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LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA

NA GUINÉ-BISSAU

Um país da CPLP

Hildo Honório do Couto


e
Filomena Embaló
ISSN 0103-9415

PAPIA
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA
NA GUINÉ-BISSAU

Um país da CPLP

Hildo Honório do Couto


e
Filomena Embaló

Número 20, 2010


PAPIA
Revista Brasileira de Estudos Crioulos e Similares
Número 20, 2010

ORGANIZADOR (editor)
Hildo Honório do Couto (Brasília)

CO-ORGANIZADORES (co-editors)
John Holm (Coimbra)
Matthias Perl (Mainz)
Heliana Mello (Belo Horizonte)

QUADRO DE CONSULTORES
Angela Bartens (Helsinque)
Alan Baxter (Macau)
Nicolás Castillo-Matthieu (Bogotá)
J. Clancy Clements (Bloomington)
Marta Dijkhoff (Curaçao)
Germán de Grande (Valladolid)
Pierre Guisan (Rio de Janeiro)
Tjerk Hagemeier (Lisboa)
Alexandr Jaruškin (São Petersburgo)
Alain Kihm (Paris)
Dante Lucchesi (Salvador)
Philippe Maurer (Küsnacht, Suíça)
John M. Lipski (Albuquerque)
Chérif Mbodj (Dakar)
Dan Munteanu (Las Palmas)
Anthony J. Naro (Rio de Janeiro)
Mariana Ploae-Hanganu (Bucareste)
Jean-Louis Rougé (Praia, Cabo Verde)
Armin Schwegler (Irvine)
Petra Thiele (Berlim)
Klaus Zimmermann (Berlim)
SUMÁRIO

Apresentação.................................................................................... 7

Nota Editorial................................................................................... 9

Prefário............................................................................................ 11

0.Introdução ................................................................................... 15

I. A Situação Linguística ................................................................. 28

II. A Língua Portuguesa ................................................................... 45

III. A Literatura ............................................................................... 60

IV. Literatura em Português I: Prosa ................................................ 78

V. Literatura em Português II: Poesia ............................................... 94

VI. Litetura em Crioulo I: Narrativas Orais ..................................... 116

VII. Literatura em Crioulo II: Poesia ............................................... 133

VIII. Os Provérbios ......................................................................... 160

IX. As Advinhas................................................................................ 178

X. A Antronponímia ......................................................................... 190

XI. Outras Manifestações da Cultura Guineense ............................. 205

XII. A Comunidade de Fala Guineense ............................................ 222

XIII. Palavras Finais ........................................................................ 234

Bibliografia ...................................................................................... 240

Apêndice.......................................................................................... 245
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 7

Apresentação

Rara é a ocasião em que uma publicçaão de nível universitário atinge


20 anos de publicação como a revista PAPIA. Quer pela escassez de recur-
sos, quer pela inconstância dos seus organizadores, quase todas as revistas
universitárias têm uma existência efêmera.
Não é este o caso. O professor Hildo Honório do Couto, professor de
linguística da UnB, dedicou 20 anos da sua vida acadêmica a manter nível
elevadíssimo numa revista que é orgulho para toda a comunidade intelectual
da Península Ibérica.
PAPIA, durante 20 anos, deu-nos como editor, uma satisfação inte-
rior grande, pois prova que, mesmo sem ser um êxito comercial (a luta por
recursos foi grande), foi um êxito cultural a que estamos associados como
uma editora cult.
Tem sido essa a nossa filosofia: “não deu prejuízo, já ganhamos”. Mui-
tos acham errado, pois não se baseia nos princípios capitalistas e mercená-
rios.
Mas, amparar um intelectual do nível do professor Hildo, afinal um
grande amigo, apaixonado pelo que faz, incentivador, persistente, modesto
(até demais) foi para nós uma honra e um incentivo para que continuemos
a dar as mãos por uma cultura que, ao entranhar-se em assuntos que não
pertencem a um nicho muito popular, cada vez tem menos pessoas que os
olhem pelo seu significado mais profundo e pela sua importância social e
linguística.
Este número monográfico de PAPIA, por conter um apanhado geral
da cultura da Guiné-Bissau, merece uma ampla divulgação nos países lusó-
fonos, não apenas no país de que trata. Portugal, como centro irradiador da
lusofonia, deveria dar uma grande acolhida a Líteratura, língua e cultura da
Guiné-Bissau - um país da CPLP, que o professor Hildo escreveu em coau-
toria com Filomena Embaló.
Prova de que o nosso trabalho fincou raízes é o fato de a revista ter
sido assumida pelos estudiosos de contato de línguas e crioulística da Uni-
versidade de São Paulo. Ficamos felizes que a revista tenha continuidade. Por
isso afirmamos que eles podem contar com nossa colaboração no que nos
for possível.

Victor Alegria
Thesaurus Editora.
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NOTA EDITORIAL

Aqui temos o número 20 de nossa revista. São duas décadas de exis-


tência ininterrupta. Para os padrões brasileiros, é um feito notável, pois
grande parte das revistas científicas (e não científicas) desaparecem por
volta do número 5. Nossa intenção era coroar esses 20 anos com um nú-
mero monográfico, inteiramente dedicado ao sofrido povo do pequeno país
Guiné-Bissau. O número constaria de poemas crioulos. No entanto, por
razões que não dependem de nossa vontade, esse desiderato não pôde ser
alcançado. Por esse motivo, decidimos manter a intenção inicial, publicando
como número 20 o que seria um suplemento a ele, sob o título de Literatura,
língua e cultura na Guiné-Bissau - um país da CPLP, assinado por Hildo
Honório do Couto e Filomena Embaló. Com isso, o objetivo inicial de ho-
menagear a Guiné-Bissau fica mantido. O primeiro é linguista, estudioso da
língua guineense há muitos anos. A segunda é guineense de coração (nasceu
em Angola), escritora e estudiosa da literatura do país de adoção.
Pode ser que alguém ache que não se deveria publicar literatura em
português em PAPIA. No entanto, trata-se da literatura guineense, tão pou-
co conhecida ainda. Esperamos que nossos colegas crioulistas nos compre-
endam.
Este é o último número organizado por Hildo do Couto. A partir do
próximo, a organização estará a cargo de Gabriel Antunes Araújo, da Uni-
versidade de São Paulo. Já a partir de 2008, ele fora eleito presidente da
ABECS - Associação Brasileira de Estudos Crioulos e Similares, entidade
ligada à revista, criada em Brasília por ocasião do Primeiro Encontro de
Estudos Crioulos e Similares. No momento em que estamos redigindo estas
linhas, acaba de se realizar o VI Encontro da ABECS em Salvador.
Enfim, agora que a revista entrou no período de maioridade, entra em
nova fase, nas mãos de gente jovem e idealista. A ideia de contato de línguas,
contexto maior em que se insere a crioulística, certamente vai ter guarida
nos números vindouros, que desejamos que sejam muitos.
No pintcha
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PREFÁCIO

A confecção deste livro apresenta duas etapas. Na primeira, Hildo


Couto elaborou um esboço geral da obra. Mas, como ele é linguista, não
especialista de literatura, convidou a estudiosa da literatura guineense Fi-
lomena Embaló para colaborar na empreitada. Ela aceitou o desafio e nos
pusemos a colaborar assiduamente e com afinco pela internet até chegar ao
presente formato.
É bem verdade que já existe um livro publicado no Brasil sobre a li-
teratura guineense (Augel 2007). No entanto, seu objetivo é mais teórico e
interpretativo, o que, aliás, é altamente meritório. Ele se atém à literatura em
prosa e verso em português e à poesia crioula. O nosso é mais abrangente.
Ele inclui não apenas esses aspectos, mas procura dar uma visão de conjunto
da língua e da cultura da Guiné-Bissau. É claro que aqui e ali tentamos fazer
interpretações também. Até onde sabemos, é a primeira obra que reúne e
abrange, de uma forma mais ampla, diferentes aspetos da cultura guineen-
se, com a preocupação de fornecer o maior número de informações, sem,
no entanto, se pretender exaustiva. Uma limitação que a obra apresenta é
justamente não ter sido possível abordar todas as manifestações culturais
próprias e específicas das diferentes etnias, tais como as cerimônias de inicia-
ção, cerimônias fúnebres e crenças religiosas, por necessitar de um trabalho
de terreno e de recolha mais detalhado e a longo prazo, o que não nos foi
possível fazer.
Apesar dessas limitações, acreditamos que o livro possa ser de inte-
resse, pois ele apresenta e discute perfunctoriamente pelo menos a literatura
em português (poesia e prosa), de que dá um apanhado geral, e a literatura
em crioulo, que compreende a poesia e as narrativas orais. Fala também dos
provérbios e das adivinhas, duas facetas muito importantes da cultura guine-
ense, além da antroponímia, que apresenta padrões de denominação muito
interessantes. Sob a rubrica de “Outras manifestações da cultura guineense”,
o livro discute sucintamente as revistas em quadrinho, o teatro, o cinema, a
música, a questão das manjuandades (sociedades lúdicas de coetâneos), os
gãs (parecidos com clãs), o tchur (cerimônias fúnebres), os rumores (boa-
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tos) e a questão religiosa do irã. Além disso, temos a parte mais linguística.
Primeiro, a situação linguística do país (capítulos I e XII), com suas mais de
dezesseis línguas, além do crioulo e o português. Segundo, falamos sobre a
questão da língua portuguesa no país.
Nossa intenção não foi publicar algo melhor do que o que já existe,
mas completá-lo, entrando em áreas que ainda não tinham sido apresenta-
das ao público de língua portuguesa. Pelas informações que presta sobre a
cultura da Guiné-Bissau, devido às dificuldades encontradas para recolher
dados nesta área, cremos que trazemos informações úteis a quem pretenda
conhecer o maravilhoso mundo da literatura, da língua e da cultura desse
pequeno e sofrido país pertencente à CPLP. Como se sabe, há muito pouca
produção existente nesse domínio. Nossa intenção foi remediar, pelo menos
em parte, essa escassez.
O livro foi escrito tendo em vista as pessoas que têm interesse pela
Guiné-Bissau e pela África em Geral, não para aquelas que põem o dernier
cri da crítica literária em primeiro lugar. Ele é bem mais modesto. Visamos a
apresentar um conspecto da literatura, da língua e da cultura guineenses ao
leitor de língua portuguesa. Se as pessoas que se interessam por essas áreas,
e/ou pela Guiné-Bissau em geral, virem alguma coisa de interesse no livro,
dar-nos-emos por satisfeitos, nosso objetivo foi atingido.
O leitor e a leitora notarão que, nas poucas tentativas de interpretação
que fizemos, há uma certa tendência a encarar os fatos em estudo da pers-
pectiva da crítica literária ecológica, mais conhecida como ecocrítica (ecocri-
ticism). Isso se deve à formação de um dos autores, estudioso das relações
entre língua e meio ambiente, mediante a disciplina ecolinguística (Couto
2007), cujo último capítulo se intitula justamente “Ecocrítica”. Sobre a
ecocrítica em geral, baseamo-nos em Garrard (2006) e Glotfelty & Fromm
(1996). Temos consciência de que o viés ecológico nem sempre é bem-vindo
no meio acadêmico. No entanto, estamos convictos de sua validade.
Gostaríamos de agradecer a algumas pessoas que nos ajudaram de algu-
ma forma. Algumas enviaram publicações de difícil acesso. Outras fizeram co-
mentários a tópicos pontuais, evitando assim que o livro contenha muitas falhas.
A seguir, apresentamos uma lista dessas pessoas, desculpando-nos por eventuais
esquecimentos. Nenhuma delas tem qualquer responsabilidade pelo conteúdo
do livro.
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Alfeu Sparemberger (Pelotas)


Cláudia Gomes (Brasília)
Incanha Intumbo (Coimbra)
João Ferreira (Brasília)
Luigi Scantamburlo (Guiné-Bissau)
Moema Parente Augel (Bielefeld)
Odete Semedo (Bissau/Belo Horizonte)
Rui Jorge Semedo (Bissau/São Carlos)
Teresa Montenegro (Bissau, Guiné-Bissau)
Waldir Araújo (Lisboa)
Wilson Trajano Filho (Brasília).
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0. INTRODUÇÃO

Uma boa maneira de preparar o terreno para a discussão sobre a cul-


tura, as línguas e as literaturas da Guiné-Bissau é apresentando um esboço
histórico do país. Para dar apenas uma justificativa, a periodização sugeri-
da para a história da sua produção literária é a de sua história política. Além
do mais, a despeito de ser uma das primeiras regiões da África, e do mun-
do, a que os portugueses chegaram na arrancada marítima que recebeu o
nome de Grandes Navegações, a antiga Costa da Guiné, a Guiné Portugue-
sa ou a atual Guiné-Bissau é um dos países menos conhecidos entre todos
que resultaram dessa aventura. Esse desconhecimento existe em todos os
níveis, não só no linguístico-cultural, mas também no nível político. Ouve-
se falar muito mais em Angola, Moçambique e Cabo Verde do que em
Guiné-Bissau. Intelectuais e escritores como José Craveirinha, Mia Couto,
Luandino Vieira, José Eduardo Agualusa, Baltazar Lopes e Germano Al-
meida são frequentemente lembrados no Brasil. No entanto, muito pouca
gente já ouviu falar em Tony Tcheka, Abdulai Sila, Pascoal D’Artagnan
Aurigemma, Carlos Lopes e Odete Semedo. Assim sendo, dedicamos essa
introdução basicamente a um perfil histórico do atual país Guiné-Bissau.
Antes, porém, gostaríamos de fornecer alguns dados importantes para se
compreender o país como tal.
A Guiné-Bissau é um pequeno país situado na costa ocidental afri-
cana que se classifica entre os mais pobres do mundo. Emergindo de uma
luta armada de libertação nacional, que durou 11 anos e que pôs fim a um
longo período colonial, os desafios para a nova nação eram enormes. Com
efeito, a incipiente economia colonial, com uma base exclusivamente agríco-
la, assentava num sistema de monopólio comercial dominado por empresas
portuguesas. Os pequenos produtores locais eram obrigados a produzir e a
vender a essas empresas determinados produtos agrícolas destinados à ex-
portação. Nenhuma evolução tecnológica fora introduzida no meio rural,
continuando as populações a produzir segundo as suas tradições ancestrais.
Na área industrial, apenas uma unidade fabril foi deixada pelos portugueses:
uma fábrica de cerveja destinada a abastecer o exército colonial que combatia
o movimento de libertação.
16 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Se as capacidades do movimento de libertação permitiram gerir com


certo sucesso as regiões libertadas do país durante a luta armada, o mesmo
já não aconteceu com a gestão do país totalmente independente. Os novos
dirigentes encontraram os cofres do Estado vazios, uma administração aban-
donada pela maior parte dos seus agentes, em sua maioria caboverdianos
que deixaram o país no momento da independência, uma falta de quadros
preparados em todos os domínios e em todos os níveis e uma população que
contava com cerca de 99% de analfabetos.
Nessas condições, cometeram-se erros na decisão das estratégias
de desenvolvimento: nacionalização das empresas comerciais portuguesas,
quando o Estado não tinha capacidades financeiras nem humanas para ge-
ri-las; realização de empreendimentos industriais sobredimensionados com
tecnologia avançada e muitas vezes sem responder às necessidades básicas
da população, sem dispor de mão de obra preparada para fazê-los funcionar
e meios para adquirir as matérias primas. Por outro lado as infraestruturas
rodoviárias favoreceram as ligações entre os centros urbanos em detrimento
das ligações com os centros de produção agrícola, isolando-os do resto do
país com consequências graves para o escoamento da produção, que, não
sendo vendida, acabava por apodrecer. Pouca atenção foi dada ao incentivo
à produção agrícola, com a falta de fornecimento de bens de produção, se-
mentes melhoradas e introdução de novas técnicas. Essa falta de incentivo
e as dificuldades de escoamento dos produtos provocaram uma diminuição
da produção agrícola, reduzindo-a a uma produção de subsistência. Num
contexto de baixo nível de produção, o aprovisionamento dos cofres públicos
não podendo ser feito pelo sistema fiscal, o Estado recorria à emissão de mo-
eda para o pagamento das suas despesas, principalmente os salários dos seus
funcionários, o que tinha como consequência a desvalorização da moeda.
Uma das causas apontadas para o golpe de estado de 1980 foi essa
política econômica considerada desastrosa. No entanto as políticas econômi-
cas e financeiras levadas a cabo depois disso também não surtiram os efeitos
esperados por também elas não terem sido realistas.
O Programa de Ajustamento Estrutural dos primeiros anos da década
de oitenta agravou ainda mais a precariedade econômica do país. Articulan-
do-se à volta da abertura da economia ao mercado mundial, da liberalização
interna e da austeridade, a aplicação do programa pressupunha um tecido so-
cioeconômico capaz de absorver os instrumentos da sua política. Vale dizer,
a existência de um mercado nacional organizado e de concorrência perfeita,
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cujas leis deveriam proporcionar os grandes equilíbrios macroeconômicos.


Não era o caso da Guiné-Bissau, que possuía uma classe empresarial mui-
to embrionária (composta por alguns comerciantes que tinham conseguido
se instalar na época colonial e que conseguiram sobreviver ao período do
centralismo econômico); falta de poupança interna; uma base de produção
reduzida; desconhecimento dos mecanismos do mercado internacional; um
déficit estrutural da balança comercial; um setor informal urbano crescente,
caracterizado em épocas de crise de abastecimento por trocas diretas de pro-
dutos; uma prática de antecipação precoce dos agentes econômicos às des-
valorizações da moeda, provocando subidas especulativas dos preços quer
dos produtos nacionais quer importados, para citar os mais importantes.
Foi assim que, em 1997, a Guiné-Bissau aderiu à União Econômica e
Monetária da África Ocidental (UEMOA), adotando a moeda franco CFA,
numa tentativa de conseguir uma maior integração regional, de sair do seu
isolamento econômico-financeiro e de criar novas bases para o alavancamen-
to de sua economia. Mas a crise político-militar que surgiu em 1998, opondo
o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas ao Presidente da República
terminou em guerra civil, quando este último decidiu, por iniciativa própria e
sem a autorização da Assembléia Nacional Popular (como prevê a Constitui-
ção) pedir a intervenção das forças armadas do Senegal e da Guiné-Conacri.
Os 11 meses de guerra civil que se seguiram pioraram ainda mais a difícil
situação do país e inauguraram um período de total instabilidade política que
dura até os nossos dias, instabilidade essa que teve enormes consequências
para o setor econômico que, na ausência de investimentos devido à falta de
confiança por parte dos investidores e parceiros, não consegue desenvolver-
se.
Do ponto de vista do regime político, a Guiné-Bissau viveu, desde a
independência até 1991, data em que foi aprovado o multipartidarismo, num
sistema de partido único com o PAIGC (Partido Africano para a Independên-
cia da Guiné e Cabo Verde), o partido libertador. Em 1994 foi esse mesmo
partido que ganhou as primeiras eleições multipartidárias e que presidiu os
destinos da nação até a destituição, em 1999, do Presidente Nino Vieira, o que
pôs fim à guerra civil. Foi então que se pôde falar em alternância no poder,
com a vitória do Partido da Renovação Social (PRS) nas eleições gerais de
2000. Mas em 2003 o presidente eleito, Kumba Yala, foi destituído por um
novo golpe de estado militar. Seguiu-se um período de transição com a nome-
ação de um presidente da república interino. As eleições legislativas, realizadas
18 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

em 2004, levaram novamente o PAIGC ao poder e as eleições que tiveram


lugar em 2005, trouxeram de volta ao poder o antigo presidente Nino Vieira,
que ganhou o escrutínio como candidato independente. Crises políticas, per-
manentes mudanças de governo, alegadas tentativas de golpes de estado, uma
crescente desestruturação das instituições estatais e uma constante ingerência
das forças armadas na vida política do país caracterizaram os quatro anos que
se seguiram até aos assassinatos em 2009, com algumas horas de intervalo, do
Chefe de Estado Maior das Forças Armadas (Tagme na Waie) e do Presidente
da República (Nino Vieira).
Quanto às liberdades individuais, o sistema de segurança implantado
no país, logo depois da independência, foi um sistema autoritário, fato que
prevaleceu mesmo depois da instituição do multipartidarismo. Há que ter em
conta que a repressão e a violência sempre estiveram presentes na história do
país: a repressão colonial, a violência da luta de libertação e a repressão pós-
independência contra os adversários do partido no poder. Tudo isso fez com
que se tenha criado uma cultura de violência praticada pelos partidos e pelas
forças armadas e a consequente instalação de um sistema de impunidade que
aniquilou totalmente o poder judicial.
O enfraquecimento das instituições do Estado, o marasmo econômico
em que a Guiné-Bissau mergulhou e a porosidade das suas fronteiras pela
falta de meios de controle tornaram o país num alvo atraente para o narco-
tráfico internacional, que o elegeu como uma das suas placas giratórias do
comércio entre as Américas e a Europa.
Enquanto isso a população, cada vez mais empobrecida, vai lutando
dia a dia para a sua sobrevivência. O acesso às condições básicas de saúde
não lhe são garantidas, devido à falta de meios e condições para o exercício
da medicina nos hospitais públicos. O ensino, que vive permanentes períodos
de greve do corpo docente por falta de pagamento dos salários, confronta-se
também com o problema da baixa de qualidade. Perante tal situação há numa
rejeição ao resignado djitu ka ten (não há outra solução) ou do otimista, mas
não menos resignado, i ka ten problema (não tem problema), tão denuncia-
do pelo falecido intelectual Jorge Ampa (1950-1993) que dizia que o grande
problema da Guiné-Bissau é i ka ten problema. A sociedade civil tem dado
provas de dinamismo e de iniciativas positivas, quer em termos de realizações
de projetos de natureza socioeconômica, quer no nível político, servindo de
elemento catalisador num combate permanente em favor do desenvolvimento,
democracia e paz, o que demonstra que o país é viável.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 19

Depois desta breve apresentação do país, situemos os fatos no seu


contexto histórico desde os primórdios da aventura marítima portuguesa que
resultou no que passou a ser chamado de As Grandes Navegações e que tive-
ram como objetivo se desvencilharem de intermediários no comércio com o
Oriente. O primeiro fato histórico importante foi a tomada da ilha de Ceuta
em 1415 por Nuno Álvares Pereira. Localizada à entrada do mar Mediter-
râneo, sua conquista significou a morte do reino muçulmano de Granada e
a defesa da costa ocidental da África. Sua posse era garantia contra ataques
dos mouros, os quais tinham que passar por ali nas suas investidas em dire-
ção à Europa. Além do mais, significava também o primeiro passo na tentati-
va de chegar à Índia pelo Ocidente. A conquista dessa ilha era tão importante
que dela participou o próprio infante D. Henrique, o navegador.
Conquistada Ceuta e transposto o cabo Não, do qual se dizia que
“quem o passar voltará ou não”, os portugueses chegaram logo em seguida
a outro temido limiar, o cabo Bojador. Desse cabo diz Gomes Eanes de Zu-
rara: “despois deste cabo nom ha hi gente nem povoraçom algua”. Em 1434
ele foi finalmente transposto por Gil Eanes. Segundo Zurara, Eanes voltou à
região com Afonso Gonçalves Baldaia, avançando até o rio do Ouro. Tinham
a incumbência do infante D. Henrique de aprisionar mouros para “línguas”,
“interpretadores”, “cholonas” ou turgimãos, como viriam a ser chamados
mais tarde. No entanto, não o conseguiram desta vez. Só mais tarde, em
outras das sucessivas incursões à região, conseguiram aprisionar os primei-
ros mouros. O aprisionamento continuou com o avanço em direção ao sul,
chegando à terra dos negros, logo em seguida chamada de Costa da Guiné.
Várias caravelas foram enviadas pelo infante com ordens de avançar
cada vez mais em direção ao sul, e sempre aprisionando nativos. Nuno Tris-
tão descobriu o cabo Branco em 1441 e Arguim em 1443, onde construiu
uma fortaleza. Nela se celebrou missa pela primeira vez.
Gonçalo de Sintra foi à Guiné que, segundo ele é o mesmo que “terra
dos negros”, já levando consigo “huu moço azenegue por torgimam, o qual
já de nossa linguagem sabya grande parte”. Ainda segundo Zurara, Dias
Dinis também chegou “aa terra dos negros, que som chamados guinéus”,
aprisionando vários deles. Em 1444 chegou ao cabo Verde, onde atualmente
se localiza Dakar, não o próximo arquipélago homônimo.
Em 1445 mais três caravelas foram ao rio do Ouro. Mas, o mais im-
portante para o que aqui nos interessa é o fato de o escudeiro João Fernandes
que, “de sua voontade lhe prouve ficar em aquella terra, soomente polla veer,
20 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

e trazer novas ao Iffante, quando quer que se acertasse de tornar”. Ele ficou
entre os mouros sete meses e fez amizade com eles. E “... quando se partira
daquelles com que nos passados sete meses conversara, muytos delles chora-
rom” (Gomes Eanes de Zurara, Crónica dos feitos da Guiné, 1455).
Essa estada de João Fernandes entre os africanos (azenegues?) é de
suma importância histórica. Com efeito, trata-se da primeira vez que um
português convive pacificamente com os mouros (até aqui não se distinguia
bem entre africanos negros e mouros). Esse homem é o primeiro que se
lançou, na costa ocidental africana, entre os nativos, e com eles conviveu. Se
não pode ser considerado como o primeiro lançado, como o termo passou a
ser entendido entre historiadores e crioulistas, ele é com certeza um precur-
sor deste tipo de aventureiro que logo em seguida se tornaria a personagem
principal no processo de colonização da África em geral.
Em incursões posteriores, outras caravelas entram em contato com
wolofs (jalofos, geloffas), sèrères (serreos), mandingas, beafadas, bijagós,
fulas etc. Diogo Gomes, por exemplo, fez amizade com Niumi Mansa (Nome
Mains), depois com Abubakar (Bucker), pedindo a ele que lhe mostrasse o
caminho para Cantor. Mandou mensagens para Uli Mansa e Ani Mansa.
No caminho de volta estabeleceu contato com o chefe Batimansa, do baixo
Gâmbia, que lhe deu três negros. No entanto, o fato mais importante é que
Nomi Mansa adotou o Deus cristão e quis que Diogo Gomes o batizasse bem
como a seus nobres. Adota o nome Henrique, por causa da admiração que
passou a ter pelo infante. Seus nobres passaram a se chamar Jacó, Nuno etc.
Pelo menos é o que asseveram os cronistas.
Se João Fernandes pode ser considerado o precursor dos lançados, do
contato de Diogo Gomes com Nomimansa e seu povo bem como dos lín-
guas (chalonas, turgimãos) nativos que os portugueses já traziam consigo de
Portugal (aprisionados anteriormente), surgiriam os grumetes. Estes seriam
mais tarde os nativos aculturados pelo contato com os europeus, exercendo
o papel de seus ajudantes. É bem verdade que os lançados eram traficantes
clandestinos, ilegais. Consequentemente, eram-no também os grumetes. No
entanto, isto só se configurou mais tarde, quando os portugueses tentaram
explorar a região mais intensamente.
Ainda no século XV os portugueses estabeleceram feitorias no rio São
Domingos e no rio Grande. Os espanhóis começaram a aparecer na região e
se iniciaram as disputas sobre o direito de se estabelecer nela e de praticar o
comércio. Com a ajuda do papa, assinou-se um acordo em 1494, chamado
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 21

Tratado das Tordesilhas, que pôs fim aos desentendimentos entre as duas
nações. No entanto, começaram a aparecer também os franceses e os ingle-
ses. Assim, a fim de assegurar o monopólio português sobre o comércio nas
terras descobertas por navegantes portugueses, edificou-se uma fortaleza em
Cachéu em 1588.
Logo chegaram também os holandeses à região da costa ocidental
africana e o exclusivo do comércio português é desrespeitado abertamen-
te. Com a Compagnie van Verre (1595), a Companhia das Índias Orien-
tais (1602), da Holanda, e a Company of Merchants of London (1600),
da Inglaterra, tem-se o fim do predomínio português na região. A presen-
ça dessas três nações explorando o tráfico de escravos e de mercadorias
é que vai reforçar a presença dos lançados, pois elas em geral mantinham
seus contatos com os nativos através deles. Com isso, a ilegalidade, a
clandestinidade, o contrabando passaram a ser a norma. Portugal não
conseguiu manter sob controle oficial todas as terras descobertas pelos
seus primeiros navegadores. O texto de André Álvares de Almada abaixo
transcrito é bastante significativo, uma vez que mostra que os portugue-
ses que se estabeleciam na costa da Guiné tinham que se arranjar sem a
ajuda da metrópole:

...mas haverá como cinco anos que estão os nossos em aldeia separada dos ne-
gros, e tão fortes que, antes querendo eles, podem fazer muito dano aos negros. E
estão ao longo do rio entre a aldeia dos negros e ele, e ali fizeram uma força sem
a ajuda de S. Magestade, e a fortificaram com alguma artilharia que para isso
buscaram... [sublinhado nosso] (André Álvares d’Almada, 1594, Tratato breve dos
rios da Guiné).

