e
Deputado para o Círculo Eleitoral do Sal. Para além do
percurso literário, seus interesses são o teatro e a pintura.
Obras: Versos d’Alma (1997), Estátuas de Sal (2003,
romance) e Marginais (2010, romance). Membro da
Academia Cabo-verdiana de Letras.

154
Marginais (excerto)

Numa ébria noite de lua cheia, andava eu e os Pitboys,


rapazes de doze a quinze anos, espraiando desaforos depois
de uma disputa vitoriosa numa partida de futebol, chegámos à
rua de Motor-in e fomos confrontados por Chico Pé-de-
Cabra, membro da comissão dos moradores da zona, para que
parássemos com o barulho, Já é tarde e as pessoas precisam
descansar, disse.
Só galinha é que dorme a esta hora, bufo – respondeu
Pianista, puxando o beiço. Nhô Francisco Pé-de-Cabra
retorquiu, Bufo é a tua mãe, ladrãozinho do caneco! Filho
sem pai. E puxou para a violência. Ainda hoje, continuo a
pensar que não havia necessidade de espancar aquele chefe
de família de forma com o espancámos e urinar no seu rosto.
No dia seguinte, bem cedinho, fomos intimados a
comparecer na Esquadra do Morro Curral. Passámos o dia
inteiro em jejum naquele lugar à espera que nos dessem
alguma coisa de comer. Foi um autêntico martírio ver as
horas arrastando pesadamente. Ao cair da noite, obrigaram-
nos a limpar as retretes obstruídas de imundícies e a lavar as
paredes das celas vazias rubricadas de palavrões. Numa cela,

155
quase junto ao tecto, estava escrito BEM-VINDO AO
INFERNO. A frase fora escrita com as mãos e a tinta, de um
castanho sujo e repulsivo, era merda pura! Voltámos
satisfeitos por não termos sido submetidos às torturantes
palmatoadas e... enfim, é melhor não dizer mais.
A frase ameaçadora, porém sugestiva, daquela cela
maldita despertou em nós a febre artística, deixando as nossas
marcas nas ruas de Espargos. A malta Pitboys era mesmo
fixe, uma fonte inesgotável de criatividade: imprimíamos nas
paredes verdadeiras obras de arte depois de defecarmos. A
habilidade dos dedos das mãos tomavam contornos de um
pênis majestoso, a boca de um cantor de rap se confundia
com o sexo ameaçador da mulher, disposto a engolir o mundo
à sua volta. O grafismo na parede parecia ter vida.
Pichávamos as paredes dos homens grandes, dos coronéis, e
as impressões ficavam lá, pois, ninguém podia mandar-nos
ficar calados. Já não era necessário roer as unhas ou coçar a
cabeça para aliviar a emoção glandular. Se estivesse
deprimido, dava uma cacada de pedra à montra de uma loja e
fugia. Há melhor terapia do que quebrar os vidros de uma
montra num país onde os filhos dos pobres são excluídos e a
discriminação é estimulada? É necessário vandalizar os

156
interesses da burga, que enriquece facilmente, para que o
estado possa olhar para nós, os marginalizados; é necessário
vandalizar o patrimônio dos coronéis da ilha, conquistado à
custa dos fracos, para que chorem de raiva como nós
chorámos por um pedaço de pão e pelos nossos direitos. As
paredes das casas foram feitas para que pudéssemos
desabafar a dor que nos atormentava a alma; mostrar toda a
nossa arte com desenhos e palavrões aos donos da ilha que
conduzem o nosso destino, para que sintam o nosso desprezo
pelas suas leis e a violência endêmica que nos afetavam atrás
dos seus olhares safados.
[...]
No dizer de Lela, Deus criou o mundo e no sétimo dia
descansou. No oitavo dia criou o inferno. Enquanto criava o
inferno, algumas fagulhas caíram na terra e deram origem a
estas ilhas perdidas no mar.
Na escola ou em qualquer lugar tínhamos um tratamento
diferenciado em relação aos filhos dos engomados que
exerciam cargos de destaque na zona do Aeroporto. No final
do ano tínhamos as notas mais baixas. Nós nascíamos com a
marca da besta, carregando a sina do fracasso na escola. Não
faltava alguém para nos lembrar da nossa condição e, bem

157
cedo, comecei a odiar todos aqueles que feriam a minha
integridade. A escola, o tão apregoado centro de continuidade
do processo da socialização, não passa de um centro
autoritário, um campo de concentração que exerce a violência
seletiva sobre os desfavorecidos e esquece que cada dia nas
nossas vidas é um marco de sobrevivência. A escola ensinou-
me que sou o indivíduo incapaz e predestinado a ser ruim. Os
professores não fazem ideia do que é ir à escola de estômago
vazio, de ter que aturar cinco aulas de bombardeamento de
inutilidades, enquanto o estômago troveja, de ter que
enfrentar uma turma de preconceituosos e bem comportados
e de lutar contra o próprio pensamento que insiste em planear
um furto para enganar a fome. O mundo não sabe o que é
passar à frente de uma montra colorida de doces e ter que
engolir poeira e ar seco, engolir o desprezo dos olhares
desconfiados e acusadores, recalcados de ódios, ter que adiar
o plano de assaltar a loja do vizinho enquanto o estômago
grita por comida. As pessoas especulavam que tínhamos um
esconderijo onde guardávamos o produto dos roubos. Era
tudo falso, roubávamos para matar a fome no momento.

ROCHA, Evel. Marginais. Praia: Edição do Autor, 2010, p. 39-43.

158
Fátima Bettencourt

159
Hirondina de Fátima Bettencourt
Santos Lima nasceu em 1938, na ilha
de Santo Antão. Foi professora do
ensino primário em Portugal, Cabo
Verde, Guiné-Bissau e Angola, e
professora do ensino preparatório em
Cabo Verde. Desempenhou, entre
outros cargos, o de diretora do Departamento de Informação
e Relações Exteriores da Organização das Mulheres de Cabo
Verde (OMCV) e o de técnica de produção radiofônica na
Rádio Educativa daquele país. Faz parte da Associação de
Escritores Cabo-verdianos, da Associação Zé Moniz, da
Associação dos Amigos e Naturais de Angola, da Fundação
Baltasar Lopes e do Conselho de Comunicação Social.
Contista e cronista, tem colaborações dispersas por
periódicos nacionais e estrangeiros, além de trabalhos em
manuais pedagógicos. Reside na Cidade da Praia, capital de
Cabo Verde. Publicou Semear em pó (contos, 1994), A cruz
do Rufino (infanto-juvenil, 1996), em 1996, Um certo olhar
(crônicas, 2001), Mar, caminho adubado de esperança
(contos, 2006), Lugar de suor, pão e alegria (crônicas, 2008).
Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras.

160
Secreto compasso

Mãe de família ocupadíssima e exigente, minha mãe


nunca tivera muita paciência para empregadas domésticas.
Salvo uma ou outra que demorava anos e se transformava em
mais um membro da família, perdia a conta de quantas
passaram pela nossa casa. Uma porque não era fiel, outra
porque descuidava do asseio, outra porque tinha maneiras
grosseiras — um péssimo exemplo para os meninos — elas
faziam da nossa casa uma sala de trânsito de pouca dura. Até
que apareceu Augusta, bonita e alegre, sempre com uma
cantiga nos lábios e um sorriso nos olhos.
Recordo como agora o dia em que ela aportou à nossa
casa, levada por uma comadre fornecedora de hortaliças, que
garantia as qualidades e a cabeça sossegada da moça, na
opinião dela ferida apenas de um único defeito: só parava de
cantar quando dormia.
A meninada lá de casa adoptou-a sem restrições ainda
que o olhar sabedor da minha mãe se tivesse pousado um
pouco mais demoradamente na sua ligeira bluzinha vermelha
decotada até ao início dos seios redondos e na saia florida que
apertava num franzido a cintura estreita e descia até a um

161
palmo acima do joelho. Toda ela era energia pura, os pés
descalços não paravam quietos, com os braços roliços
abraçava o próprio busto num visível esforço para se conter.
Irradiava dela uma chama que na época eu não soube
compreender mas agora não me surpreende que se mantivesse
acesa e nítida nas minhas lembranças de muitos anos atrás.
O longo olhar da minha mãe mediu-a, pesou o nosso
entusiasmo e Augusta começou a partir daí a temperar nossos
dias com a sua cantiga cristalina enquanto lavava a louça e a
roupa, passava a ferro, cuchia o milho ou estendia as camas.
Minha mãe, meio desconfiada de tanta alegria de
viver, resmungava contra o conteúdo duvidoso de algumas
músicas da sua preferência. Até que um dia ela não apareceu
no trabalho e mandou uma prima avisar de que estava
passando mal por causa da gravidez.
— Gravidez!? – estranhou minha mãe e comentou:
— Logo vi que havia mouro na costa! Bem que sempre
embirrei com aquela cantiga que ela não tirava da boca “esse
frio cum tem na corp ê só bô sô ê q’ta trame ele”9. Imaginem
uma cantiga destas com o calor que tem feito!

