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NA GUINÉ-BISSAU
Um país da CPLP
PAPIA
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA
NA GUINÉ-BISSAU
Um país da CPLP
ORGANIZADOR (editor)
Hildo Honório do Couto (Brasília)
CO-ORGANIZADORES (co-editors)
John Holm (Coimbra)
Matthias Perl (Mainz)
Heliana Mello (Belo Horizonte)
QUADRO DE CONSULTORES
Angela Bartens (Helsinque)
Alan Baxter (Macau)
Nicolás Castillo-Matthieu (Bogotá)
J. Clancy Clements (Bloomington)
Marta Dijkhoff (Curaçao)
Germán de Grande (Valladolid)
Pierre Guisan (Rio de Janeiro)
Tjerk Hagemeier (Lisboa)
Alexandr Jaruškin (São Petersburgo)
Alain Kihm (Paris)
Dante Lucchesi (Salvador)
Philippe Maurer (Küsnacht, Suíça)
John M. Lipski (Albuquerque)
Chérif Mbodj (Dakar)
Dan Munteanu (Las Palmas)
Anthony J. Naro (Rio de Janeiro)
Mariana Ploae-Hanganu (Bucareste)
Jean-Louis Rougé (Praia, Cabo Verde)
Armin Schwegler (Irvine)
Petra Thiele (Berlim)
Klaus Zimmermann (Berlim)
SUMÁRIO
Apresentação.................................................................................... 7
Nota Editorial................................................................................... 9
Prefário............................................................................................ 11
0.Introdução ................................................................................... 15
Apêndice.......................................................................................... 245
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 7
Apresentação
Victor Alegria
Thesaurus Editora.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 9
NOTA EDITORIAL
PREFÁCIO
tos) e a questão religiosa do irã. Além disso, temos a parte mais linguística.
Primeiro, a situação linguística do país (capítulos I e XII), com suas mais de
dezesseis línguas, além do crioulo e o português. Segundo, falamos sobre a
questão da língua portuguesa no país.
Nossa intenção não foi publicar algo melhor do que o que já existe,
mas completá-lo, entrando em áreas que ainda não tinham sido apresenta-
das ao público de língua portuguesa. Pelas informações que presta sobre a
cultura da Guiné-Bissau, devido às dificuldades encontradas para recolher
dados nesta área, cremos que trazemos informações úteis a quem pretenda
conhecer o maravilhoso mundo da literatura, da língua e da cultura desse
pequeno e sofrido país pertencente à CPLP. Como se sabe, há muito pouca
produção existente nesse domínio. Nossa intenção foi remediar, pelo menos
em parte, essa escassez.
O livro foi escrito tendo em vista as pessoas que têm interesse pela
Guiné-Bissau e pela África em Geral, não para aquelas que põem o dernier
cri da crítica literária em primeiro lugar. Ele é bem mais modesto. Visamos a
apresentar um conspecto da literatura, da língua e da cultura guineenses ao
leitor de língua portuguesa. Se as pessoas que se interessam por essas áreas,
e/ou pela Guiné-Bissau em geral, virem alguma coisa de interesse no livro,
dar-nos-emos por satisfeitos, nosso objetivo foi atingido.
O leitor e a leitora notarão que, nas poucas tentativas de interpretação
que fizemos, há uma certa tendência a encarar os fatos em estudo da pers-
pectiva da crítica literária ecológica, mais conhecida como ecocrítica (ecocri-
ticism). Isso se deve à formação de um dos autores, estudioso das relações
entre língua e meio ambiente, mediante a disciplina ecolinguística (Couto
2007), cujo último capítulo se intitula justamente “Ecocrítica”. Sobre a
ecocrítica em geral, baseamo-nos em Garrard (2006) e Glotfelty & Fromm
(1996). Temos consciência de que o viés ecológico nem sempre é bem-vindo
no meio acadêmico. No entanto, estamos convictos de sua validade.
Gostaríamos de agradecer a algumas pessoas que nos ajudaram de algu-
ma forma. Algumas enviaram publicações de difícil acesso. Outras fizeram co-
mentários a tópicos pontuais, evitando assim que o livro contenha muitas falhas.
A seguir, apresentamos uma lista dessas pessoas, desculpando-nos por eventuais
esquecimentos. Nenhuma delas tem qualquer responsabilidade pelo conteúdo
do livro.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 13
0. INTRODUÇÃO
e trazer novas ao Iffante, quando quer que se acertasse de tornar”. Ele ficou
entre os mouros sete meses e fez amizade com eles. E “... quando se partira
daquelles com que nos passados sete meses conversara, muytos delles chora-
rom” (Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos feitos da Guiné, 1455).
Essa estada de João Fernandes entre os africanos (azenegues?) é de
suma importância histórica. Com efeito, trata-se da primeira vez que um
português convive pacificamente com os mouros (até aqui não se distinguia
bem entre africanos negros e mouros). Esse homem é o primeiro que se
lançou, na costa ocidental africana, entre os nativos, e com eles conviveu. Se
não pode ser considerado como o primeiro lançado, como o termo passou a
ser entendido entre historiadores e crioulistas, ele é com certeza um precur-
sor deste tipo de aventureiro que logo em seguida se tornaria a personagem
principal no processo de colonização da África em geral.
Em incursões posteriores, outras caravelas entram em contato com
wolofs (jalofos, geloffas), sèrères (serreos), mandingas, beafadas, bijagós,
fulas etc. Diogo Gomes, por exemplo, fez amizade com Niumi Mansa (Nome
Mains), depois com Abubakar (Bucker), pedindo a ele que lhe mostrasse o
caminho para Cantor. Mandou mensagens para Uli Mansa e Ani Mansa.
No caminho de volta estabeleceu contato com o chefe Batimansa, do baixo
Gâmbia, que lhe deu três negros. No entanto, o fato mais importante é que
Nomi Mansa adotou o Deus cristão e quis que Diogo Gomes o batizasse bem
como a seus nobres. Adota o nome Henrique, por causa da admiração que
passou a ter pelo infante. Seus nobres passaram a se chamar Jacó, Nuno etc.
Pelo menos é o que asseveram os cronistas.
Se João Fernandes pode ser considerado o precursor dos lançados, do
contato de Diogo Gomes com Nomimansa e seu povo bem como dos lín-
guas (chalonas, turgimãos) nativos que os portugueses já traziam consigo de
Portugal (aprisionados anteriormente), surgiriam os grumetes. Estes seriam
mais tarde os nativos aculturados pelo contato com os europeus, exercendo
o papel de seus ajudantes. É bem verdade que os lançados eram traficantes
clandestinos, ilegais. Consequentemente, eram-no também os grumetes. No
entanto, isto só se configurou mais tarde, quando os portugueses tentaram
explorar a região mais intensamente.
Ainda no século XV os portugueses estabeleceram feitorias no rio São
Domingos e no rio Grande. Os espanhóis começaram a aparecer na região e
se iniciaram as disputas sobre o direito de se estabelecer nela e de praticar o
comércio. Com a ajuda do papa, assinou-se um acordo em 1494, chamado
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 21
Tratado das Tordesilhas, que pôs fim aos desentendimentos entre as duas
nações. No entanto, começaram a aparecer também os franceses e os ingle-
ses. Assim, a fim de assegurar o monopólio português sobre o comércio nas
terras descobertas por navegantes portugueses, edificou-se uma fortaleza em
Cachéu em 1588.
Logo chegaram também os holandeses à região da costa ocidental
africana e o exclusivo do comércio português é desrespeitado abertamen-
te. Com a Compagnie van Verre (1595), a Companhia das Índias Orien-
tais (1602), da Holanda, e a Company of Merchants of London (1600),
da Inglaterra, tem-se o fim do predomínio português na região. A presen-
ça dessas três nações explorando o tráfico de escravos e de mercadorias
é que vai reforçar a presença dos lançados, pois elas em geral mantinham
seus contatos com os nativos através deles. Com isso, a ilegalidade, a
clandestinidade, o contrabando passaram a ser a norma. Portugal não
conseguiu manter sob controle oficial todas as terras descobertas pelos
seus primeiros navegadores. O texto de André Álvares de Almada abaixo
transcrito é bastante significativo, uma vez que mostra que os portugue-
ses que se estabeleciam na costa da Guiné tinham que se arranjar sem a
ajuda da metrópole:
...mas haverá como cinco anos que estão os nossos em aldeia separada dos ne-
gros, e tão fortes que, antes querendo eles, podem fazer muito dano aos negros. E
estão ao longo do rio entre a aldeia dos negros e ele, e ali fizeram uma força sem
a ajuda de S. Magestade, e a fortificaram com alguma artilharia que para isso
buscaram... [sublinhado nosso] (André Álvares d’Almada, 1594, Tratato breve dos
rios da Guiné).
- 1936: até aqui, os portugueses tinham que pagar uma taxa (daxa) ao
régulo de Bissau.
- 1940: transferência da capital de Bolama para Bissau.
-1949: criação, por iniciativa de cinco pessoas privadas, dos “cursos-
explicações” que vieram a ser o embrião do futuro liceu de Bissau que, mais
tarde, deu lugar ao Colégio-Liceu, ao qual se deslocavam professores de
Portugal para examinar os alunos.
- 1954: início do Movimento pela Independência da Guiné e Cabo
Verde (MINGC).
- 1956: fundação do Partido Africano da Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC), em 19 setembro, em Bissau. Reunindo Guineenses e
Caboverdianos, o partido, baseando-se nas ligações históricas entre os dois
povos, defendia o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde. Foi graças a essa
conjugação de forças que o PAIGC conseguiu conquistar as independências
dos dois países.
- 1958: Abertura do primeiro Liceu oficial em Bissau, Liceu Honório
Barreto.
- 1959: insurgência dos estivadores do porto de Pindjiguiti (Bissau).
50 trabalhadores desarmados são fuzilados. O PAIGC, que até então tentava
pela via da negociação a conquista da independência. Diante da resposta
negativa das autoridades coloniais às reivindicações dos estivadores, decide
organizar-se para passar à ação armada.
- 1962: início da luta armada, em 23 de novembro.
- 1964: realização do Congresso de Cassacá, o primeiro do PAIGC,
organizado em Cassacá, região libertada da Guiné, de 13 a 17 de fevereiro.
Inicialmente convocado como uma simples reunião para pôr termo a des-
mandos de certos responsáveis militares da frente Sul, revelou-se um en-
contro de suma importância em que foram tomadas decisões determinantes
para o prosseguimento da luta armada: criação das FARP, Forças Armadas
Revolucionárias do Povo (um verdadeiro exército estruturado); criação dos
órgãos embrionários do futuro estado (que passaram a gerir os setores da
saúde, educação, economia, finanças e justiça); criação dos Armazéns do
Povo (que se ocuparam da distribuição dos produtos de primeira necessida-
des) e, no nível do Partido, criação do Bureau Político e, no seio deste, do
Comitê Executivo da Luta .
- 1973: Amílcar Cabral é assassinado em 20 de janeiro em Conakry,
por militantes guineenses do PAICG. As causas deste assassinato e o seu
24 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
I. A SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA
fula 16%
balanta 14%
mandinga 7%
manjaco 5%
papel 3%
felupe 1%
beafada 0,7%
1. A obtenção de dados estatísticos populacionais precisos é bastante dificultada por dois fatos:
o recenseamento, que no tempo colonial era associado ao pagamento dos impostos, foi sempre
mal aceito pela população que em períodos de recenseamento evitam-no refugiando-se nos países
vizinhos. Por outro lado, as emigrações sazonais para os países vizinhos também têm repercussões
na coleta da informação.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 29
bijagó 0,5%
mancanha 0,3%
nalu 0,1%
fulas 25%
balantas 24%
mandingas 14%
manjacos 9%
papéis 9%
brames 4%
beafadas 3%
outros 12%
mulçumanos 50%
animistas 40%
cristãos 10%
português lusitano
qQ
português acrioulado
qQ
crioulo aportuguesado
qQ
crioulo tradicional
qQ
crioulo nativizado
qQ
línguas nativas
mo os raríssimos casos de menção ao que pode ter sido o crioulo não são
dignos de confiança, dado o preconceito que os portugueses nutriam em
relação a ele (consideravam-no uma deformação do português, “português
errado”, “mal falado”).
No que tange a descrições da língua, a primeira de que dispomos é a do
cônego Marcelino Marques de Barros, de final do século XIX e começo do XX
(Barros 1897-1902). Ele apresentou uma descrição minuciosa, embora caó-
tica, do crioulo, com uma grande quantidade de exemplos. Esse mesmo autor
já transcrevera um texto em 1883, intitulado “Lobo co garça”, o mais antigo
por nós conhecido. É um texto bastante curto, mas mostra que o crioulo da
época apresentava várias diferenças relativamente ao atual, até onde podemos
confiar em sua transcrição lusocêntrica e no seu amadorismo em questões
linguísticas. No entanto, no momento não dispomos de opção melhor. Uma
forma claramente arcaica, registrada por Barros em 1883, e hoje em vias de
desaparecimento pode ser vista em (1)-(3), em que a forma atual vem após a
barra oblíqua. Como se vê, houve uma síncope da oclusiva sonora intervocáli-
ca, com a consequente semivocalização da segunda vogal.
(1)
(a) n disábu / n disau ‘eu o deixei’
(b) ndé ku bu na bai? / ndé k’u na bai? ‘aonde você vai?’
(c) kabu / kau ‘lugar
(2)
(a) ba-Maneles ‘os Manuéis’
(b) ba-quissas [cussas?] ‘coisas, as coisas’
(c) ba-djobê ‘os que olham, os curiosos’
(d) ba-noba ‘novidade’, donde banoberu.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 33
(3)
(a) ami, N mata ña kabesa ‘eu me matei’
(b) abó, bu mata bu kabesa ‘tu te mataste’
(c) el, i mata si kabesa ‘ele se matou’
(d) a nós, nó mata nó kabesa ‘nós nos matamos’
34 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Casamansa Bissau
kebe kibi ‘caber’
meste misti ‘é mister, querer’
sebe sibi ‘saber’
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 35
Cachéu Bissau/Bolama
des deus ‘Deus’
kriatuda kriatura ‘criatura’
purmedu purmeru (primeiro)
kaá kabá (acabar)
genti (guenti) djenti (gente)
Por fim, Wilson (1962: VII) afirmou que “no interior da Guiné exis-
tem três dialetos principais do crioulo. São eles o de Bissau e Bolama, atu-
almente muito desenvolvido, o de Cachéu e São Domingos (e Ziguinchor
[Casamansa]), falado principalmente ao longo da fronteira norte até a costa,
e o de Bafatá e Geba”, mais para o interior.
Além da variação diacrônica e da diatópica, o crioulo guineense varia
também diastraticamente, o que em geral se chama de variação social, uma
vez que tem a ver com o nível socioeconômico e/ou cultural dos falantes.
Isso a comunidade de fala guineense é um continuum, que vai desde as lín-
guas nativas até o português lusitano, passando pelo crioulo nativizado, o
crioulo aportuguesado e o português acrioulado, que é o português guine-
ense propriamente dito.
Só as extremidades do continuum são inteiramente estranhas uma à
outra. Mas, como o todo faz parte de uma comunidade de fala em que a
interação entre falantes de diversas línguas sempre se dá de algum modo,
temos que reconhecer estágios intermediários entre as duas. Três desses es-
tágios são variedades do crioulo (aportuguesado, tradicional, nativizado).
Os extremos são, de um lado, o português; do outro, as línguas étnicas
africanas.
O crioulo aportuguesado contém muitos empréstimos lexicais do por-
tuguês e, às vezes, até expressões inteiras nessa língua. Vejamos o exemplo
(5). A tradução nem é necessária, uma vez que qualquer falante de portu-
guês pode entendê-lo.
36 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
(5)
va, por ocasião da data nacional (24 de setembro), que “as relações étnicas
vêm perdendo a sua predominância a favor das relações nacionais” (Nô
Pintcha 29/9/90, p. 6-7).
O crioulo está no meio das duas realidades contraditórias que com-
põem a Guiné-Bissau, isto é, o componente étnico-cultural e o euro-colonial,
segundo a terminologia de Ribeiro (1989: 233). Mesmo que os guineenses
tenham como objetivo o domínio do português, têm que fazê-lo a partir do
crioulo.
Já vimos que a situação linguística da Guiné-Bissau é extremamente
complexa. Com efeito, e a título de recapitulação, a realidade linguística
primeira não só guineense, mas também africana em geral são as línguas ét-
nicas. O crioulo já é um passo na direção da europeização, embora um passo
dado pelos próprios africanos, muitos dos quais o têm como língua materna.
Apesar de ser “o crioulo, que hoje nos une em todo o país, desde Sucudjá
a Cacine e de Caravela a Buruntuma” (Lopes, 1988: 235), apesar de haver
outras línguas veiculares menores, apesar de tudo isso é o português que é a
língua oficial e do ensino, desde o primeiro dia de escolarização da criança.
O pai da nação Guiné-Bissau, Amílcar Cabral, já se manifestara aber-
tamente a favor do uso do português. Ele tinha uma visão instrumental da
língua. Em suas palavras, “para nós tanto faz usar o português, como o rus-
so, como o francês, como o inglês, desde que nos sirva, como tanto faz usar
tractores dos russos, dos ingleses, dos americanos, etc., desde que tomando
a independência, nos sirva para lavrar a terra” (Cabral, 1990: 61). Continua
o autor: “muitos camaradas, com sentido oportunista, querem ir para frente
com o crioulo. Nós vamos fazer isso, mas depois de estudarmos bem. Agora
a nossa língua para escrever é o português”. Afinal, “o português (língua)
é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” (Cabral, 1990: 59).
Para Cabral, o fato de o crioulo ser ainda uma língua ágrafa, usada
só no nível da oralidade, era apenas um dos problemas que seu uso traria.
Além dele havia vários outros. Por exemplo, o crioulo não tem - e muito
menos as línguas étnicas - recursos para expressar idéias como “raiz
quadrada de 36”, “aceleração da gravidade”, “a lua é um satélite natural
da terra” etc. A propósito desta última expressão ele chega a reconhecer
que “é possível dizê-lo, mas é preciso falar muito até fazer compreender
que um satélite é uma coisa que gira à volta de outra. Enquanto que em
português basta uma palavra” (Cabral 1990: 60). Termina chamando a
atenção para a semelhança que há entre o crioulo e o português. Assim,
40 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
trabalho de extensão, com o seu próprio campo de arroz e horta escolar, en-
sinando as crianças a trabalhar no campo e a improvisar as técnicas” (Achin-
ger, 1986: 9), como sugeria o pedagogo marxista Paulo Freire (cf. Freire/
Faundez, 1985: 124-135).
Ao lado da escola oficial havia e há também a escola corânica, ou
escola de marabu, muito adaptada às condições de vida e à cultura locais,
sobretudo entre os fulas, os sossos e os nalus. No entanto, “nem a escola
oficial nem a corânica tiveram êxito no fornecimento de meios gerais de
comunicação. Isto só pode ser efetivado por uma escola que ensine a ler e
escrever em ‘crioulo’, a língua franca da Guiné-Bissau, que atingiu a sua
importância como língua nacional durante a luta de libertação”. A tal ponto
que hoje “não existe nenhuma tabanca na Guiné-Bissau, onde a população
mais jovem não fale ou pelo menos não compreenda crioulo” (Achinger
1986: 12). Não obstante isso, o português continua sendo usado, “banindo
oficialmente o crioulo das escolas”. Com isso estão tapando o sol com a
peneira, uma vez que “apesar de não oficial é a comunicação normal entre
professores e alunos” (Achinger 1986: 13). Apesar de oficialmente proibido,
os professores têm que fazer uso dele nos primeiros anos, oralmente, porque
se falam em português não são entendidos pelas crianças. Nesse caso, como
poderiam alfabetizar? Na verdade, nos primeiros anos os professores dão
aulas em crioulo para alfabetizar em português.