As primeiras organizações administrativas na Guiné eram as praças


(povoações fortificadas e armadas) e os presídios (praças de pequenas di-
mensões e escassos meios defensivos). Nessa época, havia duas praças: Ca-
chéu e Bissau. Quanto a Farim, Ziguinchor, Geba e Lugar do Rio Nuno,
eram presídios.
Vejamos uma pequena cronologia dos principais acontecimentos do
século XVII até a atualidade:
- 1607: o régulo de Guinália cede aos portugueses a ilha de Bolama
para eles se defenderem dos bijagós.
- 1640: abandonam-se as feitorias do rio São Domingos e do rio
Grande. Funda-se a povoação de Farim.
22 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

- 1641: D. João IV constrói uma fortaleza em Cachéu e passa a esco-


lher os capitães-mores (administradores). O primeiro foi Gonçalo de Gam-
boa de Aiala.
- 1675: Cria-se a Companhia de Cachéu, para explorar o comércio;
ela não exerce ação notável.
- 1687: Funda-se a Companhia de Bissau.
- 1690: Funda-se a segunda Companhia de Cachéu, que toma conta
da administração e do comércio local.
- 1766: Transferência da capital para Bissau.
- 1792: Ingleses e franceses tentam ocupar a ilha de Bolama.
- 1832: Passa a haver uma subprefeitura em Bissau e uma provedoria
em Cachéu.
- 1863-1866: secas em Cabo Verde provocam a emigração de Cabo-
verdianos para a Guiné, que vão desenvolver, ao longo do rio Farim, pontas
destinadas à produção da cana de açúcar para o fabrico de aguardente e de
açúcar. Essa população caboverdiana, isolada nas plantações afastadas dos
centros populacionais vai viver à margem da comunidade europeia instalada
na Guiné.
- 1879: separação administrativa de Cabo Verde e Guiné; Bolama
passa a ser capital. Há também aparecimento da imprensa, enquanto que
nas demais colônias ela foi instalada entre 1842 e 1857. Entre 1943 e
1879, a Guiné e Cabo Verde tinham o mesmo Boletim Oficial que era edi-
tado na Praia, em Cabo Verde.
- 1884-1885: Conferência de Berlim, em que 14 potências européias
e Estados Unidos dividiram a África.
- 1886: Portugal cede a região da Casamansa (sul do Senegal) para a
França e esta cede a Portugal a região de Cacine (norte da Guiné francesa)
- 1913-1915: Teixeira Pinto consegue uma “pacificação”, para evitar
ataques dos nativos.
-1919: declínio das pontas e da produção da cana de açúcar e seus
derivados, devido a uma legislação que regulava o fabrico de aguardente,
de modo a privilegiar a introdução e expansão de aguardentes e conhaques
da metrópole. Os descendentes dos primeiros caboverdianos veem-se assim
obrigados a procurar outras formas de rendimento, passando a ocupar car-
gos públicos de pequena e média categoria ou de empregados e caixeiros
de empresas comerciais. Entre 1920 e 1940, mais de 70% dos funcionários
públicos eram caboverdianos ou seus descendentes, nascidos na Guiné.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 23

- 1936: até aqui, os portugueses tinham que pagar uma taxa (daxa) ao
régulo de Bissau.
- 1940: transferência da capital de Bolama para Bissau.
-1949: criação, por iniciativa de cinco pessoas privadas, dos “cursos-
explicações” que vieram a ser o embrião do futuro liceu de Bissau que, mais
tarde, deu lugar ao Colégio-Liceu, ao qual se deslocavam professores de
Portugal para examinar os alunos.
- 1954: início do Movimento pela Independência da Guiné e Cabo
Verde (MINGC).
- 1956: fundação do Partido Africano da Independência da Guiné e
Cabo Verde (PAIGC), em 19 setembro, em Bissau. Reunindo Guineenses e
Caboverdianos, o partido, baseando-se nas ligações históricas entre os dois
povos, defendia o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde. Foi graças a essa
conjugação de forças que o PAIGC conseguiu conquistar as independências
dos dois países.
- 1958: Abertura do primeiro Liceu oficial em Bissau, Liceu Honório
Barreto.
- 1959: insurgência dos estivadores do porto de Pindjiguiti (Bissau).
50 trabalhadores desarmados são fuzilados. O PAIGC, que até então tentava
pela via da negociação a conquista da independência. Diante da resposta
negativa das autoridades coloniais às reivindicações dos estivadores, decide
organizar-se para passar à ação armada.
- 1962: início da luta armada, em 23 de novembro.
- 1964: realização do Congresso de Cassacá, o primeiro do PAIGC,
organizado em Cassacá, região libertada da Guiné, de 13 a 17 de fevereiro.
Inicialmente convocado como uma simples reunião para pôr termo a des-
mandos de certos responsáveis militares da frente Sul, revelou-se um en-
contro de suma importância em que foram tomadas decisões determinantes
para o prosseguimento da luta armada: criação das FARP, Forças Armadas
Revolucionárias do Povo (um verdadeiro exército estruturado); criação dos
órgãos embrionários do futuro estado (que passaram a gerir os setores da
saúde, educação, economia, finanças e justiça); criação dos Armazéns do
Povo (que se ocuparam da distribuição dos produtos de primeira necessida-
des) e, no nível do Partido, criação do Bureau Político e, no seio deste, do
Comitê Executivo da Luta .
- 1973: Amílcar Cabral é assassinado em 20 de janeiro em Conakry,
por militantes guineenses do PAICG. As causas deste assassinato e o seu
24 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

autor intelectual nunca foram determinados. Embora a PIDE (Polícia Inter-


nacional de Defesa do Estado de Portugal) tenha sido apontada por certas
fontes como sendo a autora intelectual do assassinato, o certo é que havia
no seio do PAIGC um mal estar entre guineenses e caboverdianos por causa
da questão da unidade Guiné-Cabo Verde, o que pode ter tornado possível
a utilização dos guineenses descontentes para a realização do assassinato.
Com o assassinato de Cabral, ruiu a primeira pedra do edifício da Unidade
Guiné-Cabo Verde.
– 1973: Proclamação do Estado da Guiné-Bissau em 24 de setembro,
pela Assembléia Nacional Popular, reunida pela primeira vez em Madina do
Boé, região libertada. Luís Cabral assume a presidência do Conselho de Es-
tado.
- 1974: Portugal reconhece em 10 de setembro a independência, no
ano da Revolução dos Cravos (25 de abril). Partida das autoridades adminis-
trativas portuguesas e com ela a maior parte dos quadros da função pública,
caboverdianos na sua maioria. Instalação do governo guineense na capital,
Bissau.
- 1980: João Bernardo Vieira (Nino Vieira) lidera um golpe militar,
localmente designado por “Movimento Reajustador”, e assume a presidên-
cia do então criado Conselho da Revolução. Entre as causas apontadas: a
“descoberta” de valas comuns com ossadas de fuzilados durante os primei-
ros anos de independência; o anteprojeto da constituição que apresentava
diferenças com a de Cabo Verde, entre elas a conservação da pena de morte
na Guiné-Bissau, quando em Cabo Verde ela não existia; a aguda crise eco-
nômica que o país atravessava, considerada como consequência da política
econômica seguida depois da independência.
- 1981: Em Cabo Verde, em reação ao golpe na Guiné-Bissau, é criado
o PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde), consu-
mando assim o fim da unidade Guiné-Cabo Verde.
- 1984: o Primeiro Ministro, Victor Saúde Maria é acusado de prepa-
rar um golpe de estado e é afastado do poder.
- 1985: Grande crise política. Várias pessoas foram julgadas e fuzi-
ladas, entre as quais Paulo Correia, Primeiro Vice-Presidente do Conselho
de Estado e Ministro da Justiça, militares e líderes contrários ao governo de
Nino Vieira acusados de tentativa de golpe de estado.
- 1987: Início do Programa de Reajustamento Estrutural, distancian-
do-se do modelo centralizado de inspiração socialista iniciado nas guerras
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 25

de independência. Abertura da primeira editora pública (Nimba) de duração


efêmera.
- 1991: Introdução do multipartidarismo, abertura política (pelo me-
nos nominal), revalorização dos regulados (poder tradicional).
- 1994: Eleições multipartidárias. Nino Vieira é “reeleito”. É criada a
primeira editora privada do país, pelo escritor Adulai Sila.
- 1997: A Guiné-Bissau adere à União Econômica e Monetária da
África Ocidental (UEMOA), adotando a moeda franco CFA.
- 1998: Revolta de alguns militares, comandada por Ansumane Mané.
Nino Vieira pede socorro ao Senegal e à Guiné-Conacri, que enviam tropas.
O país entra em guerra civil que dura 11 meses. Os senegaleses passam a co-
meter as maiores barbaridades contra os guineenses, muitas delas retratadas
na literatura produzida daí para frente. Milhares de pessoas morrem. Bissau,
que já tinha uma infraestrutura precária, é praticamente destruída. Os solda-
dos senegaleses se instalaram no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
(INEP), um dos melhores da África, e chegaram a usar folhas de livros para
fazer fogo. Grande parte da população de Bissau foge para o interior e para
o exterior.
- 1999: Forma-se um Governo de União Nacional. Deposição do pre-
sidente eleito. É o fim do longo poder absoluto de Nino Vieira e da liderança
exclusiva do PAIGC. Nino vai para o exterior (Portugal). Malam Bacai Sa-
nhá, Presidente da Assembléia Nacional Popular assume a presidência inte-
rinamente.
- 1999-2000: Realização de eleições legislativas e presidenciais, sain-
do vencedor das primeiras o PRS (Partido da Renovação Social) e tendo o
seu lider, Kumba Yala, sido eleito presidente da República.
- 2000: o chefe da Junta Militar, Ansumane Mane, é assassinado.
- 2003: Koumba Yalá é destituído do poder pelo chefe de estado maior,
Veríssimo Seabra, acusado de corrupção, uso arbitrário do poder e promo-
ção de dissensões étnicas no seio das forças armadas. Henrique Rosa assume
a presidência interinamente.
- 2004: Novas eleições legislativas, voltando ao poder o PAIGC (mar-
ço). Carlos Gomes Júnior, presidente do PAIGC é nomeado Primeiro Mi-
nistro. O general Veríssimo Seabra, chefe do Estado Maior das Forças Ar-
madas, é assassinado por um grupo de militares que tinham participado de
uma missão de paz das ONU na Libéria, acusado de corrupção e promoções
arbitrárias no seio das forças armadas. Tagme Na Waie foi escolhido para as
26 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

chefias das forças armadas (outubro).


- 2005: novas eleições presidenciais. Nino Vieira retorna ao país e é
“reeleito.” Esse senhor, lídimo representante de tudo de ruim que atormenta
a Guiné-Bissau, continua no poder. Criação do Forum de Convergência para
o Desenvolvimento que reúne a grande maioria da oposição parlamentar.
Deposição do governo de Carlos Gomes Júnior pelo presidente Nino Vieira,
pretextando a existência de “instabilidade política”. Nomeação de um gover-
no de iniciativa presidencial.
- 2006: Assassinato do Comodoro Lamine Sanha, que foi próximo de
Ansumane Mané.
- 2007: Instituição do Pacto de Estabilidade Política pelos principais
partidos: PAIGC, PRS e PUSD e nomeação de um governo de consenso
nacional.
- 2008: O Chefe de Estado Maior da Marinha, almirante Bubo Na-
chut, é acusado de tentativa de golpe de estado e de utilizar as forças ar-
madas e uma parte do território para o tráfico internacional de droga. Em
prisão domiciliar, foge para a Gâmbia. Cai o governo do Pacto de Estabi-
lidade, três meses antes das eleições legislativas que levam novamente ao
poder, em novembro, o PAIGC. Carlos Gomes Júnior é de novo Primeiro
Ministro.
- 2009: em primeiro de março, o general Tagmé Na Waie, Chefe de
Estado-Maior das Forças Armadas, morre em um atentado à bomba ao quar-
tel-general. No dia seguinte, algumas horas depois, o próprio Nino Vieira é
assassinado por militares. Raimundo Pereira, presidente da Assembléia Na-
cional Popular, assume interinamente a presidência da República. O capitão
de fragata, Zamora Induta, é nomeado, a título provisório e à revelia das
disposições da Constituição, Chefe de Estado Maior das Forças Armadas.
A 26 de Julho, Malam Bacai Sanhá, candidato do PAIGC, ganha as eleições
presidenciais antecipadas, organizadas na sequência do assassinato de Nino
Vieira. Zamora Induta é confirmado nas suas funções de Chefe de Estado
maior das Forças Armadas.
Essa longa cronologia pode parecer enfadonha, mas ela é necessária
para se entender o que existe na Guiné-Bissau. Um observador superficial po-
deria chegar à conclusão de que o país é ingovernável, que os guineenses (e os
africanos em geral) não conseguem viver em uma democracia e, por fim, que
eles não estão preparados para viver no mundo capitalista e globalizado atual.
Eles só conseguiriam viver sob o regime tribal, na forma de regulados.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 27

Trata-se de uma conclusão falaciosa. Na verdade, a situação tem que


ser encarada de uma outra perspectiva. Se os africanos tivessem tido uma
continuidade em sua história, sem a invasão dos europeus, certamente teriam
encontrado o próprio caminho. Teria havido muitas guerras, como as houve
na Europa (cf. as Guerras Napoleônicas, a Primeira e Segunda Guerras Mun-
diais, Guerra dos Bálcãs etc.), mas haveria uma solução africana para os pro-
blemas africanos. A invasão dos europeus impôs uma ruptura nessa história,
que fez com que a contradição colonizadores-colonizados se sobrepusesse às
contradições internas a esses povos, que tiveram que se unir para fazer face à
dominação colonial. Uma vez adquiridas as independências e retomados os re-
ceptivos processos históricos, é normal que as contradições internas ressurgis-
sem, somando-se aos problemas africanos normais os trazidos pelos invasores.
Por outro lado, catapultados para um modelo político-econômico totalmente
diferente das suas realidades, por ser um produto de um processo evolutivo
que não foi o seu, as sociedades africanas têm dificuldades em assimilar o mo-
delo da democracia ocidental, baseado na divisão dos poderes institucionais e
numa democracia participativa. Isso significa que os invasores europeus não
levaram soluções para os africanos, mas problemas: desestruturação dos siste-
mas político-socio-econômicos, discriminação, escravidão, enfim, conflitos. A
busca de solução para a resolução desses conflitos tem-se revelado difícil, com
o surgimento de diferentes focos de conflito por todo o continente africano.
No entanto é aos africanos que compete a busca dessas soluções pela escolha
de modelos políticos e econômicos consentâneos com as suas realidades, com
base num verdadeiro desenvolvimento do fator humano, condição indispensá-
vel para um desenvolvimento sustentado.
No caso específico dos guineenses, pelo menos para os conflitos lin-
guísticos, eles encontraram uma solução. Diante do dilema de se usar uma
língua africana (que, aliás, são muitas) ou o português, eles criaram uma
terceira via, o crioulo, que é justamente uma solução de compromisso en-
tre as duas realidades. Agora falta encontrarem solução também para os
conflitos políticos. O que veremos nos capítulos seguintes reflete, direta ou
indiretamente, tudo isso.
28 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

I. A SITUAÇÃO LINGÜÍSTICA

A Guiné-Bissau é um pequeno país de apenas 36.125km2, com uma


população de cerca de um milhão e quinhentos mil habitantes1. Ela está si-
tuada no noroeste africano, entre o Senegal (ao norte), a República da Gui-
né, comumente designada por Guiné-Conacri (a leste e ao sul) e o Oceano
Atlântico a oeste. É o que restou da colonização portuguesa na costa ociden-
tal africana desde meados do século XV. No final do século XIX, as fronteiras
foram definitivamente delimitadas. Em 1884-1885, a Conferência de Berlim
estabeleceu que fatia do bolo africano ficaria com qual potência coloniza-
dora. Em 1886, o Acordo Franco-Português estabeleceu definitivamente as
fronteiras da Guiné-Bissau, pelo qual a chamada região da Casamansa pas-
sou para o domínio da França e a região de Cacine para o de Portugal.
No pequeno território da atual Guiné-Bissau, são faladas cerca de 20
línguas, muitas delas pertencentes a famílias diferentes, outras tão aparen-
tadas que poderiam ser classificadas como dialetos de uma mesma língua,
como veremos logo abaixo. Estas línguas coabitam com o crioulo, língua
veicular e de unidade nacional, e com o português, língua oficial, ambas
resultantes da colonização portuguesa.
As principais línguas étnicas são as seguintes, com porcentagem apro-
ximada do número de falantes:

fula 16%
balanta 14%
mandinga 7%
manjaco 5%
papel 3%
felupe 1%
beafada 0,7%

1. A obtenção de dados estatísticos populacionais precisos é bastante dificultada por dois fatos:
o recenseamento, que no tempo colonial era associado ao pagamento dos impostos, foi sempre
mal aceito pela população que em períodos de recenseamento evitam-no refugiando-se nos países
vizinhos. Por outro lado, as emigrações sazonais para os países vizinhos também têm repercussões
na coleta da informação.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 29

bijagó 0,5%
mancanha 0,3%
nalu 0,1%

É difícil encontrarem-se dados oficiais sobre a distribuição étnica de-


pois de 1991. Não sabemos se houve uma decisão deliberada de não se de-
terminarem as percentagens dos grupos étnicos, talvez para evitar a utiliza-
ção do fator étnico com fins políticos e/ou eleitorais. Pelo menos a um dado
momento essa questão foi levantada. De qualquer forma, essas estatísticas
são de final da década de 70. Uma outra estatística, com base no recensea-
mento feito em 1991, apresenta o seguinte quadro:

fulas 25%
balantas 24%
mandingas 14%
manjacos 9%
papéis 9%
brames 4%
beafadas 3%
outros 12%

Segundo dados extraídos do Ethnologue2, em 2002 a situação seria,


para uma população total então estimada em 1 200 000 habitantes:

fula 20,4% (245 130 falantes)


balanta 30,5% (367 000 falantes)
mandinga 12,9% (154 200 falantes)
manjaco 14,1% (170 230 falantes)
papel 10,4% (125 550 falantes)
felupe 1,8% (22 000 falantes)
beafada 3,4% (41 420 falantes)
bijagó 2,3% (27 575 falantes)
mancanha 3,4% (40855 falantes)
nalu 0,6% (8 50 falantes)

2. Gordon, Raymond G., Jr. (ed.), 2005. Ethnologue: Languages of the World, Fifteenth
edition. Dallas, Tex.: SIL International. Online version: http://www.ethnologue.com/.
30 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

No presente contexto, vale a pena dar uma olhada também na distri-


buição das religiões pela população a fim de entender a cultura guineense
(ver Onofre dos Santos, Um sorriso para a democracia na Guiné-Bissau,
Lisboa: PAC, 1996). Rosa (1993) apresenta um quadro ligeiramente di-
ferente, para uma população de aproximadamente 1.500.000 habitantes.

Onofre (1993) Rosa (1993)


muçulmanos 46% muçulmanos 30%
animistas 36% animistas 45%
católicos 13% cristãos 25%
outros cristãos 2%
outros 3%

Segundo os dados extraídos da página oficial do governo da Guiné-


Bissau3 a distribuição das religiões pela população apresenta-se atualmente
como segue:

mulçumanos 50%
animistas 40%
cristãos 10%

As dez línguas recém-mencionadas não são as únicas que se fazem


presentes na Guiné-Bissau. Com um número pouco significativo de fa-
lantes, poderíamos acrescentar ainda o bayote, o banhum, o badyara (pa-
jadinca), o cobiana, o nalu, o cunante (sem porcentagem de falantes), o
cassanga (já praticamente desaparecido), o wolof, o francês, o inglês etc.
O francês se faz presente devido às intensas relações que os guineenses
mantêm com os vizinhos Senegal e Guiné-Conacri, nos quais ele é a lín-
gua oficial. Com efeito, esses países são também multilíngues, sendo que
no Senegal o wolof é a língua de união nacional e o francês a língua do
Estado. Voltando à Guiné-Bissau, o crioulo é falado por uns 75% a 80%
da população.
Para complicar o quadro, a língua oficial é o português, conhecido
por cerca de 13% da população. A despeito disso, é a língua da escola,
dos meios de comunicação, da documentação oficial, do governo em atos
oficiais e assim por diante.
3. http://www.republica-da-guine-bissau.org
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 31

É preciso ressaltar que muitas variedades linguísticas tidas como “lín-


guas” diferentes não passam de “nomes” diferentes para dialetos de uma
mesma língua. Por exemplo, Mane (2001) defende a tese de que manjaco,
mancanha e pepel podem ser considerados como três dialetos de uma mes-
ma língua, com base no fato de que a fonologia dos três é idêntica, exceto
algumas variantes alofônicas, o que para a sociolinguística variacionista, e
para a fonologia, não seria nenhum problema. Porém, os linguistas já admi-
tem que a distinção entre língua e dialeto é meramente política.
De salientar que estas línguas não estão ainda codificadas e, por con-
seguinte, não são ensinadas e muito menos ainda constituem línguas de
ensino.
Como essas línguas convivem em um pequeno território, necessaria-
mente há um contato relativamente intenso entre seus falantes. Diante desse
contato e dos resquícios da colonização portuguesa, ou seja, o crioulo e
o português, resulta uma espécie de continuum que vai desde variedades
do português lusitano, passando por variedades de crioulo aportuguesado
e crioulo tradicional, basiletal, até as línguas nativas, étnicas, como se pode
ver no quadro a seguir.

português lusitano
qQ
português acrioulado
qQ­
crioulo aportuguesado
qQ­
crioulo tradicional
qQ­
crioulo nativizado
qQ­
línguas nativas

Como a língua portuguesa será objeto de outro capítulo, gostaría-


mos de examinar aqui mais detalhadamente a situação do crioulo no país.
É claro que ele se alterou muito desde sua formação nos séculos XV, XVI
e XVII até hoje. Infelizmente, porém, os colonizadores não nos deixaram
registros dele em forma de texto. De sua fase de formação não temos nada
a não ser uma que outra observação indireta dos cronistas da época. Mes-
32 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

mo os raríssimos casos de menção ao que pode ter sido o crioulo não são
dignos de confiança, dado o preconceito que os portugueses nutriam em
relação a ele (consideravam-no uma deformação do português, “português
errado”, “mal falado”).
No que tange a descrições da língua, a primeira de que dispomos é a do
cônego Marcelino Marques de Barros, de final do século XIX e começo do XX
(Barros 1897-1902). Ele apresentou uma descrição minuciosa, embora caó-
tica, do crioulo, com uma grande quantidade de exemplos. Esse mesmo autor
já transcrevera um texto em 1883, intitulado “Lobo co garça”, o mais antigo
por nós conhecido. É um texto bastante curto, mas mostra que o crioulo da
época apresentava várias diferenças relativamente ao atual, até onde podemos
confiar em sua transcrição lusocêntrica e no seu amadorismo em questões
linguísticas. No entanto, no momento não dispomos de opção melhor. Uma
forma claramente arcaica, registrada por Barros em 1883, e hoje em vias de
desaparecimento pode ser vista em (1)-(3), em que a forma atual vem após a
barra oblíqua. Como se vê, houve uma síncope da oclusiva sonora intervocáli-
ca, com a consequente semivocalização da segunda vogal.

(1)
(a) n disábu / n disau ‘eu o deixei’
(b) ndé ku bu na bai? / ndé k’u na bai? ‘aonde você vai?’
(c) kabu / kau ‘lugar

Em Bissau, a forma com o /b/ intervocálico é opcional. É portanto


uma forma viva no crioulo mais conservador, sobretudo na Casamansa. No
entanto, ela ocorre também em outras regiões da Guiné em pessoas mais
velhas ou nos falantes do kriol fundu. No kriol lebi (mesoleto e acroleto) está
enfraquecido e desapareceu no sotaque de muitos falantes.
Barros menciona diversas outras formas menos comuns no crioulo
atual. Elas são muito frequentes em contos tradicionais, como é caso do
prefixo de plural ba- para grupos de pessoas aparentadas, como em (2).

(2)
(a) ba-Maneles ‘os Manuéis’
(b) ba-quissas [cussas?] ‘coisas, as coisas’
(c) ba-djobê ‘os que olham, os curiosos’
(d) ba-noba ‘novidade’, donde banoberu.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 33

Como informa Incanha Inthumbo (comuniucação pessoal), a forma


‘ba-quissas” reduplicada (em ‘ba-quissas ba-quissas”) corresponde ao etce-
tera. Isolado, poderia ser traduzido “as outras coisas”, “os outros fulanos”.
Em síntese, ba- é um marcador de plural de origem africana. É usado antes
dos nomes próprios para designar o fulano e os seus amigos ou familiares
(ba-Ntoni, por exemplo) e antes de nomes comuns para expressar o inde-
fenido (ba-kadernus, ba-kusas). É comum ouvir-se ba-kins, como em ba-
quins ku bai luta? ‘quais são os que foram à luta?’
Diante da quase inexistência de registros de fases anteriores do criou-
lo, para se ter alguma ideia de suas formas antigas, é necessário estudar va-
riantes mais conservadoras da língua atual, no caso, a variante da Casaman-
sa. Observando as formas do crioulo tradicional, podemos fazer um pouco
de reconstrução linguística e, com isso, recuperar um pouco de formas an-
tigas. Assim, no nível fonético-fonológico notamos, em primeiro lugar, que
o “lh” de “filho” e “velho” evoluiu para “dj”, dando fidju e bedju. O som “x”
de “chiqueiro” e “chuva” virou “tx”, como em txikeru e txuba. Como se pode
ver em bedju e txuba, o “v” se transformou em “b”, fato que ocorre também
em algumas palavras do português rural (sobaco, barrer, trabissero). O “z”
português vira “s”, como em sagaya (< azagaia) e fasi [‘fasi] (< fazer).
Essas características tendem a desaparecer no crioulo aportuguesado, e no
crioulo atual em geral.
No caso da estrutura silábica, há uma tendência à simplificação na
direção da sílaba ótima CV, já exemplificada na própria palavra que designa
a língua, ou seja, kiriol que convive com a variente kriol e até kriolu, como já
ocorre hoje. São comuns palavras como sukuru (escuro) e garandi (grande),
entre outras.
No nível sintático o crioulo antigo apresentava (e o basiletal atual
ainda apresenta) uma série de especificidades. A reflexividade, por exem-
plo, era indicada pela construção nha cabeça (minha cabeça) como se
pode ver em (3). Há uma forma tônica do pronome (entre parênteses) e
uma átona, como em francês.

(3)
(a) ami, N mata ña kabesa ‘eu me matei’
(b) abó, bu mata bu kabesa ‘tu te mataste’
(c) el, i mata si kabesa ‘ele se matou’
(d) a nós, nó mata nó kabesa ‘nós nos matamos’
34 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

(e) a bós, bó mata bó kabesa ‘vós vos matastes’


(f) elis, é mata sé kabesa ‘eles se mataram’

Um fato que deve ter chamado a atenção é que a forma simples do


verbo crioulo foi traduzida pelo nosso pretérito. Como veremos no capítulo
sobre as narrativas orais, isso tem a ver com o momento de referência da
narrativa. Para nós é o momento da própria narração. Para o crioulo (e mui-
tas línguas étnicas africanas), a referência é o momento do próprio evento,
para o qual se usa o verbo em sua forma simples. Como para nós o momento
do evento é passado em relação ao momento da narração, a forma simples
do verbo crioulo deve ser traduzida naturalmente pelo nosso pretérito.
Uma outra característica de um crioulo mais arcaizante são os ide-
ofones, ou seja, formas que só ocorrem com determinado tipo de palavra,
geralmente para intensificação. Em (4) temos alguns exemplos (os ideo-
fones estão grifados). No crioulo aportuguesado, já se diz também muito
sukuru, muitu limpu etc.
(4)
(a) branku fandan ‘muito branco’
(b) pretu nok ‘muito preto’
(c) limpu pus ‘muito limpo’
(d) sukuru tip ‘muito escuro’
(e) burmedju uac ‘muito vermelho’

O crioulo apresenta também variação regional, bem mais fácil de ser


descrita do que a diacrônica. No caso do crioulo português da costa ociden-
tal africana, as variantes que se notam em primeiro lugar são a caboverdiana
e a guineense. Alguns autores consideram-nas como pertencentes à mesma
língua, dada a grande semelhança e, até certo ponto, a intercompreensão
que há entre ambas. Mas, além da questão guineense-caboverdiano, temos
as duas variantes do crioulo continental faladas na Guiné-Bissau e na Ca-
samansa, como demonstrou Rougé (1986). Vejamos alguns exemplos desse
autor.

Casamansa Bissau
kebe kibi ‘caber’
meste misti ‘é mister, querer’
sebe sibi ‘saber’
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 35

morde murdi ‘morder’


kore kuri ‘correr’
ferbe firbi ‘ferver’
tese tisi ‘trazer’

Também Barros (1897-1902) fornece alguns exemplos. Ei-los:

Cachéu Bissau/Bolama
des deus ‘Deus’
kriatuda kriatura ‘criatura’
purmedu purmeru (primeiro)
kaá kabá (acabar)
genti (guenti) djenti (gente)

Por fim, Wilson (1962: VII) afirmou que “no interior da Guiné exis-
tem três dialetos principais do crioulo. São eles o de Bissau e Bolama, atu-
almente muito desenvolvido, o de Cachéu e São Domingos (e Ziguinchor
[Casamansa]), falado principalmente ao longo da fronteira norte até a costa,
e o de Bafatá e Geba”, mais para o interior.
Além da variação diacrônica e da diatópica, o crioulo guineense varia
também diastraticamente, o que em geral se chama de variação social, uma
vez que tem a ver com o nível socioeconômico e/ou cultural dos falantes.
Isso a comunidade de fala guineense é um continuum, que vai desde as lín-
guas nativas até o português lusitano, passando pelo crioulo nativizado, o
crioulo aportuguesado e o português acrioulado, que é o português guine-
ense propriamente dito.
Só as extremidades do continuum são inteiramente estranhas uma à
outra. Mas, como o todo faz parte de uma comunidade de fala em que a
interação entre falantes de diversas línguas sempre se dá de algum modo,
temos que reconhecer estágios intermediários entre as duas. Três desses es-
tágios são variedades do crioulo (aportuguesado, tradicional, nativizado).
Os extremos são, de um lado, o português; do outro, as línguas étnicas
africanas.
O crioulo aportuguesado contém muitos empréstimos lexicais do por-
tuguês e, às vezes, até expressões inteiras nessa língua. Vejamos o exemplo
(5). A tradução nem é necessária, uma vez que qualquer falante de portu-
guês pode entendê-lo.
36 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

(5)

Olá ña parentis. Alê-nu li.


A nos i prujetu Guiné-Bissau CONTRIBUTO. A partir di aos no kumsa un novu
faze na forma di komunika ku bôs ke sta na tera, pabia konsiensializason, sensi-
bilizason i muito importanti na formason dun novu mentalidadi ke no misti pa
tudo gineensi. Purke, ora ke no forma homin novu pa no tera, homin sin qui vísius
d’antigamenti, homin konsienti de si papel na sociedadi, nô pudi pensa realmenti
na grandi disenvolvimento ki tudu gintes ta papia pa Giné, ma ki i difícil konsegui
sin ki formason di mentalidadi.