9
Verso de uma música tradicional que quer dizer: “Esse frio que tenho no
corpo só tu consegues tirar”.

162
Passaram-se meses e um belo dia Augusta apareceu lá
em casa com um bébé na ilharga. Vinha magra, esquálida,
perdida a alegria natural, muda e soturna. Vinha sofrida,
maltratada e só. O filho ali presente na sua ilharga não
atenuava aquela solidão. Os meninos da casa, todos nós a
adorávamos, era nossa companheira de todas as traquinices,
cúmplice de todas as pirraças, ela adorava meu irmãozinho
codé, dera até o seu nome ao filho.
Assim que a vimos meio envergonhada à porta
começámos, em coro, a pedir que fosse de novo recebida.
Minha mãe que não, que não tinha juízo, dali a nada se
meteria noutra encrenca e nós já com o bébé ao colo,
pedindo, insistindo, puxando a Augusta para dentro de casa,
vencíamos pouco a pouco a resistência de minha mãe. Ela
também, debaixo da aparente severidade, estava condoída da
moça que além de tudo se via que passava fome. Vira muita
gente morrer de fome nas costas do Norte de Santo Antão,
nas crises de quarenta e guardara para sempre as imagens.
Essa recordação deu o impulso final ao nosso favor e
Augusta ficou connosco mais o bébé, automaticamente
adoptado pelos meninos da casa.

163
Com o passar dos dias a moça foi recuperando a
alegria natural tentando esquecer o sumiço do “pai-de-filho”
que nem um nome dera ao anjinho de Cristo. Começou a
andar mais ligeira, a brincar com o filho e com todos e um
dia começou também timidamente, a resmungar a primeira
cantiga.
Minha mãe assistia feliz ao renascer da rapariga e
dizia enquanto a mirava de soslaio:
— Parece que finalmente esta menina já tomou juízo.
Agora o que ela tem que fazer é criar o seu menino aqui
sossegada e pronto. Parece que já não quer nada com
homens. Pelo menos a cantiga que repete todo o santo dia é
“oh Mari Giralda quem qu’ê pai de bô fidje?”10.
Eu achava que ela ainda não tinha esquecido o
desgosto, mas na sensata opinião da minha mãe era melhor
mesmo não esquecer.
Um dia, porém, Augusta saiu para o quintal com um
braçado de roupa para lavar e deparou com o dia mais lindo e
radioso que já vira, o céu límpido e azul, mais parecia mar que
céu. Ela olhou, sorriu e soltou a sua coladeira provocante:

10
Verso de uma música tradicional que quer dizer: “Ó Maria Giralda,
Maria Giralda, quem é o pai do teu filho?”

164
“É mim que pô pé num tchon frio
onte d’atarde num bónhe de chuver...”11

Dentro de casa minha mãe parou de bater o bolo,


quase se engana no fermento, sempre tão rigorosa nos
temperos, esquece se já pôs a noz moscada, atrapalha-se toda
com a colher de pau no ar. Que cantiga era aquela?
Recentíssima com certeza, mas, “meu Deus!” esta gente já
não sabe o que há-de inventar para pôr nestas coladeiras, uma
verdadeira pouca vergonha! Oiçam, oiçam isto: “chão frio”,
“banho de chuveiro”, “um ca ta na idade d’amdjer”12...
Francamente, o que querem dizer com isso? Fatalidade...
Maternidade... Realmente é demais!
À medida que Augusta se entregava ao ritmo quente
da coladeira, minha mãe lentamente ia compreendendo o
sentido das palavras e a disposição da empregada, muito
sempelhante à do tempo de “esse frio cum tem na corp” de
má memória e piores resultados. Pela certa vinha aí mau

11
Versos de uma música tradicional que querem dizer: “Fui eu que pus o
pé no chão frio / ontem à tarde ao tomar um duche”.
12
Tradução: “Ainda não cheguei à idade de mulher”.

165
tempo, vaticinou minha mãe, muito dada a pressentimentos,
enquanto no quintal as notas soltas da garganta de Augusta
enchiam de calor a manhã luminosa.
Infelizmente tivemos que dar razão à minha mãe. Os
seus piores pressentimentos se justificaram plenamente.
Algum tempo depois Augusta sumiu de novo. O que se
passou até hoje não sabemos direito pois o homem que
arranjou levou-a para Santo Antão e pô-la a trabalhar na
estrada onde apanhou uma tuberculose.
Descobrimo-la no Hospital de São Vicente já na fase
final da doença e todos os nossos cuidados foram em vão.
Acabou morrendo, deixando o primeiro filho pois o segundo
se fora por conta de uma diarreia ao sol e ao vento nas
estradas do Porto Novo. A minha mãe tomou conta do garoto
e criou. É um dos meus irmãos adoptivos. Vive na Suécia,
dedica-se à música nas horas livres, um gosto que certamente
apanhou quando boiava no útero materno.

BETTENCOURT, Fátima. Semear em pó: contos. Praia: Ministério da


Cultura e Comunicação; Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco,
1994, p. 33-36.

166
Germano Almeida

167
Germano Almeida nasceu em 1945, na
ilha da Boa Vista, e vive na ilha de São
Vicente. Licenciado em Direito pela
Universidade de Lisboa, foi magistrado
do Ministério Público e agora exerce a
advocacia em Cabo Verde. Foi deputado
nacional no início de 1990. Co-fundador e co-diretor da
revista Ponto & Vírgula, co-fundador da Ilhéu Editora. Autor
de inúmeras obras ficcionais, algumas adaptadas para cinema
e teatro: O testamento do Sr. Napumoceno da Silva Araújo
(1989), O meu poeta (1990), Os dois irmãos (1995), A
família Trago (1998), A morte do meu poeta (1998), Dona
Pura e os camaradas de Abril (1999), As memórias de um
espírito (2001), Mar na Lajinha (2004), Eva (2006), A morte
do ouvidor (2010), romances; O dia das calças roladas
(1992), Estórias de dentro de casa (1996), novelas; A ilha
fantástica (estórias, 1994); Estórias contadas (crônicas,
1998); Viagem pela história das ilhas (investigação histórica,
2003). Detentor de vários prêmios, como o do Instituto
Marquês de Valle-Flor (1991) e o da Crítica da Imprensa de
São Paulo (1996).

168
Um erro de Deus

Claro que há uma outra realidade, principal e


determinante de tudo o que nós somos: a nossa pobreza!
Desde sempre somos muito pobres! A Natureza foi
diabolicamente madrasta para connosco, quando pensamos as
nossas ilhas é difícil entender por que terá ela sido tão
pródiga com os demais e tão perversamente avara para nós
outros. Há aliás uma lenda maldosa mas terrivelmente
verdadeira a nosso respeito e que ajuda a entender-nos
naquilo que acabámos por conservar de mais profundamente
enraizado e que de alguma forma nos pode caracterizar como
um povo que se recusa a deixar-se matar: um profundo
instinto de sobrevivência!
Segundo essa lenda, Deus já tinha dado por terminada
a semana de trabalho que dedicara à criação de tudo quanto
achou que valia a pena existir, isto é, o céu e a terra, e as
águas que separam as suas partes secas, e os animais que as
povoam, e inclusivamente já distribuíra todas as riquezas com
que decidira beneficiar cada parcela da humanidade, florestas
aqui, ouro acolá, petróleo mais além, peixes em cada mar,

169
chuvas quanto baste, quando reparou nas suas mãos ainda
com pequenos restos da massa que tinha estado a espalhar.
Deus estava contente com aqueles dias de labuta e o
trabalho realizado e preparava-se para um merecido sabbath,
dentro do princípio que desde logo queria estabelecer como
regra universal: trabalharás seis dias e no sétimo descansarás!
De modo que sacudiu as mãos encardidas, ao acaso no
espaço, num gesto indolente de quem diz, “tudo está
consumado, nada mais resta fazer!, porém, para logo ver
brotando perto da África pequenas ilhas de dentro do grande
mar que viria a ficar com o nome de Atlântico.
Ah, chamaram a atenção de Deus os seus ajudantes,
acaba de criar por aí mais umas terras! Deus viu que era
verdade. Sim, isso é bom, respondeu, um poiso seguro em
pleno alto mar dá sempre jeito a qualquer navegante. Só que
já não tem nada com que dotar esse novo lugar, disseram-lhe,
nem riquezas, nem água doce, nem plantas, nem nada.
Deus teve que se calar. Na verdade não tinha sido sua
intenção criar mais coisa alguma, de modo que ao ver a
asneira que acabava de fazer deve ter-lhe ocorrido que afinal
das contas até os deuses erram. Bem, isso já não tem solução,
mas também não tem grande importância, terá respondido

170
encolhendo os ombros, com a quantidade de boa terra que
espalhei por aí, todas elas devidamente providas não só de
víveres como de riquezas de toda a espécie em abundância,
seja em animais viventes seja em árvores de fruto e outras
farturas, estou convencido de que, por mais empenho e vigor
que os humanos venham a pôr na minha ordem de crescerem
e se multiplicarem, nunca irão encher a terra a ponto de se
lembrarem de habitar essas rochas que por culpa do acaso
vão ficar para sempre escalavradas.