Em 1984, uma campanha de alfabetização foi levada a cabo por um
grupo de jovens dinamarqueses na região de Tombali. Ela falhou “pelas mes-
mas razões: a insistência do português como língua do ensino” (Achinger
1986: 16). Em síntese, é muito difícil alfabetizarem-se crianças em uma
língua estrangeira. Não obstante, é o que continua sendo feito. As consequ-
ências são desastrosas para a educação na Guiné-Bissau. No caso do projeto
dinamarquês, “apesar do curso de dois anos abrangendo duas horas diárias,
os participantes não conseguiram aprender mais do que algumas frases sim-
ples e sem sentido que não possuíam nenhum tipo de relações com as suas
vidas quotidianas” (Achinger 1986: 16). Como é a regra geral na Guiné-Bis-
sau, os alunos decoram frases mecanicamente, sem nenhum senso crítico.
Ao nível do ensino formal, uma experiência de utilização do crioulo
no ensino primário foi realizada entre 1984 e 1993 no âmbito dos Centros
Experimentais de Educação (CEEF)4. O crioulo era utilizado como “meio
Temos que reconhecer, porém, que não é apenas o uso de uma lín-
gua estrangeira (o português) que causa todo o desastre que é o ensino
na Guiné-Bissau. Em primeiro plano vêm as causas econômicas, estrutu-
rais e conjunturais. Há um baixo nível de formação dos docentes e falta
de meios para reciclagens periódicas, um salário que mal dá para com-
prar um saco de arroz (base de alimentação dos guineenses) de cerca de
60 quilos e pago com grande atraso. A consequência é a fuga de quadros
que vão para outros países ou então trabalhar para as empresas privadas
ou organizações internacionais. Uma utilização indevida da ajuda exter-
na, quer por desvios dos recursos para outros fins, quer por má gestão
não contribui para uma melhoria do sistema que se vem reproduzindo ao
longo do tempo.
Quanto à educação de adultos, já se tentou uma política de alfabetizar
em crioulo, fula e balanta. As tentativas prévias de alfabetizá-los em língua
estrangeira (português) se mostraram absolutamente inviáveis. Os adultos
são muito menos flexíveis do que as crianças.
Enfim, a adoção do crioulo pelo menos nos primeiros anos da es-
colarização da criança não resolveria todos os problemas do ensino na
Guiné-Bissau. No entanto, pelo menos aqueles que não dependem de
dinheiro estariam eliminados. Por não ser a língua de nenhuma etnia, o
crioulo é a única língua de todos os guineenses, portanto, o bom senso
nos diz que deveria ser a língua do ensino.
Gostaríamos de encerrar este capítulo sobre a situação sociolinguís-
tica guineense com uma breve discussão sobre que variedade de crioulo
adotar-se, no caso de se adotá-lo no ensino. A maioria dos estudiosos tem
recomendado o crioulo tradicional, embora lembrando sempre como são as
formas equivalentes do crioulo aportuguesado. Esta decisão está estriba-
da em várias motivações. Em primeiro lugar, se déssemos preeminência ao
crioulo aportuguesado, a descrição ficaria muito sobrecarregada, por ser ele
um crioulo muito parecido com o português. Com efeito, as fronteiras entre
ele e o português não estão delimitadas, trata-se de um continuum. Sobretu-
do no nível lexical e às vezes até no nível morfológico, teríamos quase que o
próprio português. Em segundo lugar, a escolha do crioulo tradicional como
ponto de partida para a descrição do crioulo guineense se justifica também
pela nítida consciência existente nos falantes do crioulo de que o “verdadei-
ro” crioulo, o crioulo “puro”, é o kiriol fundu, do qual, afinal de contas, o
nosso crioulo tradicional está muito próximo.
44 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Introdução
pátin mil franco! (dê-me mil francos), mas se falam português (acrioulado)
dizem “oferece-me mil francos!”. Às vezes pode ocorrer até “oferece-m”.
De uma maneira geral os textos escritos em português traem a marca
do crioulo, que é a marca nacional local. Assim, em um livro de antropologia
ou de sociologia podemos ver expressões como “homem grande”, “mulher
grande”, “dor de corpo” etc. Aqui o adjetivo “grande” nada tem a ver com
a estatura da pessoa em questão. Tais expressões designam anciãos respei-
táveis na tabanca, a quem se pede conselhos e se deve obedecer, enfim,
são pessoas que merecem deferência de todos. Quanto a “dor de corpo”,
refere-se a uma dor mal definida, a um mal-estar geral. As três expressões
são traduções literais do crioulo omi garandi, mindjer garandi e dor di curpu,
respectivamente. A expressão “eu ouve português” revela, além da ausência
de concordância verbal, a mundividência crioula, nativa. Em crioulo se diz
N obi portuguis (eu entendo português). A palavra “obi” (de “ouvir/ouve”)
significa tanto “ouvir” quanto “entender”. De acordo com um missionário,
grande conhecedor da cultura local, os africanos só vivem no nível da orali-
dade. Por isso, “entender” é o mesmo que “captar pelo ouvido”, vale dizer,
“ouvir”.
No nível estritamente lexical, são inúmeros os vocábulos usados no
português acrioulado tirados das línguas locais, geralmente via crioulo.
Como disse Sapir, o léxico é a parte da língua que mais diretamente reflete
o ambiente, tanto o físico quanto o social. Assim, são inúmeros os termos
específicos do português da Guiné-Bissau para se referir à fauna, à flora e a
outros aspectos da natureza e da sociedade local. Eis uma pequena lista de
crioulismos lexicais em português:
dominante europeia, pois é ela que lhes garante ascensão social, além de
lhes abrir um horizonte comunicacional muito mais amplo. É o que se pôde
constatar durante o VIe Colloque des Études Créoles, realizado em Caiena,
em setembro/outubro de 1989. As ilhas Seychelles (no Índico) e o Haiti são
dos poucos países que têm o crioulo como língua oficial, mas ao lado da
língua oficial, o francês.
Opinião semelhante à dos linguistas expressa o pedagogo brasilei-
ro Paulo Freire, que, por volta de 1975, esteve na Guiné-Bissau a fim de
mostrar como se aplica seu método de alfabetização. Dada sua posição de
marxista confesso, Freire era de opinião de que o uso do português na al-
fabetização e como língua oficial acabaria por aumentar o fosso já existente
entre o povo e a elite dominante. Por sinal, essa é a posição da UNESCO.
Mas, como disse um secretário de estado guineense de então, “essa não é
a posição oficial”. O português continua sendo a língua oficial e do ensino.
No nível da intelectualidade, a posição é também favorável ao imple-
mento do português. O missionário católico italiano Luigi Scantamburlo
resume a questão nos seguintes termos: “A opinião mais generalizada é de
que o Crioulo, numa perfeita continuidade, se assemelhará cada vez mais
à língua Portuguesa, e dentro de poucos anos o Crioulo actual morrerá”
(Scantamburlo 1981: 15). Os pesquisadores do INDE e do INEP também
são a favor do ensino em português, embora Carlos Lopes (do INEP), te-
nha dito que é necessário “colocar o crioulo no seu respectivo lugar, que
tem necessariamente de ser o de destaque, pois tarde ou cedo terá de ser a
língua escrita principal do ensino” (Lopes 1988: 243). Deve-se notar, inci-
dentalmente, que essa opinião foi expressa em bom português. Na prática
ninguém faz nada para implementá-la.
Há muitos promotores da língua portuguesa na Guiné-Bissau. Os
primeiros e mais importantes são, naturalmente, a escola, o rádio e a TV.
Acrescentem-se a elas as publicações em geral. Por outro lado, temos os
missionários, tanto católicos quanto evangélicos, que sempre aprendem o
crioulo para se comunicarem com o povo. No entanto, por saberem que
a língua oficial do país é o português, aprendem-no às vezes até mesmo
antes do crioulo. É bem verdade que traduzem a bíblia para o crioulo e
apresentam parte dos cultos nessa língua. As missas, por exemplo, se dão
quase inteiramente em crioulo. Na hora do sermão, o padre pode se virar
para os fiéis e falar num escorreito português, mesmo quando estran-
geiro. O Centro de Estudos Portugueses funciona em Bissau há muitos
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 57
III. A LITERATURA
Introdução
é a melhor divisão, mas é a única que nos pareceu apresentar algum fio
condutor, mesmo porque essa literatura é bastante engajada politicamente.
Assim sendo, podemos estabelecer os seguintes períodos: 1) Período Colo-
nial (“literatura colonial”), (+1594-1962); 2) Período da Luta pela Inde-
pendência (1962-1973); 3) Período Pós-Independência (1973 aos dias de
hoje). Cada um desses períodos se subdivide em fases, como veremos logo
a seguir.
Período colonial
Costa da Guiné de Cabo Verde athe Serra Leoa com todas ilhas e rios que os
brancos navegam, 1669) e D. Frei Vitoriano Portuense (Relação da primeira
viagem do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné, 1694). Pulando o sé-
culo XVIII e indo direto para o XIX, poderíamos encerrar essa pequena lista
com E. Bertrand de Bocandé (Notes sur la Guinée Portugaise ou Sénégambie
Méridionale, Bull. de la Soc. de Géogr. n. 11 e 12, 1849), que dá muitas infor-
mações úteis, inclusive sobre a língua crioula. Em Rosa (1993) encontram-se
mais dados sobre essa fase do Período Colonial.
A atividade literária pressupõe recursos para imprimir textos. Em
1879, com a capital em Bolama, inaugura-se a primeira tipografia, e se cria
o Boletim oficial (1880-1974). Em seguida, apareceu Fraternidade, folheto
publicado, em 1883, em solidariedade à seca em Cabo Verde. Surgiram tam-
bém os Boletins sanitários (1918), o Boletim das alfândegas da Província da
Guiné (1919) e os primeiros jornais: Ecos da Guiné (1920), A voz da Guiné
(1922), Pró-Guiné (1924), O comércio da Guiné (1931), Boletim cultural
da Guiné Portuguesa (1946-1973), O bolamense, a partir de 1956. Surgiu
também o folheto de poesia Poilão (1973), do Grupo Desportivo e Cultural
do Banco Ultramarino. Em 1975, é fundado Nô pintcha, jornal que é pu-
blicado até hoje. De 1983 a 1985, foi publicado O militante, revista mensal
do PAIGC. O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa “veiculou uma intensa
produção literária: contos, poesia, o registo de contos tradicionais, ensaios,
artigos de natureza etnográfica e antropológica. A produção ‘geração do Bo-
letim Cultural’, como ficou conhecida, foi de tal forma profícua e abundante
que foi considerada como a melhor produção científica e cultural do então
império português” (Amado 1994:4).
Segunda fase do Período Colonial ainda é constituída quase que ex-
clusivamente por estrangeiros. Mesmo assim, pode-se dizer que já houve
um avanço, uma vez que já se começou a falar de temas africanos, às vezes
até com uma certa simpatia. A prosa e a poesia enquadram-se no que Rosa
(1993) chamou de “lusografia guineense”. Essa produção pode ser subdivi-
dida em prosa, poesia e outras, como as recolhas de contos da oralidade, por
exemplo. Mesmo tratando de assuntos africanos, a visão é a do colonizador.
A seguir, alinhamos alguns dos principais autores desse período.
Na prosa temos, em primeiro lugar, Maria Archer, que, em 1918,
publicou o romance Desejo mórbido. Logo depois dela, temos a muito mais
bem sucedida Maria Fernanda de Castro, que publicou os romances As
aventuras de Mariazinha (1925), O veneno do sol (1928), Mariazinha em
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 65
tanto o pai branco quanto a mãe negra, ou seja, com uma grande crise de
identidade. Sua obra se intitula África: da vida e do amor na selva (1963).
Seu irmão Artur Augusto da Silva, bastante estudioso e observador, publi-
cou o conto “O cativeiro dos bichos” (1969), que lhe fora contado anterior-
mente em uma aldeia fula.
Há ainda outros autores dignos de menção, entre eles, Manuel Ba-
rão da Cunha (Aquelas longas horas, s/d) e Armor Pires Mota (Guiné sol
e sangue: contos e narrativas, 1968), que também escreveu poesia, Álvaro
Manuel Soares Guerra (O disfarce, 1969) e Francisco Valoura, que publicou
diversos contos no Boletim cultural da Guiné Portuguesa de 1951 a 1971,
posteriormente publicados na coletânea Guiné: paraíso verde (1973).
Há também obras que assumem uma posição mais favorável aos po-
vos da Guiné e contra o colonialismo. Entre elas sobressaem-se Na Guiné
com o P.A.I.G.C, de Georgette Emília, de 1975. Essa autora chega a usar
expressões na língua crioula (E mata Cabral, ma Cabral ka ta muri. Inda
i tem utrus Cabral pa muri ‘eles mataram Cabral, mas Cabral não morreu.
Ainda há outros Cabrais para morrer’). Carmo Vicente (Gadamael: memó-
rias da guerra colonial, 1985) também assume uma posição simpática aos
africanos, criticando o sistema colonialista corrupto e corruptor. Um outro
é José Martins Garcia, que escreveu o romance Lugar do massacre (1975).
Não pode ser esquecido neste contexto o romance Uaná: uma nar-
rativa africana (1986), de João Ferreira. A despeito das restrições que
Moema Parente Augel tem a ele, Luciano Caetano da Rosa considera-o o
primeiro romance guineense. Além disso, Sparemberger (2003) o tem em
alta conta, dedicando-lhe todo um capítulo. De fato, ele revela uma grande
simpatia pela terra e gente da Guiné, a despeito de, nas entrelinhas, sem-
pre se poder entrever um certo lusocentrismo. Seu autor já se encontrava
no Brasil, lecionando na Universidade de Brasília, quando o publicou. No
entanto, o primeiro prosador nascido na própria Guiné é James Pinto Bull,
autor do conto “Amor e trabalho”, publicado no Boletim cultural da Guiné
Portuguesa em 1952. A ação se passa entre os balantas. O autor é irmão de
Benjamim Pinto Bull, o primeiro linguista da Guiné-Bissau, se excetuar-
mos Marcelino Marques de Barros. James Pinto Bull fora considerado no
seio do movimento libertador como traidor por se ter posicionado do lado
dos portugueses, tendo mesmo sido deputado pela Guiné à Assembléia
Nacional portuguesa. Sparemberger (2003: 90-96) analisa esse conto por-
menorizadamente, por onde se vê que ele tem seu valor. O que interessa
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 67
no caso é que James Pinto Bull foi o primeiro guineense negro, nato, a
publicar um conto literário.
A poesia não foi de todo ignorada nesse período. O já mencionado
Hugo Rocha, a propósito da prosa colonial, incluiu, em seus Poemas exóticos
(1940), o poema “Fula de Bafatá”. Para se ver como tinha simpatia pela vida
local, basta dar uma olhada nos versos “Fula de Bafatá, ó quitandeira / de
pele acobreada: / és tu quem dá mais cor, mais luz à feira”. Um segundo au-
tor a se aventurar nessa linha é Augusto Cruzeiro de Cértima que, a despeito
de ter vivido no Senegal (região de Casamansa, que já fez parte da Guiné e
ainda fala a língua crioula) como cônsul, publicou poemas, entre os quais se
inclui “Entrando na Guiné”, em que fala da exuberância da natureza local.
O lusocentrismo acaba se revelando nos versos “É que se o céu é o mesmo /
a terra é portuguesa”. Augusto Casimiro também incluiu o poema “Guiné”
em seu Portugal Atlântico (1955), que revela uma postura muito semelhante
à dos dois primeiros poetas guineenses. Um dos poemas mais importantes
desse período é “África raiz” (1966), de Maria Fernanda de Castro, autora
de As aventuras de Mariazinha. O também já mencionado Armor Pires Mota
publicou Baga-baga (1967), em que o telurismo local chega ao ponto de
afirmar que “sou negro dentro de mim”.
No que tange à poesia escrita por guineenses, o pioneiro é Carlos
Semedo, cujo volume Poemas é de 1963, embora um pouco antes Armando
A. Pereira, já tivesse publicado poemas em Correio d’África (1921-1924).
Antes de passarmos à fase seguinte da literatura guineense, convém
destacar três nomes que sobressaem neste período e que podem ser consi-
derados como transição entre a literatura colonial e a literatura guineense
propriamente dita.
O primeiro deles é Honório Pereira Barreto, nascido em 24 de abril de
1813, em Cachéu, e morto em 1859. Não que ele tenha sido um escritor no ver-
dadeiro sentido da palavra, uma vez que se dedicou mais à política, tendo exerci-
do os cargos de provedor de Cachéu e governador de Bissau e Cachéu. É nessa
área que se inserem os seus escritos, todos em um português castiço. Tirando
as diversas cartas à administração metropolitana, Barreto publicou Memória
(sobre o estado actual de Senegámbia portugueza, causas de sua decadência, e
meios de a fazer prosperar, Lisboa: Typ. da Viúva Coelho & Comp., 1843), de
48 páginas. Como o próprio título já dá a entender, trata-se de um libelo con-
tra os desmandos perpetrados por administradores corruptos e incompetentes.
Ele era guineense e negro, mas aliado incondicional dos colonialistas. Por isso,
68 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Crioulo Português
ca. Não obstante, não podem ser incluídas aqui porque foram escritas por
estrangeiros, além de geralmente terem sido escritas bem antes de 1962.
Quando não, a vivência dos autores com a Guiné e sua cultura é anterior a
essa data. Talvez o único autor que possa ser aqui incluído seja Carlos Se-
medo, cuja obra está brevemente comentada no capítulo V.
Na verdade, o primeiro guineense a poetar é o líder das guerras de
libertação e herói nacional Amílcar Cabral. Ele escreveu seus primeiros poe-
mas entre 1945 e 1946. No entanto, e a despeito de ter nascido em Bafatá,
ele iniciou sua carreira em Cabo Verde, e foi lá que escreveu esses poemas.
Com isso fica a pergunta se eles pertencem à literatura caboverdiana ou à
guineense, fato que para ele não era relevante, pois defendeu sempre o pro-
jeto da unidade entre os dois países. A Antologia poética da Guiné-Bissau
(1990) contém sete poemas seus e, em Barbosa (1988), temos um. Nesses
poemas transparece desde a insularidade típica dos caboverdianos até te-
mas mais intimistas, familiares e uma preocupação com a formosura da bela
negra que vai definhar algum dia. Os versos “Meu grito de revolta ecoou
pelos vales mais longínquos da Terra / atravessou os mares e os oceanos”,
já deixam entrever o futuro revolucionário. Para um detalhado estudo da
produção literária, e a não-literária, de Amílcar Cabral, pode-se consultar
Sparemberger (2003).
Quanto a Vasco Cabral, é lidimamente guineense, mesmo tendo se
formado em Portugal, como a maioria dos intelectuais compatriotas seus.
Tem textos de economia publicados em diversos lugares, mas é sem som-
bra de dúvida dos primeiros poetas guineenses (nasceu em 1926). Ele
publicou dez poemas na revista África, explorando diversos temas, como
o ideal de luta, a africanidade, o antirracismo e outros. Sua obra mais
conhecida, A luta é minha primavera (1981), será examinada no capítulo
V, mesmo porque se insere na temática do período pós-independência.
O último poeta incluído neste período é António Baticã Ferreira, nas-
cido em 1939. Existem seis poemas seus em No reino de Caliban (1975),
de Manuel Ferreira, e um em Poetas e contistas africanos (1963), de João
Alves das Neves. Seus poemas não tratam de temas revolucionários como
faz a maioria dos demais autores dessa época. Seu eu é mais lírico e já re-
lativamente ecológico. Os temas são mais o amor, a suavidade e a beleza da
natureza. O poema a seguir, tirado da segunda coletânea, mostra que ele
pode ser considerado um ecopoeta avant la lettre.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 71
Infância
Eu corria através dos bosques e das florestas
E, como o ruído vibrante de um bosque desvendado,
Eu via belos pássaros voando pelos campos
E parecia ser levado por seus cantos.