O crioulo tradicional, chamado localmente de “kriol fundu”, por seu


turno, seria incompreensível aos não iniciados. Vejamos um provérbio (ditu),
tirado da mesma fonte:

(6) Kin ku misti pis, i ta ba modja rabada na iagu

Todos os morfemas provêm do português. No entanto, sem uma tra-


dução ou explicação, nenhum falante dessa língua entenderia o provérbio.
A etimologia de cada lexema é a seguinte: kin < quem; ku < que; misti <
é mister (= quer); pis < peixe; i < ele (“i” não significa “é”, como pode
parecer em alguns textos); ta < tá (<stá < está < estar); ba < vai; modja
< molha(r); rabada < rabada < rabo (traseiro); na < em + a (na); iagu <
água. Portanto, a tradução aproximada é “Quem quer peixe deve molhar o
traseiro na água”.
Dos traços que pertencem à variedade de crioulo nativizado, podería-
mos citar, entre outros, traços fonéticos e semânticos. Vejamos um exemplo
fonético: como em bijagó não existe o fonema /f/, seus falantes o substituem
por /p/, quando começam a falar crioulo. Assim, fasi ‘fazer’ vira pasi. O ba-
lanta não tem /p/. Seus falantes o substituem por /b/, como em poti ‘pote’
que é pronunciado como ‘boti’. Entre as influências semânticas, temos as
formas de tratamento.
Para o equivalente do nosso “como vai” ou “oi”, dizem os guineenses
em geral kuma di kurpu ‘como está o corpo’, sendo que a resposta é kurpu
sta bon ‘o corpo vai bem’. O verbo kansa pode significar tanto “cansar”
quanto “ser difícil”. Cumprimenta-se também perguntando pela posição em
que a pessoa se encontra. Se ela está deitada, cumprimenta-se assim: bu
dita? ‘você está deitado?’ Se ela está de pé, diz-se bu firma ‘você está de
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 37

pé?’ Tudo isso é transposição de conteúdos étnicos africanos para o criou-


lo. Enfim, cada nível do quadro indica um “momento” do continuum dos
“momentos” em que uma série traços se sobrepõem. Cada um desses traços
pode ocorrer nos “momentos” adjacentes.
Segundo a concepção representada acima, tudo que está entre por-
tuguês lusitano e línguas étnicas seria “dialeto”, variação de um dos dois.
No entanto, essa interpretação é inaceitável por vários motivos. Primeiro,
por violentar a realidade ao considerar crioulo tradicional, e até mesmo
o crioulo nativizado, como variante (dialeto?) do português, o que ele
efetivamente não é. Segundo, não se pode dizer que o crioulo nativizado
e o tradicional sejam variedades das línguas nativas. Com efeito elas são
muitas (mais de 15, como vimos), e já eram muitas na época de forma-
ção do pidgin/crioulo. Assim, caberia a pergunta: o crioulo tradicional e o
nativizado seriam variedades de qual delas? Uma outra objeção, a nosso
ver também séria, contra essa concepção é que ela é muito etnocêntrica,
destacando as línguas nativas e o português, ignorando as variedades do
crioulo, que é uma língua como qualquer outra. Por fim, ela é por demais
eurocêntrica, lusocêntrica, por considerar todos os letos da comunidade
de fala como alguma modalidade de português (“deformada”, “errada”,
“estropiada”, etc.), com exceção das línguas nativas, cuja existência é ine-
vitável.
Pelo que ficou dito acima, pode parecer que o território da atual Gui-
né-Bissau estava inteiramente ocupado pelos portugueses e, portanto, intei-
ramente aculturado quando as guerras de libertação se iniciaram na década
de sessenta. Nada está mais longe da verdade. Os portugueses ocupavam
efetivamente apenas alguns centros urbanos como Bissau, Cachéu, Farim,
Bolama, Bafatá, Gabú etc. O sertão estava inteiramente intacto; nele só se
encontravam as etnias africanas em estado “puro.” Nem o português nem o
crioulo haviam chegado até lá. Como observou Jean-Louis Rougé, a forma-
ção do crioulo está intimamente ligada ao processo de urbanização (Rougé
1986: 36). O mesmo se deu com sua expansão para as zonas rurais, isto é,
ele foi levado às tabancas (aldeias, agrupamentos de casas tipicamente afri-
canas) do interior do país a partir das cidades, sobretudo da capital Bissau.
Os principais responsáveis pelo início da disseminação do crioulo
pelo interior do país foram os independentistas liderados por Amílcar Ca-
bral. Todos os seus principais comandantes eram citadinos, frequentemen-
te conhecedores até da língua portuguesa, mas que tinham como principal
38 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

meio de comunicação o crioulo, mesmo quando tinham alguma das lín-


guas étnicas como língua materna. Como as forças militares portuguesas,
inimigas, se concentravam basicamente nas cidades, os combatentes da
liberdade tiveram que se instalar no mato onde, como vimos, viviam as
etnias locais, com suas respectivas línguas, desconhecedoras de qualquer
língua falada nas cidades. Assim, os independentistas verificaram que o
crioulo era a única opção linguística para aparar as arestas das diferenças
étnicas. Por isso, não titubearam em usá-lo como meio básico de comuni-
cação veicular.
Como disse Lino Bicari no prefácio a Scantamburlo (1981: 5), “os
cerca de trinta povos da Guiné começaram a sentir-se um só povo que, por
exigência de luta unitária, escolheu uma língua, o ‘Criol’, a língua que nas-
ceu com a colonização mas que se transformou em ‘Língua da Libertação’.”
É bem verdade que o crioulo não era a única língua que os combatentes usa-
vam. Através da Rádio Libertação, eles enviavam suas mensagens aos guine-
enses também em português, em beafada, em mancanha, em mandinga, em
fula etc. No entanto, o meio de comunicação interétnico por excelência era
o crioulo. Um dos momentos mais interessantes das emissões dessa rádio
era o programa “N pidi palabra” (eu peço a palavra), em crioulo (cf. jornal
O Militante, nº 2, 1977, p. 25).
Diante do inevitável, “o crioulo tornou-se um elemento de unidade, o
portador da mensagem política do PAIGC e, mais tarde, o detentor sóciolin-
guístico do conceito de independência” (Lopes, 1988: 230-231), apesar das
reservas de Amílcar Cabral em relação não só a ele, mas também às línguas
étnicas.
Em síntese, a antiga Guiné Portuguesa resultou “do contacto directo
e permanente entre a componente eurocolonial e a componente étnico-
africana” de que “resultou um mestiçamento, tanto a nível biológico como
cultural” (Ribeiro 1989: 233). Ou seja, “os Crioulos constituíram o eixo
embrionário da futura Nação guineense.” Durante o movimento da liber-
tação nacional, o papel do crioulo foi mais valorizado ainda, sobretudo
do ponto de vista linguístico. Com efeito, “a formação da Nação a partir
de uma população étnica, cultural e socialmente heterogênea, passa pela
substituição dos laços de solidariedade de grupo por laços de solidarieda-
de nacionais” (Santos 1989: 195). Pois bem, são justamente os laços de
solidariedade nacionais que passaram a ser enfatizados no período pós-
independência. Tanto que, já em 1990, um presidente da república afirma-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 39

va, por ocasião da data nacional (24 de setembro), que “as relações étnicas
vêm perdendo a sua predominância a favor das relações nacionais” (Nô
Pintcha 29/9/90, p. 6-7).
O crioulo está no meio das duas realidades contraditórias que com-
põem a Guiné-Bissau, isto é, o componente étnico-cultural e o euro-colonial,
segundo a terminologia de Ribeiro (1989: 233). Mesmo que os guineenses
tenham como objetivo o domínio do português, têm que fazê-lo a partir do
crioulo.
Já vimos que a situação linguística da Guiné-Bissau é extremamente
complexa. Com efeito, e a título de recapitulação, a realidade linguística
primeira não só guineense, mas também africana em geral são as línguas ét-
nicas. O crioulo já é um passo na direção da europeização, embora um passo
dado pelos próprios africanos, muitos dos quais o têm como língua materna.
Apesar de ser “o crioulo, que hoje nos une em todo o país, desde Sucudjá
a Cacine e de Caravela a Buruntuma” (Lopes, 1988: 235), apesar de haver
outras línguas veiculares menores, apesar de tudo isso é o português que é a
língua oficial e do ensino, desde o primeiro dia de escolarização da criança.
O pai da nação Guiné-Bissau, Amílcar Cabral, já se manifestara aber-
tamente a favor do uso do português. Ele tinha uma visão instrumental da
língua. Em suas palavras, “para nós tanto faz usar o português, como o rus-
so, como o francês, como o inglês, desde que nos sirva, como tanto faz usar
tractores dos russos, dos ingleses, dos americanos, etc., desde que tomando
a independência, nos sirva para lavrar a terra” (Cabral, 1990: 61). Continua
o autor: “muitos camaradas, com sentido oportunista, querem ir para frente
com o crioulo. Nós vamos fazer isso, mas depois de estudarmos bem. Agora
a nossa língua para escrever é o português”. Afinal, “o português (língua)
é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram” (Cabral, 1990: 59).
Para Cabral, o fato de o crioulo ser ainda uma língua ágrafa, usada
só no nível da oralidade, era apenas um dos problemas que seu uso traria.
Além dele havia vários outros. Por exemplo, o crioulo não tem - e muito
menos as línguas étnicas - recursos para expressar idéias como “raiz
quadrada de 36”, “aceleração da gravidade”, “a lua é um satélite natural
da terra” etc. A propósito desta última expressão ele chega a reconhecer
que “é possível dizê-lo, mas é preciso falar muito até fazer compreender
que um satélite é uma coisa que gira à volta de outra. Enquanto que em
português basta uma palavra” (Cabral 1990: 60). Termina chamando a
atenção para a semelhança que há entre o crioulo e o português. Assim,
40 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

mesmo sendo a língua um instrumento, “não vamos pôr toda a gente a


aprender russo, [...] temos uma língua que é o nosso crioulo, que é pare-
cida com o português”. Conclui por sugerir o uso do crioulo como uma
ponte para se chegar ao português, ou seja, “se se conhecer a ligação que
há [entre ambas as línguas] isso facilita aprender o português” (Cabral,
1990: 61).
Nos dias de hoje a discussão continua girando em torno do mesmo
assunto. No nível das autoridades governamentais, a opção pela língua por-
tuguesa continua, sendo ela preferida inclusive frente a outras línguas eu-
ropeias possíveis, como o francês. A questão do uso do crioulo como ponte
para se atravessar o largo oceano que separa a cultura africana (línguas
étnicas) da europeia (português) continua em curso, mas só em nível de
discussão. Enquanto isso, continua-se a tentar navegar em português.
Em outubro de 1989, quinze anos após a independência, pela enési-
ma vez o ministro da educação “anunciava a intenção de o crioulo vir a ser
introduzido nas escolas primárias, concretamente nos dois ou três primeiros
anos de escolaridade” (Quadé, 1990: 8). Entre os técnicos em educação lo-
cais, a discussão vem sendo mantida ininterruptamente desde Cabral, morto
em 1973, oito meses antes da independência do país, até os dias de hoje.
Em setembro de 1990 houve uma mesa-redonda no INDE (Insti-
tuto Nacional para o Desenvolvimento da Educação) para avaliar o de-
sempenho geral das escolas rurais. Volta e meia a discussão caía no uso/
não-uso do crioulo nas escolas. A maioria das intervenções propugnava
pelo uso do crioulo nos primeiros anos, encarando-o como ponte para
se chegar ao português como língua alvo. Ora, isso era exatamente a
proposta de Cabral de 20 anos atrás, o que significa que a discussão
e, consequentemente a implementação, não avançou nem um passo. O
português continua sendo a língua do ensino da primeira à 11ª classe.
O crioulo ainda não foi introduzido nem como ponte para o português.
É claro que o objetivo não é o mesmo da época colonial, durante a
qual “a finalidade era desafricanizar” (Macedo 1978: 9). O que se almeja
agora são “as relações funcionais com o mundo exterior” (Quadé, 1990:
8), ou seja, usa-se o português por ser a língua que facilita as relações com
o resto do mundo. Assim sendo, de certa forma se vai contra o que se fazia
na época das guerras de libertação, durante as quais o que se valorizava era
o contexto local. As “escolas do mato” ou “escolas de tabanca” tinham por
objetivo “que todas as escolas fossem um local de ensino da agricultura e
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 41

trabalho de extensão, com o seu próprio campo de arroz e horta escolar, en-
sinando as crianças a trabalhar no campo e a improvisar as técnicas” (Achin-
ger, 1986: 9), como sugeria o pedagogo marxista Paulo Freire (cf. Freire/
Faundez, 1985: 124-135).
Ao lado da escola oficial havia e há também a escola corânica, ou
escola de marabu, muito adaptada às condições de vida e à cultura locais,
sobretudo entre os fulas, os sossos e os nalus. No entanto, “nem a escola
oficial nem a corânica tiveram êxito no fornecimento de meios gerais de
comunicação. Isto só pode ser efetivado por uma escola que ensine a ler e
escrever em ‘crioulo’, a língua franca da Guiné-Bissau, que atingiu a sua
importância como língua nacional durante a luta de libertação”. A tal ponto
que hoje “não existe nenhuma tabanca na Guiné-Bissau, onde a população
mais jovem não fale ou pelo menos não compreenda crioulo” (Achinger
1986: 12). Não obstante isso, o português continua sendo usado, “banindo
oficialmente o crioulo das escolas”. Com isso estão tapando o sol com a
peneira, uma vez que “apesar de não oficial é a comunicação normal entre
professores e alunos” (Achinger 1986: 13). Apesar de oficialmente proibido,
os professores têm que fazer uso dele nos primeiros anos, oralmente, porque
se falam em português não são entendidos pelas crianças. Nesse caso, como
poderiam alfabetizar? Na verdade, nos primeiros anos os professores dão
aulas em crioulo para alfabetizar em português.
Em 1984, uma campanha de alfabetização foi levada a cabo por um
grupo de jovens dinamarqueses na região de Tombali. Ela falhou “pelas mes-
mas razões: a insistência do português como língua do ensino” (Achinger
1986: 16). Em síntese, é muito difícil alfabetizarem-se crianças em uma
língua estrangeira. Não obstante, é o que continua sendo feito. As consequ-
ências são desastrosas para a educação na Guiné-Bissau. No caso do projeto
dinamarquês, “apesar do curso de dois anos abrangendo duas horas diárias,
os participantes não conseguiram aprender mais do que algumas frases sim-
ples e sem sentido que não possuíam nenhum tipo de relações com as suas
vidas quotidianas” (Achinger 1986: 16). Como é a regra geral na Guiné-Bis-
sau, os alunos decoram frases mecanicamente, sem nenhum senso crítico.
Ao nível do ensino formal, uma experiência de utilização do crioulo
no ensino primário foi realizada entre 1984 e 1993 no âmbito dos Centros
Experimentais de Educação (CEEF)4. O crioulo era utilizado como “meio

4. DIALLO Ibrahima, « Politique linguistique et intégration des langues nationales dans


le système éducatif en Guinée-Bissau (1) », INDE, Guinée-Bissau
42 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

de aproximação do aluno com a escola para melhor facilitar a aprendizagem


nas duas primeiras classes do ensino primário. O português substituía-o a
partir da terceira classe”. Comparativamente com as classes tradicionais, os
resultados dessa experiência foram considerados bons e permitiram verificar
que as crianças que viviam num meio em que se falava o crioulo tinham
melhores resultados escolares dos que as que viviam em zonas rurais onde o
crioulo era pouco ou nada falado. Embora a experiência não tenha sido ge-
neralizada, ela permitiu apreender as vantagens e as limitações da utilização
do crioulo como língua de ensino.
Existem questões técnicas que impedem o uso pleno do crioulo e até
de outras línguas étnicas majoritárias, malgrado a opinião dos linguistas e
dos pedagogos estrangeiros. Para as línguas étnicas, é difícil ter-se uma clas-
se homogeneamente composta de alunos de uma mesma etnia. O normal é
as classes serem heterogêneas. Mesmo que se conseguissem classes homo-
gêneas, não haveria professor qualificado capaz de ministrar aulas na língua
em questão. Mesmo que houvesse o professor, não haveria material didático
em cada uma das diversas línguas.
No caso do crioulo, os problemas seriam menores. Afinal, além de
os professores o dominarem em geral como língua materna, já existe uma
incipiente literatura, sob a forma de fábulas, recolhidas da oralidade. Além
disso, temos os textos bíblicos produzidos pelos missionários, tanto cató-
licos quanto protestantes, e as fábulas publicadas pela Editoria Nimba em
texto corrido e em quadrinhos. Finalmente, existe uma proposta de grafia
para o crioulo relativamente aceita, “súmula do Alfabeto Fonético Inter-
nacional e do Instituto Internacional Africano” (Lopes, 1988: 230). Mas,
isso ainda é muito pouco. Portanto, continua-se usando exclusivamente o
português. Falta ainda o principal, que são livros didáticos, material escrito
em crioulo, gramáticas, dicionários, enfim, quase tudo.
Como a alfabetização e todo o ensino posterior se dá numa língua
estrangeira, os resultados são calamitosos. Assim, somente um em cada 500
alunos transita da primeira à décima primeira classe sem nenhuma repeti-
ção. No nível elementar, apenas um em 400 chega ao sexto ano com suces-
so. 41% dos alunos inscritos na primeira classe não são admitidos na se-
gunda. Isso tudo, levando-se em consideração que apenas 40% das crianças
guineenses se matriculam em alguma escola. Portanto, não é de admirar que
“a taxa de analfabetismo é de 86%”, como reconheceu o próprio presidente
da república em 1988, e a situação atual não é melhor.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 43

Temos que reconhecer, porém, que não é apenas o uso de uma lín-
gua estrangeira (o português) que causa todo o desastre que é o ensino
na Guiné-Bissau. Em primeiro plano vêm as causas econômicas, estrutu-
rais e conjunturais. Há um baixo nível de formação dos docentes e falta
de meios para reciclagens periódicas, um salário que mal dá para com-
prar um saco de arroz (base de alimentação dos guineenses) de cerca de
60 quilos e pago com grande atraso. A consequência é a fuga de quadros
que vão para outros países ou então trabalhar para as empresas privadas
ou organizações internacionais. Uma utilização indevida da ajuda exter-
na, quer por desvios dos recursos para outros fins, quer por má gestão
não contribui para uma melhoria do sistema que se vem reproduzindo ao
longo do tempo.
Quanto à educação de adultos, já se tentou uma política de alfabetizar
em crioulo, fula e balanta. As tentativas prévias de alfabetizá-los em língua
estrangeira (português) se mostraram absolutamente inviáveis. Os adultos
são muito menos flexíveis do que as crianças.
Enfim, a adoção do crioulo pelo menos nos primeiros anos da es-
colarização da criança não resolveria todos os problemas do ensino na
Guiné-Bissau. No entanto, pelo menos aqueles que não dependem de
dinheiro estariam eliminados. Por não ser a língua de nenhuma etnia, o
crioulo é a única língua de todos os guineenses, portanto, o bom senso
nos diz que deveria ser a língua do ensino.
Gostaríamos de encerrar este capítulo sobre a situação sociolinguís-
tica guineense com uma breve discussão sobre que variedade de crioulo
adotar-se, no caso de se adotá-lo no ensino. A maioria dos estudiosos tem
recomendado o crioulo tradicional, embora lembrando sempre como são as
formas equivalentes do crioulo aportuguesado. Esta decisão está estriba-
da em várias motivações. Em primeiro lugar, se déssemos preeminência ao
crioulo aportuguesado, a descrição ficaria muito sobrecarregada, por ser ele
um crioulo muito parecido com o português. Com efeito, as fronteiras entre
ele e o português não estão delimitadas, trata-se de um continuum. Sobretu-
do no nível lexical e às vezes até no nível morfológico, teríamos quase que o
próprio português. Em segundo lugar, a escolha do crioulo tradicional como
ponto de partida para a descrição do crioulo guineense se justifica também
pela nítida consciência existente nos falantes do crioulo de que o “verdadei-
ro” crioulo, o crioulo “puro”, é o kiriol fundu, do qual, afinal de contas, o
nosso crioulo tradicional está muito próximo.
44 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Não obstante os dois argumentos em prol da opção pelo crioulo tra-


dicional, o crioulo aportuguesado deve ser também levado em consideração
porque é ele que é efetivamente usado hoje nos centros urbanos. Como sa-
bemos, são estes que determinam a direção do movimento histórico. Além
do mais, o rádio, a televisão, os cartazes de informação sobre saúde à po-
pulação nas ruas e as histórias em quadrinhos são todos escritos em crioulo
aportuguesado. Até mesmo os textos bíblicos dos missionários podem ser
considerados como exemplares dele. E eles são a maioria do que há de es-
crito em crioulo na Guiné-Bissau. O processo de descrioulização se acelera
a cada dia que passa.
Quanto ao crioulo nativizado, não precisa ser levado em consideração.
Não é que ele não seja digno de atenção ou que tenha uma importância se-
cundária no país. Pelo contrário, dado o fato de grande parte dos falantes ter
o crioulo como língua veicular, ou seja, aprendida após uma língua materna,
o crioulo nativizado tem um amplo espectro de falantes. Aliás, essa variedade
do crioulo varia muito devido a sua natureza mesoletal. Assim, haveria tantas
variedades de crioulo nativizado quantas são as línguas étnicas de base.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 45

II. A LÍNGUA PORTUGUESA

Introdução

Quando lemos nos livros de filologia ou de história da língua por-


tuguesa a relação dos países em que ela é falada, em geral temos mais
ou menos o seguinte: “A língua portuguesa é falada em Portugal, Brasil,
Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe”.
Alguns acrescentam Macau e, mais recentemente, Timor Leste. Outros
vão mais longe ainda, citando Goa e assim por diante. Tais apresentações
são muito enganadoras. Elas deixam em nós a impressão de que nesses
países se fala português como se fala em Portugal ou no Brasil. Em casos
extremos como Macau, que voltou ao domínio chinês em 1999, a presença
portuguesa praticamente já desapareceu. Em Goa, retomada pela Índia em
1961, a situação não é muito diferente. Quanto a Timor Leste, devido aos
25 anos de domínio indonésio, tem muito pouco de língua portuguesa,
apesar de as lideranças políticas terem optado por ela como língua oficial,
após a reconquista da autonomia em 30 de agosto de 1999. Vai levar anos
para se verem os resultados dessa política. Mas, mesmo nos cinco países
africanos tradicionalmente de língua oficial portuguesa, a situação é bem
mais complicada do que nos dão a entender as histórias da língua e os
manuais de filologia.
Na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique são faladas diversas
línguas nativas africanas. E até há poucos anos várias dessas línguas tinham
nesses países muito mais falantes do que o português. Porém, se a situação
prevalece na Guiné-Bissau, onde apenas cerca de 13% dos guineenses o fa-
lam, (essencialmente como língua segunda ou terceira) e o crioulo é a língua
majoritária, já em Moçambique e em Angola houve uma grande expansão
da língua portuguesa, devido à deslocação das populações rurais para os
centros urbanos por causa das guerras civis que ocorreram nesses países
depois da independência. Com efeito, em Angola, o português é hoje a pri-
meira língua falada, com cerca de 30% da população que a tem como língua
materna (60% declaram que o falam), enquanto que as línguas nativas mais
46 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

faladas, o umbundo e o kimbumdo, têm como locutores respectivamente


26% e 20% da população.
Em Cabo Verde a língua majoritária da população é o crioulo, língua
materna da esmagadora maioria dos caboverdianos e a praticada no convívio
quotidiano.
Em São Tomé e Príncipe, o português língua oficial tem a particu-
laridade de coabitar com três crioulos de base portuguesa e de ser falado
por 95% da população, contra 85% que fala o forro, 3% o angolar e 0,1% o
principense.
Nosso objetivo neste capítulo é falar da situação da língua portuguesa
na Guiné-Bissau. Deixaremos de lado, por conseguinte, o que se passa nos
outros países e nas outras regiões acima mencionadas. Quem se interes-
sar pelo assunto, pode consultar as atas do congresso sobre A Situação da
Língua Portuguesa no Mundo (Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portu-
guesa, 1985). Ainda sobre a questão da língua portuguesa na África, reco-
mendamos duas coletâneas publicadas em Leipzig, ex-Alemanha Oriental.
A primeira delas, Le Portugais em Afrique, foi organizada por Matthias Perl,
e constitui o número 53 da série Linguistische Arbeitshefte, 1986, da seção
TAS da Karl-Marx Universität (hoje Universität Leipzig). Na mesma uni-
versidade e também coordenados por Matthias Perl, saíram, em 1989, dois
volumes sob o título Portugie­sisch und Crioulo in Afrika. Geschichte, Gram-
matik, Lexik, Sprachentwicklung (O Português e o Crioulo na África. His­
tória, Gramática, Léxico, Desenvolvimento Lingüístico, em português). Em
termos de visão de conjunto sobre a língua portuguesa na África, é provavel-
mente o que há de mais completo até hoje. Nessa obra são abor­dadas ques-
tões como política linguística, contato português-línguas nativas, variação
linguística, especificidades gramaticais, lexi­cais etc. Até mesmo a literatura
tem uma certa presença, sobretudo pelo fato de grande parte dos exemplos
de usos linguís­ticos ser tirada de obras de autores locais. Como no volume
em francês de 1986, tam­bém neste último cada assunto é estudado por um
especialista diferente. A Guiné-Bissau está incluída.
Não devemos esquecer os trabalhos dos filólogos sobre a língua por-
tuguesa e os crioulos portugueses no mundo. Ainda no século XIX Adolfo
Coelho apresentou um conspecto muito interessante do que ele considerava
“dialectos” da língua por­tuguesa na América, África e Ásia, embora no con-
texto de uma obra mais ampla sobre os “dialectos românicos” (Coelho 1880,
1882, 1886). Bem no início do século XX saiu Vasconcelos (1901), além
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 47

de obras menores publicadas posteriormente. Enfim, quase todo manual de


filologia por­tuguesa ou de história da língua portuguesa toca no assunto (cf.
Teyssier 1970: 93-97, Silva Neto 1970: 427-546, Azevedo 2005).
Voltando à questão da língua portu­guesa na Guiné-Bissau, trata-se de
uma situação sui generis, dadas as peculiaridades da coloni­zação da região.
Dividiremos a exposição em duas partes. Na primeira, fazemos um diagnós­
tico da situação linguística do português guineense. Em seguida tentamos
formular alguns prognósticos para o futuro dele nesse país, com base no que
existe atualmente.

O português na Guiné-Bissau: diagnóstico

Devido ao fato de a Guiné-Bissau ter sido apenas uma fonte de for-


necimento de escravos e de algumas mercadorias para os exploradores por-
tugueses até praticamente o século XIX, sua ocupação e colonização sem-
pre foi muito precária. Só no século XX houve uma efetiva exploração da
região da costa da Guiné, inclusive de regiões do interior. Por isso a língua
portuguesa nunca se implantou efetivamente nessa região afri­cana, chegan-
do mesmo a se mesclar com as línguas nativas e a dar lugar ao criou­lo. A
consequência é que até hoje o forte nessa região são as línguas étnicas e o
crioulo. Aquelas se restringiam às respectivas etnias, portanto não possibili-
tavam uma comuni­cação em nível nacional. Por isso, durante as guerras de
libertação (1963-1974) a lín­gua que serviu de elo de ligação entre falan­tes
das diversas línguas étnicas foi o crioulo. O fato é que, nesse período, as di-
versas línguas nativas africa­nas só dividiam o país e o português era a língua
do inimigo, não obstante a posi­ção de Amílcar Cabral, favorável ao seu uso.
Era inevitável que o crioulo passasse a ser, tacitamente, a lín­gua de união na-
cional, ao lado do português como língua de trabalho, oficial, e das línguas
étnicas africanas. Aliás, essa diver­sidade étnica faz com que a preocupação
com a unidade nacional fosse uma constante.
O portu­guês até hoje não é praticamente falado como língua vernácu-
la na Guiné-Bissau. Ele só é adquirido como língua primeira, materna, por
uma insignificante franja de filhos de guineenses que, tendo estudado em
Portugal ou no Brasil, adotaram-no como língua de comunicação familiar,
ou por filhos de casais mistos de guineenses com falantes de português de
outras nacionalidades. É também o caso de filhos de portugueses residentes
48 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

na Guiné-Bissau ou, então, de filhos de outros estrangeiros que por um mo-


tivo ou outro falem português em casa. No entanto estas crianças, que desde
cedo entram em contato com o crioulo, quer ouvindo os familiares falando,
quer brincando na rua com outras crianças, aprendem-no rapidamente.
Não obstante essa situação, a posição oficial em relação às línguas é
claramente favorável ao português. O pró­prio líder revolucionário e pai da
nação gui­neense, Amílcar Cabral, ainda nos tempos da luta pela indepen-
dência deixou isso bem claro, como já vimos no capítulo anterior. Em suma,
o português é a língua oficial, de trabalho, o crioulo a língua nacional. As
lín­guas nativas africanas são línguas de etnias, de nacionalidades.
Devido ao fato de ser a língua oficial, o português é também a língua
do ensino. Toda a escolarização se dá nessa língua, com pequenas conces-
sões ao uso do crioulo nas fases iniciais da alfabetização. Uma experiência
de utilização do crioulo nos dois primeiros anos do ensino primário foi aliás
realizada entre 1984 e 1993 no âmbito dos Centros Experimentais de Edu-
cação, como já foi dito no capítulo anterior. O português substituía-o a par-
tir de terceiro ano. No entanto a experiência não chegou a ser generalizada
e o português permanece a única língua de ensino.
Já que é em português que se dá a esco­larização, nada mais natural que
quase tudo que há de escrito no país esteja nessa língua. Os livros didáticos
saem, naturalmente, todos em português e, frequentemente, são importados
de Portugal. As publicações do INEP (Ins­tituto Nacional de Estudos e Pes-
quisa) são todas em língua portuguesa, quase todas igualmente impressas em
Portugal, embora umas poucas saiam também em francês (os da Ku Si Mon
Editora). A revista Soronda trata de temas basicamente sociológicos. No que
se refere à literatura, a maior parte do que existe também está basicamente em
português, como se pode ver nos capítulos que tratam do assunto, exceto o
capítulo VI das narrativas orais e o VII, da poesia em crioulo.
O que se produziu durante a época colo­nial também está, obviamen-
te, tudo em português. De destacar temos o Boletim Cultural da Guiné
Portuguesa, publicado de 1946 a 1973. Ele tratava de questões históricas,
administrativas, geográficas, linguísticas, cli­máticas, agronômicas, enfim,
praticamente de tudo que interessasse à administração colonial de então
sobre a Guiné. A mesma fonte patrocinava o Centro de Estudos da Guiné
Portuguesa, de Bissau, que publicou cerca de 30 livros. Dentre eles temos
os de André Álvares de Almada, António Car­reira, Avelino Teixeira da Mota,
Diogo Gomes e outros. Já em 1947 esse centro publicou Honório Pereira
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 49

Barreto, de Jaime Walter, com um apêndice do pró­prio biografado intitu-


lado Memória sobre o Estado Actual de Senegâmbia Portu­gueza, Causas de
sua Decadência, e Meios de a Fazer Prosperar, (publicado original­mente em
1843, Lisboa: Typ. Viuva Coe­lho & Cia.).
Os discursos oficiais são publica­dos sempre em português, mesmo
quando proferidos em crioulo oralmente. A consti­tuição do país está redigida
em português. Em português é que se publicam os jornais Nó Pintcha, Ba-
nobero, Correio de Bissau etc. Os nomes de ruas, a nomenclatura da máquina
administrativa, os ofícios, as circulares, as leis, os nomes de estabelecimentos
comerciais, tudo está em português. Aí se inclui o hino nacional, cuja letra é
de autoria de Amílcar Cabral. Resumindo, toda a história do país, todo seu
acervo cultural que se tem registrado está nessa língua. Nomes próprios em
português, sobretudo nos centros urbanos são muito utilizados, como se pode
ver no capítulo X, fruto da imposição das autoridades coloniais que impediam
o acesso à escola às crianças que não tivessem nomes portugueses.
No que se refere aos meios de comuni­cação de massa, a imprensa
escrita é feita em português, com uma presença do crioulo muito esporádi-
ca quando, por exemplo, aparecem poemas nesta língua. Um dos fatos que
explica a dificuldade da utilização do crioulo na imprensa escrita (e não
só), é que ele permanece uma língua sem escrita regulamentada, apesar
da existência de uma proposta para unificação da sua ortografia feita pelo
Ministério da educação guineense em 1987. Em contrapartida, nos pro-
gramas radiofónicos, seja em nível da estação oficial (Rádio Difusão Na-
cional) ou das rádios privadas (Pindjiguiti, Bombolom...) ou comunitárias,
que têm proliferado pelo país nestes últimos anos, a presença do crioulo
é preponderante, o que levou a Assembleia Nacional Popular a impor, em
2007, uma quota de 50% entre o crioulo e o português nas emissões da
rádio. Existem também programas em línguas étnicas. No que tange aos
programas da televisão, a língua portuguesa tem uma maior presença, o
que se explica pela importação de programas principalmente de Portugal e
do Brasil e pela fraca produção nacional. Diga-se de passagem que as tele-
novelas bra­sileiras, que tanto sucesso alcançaram em Portugal, há já muito
chegaram à Guiné-Bissau... Mas existem também programas em crioulo,
sobretudo noticiários e debates.
Nas reuniões de trabalho, no nível do governo, o crioulo é utilizado
com relativa frequência em determinados níveis. Mas é em português que
têm lugar as reuniões de técnicos dos Ministérios ou de outras instituições.
50 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

No par­lamento, a língua mais usada é o crioulo, mesmo porque há


deputados que não conhecem o português ou que não têm domínio ativo
nem mesmo do crioulo.
Devido à competência pelo menos bilíngue de todo guineense culto,
quando ele fala sobre um tema técnico ou científico com outro gui­neense
em crioulo, usa não só itens lexicais tomados de empréstimo ao português,
mas também frases inteiras tiradas dessa língua. Pelo fato de o crioulo não
dispor de uma terminolo­gia para falar da tecnologia, da política internacio-
nal, da ciência e da sociedade de consumo moderna, seus usuários fazem
uso ilimitado de empréstimos portugueses. Toda palavra portuguesa pode,
se necessá­rio, ser usada em crioulo sem que se tenha a sensação de se estar
usando uma palavra estrangeira. O português é uma fonte lexi­cal inexaurível
e natural.
Até aqui nos limitamos ao meio culto, das pessoas letradas. No seio do
povo, o que se nota é largamente o uso do crioulo e das línguas étnicas, estas
principalmente nas regiões rurais. Hoje em dia, com o crioulo podemos nos
fazer entender em qualquer tabanca do interior. Enfim, prati­camente todo
guineense tem pelo menos um domínio passivo dele. Como é voz corrente na
Guiné-Bissau, “o crioulo não é língua de ninguém” (de nenhuma etnia), por-
tanto nenhuma delas vê nele uma língua estranha. A isso poderíamos inverter
a formulação, dizendo que o crioulo é a única língua de todos os gui­neenses.
Nas cidades, a língua que se ouve nas ruas é quase sempre o crioulo.
Em casa também só se fala crioulo, com poucas exceções. Assim, nos bairros
populares, onde se concentram falantes de uma mesma etnia, via de regra
se fala a respectiva lín­gua. Mas, havendo um vizinho de outra etnia, volta-se
ao crioulo naturalmente. No pátio das escolas, no mercado, nos night clubs,
nos estádios de futebol (como o Estádio Nacional ou o “Lino Correia”, de
Bissau) só se fala crioulo. Pelo fato de o português só ser aprendido na esco-
la, ele é a língua da escrita e para se falar com estrangeiros. Assim, quando
um guineense vê alguém de pele clara na rua, tem tendência a dirigir-se a
ele em português.
Regra geral, os estrangeiros que vão para a Guiné-Bissau, aprendem
logo o crioulo em poucos meses. Contrariamente, o português podem nun-
ca che­gar a dominar completamente, nem mesmo depois de vários anos no
país. É o caso, por exemplo, de comerciantes libaneses ou de mauritanianos
que depois de duas ou três décadas de residência no país não conseguem
exprimir-se corretamente em português.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 51

Apesar de tudo, é possível ouvir conver­sas na rua dignas de nota. Um


grupo de crianças, que sempre brincavam em frente à Embaixada do Brasil,
volta e meia usavam expressões portuguesas. Certa feita, uma delas coman-
dou: “Detá di barriga!”, e todos se deitaram de bruços. Em seguida, ela
disse: “Detá di costa!”, todos obedeceram. Finalmente, “Levantá!”, e todas
ficaram de pé. Em outra oportunidade, uma menina de uns 11 anos disse a
um coleguinha: “Dudu, você tem que ficar aqui!”. Outra, de uns 10 anos,
disse: “Eu vou pa praia!”. Pode ser que isso tenha acontecido por as crianças
saberem que havia brasileiros por perto e por estarem ao lado da embaixada.
Em 1988 foi registrado um diálogo entre dois jovens, na ilha de Bubaque,
sobre como conseguir uma casa segura para morar. O inusitado nesse diálo-
go é que ele se deu em portu­guês em vez de ter sido travado em crioulo ou
na língua étnica local (bijagó). Entretanto, pode acontecer de ligarmos para
uma instituição governamental, falando em português, e a resposta vir em
crioulo. Eis um exemplo:

HHC: Eu queria falar com o sr. M. N.!