ALMEIDA, Germano. Cabo Verde: viagem pela história das ilhas.


Mindelo: Ilhéu Editora, 2003, p. 20.

171
Kaká Barboza

172
Carlos Alberto Lopes Barboza
(Kaká Barboza) nasceu no
Mindelo, ilha de São Vicente, em
1947, e cresceu em Santa
Catarina, Vila de Assomada,
região situada no coração de Santiago que influenciou e
marcou a sua personalidade artística. Compositor, músico e
intérprete. Foi co-fundador do Movimento Pró-Cultura e
participou na formação de várias organizações sociais e
culturais do país, nomeadamente, o Grupo Simentera.
Exerceu funções diretivas, como fundador do Movimento
Sindical em Cabo Verde e deputado da Nação. Membro da
Associação de Escritores Cabo-verdianos e da Academia
Cabo-verdiana de Letras. Autor de: Vinti xintidu letradu na
kriolu (1984), Son di viraSon (1996) e Konfison na finata
(2003), em poesia na língua cabo-verdiana; Chão terra
maiamo (poesia, 2001) e Cântico às tradições (contos, 2004),
em língua portuguesa. Colaboração intensa em periódicos:
Nôs Vida, Ponto & Vírgula, Voz di Povo, Voz di Letra,
Fragmentos. Galardoado com o Diploma Recognition do
Governo do Estado de Rhode Island and Providence
Plantations – USA, pela difusão da cultura cabo-verdiana.

173
Castelo Conde

Há sítios que são bonitos e vistosos de longe, mas há


outros que são soberbos justamente porque a natureza lhes
conferiu vantagens excelentes, digo, ímpares, a ponto de
forçarem a vontade e a imaginação do homem a olhar para
eles de forma diferente, desafiando-o a fazer deles lugares
eleitos, criando a sua ponta e fundar ali a sua casinha ou um
simples funku (casa de pastor) para se abrigar das intempéries
em certas ocasiões do ano. São muitos os cutelos e pontas nas
ribeiras da minha terra ostentando habitações a recordar
pequenas fortificações onde moravam os escravos fujões,
erguidas em lugares de difícil acesso para não serem
apanhados. Mas o paradouro de que vos falo é um lugar
mesmo especial, primeiro, porque facilmente se apanhava
que do leito da ribeira ao topo da plataforma não ia além dos
vinte metros, sendo uns quinze tomados pela ladeira e os
restantes pela rocha pura dividida em filões de pedra enfiados
de cima para baixo aguentando um terraço que em largura
atingia uns trinta metros, segundo, alongava-se em ponta
rochosa dirigida às margens do outro lado da ribeira servidas
por uma nascente vinda da cinta de uma outra formação

174
rochosa, muito esburacada e largamente tingida de branco do
excremento de aves de voo largo, terceiro, porque o caminho
vicinal inventado pelas patas dos animais que iam para ali
pastar facilitava-lhe o acesso. Foram estes quadrúpedes a
ensinar ao planeador do primeiro abrigo a desfrutar da
fortuna paisagística dali oferecida sobretudo no tempo de
azágua em que o verde se espalhava, cobrindo as penedias,
guarnecendo as encostas, esverdeando a terra, não do verde
profuso de água, mas do verdaço seguro pela humidade da
curta azágua, daquele tipo de verde da corajosa fé do
lavrador, do inventor do fruto no molhado que não tem.
Quando o meu avô comprou aquele pedaço de chão,
calculado em uma quarta e meia de sementeira, todos
achavam que era disparate empregar tanto dinheiro num lugar
de pastagem e não exactamente de cultivo. A primeira coisa
que ele fez, foi mandar plantar um pé de tamarindo a uns
cinco metros da borda da rocha, contratando o pastor que lá
ia para regar a planta que subia com força e a fazer-se árvore.
Justo no dia em que a raiz foi mergulhada naquele chão
promissor o pastor começou a juntar pedras em lotes
separados: pedra lascada, pedra de parede, pedra de cunhal e
de enchimento. Um belo dia, o velho, o dono mandou

175
construir uma tapada e dentro um alpendre forrado de palha
para abrigo dos animais. Era a primeira construção levantada
naquele terraço que, ao longe, pelo cinzento das paredes e
orientação da fachada parecia mais com muralha em lugar de
cerca. Com o andar do tempo o sítio passou a se chamar
Castelo Conde, designação que agradou aos que se
movimentavam por aqueles lados e bem aceite pelo dono do
lugar.
Frequentemente ia com o avô ver e cuidar dos
animais. Eu gostava de os admirar e de os ver a pastar
sobretudo o carneiro por causa daqueles chifres enrolados
que pareciam não fazer nada ali fincados na fronte. Mas,
certo dia, assistindo a uma contrada (briga) de machos,
carneiro e bode, entendi logo o porquê dessas armas de
defesa e de ataque, autênticas antenas dos olhos dos sentidos
dos dois animais. O que eu não gostava mesmo era das
moscas de cavalo, muito fastientas e pegajosas. Raras vezes
não vinham coladas em nós no percurso de volta para casa. O
habilitado velho mandava-me colher ramas de sã-caetano
para as afugentar dado que a planta tinha um cheiro
importunado que nenhum animal lhe tocava mesmo estando
com fome de rachar. Quantas vezes, o velho não se punha à

176
sombrinha do tamarindo a escutar o silêncio inspirado pelos
corpos rochosos e pela ziguezagueante ribeira cujas pedras
faziam carpir as cheias bravas de Setembro. Às vezes era a
voz dele contando passagens e coisas passadas a musicar
aquele adormecimento. Após a sua morte a realidade virou
outra. Vendeu-se o chão porque era outra a ocupação do
filho, funcionário público, sem aptidão para afazeres do
campo. Mesmo assim, por amizade ao lugar e ao pastor ia-me
silenciar naquela ponta horas seguidas até o entardecer ao
lado dos poucos animais que por ali continuaram a pastar.
Volvidos quinze anos, de tapada de animais, o lugar
transformou-se em povoado de cerca de três centenas de
almas incluindo meninos. As casas, umas de telha Marselha,
e outras de betão armado, um chafariz, um pequeno posto
sanitário de base, uma bonita escola, árvores e o acesso em
terra batida bem cuidada eram aquisições que davam um
aspecto agradável ao aldeamento. Nhô António Soldado, o
idoso pastor, era o homem grande da zona. Ele personificava
o passado deste lugar e de toda aquela zona. Quando ia visitá-
lo pedia que me contasse coisas do tempo em que ele e o meu
avô eram os únicos a frequentar a Ponta, primeira designação
do lugar.