Período Pós-Independência
autor volta a lembrar que, infelizmente, para a gente simples as coisas não
melhoraram após a independência. De acordo com ele, “se aquelas tragédias
e matanças e torturas e misérias e corrupções e poderes de abuso que foram
contados é que caracterizaram aquilo que se chama de colonialismo, então
o colonialismo não acabou”. Os atuais detentores do poder fazem o mesmo.
Do ponto de vista formal, nota-se um grande crescimento do autor,
que aqui apresenta uma linguagem mais apurada e um melhor arranjo dos
episódios. Repetindo o que já fizera no romance anterior, emprega uma série
de palavras e expressões crioulas ou étnicas que são explicadas no Glossário.
Entre as 69 que nele estão arroladas, temos baloba (local de culto), bantabá
(local de reunião), djumbai (convívio, conversa), couro (cargo, posição),
tcholonador (intérprete, mensageiro), roncar (ostentar, exibir) e mata-bicho
(café da manhã). Há também muitas construções de aparência portuguesa,
mas que, na verdade, são decalcadas do crioulo e de línguas étnicas. Pri-
meiro, temos algumas ausências de concordância. Às vezes concordância
em gênero, como em padre fêmea, mulher preto/branco e a mulher do Chefe
Cabrita não é branco puro; às vezes falta até mesmo concordância em núme-
ro, como eles é homem grande e eles quer falar, postas na boca de um cabo
português. Dado o domínio que Sila revela ter do português padrão, trata-se
certamente de recurso estilístico, ou de gralha. No romance encontram-se
muitos outros decalques do crioulo. Por exemplo, filho macho/fêmea, pegar
teso, homem/mulher grande (ancião/anciã), falar mantenha (cumprimen-
tar), manga de (muito), mais melhor, cansar a cabeça (cansar-se: estratégia
de reflexivização comum a vários crioulos do mundo). Nas orações relati-
vas, a norma são construções como problema que o preto nunca consegue
pensar nele, uma questão que é preciso pensar bem nela. Esses são decalques
sintáticos. No entanto, há os decalques semânticos também. Por exemplo,
uma maneira de se cumprimentar é perguntando: o corpo como está? A res-
posta é está bom, obrigado. Enfim, as construções crioulas sob a aparência
de português são inúmeras. Vejamos mais algumas: o régulo quer para eu
fazer o quê? (quer que eu faça), oferecer (dar), tempo de chuva, toca-tchur,
esteira de tchur, alçar esteira de tchur.
Poderíamos mencionar também construções como antes dele ter ba-
tido à porta e (103) e até porque. Da primeira, diz a gramática normativa
que deveria ser “antes de ele ter...”. Sobre a segunda, diga-se que virou
modismo nos meios políticos brasileiros, mas que o equivalente mais usual
é “mesmo porque”. Pelo menos dois provérbios são usados, ou seja, correr
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 81
e coçar o joelho [não combinam] e cada macaco no seu ramo. Por fim,
gostaria de lembrar a questão da denominação, amplamente explorada no
capítulo X. O nome da personagem central é Ndani, mas a semianalfabeta
patroa branca confundiu-o com Dânia, ou seja, Tânia, portanto, para ela
era nome russo, logo, comunista. Acabou transformando-o em Dani, ou
melhor, Daniela, Maria Daniela. O primeiro nome do régulo Bsum Nanki,
“foi reproduzido pelo chefe branco Sancho como Betume e por outros
portugueses como Estrume, com muitos risos. Posteriormente, chama-
ram-no de Manel, nome do macaco que tinha em casa. Os guineenses,
por vingança, chamavam-no Santchu, que em crioulo quer dizer macaco.
A segunda personagem do romance, Okante, fora criado em uma Missão e
era chamado simplesmente de Professor, não pela honra da profissão, mas
para evitar um nome “selvagem”.
O que todas essas características formais revelam é a cor local. Trata-
se de português, mas um português adaptado ao meio ambiente guineense,
do mesmo modo que o português brasileiro, o angolano e o moçambicano
também revelam peculiaridades que refletem os respectivos meios ambien-
tes. Enfim, o português usado por Abdulai Sila é o guineense que, em outro
contexto (cf. caps. I e XII), chamei de português acrioulado.
O terceiro romance de Sila, Mistida, em que cada um dos dez capí-
tulos é como uma história independente, não aborda os mesmos temas dos
anteriores. Como disse Augel (1998: 347), “cada episódio pode ser lido
separadamente e constitui uma estória completa, nem sempre havendo à
primeira vista uma ligação lógica entre os capítulos”. Retomando uma idéia
expressa com muita ênfase pelo régulo Bsum em A última tragédia, ou seja,
que é preciso pensar muito, antes de falar, e até mesmo de ver e ouvir, o ro-
mance mostra que na Guiné-Bissau atual as pessoas não veem os que estão
diante de seus narizes, embora até falem deles. O problema todo é que não
pensam, pois suas memórias foram roubadas.
O nome do livro é derivado do verbo misti (querer). Portanto, “mis-
tida” remete a algo como “desejo, objetivo”, aquilo que se quer. A despeito
do caos reinante na sociedade africana, todos desejariam algo melhor (safar
mistida). De um modo geral, ele revela uma desilusão com os rumos toma-
dos pela política no pós-independência.
Filinto de Barros, nascido em 1942, conta-se entre os escritores mais
velhos. Foi dirigente do PAIGC, embaixador em Portugal, além de ter exerci-
do diversos cargos na administração pós-independência. Em 1997, saiu seu
82 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
romance Kikia Matcho (Bissau: Centro Cultural Português; 2a. ed. Lisboa:
Caminho, 2000), o que faz dele o segundo guineense a produzir um roman-
ce. “Kikia” quer dizer mocho ou coruja, ou seja, ave de mau agouro, que é
o que se teme para o futuro da Guiné-Bissau diante de tanto desvio relativa-
mente ao entusiasmo dos primeiros anos após a independência. O tom geral
lembra muito os romances de Abdulai Sila, que denunciam os desmandos
que vicejam no país, em nada diferindo dos da época colonial, em que as
“autoridades” brancas podiam até espancar, “dar porradas” nos “pretos”,
fatos considerados normais se o “preto” não agisse como o “senhor” branco
queria. Em Sparemberger (2003: 310-326) temos uma análise desse ro-
mance bem como a transcrição de diversos trechos dele.
Carlos Edmilson Vieira, conhecido também por Noni, nasceu em Bis-
sau em 15 de julho de 1960. Poeta, autor-compositor, vive atualmente na
França, onde exerce a carreira diplomática. Em 2000, publicou « Contos de
N’Nori », edição do autor, Bissau, uma recolha de oito contos que evocam
lendas e costumes populares, recordações de brincadeiras da juventude e as
vicissitudes sociais e políticas da sociedade guineense. Esta obra foi reedi-
tada em 2005 pela UNEAS, União Nacional dos Escritores de São Tomé e
Príncipe.
Filomena Embaló é a terceira pessoa de nacionalidade bissau-guine-
ense a publicar um romance. Trata-se de Tiara (Lisboa: Instituto Camões,
1999). Na quarta capa de seu livro de poemas Coração cativo (2005), que
será comentado no capítulo V, e no de contos Carta aberta (2005), que será
discutido mais abaixo no presente capítulo, temos a seguinte informação
sobre sua biografia: “Guineense de coração e por opção, Maria Filomena
Araújo Vieira Embaló nasceu em Luanda (Angola), a 26 de julho de 1956,
filha de pais cabo-verdianos. Em 1975, os acasos da vida levaram-na para
a Guiné-Bissau, país que adoptou e em cuja labuta dos primeiros anos de
independência se forjou a faceta guineense de sua identidade. Formou-se em
Ciências Económicas na Universidade de Reims (França) e ocupou cargos
na Função Pública Bissau-Guineense, no país e no exterior. Actualmente tra-
balha numa Organização intergovernamental em Paris”. Ela tem publicações
em revistas e jornais sobre a economia guineense e sobre temas literários.
Tiara lembra um pouco Eterna paixão de Sila, com um equivalente
feminino para Dan. Embora todos os lugares mencionados sejam fictícios,
vê-se claramente que alguns são africanos, outros europeus. Tiara parte de
sua terra, Porto Belo (a respeito de que se poderia estabelecer um para-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 83
questão que se lhe pôs na altura, mas por nesse momento ter-lhe sido difícil
optar por um deles, justamente por não saber “onde situar-se”, decidiu pelo
português lusitano, que representava uma certa “neutralidade” nesse con-
texto de crise identitária.
Voltando ao romance, os personagens principais estão envolvidos em
intrigas amorosas, mas o pano de fundo de tudo são as guerras de liberta-
ção dos países africanos, embora a África não seja mencionada. Inclusive
transparece a desilusão com os ex-combatentes que assumiram o poder após
a independência. Nas palavras da própria autora, “O MLM acusava uma
decadência. A corrupção tinha-se tornado prática corrente no seio dos seus
dirigentes e os ideais revolucionários tinham dado lugar à luta pelos inte-
resses pessoais”. Aparece igualmente o conflito entre as tradições étnicas
e o mundo consumista e globalizado. O romance levanta também o véu da
questão tabu da integração no seio da sociedade africana. Como sempre,
há muitos personagens, embora o fio condutor em torno de Tiara se man-
tenha do início ao fim, o que representa um progresso em relação ao que se
vê nos contos. O fato é que o africano é eminentemente gregário, gosta de
estar sempre em grupo. Talvez por isso toda narrativa da região tenha tantos
personagens. O romance não tem lances violentos de traição. As histórias
amorosas se iniciam e terminam de modo relativamente tranquilo, não com
grandes irrupções de ódio. No capítulo V veremos que Embaló publicou
também um livro de poemas, Coração cativo (2005).
Até a presente data, Abdulai Sila, Filinto de Barros e Filomena Embaló
são os únicos escritores da Guiné-Bissau que se aventuraram pela senda da
ficção romanesca. Como dissemos alhures no presente livro, trata-se de uma
literatura incipiente, embora não insipiente.
Poderíamos acrescentar ainda, pelo menos, Uaná, de João Ferreira
(São Paulo: Global Editora, 1986). No entanto, ele já foi mencionado no
capítulo III. Há uma resenha dele, feita por Marcus Maia (Papia vol. 1, n.
1, p. 82, 1990). Em Rosa (1993) há duas páginas encomiásticas dedicadas
a ele, considerando-o além de “o primeiro romance no campo da ficção
guineense”, dotado de “uma bela prosa”. Em Augel (1988), há seis páginas
dedicadas a essa obra. Sparemberger também lhe dedica 12 páginas. O au-
tor tem ainda contos e poemas sobre temas guineenses, todos inéditos, mas
disponíveis na internet.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 85
Conto
AIDS, ou SIDA, como se diz localmente. Com isso, Maria Sábado ficou
morrendo de medo de também estar com o vírus. Diante do resultado nega-
tivo do exame, jurou deixar a vida de festas, prazeres e sexo. Assim a história
acaba, como diz o contador de storias.
“Maimuna” é bem mais conciso. Toda a história gira em torno dos
problemas da jovem Maimuna, também chamada de Muna e Maina. O pai e
o tio a prometeram a um velho, rico comerciante da Guiné-Conacri, mas ela
era apaixonada pelo jovem Jorge (Djodje). Maimuna fugiu com Djodje, no
dia do casamento, evitando o destino de duas outras irmãs. Após estudarem
medicina e enfermagem em Cuba, os dois passaram a ser pessoas realizadas
e felizes.
Quanto a “O destino”, é bastante longo (41 páginas) para se qua-
lificar como conto. No entanto, “O alienista” de Machado de Assis talvez
seja mais longo ainda. A despeito da extensão, “O destino” apresenta uma
certa unidade temática, além de a história se iniciar e terminar em torno das
mesmas personagens. Interessantemente, não há a profusão de personagens
comum nos outros dois e nos contos de Semedo, bem como nas narrativas
orais.
No que tange ao número de personagens, Samy consegue superar
as passadas de Odete Semedo. Em “A escola”, intervêm acima de 26, sem
contar aquelas que são apenas mencionadas, mas não nomeadas. Parece que
se trata de um alinhar-se de episódios. No entanto, Mingas tem o grande
mérito do pioneirismo. Além disso, seus três contos são um retrato fiel da
sociedade guineense, com suas mazelas e suas belezas. Uma das belezas é
o próprio país, que a autora nomeia como “território nacional”, idéia à qual
voltaremos no capítulo XI.
“Maimuna” é a narrativa que mais se aproxima do que Massaud Moi-
sés (1967) consideraria um conto literário: conciso, a história gira em torno
de uma única pessoa, não há incidentes paralelos, enfim, não é uma mini-
novela.
Como a maioria dos autores guineenses, Mingas faz uso de diversas
palavras e expressões inteiras em crioulo e em línguas étnicas. Também
como eles, lança mão de provérbios, como Si bu ka tene mame, bu ta
mama dona (se você não tem mãe, mama na avó), em “A escola” e Sufri-
dur ku ta padi fidalgu (o sofrimento nos faz grandes), em “O destino”, e
Dipus di sabi, mortu i ka nada (depois do prazer, não importa a morte), em
“Maimuna”. Várias personagens têm apelidos, como Muna, Maina (Mai-
88 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
em Geba nas noites das cerimónias de rua garandi e de ialsa stéra di tchur),
às quais banhei alguma fantasia. Outras foram simplesmente inventadas”
(Nota da Autora, Djênia, p. 15).
De um modo geral, essas “passadas” ou “inventadas” seguem o pa-
drão das narrativas orais tradicionais. Nesse sentido, tudo que está dito so-
bre as storias no capítulo VI aplica-se também a elas. Assim sendo, todas elas
consistem em um enfileirar-se de episódios, com uma grande quantidade de
participantes, alguns deles às vezes parecendo deus ex-machina. Para nós,
de cultura proveniente da Europa, parece haver um “excesso” de detalhes.
Além do mais todas as passadas terminam de modo reticente, com pergunta
ou de outra maneira que indica que poderiam continuar.
Muitas “passadas” contêm prolegômenos (proêmio, intróito ou prólo-
go), como “As peripécias do doutor Amison Na Bai” (eu vou sozinho) e em
“A lebre, o lobo, o menino e o homem do pote”, de Djênia, bem como em
“Kriston matchu”, de Sonéá, entre outras. Frequentemente, contêm também
um codicilo (epílogo ou apêndice). Esses dois acréscimos têm um valor alta-
mente epifenomênico, uma vez que sua ausência não prejudicaria em nada a
estruturação e a compreensão da “passada”. Por exemplo, na segunda delas,
duas meninas discutem, em dois terços da página inicial, que título a sto-
ria deveria ter, discussão seguida de uma intervenção da autora explicando
porque pode ocorrer esse tipo de discussão. Uma dessas meninas (Kutchi)
diz que “o nome vai ser chamado ‘a lebre, o lobo e o menino’”, ao passo que
a outra (Cici) acha que o título deveria ser “a história do homem do pote”.
Após o término da história, a autora acrescenta que “depois da história, as
nossas amigas ainda discutiam sobre o nome da história e o final que esta
deveria ter:
- “Não foi assim que eu ouvi, Cici! O Lobo não podia sair a ganhar coisa alguma.
Quem sai a ganhar é a Lebre e tu deixaste que os populares lhe batessem....
- Kutchi... a lebre foi mazinha ... foi muito má ao ameaçar o menino que sempre
a tratou bem.
- Mas Cici, tu é que a fizeste má, quando ela podia continuar esperta e marota; e
não foi assim que ouvimos contar, a culpa foi tua!
- Eu ouvi exactamente assim, aliás, cada uma de nós ouviu como quis e conta
como quer.
- Não concordo; mas, olha, se assim for ... o gato que rouba peixe naquela história
que me contaste, vou fazê-lo fugir; a cozinheira não o vai escaldar.
- Isso não, Kutchi... aquele gato é mesmo mau e arisco, e....”.
90 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Vim de longe
Vim de muito longe
O que me trouxe não é boa nova
Niala levanta-te
Niala levanta-te
Procura os teus antepassados
O teu filho corre perigo
Ele pode morrer
mininovelas não sejam o germe do futuro conto guineense, que não precisa
necessariamente ser igual ao da tradição europeia? Quem sabe teremos em
um futuro não muito distante uma grande contribuição africana (e guine-
ense) a um novo tipo de conto? O mundo não tem que ser necessariamen-
te como a cultura européia (e agora a norteamericana) nos tem mostrado.
De qualquer forma, consideramos a autora mais poetisa (excelente) do que
contista, sobretudo nos poemas escritos em crioulo, ou melhor, na versão
crioula de seus poemas, como veremos no capítulo VII.
Queiroz (2007) contém uma detalhada avaliação crítica dos contos
de Odete Semedo, além de outras produções literárias da África, e não só de
língua portuguesa.
Filomena Embaló também tem livro de contos, além do romance co-
mentado acima. Trata-se de Carta aberta (São Tomé e Príncipe: UNEAS,
2005), com dez contos. São eles: “Desencontro”, “Os filhos pródigos”, “Se-
ria um caso para Sherlock Holmes?”, “Ri melhor quem ri no fim”, “Sungui-
la”, “O choro”, “Mara cassamenti”, “A rosa” e o “O candidato”. Quanto a
“Homenagem ao meu liceu”, parece mais uma crônica. Alguns desses con-
tos estão publicados alhures, inclusive na internet. Como acontece em outras
obras da autora, nota-se um certo desenraizamento, uma “sensação de estar
em permanente passagem”, de que está sempre na ora di bai “hora de partir”
(Desencontro), sentindo-se como aqueles que “jamais se sentiram em casa
em parte alguma” (Os filhos pródigos). Sua vivência angolana se trai em
pelo menos cinco contos. Nos demais, temos a vida na Guiné-Bissau. Em-
baló é também autora de um ensaio sobre a literatura guineense (cf. Embaló
2003), além de um livro de poemas, comentado no lugar adequado.
94 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
tre outros. Aparece nas antologias Mantenhas para quem luta (1977), com
7 poemas, Antologia poética da Guiné-Bissau (1990), com 16 poemas, além
de Eco do pranto (1992), de que Sparemberger (2003: 244) reproduz o
poema “Esperança renovada”. Em Barbosa (1988), vê-se “Poema de um as-
similado”; em Secco (1999), reproduzem-se “Decisão” e “As ilhas”. Os três
já haviam aparecido nas antologias. Há poemas seus no periódico guineense
Nô pintcha e nas revistas Afrique/Asie e África. Augel (1998) menciona uns
quatro poemas inéditos do autor, embora não os transcreva. Regalla não
publicou nenhum livro individual. Ele só escreveu em português.
Como alguém que lutou pela independência de seu país, grande parte
dos poemas de Agnelo Regalla são de cunho político, “Com a arma numa
mão, / O arado na outra” (“Comandante”). Um dos mais conhecidos é o já
mencionado “Poema de um assimilado”, em que lamenta ter mais conheci-
mento das coisas da Europa do que das da África. Em “Homem novo”, ele
diz que “E quando na minha terra / Pela força do homem / Nascerem as
fábricas”, a vida de todos melhorará. “Então brotará dos olhos / Das crian-
ças do futuro / Amor, paz / E homem novo”, “No canteiro livre / Da Guiné
e Cabo Verde” (“Camarada Amílcar”). Sabemos que, infelizmente, não é o
que ocorreu. Às vezes, o poeta deixa extravasar também o lirismo, como em
“Um poema” (há dois com esse título), “Mulher” e “Flor nocturna”.
António Soares Lopes Júnior (Tony Tcheka) nasceu em Bissau em
23 de dezembro de 1951. Desde o início da carreira atuou como radialista
e jornalista, tendo publicado seus primeiros poemas aos 17 anos de idade.