Resp.: I ka stá! ‘ele não está’
HHC: O sr. J. A. está?
Resp.: I bin ma i bai ‘ele veio, mas já se foi’

De qualquer forma, devido à história da formação da nação Guiné-


Bissau e a todos os fatos alinhados acima, a língua portuguesa não é inteira­
mente estranha a seu povo. Pelo contrá­rio, ainda que precariamente, essa lín-
gua sempre marcou os guineenses, sobretudo nas cidades. Tanto que há uma
consciên­cia em alguns guineenses de que crioulo é “português errado”, embo-
ra essa pecha tenha sido impingida pela ideologia colo­nialista. Em suma, des-
de Amílcar Cabral existe a consciência de que há uma ligação entre o crioulo
e o português (Cabral 1990: 61). Enfim, cremos que já é possível detectar
algumas caracte­rísticas específicas do português usado na Guiné-Bissau. A
esse português foi dado o nome de português acrioulado.
No nível fonético-fonológico, há uma série de tendências. Uma delas
é a neutralização da distinção entre a consoante vibrante sim­ples (como em
“caro”) e a vibrante múltipla (como em “carro”, pronúncia sulina). Assim,
quando um guineense diz “caro” termos a impressão de que o “r” vibra mais
do que deveria; quando ouvimos “carro”, parece que ele vibra menos do
que o faria alhu­res. Neutralização tende a haver também entre as vogais /e,
52 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

o/ (fechadas), por um lado, e /è, ò/ (abertas), por outro. Ou seja, se dizem


“ele” (pronome), parece que ouvimos “ele” (nome da letra); e vice-versa.
As vogais nasais tendem a virar V + consoante nasal, como em [kan-
ta], em vez [kãta]. O “l” final parece mais débil do que em Portugal, dando
até mesmo a impressão de que há uma pausa mínima entre a vogal anterior
e ele, como em “Senegal”, que sai como [sene’ga-1]. O ritmo da frase difere
dras­ticamente do da frase lusitana e da brasi­leira. O português guineense,
isto é, o por­tuguês acrioulado, é falado com o ritmo do crioulo que, por sua
vez provém do ritmo das línguas africanas. Enfim, existe uma grande quan-
tidade de especificidades nessa variedade de português que ainda aguarda
um estudo mais aprofundado. De um modo geral, no entanto, a maioria dos
guineen­ses acha que fala como os portugueses.
Pelo fato de ainda não ser uma língua vernácula, materna, de parte
significativa da população, o português acrioulado apresenta várias especifi-
cidades morfossintáticas. Todas elas são típicas de língua dominada apenas
em nível veicular. Assim sendo, ocorrem vários erros de concordância, tan-
to nominal quanto verbal. No nível da concordância nominal, registramos,
entre outras, frases como “o minha irmã”, “meu mãe”, “ele tem três filho
fêmia” etc. No que tange à concor­dância verbal anotamos, inter alia, os
seguin­tes exemplos: “eu não ouve português” (por “eu não entendo por-
tuguês”), “eu não tinha tempo” (por “tive”), “a minha namorada estive em
Portugal” (por “está”), “eu tens mas tris história” etc.
Se no nível fonético-fonológico o portu­guês falado pelos guineenses
trai o ritmo crioulo, no léxico-semântico ele deixa entrever a cosmovisão afri-
cana. Um de nossos informantes disse: “Eu estou doente hoje”. Quando lhe
foi perguntado de que estava doente, ele respondeu que jogara muito futebol
no dia anterior, por isso estava doente. Após uma série de mal­-entendidos
descobriu-se que ele queria dizer que estava cansado. A expressão crioula
a mi N duensi significa “eu estou doente”, mas também “estou cansado”.
Outro dia ele disse, ao não entender algo que lhe fora dito, “o português do
Brasil nos cansa”. Isso se deu porque em crioulo i ta cansá-nu quer dizer
“ele nos cansa” e “é difícil para nós”.
Uma das expressões mais comuns que os guineenses dirigem aos eu-
ropeus e estran­geiros em geral nas ruas é “oferece-me”. Acontece que em
crioulo o equivalente a “dê-me” é páti-n que, literalmente, significa “ofere-
ce-me”. A expressão “pátin” consta de “páti” (derivada do português “re-
partir”) e N (do português “mim”, “me”). Assim, se falam em crioulo dizem
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 53

pátin mil franco! (dê-me mil francos), mas se falam português (acrioulado)
dizem “oferece-me mil francos!”. Às vezes pode ocorrer até “oferece-m”.
De uma maneira geral os textos escritos em português traem a marca
do crioulo, que é a marca nacional local. Assim, em um livro de antropologia
ou de sociologia podemos ver expressões como “homem grande”, “mulher
grande”, “dor de corpo” etc. Aqui o adje­tivo “grande” nada tem a ver com
a esta­tura da pessoa em questão. Tais expres­sões designam anciãos respei-
táveis na tabanca, a quem se pede conselhos e se deve obedecer, enfim,
são pessoas que merecem defe­rência de todos. Quanto a “dor de corpo”,
refere-se a uma dor mal definida, a um mal­-estar geral. As três expressões
são tradu­ções literais do crioulo omi garandi, min­djer garandi e dor di curpu,
respectivamente. A expressão “eu ouve português” revela, além da ausência
de concordância verbal, a mundividência crioula, nativa. Em crioulo se diz
N obi portuguis (eu entendo português). A palavra “obi” (de “ouvir/ouve”)
significa tanto “ouvir” quanto “entender”. De acordo com um missio­nário,
grande conhecedor da cultura local, os africanos só vivem no nível da orali-
dade. Por isso, “entender” é o mesmo que “captar pelo ouvido”, vale dizer,
“ouvir”.
No nível estritamente lexical, são inúme­ros os vocábulos usados no
português acrioulado tirados das línguas locais, geralmente via crioulo.
Como disse Sapir, o léxico é a parte da língua que mais diretamente reflete
o ambiente, tanto o físico quanto o social. Assim, são inúmeros os termos
específicos do português da Guiné-Bissau para se referir à fauna, à flora e a
outros aspectos da natureza e da sociedade local. Eis uma pequena lista de
crioulismos lexicais em português:

candonga = pequeno veículo de transporte popular interurbano


poilão = árvore típica, grandiosa
tabanca = agupamento típico de casas africanas, nos arrabaldes das cidades
e na zona rural
lala = espaço plano, rodeado de mato, onde se pode plantar arroz
chebéu = dendê, ou a pasta extraída da polpa do dendê
bajuda = moça, rapariga
jugudé = tipo de abutre
irã = espíritos que podem ser protetores ou maléficos
bolanha = arrozal
baloba = local sagrado dos animistas, templo
54 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

choro = choro, mas também velório, cerimónias à volta do enterro.


mandjua = pessoa da mesma geração, muitas vezes que cresceu junto com
alguém
mandjuandade = grupo de mandjuas
mantenhas = cumprimentos, saudações
mofineza= desventura, azar
mouro= curandeiro, feiticeiro muçulmano
djambacosse = curandeiro, feiticeiro animista
codé = filho(a) mais novo(a)

Percorrendo a literatura produzida no país, além dos livros técnicos


e dos jor­nais, nota-se uma grande quantidade de ter­mos ininteligíveis a um
português ou a um brasileiro. Assim, além das palavras acima, podemos
encontrar expressões como “lavar corpo” (laba curpu) e outras. Eis mais
alguns exemplos:

homem grande = ancião


mulher grande = anciã
falar mantenha = cumprimentar, saudar
varrer palha = bajular (do crioulo: bari padja)
contar mentira = dizer mentiras

Pelo fato de o português ser aprendido na escola, de não ser uma


língua apren­dida naturalmente em casa, enfim, pelo fato de ser uma língua
adquirida e não transmi­tida, pode ocorrer de se usarem expressões alta-
mente cultas, do português literário, em diálogos nos quais se esperaria
uma lin­guagem mais coloquial. É o caso de “atem­padamente”, “aquando
de”, “ensimesmar­-se” etc. Por outras palavras, devido ao fato de o por-
tuguês não ser sua língua vernácula, às vezes não se faz distinção entre
linguagem culta e linguagem coloquial.
Apesar de tudo que foi dito, via de regra quem domina o português
não fica inteira­mente impossibilitado de se fazer entender na Guiné-Bis-
sau. Devido às semelhanças lexicais entre ele e o crioulo, à presença ma-
ciça de estrangeiros (portugueses e outros) que não enten­dem o crioulo,
enfim, devido a todos os fatos já mencionados, em geral a maioria dos
guineenses das cidades, sobretudo de Bissau, tem pelo menos um co-
nhecimento passivo e precário do português. São raríssi­mas as situações
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 55

em que um brasileiro (ou um português) não consiga se fazer entender


falando-o lentamente. Certa feita, por exemplo, alguém se dirigiu a um
velho vigia externo de hotel que, segundo se dizia, não entendia portu-
guês. O brasileiro lhe perguntou: “O senhor fala português?”, ao que ele
retrucou: “Nao!” (assim mesmo, sem til). Ou seja, ele entendeu, embora
não sou­besse (ou não quisesse) manter um diálogo em português.

O português na Guiné-Bissau: prognóstico

Diante do que vimos até aqui, ou seja, do diagnóstico que apresen-


tamos da situação da língua portuguesa na Guiné-Bissau, o que se poderia
dizer sobre o seu futuro? Aliás, é possível fazer previsões sobre o futuro de
uma língua? Segundo L. B. Nikol’skij isso é perfeitamente possível até certo
ponto. Diz ele: “O prognóstico lin­guístico (como em outras ciências) é a
extrapolação de conhecidos princípios lin­guísticos que têm tendência a se
projetar no futuro” (Nikol’skij 1971: 232). Segundo o autor, não se trata de
futurologia, mas de pro­babilidades altamente plausíveis diante de determi-
nados fatos passados e presentes. Afinal, o futuro é um produto do presente
e do passado.
Os fatos apresentados até aqui nos auto­rizam a prever um futuro alta-
mente pro­missor para o português na Guiné-Bissau. A começar do fundador
do estado, Amílcar Cabral, a posição oficial sempre foi de investimento na
língua portuguesa. Todas as manifestações oficiais posteriores têm ido na
mesma direção. Talvez até mesmo para manter uma identidade luso-africana
frente à identidade franco-africana dos países cir­cunvizinhos. Se a Guiné-
Bissau abdicar do português como língua oficial em prol do francês, como já
se disse em diversas opor­tunidades, corre o risco de ser tragada geopolitica-
mente pelo Senegal ou pela Guiné-Conacri. Parte da ex-Guiné Por­tuguesa
teve esse destino, ao ser anexada pela França. É o caso da Casamansa, que
em 1886 passou definitivamente a fazer parte do território senegalês. A
Guiné-Bissau é uma pequena ilha lusófona em meio a um imenso oceano
francófono.
Os linguistas e outros intelectuais de fora advogam a adoção do criou-
lo não só como língua oficial do país, mas também como língua do ensino
desde os primeiros está­gios até o último. No entanto, nota-se que os habi-
tantes das regiões crioulófonas do mundo inteiro preferem o acesso à lín­gua
56 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

dominante europeia, pois é ela que lhes garante ascensão social, além de
lhes abrir um horizonte comunicacional muito mais amplo. É o que se pôde
constatar durante o VIe Colloque des Études Créoles, realizado em Caiena,
em setembro/outubro de 1989. As ilhas Seychelles (no Índico) e o Haiti são
dos poucos países que têm o crioulo como língua oficial, mas ao lado da
língua oficial, o francês.
Opinião semelhante à dos linguistas expressa o pedagogo brasilei-
ro Paulo Freire, que, por volta de 1975, esteve na Guiné-Bissau a fim de
mostrar como se aplica seu método de alfabetização. Dada sua posição de
marxista confesso, Freire era de opinião de que o uso do por­tuguês na al-
fabetização e como língua oficial acabaria por aumentar o fosso já exis­tente
entre o povo e a elite dominante. Por sinal, essa é a posição da UNESCO.
Mas, como disse um secretário de estado guineense de então, “essa não é
a posição oficial”. O português continua sendo a língua oficial e do ensino.
No nível da intelectualidade, a posição é também favorável ao imple-
mento do português. O missionário católico italiano Luigi Scantamburlo
resume a questão nos seguin­tes termos: “A opinião mais generalizada é de
que o Crioulo, numa perfeita continui­dade, se assemelhará cada vez mais
à lín­gua Portuguesa, e dentro de poucos anos o Crioulo actual morrerá”
(Scantamburlo 1981: 15). Os pesquisadores do INDE e do INEP também
são a favor do ensino em português, embora Carlos Lopes (do INEP), te-
nha dito que é necessário “colocar o crioulo no seu respectivo lugar, que
tem necessariamente de ser o de destaque, pois tarde ou cedo terá de ser a
língua escrita principal do ensino” (Lopes 1988: 243). Deve-se notar, inci-
dentalmente, que essa opinião foi expressa em bom português. Na prática
ninguém faz nada para imple­mentá-la.
Há muitos promotores da língua portu­guesa na Guiné-Bissau. Os
primeiros e mais importantes são, naturalmente, a escola, o rádio e a TV.
Acrescentem-se a elas as publi­cações em geral. Por outro lado, temos os
missionários, tanto católicos quanto evangé­licos, que sempre aprendem o
crioulo para se comunicarem com o povo. No entanto, por saberem que
a língua oficial do país é o português, aprendem-no às vezes até mesmo
antes do crioulo. É bem verdade que traduzem a bíblia para o crioulo e
apre­sentam parte dos cultos nessa língua. As missas, por exemplo, se dão
quase inteiramente em crioulo. Na hora do sermão, o padre pode se virar
para os fiéis e falar num escor­reito português, mesmo quando estran-
geiro. O Centro de Estudos Portugueses funciona em Bissau há muitos
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 57

anos. O Centro de Estu­dos Brasileiros fora inaugurado em 1988. Ambos


fazem diversas promoções que despertam a atenção para a língua portu-
guesa, se bem que o Centro Cultural Francês seja muito mais dinâmico
que os dois juntos.
Os programas de ajuda externa ao país (cooperação) são outro cha-
mariz para a lín­gua portuguesa. Nesse contexto, vários téc­nicos são envia-
dos à Guiné, frequentemente dominando o português. Às vezes são mesmo
arregimentados em Portugal e no Brasil. Vários brasileiros e portugueses vi-
sitam o país a ser­viço de organismos internacionais, além dos que vão a ser-
viço do próprio país. Por fim, temos as bolsas de estudos que são concedidas
a jovens guineenses para fazer cursos no Brasil e em Portugal. Tudo isso faz
com que as atenções se virem para a lusofonia. Atualmente, os contatos com
outros países da CPLP têm se intensificado, sobretudo com Angola, além de
Cabo Verde, é claro.
Dentre os diversos fatores que contri­buem para um futuro promis-
sor da língua portuguesa na Guiné-Bissau gostaríamos de destacar o fato
de Portugal ter voltado a ser uma referência para os guineenses. A relação
entre os dois países apresenta três fases. A primeira é a fase colonial, de sub­
jugação do nativo africano pelos coloniza­dores. Nessa fase a vontade dos
guineen­ses não estava em causa. No período de lutas pela independência, e
mesmo no período imediatamente pós-independência, a atitude em relação
a Portugal era a de afirmar o sentimento nacionalista, que se traduzia numa
certa animosidade e até mesmo na demolição dos monumentos erigidos no
país à memória de personalidades lusitanas. Mas, esse estado de ânimo pas-
sou logo. Hoje os guineenses voltaram de novo suas vistas para Portugal,
como já notado pelo sociólogo Carlos Lopes.
Há um grande desejo de emigrar para Portugal, que, durante muito
tempo, constituiu uma porta privilegiada para a emigração para a Europa.
Por outro lado Portugal é um parceiro comercial privilegiado, ocupando o
segundo lugar nas importações do país, depois da China, e o terceiro nas
exportações. Os livros para o ensino, não só de língua portuguesa, mas
também de todas as outras disciplinas, são via de regra importados de
Portugal.
Em geral os guineenses têm consciência de que falam à moda lusitana
e não à bra­sileira, embora alguns tenham grande simpatia pelo Brasil, sobre-
tudo por causa do futebol. Há uma série de relações especiais entre Portugal
e Guiné-Bissau bem como entre esta e o Brasil e outros países lusófonos
58 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

da África. Os guineenses têm consciência clara de pertencerem aos PALOP


(Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e à CPLP (Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa). Essa sigla aparece diariamente na imprensa
local até mesmo sem o equivalente por extenso. A Guiné-Bissau efetivamen-
te faz parte da comuni­dade de língua portuguesa.
Autores tão diversos quanto Mota (1954: 230), Cabral (1990: 61)
e Lopes (1988: 243) chamaram a atenção para a importância do crioulo
como mediação entre os guineenses e a língua portuguesa. Com efeito, há
uma forte influência do crioulo no português falado pelos guineen­ses. Tanto
que ele foi chamado de português acrioulado. Por outro lado, há influên-
cia do português sobre o crioulo, resultando no crioulo aportuguesado. Em
suma, existe uma interinfluência constante entre as duas línguas. Os falantes
de crioulo em geral têm nomes portugueses, a numeração de que dispõem
para contar é a portuguesa, bem como toda a terminologia que se refere ao
mundo da técnica, da ciência e da política da sociedade de consumo moder-
na. Enfim, como já foi sugerido, toda e qualquer palavra portuguesa é um
recurso potencial para os crioulófonos, que não a sentem como inteiramente
estrangeira. Na direção oposta, temos as diversas caracte­rísticas do portu-
guês acrioulado elencadas alhures.
Voltando ao quadro do capítulo I, pode-se dizer que a tendência é ir
no sentido das setas ascendentes, ou seja, de as lín­guas étnicas se aproxima-
rem cada vez mais do crioulo e este se aproximar do portu­guês. A segunda
etapa, aproximação do crioulo ao português, é um processo ampla­mente
conhecido dos estudiosos de línguas crioulas, que é a descrioulização. Todo
crioulo que continua convivendo com a língua de superstrato tende a se
aproximar dela. Esse é mais um argumento a reforçar o prognóstico favo-
rável ao português na Guiné-Bissau. O crioulo falado hoje na capi­tal é até
certo ponto compreensível aos falan­tes de português, tal a quantidade de
neo­logismos lusos de que lança mão.
Hoje são ainda poucos os guineenses que falam português como lín-
gua materna. No entanto, se não houver um redirecio­namento na atual situ-
ação, havê-lo-á em futuro não muito remoto. Assim como o crioulo é língua
veicular interétnica de mui­tos guineenses (além de língua materna de um
pouco menos dentre eles), o por­tuguês é a língua veicular entre guineenses
e lusófonos, europeus ou não. Assim como o crioulo, de língua meramente
veicular (pidgin) da formação da sociedade mista guineense, passou a ser
língua vernácula de muita gente desde talvez o século XVIII, assim também
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 59

o português poderá passar de língua apenas veicular entre a Guiné-Bissau e


o mundo exterior a língua verná­cula das famílias cultas, da elite dominante.
Os poucos diálogos em português bem como os raríssimos casos de crianças
que o aprenderam em casa, mencionados acima, apontam nessa direção.
“Este facto deve-se ao estrito relacionamento sociológico que as camadas
no poder têm com o português, que, se não é falado por todos, é admi­rado
como língua de referência da cultura, que para a esmagadora maioria da
pequena burguesia guineense é a portuguesa” (Lopes 1988: 240).
Durante séculos a presença dos portugue­ses e de sua língua na pro-
víncia da Guiné foi precária. O que não foi feito em 500 anos talvez o seja
em 50. Tudo labora a favor da língua portu­guesa na Guiné-Bissau.
60 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

III. A LITERATURA

Introdução

Falar em literatura guineense é um tanto complicado. Na verdade,


quando se trata do assunto, em geral se pensa na literatura que é produ-
zida em português (literatura em português), como mostram não só as
poucas obras escritas principalmente por estrangeiros durante o período
colonial, mas também o que se publicou depois da independência. A es-
magadora maioria da produção está nessa língua. No entanto, há algum
tipo de literatura em pelo menos mais duas línguas. A primeira é a lite-
ratura em crioulo, que consta de narrativas orais tradicionais (storias),
provérbios, adivinhas e outras manifestações da oratura ou oralitura. As
três primeiras estão estudadas em capítulos do presente livro que portam
os respectivos títulos. Mas, na literatura em crioulo já existe também
algo de poesia, cujo precursor é o incansável Marcelino Marques de Bar-
ros, embora os primeiros a produzi-la tenham sido José Carlos Schwarz,
Conduto de Pina e outros, dando seguimento às cantigas da tradição
ancestral africana registrada por Barros. Por fim, temos a literatura em
francês. O próprio José Carlos iniciou sua produção poética nessa lín-
gua. Assim, já em 1967 ele produziu os poemas “Émoi” e “Un tout pe-
tit instant” e, em 1968, “Je t’aime”, “Tes mains”. O volume de poemas
de Alberto Dabó, Confidences (1996) está em francês. Carlos Edmilson
Vieira publicou Um cabaz de amores / Une corbeille d’amours (França:
Nouvelles du Sud, 1998), o seu primeiro livro de poemas em versão
bilíngue português-francês, de que falaremos no capítulo V. Também
Filomena Embaló publicou o livro de poemas Coração cativo (São Tomé
e Príncipe: UNEAS, 2005), bilíngue português-francês. No teatro temos
peças como Patriote (1966), de Bankera Kanfory e Amílcar Cabral ou la
tempête en Guinée-Bissau, de Alexandre Kum’a N’dumbe. Jorge Cabral
publicou “Toast inachevé” (Tcholona v. 2-3, p. 25). Temos também os
textos de natureza sócio-histórica, e até o Petit dictionnaire du kriol de
Guinée-Bissau et Casamance (Bissau: INEP, 1988) publicados nessa lín-
gua. Antes disso, temos também as oraturas das diversas línguas étnicas
africanas, ou seja, as literaturas étnicas.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 61

Por esses e outros motivos, parece mais adequado falar-se em litera-


turas guineenses, no plural. Elas compreenderiam a literatura em português,
a literatura em crioulo, a literatura em francês e as literaturas étnicas. No
que tange à literatura em crioulo, fora a rica oratura, até agora conta-se com
uma antologia poética (Barkafon di poesia na kriol) e um livro de poesia de
Nelson Medina (Sol mansi). Acrescente-se, no entanto, que autores como
Odete Semedo, Tony Tcheka e Rui Jorge Semedo apresentam poemas em
crioulo nas suas obras. A internet tem possibilitado poetas não editados, que
escrevem em crioulo, darem a conhecer os seus poemas, como por exemplo
é o caso de Flaviano Mindela dos Santos, Kansala e Ismael Hipólito Djata.
Ainda não há romances nem contos nessa língua. Mas, timidamente come-
çou a pipocar poesia nessa língua aqui e ali, de modo que a literatura em
crioulo logo logo estará muito bem representada. A oratura tanto a étnica
quanto a crioula já estão representadas em Barros (1900). Em Rosa (1993:
105-156) também se pode ver um apanhado geral dela.
Como lembra João Ferreira, em nota de rodapé, os primeiros estu-
diosos da literatura africana de língua portuguesa praticamente deixaram
a Guiné como uma página em branco. É o caso de Russel G. Hamilton (A
history of Afro-Portuguese literature, 1975) que, “num capítulo que é mero
apêndice da literatura cabo-verdiana”, afirma que “a maioria dos estudiosos
da literatura afro-portuguesa prefere passar ao largo da Guiné”. Em outra
nota de rodapé, ele transcreve o seguinte trecho de Ferreira (1977):

Estamos perante o capítulo menos expressivo do espaço literário africano de ex-


pressão portuguesa. Praticamente até antes da independência nacional não foi
possível ultrapassar a fase da literatura colonial.

João Ferreira acrescenta que, “em No reino de caliban vol. I, Seara


Nova, 1975, Manuel Ferreira chamara à Guiné-Bissau ‘um espaço vazio’”.
Por fim, ele salienta que Alfredo Margarido, em Estudos sobre literaturas
das nações africanas de língua portuguesa (Lisboa: A Regra do Jogo, 1980)
“publica vasto elenco de trabalhos sobre Angola, Moçambique, Cabo Ver-
de, São Tomé e Príncipe, mas nenhum sobre a Guiné-Bissau” (João Fer-
reira, Valores africanos na poesia contemporânea da Guiné-Bissau, Actas
do X Encontro de Professores Universitários brasileiros de literatura portu-
guesa, Lisboa, Instituto de Cultura Brasileira, p. 475-479). Augel (1994)
lembra que a expressão “espaço vazio” relativamente à literatura na Guiné-
Bissau é de Mário de Andrade, em seu Antologia temática da poesia afri-
62 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

cana. Diversos outros trabalhos sobre a literatura dos PALOP ignoram a


Guiné-Bissau, como o número de Discursos (1995) dedicado a eles e o li-
vro de Salvato Trigo (Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira,
Lisboa, Vega Universidade, 1986). O mesmo se pode dizer de Gerald M.
Moser (Essays in Portuguese-African literature, Pennsylvania State Univer-
sity, 1969). A ideia de que a Guiné-Bissau seria uma página em branco em
termos de literatura portuguesa continuou sendo ventilada por mais algum
tempo. No entanto, pelo menos na atualidade essa asserção já não é válida.
Veremos que, antes, durante e após as guerras de libertação (1962-1973),
começou a surgir uma produção literária nada despicienda, tanto em por-
tuguês quanto em crioulo, em verso e em prosa.
Um primeiro problema a ser enfrentado por quem queira apresentar
um conspecto da literatura guineense é o da periodização. Dada sua incipi-
ência, é difícil dividi-la em períodos em termos temáticos, o que parece ser
comum a toda literatura de países colonizados a partir do século XVI pelas
potências europeias, mesmo para as que já têm mais tradição e mais pujan-
ça, como disse Antônio Soares Amora sobre a periodização da literatura bra-
sileira. Ele salientou que para essas jovens literaturas, a perspectiva histórica
é mais importante do que para as europeias, por exemplo. Isso porque não
há por assim dizer uma identidade literária guineense propriamente dita.
A escritora e teórica em literatura guineense Filomena Embaló sugeriu
a seguinte periodização: 1) A fase anterior a 1945, com “autores marcados
pelo cunho colonial”, ou seja, Fausto Duarte (1903-1955), Juvenal Cabral,
Fernando Pais Figueiredo, Maria Archer, Fernanda de Castro, João Augusto
da Silva, Cónego Marcelino Marques de Barros. 2) O período entre 1945 e
1970, com “uma poesia de combate: Vasco Cabral, António Baticã Ferreira
e Amilcar Cabral. 3) Anos 1970 a final dos anos 1980, com “uma literatura
exclusivamente poética: da poesia de combate à poesia intimista”. Sobres-
saem-se Agnelo Regalla, António Soares Lopes (Tony Tcheca), José Carlos
Schwarz, Hélder Proença, Félix Siga, Francisco Conduto de Pina, Pascoal
D’Artagnan Aurigemma. 4) Da década de 1990 em diante, com “uma poe-
sia mais intimista”: Helder Proença, Tony Tcheca, Félix Siga, Carlos Vieira,
Odete Semedo. 5) “Finalmente a prosa!”: Domingas Samy, Abdulai Silá.
Poderíamos acrescentar Filinto Barros, Filomena Embaló, Carlos Edmilson
Vieira e Waldir Araújo e Carlos Lopes, entre outros.
A despeito disso, resolvemos dividir cronologicamente as literaturas
na Guiné-Bissau da perspectiva da história política do país. Certamente não
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 63

é a melhor divisão, mas é a única que nos pareceu apresentar algum fio
condutor, mesmo porque essa literatura é bastante engajada politicamente.
Assim sendo, podemos estabelecer os seguintes períodos: 1) Período Colo-
nial (“literatura colonial”), (+1594-1962); 2) Período da Luta pela Inde-
pendência (1962-1973); 3) Período Pós-Independência (1973 aos dias de
hoje). Cada um desses períodos se subdivide em fases, como veremos logo
a seguir.