177
Naquela boquinha da tarde o velho estava bem-
disposto e principiou a contar com alguma frouxidão na voz:
- Olha, todos aqui sabem que este lugar era do teu avô. Eras
menino de mandado naquela altura. Nunca disse a alguém
que fui eu a chamar castelo àquele tapado que fiz com estas
mãos aqui, olha. Como não há castelo sem rei resolvi chamar
conde a teu avô. Estás a ouvir como tudo aconteceu. Os que
trabalhavam nas hortas lá em baixo achavam que o teu avô
devia empregar melhor o seu dinheiro. Nunca ali naquele
ermo que nem pé de mandioca dava para trabalhar. Terra é
para render. Pouco que seja. Foi então que me veio à cabeça a
ideia de chamar o tapado de Castelo Conde e o nome pegou.
Hoje, não. Estás a ver este lugar. Virou num sítio bonito. Dos
mais vistosos dessas bandas. Estamos bem servidos aqui.
Olha, meu filho, nunca pude pagar o que o teu avô fez por
mim. O chão desta casa deu-me ele de graça. Ele era bom
homem. Hoje há muita ingratidão. É verdade! Pouco
reconhecimento. Fidalguia tomou conta da cabeça de uns
tantos e pois que arrancou a imigração. Está tudo mudado.
Estou a maçar-te com coisas passadas. Sou um velho
fastiento mesmo. Mas a coisa é assim. Escuta bem o que te
digo. Olha, se o mal maior me apanhar serás o primeiro a

178
saber. Mas o que te vou dizer fica entre nós os dois. Quero ir
como o teu avô. Fato escuro, gravata, camisa e meias
brancas. Igualzinho ao conde. Assim irei tranquilo e velarei
por ti lá onde eu estiver.
De repente o homem mudou o sentido da conversa
chamando a mulher: - Dunda! Dunda! Anda mulher! Aquela
garrafa de manteiga da terra, a de leite dormido e ovos
também, para agasalhar o meu rapaz que já está com os pés a
caminho. O velho olhou-me a sorrir e disse: - Da próxima vez
levas um cabrito gordo ou um leitão desses ali da coberta.
Tens muita parecença com o teu dono (avô). Sabias? Toquei-
lhe com a mão direita no ombro, sorrimos um para o outro e
despedimo-nos com um aperto de mão. Os olhos dele
pareciam dois asteriscos longínquos afundando-se no seu
rosto de homem grande. Será que os nossos grandes
advinham o dia do passamento?
Três dias depois, a meio da manhã, compareceu o
filho com ares de animal receoso. Conteve-se um pouco
sentado à minha frente. Recuperado, disse num tom
atravancado: - Ele sabe de tudo. Foi o que o homem grande
disse antes de passar. Após um longo silencio, disse sem
olhar para o filho: - Sim, eu sei. Ele fez-me um pedido.

179
Naquele momento o ladrilho da sala parecia ovalado e
sem brilho enquanto as palavras do velho, do homem grande,
esvoaçavam no espaço do meu entristecimento como faúlhas
ao vento. António Soldado, Nhonhô di Dunda, viveu, sonhou
e teve o justo sepulto.

Texto inédito, cedido pelo Autor

180
Luís Romano

181
Luís Romano de Madeira Melo
nasceu na ilha de Santo Antão, Cabo
Verde, em 1922, e faleceu em Natal,
Brasil, em 2010. Poeta, novelista e
folclorista, escreveu em língua portuguesa e cabo-verdiana.
No final dos anos 1950, aderiu aos ideais da independência,
desempenhando cargos de direção no PAIGC e sendo
perseguido pela PIDE. Fugiu para Argel e Paris e exilou-se,
depois, no Brasil, onde viveu desde 1962. Obras publicadas:
Famintos (romance, 1962); Clima (poesia, 1963); Cabo
Verde-Renascença de uma civilização no Atlântico Médio
(1967), coletânea de poemas e contos; Negrume/Lzimparin
(contos, 1973); Ilha (contos da "Europáfrica" e da
"Brasilamérica", 1991). Pouco antes de falecer, foi
homenageado no I Seminário Internacional de Estudos Cabo-
verdianos, realizado na Universidade de São Paulo, em 2008,
e legou, ainda em vida, um livro por publicar à Coordenadora
Geral do Seminário, Simone Caputo Gomes, para que o
organizasse, prefaciasse e editasse. A obra foi encaminhada,
pronta para edição, ao Instituto da Biblioteca Nacional e do
Livro de Cabo Verde. Membro da Academia Cabo-verdiana
de Letras.

182
Caminhos (excerto de Famintos)

... e Lúcio, chefe dos cabouqueiros, ordenava cada um


para seu posto.
Gentes dispersavam-se. Homens barbudos, seminus,
empunhavam as ferramentas e cortavam a terra, enquanto
outros enchiam a Estrada, coleando as depressões, a
desaparecer nos fundos, num ruído que se repercutia ao longe.
A poeira levantada pelo vento erguia-se em espirais
para transformar, lentamente, o campo num mar de ocra, cor
de tijolo, a desfigurar as pessoas, tapando as narinas e os
olhos sujos de ramela. O nordeste abrandava-se para,
seguidamente, assoprar com mais intensidade e formar
nuvens que envolviam tudo.
— Você está cortado. Não há discussões.
Meio dia cortado na folha do ponto.
A tosse sufocava o cavador que se abrigava atrás do
barranco, os olhos esbugalhados pela asfixia. Abria a boca
para responder mas a poeira impedia-lhe a fala.
Lúcio alterou a voz enquanto o empurrava para o sítio
onde os outros maneavam as picaretas.
— Amanhã não venha, você é malandro.

183
O homem continuava sem forças e dobrou-se,
estatelando-se na terra. Os companheiros pararam uns
instantes a contemplar, enquanto Lúcio afastava-se no meio
do vendaval que passava às vagas.
— Lúcio é desalmado, disse um deles, enquanto
apoiava as mãos nas costas de Paulino, a aliviá-lo.
— Ele não quer saber se sou asmático. Ontem não
pude comer. Até nem tenho forças para levantar minha
ferramenta quando a tosse vem com mais desespero,
respondeu Paulino, os olhos cheios de água, dois sulcos a
terminar na ponta do queixo, de onde pingos escorriam, a
marcar-lhe os pés.
O trabalho continuou com precipitação porque Roberto
veio correndo a avisar que Lúcio se aproximava de novo.
— Malandro!
Paulino sentia-se ferido, a vergonha a roer-lhe as
entranhas, enquanto os camaradas mergulhavam o rosto para
o chão, fingindo não escutar.
Levantou-se, procurando seguir o ritmo dos outros,
atazanado pela asma, e desviar a atenção do capataz que
sentia quase sobre ele, que talvez fosse perdoado e amanhã
ganhasse mais um dia. Procurou as forças que lhe restavam e

184
golpeou a terra. A tosse tapou-lhe a garganta. De novo largou
a picareta. Ninguém se atrevia desviar o rosto ou prestar-lhe
auxílio. Lúcio observava. Paulino abriu o mais que pode a
boca e caiu, estorcendo-se, as calças manchadas de urina.
— É de propósito. Já o conheço. Pegue no trabalho,
safado. Lúcio sacudiu-o pelos ombros. O punho fez ariete e
bateu nos dentes do cabouqueiro. Sangue desceu-lhe em fios
pelo pescoço, enodoando a camisa. A mão do chefe tornou a
bater no mesmo sítio. Paulino, sem opor resistência, deixou-
se rolar ao pé, de borco, os dedos a enterrarem-se pela boca,
num esforço de desentupir os pulmões.
O capataz voltou-lhe as costas, a repetir que aquilo era
fingimento, que não passava de preguiça. Que os outros
tivessem cuidado porque o primeiro a imitar Paulino
receberia a mesma lição. Malandragem. Calaceiros.
— Paciência. Um companheiro ajudou-o a levantar-
se, limpando-lhe o gogo que lhe saía dos lábios. Com um
trapo afastou a lama que se lhe amontoara nos fundos da boca
e extraiu pedaços de dentes que mostrou à volta.
— Santo Deus! Lúcio não é criatura. Vejamos em que
estado deixou a boca de Paulino. E rodearam o ferido mais de
perto, fazendo o sinal da cruz. Paulino chorava como um

185
desiludido, a cuspir por entre golfadas de ar, os resíduos de
terra que ainda tinha na boca, limpando os olhos com as
costas das mãos.
— Ele bateu na fraqueza, senhores, desculpava-se, a
apalpar as fibras dos músculos que lhe pendiam dos ossos.
Roberto voltou para os circunstantes: — Amigos,
Paulino, rei da tapona no clube da fábrica de algodão onde
trabalhamos, a ser batido como um menino dessa maneira,
faz pena. Lembro-me de uma ocasião em que defendeu um
patrício contra três Brancos. Nem podem fazer ideia como
era valente.
Hoje, até Lúcio quebra-lhe os dentes, dizendo e
fazendo. Deus é maior!
— Não faz mal, bateu na fraqueza. Estou em jejum
natural desde ontem porque não tive vale de comida. É
fraqueza, Roberto. Mundo vai acabar p’ra mim.
O grupo ficou pensativo por momentos. Depois
recomeçou o trabalho. Roberto, de pé, cuspinhou na palma
das mãos e desabafou: — O Mundo não está bom!
No chão, as marcas de sangue cobriam-se de poeira.
Paulino curvou-se, espalhou terra por cima. Passou os dedos

186
pelos lábios a avaliar o volume do ferimento, a língua
apoiando-se nos pontos onde faltavam os dentes.
Roberto contemplou-o demoradamente. Tristes, não
disseram mais nada.