Tem poemas em Mantenhas para quem luta (1977), Antologia poética da
Guiné-Bissau (1990) e O eco do pranto (1992), todos em português. É em
Kebur: Barkafon di poesia na kriol (1996) que aparecem alguns de seus
poemas em crioulo. Seu primeiro livro individual é Noites de insónia na
terra adormecida (Bissau: INEP, 1996), dividido em quatro seções. A pri-
meira (Kantu kriol) consta de dez poemas em crioulo; a segunda (Poemar)
contém 13; a terceira (Sonho-Caravela), 9; a quarta (Poesia Brava), 31, a
mais longa; a quinta, 8. No total são 71 poemas. Esse livro reproduz quatro
poemas publicados em Kebur (“Balur di kebur”, “Dur di mame”, “Kanta di
fomi” e “Fugu de ña korson”). O seu último livro de poemas, Guiné sabura5
que dói, foi publicado em 2008 e lançado no Brasil, durante a Festa Literária
Internacional de Porto das Galinhas (FLIPORTO), realizada de 6 a 9 de no-
vembro do mesmo ano. Trata-se de uma recolha de 31 poemas, dos quais 5
5. felicidade
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 97
6. Calcanhar
7. Que não é bom, infelicidade
8. Que é bom
98 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
havia duas diferenças: / o sexo e a cor da pele” (Amiga). Ou, então, “um
negro / um branco / um forte abraço mútuo / o mesmo alvo sorriso / o
pensamento: bandeiras verdes e brancas” (“Caleidoscópio”). Por fim, “eu
vi as crianças louras / abrirem os braços aos meninos negros” (Disseram-
me que parasse). Há belos momentos como /Poeta! A vida é o melhor
poema/ (Aos poetas).
Como disse o prefaciador de A luta é minha primavera, Fernando J.
B. Martinho, Vasco Cabral não apresenta o nacionalismo e o engajamento
político de quase todos os demais escritores guineenses, refletindo mais o
neorrealismo português. Talvez porque 42 dos 58 poemas foram escritos
antes do início da luta armada. Mesmo quando ele trata de temas africanos
e guineenses, fá-lo de uma perspectiva universal, não como alguém às vezes
revoltado contra os (ex-)colonialistas. Segundo Martinho, “Vasco Cabral
[é] figura exemplar de intelectual africano de vocação universalista” (p. 10).
Aparentemente Cabral só poetou quando era jovem, tendo parado ao chegar
à idade madura.
Hélder Proença ou, mais precisamente, Hélder Magno Proença Men-
des Tavares, nasceu em Bolama, em 31 de dezembro de 1956 e foi assassi-
nado a 5 de junho de 2009, numa emboscada militar quando regressava de
carro a Bissau de uma viagem ao Senegal. Próximo do ex-presidente Nino
Vieira, assassinado em 2 de março do mesmo ano, Hélder Proença foi acu-
sado pelos serviços de segurança de estar implicado numa alegada tentativa
de golpe de estado. Foi Secretário-Geral do PAIGC, membro do Comitê
Central e deputado, além de ter exercido diversos outros cargos, como o de
secretário de segurança pelo menos até 2006. Entre 1979 e 1980, estudou
Planejamento Regional no Brasil. Como Vasco Cabral, Proença parou de
produzir literatura muito cedo, dedicando-se mais à política, o que é de se
lamentar, pois o que publicou é de ótima qualidade.
Das sete antologias e/ou coletâneas já publicadas, ele só não aparece
em Poilão (1973), Os continuadores da revolução e a recordação do passa-
do recente (1979) e Kebur (1996). Inclusive de duas coletâneas brasileiras
ele participa, ou seja, Barbosa (1988) e Secco (1999). De Mantenhas para
quem luta (1977), Proença não só participa com cinco poemas em portu-
guês como é coorganizador e coprefaciador, juntamente com Tony Tcheka
e José Carlos Schwartz, como informa Augel (1998: 03). Em Momentos
primeiros da construção: Antologia dos jovens poetas (1978), ele comparece
com poemas em português e em crioulo, na seção que leva o nome “Espa-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 103
vindo, não se sabe por quê. No entanto, os temas políticos também estão
presentes, como em “Os mestres do mundo”, que “Vieram / Levaram tudo
/ O sonho / A esperança / A vida” em que se pode reconhecer facilmente a
brutalidade da colonização e dos regimes despóticos do pós-independência.
Há até um poema-acróstico, com as primeiras letras de cada verso forman-
do a frase “ENTERRARAM O SONHO DE CABRAL”. O tema criança está
presente pelo menos nos poemas “O menino ganhou a guerra”, que é uma
“homenagem à criança angolana”, e “Sorriso”. No entanto, como a autora
diz no poema “Nem botas nem canhões”, nada a desanimará de continuar
lutando, “Nem botas nem canhões / Nem sórdidas tentações / Minha mar-
cha travarão”.
Poder-se-ia indagar se esse livro pode ser considerado como perten-
cente à literatura bissau-guineense diante das evocações de suas raízes ca-
boverdianas e da vivência angolana que nele transparecem aqui e ali. Cremos
que sim, pois tudo que se diz nele está no mesmo contexto do que foi dito
em praticamente toda a produção literária durante e no pós-independência.
Basta lembrar que tampouco a ação da maior parte dos romances comen-
tados no capítulo IV, como os do Abdulai Sila, se passa na Guiné-Bissau.
Sobre a vida da autora já falamos rapidamente no capítulo IV.
Rui Jorge Semedo nasceu em 18 de setembro de 1973. É graduado
em Ciências Sociais Universidade Federal de Roraima, e Mestre em Ciência
Política pela Universidade Federal de São Carlos (SP). Já publicou os livros
de poesia Stera di tchur (Bissau: Novagráfica, 2001) e Retrato (São Carlos:
João & Pedro Editores, 2007). Dos 36 poemas de Retrato, só os três últimos
(“Segredo”, “N’hara Guiné” e “Badjuda”) não foram escritos em Roraima,
mas em São Carlos. Como diz a prefaciadora, Kátia Monteiro Wankler,
“os poemas de Rui Jorge [....] falam da vida no Brasil, mais especificamente
em Roraima [...]. Ou, então, como diz o próprio poeta, “Nele [os textos
de retrato] falo, sobretudo, das belezas e desigualdades e indiferenças do
Brasil, da inquietação do mundo que cada vez desumaniza o valor da vida
e da minha Guiné-Bissau que por conta da corrupção desenfreada deixou
de cuidar de suas crianças, jovens e adultos”. O poeta fala de Rio Branco,
Amazônia, macuxis, capoeira, senzalas, malocas e até de “samba no pé”,
futebol, “terra onde canta o sabiá”. No entanto, ele veio para cá com “uma
maleta cheia de contos e lendas africanas” (Somos irmãos). Fala também
da condição humana, do amor paterno e pela mulher, mas sempre voltado
para seu país. Tanto que usa expressões crioulas, tais como Di djantá di nô
108 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
kaça (de almoçar em nossa casa), além de dois poemas inteiramente nessa
língua: “No bambaram djagassi” (nossos panos de carregar criança às costas
se misturam) e “N’hara Guiné”. Em Stera di tchur, veem-se os problemas
advindos da guerra civil de 1998-1999. Publicou ainda Ponto de vista (São
Carlos: João e Pedro Editores, 2009, coletânea de crônicas em que comenta
e/ou critica diversos aspectos da vida cultural e política.
Alguns poetas aparecem apenas em umas poucas antologias e/ou
em revistas aqui e ali. Um deles é António Baticã Ferreira, que nasceu em
1939, filho de um soba, tendo estudado em vários países, formando-se
em medicina. Não publicou nenhum livro, mas, segundo sua família, tem
muitos poemas inéditos. Os Cadernos da Sociedade de Língua Portugue-
sa - Poesia e ficção I, 1972, pp. 15-21, publicaram sete poemas seus, seis
deles reproduzidos em No reino de Caliban (1989). Já tinha aparecido
também em Poilão (1973), embora não nas antologias guineenses ulterio-
res. Segundo Secco (1999: 214), “por ter vivido fora da Guiné, passa em
seus versos a angústia do exílio. Canta a saudade da infância na Guiné e o
mar, ...., apesar de pouco recorrente”. Com efeito, ele termina o poema “O
mar” dizendo “e nós compreendemos sua língua”. Sparemberger (2003:
10-115) reproduz, os poemas “Infância”, “Coração alegre”, “Amargura”
e “País natal”, além de lhe fazer uma apreciação crítica. No capítulo III,
já falei dele e transcrevi o poema “Infância”, cujo tom lembra um pouco
“Meus oito anos” de Casimiro de Abreu. Parece haver um certo silencia-
mento de sua presença, talvez pelo fato de ter se posicionado contra o
PAIGC.
Um outro poeta do referido grupo é Nagib Said. Nagib Farid Said
Jauad nasceu em 26 de fevereiro de 1949, em Bolama. Estudou em Portugal
e na França. Exerceu as profissões de jornalista, jurista, redator de agência
de notícias e funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Com-
parece em Mantenhas para quem luta com cinco poemas e, em Antologia
poética da Guiné-Bissau com dois. Aparece também em Momentos Primei-
ros da construção - antologia dos jovens poetas (1978), com dois poemas.
É interessante notar que na primeira estão inclusos “Poema I” e “Poema
II, e, na segunda “Poema III”, o que sugeriria uma continuidade que não
houve de fato. O poema “Em género de homenagem à memória d’Amilcar
Cabral” aparece em ambas antologias. Nesses seis poemas transparecem o
lirismo, o amor, a preocupação com o destino dos povos e um pouco da luta
armada, inclusive a questão da unidade Cabo Verde-Guiné-Bissau sonhada
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 109
vista Tcholona também tem publicado poemas Arlinda Martins Nunes, Car-
los Vaz, Amarildo Jair Ramos Araújo e Umar Cora. No excelente site www.
didinho.org encontram-se muitos poetas, antigos e novos. Vejamos a lista
dos que comparecem aí, mas não estão comentados no presente livro (status
até janeiro de 2010):
- Alberto Oliveira Lopes, com dez poemas, escritos no Brasil.
- César Inácio Vieira e Roberto de Sousa Cordeiro, com uma coletâ-
nea de 25 poemas.
- Delo Belo, com 2 poemas.
- Fernando Casimiro (Didinho), organizador do site, com treze poe-
mas, dois deles dedicados ao falecido Valeriano Luiz da Silva (de Anápolis
- GO).
- Flaviano Mindela dos Santos, com duas compilações de poemas em
crioulo, mencionados no capítulo VII.
- Ismael hipólito Djata, com 9 poemas em crioulo.
- José Bacar (José Carlos Cócamaro), com um poema.
- Kansala, com 3 poemas em crioulo.
- Mamadu Lamarana Bari, nove poemas, enviados do Brasil.
- Pedro Higino Delgado, 10 poemas, do livro Sombra e claridade (sem
local nem data).
- Ricardo Pellegrin El Kady, 16 poemas, alguns deles letras de músi-
cas, nem sempre guineenses (ele é cantor).
- Roberto Sousa Cordeiro, com 7 poemas.
- Samuel Pinto Fernandes, com 3 poemas, dos quais um em crioulo.
Salton ku si mindjer
Un mindjer sai pa ba panha salton na roda di mar. I tchiga, i panha salton manga
del, i fia na korda. I bin panha un salton e fia na korda. Mindjer di salton sai, i odja
si omi, i ba tchora djanan la na metadi di tarafi. I na tchora, i na tchora, i fala si omi
ku panhadu, i na tchora. Salton fala si mindjer: “Ka bo tchora. Ora ku bo sinti
nha tcheru na iassadu bo ta tchora, ma tementi N ka iassadu inda, ka bo tchora”.
Mindjer ku panhal i ditanda gora korda e ba laba kurpu. Salton salta, i kapli na
118 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Tradução
O saltão e sua mulher
Uma mulher saiu para apanhar saltões à beira-mar. Ela chegou, apanhou um
monte de saltões e enfiou na corda. Pegou saltões e enfiou na corda. A mulher
do saltão saiu e viu seu homem e foi chorar pra valer no meio do mangue. Ela
chorou, chorou, dizendo que seu homem fora apanhado, e chorou. O saltão lhe
disse: “Não chore. A hora que você sentir meu cheiro sendo assado, você chora;
mas, enquanto eu ainda não estiver assado, não chore”. A mulher que o apanhara
pôs a corda [de peixes] no chão e foi tomar banho. O saltão saltou e escapuliu da
corda e se meteu dentro de um buraco. Ele disse a sua mulher: “Eu não lhe disse!
Enquanto você não sentir o meu cheiro no fogo saiba que eu ainda não morri”.
umbral que separa a fome da saciedade. Cada vez que alguém come é uma
alegria sem tamanho. É uma vitória contra a morte. Muitos furtos são de al-
guma coisa de comer. As trapaças normalmente têm por finalidade enganar
determinada pessoa e comer o que ela tem. A fome é um problema tão sério
na África que o crioulo marca uma época do ano como na tempu di fomi, ou
seja, a época da seca, como se pode ver, por exemplo, na storia “Salton ku
tataruga” (o saltão e a tartaruga).
No contexto do tema fome/comer, gostaríamos de mencionar um
caso de canibalismo. Na storia “Sene, un son na si mame” (Sene, um filho
único), Junbai, as localidades de Uato, Bolama e Caledje vão caçar, pois
não é época de colheita (kebur). Ateiam fogo no mato a fim de empurrar os
animais para determinada direção. Acabam abatendo apenas uma farfana
(roedor que destrói as culturas de grãos). Como a carne desse animal não
é suficiente para as três localidades, surge uma discussão sobre o que fazer.
Descobrem que um menino que participa da caça é filho único, está sozinho.
Com isso, resolvem matá-lo a fim de misturar sua carne com a da farfana.
Aliás, isso ilustra a questão mininus di kriason (meninos para criação), que
frequentemente são maltratados pelos pais adotivos. O assunto é tão sério
que aparece em muitas narrativas orais bem como em rumores, como defi-
nidos no capítulo XI.
Na verdade, há muito tempo não há canibalismo na Guiné-Bissau, se
é que ele existiu algum dia. No entanto, registramos um rumor (cf. cap. XI)
segundo o qual os felupes eram antropófagos. Mas, como todos os rumores,
é como as bruxas espanholas, nas quais ninguém crê, mas que “las hay, las
hay”. Há um caso curioso de animais que comem gente em “Anton bu ka
oja ki rapás ku ta tchomado Jon Bulidur?” (então, vocês não viram o garoto
chamado João Travesso?), de Uori. Isso revelaria uma visão simbiótica do
mundo.
A storia “Salton ku si minjer” mostra ainda o que poderíamos chamar
de lógica do subjugado. Ele tem que estar sempre atento para agarrar-se à
primeira oportunidade de se safar. Sua vida é direcionada por estratégias
de sobrevivência, e não só em relação ao dominador, mas, sobretudo, em
relação à fome. Antes, ele era subjugado pelo régulo. Depois, vieram os colo-
nizadores que fizeram tudo que já sabemos. Por fim, os ex-combatentes pela
independência assumiram o poder, tornando-se tão ou mais tirânicos que os
dois anteriores, além de se envolverem em uma corrupção que se tornou a
norma, não a exceção. A ideia de submissão aos poderosos está expressa até
122 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
estava dentro da barriga dela. Como isso causou sua morte, eles acabaram
matando as outras duas. Para completar, subiram num pé de cabaceira, sob
a qual o rei costumava descansar. Um deles acaba defecando na vasilha em
que o régulo comia lá embaixo. Inclusive seu rosto ficou sujo de bosta. Ele
gritou, chamou os seguranças, que chegaram e viram os três garotos mor-
rendo de rir. Com isso, começaram a cortar a árvore para que eles caíssem.
Mas, uma lagartixa começou a dar voltas à árvore, o que impedia que caísse.
João, o mais malvado, ao saber disso matou a lagartixa. Quando a árvore ia
cair, passou um abutre (jugude), que levou os três sobre suas costas. Ao par-
tirem da aldeia, João quebrou uma asa do abutre e Aniceto quebrou a outra.
Com isso eles caíram, tendo João perdido os sentidos. Só que uma tartaruga
soltou um peido no seu nariz, reanimando-o. A tartaruga o levou à casa de
um ferreiro, mas João a assou e comeu. Na casa do ferreiro, tudo se repetiu,
João acabou fazendo com que o ferreiro matasse a própria filha por engano.
No final, o ferreiro conseguiu castigá-lo, transformando-o em hiena (lubu),
que foi para o mato.
Nesse caso, os meninos foram punidos: Manuel e Aniceto morreram,
e João virou bicho do mato, que é uma espécie de castigo. No entanto, nem
sempre isso acontece. Na longa storia “Es ier Sara ku Denba” (estes eram
Sara e Demba), de Junbai, Sara, o irmão mais novo, vivia provocando con-
fusão, que Demba tinha que tentar consertar. Depois de diversas cenas de
malvadeza de Sara, semelhantes às de João na storia anterior, em diferentes
terras, acabaram chegando a um lugar onde era sempre noite. O arteiro Sara
acaba descobrindo que era uma serpente que havia engolido o sol. Fez uma
armadilha para pegá-la e a matou com a espada. Depois disso, foram dor-
mir. Quando o galo cantou, começou a clarear. O régulo tocou o bombolom
para chamar todo mundo e saber o que acontecera. Sara acabou mostrando
a cabeça da serpente que havia engolido o sol, razão da escuridão. Como
recompensa, o régulo pede a Sara que fique como rei da aldeia, mas ele re-
cusou, e disse que seu desejo era que o rei construísse uma escada até o céu.
Relutantemente, o rei concordou, e pôs todo mundo a construí-la. Depois
de pronta, Sara pôs-se a subi-la, acompanhado de Demba, pedindo que a
cortassem quando chegassem ao céu. No final, cortaram-na, produzindo um
grande estrondo. Por isso, sempre que troveja, é esse estrondo que está se
repetindo. Os relâmpagos são o clarão da espada de Sara a dar espadadas
para um lado e para outro. Como se vê, essa storia lembra um pouco a Torre
de Babel da Bíblia.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 125
sibi nundé ki deus na tiran ña koitadesa” (não sei quando [=onde] Deus vai
me tirar desta pobreza), Uori, há uma explicação das características do grou
coroado (ganga), ou seja, sua crista. É que alguém estava fazendo tranças
em seu cabelo (tisi kabelu), mas diante da notícia da morte dos filhos, ele
teve que voltar para casa inopinadamente. Com isso, ficou o meio da cabeça
sem trançar, isto é, sua atual crista.
Na já mencionada storia “Sara ku Denba”, podemos ver a origem do
relâmpago e do trovão, após toda uma sequência de peripécias. Enfim, há
inúmeros outros casos, que não vamos examinar, em nome da brevidade.
Até aqui, falamos do conteúdo das storias crioulo-guineenses. Veja-
mos agora um pequeno comentário sobre sua forma. A narrativa “Salton ku
si minjer” transcrita acima é excepcionalmente curta. O normal é as storias
serem mais longas. Algumas são bastante longas, como “Sara ku Denba”
(Sara e Demba), de Junbai, e “Desafasakaleron” (nome próprio), de Uori.
Essas duas narrativas têm mais de um “capítulo”, lembrando uma telenovela
brasileira. A primeira compreende quatro seções ou “capítulos”. A segunda
não está formalmente dividida em seções, mas é a mais longa entre todas as
que analisamos, compreendendo uma grande quantidade de episódios.