Período colonial

Como a divisão da literatura guineense será feita em consonância


com a história política, podemos começar pelo Período Colonial, uma
vez que é nele que se estabeleceram as bases para a existência da atual
Guiné-Bissau. Se tomarmos o termo “literatura” ao pé da letra, ou seja,
reportando-se a textos escritos, podemos pôr os seu início em 1594, data
da publicação de Tratado breve dos rios de Guiné de Cabo Verde, de André
Álvares de Almada. É o primeiro texto que dá informações detalhadas
sobre tudo que chamava a atenção dos primeiros navegadores na então
chamada Costa da Guiné. Há outros textos, inclusive anteriores, como o
de Gomes Eanes de Zurara (Crónica dos feitos da Guiné, 1455), que se
baseou em informações de segunda mão, além de passar a maior parte do
tempo fazendo encômios ao rei. Esse período termina em 1962, data do
início da luta armada pela independência. A Primeira Fase desse período
vai 1594 (data da publicação do livro de Álvares de Almada) a 1940 (data
em que a capital foi transferida para Bissau). Esse período é de longe o
mais longo e, por razões óbvias, o menos produtivo. Tudo isso reflete o
processo de colonização da região, ou o relegá-la a segundo plano frente
a outras colônias como o Brasil. Essa fase pode ser literalmente consi-
derada como de preparação do terreno para o surgimento de uma vida
urbana, que propiciará a emergência de uma literatura. Afinal, literatura
só pode surgir em um país que tenha condições mínimas para uma vida
cultural.
Entre os outros autores dessa fase que descreveram diversos aspectos
da região, poderíamos mencionar ainda Diogo Gomes (De la première décou-
verte de la Guinée, 1500), André Donelha (Descripção da Serra Leoa e dos rios
da Guiné de Cabo verde, 1625), Francisco de Lemos Coelho (Descripção da
64 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Costa da Guiné de Cabo Verde athe Serra Leoa com todas ilhas e rios que os
brancos navegam, 1669) e D. Frei Vitoriano Portuense (Relação da primeira
viagem do bispo D. Frei Vitoriano Portuense à Guiné, 1694). Pulando o sé-
culo XVIII e indo direto para o XIX, poderíamos encerrar essa pequena lista
com E. Bertrand de Bocandé (Notes sur la Guinée Portugaise ou Sénégambie
Méridionale, Bull. de la Soc. de Géogr. n. 11 e 12, 1849), que dá muitas infor-
mações úteis, inclusive sobre a língua crioula. Em Rosa (1993) encontram-se
mais dados sobre essa fase do Período Colonial.
A atividade literária pressupõe recursos para imprimir textos. Em
1879, com a capital em Bolama, inaugura-se a primeira tipografia, e se cria
o Boletim oficial (1880-1974). Em seguida, apareceu Fraternidade, folheto
publicado, em 1883, em solidariedade à seca em Cabo Verde. Surgiram tam-
bém os Boletins sanitários (1918), o Boletim das alfândegas da Província da
Guiné (1919) e os primeiros jornais: Ecos da Guiné (1920), A voz da Guiné
(1922), Pró-Guiné (1924), O comércio da Guiné (1931), Boletim cultural
da Guiné Portuguesa (1946-1973), O bolamense, a partir de 1956. Surgiu
também o folheto de poesia Poilão (1973), do Grupo Desportivo e Cultural
do Banco Ultramarino. Em 1975, é fundado Nô pintcha, jornal que é pu-
blicado até hoje. De 1983 a 1985, foi publicado O militante, revista mensal
do PAIGC. O Boletim Cultural da Guiné Portuguesa “veiculou uma intensa
produção literária: contos, poesia, o registo de contos tradicionais, ensaios,
artigos de natureza etnográfica e antropológica. A produção ‘geração do Bo-
letim Cultural’, como ficou conhecida, foi de tal forma profícua e abundante
que foi considerada como a melhor produção científica e cultural do então
império português” (Amado 1994:4).
Segunda fase do Período Colonial ainda é constituída quase que ex-
clusivamente por estrangeiros. Mesmo assim, pode-se dizer que já houve
um avanço, uma vez que já se começou a falar de temas africanos, às vezes
até com uma certa simpatia. A prosa e a poesia enquadram-se no que Rosa
(1993) chamou de “lusografia guineense”. Essa produção pode ser subdivi-
dida em prosa, poesia e outras, como as recolhas de contos da oralidade, por
exemplo. Mesmo tratando de assuntos africanos, a visão é a do colonizador.
A seguir, alinhamos alguns dos principais autores desse período.
Na prosa temos, em primeiro lugar, Maria Archer, que, em 1918,
publicou o romance Desejo mórbido. Logo depois dela, temos a muito mais
bem sucedida Maria Fernanda de Castro, que publicou os romances As
aventuras de Mariazinha (1925), O veneno do sol (1928), Mariazinha em
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 65

África (1947), Novas aventuras de Mariazinha (1959), além do longo po-


ema África raiz (1966). O primeiro dos três romances foi reeditado várias
vezes, o que mostra que as aventuras de uma menina no “exotismo” africano
foram bem acolhidas pelo público europeu. Apesar do preconceito típico da
época, a autora mostra muita coisa de cor local. Em Sparemberger (2003:
50-55) há um comentário relativamente detalhado sobre o terceiro deles.
Julião Quintinha também trata de temas africanos em diversas publi-
cações. Entre elas poderíamos citar África misteriosa (1928), Oiro africano
(1929), Terra do sol e da febre (1932). O próprio título da última delas já
deixa transparecer dois dos temas principais para um europeu na África, ou
seja, calor e doença. Na obra Novela africana (1933), temos o conto “Paixão
balanta”, em que uma mulher preocupada em ter filhos dorme com homens
de diversas etnias diferentes da sua sem, contudo, conseguir se engravidar.
Em 1931, Afonso Correia publica o romance Bacomé Sambú, cujo ce-
nário é a região e a cultura do povo nalu. A despeito das boas intenções, revela
também preconceito contra o povo africano. Tanto que trata de um português
que tenta aportuguesar Bacomé a fim de “salvá-lo” da “barbárie” africana.
Fausto Castilho Duarte também teve uma extensa produção. Alguns
exemplos são Auá, novela negra (1934) e os romances O negro sem alma
(1935), Rumo ao degredo (1939) e A revolta (1942). Auá trata da influên-
cia da cultura urbana sobre a cultura rural, através da história de um jovem
camponês da etnia fula que emigra para Bissau, regressando depois à aldeia
natal para se casar. Essa obra está comentada em Sparemberger (2003: 55-
63). Quanto a Oscar Ruas, era um militar empreendedor, que promoveu a
construção da catedral de Bissau, entre outros feitos, como a fundação de
jornais e revistas. Publicou o conto “Samba Lagarto: o encantador de croco-
dilos” (1935), cujo assunto já está sugerido no título. Hugo Rocha dedica um
capítulo de Além-mar: comentários, ideias e aspectos (1935) à Guiné, já cha-
mando a atenção para a escassez de material literário na/sobre a colônia. Nor-
berto Lopes publica Terra ardente: narrativas da Guiné (1947), uma espécie
de André Álvares de Almada do século XX. Alexandre Barbosa escreveu, entre
outros, Guinéus: contos, narrativas, crónicas (1947), em que procura também
retratar a cor local, certamente para maior proveito dos colonizadores.
João Augusto da Silva, caboverdiano de nascimento, chegou a ganhar
um prêmio literário. Com efeito, ele foge do ramerrão das obras anteriores,
preocupadas apenas em mostrar o “exótico” da flora, da fauna e do humano.
Pela primeira vez, trata de dramas íntimos, como o filho mulato que odeia
66 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

tanto o pai branco quanto a mãe negra, ou seja, com uma grande crise de
identidade. Sua obra se intitula África: da vida e do amor na selva (1963).
Seu irmão Artur Augusto da Silva, bastante estudioso e observador, publi-
cou o conto “O cativeiro dos bichos” (1969), que lhe fora contado anterior-
mente em uma aldeia fula.
Há ainda outros autores dignos de menção, entre eles, Manuel Ba-
rão da Cunha (Aquelas longas horas, s/d) e Armor Pires Mota (Guiné sol
e sangue: contos e narrativas, 1968), que também escreveu poesia, Álvaro
Manuel Soares Guerra (O disfarce, 1969) e Francisco Valoura, que publicou
diversos contos no Boletim cultural da Guiné Portuguesa de 1951 a 1971,
posteriormente publicados na coletânea Guiné: paraíso verde (1973).
Há também obras que assumem uma posição mais favorável aos po-
vos da Guiné e contra o colonialismo. Entre elas sobressaem-se Na Guiné
com o P.A.I.G.C, de Georgette Emília, de 1975. Essa autora chega a usar
expressões na língua crioula (E mata Cabral, ma Cabral ka ta muri. Inda
i tem utrus Cabral pa muri ‘eles mataram Cabral, mas Cabral não morreu.
Ainda há outros Cabrais para morrer’). Carmo Vicente (Gadamael: memó-
rias da guerra colonial, 1985) também assume uma posição simpática aos
africanos, criticando o sistema colonialista corrupto e corruptor. Um outro
é José Martins Garcia, que escreveu o romance Lugar do massacre (1975).
Não pode ser esquecido neste contexto o romance Uaná: uma nar-
rativa africana (1986), de João Ferreira. A despeito das restrições que
Moema Parente Augel tem a ele, Luciano Caetano da Rosa considera-o o
primeiro romance guineense. Além disso, Sparemberger (2003) o tem em
alta conta, dedicando-lhe todo um capítulo. De fato, ele revela uma grande
simpatia pela terra e gente da Guiné, a despeito de, nas entrelinhas, sem-
pre se poder entrever um certo lusocentrismo. Seu autor já se encontrava
no Brasil, lecionando na Universidade de Brasília, quando o publicou. No
entanto, o primeiro prosador nascido na própria Guiné é James Pinto Bull,
autor do conto “Amor e trabalho”, publicado no Boletim cultural da Guiné
Portuguesa em 1952. A ação se passa entre os balantas. O autor é irmão de
Benjamim Pinto Bull, o primeiro linguista da Guiné-Bissau, se excetuar-
mos Marcelino Marques de Barros. James Pinto Bull fora considerado no
seio do movimento libertador como traidor por se ter posicionado do lado
dos portugueses, tendo mesmo sido deputado pela Guiné à Assembléia
Nacional portuguesa. Sparemberger (2003: 90-96) analisa esse conto por-
menorizadamente, por onde se vê que ele tem seu valor. O que interessa
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 67

no caso é que James Pinto Bull foi o primeiro guineense negro, nato, a
publicar um conto literário.
A poesia não foi de todo ignorada nesse período. O já mencionado
Hugo Rocha, a propósito da prosa colonial, incluiu, em seus Poemas exóticos
(1940), o poema “Fula de Bafatá”. Para se ver como tinha simpatia pela vida
local, basta dar uma olhada nos versos “Fula de Bafatá, ó quitandeira / de
pele acobreada: / és tu quem dá mais cor, mais luz à feira”. Um segundo au-
tor a se aventurar nessa linha é Augusto Cruzeiro de Cértima que, a despeito
de ter vivido no Senegal (região de Casamansa, que já fez parte da Guiné e
ainda fala a língua crioula) como cônsul, publicou poemas, entre os quais se
inclui “Entrando na Guiné”, em que fala da exuberância da natureza local.
O lusocentrismo acaba se revelando nos versos “É que se o céu é o mesmo /
a terra é portuguesa”. Augusto Casimiro também incluiu o poema “Guiné”
em seu Portugal Atlântico (1955), que revela uma postura muito semelhante
à dos dois primeiros poetas guineenses. Um dos poemas mais importantes
desse período é “África raiz” (1966), de Maria Fernanda de Castro, autora
de As aventuras de Mariazinha. O também já mencionado Armor Pires Mota
publicou Baga-baga (1967), em que o telurismo local chega ao ponto de
afirmar que “sou negro dentro de mim”.
No que tange à poesia escrita por guineenses, o pioneiro é Carlos
Semedo, cujo volume Poemas é de 1963, embora um pouco antes Armando
A. Pereira, já tivesse publicado poemas em Correio d’África (1921-1924).
Antes de passarmos à fase seguinte da literatura guineense, convém
destacar três nomes que sobressaem neste período e que podem ser consi-
derados como transição entre a literatura colonial e a literatura guineense
propriamente dita.
O primeiro deles é Honório Pereira Barreto, nascido em 24 de abril de
1813, em Cachéu, e morto em 1859. Não que ele tenha sido um escritor no ver-
dadeiro sentido da palavra, uma vez que se dedicou mais à política, tendo exerci-
do os cargos de provedor de Cachéu e governador de Bissau e Cachéu. É nessa
área que se inserem os seus escritos, todos em um português castiço. Tirando
as diversas cartas à administração metropolitana, Barreto publicou Memória
(sobre o estado actual de Senegámbia portugueza, causas de sua decadência, e
meios de a fazer prosperar, Lisboa: Typ. da Viúva Coelho & Comp., 1843), de
48 páginas. Como o próprio título já dá a entender, trata-se de um libelo con-
tra os desmandos perpetrados por administradores corruptos e incompetentes.
Ele era guineense e negro, mas aliado incondicional dos colonialistas. Por isso,
68 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

não é muito bem-visto pela intelectualidade guineense. No entanto, deblaterava


não só contra a “incultura” dos “gentios”, mas também contra a corrupção
dos administradores portugueses, tanto d’além quanto d’aquém-mar. Desses
dizia, por exemplo, que “qualquer Funccionario, que não tem outra mira, além
da conservação de seu emprêgo, inverter os factos [...]. [...] dão-se ordens,
que sabem que nunca serão executadas, e apressam-se em remetter copias das
mesmas ordens ao Governo superior, que julga, ou se apraz em julgar, que ellas
estão em vigor” (cf. Jaime Walter, 1947, Honório Pereira Barreto, Bissau: Centro
de Estudos da Guiné Portuguesa n. 5, que inclui a Memória).
O segundo autor de transição é o já mencionado Marcelino Marques
de Barros. Ele nasceu em Bissau, em 1844, e faleceu em 1928, em Lisboa.
Barros é provavelmente o segundo negro guineense a se destacar no meio in-
telectual. Ele estudou Humanidades e Teologia em Portugal. Barros é conhe-
cido entre os crioulistas como autor de “O guineense”, uma série de artigos
sobre o crioulo português da Guiné-Bissau, pulicado na Revista lusitana, de
1887 a 1908. Aí já se vê porque ele deve ser considerado um dos autores de
transição da literatura na Guiné-Bissau. Foi ele quem transcreveu e publicou
a primeira narrativa oral crioulo-guineense, ou seja, “Lubu ku garsa” (a
hiena e a garça), em 1883, na folha A fraternidade, publicada em prol dos
que estavam morrendo de fome devido à seca em Cabo Verde. Pouco depois
Barros publicou “Tris gulós” (os três gulosos), no último volume da série já
mencionada, além de ter anunciado mais cinco.
Para o que aqui interessa, sua obra clássica é Literatura dos negros
(1900). Esse pequeno livro contém cinco storias. A primeira é “A noiva da
serpente”, que é um conto mandinga, entremeado de diversos comentários,
embora ele a apresente em português. A segunda é “História de Sanhá”,
também mandinga, mas, também apresentada em português, embora re-
cheada de versos cantados naquela língua. A terceira, “O rei Djambatutu”,
também é apresentada primeiro em português, mas, desta vez, seguida da
versão crioula original, “Storia di djambatutu rei di pastrus”. A quarta storia
é “O lobo e o carneiro”, também seguida da versão original, “Storia di lubu
ku karnel”. A quinta é “O jugudé e o falcão” ou, na versão crioula, “Falkon
ku jugudi”. Como veremos no capítulo IV e, até certo ponto, no VI, essas
narrativas são uma espécie de embrião do futuro conto bissau-guineense,
fato que pode ser constatado sobretudo nos contos de Odete Semedo. Mas,
são as cantigas tradicionais que estão mais bem representadas no livro. Uma
delas é “Malan” (estrangeiro), cujo subtítulo é “canto de uma escrava”, cuja
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 69

versão portuguesa Barbosa (1988) apresenta como um dos poemas em por-


tuguês produzidos na Guiné-Bissau. Ei-la nas duas versões:

Crioulo Português

Ami i Malan, oh, oh! Eu era triste escrava


Ami i Malan, oh, oh! Ai! e que bem triste escrava,
Ki bin par bai que vinha par embarcar.
N ñabita ku likur O meu senhor vestiu-me
N limpadu ku lens di kambraia e zangado batia-me
Ami i Malan oh, oh! com ramo de coral;
Ki bin par bai e pensava-me as chagas
co’o mais doce licor;
e limpava-me as f’ridas
com lenço de cambraia.

Como se vê, trata-se de uma tradução livre, uma espécie de transcria-


ção, nos termos do poeta concreto Haroldo de Campos. Talvez seja por isso
que Barbosa a tenha incluído entre os poemas da literatura luso-guineense.
Barros transcreve mais nove cantigas tradicionais. A penúltima, “Bin-
din” (Vendei-me, senhor), também trata do tema da escravidão, embora
aqui a jovem escrava quer que o senhor a venda para ver se em Cuba ou na
Jamaica terá vida menos ruim do que a que leva. Também aqui poder-se-ia
dizer que teríamos o embrião da poesia guineense, sobretudo a poesia re-
volucionária dos primeiros tempos, tanto em português quanto em crioulo.
Enfim, Barros pode ser considerado precursor em pelo menos quatro áreas
das literaturas da Guiné-Bissau: 1) poesia em crioulo, 2) poesia em portu-
guês, 3) transcrição de narrativas orais, 4) adaptação dessas narrativas sob
a forma de conto literário.
Em Bull (1989) há um detalhado comentário sobre a obra de Honório
Pereira Barreto e a de Marcelino Marques de Barros.

Período da Luta pela Independência

O Período da Luta pela Independência vai de 1962 a 1973. Algu-


mas das obras incluídas no período anterior só foram publicadas nesta épo-
70 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

ca. Não obstante, não podem ser incluídas aqui porque foram escritas por
estrangeiros, além de geralmente terem sido escritas bem antes de 1962.
Quando não, a vivência dos autores com a Guiné e sua cultura é anterior a
essa data. Talvez o único autor que possa ser aqui incluído seja Carlos Se-
medo, cuja obra está brevemente comentada no capítulo V.
Na verdade, o primeiro guineense a poetar é o líder das guerras de
libertação e herói nacional Amílcar Cabral. Ele escreveu seus primeiros poe-
mas entre 1945 e 1946. No entanto, e a despeito de ter nascido em Bafatá,
ele iniciou sua carreira em Cabo Verde, e foi lá que escreveu esses poemas.
Com isso fica a pergunta se eles pertencem à literatura caboverdiana ou à
guineense, fato que para ele não era relevante, pois defendeu sempre o pro-
jeto da unidade entre os dois países. A Antologia poética da Guiné-Bissau
(1990) contém sete poemas seus e, em Barbosa (1988), temos um. Nesses
poemas transparece desde a insularidade típica dos caboverdianos até te-
mas mais intimistas, familiares e uma preocupação com a formosura da bela
negra que vai definhar algum dia. Os versos “Meu grito de revolta ecoou
pelos vales mais longínquos da Terra / atravessou os mares e os oceanos”,
já deixam entrever o futuro revolucionário. Para um detalhado estudo da
produção literária, e a não-literária, de Amílcar Cabral, pode-se consultar
Sparemberger (2003).
Quanto a Vasco Cabral, é lidimamente guineense, mesmo tendo se
formado em Portugal, como a maioria dos intelectuais compatriotas seus.
Tem textos de economia publicados em diversos lugares, mas é sem som-
bra de dúvida dos primeiros poetas guineenses (nasceu em 1926). Ele
publicou dez poemas na revista África, explorando diversos temas, como
o ideal de luta, a africanidade, o antirracismo e outros. Sua obra mais
conhecida, A luta é minha primavera (1981), será examinada no capítulo
V, mesmo porque se insere na temática do período pós-independência.
O último poeta incluído neste período é António Baticã Ferreira, nas-
cido em 1939. Existem seis poemas seus em No reino de Caliban (1975),
de Manuel Ferreira, e um em Poetas e contistas africanos (1963), de João
Alves das Neves. Seus poemas não tratam de temas revolucionários como
faz a maioria dos demais autores dessa época. Seu eu é mais lírico e já re-
lativamente ecológico. Os temas são mais o amor, a suavidade e a beleza da
natureza. O poema a seguir, tirado da segunda coletânea, mostra que ele
pode ser considerado um ecopoeta avant la lettre.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 71

Infância
Eu corria através dos bosques e das florestas
E, como o ruído vibrante de um bosque desvendado,
Eu via belos pássaros voando pelos campos
E parecia ser levado por seus cantos.

Subitamente, desviei os olhos


Para o alto mar e para os grandes celeiros
Cheios da colheita dos bravos camponeses
Que, terminando o dia, regressavam à noite entoando
Canções tradicionais das selvas africanas
Que lhes lembravam os ódios ardentes
Dos velhos. Subitamente, uma corça gritou
Fugindo na frente dos leões esfomeados

Aos saltos, os leões perseguiram a corça


Derrubando lianas e afugentando os pássaros.
A desgraçada atingiu a planície
E os dois reis breve a alcançaram.

Período Pós-Independência

É no Período Pós-Independência, de 1973 aos dias de hoje, que começa


a emergir uma literatura guineense propriamente dita, pelo menos nos termos
em que normalmente se entende “literatura”. Em capítulos subsequentes, tra-
taremos da prosa, da poesia, da oratura e de outras manifestações pormeno-
rizadamente. O que vamos fazer aqui é simplesmente mostrar o que existe e
quais são as principais tendências. Só examinaremos um pouco mais aquelas
obras e/ou aqueles autores que não serão retomados nos capítulos especiali-
zados. De qualquer forma, ao falar dos diversos autores e obras nos capítulos
subsequentes, não seguiremos à risca a periodização aqui sugerida. Ela foi
proposta apenas para salientar quão difícil é encontrar um fio condutor na
evolução do que chamamos de literaturas guineenses.
A primeira fase desse período é a de Afirmação da Nacionalidade,
da identidade, por ser a fase de “construção da nação”. Aliás, esse é jus-
tamente o título de um congresso, realizado no país em 1986, cujas atas
72 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

foram publicadas como A construção da nação em África (Bissau: INEP,


1989). O fato de as comunicações dedicadas à Guiné-Bissau serem mais
numerosas não é apenas porque o evento se deu no país. É que, entre os
cinco países representados (Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe,
Moçambique e Guiné-Bissau), é justamente a Guiné-Bissau que tem mais
problemas de identidade nacional. As únicas coisas que a unem, precaria-
mente, são o território, o crioulo e a tradição da colonização portugue-
sa, como veremos no capítulo XII. Podemos começar por Poilão (1973),
um caderno com pouco mais de 30 páginas, com poemas de guineenses,
portugueses e caboverdianos. Os guineenses aí representados são Pasco-
al D’Artagnan Aurigemma, Atanásio Miranda, António Baticã Ferreira e
Tavares Moreira, sendo que o segundo e o quarto praticamente não rea-
parecem em publicações ulteriores. Aliás, “poilão” (polon, em crioulo) é
uma árvore de grandes proporções, considerada sagrada na Guiné-Bissau,
lembrando a nossa gameleira.
Em 1977, surgiu a coletânea Mantenhas para quem luta, com o subtí-
tulo A nova poesia da Guiné-Bissau. Ela consta de 51 poemas de 14 autores.
Alguns deles são dos mais conhecidos intelectuais guineenses. Ela represen-
ta um marco na história da literatura guineense, uma vez que foi produzida
ainda no rescaldo das lutas contra o colonizador. Voltaremos a ela nos ca-
pítulos V e VII.
Em 1978, Francisco Conduto de Pina publicou a coletânea de poemas
Garandesa di no tchon (1978) em Portugal. É a primeira obra individual de
um guineense, a despeito de uma certa imaturidade juvenil. Porém, revela
um grande entusiasmo, típico de outros autores desta fase.
Ainda em 1978, aparece Momentos primeiros da construção: antologia
dos jovens poetas (Bissau: Imprensa Nacional), com 35 poemas distribuídos
por 12 autores, um deles uma mulher, Mariana Marques Ribeiro (Ytchya-
na). Esse volume contém uma seção intitulada “Espaço crioulo”, que consta
de 19 poemas em crioulo. Voltaremos a alguns dos autores aqui representa-
dos no lugar adequado.
No ano seguinte, veio a lume Os continuadores da Revolução e a re-
cordação do passado recente (Bolama: Imprensa Nacional, 1979). O volume
compreende 93 páginas, que contêm 39 poemas (dois dos quais em crioulo)
de 23 autores. São jovens ainda plumitivos e até ingênuos, com uma grande
vontade de produzir e ajudar na “construção da nação”. Pelo que sabemos,
nenhum deles continuou produzindo literatura.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 73

Após um grande lapso de tempo, apareceu a Antologia poética da Gui-


né-Bissau (Lisboa: Editorial Inquérito, 1991), contendo poemas de muitos
dos autores já mencionados, perfazendo um total de 14 poetas. Para mais
comentários sobre o conteúdo dessa coletânea, veja-se o capítulo V.
Em 1992, aparece O eco do pranto: a criança na moderna poesia
guineense (Lisboa: Editorial Inquérito), organizada pelo poeta António
Soares Lopes Jr. (Tony Tcheka). São nove poetas e 33 poemas dedica-
dos ao tema da criança, muitos deles reproduzidos da Antologia poética
da Guiné-Bissau. Os autores são, além do organizador, Agnelo Regalla,
Conduto de Pina, Hélder Proença, Jorge Cabral, Mariana Ribeiro, Pasco-
al D’Artagnan Aurigemma e Vasco Cabral.
No que tange à prosa, o primeiro volume publicado no país parece ser
o de Manuel da Costa, A força de vontade (Bissau: Edição do Autor, 1993),
que mistura transcrição de narrativas orais com textos de sua lavra. Quanto
à ficção propriamente dita, a primazia cabe a Domingas Barbosa Mendes
Samy, que publicou a primeira coletânea de contos, A escola (Bissau: Edição
da Autora, 1993). Os três contos são: “A escola”, “Maimuna” e “O destino.”
No ano seguinte, Abdulai Sila publica o primeiro romance guineense, ou
seja, Eterna paixão (1994). Em 1995 traz a lume A última tragédia (1995)
e, pouco depois, Mistida (1997). Em 1997, o conhecido sociólogo Carlos
Lopes publica uma recolha de crônicas, sob o título de Corte Geral. Ele
publicou pelo menos dois contos: um na revista Tcholona número 4, outro
em alemão. Em 1998, Filinto de Barros publica o romance Kikia matcho
(Bissau: Centro Cultural Português) em que retrata a decadência da vida
“urbana” guineense e a questão da emigração. “Kikia” é uma espécie de co-
ruja. Em 1999, Filomena Embaló publicou seu primeiro romance, Tiara, que
trata da questão das relações no seio da família africana. Carlos Edmilson
Vieira publicou a coletânea Contos de N’Nori (2000), que reproduz lendas e
costumes além de outros temas da sociedade guineense.
Grande parte das últimas obras parecem pertencer a uma outra fase
da literatura guineense, que poderíamos chamar de Fase de Desilusão. Se o
que foi produzido durante as guerras de libertação e após a independência
revela um ardor e um justo rancor contra o ex-colonizador, causa de todos
os males do país, além de um natural fervor cívico, após algumas décadas
de poder nas mãos dos próprios guineenses veio a desilusão. Muitos dos ex-
combatentes ardorosos se transformaram em uma máfia corrupta no poder,
que só se preocupa com os próprios interesses, não com o sofrimento do
74 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

povo humilde. Muito da poesia, e até da prosa pós-independência reflete


esse sentimento. Aliás, isso não é apanágio da Guiné-Bissau. No Brasil te-
mos muito disso também.
A divisão precedente em períodos e fases só é válida para a literatura
propriamente dita, não para a oratura. As manifestações dessa literatura oral
já existiam na tradição das línguas étnicas locais (e do crioulo), ou seja, já
eram patrimônio cultural africano, muito antes da chegada dos portugueses.
O que aconteceu é que elas foram adaptadas à cultura que se expressa em
língua crioula, ainda em tempos remotos.
Do ponto de vista da literatura, a manifestação mais importante da
oralidade são as narrativas orais (storias) que, como já vimos, recuam a
milênios na tradição africana. Parte dessas fábulas já está transliterada em
sua versão crioula. A primeira a ser transcrita foi “Lobo co garça”, publi-
cada pela primeira vez em 1883 no folheto A Fraternidade Guiné-Bissau a
Cabo Verde, por M. Marques de Barros. Esse mesmo estudioso transcreve
diversos contos mandingas e crioulos, como acabamos de ver. No entanto,
a primeira coletânea de fábulas é a de Teresa Montenegro & Carlos Morais
Junbai (Bolama: Imprensa Nacional, 1979), contendo 45 contos recolhidos
na região de Bolama. Em seguida vem Contes Créoles de Guinée-Bissau (Pa-
ris: EDICEF, 1981), organizada por Emilio Giusti. Consta de 20 contos: 10
da região de Casamansa (sul do Senegal), 10 de Bissau. A Editora Nimba,
de Bissau, também tem publicadas versões desses contos. Em 1988 saiu o
primeiro volume de Lubu Ku Lebri Ku Mortu, de 49 páginas, contendo 10
fábulas. O segundo volume, com 72 páginas, saiu em 1989, contendo 10
fábulas. É interessante notar que esses 10 contos coincidem quase na ínte-
gra com os de Giusti (1981). A diferença entre eles consiste em que estão
vazados em um crioulo mais aportuguesado que os de Giusti. Aliás, este
último autor afirma na introdução que “nós tivemos o cuidado de suprimir
os empréstimos modernos ao português, no que concerne ao guineense, e
os empréstimos ao francês, no que tange ao crioulo da Casamansa” (p. 9).
Ainda de Teresa Montenegro e Carlos Morais, temos Uori - stórias de lama e
philosophia (Bissau: Ku Si Mon Editora, 1995), com 24 storias.
Além dessas coletâneas, quase toda publicação sobre o crioulo guine-
ense inclui alguns contos. É o caso de Bull (1989:185-217), com 20 contos;
de Scantamburlo (1981: 104-108), com três; de Couto (1994: 130-139),
com seis. Para discussão sobre a transcrição desses contos, ver Semedo
(1994).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 75

Além das narrativas orais, temos também os provérbios, as adivinhas


e as cantigas de manjuandade. Os provérbios serão examinados no capítulo
VIII, e as adivinhas no capítulo IX. Mas, como se pode ver em Bull (1989),
há diversas outras manifestações da oralidade africana na Guiné-Bissau. En-
tre elas temos formas de denominação de pessoas, estudadas no capítulo X,
as fórmulas invocatórias e esconjuratórias, os cantos cerimoniais e outras.
Esses últimos ocorrem nas cerimônias fúnebres (tchur < choro), nas reuni-
ões de manjuandade etc. Algumas dessas manifestações serão examinadas
perfunctoriamente no capítulo XI. Por fim, existem as letras de canções,
começando com as kantiga di manjuandadi até letras de canções modernas,
como as que o poeta José Carlos Schwarz escreveu, que são consideradas
verdadeiros poemas.
No caso específico dos contos tradicionais, inclusive os que são con-
tados em línguas étnicas, há algumas recolhas disponíveis, frequentemente
traduzidas para o português ou o crioulo. Rosa (1993: 105-156) apresenta
um apanhado geral do que foi registrado dessas narrativas, incluindo-se um
resumo de cada narrativa. Estão incluídos contos mandinga, banhum, man-
jaco, felupe, cassanga, mancanha/brame, beafada (inclui charadas), balanta,
bijagó e fula (inclui provérbios). Um dos pioneiros desse tipo de investigação
é o cônego guineense Marcelino Marques de Barros (1843-1929), e sua
obra mais conhecida é Literatura dos negros (1900).
Um outro tipo de escrita com que o guineense convive são as revistas
em quadrinho. É provável que se trate do tipo mais comum de publicação em
crioulo. Dois grandes nomes nessa área são os irmãos Manuel e Fernando
Júlio, além de Humberto Gonçalo e Malamba Sissé. Manuel e Fernando Júlio
começaram desde pequenos a desenhar no chão. Mais tarde foram modelistas
e criadores na Cerâmica Artística de Plubá, em Bissau, trabalhando depois
como ilustradores num jornal editado pelos professores de um liceu de Bissau,
que consagrava a última página aos quadrinhos. Em 1982, Manuel lançou a
primeira edição da coleção Ntori Palan, inspirado em Tintin, que divertia ao
mesmo tempo que informava e sensibilizava os leitores para os problemas da
vida quotidiana. Por sua vez, Fernando publicou a sua primeira coleção Tris
nkurbados, muito divertida e que teve um recorde de vendas na Guiné-Bissau.
Menciona-se ainda de Manuel Júlio Cansera di mininus ta rapati, si nô djunta
mon (as didiculdades das crianças serão menores se nos unirmos). Entre os
outros poderíamos citar Lubu ku Karnel (1988), Storia di dus Bajuda (1988)
e Mingom Bicu (1989). A guerra civil de 1998/99 serviu de inspiração para
76 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

diferentes publicações de que salientamos as histórias em quadrinhos Lutu na


polon e Panha ku mon numa caricatura da guerra em que as personagens são
os chefes das duas partes em conflito. Em 2008, os irmãos Júlio contavam já
com várias publicações de BD em línguas crioula e francesa, sem apoio do
governo guineense nem do setor privado. De destacar o trabalho de caráter
pedagógico que têm feito para diversas organizações sobre diferentes temas,
como, por exemplo, o combate à AIDS. São considerados os melhores cartu-
nistas dos jornais nacionais.
Existe também o teatro, cujas peças são essencialmente em crioulo e
que nos últimos anos tem vindo a ganhar uma maior dinâmica com a criação
de vários grupos teatrais um pouco por todo o país, entre os quais o grupo
Fidalgos que adquiriu uma projeção internacional com a peça Namanha Ma-
cbunhe, uma adaptação africana da peça Macbeth de William Shakespeare.
De acordo com Augel (1998: 379-399) a maioria das etnias pratica
rituais que se assemelham a representações teatrais. O nome mais repre-
sentativo é Carlos Vaz, que escreveu umas cinco peças em crioulo, ou seja,
No odja dja manga di cussa ne mundo ‘nós já vimos muita coisa neste mun-
do’ (1980), Si kussa muri, kussa ku matal ‘se algo morreu, algo o matou’
(1981), Sufridur ka ta padi fudalgu ‘sofredor não pare fidalgos’ (1981),
negação do provérbio sufridur ta padi fugaldu ‘aquele que sofre dá à luz
alguém nobre’, Tempu ka ten di pera tchuba ‘não há tempo para esperar pela
chuva’ (1982) e Si bu tene fugu ‘se você tem fogo’ (1993). O caráter popular
dessas peças já pode ser entrevisto nos títulos que, frequentemente, evocam
provérbios ou outras frases feitas.
Seria interessante lembrar que há um outro tipo de produção literária
que geralmente não entra na história da literatura guineense. Um primeiro
exemplo seria as já mencionadas Confidences, de Alberto Dabó, coletânea
de poemas publicada pela Coopération Française de Bissau, em 1996. São
apenas 30 poemas em francês, que não apresentam grande valor literário.
Gostaríamos de terminar esse conspecto das literaturas guineenses
com uma lista das principais publicações que tratam do assunto, além das
que acabam de ser mencionadas e das que serão mencionadas frequente-
mente nas páginas que subseguem.
- Veronika Görög-Karady & Gérard Meyer, 1988, Images féminines
dans le contes africains (aire culturelle manding), Paris: Edicef.
- Fernando J. B. Martinho, 1978, «A nova poesia da Guiné-Bissau»,
África - Literatura, arte e cultura 2, p. 157-163.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 77