Mais além alguém gritava e o vento trazia fragmentos


de lamentações idênticas ao ritmo de uma toada, que vibrava,
a atingir um curso, para descair aos poucos e deixar no vácuo
uma dor, a alternar-se no mesmo tom, para, depois, inculcar
uma intraduzível tristeza que arrepiava todos que
trabalhavam nos caminhos-de-estado.
— Outro que já rendeu alma.
Roberto tirou o barrete, rezou um padre-nosso, no que
foi imitado pelos outros. Paulino remeteu a língua, a medo,
nos vãos dos dentes para retirar o sangue pisado. Os lábios
inchavam-se, a dar-lhe um aspecto normal.
E sem querer, o bater das picaretas acompanhava, a
compasso, aquele choro, como se fossem paus de um tambor
que todos manejavam para realçar o amargo desse mal-estar.
— Está muito grosso?
— Um pouco mais do que ainda agora. Da maneira
que ele bateu era para ficar pior, respondeu Roberto.

187
— Hoje não vou para casa. Ana vai padecer. Fico
contigo, os olhos de Paulino imploravam. Tenho vergonha de
chegar perto da família com a cara neste estado.
— Safardana! Deixa ver por dentro. Os dedos
levantaram a língua e Roberto examinou a boca do
companheiro. Paulino gemeu, as feridas reverteram sangue.
— Paulino, se fosse Lá-Fora, hein? – quando eras rijo
e tinhas braços como barra de ferro? - se fosse Lá-Fora?
— Paciência. Lúcio não bateu em gente-homem. Foi da
fraqueza que ele abusou. Deus vai bater nele um dia desses.
Asma agora é mais forte. Vou tratar de folha de erva para fumar
até ficar bom. Depois eu e Lúcio temos conta para ajustar.
Dizem que folha de erva é bom remédio contra falta de ar.
Roberto fixou-o a desilusão nos olhos: — Ah, se fosse
Lá-Fora!
— América está longe. Cada dia eu penso na força
que faz abandonar o pão garantido para a gente vir acabar
nisto: apontava para os dentes partidos, os pés descalços, o
fato esfarrapado, sem forças para conter as lágrimas que
pingavam como grãos de milho.
Roberto mordeu os beiços, voltou a cara: —
Desalmado!

188
O sol entrava no mar quando soou a hora da última
chamada. Lúcio apontava, riscando, à medida que homens
depositavam as ferramentas na casa do guarda.
— Pedro Santos! Pedro Santos! – ninguém respondeu.
Os cabouqueiros entreolharam-se à espera que alguém desse
conta de Pedro Santos.
— Bolas! Onde está Pedro Santos?
— Não está.
Um menino veio chegando aos berros, dizendo que o
pai estava morrendo num fundo, lá em baixo. Lúcio mandou
buscar a picareta do moribundo e passou o lápis na boca para
avivar a tinta, a cortar inteiramente o nome de Pedro Santos,
na folha do ponto. O menino desatou a chorar e foi afastado
para não perturbar a chamada.
Seis corpos de trabalhadores foram depositados ao pé
do capataz, para ele tomar nota e riscar os nomes, conferindo
as ferramentas. O de Pedro Santos, nu, braços estendidos em
cruz e olhos vidrados faziam medo.
Da boca saía espuma onde os moscardos poisavam,
embrenhando-se pelas barbas e pelas narinas. As pernas em
V, a mostrar a nojeira de um buraco ainda húmido de

189
excremento. Pelas coxas, marcas da diarreia que vitimara
Pedro Santos.
Lúcio deu ordens de enterrar os cadáveres na vala que
ladeava a estrada, enquanto a ventania recomeçava. Seis
covas foram abertas, à boca da noite, no meio dos gemidos do
garoto que não despegava-se daquele que fora seu pai. O
vento aumentou as lufadas e a poeira subiu nas lombas para
se desfazer nas ravinas. A brisa que vinha do mar arrepiava o
pessoal que tiritava os dentes e se impacientava por partir.
Lúcio fechou o livro do ponto e mandou dispersar,
que nessa tarde não havia vales, que o fim da semana estava
longe, que não havia milho para toda a gente antes da
chegada do Falucho.
Da multidão elevou-se um clamor de desconsolo, de
súplicas, cada um rezando sua história a justificar sua razão
de vida, que os meninos estavam sem comer, que a casa não
tinha um simples grão de milho para entreter a boca.
Finalmente o silêncio tornou-se mais preciso, a pouco
e pouco cada um dirigiu-se para seu abrigo.

ROMANO, Luís. Famintos. Lisboa: Ulmeiro, 1983, p. 43-47.

190
Manuel Lopes

191
Manuel António dos Santos Lopes nasceu
em 1907, na ilha de São Vicente e faleceu
em Lisboa, em 2005. Foi ficcionista, poeta
e ensaísta e os seus primeiros trabalhos
literários foram publicados em 1927, no
Almanaque de Lembranças Luso-
Brasileiro. Com Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa,
criou a revista Claridade (1936). Foi um dos responsáveis por
dar a conhecer ao mundo as calamidades, as secas e as mortes
em São Vicente e, sobretudo, em Santo Antão. Entre as suas
obras mais conhecidas contam-se: Chuva Braba (romance,
1956, Prêmio Fernão Mendes Pinto), O Galo que Cantou na
Baía (contos, 1959, Prêmio Fernão Mendes Pinto) e Os
Flagelados do Vento Leste (romance, 1959, Prêmio Meio
Milénio do Achamento de Cabo Verde). Esta obra teve
adaptação cinematográfica, dirigida por António Faria, em
1987. Outras obras: Horas vagas (poesia, 1934), Poemas de
quem ficou (poesia, 1949), Temas cabo-verdianos (ensaios,
1950), Crioulo e outros poemas (poesia, 1964), As
personagens de ficção e os seus modelos (ensaio, 1971) e
Falucho ancorado (antologia poética, 1997). Membro da
Academia Cabo-verdiana de Letras.

192
Os Flagelados do Vento Leste (excerto)

Anos de boas águas! Santo André. Festa de Santo


André no Norte. Ocê não conhece? Tempo é frio, mas tem
grogue. Bonitas espigas de milho. Tome ocê uma espiga de
milho assado. Veja ocê. Milho-leite. Milho cozido, uma
pouquinha de sal. Temos também papa. Ocê com certeza
nunca ouviu falar de papa de milho verde. Ocê vai
experimentar papa de milho verde ralado, com leite, e diga
depois se é de mangação. As cabras dão muito leite neste
tempo, sabe ocê?, leite sem destino. Festa de Santo André no
Norte. Vamos dançar também. Morna é cura de reumatismo.
Roncam tambores nos terreiros, é uma tal trabuzana! Tocam
violas e rabecas nos quartinhos térreos e nas casas
assoalhadas. Não faz mal se não tem rabeca. As raparigas
cantam. Cantam e dançam, dançam e cantam. Ocê nunca
ouviu as raparigas do Norte cantar. É quando mostram que
sabem cantar. Abrem a goela, e então se não tem rabeca não
faz mal. E Santo André está lá pra armar casamento. Mas é
festa de todo o mundo, velhos e novos, bonitos e feios,
brancos e pretos. Tum-tum-tum... de tambores que os homens
levam e trazem, pelos atalhos, de casa em casa. Tum-tum-

193
tum, a vir e a var. Ocê não fique espantado, nós dizemos a
vier e a var por brincadeira. Mocinhas bebem leite se
quiserem, os homens bebem grogue. Grogue é só pra
homens. Mas tem moças que metem grogue no corpo como
homem. Vamos dançar a morna. Agora e logo e sempre que
ocê quiser. Morna é cura de reumatismo. Serafim Jon, vamos
todos ouvir cantar o Serafim Jon: Saúde pa sê famila, ó lé-lé,
lé-lé-lé-lé...” As raparigas fazem baixão e batem as palmas.
Agora ocê trate de botar um sorriso amável porque é pra ocê
esta saúde. Contradança! Ó, meu Deus! Faz-me saudade a
contradança. Mais do que a morna, sabe ocê? É a coisa mais
bonita que o mundo deitou nesta terra. Minha gente! Agora é
contradança! Ocê vem ver o que é saracotear. Velhos e novos
vamos dançar a contradança. Tirem o canhoto da boca. Cada
cavalheiro dá cinco tostões. Não há que refilar. É pra comprar
grogue prós tocadores. Grogue tira canseira. Tocador diz:
“Contradança cansa”. Grogue é seca-calor. Festa de Santo
André no Norte. Novembro. Anos de boas águas, anos de
esmola de Deus.
Este ano não tem Santo André...