Por se tratar de narrativas orais, as storias não são estruturadas exa-
tamente como as ocidentais, numa sequência cartesiana. Aos nossos olhos
elas pareceriam ingênuas, desestruturadas. É que o objetivo dos africanos
ao narrá-las é a interação, o entretenimento. Portanto, como no caso das
manifestações musicais, o importante é o ritmo, a cadência. Mais importan-
te do que uma estrutura com início-meio-fim, nos moldes ocidentais (ou o
happy end dos enlatados americanos) é o encadear-se de incidentes. Assim,
cada narrador pode ir aumentando os incidentes em que as personangens
se veem envolvidas, indefinidamente, se necessário, como está bem explici-
tado na “passada” de Odete Semedo, comentada no capítulo IV. Inclusive
isso revelaria as habilidades do narrador, para deleite dos ouvintes. Assim,
ele os entreteria por mais tempo. As aparentes ausências de “lógica”, epi-
sódios “desnecessários” para o enredo etc. se devem ao fato de as storias
terem sido contadas oralmente. Quem as transcreveu e publicou geralmente
era estrangeiro, como Emilio Giusti (brasileiro radicado na França) e Tere-
sa Montenegro (chilena), embora esta última conheça a cultura guineense
profundamente, pois vive no país há várias décadas. Para a visão dos oci-
dentais, às vezes parece tratar-se de um amontoar-se de episódios, que vão
se justapondo um após o outro. Podem até mesmo aparecer personagens e
130 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
nagens da tragédia são como as espécies pioneiras, que têm que resistir
heroicamente. Frequentemente, a tragédia termina em funeral, ao passo que
a comédia em geral termina em casamento. A personagem cômica aprecia
festas, lautas refeições. Às vezes, nos parecem um tanto antiéticas, mas, se
puderem vencer o antagonista sem machucá-lo, melhor. São glutões, sem-
pre querendo comer mais (Meeker 1996).
Tudo isso se aplica perfeitamente às personagens das storias. A hie-
na é a glutona, que sempre se dá mal porque está sempre querendo comer
mais. Faz até o papel de trouxa tendo por finalidade esse objetivo. O coelho,
por seu turno, é o espertalhão. Está sempre passando a hiena para trás com
mentiras e ardis mil. Se necessário, finge-se de doente, de morto. Vale até
fazer com que a hiena morra, mas, se isso não for imprescindivelmente ne-
cessário, ela pode continuar viva, contanto que o coelho leve a vantagem.
Por outras palavras, ambos se enquadram no modo cômico. É na poesia que
vamos encontrar manifestações do modo trágico, como entendido por Me-
eker. Frequentemente, a poesia guineense é heróica, engajada politicamente.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 133
Atchutchi
Djibril Baldé
Como muitos outros poetas de seu país, Djibril Baldé faz uso de mui-
tos recursos linguísticos que os poetas brasileiros dificilmente usariam nos
dias de hoje, como a exclamação “ai!” e outras. Uma outra característica sua
e deles é a grande quantidade de versos na forma exclamativa ou na de per-
gunta (Si bu sibi ba! ‘Se você soubesse!’, Bu ka na kontal? ‘você não conta
a ele?’, Anta i ke? ‘E aí?’).
Ernesto Dabó
pre tido como músico e letrista. De todos os poetas de Kebur, é talvez o que
apresenta uma linguagem mais rica, em termos de raridade do vocabulário
usado, de hermetismo para quem não conhece a cultura guineense e, por-
tanto, não tem conhecimentos profundos do crioulo. Mesmo quem trabalha
com essa língua há muitos anos, tem dificuldade com diversos termos e
metáforas usadas pelo autor.
Em alguns casos, enfatiza a rima, coisa não muito comum nos poetas
guineenses. Em “Lamine”, esse recurso é utilizado de ponta a ponta, mesmo
que algumas rimas sejam imperfeitas. Na primeira estrofe, por exemplo, te-
mos: “N soma na djanela / pabia bentu garba ku bela / kirias na torkia fala”,
literalmente, “eu assomei à janela / porque o vento não se entendia com a
vela / as crias se comunicam”. Como já se pode ver, mesmo que conheçamos
o significado de cada item lexical, não é garantido que consegamos entender
o que o poeta quis dizer. Afinal de contas, a função da arte não é propria-
mente falar de estados de coisas, para usar a expressão de Wittgenstein. O
conceito de comunicação fática de Bronislaw Malinowski, que mais tarde foi
integrado nas seis funções da linguagem de Roman Jakobson, é mais ade-
quado. Por outras palavras, a função da arte é mais entreter, não informar
sobre algo. É mais manter a coesão, a fim de usufruir a mensagem artísti-
ca, no caso, poética. Isso pode ser mais facilmente constatado em outras
manifestações culturais crioulas, como as narrativas orais, as adivinhas e,
sobretudo, a música. Cada uma delas está discutida em capítulos específicos.
Como José Carlos, Dabó queria criar uma música guineense, assim
como já existia uma música caboverdiana, uma senegalesa etc. Queria criar
um estilo guineense.
Nelson Medina
Huco Monteiro
Dulce Neves
simples possível. Afinal, como disse certa vez Ferreira Gullar, para ser bom
poeta o falar difícil não é imprescindível.
Os outros cinco poemas de Kebur mantêm o mesmo tom de simplici-
dade. Em “Singa” (singrar), ela fala da solidão, além da preocupação com
o dia-a-dia, preocupação típica de mulheres na África, pois frequentemen-
te são elas que têm que prover a casa. “Sareia” (sereia) tem um tom um
tanto onírico, uma vez que ela fica sonhando com um mundo encantado,
como se fosse um homem desejando que uma sereia apareça para viverem
um lindo amor. O terceiro poema é “Sukundi sukundi” (muito abriga-
do) é parecido com “Sareia”. O quarto, “Kidu”, retoma o tema do amor,
como se pode ver nos dois últimos versos: “Kidu ami di bo / Kidu abo di
mi” (“Kidu eu sou sua / Kidu você é meu”). O quinto poema é o que está
transcrito acima. O sexto retoma a questão da fome. Os cincos primeiros
versos já atacam a questão: “Ña pape labra / i ka kume / ña mame karga
kufu / i ianda orik / i ka kume”, ou seja, “meu pai trabalhou / mas não
comeu / minha mãe carregou os cestos / está sempre labutando / mas não
comeu”.
Respício Nuno
Augel (2006) publica dois dos diversos poemas inéditos do autor, es-
critos ainda no rescaldo da Guerra Civil de 1998-1999, seguidos de uma
detalhada análise. A autora chama a atenção para o fato de que “o poeta
faz uma crítica aberta e direta àqueles antigos combatentes da liberdade da
pátria, aqui chamados pelo autor de ‘donos do mato’, que subiram na hierar-
quia e atualmente são donos do poder” (p. 102). O próprio título do primei-
ro poema (Disgrasa ‘Desgraça’) já sugere o tom de sua mensagem: o que os
políticos estão fazendo (em 1998-1999 e hoje) com o povo guineense é uma
desgraça. No segundo poema (Ermondadi), “o sujeito poético compara a
guerra a um grande vendaval que provoca redemoinhos e espalha a destrui-
ção ‘escancarando as portas da Guiné’” (p. 108) a perigos externos, sendo
que o não menos perigoso de todos o fato de os políticos exporem o país ao
perigo de desaparecer como tal. Como já dissemos alhures, a Guiné-Bissau
é uma ilha lusófona rodeada por um mar de países pertencentes ao domínio
da francofonia. Como estes últimos são muito mais fortes e cada um deles
muito maiores, territorial e populacionalmente, o fato de o presidente Nino
Vieira ter chamado tropas senegalesas para defendê-lo contra militares in-
surgentes foi uma calamidade (disgrasa) para o povo. O que deveria haver
para que a Guiné-Bissau possa vislumbrar um futuro alvissareiro é “ermon-
dadi”. O poema de Kebur acima transcrito vai pelo mesmo diapasão desses
dois, embora ele não esteja falando da Guerra Civil, mas das guerras de
libertação e do colonizador.
Conduto de Pina
Armando Salvaterra
Odete Semedo
Tudo que se escreve, escreve-se na língua europeia. Ela é a língua oficial. As-
sim sendo, não é de admirar que Semedo se pergunte em que língua escrever.
Ela está dividida entre a língua do coração e a língua da razão, ou seja, entre
o crioulo e o português, respectivamente. Por via das dúvidas, ela escreve em
ambas. As declarações de amor (Ña deklarasons de amor), as façanhas das
mulheres e homens de sua terra (“fasañas di mindjeris / ku omis di ña tchon”),
os anciãos (omis garandi), os fatos passados e suas canções (Di no pasadas
ku no kantigas), tudo isso ela cantará em crioulo (Na kriol ke N na kantal).
No entanto, a fim de deixar sua mensagem escrita para que outros povos e
outras gerações distantes a recebam, “Deixarei o recado / Num pergaminho /
Nesta língua lusa / Que mal entendo” para que”.. ao longo dos séculos”, “No
caminho da vida / Os netos e herdeiros / saberão quem fomos”, como diz na
versão portuguesa, que é “Em que língua escrever”.
A necessidade de se expressar e ser ouvida pelo outro pode ser vis-
lumbrada em praticamente todos os poemas de Semedo, mesmo que indi-
retamente. Às vezes, ela está “Na metadi di tchon ku seu / Suma barku sin
rumu”, ou seja, “Entre o céu e a terra / Qual barco sem rumo” (Oscilações),
outras vezes ela diz que “N misti sedu poeta / Pa N kanta / Pa N sinti / Pa
N tchora”, em português “Queria ser poeta / Cantar / sentir / Chorar”, pois
acha que só os poetas conseguem expressar tudo isso e algo mais (N misti
sedu poeta). Esse desejo se repete no poema seguinte (Ami = Eu), pois “Na
poesia ke ña liberdadi sta”.
Como se pode ver no último poema (N ka purfia = Não discuti), Se-
medo está sempre envolvida numa luta pela expressão, como disse Fidelino
de Figueiredo: “Falei da língua / Da míngua / Da letra (So)letrei a minha
nostalgia / Lendo pasmado / Nos olhos desmesurados / O infinito”, para
citar só a versão portuguesa. Como disse Carlos Drummond de Andrade, é
uma luta com palavras, e lutar com palavras é luta vã, mesmo assim lutamos
mal rompe a manhã. Augel (1998: 263-280) contém uma detalhada análise
da poesia de Odete Semedo. Em Augel (1999: 38-40) há uma síntese dessa
análise.
O livro No fundo do canto (Belo Horizonte: Nandyala, 2003) já foi
comentado no capítulo sobre poesia em português. Ele contém apenas 6 po-
emas em crioulo, que vão no mesmo sentido dos já comentados. Para mais
comentários sobre sua obra, e não só a poética, pode-se consultar Queiroz
(2007).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 155
Félix Sigá
“Na kalur di lansol” (no calor dos lençóis), mostra o que sente quando vê
a cama que foi cenário de noitadas de amor. Explora outrossim os embates
entre o indivíduo e o mundo, as forças da natureza, como no poema “Bentu”
(vento).
Do ponto de vista da forma, os poemas em crioulo do autor são de
difícil compreensão para os de fora. Além de um rico vocabulário, ele faz uso
de ideofones em pelo menos quatro dos dez poemas. Além disso, não são
infrequentes aliterações (okala toma sakala ku makala ‘o detrator assume o
espírito da circuncisão e do felino’), os jogos de antíteses (sibi ku ria ‘sobe e
desce’; ria ku subi ‘desce e sobe’), além de expressões tomadas de emprés-
timo ao português (D’es-ti-guardi). Enfim, o vocabulário usado por Sigá é
bastante variado e rico.
Tony Tcheka
de tarefas, pois é ela que tem que plantar e pilar arroz, vender algo na rua, e
até pescar (Tchur di Mpinte, Fatu di pilum). O tema recorre também nos me-
ninos de rua (Tchiku ten-ten), que perambulam assobiando a fim de espantar
a fome (“sibia ku djitu / djitu di panta fomi”). Esse é apenas um dos temas
sociais que preocupam Tony Tcheka. Um outro é, por exemplo, a preocu-
pação com a migração para a cidade ou para o estrangeiro (Noba di prasa,
Malam di mar). Em sua opinião, isso se dá porque “sabi i li na prasa / kasabi
i la na tabanka”, ou seja, o prazer está na cidade e o desprazer lá na aldeia. A
inconformidade com a infelicidade que prevalece no país também é um tema
presente na sua poesia, não só em português, mas também em crioulo afir-
mando que /i hora di nô busca tadju/pa tapa burgonha/ (Limárias na kuri).
O autor tem também momentos de lirismo. Um bom exemplo é o
poema “Fugu di ña korson” (fogo do meu coração), que lembra o soneto
de Camões que começa pelo verso “Amor é fogo que arde sem se ver”. Um
outro é “Flur di mi” (minha flor), no qual ele diz que o objeto de seu amor é
o /ramedi di ña korson/ de modo que pareceria brega ao ocidental de hoje,
mas muito poético em crioulo. No poema “Kerensa” (bem-querer), Tcheka
chega a confessar que diante dela “ña korson / ta tirmi / suma tambur” (meu
coração/ treme / como um tambor/ que, para nós pode não ser lá assim tão
poético mas, na cultura africana evoca tradições centenárias.
Algo que salta à vista nesses poemas é que o poeta já não fica repetindo
bordões contra a violência perpetrada pelo ex-colonizador, os grandes feitos
dos que lutaram nas Guerras de Libertação, como fizera em poemas que
saíram nas antologias anteriores, e como fizeram praticamente todos os au-
tores que nelas apareceram. Aqui o autor olha mais para frente. Nota-se que
Tcheka tem uma preocupação grande com a forma do poema. Alguns deles
lembram a “poesia concreta” dos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de
Campos, juntamente com Décio Pignatari. Tony Tcheka é um dos poetas
mais proeminentes da literatura guineense.
Além dos poemas dos diversos autores comentados, ou mencionados
acima, há muitos outros publicados esparsamente, como os que saíram em
Tcholona e outras publicações, tanto guineenses quanto estrangeiras. Além
disso, existem muitos inéditos guardados na gaveta (dos autores e/ou de
familiares). Não esqueçamos também as kantigas recolhidas da oralidade em
línguas étnicas (cf. Barros 1900), as kantigas di manjuandadi, di tina e ou-
tras. As letras de música que são verdadeiros poemas, como as de José Carlos
Schwarz, Armando Salvaterra, Aliu Bari, entre outros.
158 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
VIII. OS PROVÉRBIOS
Textos
46. Tapada altu ta tuji baka kumi fison (cerca alta impede a vaca de
comer o feijão)
Textura
iteratividade, verdades eternas (cf. Kröll, 1993: 67; Cândido, 1972). Na lin-
guagem da lógica isso seria representado pelo quantificador universal (∀).
“A terceira fórmula apresenta duas proposições, a primeira no condi-
cional e a segunda no imperativo, sendo aquela subordinada a esta” (p. 50),
como exemplificado pelos provérbios de número 19 e 21. Embora superficial-
mente diferentes, os provérbios que entram na quarta fórmula têm a mesma
estrutura lógica. Eles constam de “duas proposições, sendo a primeira subor-
dinada (substantiva subjetiva) à segunda (principal), cada uma delas com um
sujeito (semanticamente o mesmo) que corresponde ao homem em geral”:
kin (ku) ((quem (que)) (p.52), como no provérbio de número 8. A identidade
estrutural das duas fórmulas reside no fato de ambas se reduzirem à implica-
ção lógica, ou seja, se P, então Q. Tanto que o próprio provérbio 8 apresenta a
variante com si, na transcrição de alguns autores.
A quinta fórmula contém uma construção tipicamente crioula, pro-
vavelmente transferência do substrato africano (Montenegro, 1996b: 53).
Ela é expressa pela fórmula tudu X ki X, sendo a variante africana X o X. A
primeira, mais vernácula, pode ser vista nos provérbios de número 17 e 40.
A segunda pode ser vista na seguinte variante de 40: Po pudi tarda o tarda na
iagu, i ka ta bida lagartu (a parte que interessa está sublinhada).
O sexto tipo de texto proverbial criouloguineense se apresenta em for-
ma interrogativa, iniciandose pela expressão kal dia ku (que dia que? quan-
do?). O minimum paremiológico supra não contém nenhum exemplo, mas
poderíamos aduzir o de Montenegro (1996b: 55) Kal dia ku paja i juntadu
ku fugu si i ka kema ki misti? (quando é que a palha foi juntada ao fogo se
não é para se queimar?).
O sétimo tipo é constituído pela forma tônica do pronome de segunda
pessoa abo (você), ou o de primeira ami (eu), seguido de algo equivalente
à cópula, i (“ser” e derivados). O elenco mínimo acima tampouco contém
exemplos dessa construção, mas podemos tirar os seguintes de Montenegro
(1996b: 5556): (a) abo i rasa polon/ si bu na kai/ bu ka ta kai abo son (você
é raça de poilão, se você cair, não cai só) e (b) ami i rasa papaia/ N ka ta
durmi na bariga di algin (eu sou raça de mamão, não fico dormindo na bar-
riga de alguém). Notese que o primeiro contém rima.
O oitavo modelo de texto proverbial consta de duas sentenças numa
construção adversativa. Os provérbios de número 2, 34, 37 e 43 ilustramno.
Juntamente com a quinta fórmula, o presente modelo seria subjacentemente
derivado da forma lógica A e B (A e nãoB).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 171
Contexto
concreto z. Tudo que se diz do provérbio tem a ver com a relação entre as
duas situações.
Em primeiro lugar, praticamente todos os paremiólogos afirmam que
o provérbio tem um sentido metafórico, não um sentido denotativo propria-
mente dito. Ora, isso tem a ver com o significado de emprego que é atribu-
ído a ele pelo falante no ato de proferilo, ou seja, na situação de emprego.
Esse significado de emprego nunca é o mesmo que o que ele deve ter tido
na situação de origem, ou seja, o significado de origem, para retomar outra
dicotomia de Montenegro. Na situação de origem, quando foi proferido pela
primeira vez, com certeza o provérbio teve um significado denotativo. Na si-
tuação de emprego, seu significado é sempre metafórico, não propriamente
conotativo.
Para se entender isso, vejamos a música “Sentinela” de Milton Nas-
cimento, em que há um estribilho cantado por Nana Caymi, com o seguinte
conteúdo: “Meu senhor, eu não sou digna / de que visites a minha / pobre
morada. Porém se tu / o desejas, queres me visitar, / doute meu coração”.
Na verdade, esse texto não “conota” uma passagem bíblica. Pelo contrário,
ele remete diretamente (denota) a parte da liturgia da missa católica em que
o sacerdote apresenta a hóstia aos fiéis, que respondem: “Senhor, eu não
sou digno de que entreis em minha casa. Mas, dizei uma só palavra e minha
alma será salva”. Esse texto, por seu turno, remete diretamente (denota) ao
texto do evangelho em que Jesus cura o servo do centurião ver também o
momento em que Jesus ressuscita a filha de Jairo (Couto, 1983: 141150).
O último texto descreve (denota) diretamente uma situação de origem, em
que os fatos se deram concretamente. Portanto, muito do que chamamos de
“conotação” não passa de denotação indireta.
O mesmo parece poder ser dito da relação entre o significado de
origem e o significado de emprego do provérbio. Com efeito, o provérbio
é metafórico, seu significado de emprego apresenta uma relação de simi-
laridade com o de origem porque no momento em que é usado denota
uma situação (situação de emprego) que, por sua vez, denota a situação
original (situação de origem). O provérbio de número 8 descreve uma
situação original em que membros da comunidade notaram pela primeira
vez que para se obter o peixe é necessário entrar na água, o que acarreta
molhar o traseiro, e não apenas as pernas. Essa constatação pode ter sido
descrita por um dos participantes e, talvez, até mesmo repetida na hora
por outros. Com o tempo, a mesma frase foi sendo aplicada a situações
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 173
ser formulado também pelo modelo de ta, embora o verbo misti (< é mister,
‘querer’).