- Hugues Jean Dianoux, 1985, “La littérature guinéenne-Bissau


d’expression portugaise”, Les littératures africaines d’expression portugaise,
Paris, Fondation Calouste Gulbenkian / Centre Culturel Portugais, p. 325-
341.
- Aldónio Gomes & Fernanda Cavacas, 1997, A literatura na Guiné-
Bissau, GT do Min. Educação para Com. dos Descobrimentos Portugueses
p. 63-174.
- Sparemberger, Alfeu, 2003. A singularidade da literatura guineense
no contexto das literaturas de língua portuguesa. Tese de dourorado, USP.
- Moema Parente Augel, 2005, O desafio do escombro: a literatura
guineense e a narração da nação. Tese de doutorado, UFRJ (ver também o
livro de 2007).
- Joye Bowman Hawkins (1980), “Guinea-Bissau: An histo­riographical
essay of post-1960 literature” (Colloquium on Portuguese Speaking Africa,
Bad Homburg).
- Amarino Oliveira de Queiroz. 2007. As inscrituras do verbo: dizibili-
dades performáticas da palavra africana. Universidade Federal de Pernam-
buco: Tese de Doutorado (comenta a obra de Odete Semedo)
- Moema Parente Augel, 1999, Sol na Iardi – prespectivas otimistas
para a literatura guineense. Universidade de Bielefeld, Alemanha, Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP), Guiné-Bissau. Dossiê via Atlântica
n°3 dez. 1999;
- Moema Parente Augel, 2006, O crioulo guineense e a oratura.
SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 10, n.19, p.69-91, 2° sem. 2006.
- Leopoldo Amado, 1990, A literatura colonial guineense, Revista
ICALP, Vol. 20 e 21, p. 160-178, julho-outubro de 1990.
78 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

IV. LITERATURA EM PORTUGUÊS I: A PROSA

Como vimos no capítulo III, várias obras das literaturas da Guiné-Bis-


sau foram publicadas no Período Colonial. Porém, e como já foi observado,
todas elas foram escritas por estrangeiros. Além do mais, quase todas traem
um sentimento eurocêntrico no autor. Mesmo quando ele tem bastante sim-
patia pela África, frequentemente deseja “salvar” os africanos da “selvageria”
em que vivem, via personagens. Prosa literária escrita por guineenses sobre
temática africana, e não apenas guineense, só começa no final da década de
oitenta até meados da de noventa. Comecemos pelo romance.
Quando se fala em literatura de ficção que envolva o gênero roman-
ce, o primeiro nome que vem à tona é o de Abdulai Sila, autor do primeiro
romance genuinamente guineense a ser publicado, ou seja, Eterna paixão
(1994) que, embora tenha sido escrito em 1984, não é o primeiro que pro-
duziu. Em 2007, ele foi publicado pela Pallas Editora do Rio de Janeiro.
No ano seguinte veio a lume A última tragédia (1995). Dois anos depois,
Mistida (1997), todos pela Ku Si Mon Editora, de Bissau. Sila nasceu em
1958, em Catió. Formou-se em engenharia eletrônica na ex-República De-
mocrática da Alemanha e, mais tarde, fez especialização em computação e
telecomunicações. Voltando a seu país, engajou-se na vida intelectual, tendo
sido um dos cofundadores do famoso INEP (Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisa), ao lado do sociólogo Carlos Lopes, entre outros. Como fizeram
muitos outros intelectuais africanos de sua geração, começou a perceber os
desvios para os quais os políticos locais, em geral ex-combatentes nas lutas
de libertação, começaram a levar seus países, com muita corrupção, regimes
ditatoriais, desinteresse pelo sofrimento do povo etc. Isso levou alguns a
afirmar, que a vida era melhor na época colonial, mesmo com a discrimi-
nação contra os autóctones, que, submetidos ao “Estatuto do Indigenato”,
não eram considerados cidadãos portugueses, mas, pelo menos, podiam se
alimentar melhor e usufruir de um melhor acesso às condições básicas de
saúde do que com os atuais dirigentes africanos.
O romance Eterna paixão tem como personagem central o norte-
americano de ascendência africana Daniel Baldwin, o Dan. Ele se formou
em Agronomia na Universidade da Georgia, Atlanta, onde teria dividido
um quarto com o famoso líder jamaicano Marcus Garvey (1887-1940),
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 79

idealizador do Universal Negro Improvement Association (1914), no ro-


mance Africa Committee, e criador do lema Back to Africa. Nessa universi-
dade, Dan conheceu também africanos, como os estudantes David e Ruth.
As conversas com Garvey calaram fundo em Dan, a ponto de fazê-lo ir para
um país não especificado da África a fim de ajudar em seu desenvolvimento.
Casa-se com Ruth, mas logo seus destinos tomam rumos diferentes, ela o
trai com David. Nisso Dan espanca os dois. Depois é torturado por compar-
sas políticos de David até perder os sentidos. É salvo por um misterioso mo-
torista de táxi, Mukedidi (ou Didi, por causa do famoso jogador brasileiro),
que teria passado por algo semelhante e se condoera dele. Ruth assimilara
o regime de corrupção que vigia em seu país, mas Dan preferiu manter o
ideal original.
Depois dessa desilusão, nem sequer retorna à bela residência que
compartilhava com Ruth, instalando-se em uma tabanca fictícia de nome
Woyowayan, da antiga empregada Mbubi. Dan consegue melhorar a vida em
Woyowayan, a ponto de os dirigentes o convidarem a retornar para a capital
a fim de dar sua contribuição ao governo central. Ele até aceita o convite
em um primeiro momento, mas acaba percebendo que sua eterna paixão é a
pequena tabanca e seu povo.
Como muito bem observou Moema Parente Augel, Ruth e Mbubi re-
presentam muito bem o mundo feminino africano. A primeira, jovem, ambi-
ciosa, acaba sendo seduzida pelo consumismo capitalista, fazendo do provei-
to pessoal o principal objetivo. A segunda é uma matrona africana, guardiã
das tradições locais, de que não abre mão por nada neste mundo. É a ela que
Dan acaba recorrendo depois de ser traído por Ruth e ser torturado.
Os outros dois romances vão pelo mesmo diapasão. De A última tra-
gédia, escrito em Dresden (Alemanha) em 1984 e com um epílogo escrito
em Bubaque em 1994, há uma síntese na quarta capa. Aí se diz que há um
conflito entre duas “caras”, “a do colonizador convicto dos seus poderes e a
dos colonizados à procura dos seus direitos. Quando giram à volta da figura
central, Ndani, aliás Daniela, que se supõe hospedar um azar, encarnam
a estatura do Administrador imbuído da sua missão e armado do chicote
‘civilizador’; a grandeza do Régulo agarrado ao seu orgulho e provido de
uma malícia desarmante; o ímpeto do Professor em ruptura com as ilusões
da sua adolescência e rearmado pela força de um amor juvenil”. O romance
põe a nu os desmandos dos colonizadores, as crueldades que infligiam nos
africanos, que não tinham nenhum direito, apenas obrigações. No epílogo o
80 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

autor volta a lembrar que, infelizmente, para a gente simples as coisas não
melhoraram após a independência. De acordo com ele, “se aquelas tragédias
e matanças e torturas e misérias e corrupções e poderes de abuso que foram
contados é que caracterizaram aquilo que se chama de colonialismo, então
o colonialismo não acabou”. Os atuais detentores do poder fazem o mesmo.
Do ponto de vista formal, nota-se um grande crescimento do autor,
que aqui apresenta uma linguagem mais apurada e um melhor arranjo dos
episódios. Repetindo o que já fizera no romance anterior, emprega uma série
de palavras e expressões crioulas ou étnicas que são explicadas no Glossário.
Entre as 69 que nele estão arroladas, temos baloba (local de culto), bantabá
(local de reunião), djumbai (convívio, conversa), couro (cargo, posição),
tcholonador (intérprete, mensageiro), roncar (ostentar, exibir) e mata-bicho
(café da manhã). Há também muitas construções de aparência portuguesa,
mas que, na verdade, são decalcadas do crioulo e de línguas étnicas. Pri-
meiro, temos algumas ausências de concordância. Às vezes concordância
em gênero, como em padre fêmea, mulher preto/branco e a mulher do Chefe
Cabrita não é branco puro; às vezes falta até mesmo concordância em núme-
ro, como eles é homem grande e eles quer falar, postas na boca de um cabo
português. Dado o domínio que Sila revela ter do português padrão, trata-se
certamente de recurso estilístico, ou de gralha. No romance encontram-se
muitos outros decalques do crioulo. Por exemplo, filho macho/fêmea, pegar
teso, homem/mulher grande (ancião/anciã), falar mantenha (cumprimen-
tar), manga de (muito), mais melhor, cansar a cabeça (cansar-se: estratégia
de reflexivização comum a vários crioulos do mundo). Nas orações relati-
vas, a norma são construções como problema que o preto nunca consegue
pensar nele, uma questão que é preciso pensar bem nela. Esses são decalques
sintáticos. No entanto, há os decalques semânticos também. Por exemplo,
uma maneira de se cumprimentar é perguntando: o corpo como está? A res-
posta é está bom, obrigado. Enfim, as construções crioulas sob a aparência
de português são inúmeras. Vejamos mais algumas: o régulo quer para eu
fazer o quê? (quer que eu faça), oferecer (dar), tempo de chuva, toca-tchur,
esteira de tchur, alçar esteira de tchur.
Poderíamos mencionar também construções como antes dele ter ba-
tido à porta e (103) e até porque. Da primeira, diz a gramática normativa
que deveria ser “antes de ele ter...”. Sobre a segunda, diga-se que virou
modismo nos meios políticos brasileiros, mas que o equivalente mais usual
é “mesmo porque”. Pelo menos dois provérbios são usados, ou seja, correr
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 81

e coçar o joelho [não combinam] e cada macaco no seu ramo. Por fim,
gostaria de lembrar a questão da denominação, amplamente explorada no
capítulo X. O nome da personagem central é Ndani, mas a semianalfabeta
patroa branca confundiu-o com Dânia, ou seja, Tânia, portanto, para ela
era nome russo, logo, comunista. Acabou transformando-o em Dani, ou
melhor, Daniela, Maria Daniela. O primeiro nome do régulo Bsum Nanki,
“foi reproduzido pelo chefe branco Sancho como Betume e por outros
portugueses como Estrume, com muitos risos. Posteriormente, chama-
ram-no de Manel, nome do macaco que tinha em casa. Os guineenses,
por vingança, chamavam-no Santchu, que em crioulo quer dizer macaco.
A segunda personagem do romance, Okante, fora criado em uma Missão e
era chamado simplesmente de Professor, não pela honra da profissão, mas
para evitar um nome “selvagem”.
O que todas essas características formais revelam é a cor local. Trata-
se de português, mas um português adaptado ao meio ambiente guineense,
do mesmo modo que o português brasileiro, o angolano e o moçambicano
também revelam peculiaridades que refletem os respectivos meios ambien-
tes. Enfim, o português usado por Abdulai Sila é o guineense que, em outro
contexto (cf. caps. I e XII), chamei de português acrioulado.
O terceiro romance de Sila, Mistida, em que cada um dos dez capí-
tulos é como uma história independente, não aborda os mesmos temas dos
anteriores. Como disse Augel (1998: 347), “cada episódio pode ser lido
separadamente e constitui uma estória completa, nem sempre havendo à
primeira vista uma ligação lógica entre os capítulos”. Retomando uma idéia
expressa com muita ênfase pelo régulo Bsum em A última tragédia, ou seja,
que é preciso pensar muito, antes de falar, e até mesmo de ver e ouvir, o ro-
mance mostra que na Guiné-Bissau atual as pessoas não veem os que estão
diante de seus narizes, embora até falem deles. O problema todo é que não
pensam, pois suas memórias foram roubadas.
O nome do livro é derivado do verbo misti (querer). Portanto, “mis-
tida” remete a algo como “desejo, objetivo”, aquilo que se quer. A despeito
do caos reinante na sociedade africana, todos desejariam algo melhor (safar
mistida). De um modo geral, ele revela uma desilusão com os rumos toma-
dos pela política no pós-independência.
Filinto de Barros, nascido em 1942, conta-se entre os escritores mais
velhos. Foi dirigente do PAIGC, embaixador em Portugal, além de ter exerci-
do diversos cargos na administração pós-independência. Em 1997, saiu seu
82 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

romance Kikia Matcho (Bissau: Centro Cultural Português; 2a. ed. Lisboa:
Caminho, 2000), o que faz dele o segundo guineense a produzir um roman-
ce. “Kikia” quer dizer mocho ou coruja, ou seja, ave de mau agouro, que é
o que se teme para o futuro da Guiné-Bissau diante de tanto desvio relativa-
mente ao entusiasmo dos primeiros anos após a independência. O tom geral
lembra muito os romances de Abdulai Sila, que denunciam os desmandos
que vicejam no país, em nada diferindo dos da época colonial, em que as
“autoridades” brancas podiam até espancar, “dar porradas” nos “pretos”,
fatos considerados normais se o “preto” não agisse como o “senhor” branco
queria. Em Sparemberger (2003: 310-326) temos uma análise desse ro-
mance bem como a transcrição de diversos trechos dele.
Carlos Edmilson Vieira, conhecido também por Noni, nasceu em Bis-
sau em 15 de julho de 1960. Poeta, autor-compositor, vive atualmente na
França, onde exerce a carreira diplomática. Em 2000, publicou « Contos de
N’Nori », edição do autor, Bissau, uma recolha de oito contos que evocam
lendas e costumes populares, recordações de brincadeiras da juventude e as
vicissitudes sociais e políticas da sociedade guineense. Esta obra foi reedi-
tada em 2005 pela UNEAS, União Nacional dos Escritores de São Tomé e
Príncipe.
Filomena Embaló é a terceira pessoa de nacionalidade bissau-guine-
ense a publicar um romance. Trata-se de Tiara (Lisboa: Instituto Camões,
1999). Na quarta capa de seu livro de poemas Coração cativo (2005), que
será comentado no capítulo V, e no de contos Carta aberta (2005), que será
discutido mais abaixo no presente capítulo, temos a seguinte informação
sobre sua biografia: “Guineense de coração e por opção, Maria Filomena
Araújo Vieira Embaló nasceu em Luanda (Angola), a 26 de julho de 1956,
filha de pais cabo-verdianos. Em 1975, os acasos da vida levaram-na para
a Guiné-Bissau, país que adoptou e em cuja labuta dos primeiros anos de
independência se forjou a faceta guineense de sua identidade. Formou-se em
Ciências Económicas na Universidade de Reims (França) e ocupou cargos
na Função Pública Bissau-Guineense, no país e no exterior. Actualmente tra-
balha numa Organização intergovernamental em Paris”. Ela tem publicações
em revistas e jornais sobre a economia guineense e sobre temas literários.
Tiara lembra um pouco Eterna paixão de Sila, com um equivalente
feminino para Dan. Embora todos os lugares mencionados sejam fictícios,
vê-se claramente que alguns são africanos, outros europeus. Tiara parte de
sua terra, Porto Belo (a respeito de que se poderia estabelecer um para-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 83

lelo com Angola), para Terra Branca (comparado a Portugal). Aí conhece


Kenum, de Muriti (reconhece-se nele a Guiné-Bissau), que estava vivendo
uma luta de libertação, parecida com a que viveu a Guiné-Bissau entre
1963 e 1974. Acaba casando-se com ele e indo para Muriti. Após várias
peripécias, é ferida em um bombardeio, perde o filho que tinha no ventre e
a capacidade para procriar. Mesmo sendo perdidamente apaixonada pelo
marido e vice-versa, este acabou cedendo às pressões da mãe (que nunca
aceitou a estrangeira Tiara) para que ele arranjasse uma segunda esposa
na própria aldeia a fim de deixar um descendente que desse continuidade
à chefia da aldeia, o que efetivamente aconteceu. Como ele fez isso es-
condido de Tiara, e talvez nem só por isso, ela não o perdoou, pedindo o
divórcio incontinenti. Por coincidência, um amor de juventude de Porto
Belo, Jô, aparece justamente nessa época em Muriti. Ela fica transtornada,
mas não se animou a acompanhar um homem de novo para outras terras.
O próprio Jô veio para a aldeia para a qual ela se refugiara, mas não fica
claro se reataram ou não.
Nota-se em Embaló um gosto pela descrição de paisagens e de deta-
lhes, mas sempre em um português bem lusitano, diferentemente de Sila,
que insere muitos guineismos e crioulismos (Embaló os inclui nos poemas
e nos contos). A autora explica a opção neste romance por um português
puramente lusitano pelo fato da sua escrita se ter revelado como um exer-
cício de redefinição da sua própria identidade. Note-se que o romance foi
escrito durante a guerra civil na Guiné-Bissau (1998-1999), acontecimen-
to que viera juntar-se a anteriores desilusões que abalaram profundamen-
te os alicerces da sua identidade guineense, forjada no espírito da unidade
Guiné-Cabo Verde e nos valores da luta de libertação que prevaleciam no
pós-independência imediato. Assumindo-se até então quase que exclusiva-
mente como guineense, embora nunca tivesse renegado as suas origens nem
a sua vivência angolana, Embaló atravessou nessa altura uma profunda crise
de identidade, não se reconhecendo mais no processo em curso na Guiné-
Bissau. Ao escrever Tiara e principalmente ao redefinir a identidade da sua
personagem principal, a autora acabou por reconstruir a sua própria, que
passou a assumir como sendo uma identidade de múltiplas facetas, resultan-
te das culturas e vivências em que esteve imersa. Ela hoje define a sua Pátria
como o conjunto dos países que contribuíram, cada um à sua maneira, para
a edificação desse sentir de pertença múltipla. A escolha de um português
guineense, angolano ou caboverdiano para a escrita do romance foi uma
84 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

questão que se lhe pôs na altura, mas por nesse momento ter-lhe sido difícil
optar por um deles, justamente por não saber “onde situar-se”, decidiu pelo
português lusitano, que representava uma certa “neutralidade” nesse con-
texto de crise identitária.
Voltando ao romance, os personagens principais estão envolvidos em
intrigas amorosas, mas o pano de fundo de tudo são as guerras de liberta-
ção dos países africanos, embora a África não seja mencionada. Inclusive
transparece a desilusão com os ex-combatentes que assumiram o poder após
a independência. Nas palavras da própria autora, “O MLM acusava uma
decadência. A corrupção tinha-se tornado prática corrente no seio dos seus
dirigentes e os ideais revolucionários tinham dado lugar à luta pelos inte-
resses pessoais”. Aparece igualmente o conflito entre as tradições étnicas
e o mundo consumista e globalizado. O romance levanta também o véu da
questão tabu da integração no seio da sociedade africana. Como sempre,
há muitos personagens, embora o fio condutor em torno de Tiara se man-
tenha do início ao fim, o que representa um progresso em relação ao que se
vê nos contos. O fato é que o africano é eminentemente gregário, gosta de
estar sempre em grupo. Talvez por isso toda narrativa da região tenha tantos
personagens. O romance não tem lances violentos de traição. As histórias
amorosas se iniciam e terminam de modo relativamente tranquilo, não com
grandes irrupções de ódio. No capítulo V veremos que Embaló publicou
também um livro de poemas, Coração cativo (2005).
Até a presente data, Abdulai Sila, Filinto de Barros e Filomena Embaló
são os únicos escritores da Guiné-Bissau que se aventuraram pela senda da
ficção romanesca. Como dissemos alhures no presente livro, trata-se de uma
literatura incipiente, embora não insipiente.
Poderíamos acrescentar ainda, pelo menos, Uaná, de João Ferreira
(São Paulo: Global Editora, 1986). No entanto, ele já foi mencionado no
capítulo III. Há uma resenha dele, feita por Marcus Maia (Papia vol. 1, n.
1, p. 82, 1990). Em Rosa (1993) há duas páginas encomiásticas dedicadas
a ele, considerando-o além de “o primeiro romance no campo da ficção
guineense”, dotado de “uma bela prosa”. Em Augel (1988), há seis páginas
dedicadas a essa obra. Sparemberger também lhe dedica 12 páginas. O au-
tor tem ainda contos e poemas sobre temas guineenses, todos inéditos, mas
disponíveis na internet.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 85

Conto

O conto tem como precursor as narrativas orais (storias), assunto am-


plamente explorado por Barros (1900), que as transcreve na versão crioula
e em português. Rosa (1993) também faz um apanhado geral das storias
que já foram publicadas. Isso terá continuidade nas “passadas” de Odete
Semedo, como veremos adiante. No entanto, o primeiro contista guineense
é James Pinto Bull, com seu “Amor e trabalho”, que saiu no Boletim cultu-
ral da Guiné Portuguesa. Não dispomos de informações sobre as datas de
seu nascimento e de falecimento. No entanto, como salientar Sparemberger
(2003: 91), ele deve ter falecido por volta do ano de 1971. Sparember-
ger se baseou em uma declaração de Amílcar Cabral, que falou do “célebre
traidor africano Jaime Pinto Bull que, apesar dos nossos conselhos, acabou
por morrer na triste condição de vil servidor dos colonialistas, de inimigo
do nosso povo e da África”. Independentemente de questões ideológicas e
políticas, Bull é o primeiro prosador genuinamente guineense. Como curio-
sidade, João Ferreira nos informou que ele é irmão do conhecido linguista
Benjamim Pinto Bull, tantas vezes citado por nós. Infelizmente, James Pinto
Bull não teve continuadores imediatos. No capítulo III já adiantamos algu-
mas informações sobre ele. Gostaríamos de frisar que, como lembrou Rosa
(1952: 196), a ação de “Amor e trabalho” se passa entre os balantas. Além
de conter diversas expressões dessa língua (e algumas do crioulo), o conto
mostra hábitos tradicionais dessa etnia, como o roubo ritual feito principal-
mente pelos blufos (jovens incircuncisos). A mensagem geral de Pinto Bull
é a de mostrar que esse hábito se baseia em um ganho fácil. O melhor é
trabalhar honestamente para conseguir o que se quer, no caso, o dote para
se conseguir a mão da “linda e escultural Rece”, disputada por Intchami e
Cabi. O primeiro, que lançou mão desse recurso, acabou sendo detido pelas
autoridades coloniais, além de ter perdido Rece para Cabi. Passemos a al-
guns contistas atuais, começando por Domingas Samy.
Domingas Samy, Mingas, nasceu em 2 de janeiro de 1955, em Bula.
Estudou Filologia Germânica na ex-URSS. Foi professora secundária de
francês, funcionária do PAIGC e secretária da ANAE (União Nacional de
Artistas e Escritores). Participa ativamente da vida cultural do seu país. Se
não incluirmos Pinto Bull, ela é a primeira contista guineense, com o livro A
escola: contos (Bissau: Edição da Autora/Editora Escolar, 1994), que con-
tém os seguintes contos: “A escola”, com o mesmo nome do livro, “Maimu-
86 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

na”, o mais curto, e “O destino”, o mais longo. O livro é comentado no arti-


go “A marca do feminino na recente literatura da Guiné-Bissau” por Moema
Parente Augel (Tcholona 1, 1994, p. 6-8), bem como por Leopoldo Amado
em “Entre a expectativa e a esperança” (Tcholona 2-3, 1994, p. 40-42). Em
Augel (1998, 2007) há mais comentários sobre a obra de Samy. Trata-se de
uma publicação da autora que, aparentemente, não deu continuidade a sua
produção literária.
O primeiro dos três contos de A escola, ou seja, “A escola”, tem como
um dos temas centrais as dificuldades da mulher na sociedade guineense,
e africana. Nha Aurélia tem que cuidar da casa sozinha porque o marido
passa a maior parte do tempo com a amante. Sua filha Maria Sábado se
engravidara ainda adolescente, dando à luz a filha Lili, de quem nem sabe
quem é o pai. Nha Aurélia sofre muito por tudo isso, por toda essa kansera,
motivo pelo qual recorre ao marabu (feiticeiro) Abdul. Sua amiga vizinha
do marabu, Nha Santa, se encontra em uma situação muito parecida, mas
dissuade Nha Aurélia do intento de matar o marido.
Aqui começa outra história dentro do conto, ou seja, da família de
Nha Santa, que mora de favor em uma pequena casa de um de seus irmãos.
Também ela tem que sustentar a família, pois o companheiro a abandonou
assim que o filho acabou de nascer, motivo pelo qual ele é chamado de Ne-
gado, maneira de nomear crianças comentada no capítulo X.
Agora, começa a história de Nena, amiga de Maria Sábado e filha de
Nha Santa. Nena vendia o corpo para ganhar dinheiro, com a conivência
dos pais, era indisciplinada e colava na escola, além de seduzir o professor.
Em seguida, entram em ação os alunos da escola. Uma das filhas de
Nha Santa, Cristina, não quer saber de namoro nem de casamento, diante
da infelicidade de quase todas as mulheres casadas que conhece. É discipli-
nada, estuda muito para melhorar de vida.
Chega a época do carnaval, época em que “todo o território nacional
estava em festa” e “as ruas eram povoadas por uma chuva de gente cantando
e dançando durante três dias consecutivos”. Havia diversos blocos (gru-
pos), como o de Chão de Papel Varela (bairro de Bissau). “Maria Sábado
conseguiu conquistar o lugar de rainha do Carnaval”, com “traje de rainha
bijagó” (grupo étnico das ilhas do mesmo nome). “Os três dias de Carnaval
passaram, ela devia estar contente, mas não estava”, sua amiga “Nena se
encontrava doente”, com diarréia, muito magra, perdendo cabelo, “ela mal
conseguia suster-se nas pernas”. Após um exame não deu outra: estava com
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 87

AIDS, ou SIDA, como se diz localmente. Com isso, Maria Sábado ficou
morrendo de medo de também estar com o vírus. Diante do resultado nega-
tivo do exame, jurou deixar a vida de festas, prazeres e sexo. Assim a história
acaba, como diz o contador de storias.
“Maimuna” é bem mais conciso. Toda a história gira em torno dos
problemas da jovem Maimuna, também chamada de Muna e Maina. O pai e
o tio a prometeram a um velho, rico comerciante da Guiné-Conacri, mas ela
era apaixonada pelo jovem Jorge (Djodje). Maimuna fugiu com Djodje, no
dia do casamento, evitando o destino de duas outras irmãs. Após estudarem
medicina e enfermagem em Cuba, os dois passaram a ser pessoas realizadas
e felizes.
Quanto a “O destino”, é bastante longo (41 páginas) para se qua-
lificar como conto. No entanto, “O alienista” de Machado de Assis talvez
seja mais longo ainda. A despeito da extensão, “O destino” apresenta uma
certa unidade temática, além de a história se iniciar e terminar em torno das
mesmas personagens. Interessantemente, não há a profusão de personagens
comum nos outros dois e nos contos de Semedo, bem como nas narrativas
orais.
No que tange ao número de personagens, Samy consegue superar
as passadas de Odete Semedo. Em “A escola”, intervêm acima de 26, sem
contar aquelas que são apenas mencionadas, mas não nomeadas. Parece que
se trata de um alinhar-se de episódios. No entanto, Mingas tem o grande
mérito do pioneirismo. Além disso, seus três contos são um retrato fiel da
sociedade guineense, com suas mazelas e suas belezas. Uma das belezas é
o próprio país, que a autora nomeia como “território nacional”, idéia à qual
voltaremos no capítulo XI.
“Maimuna” é a narrativa que mais se aproxima do que Massaud Moi-
sés (1967) consideraria um conto literário: conciso, a história gira em torno
de uma única pessoa, não há incidentes paralelos, enfim, não é uma mini-
novela.
Como a maioria dos autores guineenses, Mingas faz uso de diversas
palavras e expressões inteiras em crioulo e em línguas étnicas. Também
como eles, lança mão de provérbios, como Si bu ka tene mame, bu ta
mama dona (se você não tem mãe, mama na avó), em “A escola” e Sufri-
dur ku ta padi fidalgu (o sofrimento nos faz grandes), em “O destino”, e
Dipus di sabi, mortu i ka nada (depois do prazer, não importa a morte), em
“Maimuna”. Várias personagens têm apelidos, como Muna, Maina (Mai-
88 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

muna), Djodje (Jorge), Nandinha (Fernanda), Nety (Antonieta) e Abetino


(Albertinho). Ainda no que tange à linguagem, nota-se que os europeus
“de respeito”, “de família” são chamados de “senhor/dona fulano(a)”, ao
passo que os africanos, sobretudo os assimilados, são “nhu/nha fulano(a).”
Odete Semedo, ou Maria Odete da Costa Soares Semedo tem in-
cursionado também pela senda das narrativas, que chama de “passadas”,
assunto sobre o qual publicou dois livros no ano de 2000. Um deles é
Sonéá: histórias de passadas que ouvi contar I (Bissau: INEP). Ele está
prefaciado por Moema Parente Augel, ao que se segue a Nota da Autora.
No final, vem um glossário de termos de cunho eminentemente local, em-
bora não inclua todos que ocorrem no texto. A narrativa “Kunfentu: storia
da boa nova” já saíra em Tcholona 5, 1996. A versão do livro está bastante
ampliada e reparagrafada. O outro livro é Djênia: histórias e passadas que
ouvi contar II (Bissau: INEP, 2000). O volume contém Prefácio de Ino-
cência Mata e Nota Introdutória da própria autora, além de um glossário
no final, que explica muitas das palavras crioulas e/ou de línguas étnicas
que ela usa em abundância. A storia “Aconteceu em Gã-Biafada” também
já havia sido publicada em Tcholona (n. 2-3, p. 20-22, 1994), sendo que a
versão do livro tem 9 páginas a mais, com inúmeros incidentes adicionais.
As demais narrativas do volume são: “As peripécias do doutor Amison Na
Bai”, “Djênia”, “Naquela noite” e “A lebre, o lobo, o menino e o homem
do pote”. A primeira storia da coletânea contém 6 páginas a mais, relativa-
mente à versão de Tcholona, com diversos episódios, em forma de diálogo.
Semedo tem publicado também ensaios de cunho literário e cultural, como
“A problemática do registo da oratura guineense” (Tcholona n. 1, p. 9-11,
1994) e “Um dedo de conversa com a Tia Antera sobre as mandjuandadi”
(Tcholona 6-7, p. 4-9, 1996).
Como já se pode inferir do próprio título dos dois livros, o objetivo
de Semedo foi contar “passadas”, ou seja, fatos passados que a narrado-
ra presenciou. O termo crioulo é intraduzível em português, motivo pelo
qual a autora o usa como no original, apenas adaptando a grafia (que em
crioulo geralmente seria apenas com um s, pasada). Entre essas “passadas”,
encontram-se storias tradicionais, frequentemente ampliadas pela autora,
sendo que outras são de invenção sua. Nas palavras da autora, “algumas
delas [foram] inspiradas em histórias tradicionais que muitos de nós tiveram
o privilégio de ouvir em criança; umas basearam-se em piadas, ditos ou
provérbios escutados aqui e ali (nos junbai em Cachéu, Bolama e algures
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 89

em Geba nas noites das cerimónias de rua garandi e de ialsa stéra di tchur),
às quais banhei alguma fantasia. Outras foram simplesmente inventadas”
(Nota da Autora, Djênia, p. 15).
De um modo geral, essas “passadas” ou “inventadas” seguem o pa-
drão das narrativas orais tradicionais. Nesse sentido, tudo que está dito so-
bre as storias no capítulo VI aplica-se também a elas. Assim sendo, todas elas
consistem em um enfileirar-se de episódios, com uma grande quantidade de
participantes, alguns deles às vezes parecendo deus ex-machina. Para nós,
de cultura proveniente da Europa, parece haver um “excesso” de detalhes.
Além do mais todas as passadas terminam de modo reticente, com pergunta
ou de outra maneira que indica que poderiam continuar.
Muitas “passadas” contêm prolegômenos (proêmio, intróito ou prólo-
go), como “As peripécias do doutor Amison Na Bai” (eu vou sozinho) e em
“A lebre, o lobo, o menino e o homem do pote”, de Djênia, bem como em
“Kriston matchu”, de Sonéá, entre outras. Frequentemente, contêm também
um codicilo (epílogo ou apêndice). Esses dois acréscimos têm um valor alta-
mente epifenomênico, uma vez que sua ausência não prejudicaria em nada a
estruturação e a compreensão da “passada”. Por exemplo, na segunda delas,
duas meninas discutem, em dois terços da página inicial, que título a sto-
ria deveria ter, discussão seguida de uma intervenção da autora explicando
porque pode ocorrer esse tipo de discussão. Uma dessas meninas (Kutchi)
diz que “o nome vai ser chamado ‘a lebre, o lobo e o menino’”, ao passo que
a outra (Cici) acha que o título deveria ser “a história do homem do pote”.
Após o término da história, a autora acrescenta que “depois da história, as
nossas amigas ainda discutiam sobre o nome da história e o final que esta
deveria ter:

- “Não foi assim que eu ouvi, Cici! O Lobo não podia sair a ganhar coisa alguma.
Quem sai a ganhar é a Lebre e tu deixaste que os populares lhe batessem....
- Kutchi... a lebre foi mazinha ... foi muito má ao ameaçar o menino que sempre
a tratou bem.
- Mas Cici, tu é que a fizeste má, quando ela podia continuar esperta e marota; e
não foi assim que ouvimos contar, a culpa foi tua!
- Eu ouvi exactamente assim, aliás, cada uma de nós ouviu como quis e conta
como quer.
- Não concordo; mas, olha, se assim for ... o gato que rouba peixe naquela história
que me contaste, vou fazê-lo fugir; a cozinheira não o vai escaldar.
- Isso não, Kutchi... aquele gato é mesmo mau e arisco, e....”.
90 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

A storia “As peripécias do doutor Amison Na Bai” compreende 49


páginas, tamanho que não excede em muito “O alienista” de Machado de
Assis. O que a diferencia dele são as diversas “peripécias”, a grande quan-
tidade de personagens. Tirando o prólogo de uma página e meia, antes do
“era uma vez...”, e o epílogo de quase uma página, essa passada contém
no mínimo umas 15 personagens, sem contar as de caráter secundário,
que são apenas mencionadas, mas não nomeadas. É extremamente difícil
resumi-la, uma vez que há uma série de incidentes secundários e terciários
que, se omitidos, a história seria íntegra do mesmo modo. Em “Kriston
matchu”, de Sonéá, há um enxerto após o qual a própria autora diz: “...
depois deste aparte já posso acabar de contar esta comprida passada que,
por sinal, já vai longe”.
Em “Sonéá” há 16 personagens, mas em “Kunfentu: storia da boa
nova” só há um com nome próprio, os demais são designados por circunló-
quios ou por metáforas como “Ninguém”, “Filho Viajado” etc. Esta última
circunstância se repete em “Kriston matchu”, também de Sonéá. Como se
evita chamar às personagens por nomes próprios, aparece a palavra crioula
estin, que designa algo como “tal pessoa”, “fulano”.
Entre parênteses, seria interessante lembrar alguns contos de Macha-
do de Assis. Por exemplo, “O medalhão” é basicamente um diálogo entre
apenas duas personagens, pai e filho, que sequer recebem nome. Em “Can-
tiga de esponsais”, entram em cena apenas Mestre Romão e Pai José. Em
“Missa do galo”, temos Conceição, Dona Inácia e Chiquinho, este último
apenas de relance. Vale dizer, há uma paucidade de personagens, ao lado de
muito diálogo.
Como a cultura crioula é uma mescla de elementos europeus e africa-
nos, as “passadas” não poderiam ficar sem refletir o fato. Em “As peripécias
do doutor Amison Na bai”, uma das questões centrais é a burocracia intro-
duzida de cima para baixo, pelo “doutor”. Mas, ironicamente, o seu nome é
uma expressão crioula que significa “Eu vou sozinho”, expressão que reflete
hábitos antroponímicos africanos. Até a ideia de assédio sexual, tipicamente
ocidental, aparece, embora de modo tímido. Intervém também um “compu-
tador, último modelo”, que podia ser usado “sempre que havia luz nas horas
de expediente” porque na Guiné-Bissau tudo é precário. Energia elétrica,
por exemplo, quando existe, só está à disposição algumas horas por dia.
Há um encontro entre modernidade e tradição. Entidades cristãs con-
vivem com animismo e islamismo, culto da natureza, passar a tradição de
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 91

uma geração para outra, tabanca/mato x praça, diversos incidentes retros-


pectivas (flashback), recordações, os guardiães da tradição estão morrendo,
várias histórias em uma só, intercaladas e intercruzadas, mais de 16 perso-
nagens, uma carta de uma página e meia em seu interior, os habitantes das
tabancas acham que na cidade não se valorizam as pessoas.
Outra característica das storias presentes nas “passadas” de Semedo
consiste na inserção de versos cantados, às vezes por pássaros. O objetivo é
quase sempre o de dar informação a quem está longe, de forma misteriosa.
Eles intervêm em quatro narrativas, duas de cada coletânea. Em “A morte
do filho do régulo Niala”, de Sonéá, temos os seguintes versos, cantados por
um pássaro. Esses versos estão em português, mas a norma é que tivessem
sido cantados em crioulo ou, melhor ainda, em mandinga.

Vim de longe
Vim de muito longe
O que me trouxe não é boa nova
Niala levanta-te
Niala levanta-te
Procura os teus antepassados
O teu filho corre perigo
Ele pode morrer

Um aspecto do estilo de Semedo que não pode deixar de ser comenta-


do é a grande preocupação com a linguagem. Suas “passadas” contêm uma
grande quantidade de palavras em crioulo (e em outras línguas locais), às
vezes grifadas, mas nem sempre. É que para ela, muitas dessas palavras po-
dem ser tanto crioulas como portuguesas, como é o caso de tabanca (aldeia
ou bairro tipicamente africano), homem grande (ancião), mulher grande
(anciã) e outras. Às vezes, as palavras são portuguesas, mas a semantaxe é
crioulo-africana, como “o nome vai ser chamado ...” (o nome será), de “A
lebre, o lobo, o menino e o homem do pote”. Às vezes, Semedo usa gírias
brasileiras, além, é claro, de muitas palavras crioulas e de línguas nativas
africanas, como se fossem portuguesas ou não. Essa linguageem tingida pela
cor local seria o português guineense, o português acrioulado, como o cha-
mamos alhures. Ao falar da poesia de Semedo no capítulo VII veremos mais
sobre a preocupação da autora com a linguagem.
92 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Tudo que foi comentado sobre essas “passadas” é um argumento em


prol da tese segundo a qual o africano aprecia muito a interação. Essa intera-
ção se inicia mesmo antes do início da narração, podendo haver intervenção
da audiência inclusive enquanto a storia está sendo contada. A interação
pode continuar, e frequentemente continua, mesmo após o final da história,
final que contém a moral da história.
No prefácio que escreveu para Djênia, Inocência Mata fala da “ex-
traordinária elaboração das passadas guineenses” que, “embora apresen-
tando características estruturais e semânticas do conto tradicional, revelam
um trabalho de elaboração estética”. Para ela, Semedo “retoma e reordena,
em termos de reinvenção literária e recriação individual, um trabalho ante-
rior, esse de Teresa Montenegro e Carlos Morais”, ou seja, Junbai (1979)
e Uori: storias de lama e philosophia (1995), duas recolhas narrativas tra-
dicionais. Conclui dizendo que “dada a perversidade da globalização, a
dimensão histórica da palavra oral está a ser posta em causa. Aproximar os
dois universos, o da tradição – da tabanca – e o da urbanidade – da prasa
–, e fazê-los dialogar [...] é uma proposta que Odete Semedo apresenta”.
Se partirmos das características do conto apresentadas em Moisés
(1967), as “passadas” de Semedo não seriam contos literários propriamente
ditos. De acordo com ele, o conto deve ser conciso e sucinto, o que implica
unidade dramática, de espaço, de tempo, número reduzido de personagens,
diálogo (dominante) pouca ou nenhuma descrição e narração e praticamen-
te nenhuma dissertação. Pois bem, as “passadas” desobedecem a todas essas
características. Como imitam o estilo das narrativas orais tradicionais, há
os já mencionados numerosos episódios, que vão se justapondo ad libitum,
levando ao extremo o dito brasileiro de que quem conta um conto aumenta
um ponto. Isso as aproximaria mais da novela, às vezes até mesmo da te-
lenovela da televisão brasileira, para continuar seguindo a conceituação de
Moisés, uma vez que pode haver uma série de mini-histórias dentro de uma
única “passada”.
Poder-se-ia alegar que isso revelaria uma certa insipiência na técnica
do conto guineense. No entanto, nada do que ficou dito não significa um
menosprezo pela produção de Odete Semedo que, pelo contrário, muito
admiramos. O que há é incipiência. Dada essa incipiência, não só da his-
tória curta (cf. inglês short story) guineense escrita em português, ela só
podia nascer no seio da tradição africana, vale dizer, dando continuidade
às storias. Encarando o fato de uma perspectiva positiva, quem sabe essas
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 93

mininovelas não sejam o germe do futuro conto guineense, que não precisa
necessariamente ser igual ao da tradição europeia? Quem sabe teremos em
um futuro não muito distante uma grande contribuição africana (e guine-
ense) a um novo tipo de conto? O mundo não tem que ser necessariamen-
te como a cultura européia (e agora a norteamericana) nos tem mostrado.
De qualquer forma, consideramos a autora mais poetisa (excelente) do que
contista, sobretudo nos poemas escritos em crioulo, ou melhor, na versão
crioula de seus poemas, como veremos no capítulo VII.
Queiroz (2007) contém uma detalhada avaliação crítica dos contos
de Odete Semedo, além de outras produções literárias da África, e não só de
língua portuguesa.
Filomena Embaló também tem livro de contos, além do romance co-
mentado acima. Trata-se de Carta aberta (São Tomé e Príncipe: UNEAS,
2005), com dez contos. São eles: “Desencontro”, “Os filhos pródigos”, “Se-
ria um caso para Sherlock Holmes?”, “Ri melhor quem ri no fim”, “Sungui-
la”, “O choro”, “Mara cassamenti”, “A rosa” e o “O candidato”. Quanto a
“Homenagem ao meu liceu”, parece mais uma crônica. Alguns desses con-
tos estão publicados alhures, inclusive na internet. Como acontece em outras
obras da autora, nota-se um certo desenraizamento, uma “sensação de estar
em permanente passagem”, de que está sempre na ora di bai “hora de partir”
(Desencontro), sentindo-se como aqueles que “jamais se sentiram em casa
em parte alguma” (Os filhos pródigos). Sua vivência angolana se trai em
pelo menos cinco contos. Nos demais, temos a vida na Guiné-Bissau. Em-
baló é também autora de um ensaio sobre a literatura guineense (cf. Embaló
2003), além de um livro de poemas, comentado no lugar adequado.
94 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

V. LITERATURA EM PORTUGUÊS II: POESIA

Para falar de poesia guineense em português, talvez se devesse co-


meçar pelos poemas que Marcelino Marques de Barros (1844-1928) trans-
creveu (e traduziu) da oralidade, em sua Literatura dos negros (1900). No
capítulo III já transcrevemos a cantiga “Malan”, apresentada em sua versão
portuguesa por Barbosa (1988) como um poema da literatura guineense.
Na verdade, Barros divulga mais nove cantigas, que são uma espécie de
poema. A cantiga “Bindin” (Vendei-me senhor) é formalmente semelhante
a “Malan”.
Como vimos no capítulo III, na segunda fase do Período Colonial
temos alguns poemas de Hugo Rocha (1940), Augusto Casimiro (1955),
Maria Fernanda de Castro (1966) e Armor Pires Mota (1967). No entanto,
o primeiro guineense a publicar poesia foi Carlos Semedo (1963) - alguns
dizem que seria Armando A. Pereira, mas não há comprovação. Semedo é
autor da “primeira publicação individual no âmbito da beletrística de autoria
de um filho da terra na ainda colônia da Guiné” (Augel 1998: 65). Trata-se
de Poemas (Bolama: Imprensa Nacional da Guiné, 1963), coletânea de 18
poemas. Sparemberger (2003: 104-104) contém uma apreciação da poesia
de Semedo, além de transcrever seis poemas, ou seja, “Metrópole”, “Ansie-
dade”, “A Bolama” e “Malas vazias”. Somos de opinião de que a história da
poesia bissau-guineense deve começar por ele, independentemente de ter
sido publicado no contexto de uma Guiné ainda dominada por Portugal.
Com efeito, mesmo quando estava nesse país, escreveu versos como “Tudo
passa / À porta do café / Onde vegeto / (eu que gosto da solidão / das flores-
tas virgens”/ (Metrópole), o que acontece até quando se trata de poesia in-
timista. Tanto que em “Contrastes” ele fala em “choros” (cf. cap. XI), “cha-
béu” e “vinhos em garrafões”. Sua visão ecológica é filtrada pelo intimismo.
Amílcar Cabral (1924-1973), por vários motivos, se encontra em um
momento de transição. A despeito de ter nascido em Bafatá, iniciou sua car-
reira em Cabo Verde, tendo publicado “escritos de juventude” e os poemas
“Ilha” (A ilha, Açores, 1946) e “Regresso” (Cabo Verde - bol. de prop. e
inform. I,2, 1949), ambos reproduzidos no primeiro volume de Obras es-
colhidas de Amílcar Cabral - Unidade e luta, em 2 volumes (Lisboa: Seara
Nova, 1976/7). No mesmo volume, encontra-se também o ensaio “Aponta-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 95

mentos sobre a poesia Cabo-Verdiana”, originalmente publicado no mesmo


boletim em que saiu “Regresso”. Em “Ilha”, Cabral fala da monotonia da
vida em Cabo Verde e, em “Regresso”, de algo raro no arquipélago, que
é a chuva. Afora isso, temos poemas seus em algumas antologias. A Anto-
logia poética da Guiné-Bissau, de Manuel Ferreira (1990), reproduz, “Eu
sou tudo ou nada”, “No fundo de mim mesmo”, “Poema”, “Não, Poesia” e
“Rosa Negra”, além de “Ilha” e “Regresso.” Barbosa (1988) contém “Rosa
Negra” e Secco (1999) reproduz “Poema”. A Revista de cultura Vozes (Ano
70, n. 1, p. 18-19, 1976) contém sete poemas de Cabral, juntamente com
uma reprodução de “Apontamentos sobre a poesia caboverdiana”, entre eles
“Ilha” e “Regresso”. Nesses poemas aparecem a insularidade, típica do meio
ambiente caboverdiano, e temas mais intimistas e familiares bem como uma
preocupação com a formosura da bela negra que vai definhar algum dia. Os
versos “Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra /
atravessou os mares e os oceanos” (Poema), já deixam entrever o futuro
revolucionário. Talvez por ter se dedicado mais a atividades revolucionárias,
Cabral parou de poetar ao longo do restante dos 49 anos que viveu. No
número 6 da mesma revista (p. 51, 1976), encontra-se o poema “Kabral ka
morre” (em caboverdiano), de Emanuel Braga Tavares, acompanhado da
tradução portuguesa “Amílcar Cabral não morreu”, junto com mais nove
poetas caboverdianos. Tudo no texto “A poesia viva de Cabo Verde”, de auto-
ria do poeta do país Luís Romano. Apesar dessa caboverdianidade literária,
Amílcar Cabral é o herói da libertação da Guiné-Bissau e autor da letra de
seu hino nacional, reproduzida como apêndice na página 422, a última, de
Augel (2007).
Quem se inicia na poesia para valer no Período da Luta pela Indepen-
dência (1962-1973) é Vasco Cabral. Mas, no que segue, não vamos seguir a
ordem cronológica. Falaremos de alguns dos principais poetas alinhando-os
por ordem alfabética. Aqueles que serão estudados no capítulo sobre a poe-
sia em crioulo serão mencionados aqui só de relance, quer escrevam só em
crioulo quer escrevam nele e em português. Comecemos por Agnelo Regalla.
Agnelo Augusto Regalla (Agnelo Regalla) nasceu em Tombali, em 9
de julho de 1952, tendo se formado em jornalismo na França. Ele foi diretor
da Radiodifusão Nacional. Mais tarde, conseguiu concessão para a Rádio
Bombolom. Exerceu diversos cargos na administração de seu país, tais como
diretor da informação do Ministério da Informação, deputado na Assem-
bléia Nacional Popular (ANP) e membro do Comitê Central do PAIGC, en-
96 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

tre outros. Aparece nas antologias Mantenhas para quem luta (1977), com
7 poemas, Antologia poética da Guiné-Bissau (1990), com 16 poemas, além
de Eco do pranto (1992), de que Sparemberger (2003: 244) reproduz o
poema “Esperança renovada”. Em Barbosa (1988), vê-se “Poema de um as-
similado”; em Secco (1999), reproduzem-se “Decisão” e “As ilhas”. Os três
já haviam aparecido nas antologias. Há poemas seus no periódico guineense
Nô pintcha e nas revistas Afrique/Asie e África. Augel (1998) menciona uns
quatro poemas inéditos do autor, embora não os transcreva. Regalla não
publicou nenhum livro individual. Ele só escreveu em português.
Como alguém que lutou pela independência de seu país, grande parte
dos poemas de Agnelo Regalla são de cunho político, “Com a arma numa
mão, / O arado na outra” (“Comandante”). Um dos mais conhecidos é o já
mencionado “Poema de um assimilado”, em que lamenta ter mais conheci-
mento das coisas da Europa do que das da África. Em “Homem novo”, ele
diz que “E quando na minha terra / Pela força do homem / Nascerem as
fábricas”, a vida de todos melhorará. “Então brotará dos olhos / Das crian-
ças do futuro / Amor, paz / E homem novo”, “No canteiro livre / Da Guiné
e Cabo Verde” (“Camarada Amílcar”). Sabemos que, infelizmente, não é o
que ocorreu. Às vezes, o poeta deixa extravasar também o lirismo, como em
“Um poema” (há dois com esse título), “Mulher” e “Flor nocturna”.
António Soares Lopes Júnior (Tony Tcheka) nasceu em Bissau em
23 de dezembro de 1951. Desde o início da carreira atuou como radialista
e jornalista, tendo publicado seus primeiros poemas aos 17 anos de idade.
Tem poemas em Mantenhas para quem luta (1977), Antologia poética da
Guiné-Bissau (1990) e O eco do pranto (1992), todos em português. É em
Kebur: Barkafon di poesia na kriol (1996) que aparecem alguns de seus
poemas em crioulo. Seu primeiro livro individual é Noites de insónia na
terra adormecida (Bissau: INEP, 1996), dividido em quatro seções. A pri-
meira (Kantu kriol) consta de dez poemas em crioulo; a segunda (Poemar)
contém 13; a terceira (Sonho-Caravela), 9; a quarta (Poesia Brava), 31, a
mais longa; a quinta, 8. No total são 71 poemas. Esse livro reproduz quatro
poemas publicados em Kebur (“Balur di kebur”, “Dur di mame”, “Kanta di
fomi” e “Fugu de ña korson”). O seu último livro de poemas, Guiné sabura5
que dói, foi publicado em 2008 e lançado no Brasil, durante a Festa Literária
Internacional de Porto das Galinhas (FLIPORTO), realizada de 6 a 9 de no-
vembro do mesmo ano. Trata-se de uma recolha de 31 poemas, dos quais 5
5. felicidade
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 97

em crioulo e os restantes em português, compreendendo também um texto,


a encerrar a obra, em homenagem a José Saramago. O livro põe a nu a alma
sofrida do poeta perante as dificuldades do seu país e suas gentes, louvando
a resistência do “Homem-Guiné” (mulher, criança, homem, quer no país
quer na diáspora) que recusa a “aceitar a conveniência da indiferença” e luta
para que o “amanhã não seja bola de trapos fintando os nossos meninos”.
Essa obra é também um grito de saudade do emigrante que partiu para a
“terra branku” onde “ficou sem estar”. É ainda uma declaração de amor à
mulher guineense, combatente incansável de todas as lutas que em tempos
de penúria “finta a vida madrasta” esmagando com o “tuku di6 pé a fome
para que não atormente a  vida apoquentada”. Mas é também um manifesto
de esperança num futuro melhor, onde o casabi7 terá virado sabi8. Mais
adiante analisaremos sua produção em crioulo em pormenor.
Pascoal D’Artagnan Aurigemma nasceu em 15 de março de 1938, em
Farim, e morreu em 7 de dezembro de 1991, em Bissau. Em vida, só publi-
cou alguns poemas em jornais e coletâneas, além de ter participado de con-
cursos, em que às vezes tirava os primeiros lugares. Entre as primeiras obras
que produziu, está Djarama, palavra que significa “agradecimento” em fula.
No entanto, Amor e esperança é o seu primeiro livro publicado, no caso, pela
Thesaurus Editora, de Brasília, em 1994, com 34 poemas. Além dessas duas
obras, D’Artagnan produziu ainda pelo menos a coletânea Bumbulum de
Clabus, que permanecia inédita até que a estudiosa brasileira Moema Paren-
te Augel a incluísse no volume Djarama e outros poemas (Bissau: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas, 1996), na coleção Kebur, que contém toda
a obra do autor, num total de 77 poemas e dois pequenos textos em prosa.
Aí estão incluídos os de Amor e esperança. Na Nota Editorial, a autora faz
um minuciosíssimo estudo filológico da esparsa produção de D’Artagnan,
cotejando as diversas versões dos poemas nos diversos manuais. A coletânea
Kebur não inclui D’Artagnan, uma vez que ele só escreveu em português.
D’Artagnan aparece na primeira coletânea, Poilão (1973). As duas
seguintes não contêm nenhuma produção sua. Mas, em Antologia poética da
Guiné-Bissau (1990), ele comparece com 9 poemas. Está presente também
em Secco (1999), com dois poemas, ou seja, “Revolta pátria” e o longo “O
cantor miserável da noite no cais”. Muitos dos poemas constantes dos dois

6. Calcanhar
7. Que não é bom, infelicidade
8. Que é bom
98 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

livros póstumos do autor já haviam sido publicados em jornais e revistas da


Guiné-Bissau e de outros países.
D’Artagnan é um poeta humilde, de um país humilde, um dos menores
e mais pobres de África, tentando mostrar que, a despeito dos maus tratos
infligidos a ambos pelos colonizadores, ele existe, e produzindo poemas. Po-
esia pode não mudar o mundo, mas pode tornar menos difícil o fardo da
vida. Não há ressentimento nos poemas do autor. O seu mote é “amor e
esperança”. Assim sendo, em vez de ficar alimentando rancores contra o
ex-colonizador, ele prefere enfatizar temas como a fraternidade e a solida-
riedade humanas. Só em Amor e esperança, esse tema ocorre em pelo menos
9 poemas, como se vê nos versos “As folhas sacudidas pela fresca aragem de
bela manhã / em saudação fraternal se envolvem / é dia novo” (Poema do
presente).
Outro tema recorrente em toda a obra d’artagnaniana é a criança. Ele
ocorre em pelo menos 8 poemas de Amor e esperança, embora em forma
indireta ele esteja presente em muitos outros. Criança é esperança. Apesar
de a rima não ser uma solução, vão, contudo, na mesma direção. Veja-se,
por exemplo, “Ainda és murcho / chorão / chupas no dedo” (Carta aberta
à criança africana), ou então, “Bom dia esperança / afável criança / mundo
d’abastança”, tirado do poema que traz o mesmo título que o livro, ou seja,
“Amor e esperança”. O poema “Canção da criança” é também todo ele dedi-
cado à criança, como o próprio título já deixa transparecer. O tema “crian-
ça” está intimamente ligado à vida familiar, assunto que já vem expresso na
Dedicatória “à minha querida mulher Celeste / Aos meus amados filhos / às
minhas irmãs Helena e Lectícia”.
O tema político também tem cabida em seus poemas. O mais comum
é ele aparecer sob a forma de nacionalismo e patriotismo. É o caso de “Re-
volta pátria”, escrito por ocasião do 25o aniversário do massacre de Pind-
jiguiti, em que tropas portuguesas fuzilaram portuários inermes só porque
reivindicavam salários mais condignos com a condição humana. Seu te-
lurismo inclui toda a África, como no pequeno poema sem título, “A voz
negra da África / o som difuso das marimbas / as melodias harmoniosas
da esperança / erguem alto em tempo e espaço / o reduto da hora grande
/ na pátria nacional de todos nós”. Com isso D’Artagnan está fazendo coro
com a maioria dos escritores e intelectuais guineenses que sempre deixam
transparecer em suas obras um desejo de afirmar a nacionalidade guineen-
se. Essa atitude chega a assumir formas que, para um ocidental, seria ba-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 99

juladora, como os poemas em que ele faz encômios ao então presidente do


país João Bernardo Vieira. Mas, só quem conhece a fundo a cultura do país
pode compreender isso. O fato é que D’Artagnan é apolítico, não tendo se
envolvido nas guerras de libertação. Os esquerdistas dos anos 60 a 80, e
alguns de nós o fomos, achavam que todo mundo tinha que ter a mesma
posição política que eles. Do contrário, seriam direitistas reacionários, en-
treguistas etc. No entanto, uma visão ecológica do mundo, que defende a
diversidade, reconhece que cada indivíduo tem direito de pensar diferente
dos demais, contanto que seu pensamento não os prejudique. Assim era
D’Artagnan.
No mesmo tópico poderíamos incluir as diversas referências à vida e à
cultura bissau-guineense. Elas são tão numerosas que tanto Amor e esperan-
ça quanto Djarama e outros poemas contêm glossários de termos crioulos,
de línguas étnicas bem como outros só inteligíveis a quem está familiarizado
com a vida no país. Por exemplo, quem fora da Guiné-Bissau entenderia
“Coragem povo / Coragem Pilum de Bas / Pilum de Riba / Bandé / Gã
Biafada / Ntula / Plubá / Cuntum / Coragem” (Oráculo) ou, então, “Clussé
uói / Uói / Binté a Uló”. Os primeiros são nomes de bairros de Bissau. Os
segundos estão em balanta, e significam algo como “É isso aí, Clussé / vem
aqui” (Bumbulum de clabus). Por sinal, “bumbulum” é a forma crioula de
“bombolom”, famoso tambor feito com um tronco oco, para transmitir men-
sagens a quem está distante. Quanto a “clabus”, vem de “calabouço”, mas,
aqui, é um nome próprio balanta.
Outro tema muito frequente não só em D’Artagngn, mas em pratica-
mente todo escritor bissau-guineense é a miséria e tudo que tem a ver com
ela. Como salientamos no capítulo VI a propósito das narrativas orais, o es-
pectro da fome persegue o guineense (e o africano) diuturnamente. Daí ser
ela assunto constante em praticamente todas as suas manifestações culturais.
Veja-se, por exemplo, o próprio título do poema “Prato de fome”. O tema
aparece também sob outras formas, como, por exemplo, através de pesso-
as magras, doentes, enfim, famintas. Uma estrofe interessante é a seguinte:
“Depois que tudo / for felicidade / colherei os melhores alimentos / que
darei aos meus irmãos / na tabanca” (Amor fraternal). Aliás, esse mesmo
poema funde miséria/fome com solidariedade. Esta última é uma das marcas
registradas de D’Artagnan, assim como do africano em geral.
A africanidade também aparece aqui com bastante relevo. Apesar de
sua condição de mestiço, ele tinha plena consciência de que seu sangue era
100 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

basicamente africano. No já mencionado “A voz da negra África”, ela apare-


ce. Em “O revoltado”, toda estrofe termina com um verso cuja última palavra
é “Mãe-África”, grafada assim mesmo. Quanto a “Vinte de janeiro”, o último
e o penúltimo versos são um só, ou seja, /Aquele filho de África!/, e o último
é /Aquele filho de África-Liberdade/.
O que não é comum na obra d’artagnaniana é o amor entre homem
e mulher e a sensualidade, que ficam mais implícitos. Aliás, como já salien-
tamos alhures no presente livro, o tema aparece muito raramente na poesia
bissau-guineense. No caso específico de D’Artagnan, o que temos é uma
preocupação existencial com o sentido da vida, a questão do lugar do poeta
no mundo, enfim, uma busca constante de algo que ele não sabe bem o quê
- e quem o sabe? -, mas sempre com amor e esperança. O poema “Eu” co-
meça de modo um tanto trágico, como em “Caí dos céus / numa noite escura
de chuva e de ventos e de trovões / Nem sei bem como caí / de tão tamanha
altura do mundo d’além”, embora passe para um tom lírico na terceira es-
trofe, “Minha mãe me chamava amor / e seus beijos de ouro meu corpo en-
volveram”. Mais para o final, ele assume uma atitude mais autocrítica, como
nos versos “Adulto: virei espantado mal acabado”.
De um modo geral, diríamos que, além de apolítico, D’Artagnan é
o poeta da esperança, da gentileza, da suavidade, e, como no taoísmo, da
harmonia. No Apêndice transcrevemos uma entrevista que ele nos concedeu
em 1990.
Vasco Cabral nasceu em Farim, em 23 de agosto de 1926 e faleceu
em Bissau em 24 de agosto de 2005, ou seja, um dia depois de completar
79 anos. Como Amílcar Cabral e Agostinho Neto, entre outros, fez parte
do grupo da Casa dos Estudantes do Império, em Portugal, na década de
50. Foi preso pela PIDE duas vezes, sendo que na segunda ficou seis anos
na prisão. Por essa época, começou a poetar, embora a primeira vez que
publicou um poema tenha sido em 1979, na revista África - Literatura, arte
e cultura. Esse fato já é sintomático da diferença dele frente a todos os de-
mais escritores guineenses. Estudou economia em Portugal, área em que
tem várias publicações. Participou do movimento clandestino, foi membro
do Comitê Central do PAIGC. Foi deputado, ministro e presidente da UNAE
(União Nacional dos Artistas e Escritores).
Em 1981, aparece seu primeiro e único livro A luta é minha primavera
(Oeiras: África Editora), com 58 poemas e um texto em prosa (O palhaço
duma rua triste). O volume está dividido em cinco partes, ou seja, “Amor”,
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 101