194
***

Um homem deve ser governado. Se o ano tivesse sido


de boas águas não faltariam batatas, feijão, milho verde, os
meninos estariam gordinhos, o porco a pedir faca, as cabras a
abarrotar de leite, as galinhas pondo ovos onde quê no
milharal e aparecendo com as ninhadas atrás.
Em lugar de chuva veio a lestada, depois da lestada os
malditos gafanhotos vermelhos. Para coroar a desgraça não
caíra uma gota de água depois das chuvadas de setembro. Os
campos pelaram pelados, a nascente dava pingos só, a cabra
quase nada, as galinhas andando dum lado para outro atrás de
Zepa, o porco grunhindo de manhã à noite. Na caixa, o milho
estava quase no fim, coisa para poucos dias. Portanto, “leva-
se a cabra a vender, antes que aconteça o que aconteceu com
a outra” que morrera uns dias atrás. Não havia nada a fazer.
Vendê-la enquanto tinha as mamas a funcionar e saúde no
corpo. Quando não há chuva não se faz cálculo da vida com o
rabo sentado no banco. É ouvir o que diz o sentido na cabeça
e obedecer logo, governar os dias consoante Deus vai
mandando, e conforme o juízo de cada qual. Vendia-se a

195
cabra, comprava-se milho e sal e um pouco de açúcar. E, a
seguir, faca no pescoço do porco enquanto era tempo.
Na véspera, à noite, Zepa preparava a comida de
caminho. Metade duma caldeira de papa rolão e um buli de
água. Muito cedinho, estrelas no céu, a cavalo no burrico do
compadre João Felícia, a cabra adiante recalcitrante, berrando
e fugindo para a direita e para a esquerda, uma vara na mão a
enxotá-la, José da Cruz sumiu-se no escuro, a caminho do
Porto Novo; jornada para quase um dia inteiro, com aquele
bichinho a desorientar os passos da alimária...
Quando o marido se afastou com a cabrinha de leite,
adiante, Zepa sentou-se no esteirado da cama e chorou a sua
cabrinha, o leite fresco, de pela-manhã, dos meninos todos os
dias. Ficou assim lamuriando, como se lhe tivesse morrido
um filho, até um pouco antes do nascer do Sol. Quando viu
claridade nas frestas da janela, levantou-se, abriu a porta e
sentou-se na soleira. Dobrada e encolhida por causa do frio,
observou o êxodo de homens, mulheres e crianças no
caminho, abandonando os campos desolados, em direção às
montanhas, atraídos pelos boatos da abertura dos trabalhados
do Estado na estrada dos Lajedos. Nos últimos dias os
caminhos tinham andado pejados de gente, como carreiros de

196
formigas, numa única direção. Iam de esteira e sacos às
costas, alguns com o pilão, e até paus de armação da casa.
Era uma trupida de povo, principalmente de madrugada. Zepa
vinha todas as manhãs ver passar gente. Ficava estonteada,
sem palavras na boca o resto do dia. “Onde vai tanta gente,
Jesus Cristo?! Que vão eles encontrar lá onde o seu sentido os
leva?” – perguntava de si para si, e sentia o vazio da
desolação e do abandono cavar-se cada vez mais à sua volta,
e um desamparo de quem não tem onde fincar os pés. Para
José da Cruz, todo aquele que passava esse caminho com a
família atrás, de cara virada para as montanhas, estragava o
rumo da vida. Cada homem tem o seu destino marcado,
comentava. Ele fora hoje com a cabrinha a vender, mas
voltaria ao seu posto. O posto de cada um era lá onde
assentara os frechais do seu teto e armara as três pedras do
fogareiro, e cozinhava a cachupa do dia-a-dia. Soltar os pés
por esse mundo de Cristo, à toa, era perder a raiz e a marca
do seu destino.
Com o nascer do Sol, a romaria dos flagelados
diminuía. Aguardavam o crepúsculo para retomar a marcha.
Mas era de madrugadinha que a coragem pegava neles com
mais gana e os atirava para as montanhas. Deixavam nos

197
caminhos um zunzum pegado, de vozes e lamúrias, choros de
meninos e queixumes de velhos e velhas.
Quando a meninada se levantou, Zepa voltou para
dentro, desabafou a panela que estava sobre a mesa, cortou
uma racha de papa fria para cada um. Tirou um bocadinho
para si e levou-o à boca, mastigando sem gosto. A viúva
Aninhas entrou no terreiro nessa altura, e assomou à porta,
como se estivesse à espera que a vizinha mexesse na papa.
Vinha toda curvada para diante, os braços cruzados no peito
sobre o mandrião bamboleante, gemendo.
— A comadre deixe entrar um bocadinho, ui!
Zepa deitou-lhe uma mirada de esguelha e não disse
nada. Ela foi entrando; aproximou-se da mesa.
— Ui, comadre! Uma dor no peito, dias-há. Náo sei
que moléstio eu tenho. Mundo quer matar um cristão antes de
tempo. – O único dente da sua boca espreitava entre os beiços
murchos. Enquanto os ombros dançavam à roda do tronco,
num balancear de sofrimento, não desfitava a panela
destapada. Zepa lançou-lhe outra olhadela de raiva; deu-lhe
vontade de gritar: “Sai da minha vista, desavergonhada!
Ninguém me tira da cabeça que foi ocê quem roubou a minha
galinha de pescoço pelado!”

198
— Também sinto a boca do estômago a doer –
continuou a viúva num tom de lamúria – como se eu tivesse
engolido uma brasa de lume, ui! Eu digo ocê, comadre. Tou
sem pitada de comida na minha casa. Milho acabou, feijão
acabou, acabou sal e acabou açúcar, fep! Que é que uma
pobre mulher vai fazer? Sem homem em casa, sem ninguém?
Ui, comadre...
Zepa passou-lhe uma lasca de papa.
— Não tamos também muito fornecidos...
Com duas viradas da queixada mocha de dentes, a
viúva deitou a papa para dentro. Esfregou as mãos no peito,
como se o engolir lhe fosse penoso. Depois, reanimada, disse:
— Vi o Saltapedra no caminho.
— Qu’é que tá buscando esse malvado pr’aí? –
perguntou Zepa virando-se agora para ela com ar de desafio.
“Ele não é pior qu’ocê” – pensou. “Um mata e outro esfola”.
— Anda gordo então, aquela alma penada, e a cheirar
carne, comadre, carne de capado, um ranço atrás dele como
se estivesse pr’aí comendo capado cru. Ui, comadre; não
posso fazer um jeito assim pra trás! Eu disse-lhe: “O povo a
curtir falta, e ocê gordo coma porco no tempo das águas”. —
“Não tou gordo, nha Aninhas”, respondeu aquele

199
desavergonhado. “Tou mas é inchado. É moléstia”. —
“Moléstia não engana vista, desgraçado. Eu queria só saber
onde ocê vai buscar comida no meio duma carestia destas”.
Não lhe falei direito, comadre? Ele vinha das bandas de baixo
com um saco às costas, a querer disfarçar. Quando botei os
olhos pró saco e perguntei o que tinha lá, desandou sem dizer
ai nem Jesus. Senti gana de correr atrás dele e arrancar-lhe o
saco, nhara sim. Se ele não fosse uma alma penada tirava
uma moinha do que levava – e não devia ser pouca coisa – e
estendia o que não lhe fazia falta a esta pobre viúva sem
ninguém a quem estender a mão. Ocê não acha, comadre?
— Eu, soberba de fora, - comentou Zepa batendo duas
palmadinhas nas faces – comida de saco de ladrão não entra
na minha boca nem que eu esteja a morrer de fome. Eu só
queria saber quem foi que roubou a minha galinha de pescoço
pelado, é só o que eu queria saber.

LOPES, Manuel. Os flagelados do vento leste. São Paulo: Ática, 1979, p.


122-127.