Muitas vezes se afirma que “os provérbios pertencem à retórica do
homem simples” (Kröll 1993: 66). Entretanto, nem todos os paremiólogos
aceitem essa tese. Pelo contrário, embora reconhecendo que muitos provér-
bios estão caindo em desuso, embora outros possam surgir, Mieder (1995)
defende a tese contrária, ou seja, a de que existe um mínimo de provérbios
que o indivíduo deve conhecer se quer ter um mínimo de cultura, letramento
(literacy). Na China, o uso de provérbios é tido como índice de nível social
alto e de cultura (Davis 1981).
Observações finais
comunidade de fala que os contém deve ter uma longa tradição. Isso vai de
encontro ao que acabamos de ver sobre a história dos crioulos. Então, por
que uma manifestação linguística de tão longa tradição é tão comum, senão
geral, em sociedades crioulas?
Essa questão é importante porque permite discutir três das hipóteses
que se têm formulado para explicar a origem dos crioulos. De acordo com
a hipótese superstratista, eles proviriam basicamente da língua coloniza-
dora, de superstrato, chamada de lexificadora pelo fato de fornecer acima
de 80% do vocabulário crioulo. Um defensor veemente dessa hipótese é
Chaudenson (1992). Uma segunda é a hipótese substratista, que defende a
tese de que o essencial das línguas crioulas se deve às línguas de substrato,
às línguas dominadas, dos povos colonizados, como defendida por, entre
outros, Alleyne (1989). A terceira é a hipótese universalista, do bioprogra-
ma, segundo a qual a gramática das línguas crioulas se deve basicamente ao
dom biológico para a língua, apanágio do ser humano (Bickerton 1981). O
maior argumento a favor dessa hipótese é o fato de línguas tão distancia-
das histórica e geograficamente entre si como o crioulo português de São
Tomé e Príncipe e o crioulo inglês do Havaí (bem como os crioulos de base
africana e outros) terem uma estrutura muito semelhante.
Diante dessas três hipóteses, poderseia perguntar se os provérbios
crioulos proviriam basicamente da língua lexificadora (português), das de
substrato ou nascem espontaneamente (hipótese universalista). Examinando
os 46 provérbios do minimum paremiológico supra, podese dizer que ape-
nas os de número 3 e 4 são indiscutivelmente de origem portuguesa. Os de
número 20, 21, 22 e 35 talvez tenham alguma influência dessa língua, mas é
provável que outras influências sejam mais fortes. Examinando os 466 textos
proverbiais de Andreoletti (s/d), a figura parece não se alterar muito. Enfim,
a origem superstratista é muito restrita.
A formação espontânea, que estaria em consonância com a hipótese
universalista, a despeito de defendida por Barros (1900) a propósito das
fábulas, é difícil de ser testada no caso dos provérbios, embora não deva ser
excluída de antemão, diante das semelhanças de meio ambiente na face da
terra. Como é que se pode saber se um provérbio como Kobra kuma riba
tras ka ta kebra kosta (número 10) surgiu espontaneamente ou não? Afinal,
o que é “surgir espontaneamente”? O simples fato de surgir um provérbio
“espontaneamente” já não seria indício de uma certa tradição em formar
provérbios? No caso de nossa língua, parece que a falamos espontanea e na-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 177
turalmente. Porém, não devemos nos esquecer de que levamos muitos anos
para aprendê-la e que, se tivéssemos nascido em outro país poderíamos estar
falando a língua local com a mesma “naturalidade”.
Diante do que ficou dito nos dois últimos parágrafos, parece inevitável
a conclusão de que a maioria dos provérbios criouloguineenses tem suas raí-
zes na tradição oesteafricana. Sabemos que em praticamente todas as línguas
africanas os provérbios são amplamente usados. Temos dados sobre os do
mandinga e os do balanta, mas em D’Aby (1984) pode se ver que eles são
comuns em toda a Costa do Marfim. Em suma, a hipótese que parece mais
consentânea com a existência e origem dos provérbios criouloguineenses é a
substratista. Trocado em miúdos, eles seriam uma continuação da tradição
africana (Trajano Filho, 1994).
178 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
IX. AS ADIVINHAS
Introdução
As adivinhas crioulo-guineenses
que apenas nas 36 adivinhas de Bull (1989), a palavra ocorreu 6 vezes sob a
forma kume ‘comer’, 2 vezes sob a forma ñeme ‘comer’ e 2 vezes sob a for-
ma kumida. Isso perfaz um total de 10 ocorrências. Nenhum outro radical
verbal chegou sequer à casa das quatro ocorrências. Na ecologia guineense,
o ato de comer é um dos mais salientes.
Além das 10 palavras ligadas ao radical “comer”, há muitas outras
do mesmo campo semântico. Algumas delas são kujer ‘colher’, arus ‘arroz’,
bobra ‘abóbora’, mandioka ‘mandioca’, liti ‘leite’, mankara ‘amendoim’, mel
e sal. Além disso, ocorrem termos relacionados com a produção de alimento,
tais como ansol ‘anzol’, bulaña ‘alagado para se plantar arroz’, lala ‘para
arroz de sequeiro’. Ao lado deles temos bibi ‘beber’, farta ‘fartar-se’ e kusiña
‘cozinhar’. É um ambiente em que predomina claramente a questão fome/
alimentação.
Vejamos a adivinha (3), que também tangencia a questão.
(8) N tene un kasa garandi; i ten tetu, ma i ka ten firkija / seu ‘eu
tenho uma casa grande, que tem teto, mas não tem esteios (“forquilha”) /
abóbada celeste’.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 185
Observações finais
X. A ANTROPONÍMIA
Cacá < Carlos, Caco < Carlos, Dudu < Edu < Eduardo, Isa <Isa-
bel/Isabela, Bia < Beatriz, Jô < Joana, Bela < Isabela, Nanda < Fernanda,
Bel < Isabel, Tonho < Antônio, Zé < José, Chico < Francisco
Abel Jassi (Amílcar Cabral), Nino Vieira (João Bernardo Vieira), Tony
Tcheka (Antônio Soares Lopes Jr.), Tony Davyes (Antônio Maria Davyes)
Mamadú Mané, Iaia Camará, Efe Cá, Caramó Sanussi Cassamá, Ma-
madú Djule Djaló
ressaltar que na época colonial quem não tivesse o primeiro prenome portu-
guês não podia ir à escola. Era uma das exigências para ser considerado “ci-
vilizado”. Daí a utilização de prenomes portugueses, muitas vezes seguidos
de um segundo da etnia.
Nomes só portugueses: 58
Nomes só étnicos: 30
Nomes mistos: 20
Nomes estrangeiros: 7
As siglas são tão comuns no país que Jean-Michel Massa incluiu várias
dezenas delas em seu Dictionnaire bilingue portugais-français Guinée-Bissau
vol. I (Rennes: GDR 817 - EDPAL / UHB, 1996). Quando conversamos
com os guineenses, temos a impressão de que eles consideram essas abre-
viações como verdadeiras palavras, o que daria uma certa razão a Massa.
Voltando aos apelidos propriamente ditos, existem também aqueles
que parecem hipocorísticos na forma fonológica, mas que não são tirados
do nome próprio, portanto, não são hipocorísticos propriamente ditos.
Já vimos que não é incomum os pais darem nomes aos filhos de acor-
do com as circunstâncias de seu nascimento e/ou revelando o que sentem
diante do nascimento ou, então, nomes que revelem alguma característica
da criança. Isso pode dar-se em qualquer tipo de apelido crioulo-guineense,
quer seja nomi de kassa, nomi de torosa ou não. Eis alguns exemplos, com a
explicação da razão de seu surgimento:
Matempu = nascido em “mau tempo”, Media = nascido ao “meio
dia”, Mortu = a morte (criança que não se quer que morra), Muridu =
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 197
morto (criança que já deveria estar morta, “morrida”, por ser indesejada),
Ndingui = estou sozinho (filho único), Nhelém = arroz miúdo (criança
muito miúda), Npanta = estou espantada (a mãe fica assim porque já era
velha e não esperava mais filho), Bimparbai = veio para ir (criança que veio
mas deve partir, por não ser desejada), Sinta = sente-se (fique quieto, não
vá embora [=morra] como seus irmãos), Ntonabin = eu tornei a vir (um
filho havia morrido, mas naceu outro)
apelidos quantidade
Dissílabos 60
Trissílabos 20
Monossílabos 9
Tetrassílabos 8
Pentassílabos 3
Tudo isso mostra mais uma vez que a tendência geral na língua, a pa-
lavra ótima (minimal word) é a dissilábica, sobretudo quando há uma única
consoante antes da vogal. Isso pode ser visto no quadro abaixo, que mostra
que quanto mais consoantes as sílabas tiverem, menos frequente é o tipo de
palavra que as contém.
não revela. Nos apelidos não houve nenhum caso de mais de uma consoante
antes da vogal. No vocabulário geral guineense, porém, eles ocorrem com
muita frequência, como nas palavras pratu (prato), prasa (praça), padri (pa-
dre) etc. Como mostrou a teoria fonológica, a posição antes da vogal não
conta para a prosódia da palavra.
Em uma análise mais microscópica, nota-se que de 34 padrões CV.CV
(dissílabos) guineenses, 8 (23,52%) têm a mesma vogal nas duas sílabas,
como em Didi e Tetê. Por outras palavras, pelo menos um quarto desse
padrão constitui-se de sílaba reduplicada, em consonância com as consta-
tações de Jakobson mencionadas acima. Sílabas mais complexas também se
reduplicam, como Jonjon (< João) e Kinkin (< Joaquim), formas nas quais
há uma consoante nasal após a vogal. Há também casos de reduplicações
parciais, tais como Lalau (<Ladislau), em que, além da sílaba reduplicada
(la.la), há um apêndice (-u). Pode acontecer também de apenas a consoante
se reduplicar, como é o caso de Joje (Jorge) e Nino. Por fim, há apelidos em
que apenas a vogal se reduplica, como em Duku.
Tanto nos hipocorísticos quanto no vocabulário geral guineense, se
uma palavra tem três sílabas, ou mais, ela deve ser preferencialmente a sílaba
ótima, não-marcada, simples (CV), como em Lotiña e Kadogo e Sakala,
embora no vocabulário geral guineense o padrão CVC.CVC.CV tenha ul-
trapassado de um o padrão CV.CV.CVC, fato que pode ser casual e que,
portanto, talvez possa ser revertido se contarmos todas as palavras da língua.
Hipocorísticos tetrassilábicos no guineense são sempre resultado da
reduplicação de um dissílabo. No texto de Jorge Ampa, mencionado acima,
temos, entre outros, Noiba-Noibu, reduplicação de “noiva”); Seku-Seku, de
Seku, “seco”, no sentido de magro. Outra possibilidade são os compostos de
dois dissílabos (Dona-Kasa, Abel-Jasi). A única exceção que encontramos é
Iciana, cujo esquema silábico é V.CV.V.CV.
Tudo que acaba de ser dito sobre as estratégias crioulas de dar nome na
Guiné-Bissau é uma continuação da tradição africana. Baseados em um in-
quérito realizado em 1945, entre os grupos étnicos do país, António Carreira
e Fernando Quintino publicaram o volumoso livro aqui citado como Carreira
& Quintino (1964). Eles informam que o número de antropônimos recolhidos
foi de 9.516. Os bijagós foram os mais contemplados na pesquisa. Informam
ainda que 179 dos nomes eram de povos islamizados, portanto, de origem árabe
(mandinga 62; fula 61; nalu 38; banhum 8; balanta-mane 6; beafada 2; cassanga
2). Entre os nomes temos: a) Abdulai (< Abdallah ou Abdel), com as variantes
202 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Abdu, Abdul, Abudu, Adu; b) Alfá (<Al-fahim ‘o sábio, sagaz’); c) Ali (< Aly);
d) Amadu (< Ahmed, Mammad ou Mohammed) e as variantes Amadi, Dudu,
Mã, Mama, Mamadi, Mama-adjã, Mamadu, Mama-ndim, Môdi, MOdi-bô,
Môdu, Môri; e) Ansumane (< Amina ~ Amine ~Ami); f) Bàkar (Abu-Bakr),
com as variantes Kàkari, Bôkar, Bôkardê, Bubakar, Bukar, Bukari; g) Braima (<
Ibrahim), variante Ibraima; h) Djibril (< Jabril ‘Gabriel’); i) Fatumata (Fathma,
filha do profeta); Maimuna (< Lemun ‘limão’ ou Mariama + Mun ou Muna);
j) Mariama (< Miriem ou Myriam ou Yama).
Todos os grupos animistas dão nomes de acordo com as circuns-
tâncias de nascimento da criança ou, então, de acordo com características
físicas. Quem nascia com “cabeça grande” podia ser chamado de Ukom
(felupe), Kampuka (pepel), Monku (balanta), Kotompó (bijagó). Uma pes-
soa de “olhos grandes” poderia ser Mekêsse (manjaco), Nkotésse (pepel).
Era comum haver nomes diferentes para homens e mulheres. Assim, em
Bijagó havia, para homens, Lôta ‘beiço comprido’, Kotonô ‘beiçolas’, Mômo
‘barbudo’ e Niberiá ‘orelhas quebradas’. Como nomes femininos tínhamos
Emuná ‘queixo grosso’, Kampui ‘boca larga’, Kumôpó ‘boca torta’, Néssamê
‘queixo chato’, Pissé ‘nariz achatado’.
Havia nomes tirados do português também. Em manjaco Djôssim é
adaptação de Joãozinho’’; Gassipar de ‘Gaspar’; Kalmente, ‘Clemente’ e
Mendi de ‘Mendes’. Os que mais adotavam nomes portugueses eram os
manjacos e os brames. Os povos islamizados (mandingas, fulas etc.) tinham
uma resistência muito grande a adotá-los. Como era de se esperar, entre eles
predominam, no caso de nomes estrangeiros, nomes de origem árabe.
A pesquisa revelou também que havia algumas estratégias para se
adotarem sobrenomes. Entre algumas etnias, podem ocorrer nomes clâ-
nicos que desempenham a função de sobrenome e até de patronímico,
como entre os pepéis. Por exemplo, Nsumba Kumba indica que Nsumba
é filho de Kumba, ou da morança de Kumba. Às vezes, são os apelidos
que exercem essa função, como em Betunga Siuli, ou seja, o Betunga que
tem orelhas grandes (Siuli), entre os brames. É muito comum também os
nomes étnicos serem usados como sobrenomes, como ocorre com amerín-
dios brasileiros, a exemplo dos conhecidos Mário Juruna e Marcos Terena,
entre outros.
Outra estratégia bastante usual para se formarem sobrenomes é o uso
do nome de famílias nobres, fidalgas, como os nomes dos régulos. Assim, e
para nos atermos apenas aos que ocorrem na literatura atual, temos Baldé
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 203
(fula, nalu), Embaló (fula), Djaló (fula), Mane (mandinga), Kamará (man-
dinga, balanda-mane, nalu), Silá (jakanka, sarakolé, mandinga), Sissoko
(fula?), Dabó (mandinga, nalu), Djassi (mandinga, banhun, nalu).
Se um sobrenome não for suficiente, acrescenta-se o nome do chefe
da morança. Entre os bijagós, registrou-se Tchufa Embunde Embana, que
quer dizer Tchufa, filho de Embune, morador da morança de Embana. Se
um quarto nome se fizer necessário, pode-se usar o nome do povoado. No
caso, temos Tchufa Embunde Embana Gã-Djola, ou seja, o Tchufa Embune
Embana do povoado de Gã-Djola. No caso, gã equivale aproximadamente
a “terra dos”, tendo sido adotada no crioulo como Tchon (< chão, terra),
como em Tchon di Pepel, bairro de Bissau.
Existe ainda o que Carreira & Quintino (1964: 407, 408) chamaram
de “nomes de guerra”, aproximadamente o nosso pseudônimo, que se tor-
naram mais usados no último quartel do século XIX, devido ao desenvol-
vimento econômico. Entendia-se como nome de guerra “o nome que em
certas circunstâncias aparece [...] substituindo o nome próprio”. Diferente-
mente do apelido, “é o próprio titular quem o escolhe, para melhor se iden-
tificar em determinado meio e, em alguns casos, para se elevar no conceito
dos demais”. Acrescentam que “os nomes de guerra são, portanto, os nomes
em uso nos locais de trabalho, adoptados pelos estivadores, pelos tripulan-
tes de embarcações de cabotagem e pelos serventes dos operários em obras
de construção civil. Não substituem os seus nomes tradicionais, senão nas
relações contraídas em ambiente de trabalho, ou mesmo nas relações com a
actividade desenvolvida nos centros urbanos”.
A maior parte dos nomes de guerra é portuguesa: Abílio Lopes, Agos-
tinho Sá, José de Almeida, Pedro Costa. Outros, mistos: Alberto Cá, Francis-
co Nanque, Paulo Nhaga. Outra alternativa é a combinação de nome portu-
guês com nome de etnia: Agostinho Papel, António Balanta, Barbosa Papel.
Nome étnico mais sobrenome português: Ochoco Sá, Papel da Silva, Sanca
Mendonça.
Algumas das fontes de inspiração para esses “nomes de guerra” po-
diam ser nomes de firmas comerciais, de personalidades, de navios da frota
mercante portuguesa e de topônimos. Entre os últimos, poderíamos mencio-
nar António Bandê, António Biombo, António Prábis e António Belém.
Na cultura da Guiné-Bissau, os homônimos (xarás) se consideram
sujeitos ao mesmo destino. Acontecendo algum mal a um deles, o outro
frequentemente muda de nome. Isso é o que se tem chamado de magia da
204 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Revistas em quadrinho
Teatro e cinema
Música
É bem provável que uma das facetas mais importantes da cultura gui-
neense (e da africana em geral) seja a música, com tudo o que a rodeia
como, por exemplo, o ritmo, a dança, os bailes, os instrumentos etc. Ela
faz parte de uma longa tradição. Por exemplo, ao falar das narrativas orais
(cap. VI), vimos que em algumas delas intervém um canto, amiúde por um
pássaro, dando uma mensagem vinda de longe e envolta em mistério. O fato
é que se trata de versos cantados.
Como informa Aliu Bari em entrevista, o djidiu (jogral) Malan Cama-
leon é o primeiro a cantar em crioulo, de 1945 a 1950. Os djidius se mani-
festam na melodia conhecida como gumbé. Alguns deles ficaram famosos na
Guiné-Bissau. Além de Camaleon, temos Djafalu, Maundé, Amizade Gomes
e Malé (Rosa, 1993: 81). Temos também as kantiga di manjuandadi, as
210 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
kantiga di ditu, as kantiga di tina etc. Odete Semedo (Tcholona 6-7, p. 5-9,
1996) entrevista Tia Antera sobre as kantiga di mandjuandadi. Uma delas é
“Iaian”, uma das mais antigas, para noivas. Há-as também para amigo(a)s,
kantigas di ditu (para os inimigos), para namorados, maridos que se com-
portam bem, para os que se comportam mal, kantiga para apaziguar etc.
“Lope i Balancia”, da esposa para a cunhada e o marido, é resposta a um
maldizer. Kantiga pode ser bem curta, como esta para Nhu Amâncio, amigo
de Tia Antera: “Lope di kordon / Rodian kordon” (“Lope de cordão / enrole
em mim cordão”). A kantiga deve ter duplo sentido, um ar de mistério. Há
uma da manjuandade, “Pé di Kakri”, muito antiga, que fala de uma moça
que atravessa o mar para encontrar o amado, não importando se morre no
caminho, já mencionada no capítulo VII.
No que tange à música moderna, Félix Sigá informa, no artigo “Gui-
neidade e diapasão: música moderna guineense” (Tcholona n. 1, p. 18-20
e n. 2/3, p. 8-11, 15 1994), que a primeira gravação guineense foi um dis-
co de 45 rotações de 1973, do grupo Djorçon, produzido por José Carlos
Schwarz, com as músicas “N ba Bolama” (eu fui a Bolama) e “Nna” (ma-
mãe), a segunda escrita por Armando Salvaterra, sendo as músicas inter-
pretadas por Ernesto Dabó, que acabara de deixar o conjunto Os Náuticos,
da marinha portuguesa. O segundo disco, um LP do Cobiana Djazz (cujo
mentor é José Carlos Schwarz) saiu também em Portugal, em 1977, com 18
músicas, exaltando a liberdade e a unidade em torno do partido. Nos termos
de Sigá, essa formação “foi não só a fundadora da música moderna guine-
ense como também a maior orquestra de todos os tempos do país”. De 1972
a 1974, essa música levou “a uma adesão da juventude de Bissau em massa
à causa da independência”. A tal ponto que seus componentes (José Carlos,
Aliu Bari e Duco) foram presos e levados para a Ilha das Galinhas, o que
motivou a canção homônima de José Carlos “Djiu di Galinha”. Procurou-se
forjar um “estilo musical crioulo assumível como nacional”. Após a inde-
pendência, o Cobi (como era chamado carinhosamente) passou a ser uma
espécie de grupo oficial do governo.
O terceiro disco guineense, também de José Carlos Schwarz e com
participação de Miriam Makeba, foi divulgado em 1978, um ano após a
morte de Zé Carlos. Denunciavam-se os desvios ideológicos dos novos man-
datários do país, o nepotismo e a corrupção, diante da miséria do povo. Nos
capítulos V e VII, já falamos sobre a obra desse autor. No entanto, vale a
pena lembrar que muitas de suas canções (letra e música) marcaram época
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 211
percussão não violenta, suave. Ela notou também que quase sempre há um
responsório que, como já salientamos no capítulo VII, é característica da
música africana. Por fim, Dias notou que esse ritmo africano lembra muito
a pulsação humana. O responso imprime uma interatividade nessa música.
Como vimos lembrando ao longo deste livro, o africano em geral é altamente
interativo e apreciador do ritmo. Nesse sentido, parece que o estribilho, que
também é muito comum nas canções, teria a mesma função. Até mesmo nas
narrativas orais ele ocorre em muitas kantigas com o fito de salientar deter-
minada mensagem de um modo um tanto mítico, frequentemente cantada
por um pássaro, como se pode ver no capítulo VI. Aliás, essas narrativas
apresentam um “ritmo” muito parecido com o das canções.
Nas “letras” das canções, repetem-se muitas estrofes e muitos ver-
sos. Alguns inclusive várias vezes, normalmente pelo próprio cantor, mas
também por um coro. Como está comentado mais pormenorizadamente no
capítulo sobre as narrativas orais, essas repetições têm a ver com a visão
de mundo do africano em geral. Para ele o mais importante é a fruição, é a
continuidade de algo que é agradável, não um happy end. Se a atividade está
sendo prazerosa, pode continuar ad libitum.
O carnaval, introduzido pelos padres e posteriormente estendido às
etnias, segundo alguns autores é hoje a maior manifestação popular do país,
com influências do carnaval brasileiro. Também nele há canções. O livro de
Mariana Ferreira, Sons da tradição (Radda Barnen/SNV, s/d), registra a
música das etnias manjaco, balanta-brassa e bijagó. Não só registra, com
pautas, mas analisa. Mostra costumes como a naturalidade do sexo entre
jovens bijagós, o surpreendente casamento de mulheres de meia idade com
homens mais jovens. Esse livro está resenhado por Arlinda Nunes (Sons da
tradição - um livro de Mariana Ferreira, em Tcholona 5, p. 19 e 23, 1996).
Manjuandade
a sua crioulidade. Não é por acaso que uma das manjuandades se chama
justamente Adjagassi, da palavra crioula djagasi (<wolof/bainuk) que signi-
fica justamente mescla. Dessa manjuandade participam mulheres de várias
etnias, ou seja, pepel, bijagó, mancanha e balanta, todas animistas. Às vezes
se usam outras denominações para as manjuandades, tais como kolegason
(ao pé da letra “colegação”) e grupu di kamaradia (grupo de amizade). No
que segue, baseamo-nos sobretudo em Trajano Filho (1998: 314-405) e em
(Domingues, 2000: 415-495).
No final da década de 90, Domingues constatou que no Ministério da
Educação, Cultura, Juventude e Desporto estavam registradas 15 manjuan-
dades. Eram elas: Esperança di Bandim, Bambaram, Kimbum, Mumbessa,
Escama, Batelé, Kit Mom, Nô Djunta Mon, Sabi-Sim, Corta Nansi, Netus
di Kansalá, Pé di Um Chu, Djamon Diata, Bolama Faró e Abre Os Olhos.
Em 1987/8, Wilson Trajano Filho havia registrado 20, ou seja, Kafriela,
Pe di Mesa, Patoma, Speransa di Bandin, Kombe Fina, Bambaran, Ban-
taba di Amisadi, Pe di Moxu, Flor di Harmonia, Kasaká, Mumbesa, Finka
Pe, Funcionalismo, Barata Feia, Kasav di Renu, Kasav di Bula, Kimbun e
Bolamensa, além de Besa Mar (dos manjacos) e Raízes di Gumbé (dos gui-
neenses residentes em Portugal). Só quatro aparecem na lista de 1999 de
Domingues, ou seja, Speransa di Bandin, Mumbesa, Kimbun e Bambaran,
o que mostra o caráter dinâmico desse tipo de associação. Os dois autores
mencionam outras manjuandades no decorrer de seus ensaios. Por exemplo,
Domingues menciona ainda Alamuta, Bodisano Nó Vive (deixe-nos viver),
Netos di Gumbé e outras. Tia Antera mencionou as seguintes, para Odete
Semedo: Kakri Sinhu, Pé di Kakri (já extintas), Udju Nobu, Melgas-No-
bu, Kapar-Tudu, Kombe Fina, Koral Fina, Pé di Kombe, Pé di Mesa, Pé di
Banku, Feretcha, Pé di Muchu, Ramu, Kode di Ramu, todas de Bissau. A Pé
di Mesa bissauense tem a equivalente Pé di Banku em Bolama; a Pé di Banku
de Bissau é chamada Ris em Bolama; a Ramu de Bissau é Ris em Bolama.
Tia Antera acrescentou que as manjuandades têm uma rainha, um rei, uma
meirinha, um meirinho, um cordeiro, ajudantes e soldados.
Segundo Domingues, as manjuandades que consultou tinham de um
a 23 anos de existência. Trajano Filho fala de algumas cuja existência recu-
ava a quatro gerações. Há autores que acham que elas nasceram em data
relativamente recente. Para outros, elas teriam surgido no final do século
XIX. Seja lá como for, elas dão continuidade a padrões culturais africanos,
mesmo que crioulizados.
214 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Gãs
Tchur
em mentes dura o mantimento; todo aquele ano está a cova do defunto por
quem se fez o funeral coberta com um pano branco, e no cabo do ano torna
a haver outra junta de mantimentos e tornam a renovar o choro, mas dura
poucos dias, e no cabo deles fazem grandes festas de bailes, ao som de seus
atambores e atabales: chamam a isso tirar o dó”. De Francisco de Lemos
Coelho (Duas descrições seiscentistas da Guiné, 1669), os autores reprodu-
zem o pequeno trecho em que fala da cerimônia do tchur entre os bijagós, ou
seja, “há muita vaccaria como em todas [as ilhas bijagós], de que elles fazem
muita estima para matarem nos seus choros”. Essas duas citações mostram
que a tradição do tchur tem uma longa história na cultura guineense, em
particular, e na africana, em geral.
Rumores
di kriason tem a ver com algo muito comum na sociedade africana. Crianças
não bem-vindas (como os filhos de adolescentes que não os desejavam), são
amiúde maltratadas. Daí a surgirem rumores (boatos) sobre casos concretos
de crianças que até foram mortas por quem cuida delas é um pulo. O tercei-
ro tipo de rumor mencionado pode ser exemplificado com alguns heróis das
guerras de libertação que se tornavam invisíveis e invulneráveis. Os inimigos
não os viam, eles não eram atingidos pelas balas adversárias.
Um dos informantes disse a Hildo Couto que ouvira dizer que os fe-
lupes (uma das etnias guineenses) matavam os estranhos que fossem até eles
e guardavam seus crânios pregados nas paredes, como troféus. Em seguida,
indagadas outras pessoas sobre o fato, várias delas asseveraram que também
ouviram dizer que isso acontecia, mas que não podiam garantir se era verda-
de ou não. Quando o pesquisador lhes perguntava se poderiam ir com ele a
uma tabanca (aldeia) felupe, eles simplesmente esboçavam um sorriso, sem
dizer sim nem não. Isso levou-o a inserir os rumores no ar de mistério que os
africanos gostam de cultivar. Pode ser até um certo exibicionismo (ronku). Os
africanos parecem se comprazer em manter esse mistério, sobretudo frente a
um estrangeiro, com o intuito de mostrar que, embora os de fora sejam mais
poderosos do que eles economicamente, eles têm mistérios que quem não é de
sua cultura não consegue entender. É algo só deles, os africanos.
Irã
Djombo” e “Cobiana Djazz” foi tirado daí. Os irãs estão associados a muitas
crenças guineenses. Para mais informações, pode-se consultar o artigo de
Carlos Vaz “Os irans de Bassarel” (Tcholona 2/3.16-19, 1994). Como se
pode ver nesse texto, às vezes os irãs são representados em esculturas, que
podiam ser estacas, forquilhas e, mais recentemente, figuras presumivelmen-
te de antepassados mortos esculpidas em madeira.
Há diversas outras manifestações da cultura guineense. Benjamim Pin-
to Bull lembra ainda a questão das alcunhas (apelidos), estudadas no capítulo
X, as superstições, as fórmulas invocatórias, os esconjuros, as cerimônias ma-
trimoniais, as de batizados (entre os católicos) e as de rapa (rapar) entre os
muçulmanos, as viagens e a hospitalidade para com o viajante, entre outras,
além dos provérbios, das adivinhas e das narrativas orais. Pode acontecer de
as pessoas evitarem casar-se em agosto, pois agustu, gustu o disgustu (agos-
to é mês de desgosto). Quando alguém espirra (algin ki spira na metadi di
kombersa), o outro pode dizer N ka dau tabaku ou N ka dau pitada, ou seja,
não te dei uma pitada. Nunca se deve chamar alguém durante a noite em voz
alta, algin ka ta tchomadu di noti, pois os espíritos malignos podem ouvir e
aparecer. Muitas crenças estão fixadas em provérbios. Assim, bari omi pe, i ka
ta otcha minjer, ou seja, se se varrer os pés de um homem ele não encontrará
mulher (para casar). Arrumar as coisas com a mão esquerda, rakada ku mon
skerdu, pode trazer azar. Nunca se deve consertar roupa no corpo, ropa na
kurpu ka ta kusidu, ka ta pergadu boton, a não ser nos defuntos.
Quando se recebe um hóspede (ospri) na hora da refeição, ele é convi-
dado para sentar-se à mesa e partilhar da comida porque bianda na kaleron
ka ten dunu (comida que está na panela não tem dono). O ospri deve ser
sempre bem tratado, pois ospri ki ta kumpu, ospri ki ta dana (é o hóspede
que faz a boa ou a má fama de uma casa). Além disso, kil ki bu mostral, el
ki na bai konta (aquilo que se mostra ao hóspede é o que ele vai contar aos
outros).
Quando comparamos todas essas manifestações da cultura guineen-
se, verificamos que confirmam praticamente todos os princípios subjacentes
às que foram analisadas em capítulos anteriores. Quase toda atividade na
Guiné-Bissau é interativa. A linguagem é usada basicamente em sua função
fática. Predomina o desejo de comunhão, de manter a coesão social, de en-
fatizar a convivência, a conviviality de Trajano Filho (1998). É o gosto pela
fruição do momento, pelo ritmo, pela música, e quanto mais durar melhor.
Tudo isso de forma grupal, compartilhada, comunial.
222 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
rwin e Marx, para mencionar apenas dois dos mais importantes autores.
Até na natureza está provado que as espécies que mais se adaptam, ou seja,
cooperam, sobrevivem mais do que as que apenas competem por meios de
sobrevivência. Alguns autores falam em coordenação versus subordinação,
respectivamente, mas dá na mesma.
A comunidade de fala da Guiné-Bissau pode ser representada como se
vê na figura 1, retomando o que se viu no quadro 4 do capítulo I.
Fig. 1
gua nativa acrioulada (NA). Isso se dá muito no nível lexical: são inúmeros
os empréstimos que elas fazem ao crioulo.
Os círculos da figura 1 podem ser lidos também do ponto de vista da
facilidade/dificuldade de intercompreensão, ou seja, a interação que permite
considerar a Guiné-Bissau como um país. Talvez só entre PL e LN não exista
nenhuma possibilidade de entendimento. Por exemplo, um português que só
conheça sua língua e um fula que só conheça a sua pertencem a ecossiste-
mas linguísticos excludentes. Entre falantes de PA e de CA o entendimento
se dá sem grandes problemas. O mesmo se dá entre CT e CA. Quanto a CN,
comunica-se melhor com CT e, com mais dificuldades, com CA. LN tam-
bém se comunica com CN, uma vez que compartilham a cultura africana. Às
vezes até mesmo entre um falante de LN e um falante de PA poderia haver
alguma chance de uma comunicação por mais precária que seja, no caso, via
CT. Entre falantes de CN e de PA as chances de entendimento são maiores,
uma vez que os espectros linguísticos dos dois se interseccionam com CA e
CT. Além disso, a maioria dos guineenses tem pelo menos um domínio pas-
sivo do crioulo. Tudo isso faculta a intercomunicação.
Aliás, seria interessante lembrar que um popular do mercado do Ban-
dim certa feita disse a que “lingua i raça” (a língua é o povo). A despeito
disso, grande parte dos guineenses consideram o crioulo como “lingu di nin-
gin” (língua de ninguém), portanto, nenhuma etnia tem resistência a ele. Por
esse motivo, podemos inverter a fórmula para “kriol i lingu ku tudu gintis ta
papia na Gine”, ou seja, o crioulo é a língua que todos os guineenses falam.
Alguns observadores alegam que haveria pouco contato interlinguís-
tico na Guiné-Bissau, que cada indivíduo interagiria mais com membros de
seu próprio grupo. Porém, pelo menos nas “praças” (cidades, vilas, povo-
ados) e, sobretudo, nos mercados, há uma intensa interação interlinguís-
tica. De modo que poderíamos retomar o conceito de mercado linguístico
de Bourdieu (1984). O autor refere-se mais a “mercados” intralinguísticos,
mas, se partirmos da ampliação que Calvet (1987) fez dele para abranger
os “mercados” interlinguísticos, a afirmação de que não há contatos (ou de
que há poucos contatos) dessa natureza deixa de fazer sentido. Na própria
capital, Bissau, há pelo menos dois mercados: o Central e o conhecido como
Bandim. O segundo se dá ao ar livre e abrange um bairro inteiro. Nele há
um contato de povos e línguas das mais diversas procedências. A língua que
permite a comunicação entre todos é o crioulo, em suas diversas variedades,
como as que vimos na figura 1. Aliás, desde priscas eras os mercados têm
228 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
uma urgência, definindo-se por ele, através dele, a identidade nacional”. Isso
significa que, a despeito de ter sido delimitado pela violência, o território da
Guiné-Bissau é um fato consumado, uma realidade inevitável. Portanto, os
guineenses devem tentar entender-se, formando uma “nação”, mesmo que
plural, cuja unidade só é possível ser pensada no contexto da diversidade.
Na ecolinguística, tudo isso tem uma explicação bastante natural. Di-
ferentemente do linguista gerativista norte-americano Steven Pinker, que
defende a tese de que há um “instinto da linguagem”, o que na realidade
existe é o instinto da comunicação. Com efeito, comunicação é interação,
e interação existe em qualquer lugar e em qualquer tempo. Ela sim, é uni-
versal, uma vez que existe não só no nível social (linguístico, no caso), que
é a comunicação propriamente dita. Em termos evolucionistas, a interação
existe não apenas no nível do superorgânico, que é o social. No nível do or-
gânico, biológico, dos organismos vivos, ela é a base de tudo. Até mesmo no
nível do inorgânico, do mineral, ela está presente, aí incluso o subatômico.
Nesse nível, ela se manifesta sob a forma de energia. Por isso, em vez de
“universais da linguagem”, o que há são universais da comunicação.
Aplicando esses princípios à questão guineense, pode-se dizer que
o espaço (território) é condição necessária e suficiente para que aja inte-
ração. No caso específico, os guineenses de diversas etnias, com línguas
e culturas relativamente diferentes, foram delimitados no mesmo espaço
físico, no qual têm que conviver da melhor maneira possível. Quaisquer
seres que se veem juntos no mesmo espaço interagem. No caso de seres
vivos humanos, a interação mais comum é a linguística. Só que para que a
comunicação linguística seja eficaz é necessário que haja uma linguagem
comum, como sabemos desde pelo menos a teoria da comunicação for-
mulada pelos engenheiros Claude Shannon e Warren Weaver. No espaço
da Guiné-Bissau não havia essa linguagem comum única, mas uma plu-
ralidade de mais de 15 línguas diferentes. Como a comunicação tinha que
se dar de alguma forma, a criatividade dos guineenses fez do limão uma
limonada, ou seja, formou uma língua a partir de uma mistura da língua
do colonizador com as suas próprias línguas. Aí surgiu o crioulo, que é a
única língua que une o país e que, de acordo com o próprio líder do movi-
mento de libertação do país, Amílcar Cabral, é uma espécie de ponte para
se chegar à língua do ex-colonizador, o português. Mas, o mais importante
é que o crioulo é a língua de unidade nacional. É principalmente ele que faz
do país Guiné-Bissau uma comunidade de fala. Para mais detalhes sobre
230 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
fala, de certa maneira já estávamos tocando numa das questões que mais
preocupam os governantes e a intelectualidade não só guineense, mas de
toda a África recém-libertada. Os colonizadores europeus criaram um pro-
blema para os africanos (países heterogêneos étnica e linguisticamente, com
fronteiras estabelecidas a partir exclusivamente dos interesses europeus).
Coube aos africanos encontrar uma solução para esse problema. No caso
específico da Guiné-Bissau, além de ter tido sua configuração atual deter-
minada pela lógica colonial, isto é, em função dos interesses portugueses na
região, era difícil manter a integridade do país (a antiga Guiné Portuguesa),
tanto frente aos régulos locais, que sempre faziam guerra aos portugueses
e/ou exigiam deles algum tributo, isto é, a “daxa” (do port. taxa), quanto
frente aos concorrentes europeus, como a Inglaterra, a Holanda e a França.
Esta última acabou abocanhando a Casamansa em 1886, apesar do empe-
nho pessoal do crioulo lusitanizado Honório Pereira Barreto para que isso
não acontecesse.
O sociólogo Carlos Lopes lança a pergunta: “Existe ou não uma na-
ção na Guiné-Bissau?”, embora não lhe dando uma resposta direta. A única
afirmação concreta dele é a de que “o movimento de libertação nacional
lhe introduziu um critério novo e pertinente, a vontade política colectiva de
construir uma nação” (Lopes 1988: 164). O tema “construção da nação” é
tão importante para os africanos que em 1986 se realizou em Bissau um co-
lóquio precisamente sobre ele, no caso só sobre os países africanos de língua
oficial portuguesa (PALOP). Posteriormente as atas foram publicadas sob o
título de A Construção da Nação em África (Bissau: INEP, 1988), nas quais
se encontra o texto de Lopes. Até hoje o discurso oficial enfatiza essa ques-
tão. Enfim, autoridades governamentais e intelectualidade estão engajadas
hoje como ontem em forjar a unidade nacional no conjunto heteróclito que
é a Guiné-Bissau.