200
Orlanda Amarílis

201
Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues
Fernandes Ferreira nasceu em 1924, na
ilha de Santiago, e faleceu em 2014, em
Lisboa. Estudou na cidade do Mindelo,
na ilha de São Vicente. Sobrinha de
António Aurélio Gonçalves, em 1945
casou-se com o escritor português (naturalizado cabo-
verdiano) Manuel Ferreira. Viveu seis anos em Goa, onde
concluiu os estudos do Magistério Primário, após o que, em
Lisboa, completou o curso de Ciências Pedagógicas. Visitou
vários países, para participar em encontros culturais, e
tornou-se membro do Movimento Português Contra o
Apartheid, do Movimento Português para a Paz e da
Associação Portuguesa de Escritores (APE). Começou por
colaborar na revista Certeza, em 1944, e os seus contos foram
compondo várias antologias de literatura cabo-verdiana e
africana. Obras: Cais do Sodré té Salamansa (1974), Ilhéu
dos pássaros (1983) e A casa dos mastros (1989), contos;
Facécias e peripécias (infantil, 1990). Membro da Academia
Cabo-verdiana de Letras.

202
Salamansa

Baltasar entretém-se pela casa, passeando de uma sala


para outra, parando tempo sem conta à porta da sala aberta
para o jardim, esfregando as mãos ou mantendo-as atrás das
costas, pensando, devaneando.
O jasmineiro florido traz até ele um aroma cheio de
reminiscências. E o pato que ele e os colegas roubaram à
dona Chica num carnaval de há tantos anos e depois tinham
ido guardar no quintal da irmã? Nessa noite de luar cru,
aberto sobre as casas baixas da cidade, o ar recendia aos
jasmins cujas pétalas se tinham soltado durante a tarde.
De uma vez safara-se por essa mesma porta para ir ter
com a Linda. Sim, Linda, uma da rua do Cavoquinho. Pusera
um jasmim na lapela e, fechando o portão de mansinho, ei-lo
na rua batida pelo vento que varria a cidade.
Linda era menina da rua do Cavoquinho, é certo.
Enchera-lhe, porém, as suas noites de rapazinho a despontar
para a vida de gente crescida.
Quando lá ia, normalmente, estava acompanhada.
Eram o Júlio do cinema, o Humberto e mais dois ou três, e
também algumas colegas dela, companheiras dessa vida de

203
estar com uns e com outros, marinheiros, rapazes do liceu,
desembarcados de terra-longe.
Linda já tinha tido um homem casado. Esse pagava-
lhe a renda do quarto e trazia amigos para as patuscadas.
Comiam arroz de atum com malagueta ou caldo de peixe com
farinha de pau ou ainda linguiça frita. Comiam, riam, bebiam
grogue.
Essas pândegas, muitas vezes, iam terminar em
Salamansa, praia sabe-de-mundo lá na outra ponta da ilha.
Jantavam à luz da lua e deitavam-se na areia a contemplar a
noite serena. Era uma das coisas a moerem-no cá por dentro:
não ter tomado parte nas terras de Salamansa.
Linda também tocava violão e cantava. Oh, se
cantava! La, la, la, menina deixa de disparate, la, la, la. Já não
se lembra. Eram tantas as mornas e sambas cantadas naquele
quarto fumarento da lamparina de petróleo poisada sempre
sobre uma lata vazia de cigarros capstain. A luz frouxa
esticava-se numa língua de fogo e desviava-se, incerta, de um
lado para outro, enfarruscando as garrafas vazias. Alinhavam-
se arrumadas sobre a mesa, ao longo da parede mal rebocada.
Ela acabara por deixar o homem casado.

204
“Sabes – dissera-lhe, um dia, enquanto ele, de costas
sobre a cama de ferro, os braços sob a nuca, contava as vigas
do tecto –, sabes, deixei-o porque ele gostava de fazer
porcarias”.
Em combinação, sentada ao fundo da cama, coçava a
cabeça, continuando no mesmo tom.
“Eu gosto de fazer essas coisas como deve ser.
Porcarias não são comigo”.
Acompanhara a frase com um virar significativo de
olhos.
Baltasar sentiu-se recompensado. Ele, ao menos, era
decente. Recompensado e orgulhoso por Linda desabafar
com ele. Sentara-se na cama e puxara-a a si. A cabeça dela
roçara-lhe o ventre, cocegando-o. Baltasar jamais esqueceu
aquele dia. Essa boca-da-noite, aliás, marcou a sério o início
das relações mantidas com Linda anos a fio e, para precisar
bem, ainda alguns meses depois de ter casado.
A princípio procurava-o por mero prazer; depois por
necessidade de a possuir, de sentir o seu corpo morno e
esguio, de descansar com a cabeça aconchegada entre os seus
seios rijos. Por vezes, ele sentia nas orelhas, nas faces, a

205
humidade do suor que lhe aflorava à sua pele de crioula e lhe
escorria ao longo do vinco dos seios.
Pouco a pouco, verificara uma coisa curiosa. Ia-se
tornando senhor do corpo de Linda. Namorava a que viria a
ser sua mulher, mas o desejo impelia-o para Linda. Toda a
cidade murmurava, mas ele que havia de fazer?
Nessa boca-da-noite Linda roçara-lhe os lábios pelo
umbigo e levantara o queixo, mostrando os dentes por entre a
boca meio cerrada. Ele só podia enxergar bem, bem, as suas
pernas longas e lisas. Com o esforço deixara-se cair de costas
sobre a cama. Ali procurou alento para a puxar.
Lembra-se de, nessa ocasião, uma aranha correr célere
para a ponta da teia, segura numa das vigas do tecto. A teia
tremera, os olhos baixaram e pararam nas alças da
combinação de seda japonesa comprada de graça na loja do
Arã.
Pronto, conseguira pô-la em posição indefesa. Ela
tinha-lhe pedido:
“Deixa-te disso”.
Sentindo-se forte com a súplica, o desejo tomara-o
como se já fosse homem experimentado. Respirou fundo e
possuiu-a como a uma flor se receia venha a desfolhar-se

206
entre as nossas mãos. Linda bateu as pálpebras por momentos
e desceu-as, ensombrando com os cílios caídos a face serena
e ardente.
Baltasar continuou a contar os jasmins já abertos.
Que teria sido feito de Linda?
De uma vez sovara-a. Encaminhava-se para lá depois
do jantar e viu sair do quarto dela uns moços da ponta-de-
cais, desses do contrabando no meio da baía. Rocóu por eles
e, entrando no quartito térreo, deparou com a Linda sentada
no pilão, de cotovelos fincados na mesa. O queixo apoiava-se
sobre as costas da mão, em ar de modorra.
Uma vela colocada na boca de uma garrafa, meio
consumida, alumiava a mesa e os copos espalhados.
Viu-o entrar, agarrou a garrafa com um resto de
bebida, arrastou-o ao longo da mesa com lentidão e, mesmo
sentada, escondeu-a atrás do pilão, junto à parede, rente à
perna da mesa.
Baltasar percebera. Os moços tinham trazido grogue e
Linda apanhara uma fusca alentada. Aqueles olhos não o
enganavam. Avançou para ela, raivoso e ciumento, e deu-lhe
uma valente bofetada. Ela não reagiu, mas quando tentou
secundar o gesto, levantou-se irada e, de mãos na cintura,

207
chamou-lhe muitos nomes, acabando por lhe dizer: “Ainda
cheiras a chichi!” A cambalear, empurrou-o para a porta. Não
conseguindo pô-lo na rua, estacou de repente e voltou-lhe as
costas. Subindo a roupa até à cintura, curvou-se, mostrando a
polpa cheia, e batendo repetidas vezes nas nádegas com a
mão espalmada, desatou em berraria.
“Aqui, aqui, aqui é que mandas em mim”.
Descontrolado, só se lembra ainda agora de a ter
cobrido de pontapés e fugir, enfim, cansado e vencido.
Nem o vento já na rua a fustigar-lhe o rosto
conseguira apagar a raiva de que se viu possuído então.
Recorda-se destes factos e afigura-se-lhe desejar o
corpo de Linda como há vinte anos. Nunca mais soubera
dela.
Deixou a sala, caminhou pelo corredor e alcançou o
quintal. Só parou junto à cisterna. A criada, junto à porta da
cozinha, olhou-o surpresa. Como se não o tivesse visto,
enfiou-se para o fundo da cozinha e dali continuou a espreitá-
lo. Resoluto, entrou atrás dela.
“Antoninha, lembras-te da Linda?”
“Qual Linda, senhor doutor?”
“Linda, uma que morava na rua do Cavoquinho”.