A nosso ver, toda essa discussão não chega a bom termo porque des-
de as propostas de Cabral até hoje não tiveram as autoridades guineenses
coragem suficiente para tomar medidas radicais (que vão à raiz do proble-
ma), isto é, propostas como a do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Segundo
ele, dever-se-ia adotar o crioulo como língua oficial do ensino no país. O
português seria apenas uma língua estrangeira privilegiada. Pelo contrário,
todo o ensino escolar guineense se dá em português, do primeiro ao último
ano, ou seja, o décimo primeiro. O governo investe muito mais no portu-
guês do que nele. Aliás, no crioulo ele não investe absolutamente nada. O
232 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
descreve situações imaginárias. Pode até usar dados desses mundos, mas
seu objetivo é concatenar palavras de modo a produzir efeitos agradáveis e/
ou surpreendentes no leitor. O poeta pode combinar ideias a seu belprazer,
em consonância com o dito latino de que poetis et pictoribus omnia licet (aos
poetas e aos pintores tudo é permitido).
Por fim, temos a dissertação (6), cujo objetivo não é descrever esta-
dos de coisas, narrar eventos reais (narração) ou imaginários (ficção) nem
combinar ideias tiradas dos mundos reais e/ou imaginários para efeitos es-
téticos (poesia), mas simplesmente concatenar ideias, de modo a produzir
um arrazoado, como comprovar uma tese, por exemplo. Um bom exemplo
são os silogismos, como “Todos os homens são mortais; Sócrates é homem,
logo, é mortal”. Mas, os textos tipicamente dissertativos com que lidamos
são os filosóficos.
A descrição lembra o signo indicial de Peirce, em que há uma ligação
real entre o falar e o de que se fala. Normalmente não há um distanciamento
muito grande entre o que se diz e aquilo de que se fala. A narração remete
mais ao signo icônico, uma vez que nesse tipo de texto há um distanciamento
temporal entre o momento do evento e o momento de produção do próprio
texto. Tanto que nas línguas ocidentais a forma verbal da narrativa é quase
sempre o pretérito (cf. Veni, vidi, vici), embora nas línguas crioulas (caso do
guineense) geralmente o narrador se coloca no próprio momento do evento,
com o que a forma verbal narrativa é o verbo em sua forma não marcada (N
bai = eu fui). De qualquer forma, mesmo nesse caso, o narrador só pode
narrar um evento depois de ele ter acontecido, motivo pelo qual os verbos em
sua forma simples do crioulo são traduzidos pelo nosso pretérito. Os demais
tipos de texto, dissertativo, ficcional e poético se aproximam mais do signo
simbólico do mesmo autor, uma vez que, neles, a conexão que há entre texto e
mundo exterior é meramente convencional, quando há conexão.
Pode-se dizer que a descrição tem a ver com o substantivo, tanto que,
mesmo quando se usa verbo, o mais comum é o verbo “ser”. A narração tem
mais afinidades com o verbo, uma vez que nela predomina a ação. Ação é,
prototipicamente, expressa em verbos, nas línguas que os têm. A disserta-
ção, por fim, lembra os conetivos, já que o que interessa é a concatenação
de idéias, tanto com finalidades estéticas (poesia) quanto com o objetivo de
argumentar. Enfim, trata-se de conexão de ideias, com finalidades diversas
conforme o texto for dissertativo, ficcional ou poético.
Todas essas formas foram representadas nos textos precedentes. O
238 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Entretanto, em um sentido mais amplo, pode-se dizer que ela está presente
nos discursos dos anciãos, os omi garandi, cujos argumentos são sempre
respeitados, por conterem a sabedoria ancestral. Até certo ponto, os provér-
bios também contêm características dissertativas, sobretudo se levarmos em
conta que contêm ensinamentos. A modalidade texto poético ou poema (6)
está contemplada no capítulo VII, sobre a poesia em crioulo, e no V, sobre a
poesia em português.
Os assuntos tratados no capítulo X (antroponímia) e no VIII (provér-
bios) são temas especiais. O primeiro tem a ver com as unidades lexicais da
língua (antropônimos), que constituem as bases para se criarem textos, ou
seja, a referência. Os nomes próprios estudados na primeira estão intima-
mente imbricados no meio ambiente cultural guineense. Os provérbios, por
seu turno, parece compartilharem algo com os itens lexicais. Seriam frases
(enunciados, textos) cristalizados, que funcionam como um todo compacto.
Com efeito, um provérbio pode descrever uma situação, narrar uma mini-
história, ou argumentar sobre determinado assunto, com o objetivo de trazer
à baila um ensinamento. Basta dar uma olhada nos 46 exemplares transcri-
tos no capítulo VIII para se constatar isso.
A Guiné-Bissau é um país em formação, como os próprios intelectuais
e políticos locais admitem. Tanto que o tema “formação da nação” é bastante
recorrente. Isso se deve ao modo pelo qual seu território foi delimitado, ou
seja, pela violência dos europeus. Com isso, tudo é incipiente. A literatura
não poderia ser diferente, tanto que há até o problema de se decidir em que
língua escrever prosa, poesia e ficção, como acontece com Odete Semedo. A
língua portuguesa ainda não se implantou plenamente no país; o crioulo ain-
da não dispõe de um sistema de escrita aceito por todos e as línguas étnicas
ainda não estão codificadas. Somando isso às precariedades do país, entre
as quais a da imprensa, o povo guineense fica limitado a fazer o que sempre
fez, produzir textos dialógicos, storias, contar adivinhas e provérbios. Nesse
sentido, ele tem uma riqueza cultural inigualável. A literatura propriamente
dita já existe, mas ainda incipiente, como tem sido salientado em diversas
oportunidades.
240 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
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242 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
APÊNDICE
Entrevista que Pascoal D’Artagnan Aurigemma concedeu a Hildo Honório do Couto
(Embaixada Brasileira na Guiné-Bissau, 13 de outubro de 1990)
hhc - A sua vida artística, o senhor poderia falar um pouquinho sobre ela?
pda - Bom, eu desde criança, já tinha uma certa tendência para escrever alguns contitos
caseiros e alguns poemas que dedicava normalmente às minhas colegas de escola e a al-
guns amigos meus. Mas com o tempo, fui notando de facto que tinha uma certa tendência
246 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
para a literatura e a partir daí fui procurando ler, cultivar-me cada vez mais e melhor. Fui
tentando escrever, escrever. Até que hoje tenho feito alguma coisa. Já escrevi nos meus
tempos de jovem um livro de contos, que tem o título de Ressaca, publicado nos anos
cinquenta. Depois, a partir daí parei de escrever. Fui escrevendo meus continhos, uns
poemas que foram publicados em alguns jornais portugueses e outros brasileiros também.
E a partir daí vim pra minha terra, e aqui escrevi um caderno de poemas, Djarama, quer
dizer, um agradecimento aos nossos combatentes, por terem conseguido a liberdade de
nosso país, a independência nacional, portanto. E depois, mais tarde, escrevi um carder-
no de poemas, que agora está aqui a ser apreciado, que é o Amor e esperança. E tenho
neste momento um outro caderno de contos, que é A fonte de Plubá, que é exatamente
histórias do passado colonial português. É tudo quanto tenho presentemente. Além de
contos e poemas dispersos.
hhc - Sobre a questão política, como foi sua vida durante o período da luta?
pda - Bom, como todos os africanos, tanto da Guiné, como de Cabo Verde, e agora
Moçambique, São Tomé, claro, todo jovem daquele tempo, eu estou sentindo que estáva-
mos a ser explorados (sentíamos dentro de nós próprios uma situação de instabilidades)
por um grupo, ou grupos, de gente que não só castigava, massacrava, prendia, matava,
fazia tudo. E depois que abriu a guerra, que começou a Guerra de Libertação Nacional,
imediatemante, nós todos, eu, por exemplo, procurei colaborar, dentro de minhas possi-
bilidades, com o partido, PAIGC, por ser o mais democrático. E hoje, felizmente, estamos
livres em nossa pátria de Amílcar Cabral.
hhc - Vamos para um assunto que me interessa muito, que é a questão das línguas. O que
que o senhor acha do crioulo?
pda - Bom, o crioulo, eu acho que é bom. É uma língua nossa, pertence-nos. Nós senti-
mos o crioulo dentro de nós próprios. Precisamos efetivamente ver o crioulo mais evoluí-
do, mais estudado. Por forma que, mais dia menos dia, ele venha a constituir, no mundo,
ao contrário, uma língua acessível a todos, não só a nós guineenses. O crioulo tem sido
a língua guineense que, efetivamente, nos tem conduzido, a nós todos, filhos desta terra,
muito embora a Guiné-Bissau tenha sido um autêntico palco de línguas nativas, fula,
balanta mandinga etc. etc. O crioulo tem conseguido congregar todos. Precisamos de
gente como o senhor Hildo, o professor Hildo, portanto, que se debruce, que nos ajude
a encontrar as possibilidades para fazer com que a língua crioula seja gramatizada com
todos os seus pormenores para que venha mais tarde a ser utilizada em qualquer assem-
bléia pública.
hhc - Existe hoje alguma etnia, como os felupes, onde as pessoas não falam nem enten-
dem o crioulo?
pda - Existem sim. Sobretudo aquelas tabancas mais recônditas, em que aquele povo
vive praticamente isolado, sem nenhuma possibilidade de contactos conosco, em cidades
como Bissau etc. Existe sim. Essas existem.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 247
hhc - Eu tive informação de outros guineenses de que, mesmo nesses casos, sempre é
possível encontrar uma outra pessoa que fala o crioulo. O senhor concorda com isso?
pda - Sim, pode ser que haja, casos isoladíssimos até. Porque, a viver mesmo nessa taban-
ca talvez seja um pouco arriscado dizer que sim. Mas, isso não quer dizer que não haja
um ou outro indivíduo, ou de passagem, ou por qualquer motivo, a sair da cidade para lá,
pode ser que haja, portanto.
hhc - Mas, eu como estrangeiro, eu tenho muito pouca informação sobre esse fato. O
senhor poderia citar alguma coisa marcante que aconteceu no período dele?
pda - As execuções, por exemplo. Execuções indiscriminadas e em massa. Coisa horrível.
Africano a matar africano. Às vezes sem grandes motivos. Nunca nos caiu bem. E talvez...
Enfim, uma coisa horrível.
hhc - Eu fiquei sabendo que ele era nascido em Cabo Verde. Será que isso teria alguma
coisa a ver com esse fato?
pda - Eu não sei bem, o que que ele pensava. Guineense ele não era, com certeza. Ca-
boverdiano é. O que que ele pensava sobre essa situação, concretamente, não sei dizer.
hhc - Fazendo a pergunta de outra maneira. Ele era a favor da unidade Cabo Verde-
Guiné-Bissau?
pda - Eu acho que sim. Estou convencido disso. Até porque ele defendia isso, essa ideia
hhc - Em que língua o senhor acha que se expressa melhor e com mais facilidade?
pda - Crioulo e português.
hhc - E por que que o senhor produziu toda a sua obra literária em português?
pda - Foi uma obra de acaso. Mas não quer dizer que eu não saiba escrever em crioulo.
Também sei escrever em crioulo. Escrevi em português como poderia ter escrito [...]
hhc - E será que o crioulo tem um vocabulário suficiente para tratar de um tema abstrato,
de política, por exemplo?
pda - O crioulo é uma língua pobre, não há dúvida. Mas, nós que conhecemos o crioulo
sabemos dar-lhe aquela forma natural que nos leva a atingir aquele ponto que nós preten-
demos, muito embora seja uma língua pobre como eu lhe disse. É isso.
hhc - O que que o senhor acha desse crioulo moderno, que se usa com uma grande quan-
tidade de palavras portuguesas, às vezes até uma frase quase que inteira em português?
pda - Bom, é a juventude de hoje. Já não se compara com a juventude de nosso tempo.
Em nosso tempo falávamos o crioulo puro. Agora ouço falar em crioulo aportuguesado.
Não entendo bem porquê. Se é mais fácil para eles; se é mais bonito para eles, não sei. Eu
gosto do meu crioulo, pronto. Aquele crioulo mesmo, requintado, com tudo, com uma
malaguetazinha, um limão.
hhc - Mas, nesse caso, então, o crioulo não teria futuro porque o mundo está evoluindo
cada vez mais.
pda - Está evoluindo, concordo, perfeitamente com isso. Mas, não se vai tirar todo o
primor ao crioulo, porque se formos substituir o crioulo, se formos juntando ao crioulo
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 249
hhc - Como?
pda - Tanto o crioulo bem falado como o português bem falado servirão os interesses dos
guineenses.
hhc - Quer dizer, o senhor defende, então, que o guineense fosse um povo bilíngue!
pda - É. Exactamente. Perfeito. É essa a idéia.
hhc - Mas, então, haveria setores em que o português seria usado e setores em que o
crioulo seria usado. Se sim, quais são?
pda - Não. Quer dizer, não é sectores em que português seria usado e sectores em [que
o crioulo seria usado]. Qualquer cidadão estaria à altura de falar tanto o português como
deve ser, ou o crioulo como deve ser. Ele poderia utilizar essas duas línguas em qualquer
situação, em qualquer sector da vida do país.
hhc - Eu queria me referir, especificamente, por exemplo, se se usaria o crioulo numa si-
tuação assim mais voltada mais para o lar, para a casa, para a vida familiar, e o português
numa vida mais voltada para a rua e para o exterior. É nesse sentido que eu queria dizer.
pda - Na minha forma de pensar, tanto a língua crioula seria usada na vida familiar como
a língua portuguesa na mesma. Quer dizer, uma família ficaria a conhecer tão bem a
língua portuguesa, como também ficaria a conhecer tão bem a língua crioula. Porque
do crioulo, eu penso que nós não podemos abdicar, é a nossa língua-mã. E o português
é uma língua de escola que aprendemos, uma língua já com muita cultura, com muitas
possibilidades. Portanto, acho que serve. Serviria mesmo os interesses [...]
hhc - É.
pda - Não sei. Eu nunca lá vou. Acho que deve ser em crioulo, talvez. Devido à maior
porcentagem ser de pessoas que dominam mal o português.
250 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
hhc - Será que há algum representante que não domina nem o crioulo, digamos, um de
uma etnia?
pda - Bom. Não conheço. Nunca lá entrei. Nunca assisti uma reunião da Assembleia.
hhc - Mas, quem que passa para o crioulo? É ele mesmo ou outras pessoas?
pda - Eu penso que deve ser outras pessoas. Não sei. Deve ser outras pessoas que depois
que ele fez o discurso passam para o crioulo.
hhc - Quer dizer que ele não lê o discurso em português e depois repete em crioulo!
pda - Não. Não ouvi nenhuma vez isso. Também às vezes ele faz discursos em crioulo,
mas lá fora, na tabanca, para nosso povo, né?
hhc - Ah, sim. Essa é outra pergunta que eu queria fazer. Ele já fez algum discurso assim
em praça pública?
pda - Já fez.
Tradução
Bom, agora, eu sou D’Artagnan, Pascoal D’Artagnan, de Geba, que agora volta a falar-
lhes, mas desta vez em crioulo. Gostaria de dizer que nasci em Farim, região de Oio,
em 1938, 15 de março, mas me criei em Bissau. Fui criado com meus cunhados [..], até
virar homem. Eu passei minha infância lá como qualquer criança, brincando, correndo,
252 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
jogando bola. Fiz lá o curso primário, depois comecei a aprender a língua portuguesa.
Quando terminei de aprender bem o português, comecei a fazer meus poemas e meus
contos. Nesse meio tempo, fui para Cabo Verde a fim de fazer o primeiro ciclo do liceu.
Assim que terminei, fui para Portugal, a fim de estudar o liceu lá também. Terminado
o liceu, comecei a fazer o primeiro ano de direito, mas não cheguei a concluí-lo por-
que não tinha dinheiro. No meio de muita dificuldade, tentei avançar, mas não havia
como. Resolvi arranjar uma cédula marítima a fim de ver se haveria um modo de ir par
a América Central. Mas, não consegui ir para a América Central, pois não tinha meios
para isso. Corri para lá e para cá, fui para a Europa, onde fiquei até retornar. Estou na
Guiné até hoje.
O crioulo. Bom, minha mãe era balanta mansoanca. Do lado de minha mãe, todos
os meus parentes são mansoanca. Minha mãe morreu em 1978. Ela morreu com 77
anos. Está enterrada em Farim. Meu pai era italiano, ele veio para a Guiné, mas eu
nunca conheci os parentes dele. Ele veio para a Guiné, para Farim, onde ficou até
adoecer e vir para Bissau. Eu sou filho de minha mãe. Pelo lado de minha mãe, somos
três irmãos. Pelo lado de meu pai, são também três irmãos. Eu sou o único do sexo
masculino pelo lado de meu pai. Eu cresci junto com minha mãe. Sobre minha família
é só isso.
Bom, esta é minha mensagem para vocês que estão estudando em Brasília. Sinto em
mim uma grande alegria agora, por saber que jovens de minha terra em número de
aproximadamente dez, segundo o professor Hildo acaba de me dizer, estão lá estudan-
do. Ele está levando um caderno de poemas meus. Se houver algumas palavras crioulas
que ele não conhece, peço-lhes que o ajudem a entender o significado delas. Desejo que
vocês todos estudem bastante porque talvez vocês conheçam, meu nome é D’Artagnan.
Vocês podem não me conhecer. Tampouco eu sei quem é que está lá mas, de qualquer
maneira, estamos entre irmãos, pois somos da mesma terra. Desejo-lhes saúde, que
Deus os acompanhe e que se formem. No futuro, vocês poderão ajudar-nos, a fim de
levar nosso país para frente. Que Deus os acompanhe e os ajude, e que não se esqueçam
de nós aqui. Nós não queremos que nos deem dinheiro. O que queremos é o conhe-
cimento que trarão, sua sabedoria, o valor do estudo que estão fazendo que poderá
nos ajudar. Os que forem médicos, que venham curar nossos velhos. Aqueles que são
advogado, que nos auxiliem em nossas pendências. Os que são engenheiros, que nos
ajudem a construir casas. Quem for lavrador, que venha a nos ajudar. Quem tiver curso
de agrônomo, que venha a nos ajudar a cultivar a terra, a fim de a cultivarmos de modo
correto, enfim, que nos ajudem a avançarmos. É isso que desejo, que deem duro, que
ajudem o professor Hildo, porque o professor Hildo é boa pessoa. Ele veio ajudar-nos
com o crioulo de nosso país. Quando [seu trabalho] for publicado, poderemos aprender
a falar o crioulo puro. Um crioulo escrito, no qual poderemos escrever uns aos outros.
Em vez de utilizarmos apenas o português, poderemos utilizar também o crioulo nas
cartas que escrevermos. É isso que gostaria de lhes dizer. Boa sorte e muitas felicidades
a vocês todos. É o que eu queria dizer.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 253
NOTA
A entrevista foi gravada em fita cassette, em um gravador antigo, de modo que há muito
ruído. Além disso, D’Artagnan já estava, com voz fraca, visivelmente debilitado pelo mal
do qual viria a falecer pouco mais de um ano depois. Há muitas repetições de palavras e
de frases, além de pausas, pigarreios, risos, ênfases tonais em determinadas palavras, que
não foram levadas em consideração. O sinal [...] indica trechos incompreensíveis. Afora
isso, a transcrição é fiel ao que foi dito. A gravação original está guardada. Minha inten-
ção foi trazer a público esta que talvez seja a única entrevista deste autor a ser divulgada.
O ato de transcrição foi muito penoso, mas para mim valeu a pena. Espero que o(a)s
leitore(a)s me perdoem as falhas (hhc).
254 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Papia 20, 2010, foi composto em
tipologia Life, corpo 10,5 pt, impresso
em papel Pólen 80g nas oficinas da
thesaurus editora de brasília.
Acabou-se de imprimir em 2010, ano
em que se comemoração aos 20 anos de
existência da revista.