208
Antoninha riu, um risco curcutido. O riso feriu-lhe os
ouvidos.
“Adá, porque pergunta isso, senhor doutor?”
Um pouco desconcertado, não atinava aonde
Antoninha queria chegar.
“Quer saber mesmo de Linda da rua do Cavoquinho?”
Baltasar ficou calado. Ninguém ignorava quem eram
aquelas meninas da rua do Cavoquinho. Eram meninas de
mau porte. Pelo menos, eram-no no seu tempo de rapazinho.
Meninas de todas as quintas-feiras irem ao hospital para a
vistoria. Entre uma e outra examinação preenchiam os dias,
se dias se pudessem chamar às noitadas e patuscadas com os
empregados da Shell, do Telégrafo, ou ao saracoteio da
coladeira a qualquer hora para os estrangeiros. Estes
deixavam alguns xelins mas não davam para nada.
“Linda era irmã de meu pai que Deus tem”.
“Como, vocês são parentes?”
“Somos. Ela era irmã codê de papai. Ela é minha tia”,
acrescentou após um curto silêncio.
“E que foi feito dela?”
“Da minha tia Linda? Ela foi pá S. Tomé”.

209
Antoninha remexe na fornalha do fogão com um
ferro.
“Eu também qualquer dia vou pá S. Tomé”.
Ele já não a escutava.
Essa gente de S. Vicente ia toda para S. Tomé. Para
quê, se iam para lá levar vida de mulheres parideiras de filhos
de contratados angolanos, e, ainda por cima, tinham de aturar
aqueles filhos da mãe dos capatazes lá das roças?
“Porque é que queres ir para S. Tomé?”, surpreendeu-
se a perguntar à criada. “Não estás bem aqui na tua terra,
Antoninha?”
“Bem, eu estou, senhor doutor. Mas eu tenho meu
filho e eu quero dar-lhe duas letras. Sabe, esta nossa terra está
nanhida.”
Antoninha desfia as suas preocupações num arrastar
monocórdico de palavras.
“O pai de meu filho deixou-me. Meu filho passa os
dias na ponta-de-praia e no rabo-de-salina, a vadiar, a polir as
calçadas. Ele não respeita a mamãe. De resto ela já está velha
não pode com ele. Tenho de ir pá S. Tomé para poder dar
duas letras ao meu filho”.

210
Enxota com o pé uma galinha que, de cabeça
levantada e atenta, entrara, atrevida, na cozinha.
Baltasar, à porta, abrange o amplo quintal onde elas
debicam pelos cantos. Viera passar uns tempos a S. Vicente,
todavia estava desejoso de voltar. A irmã passava os dias a
lamentar a chuva arredia havia duas épocas, o povo começara
a debandada para S. Tomé, as pessoas do seu tempo ou
tinham emigrado para a América ou tinham-se deixado ficar
naquela modorra do Mindelo, impotentes para lutarem contra
o vento endiabrado que empurrava as águas para outras
pontas. O que o prendia ali? Nada, nada.
“Tenho de voltar para minha casa em S. Paulo, ali
mesmo pertinho do Cais do Sodré”.
O lamento escapa-se-lhe inconscientemente.
Antoninha, de cócoras, guarda o balaio debaixo do
fogão alto feito de pedra e concreto. Espreita para dentro da
fornalha uma batata que pusera lá a assar, sob a cinza quente.
Sempre de cócoras, torceu o busto e admirou-se:
“Adá, senhor doutor, senhor doutor está a falar
sozinho?”
O vento entrava por revoadas no quintal, enrodilhava
a poeira, afunilando-a como as covas de catumbembê.

211
Porque se lembrara de Linda? Tantos anos já
passaram sobre essa ligação deitada para trás das costas,
depois dalgumas cenas com a mulher. Acabou com ela de vez
ao embarcar para o continente. Tantos anos! Formara-se,
tinha os filhos criados, tornara-se um bom chefe de família e
não querem lá ver? Era capaz de fazer alguma tolice se
encontrasse a Linda de novo.
Linda andava descalça, o calcanhar muito liso, sempre
esfregado com pedrinha do mar. Não os tinha rachados como
muitas mulheres de pé-descalço, isso não. E fumava com uma
elegância, senhores. De perna traçada, recostava-se à mesa
escalavrada do quarto onde recebia os amigos, onde comia e
onde ia para a cama com ele e com outros, atirando o fumo
com o mesmo à vontade que mais tarde veio a encontrar nas
requentadoras das salas de chá aí ao subir do Chiado.
Desconcertara-o por vezes, com um certo ar masculinizado
adoptado nos últimos tempos. Saía para a rua de cigarro na
boca e calcorreava-as, sempre de cigarro na boca, a
escandalizar a cidade toda, os pés bem esfregados com
pedrinha do mar, o lenço cor-de-rosa apertado com um laço
no alto da cabeça, o vestido de seda do Japão a desenhar-lhe
o corpo onde era preciso.

212
“Deixa amar – dizia ela –, deixa gozar”.
E rematava a frase com um levantar arrogante de
cabeça.
Baltasar caminhou por entre os cavacos espalhados no
quintal e parou junto à cisterna.
Do fundo da cozinha um cantarolar baixo vai
crescendo em ritmo. A coladera escorre da boca de
Antoninha e invade-o como uma carícia, depois afaga-o,
entontece-o – ah! como a nossa terra é sabe deveras! –
transportando-o às areias de Salamansa onde irá rebolar-se e
beijar a espuma salgada do mar.
Antoninha, esquecida das suas preocupações,
garganteia com sabura:
‘m bá pâ Salamansa
Oh, sô sabe...
‘m bá rolá na areia
Oh, sô sabe
Oh menina colá na mi
pá ‘m podê brincá ma bô...

Oh, Salamansa, praia de ondas soltas e barulhentas


como meninas intentadas em dia de S. João. Oh, Salamansa,

213
de peixe frito nos pratos cobertos no fundo dos balaios e
canecas de milho ilhado por titita em caldeiras com areia
quente. Areia de Salamansa, Linda a rolar na areia.
Deixa o quintal, passa pelo quartinho de trás e some-
se nas salas da casa grande.

AMARÍLIS, Orlanda. Cais do Sodré té Salamansa. Linda-a-Velha:


Edições ALAC, 1991, p. 77-82.

214
As organizadoras

Simone Caputo Gomes

Professora de Literaturas Africanas e de Estudos Comparados


de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade de São
Paulo (USP), recebeu em 2007 a Medalha do Vulcão de
Primeira Classe, condecoração outorgada pelo Presidente da
República de Cabo Verde por seu trabalho com a cultura
daquele país. Designada como Membro Honorário da
Academia Cabo-verdiana de Letras, pelo Plenário da ACL,
em 2013. Coordenadora dos convênios internacionais da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) com as seguintes
universidades cabo-verdianas: UNICV, Jean Piaget e
UNISANTIAGO. Conselheira, junto à Associação de
Escritores Cabo-verdianos (AEC), para a criação da
Academia Cabo-verdiana de Letras, bem como para
desenvolvimento de projetos comuns relativos aos escritores
cabo-verdianos no âmbito da Academia. Comenda Oxum
Muiwá, outorgada pela Universidade Estadual da Bahia
(UNEB), 2010. Doutora em Letras (Literaturas de Língua
Portuguesa) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (1988), com Pós-Doutorados realizados,
respectivamente, na Universidade de Aveiro, na Universidade
de Lisboa (2) e na Universidade de Coimbra, nas áreas de
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (em especial,
Literatura Cabo-verdiana e História da Literatura) e Poesia
Portuguesa Contemporânea. Coordenadora do Grupo de
Pesquisa de Estudos Cabo-verdianos CNPq/USP. Inúmeros
artigos publicados em periódicos especializados nacionais e
internacionais, além de capítulos de livros. Produção em
livro: Uma recuperação de raiz: Cabo Verde na obra de

215
Daniel Filipe (dissertação de Mestrado, 1979, publicada pelo
Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco); Cabo Verde:
literatura em chão de cultura. Ateliê: Instituto da Biblioteca
Nacional e do Livro de Cabo Verde, 2008; Arménio Vieira
Prêmio Camões 2009: Livro na Rua, Biblioteca do Cidadão.
Thesaurus-CPLP, 2009.
Site: http://www.simonecaputogomes.com.

Érica Antunes Pereira

Doutora em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de


Língua Portuguesa) pela Universidade de São Paulo, com
Pós-Doutorado realizado na mesma instituição e na
Universidade de Aveiro, todos com bolsas da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Membro do
Grupo de Pesquisa de Estudos Cabo-verdianos CNPq/USP.
Artigos publicados em periódicos especializados nacionais e
internacionais, além de capítulos de livros. Autora da obra De
missangas e catanas: a construção social do sujeito feminino
em poemas angolanos, cabo-verdianos, moçambicanos e são-
tomenses (Annablume; FAPESP, 2013).

216

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