“Infância e Adolescência”, “Esperança”, “Luta e Progresso” e “Paz” (a mais


mais curta, só 5 poemas). Cabral só aparece em duas antologias. A Antologia
poética da Guiné-Bissau (1990) apresenta 20 poemas seus, sendo que só
cinco não estão no livro individual. São eles “Anti-holocausto”, “Desabafo”,
“Flor de setembro”, “Firmeza” e “Guerra nuclear, Guerra das estrelas”. A
outra coletânea que contém algo de sua lavra é O eco do pranto (1992), com
o poema “Canção de embalar”, que já saíra em A luta é minha primavera.
Secco (1999) reproduz dessa obra “Quando eu era pequenino”, “Onde está
a poesia?” e “Pidjiguiti”, o nome do porto em que os trabalhadores foram
metralhados pelas autoridades coloniais em 3/8/59.
Até onde sabemos, Vasco Cabral é o único escritor guineense que
escreveu sonetos, inclusos em A luta é minha primavera. São eles “O último
adeus dum combatente” (1955), “Progresso” (1956) e “A guerra” (1956).
É interessante notar que nem sempre o autor mantém o mesmo número
de sílabas em todos os versos. No terceiro deles, por exemplo, o segundo
verso do segundo quarteto é decassilábico (Quem vai dar pão a quem ficou
com fome), o segundo do primeiro quarteto é hendecassilábico (Bandeiras
de luto ergueram-se no mundo), o primeiro do primeiro terceto é dode-
cassilábico (Depois de tanto pranto e tanta dor exangue) e o último verso
do poema é “bárbaro”, por conter mais de doze sílabas (Num amanhã de
paz as dores serão vingadas). Mas, isso não deslustra a obra cabralina. Pelo
contrário, ele é uma figura ímpar na literatura guineense. Primeiro, consi-
derando seus poemas inéditos, por ser talvez o primeiro poeta guineense,
se excetuarmos Carlos Semedo e Amílcar Cabral, que alguns incluem na
literatura caboverdiana. Segundo, como salientou Moema P. Augel, ele é
o deão dos escritores do país. Terceiro, sua poesia é mais “portuguesa” do
que a dos demais poetas guineenses, embora vez ou outra transpareça a
questão da fome, da criança abandonada, mas também o amor lírico (“Eu
e tu: dois mundos”, “Amiga”, “Saudade” etc.). O poema “O último adeus
dum combatente” chega a lembrar Camões em “Ah! minha Dinamene! assim
deixaste / Quem não deixara nunca de querer-te”. Veja-se também o verso
/Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste/. Às vezes lembra até “Canção
da América”, de Milton Nascimento, como em /Ao despedir-me eu trouxe a
dor que tu levaste/.
Há também um desejo de mostrar que brancos e negros são iguais,
tanto em termos biológicos quanto do ponto de vista social. Vejam-se os
versos “Chamei-lhe ‘amiga’ / ..... /respondeu-me ‘amigo’/ Entre nós só
102 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

havia duas diferenças: / o sexo e a cor da pele” (Amiga). Ou, então, “um
negro / um branco / um forte abraço mútuo / o mesmo alvo sorriso / o
pensamento: bandeiras verdes e brancas” (“Caleidoscópio”). Por fim, “eu
vi as crianças louras / abrirem os braços aos meninos negros” (Disseram-
me que parasse). Há belos momentos como /Poeta! A vida é o melhor
poema/ (Aos poetas).
Como disse o prefaciador de A luta é minha primavera, Fernando J.
B. Martinho, Vasco Cabral não apresenta o nacionalismo e o engajamento
político de quase todos os demais escritores guineenses, refletindo mais o
neorrealismo português. Talvez porque 42 dos 58 poemas foram escritos
antes do início da luta armada. Mesmo quando ele trata de temas africanos
e guineenses, fá-lo de uma perspectiva universal, não como alguém às vezes
revoltado contra os (ex-)colonialistas. Segundo Martinho, “Vasco Cabral
[é] figura exemplar de intelectual africano de vocação universalista” (p. 10).
Aparentemente Cabral só poetou quando era jovem, tendo parado ao chegar
à idade madura.
Hélder Proença ou, mais precisamente, Hélder Magno Proença Men-
des Tavares, nasceu em Bolama, em 31 de dezembro de 1956 e foi assassi-
nado a 5 de junho de 2009, numa emboscada militar quando regressava de
carro a Bissau de uma viagem ao Senegal. Próximo do ex-presidente Nino
Vieira, assassinado em 2 de março do mesmo ano, Hélder Proença foi acu-
sado pelos serviços de segurança de estar implicado numa alegada tentativa
de golpe de estado. Foi Secretário-Geral do PAIGC, membro do Comitê
Central e deputado, além de ter exercido diversos outros cargos, como o de
secretário de segurança pelo menos até 2006. Entre 1979 e 1980, estudou
Planejamento Regional no Brasil. Como Vasco Cabral, Proença parou de
produzir literatura muito cedo, dedicando-se mais à política, o que é de se
lamentar, pois o que publicou é de ótima qualidade.
Das sete antologias e/ou coletâneas já publicadas, ele só não aparece
em Poilão (1973), Os continuadores da revolução e a recordação do passa-
do recente (1979) e Kebur (1996). Inclusive de duas coletâneas brasileiras
ele participa, ou seja, Barbosa (1988) e Secco (1999). De Mantenhas para
quem luta (1977), Proença não só participa com cinco poemas em portu-
guês como é coorganizador e coprefaciador, juntamente com Tony Tcheka
e José Carlos Schwartz, como informa Augel (1998: 03). Em Momentos
primeiros da construção: Antologia dos jovens poetas (1978), ele comparece
com poemas em português e em crioulo, na seção que leva o nome “Espa-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 103

ço crioulo”. Na Antologia poética da Guiné-Bissau (1991), ele é o autor


mais bem representado, com 28 poemas, considerando a “Epígrafe” e os 10
“cantos” que aparecem sob o rótulo geral de “O baque do pranto em dez
poemas com terra e lágrimas” como poemas separados (cf. Sparemberger,
2003: 384-387). Esses dez cantos são dedicados a sua filha Ionhite N’Dira,
que morreu muito cedo. Proença tem um livro individual Não posso adiar a
palavra (Lisboa: Sá da Costa, 1982), com 31 poemas distribuídos por três
seções. O título foi tirado do poema “Canto a Sundiata”, dedicado ao lendá-
rio imperador do Mali no final do século XII e começo do XIII, sob a forma
de “Digo-te / não posso adiar a palavra, Sundiata”. Como informa Augel
(1998: 178), apesar de não ter continuado a produzir poemas, o autor tem
muitos originais inéditos, como os livros Para além da dor (1979-1980) e O
canto por vezes tem a cor das cordilheiras em chamas.
No poema “Bajuda N’a”, de Não posso adiar a palavra, vislumbram-se
diversas facetas da poesia helderiana. O próprio título já contém guineidade
crioula, pois “bajuda” é o termo crioulo para moça, enquanto que “N’a” é
mãe. O tema central é uma jovem prostituta que só pensa em curtição, em
“... altas curtições / ao gosto de sol-praias/, que /sepulta e bem sepultadinho
/ a dignidade em alcatifas confortáveis/, que, com /as calças apertadinhas
/ chamarão mais clientes / (e as fendas ficarão mais nítidas bajuda N’a?”
Como se vê, o poeta não usa subterfúgio, fala cruamente daquilo que a moça
mostra. Afinal, o que ela quer é viver /excitando a confusão dos lábios, das
luzes e do sexo/. Na linguagem brasileira, ela não está nem aí para o que
pensam os outros ou deixam de pensar.
O tema preferido de Proença é o engajamento político, já visível no
poema dedicado a Sundiata. Mas, ele se preocupa também com o amor
entre homem e mulher, como no “Canto à mulher amada”, em cujo terceiro
“canto” ele se envolve “e num orgasmo lento / como uma abelha / sugando
e néctar dos teus lábios”, de Antologia poética da Guiné-Bissau. Aqui o amor
sensual aparece com todo o vigor. Mas, o tema preferido aparece em vários
poemas, como “Assim respira minha pátria”, “Cai a chuva” (no qual “Um
cheiro de fartura inunda a minha pátria”), entre outros. Mas, como já visto,
a série de poemas dedicados à filha que morreu é a mais longa. Neles, ele
viu “quando o pêndulo emudeceu / e o sorriso murchou / na flor da idade”
(Canto III). No “Canto IV” vemos que “Quando o corpo silencioso e imóvel
/ desce como fermento / para ser coberto de pedras e areias / até os heróis
de estrutura de aço choram”.
104 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Se em Fernando Pessoa tudo que sentia estava pensando, em quase


todo tema que Hélder Proença aborda a questão política entra de alguma
forma, até em alguns poemas mais líricos. Ele foi um ser eminentemente po-
lítico, o que, talvez, explicque ter abandonado a literatura. Tanto que alguns
de seus poemas foram publicados em órgãos ligados ao PAIGC, ou seja,
Libertação e O militante.
Francisco Conduto de Pina nasceu em 17 de novembro de 1957, em
Bubaque, uma das Ilhas dos Bijagós. Estudou artes visuais e belas artes em
Lisboa. Nesta cidade, fez também um curso de designer, em 1981. Tem exer-
cido muitos cargos no governo, mas o que mais se sobressai é o de Ministro
do Turismo, atividade a que sempre esteve ligado. Ele organizou excursões
turísticas a sua ilha. É uma pessoa extrovertida e bem falante, sempre dis-
posto a travar acalorados debates com quem estiver por perto. É deputado
da Assembléia Nacional Popular pelo PAIGC, do qual se encontra desligado.
Voltaremos a ele no capítulo VII, a propósito de sua produção em
crioulo, embora a maior parte de sua poesia esteja em português. Essa ên-
fase na parte crioula de sua produção se deve ao fato de ele estar entre os
primeiros a poetar nessa língua. Sua produção em português inclui, entre
outros, 20 poemas em Garandessa di no tchon (1978), sendo que dois estão
em crioulo, dois em O eco do pranto (1992), quatro em Antologia poética
da Guiné-Bissau (1990) bem como os 46 de O silêncio das gaivotas (1997).
Apenas para dar uma ideia do teor dessa produção em português, vejamos
o poema “A N’ga djocô”, de O silêncio das gaivotas (1995), reproduzido em
Secco (1999): “Onde o roncar das ondas / Batem nuas e salgadas / Rolando
sob olhar feito de palmares / de tarrafes, de cantares de Catcho Caleron //
O sorver do teu cheiro / Olhar-te de longe,/ És Campune / Incomparável
desta natureza”. Garandessa foi a primeira publicação individual de poemas
de um autor guineense, embora feita de modo artesanal (Lisboa: Edição do
Autor).
Do ponto de vista da forma, os poemas de Conduto podem constar
de apenas três versos como “No pensamento do meu tempo”, de quatro,
como “Poema I”, ou de cinco, como “A morte”. Todos são de O silêncio das
gaivotas. O mais longo (Geba), de Antologia Poética, compreende 268 ver-
sos, sem divisão de estrofes. Dos de Garandessa, nenhum ultrapassa esses
limites.
No que tange ao conteúdo, nota-se que houve um amadurecimento
desde Garandessa di no tchon (1978) até O silêncio das gaivotas (1997).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 105

Nos do livro de 1978, “o autor, num tom ingênuo e de entusiasmo adoles-


cente, celebra os feitos heróicos da independência e do partido libertador,
assim como as grandezas e as belezas da pátria” (Augel 1998: 149), além de
temas familiares (“Mãe”, “Ao meu pai”, “Amigo”, “Crianças”), do sentido da
vida (A vida) e o amor (Amizade ... amor).
António Félix Sigá, o Félix Sigá, é bastante produtivo, tendo muitos
manuscritos de obras prontas na gaveta. A despeito disso, ele teve o privilé-
gio de ver pelo menos um livro seu publicado, ou seja, Arqueólogo da calça-
da (Bissau: INEP, 1996), com um pequeno prefácio de Teresa Montenegro
(Felixeando). Os poemas desse livro estão datados de 1983 a 1993, exceto
“Que título”, “Ignorado”, “Atrevimento”, “Chora comigo”, “Eh! Eh!”, “Re-
verso das tuas preces”, “Definições”, “Se...”, todos da primeira seção (Arte
de Viver). As seções seguintes são “Sem Asas em Tempo de Mudanças” (13
poemas), “Cantor do Bulício e da Quietude” (9 poemas), “Absurda Teimo-
sia” (25 poemas).
Segundo Teresa Montenegro, “nos poemas que Félix Sigá nos oferece
neste volume sobressai o casamento aos tombos entre o rural e o urbano, a
‘modernização’ mal digerida e pior assumida em que avós e netas trocam de
roupa com despudor, o abandono a meio caminho de um modo de vida por
outro que nem isso chega a ser. Tudo se passa no presente, num presente
vivenciado e ao alcance da vivência de qualquer um de nós: há o cimento, há
a terra vermelha. Um tenta cobrir a outra sem grande sucesso, numa sorte
de cópula desajeitada e não sujeita a acordo prévio”. Segundo ela, aparecem
“bideiras de Bandim, papiadeiras, fritadeiras de panquetes de Canchungo,
mariposas da noite, empregadas domésticas em férias, as mulheres são su-
cessivamente enaltecidas, vituperadas, acarinhadas”.
Sigá não vai pelo diapasão da revolta contra os ex-colonizadores
nem contra os que soltaram bombas contra os guineenses ou os fuzilaram
durante a guerra. Vai mais pela introspecção, pelo lirismo, pela observa-
ção da realidade, dos fatos da natureza (Chuva de relâmpagos), do amor
(Elsa). Um caso interessante, é “(R)eles”, cujo último verso deu nome ao
livro, “Arqueólogo da calçada”, os pobres (eles) que são também “reles”.
Há poemas bem curtos, como “Se..”: “Se cantar é arte / e lutar é viver
/ não perguntes / porque poetizo / entende-me!” No poema “Amor” ele
diz que “É um homem dentro de mim / que faz do inferno paraíso / e do
paraíso inferno”, de Antologia poética da Guiné-Bissau, em que há mais
cinco poemas seus.
106 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Odete Semedo é, além contista, também poetisa, tanto em português


quanto em crioulo. Como seus poemas geralmente são bilíngues, aqui va-
mos apenas registrar as obras em que publicou poemas em português, ou
poemas com versão portuguesa, ao lado da versão crioula. São eles: Entre o
ser e o amar (Bissau: INEP, 1996), com oito poemas apresentados apenas
em versão portuguesa. Os demais são ou bilíngues (a esmagadora maioria)
ou só em crioulo. Mas, Semedo tem outro livro de poemas, fato raro na
Guiné-Bissau. Trata-se de No fundo do canto (Belo Horizonte: Nandyala,
2003). O livro já havia saído também em Portugal (Viana do Castelo: Câ-
mara Municipal, 2003). Mesmo os poemas escritos em português traem a
guineidade, quando não no uso generalizado de expressões em crioulo. O
livro como um todo parece ter sido concebido como uma epopeia, dividida
em seções: “Do prelúdio” (com 22 poemas, sendo 5 bilíngues), “A história
dos trezentos e trinta e três dias e três horas” (15 poemas, um bilíngue),
“Consílio dos irans” (8 poemas em português), “Os embrulhos: O primeiro
embrulho” (10 em português), “O segundo embrulho” (9 em português),
“O terceiro embrulho” (7 em português). A tônica geral é aproximadamente
a dos poemas em crioulo. No entanto, Semedo se revela boa poetisa mesmo
em português. Há uma grande preocupação com a questão da linguagem.
Para mais comentários sobre sua poesia, ver capítulo VII.
Filomena Embaló publicou o livro de poemas Coração cativo (São
Tomé e Príncipe: UNEAS, 2005), bilíngue português-francês. São apenas
16 poemas, sendo que apenas “Terra longe, ai ué”, “Desilusão” e “Enterra-
ram o sonho de Cabral” não têm uma versão francesa. O livro está dividido
em quatro seções (Raízes/Racines, Amores cativos/Amours captifs, Desilu-
são/Désilusion, Esperanças/Espoirs), refletindo “os caminhos cruzados” de
seu eu. Trata-se de uma poesia mais intimista do que muitas outras da Gui-
né-Bissau. A começar do primeiro poema, “Identidade”, em que ela afirma:
“Busco raíses profundas”. O amor também está bem representado, inclusive
o amor sensual, como em “Desejo ardente”, em que ela começa dizendo
que “Um doce arrepio / Percorre meu corpo / Prenúncio de tua mão macia
/ num doce e leve roçar”, indo até a intimidades maiores, como em “meus
seios / Meu ventre / Minhas coxas / Clamam por esse tocar / Deixando em
meu corpo carente / Um húmido desejo brotar”, lembrando o ardor de Flor-
bela Espanca (1894-1930) e até de sóror Mariana Alcoforado (1640-1723).
Na verdade, não só na Guiné-Bissau, mas no mundo todo o homem pode
deixar extravasar toda a sua sensualidade, mas na mulher isso não é bem-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 107

vindo, não se sabe por quê. No entanto, os temas políticos também estão
presentes, como em “Os mestres do mundo”, que “Vieram / Levaram tudo
/ O sonho / A esperança / A vida” em que se pode reconhecer facilmente a
brutalidade da colonização e dos regimes despóticos do pós-independência.
Há até um poema-acróstico, com as primeiras letras de cada verso forman-
do a frase “ENTERRARAM O SONHO DE CABRAL”. O tema criança está
presente pelo menos nos poemas “O menino ganhou a guerra”, que é uma
“homenagem à criança angolana”, e “Sorriso”. No entanto, como a autora
diz no poema “Nem botas nem canhões”, nada a desanimará de continuar
lutando, “Nem botas nem canhões / Nem sórdidas tentações / Minha mar-
cha travarão”.
Poder-se-ia indagar se esse livro pode ser considerado como perten-
cente à literatura bissau-guineense diante das evocações de suas raízes ca-
boverdianas e da vivência angolana que nele transparecem aqui e ali. Cremos
que sim, pois tudo que se diz nele está no mesmo contexto do que foi dito
em praticamente toda a produção literária durante e no pós-independência.
Basta lembrar que tampouco a ação da maior parte dos romances comen-
tados no capítulo IV, como os do Abdulai Sila, se passa na Guiné-Bissau.
Sobre a vida da autora já falamos rapidamente no capítulo IV.
Rui Jorge Semedo nasceu em 18 de setembro de 1973. É graduado
em Ciências Sociais Universidade Federal de Roraima, e Mestre em Ciência
Política pela Universidade Federal de São Carlos (SP). Já publicou os livros
de poesia Stera di tchur (Bissau: Novagráfica, 2001) e Retrato (São Carlos:
João & Pedro Editores, 2007). Dos 36 poemas de Retrato, só os três últimos
(“Segredo”, “N’hara Guiné” e “Badjuda”) não foram escritos em Roraima,
mas em São Carlos. Como diz a prefaciadora, Kátia Monteiro Wankler,
“os poemas de Rui Jorge [....] falam da vida no Brasil, mais especificamente
em Roraima [...]. Ou, então, como diz o próprio poeta, “Nele [os textos
de retrato] falo, sobretudo, das belezas e desigualdades e indiferenças do
Brasil, da inquietação do mundo que cada vez desumaniza o valor da vida
e da minha Guiné-Bissau que por conta da corrupção desenfreada deixou
de cuidar de suas crianças, jovens e adultos”. O poeta fala de Rio Branco,
Amazônia, macuxis, capoeira, senzalas, malocas e até de “samba no pé”,
futebol, “terra onde canta o sabiá”. No entanto, ele veio para cá com “uma
maleta cheia de contos e lendas africanas” (Somos irmãos). Fala também
da condição humana, do amor paterno e pela mulher, mas sempre voltado
para seu país. Tanto que usa expressões crioulas, tais como Di djantá di nô
108 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

kaça (de almoçar em nossa casa), além de dois poemas inteiramente nessa
língua: “No bambaram djagassi” (nossos panos de carregar criança às costas
se misturam) e “N’hara Guiné”. Em Stera di tchur, veem-se os problemas
advindos da guerra civil de 1998-1999. Publicou ainda Ponto de vista (São
Carlos: João e Pedro Editores, 2009, coletânea de crônicas em que comenta
e/ou critica diversos aspectos da vida cultural e política.
Alguns poetas aparecem apenas em umas poucas antologias e/ou
em revistas aqui e ali. Um deles é António Baticã Ferreira, que nasceu em
1939, filho de um soba, tendo estudado em vários países, formando-se
em medicina. Não publicou nenhum livro, mas, segundo sua família, tem
muitos poemas inéditos. Os Cadernos da Sociedade de Língua Portugue-
sa - Poesia e ficção I, 1972, pp. 15-21, publicaram sete poemas seus, seis
deles reproduzidos em No reino de Caliban (1989). Já tinha aparecido
também em Poilão (1973), embora não nas antologias guineenses ulterio-
res. Segundo Secco (1999: 214), “por ter vivido fora da Guiné, passa em
seus versos a angústia do exílio. Canta a saudade da infância na Guiné e o
mar, ...., apesar de pouco recorrente”. Com efeito, ele termina o poema “O
mar” dizendo “e nós compreendemos sua língua”. Sparemberger (2003:
10-115) reproduz, os poemas “Infância”, “Coração alegre”, “Amargura”
e “País natal”, além de lhe fazer uma apreciação crítica. No capítulo III,
já falei dele e transcrevi o poema “Infância”, cujo tom lembra um pouco
“Meus oito anos” de Casimiro de Abreu. Parece haver um certo silencia-
mento de sua presença, talvez pelo fato de ter se posicionado contra o
PAIGC.
Um outro poeta do referido grupo é Nagib Said. Nagib Farid Said
Jauad nasceu em 26 de fevereiro de 1949, em Bolama. Estudou em Portugal
e na França. Exerceu as profissões de jornalista, jurista, redator de agência
de notícias e funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Com-
parece em Mantenhas para quem luta com cinco poemas e, em Antologia
poética da Guiné-Bissau com dois. Aparece também em Momentos Primei-
ros da construção - antologia dos jovens poetas (1978), com dois poemas.
É interessante notar que na primeira estão inclusos “Poema I” e “Poema
II, e, na segunda “Poema III”, o que sugeriria uma continuidade que não
houve de fato. O poema “Em género de homenagem à memória d’Amilcar
Cabral” aparece em ambas antologias. Nesses seis poemas transparecem o
lirismo, o amor, a preocupação com o destino dos povos e um pouco da luta
armada, inclusive a questão da unidade Cabo Verde-Guiné-Bissau sonhada
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 109

por Amílcar Cabral. O “Poema I” começa assim: “Dizem-me que não há


poesia na minha terra / Mas eu não me submeto”, uma espécie de protesto
contra a afirmação de que não há literatura na Guiné-Bissau. No sexto verso
lê-se: “Dizem-me que não há poemas ... / Se ser poeta é viver, amar, lutar/
Nós somos poetas”. É uma pena que não tenha continuado a produzir (ou
a publicar).
Carlos Alberto Alves de Almada, ou Carlos Almada, nasceu em 14 de
abril de 1957, em Bissau. Estudou em seu país e na França. Tem dois poe-
mas em Mantenhas para quem luta e três em Antologia poética da Guiné-
Bissau, além de um em Secco (1999), ou seja, “Entre tu e eu”, reproduzido
da segunda antologia. No poema “Geba”, da primeira, ele diz: “Oh Geba! /
Geba meu irmão / Tu que beijas Pindjiguiti / Tu que afagas a praça da re-
volução”, juntando o grande rio Geba, o cais de Pindjiguiti em que houve o
famigerado massacre. Sparemberger (2003: 190-191) reproduz os três po-
emas, com breves comentários, chamando atenção para “Carta”, que “elege
o tema o 25 de Abril português (a Revolução dos Cravos) e, por consequên-
cia, o reconhecimento oficial da independência das colônias portuguesas em
África”. O tema é lembrado também por Conduto de Pina, em “Madrugada
de cravos”.
Carlos Edmilson Vieira publicou em 1980 os seus primeiros poemas
em português no jornal do liceu de Bissau, Bantaba. O seu primeiro livro
de poemas é Um cabaz de amores/Une corbeille d’amours (Ivry sur Seine:
Nouvelles du Sud, 1998), obra bilíngue português-francês.
Tal como indica o seu título, o amor é um tema presente em vários
dos seus poemas, sobretudo o amor não correspondido que ressurge com
relativa frequência, tal como no poema “Sigillum” em que diz / Quando
confessei ao vento / o amor que trago por dentro / meus olhos afoga-
ram meu coração/ porque chorei por dentro /.../ e tu nada sentiste /.../
porque te amei em silêncio / e tu nem ouviste /.../ porque te amei em se-
gredo /. A fome, a injustiça, a guerra, a mulher e a criança também estão
presentes no seu versejar bastante intimista. No poema “À Espera”, o /
menino da rua / vagabunda com o cheiro da cidade / ao sabor do vento
/... / à espera do amanhã que tarda a chegar /.../ à espera sem esperan-
ça / que a fome seja um pesadelo / que o carinho seja um sonho real /
num mundo sem fumo de fome /. O patriotismo é tratado num estilo que
contrasta com a maneira empolgada dos escritos do pós-independência
imediato. No poema “Magalas”, em que opõe os soldados portugueses
110 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

aos guerrilheiros do PAIGC, fala destes / marchando sentido oposto /


feridos, fardando farrapos / rumo às suas raízes /... / instigados pela voz
da razão / defenderam suas cabanas / semearam heróis e mártires / mas
libertaram os seus /.
Sobre Domingas Barbosa Mendes Samy (Domingas Samy, Mingas),
já falamos no capítulo IV, a propósito de seu pioneirismo na prosa guine-
ense, no caso, o conto. Em poesia, ela compareceu apenas em Antologia
poética da Guiné-Bissau, com cinco poemas. O poema “Arde coração” está
reproduzido em Secco (1999). O início do primeiro poema da antologia diz:
“Porque colorir o mundo / de: agitação / terror / sangue / fogo / dor e / pa-
decimento / da humanidade?// Porquê? / - Todos nós amamos e sofremos
/ - porque não juntar / mãos brancas, negras e amarelas / para construir um
mundo multicor e alegre / como vozes das crianças” (Desejada paz). Apa-
rentemente, Mingas não continuou nem na prosa nem na poesia.
Rui Jorge Dias Cabral (Jorge Cabral) nasceu em 30 de dezembro de
1952. Faleceu prematuramente na Croácia, em 17 de setembro de 1993,
em missão das Nações Unidas. Estudou Relações Internacionais em Bel-
grado, tornando-se diplomata. Foi diretor do Ministério dos Negócios Es-
trangeiros da Guiné-Bissau. A Antologia poética da Guiné-Bissau contém
cinco poemas seus, ou seja, “Anónimo”, “Poeta”, “Os marinheiros da soli-
dão”, “Regresso” e “Canção ao menino”. O terceiro está reproduzido em
Secco (1999). Cabral está presente também em O eco do pranto - a criança
na moderna poesia guineense (1992), que reproduz o quinto poema da
Antologia. Publicou poemas também em francês, como “Toast inachevé”
(Tcholona v. 2-3, p. 25).
Justen, ou melhor, Justino Nunes Monteiro está no mesmo caso. Ele
nasceu em 8 de agosto de 1954. Estudou só em seu país. É professor do ensi-
no médio. Publicou quatro poemas em Mantenhas para quem luta e “Sorriso
da minha professora de matemática” em Antologia dos jovens poetas (1978).
A temática é a dominante nas duas coletâneas, ou seja, uma reação ao sofri-
mento durante a guerra e logo após. Pelo que sabemos, nunca publicou mais
nada além do que acaba de ser apresentado. Gostaríamos apenas de salientar
que já naquela época ele via que não basta derrotar o inimigo, mas é preciso
pôr algo diferente no seu lugar: “Eu não choro os mortos / Nem Cabral /
Nem Ramos / Ninguém / Que cumpriu o seu dever para com o povo / Cho-
ro pelo que queremos / E que as dificuldades não permitem” (Não choro os
mortos).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 111

Mariana Marques Ribeiro (Mariana Ribeiro) usa o pseudônimo


Ytchyana. Fora Eunice Borges em Poilão (1973), é a única mulher a apare-
cer em uma antologia até esta data. Ela tem poemas em Momentos primeiros
da construção (1978) e O eco do pranto (1978): na primeira, “Apelo”, “Para
ti tabanca”, “Poema para criança futura”, “Movimento” e “Kerença”, assina-
dos como Ytchyana; na segunda, “Poema para criança futura’. Às vezes ela
fala da luta, que deve ser superada, às vezes da mulher da tabanca e, às vezes,
do prazer de viver.
Há poetas que só apareceram em uma antologia, como é o caso de
Morés Djassy. Seu nome real é António Cabral. Ele nasceu em 19 de feve-
reiro de 1950. Foi preso pela PIDE e levado para a ilha das Galinhas, onde
esteve também José Carlos Schwarz, que cantou o fato em “Djiu di galinha”.
Trabalha na aeronáutica civil. Mantenhas para quem luta traz quatro poe-
mas seus. Trata de temas basicamente políticos. No afã de construir um país
moderno, frente aos maus-tratos do colonialismo e o sofrimento da guerra,
ele diz à “Natureza Africana / Não te quero prestar culto como os meus an-
tepassados / que poucos souberam contemplar com deleite a tua esbelteza /
Esbelteza que os da recém-geração / Afastaram os credos e espíritos / Que
em ti encarnaram / Fito a obscurecer as mentes / Fomentar o tribalismo e
feitiçarias” (Poema da natureza africana), em que renega a cultura africana
ancestral.
Tomás Soares Paquete (Tomás Paquete, de pseudônimo Talas) nas-
ceu em Lisboa em primeiro de março de 1953. Fez seus estudos em Lisboa.
Produtor da Radiodifisão Nacional, na Guiné-Bissau. Tem três poemas em
Mantenhas para quem luta, quais sejam, “Retorno”, “Ao acaso ... No mar”,
“A Soweto”, sendo que o segundo deles está reproduzido em Secco (1999).
Tem outros poemas esparsos em revistas. Sua poesia se mantém dentro da
temática prevalente no final de década de setenta.
António Sérgio Maria Davyes (Toni Davyes) nasceu em Bissau, em
26 de agosto de 1956. Fez seus estudos na própria cidade natal. Estudou
no Liceu Nacional Kwame K’Krumah. Só vimos poemas seus publicados
em Mantenhas para quem luta. São eles: “Poema”, “Desespero” e “Profa-
nância”. Predomina neles a temática do sofrimento, inclusive a escravidão,
como em “Quem são aqueles / Que durante séculos e séculos / São trans-
portados em porões / Com destino às terras de além mar” (Desespero).
Tcholona (n. 5, 1996, p. 13) contém os poemas “Bu tcholonadur” e “Pa mi
kumpu menus borgoña”, em crioulo.
112 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

José Pedro Sequeira nasceu em 12 de abril de 1956, em Bolama. Es-


tudou em Bissau e em Lisboa. É professor secundário e pintor. Publicou três
poemas em Mantenhas para quem luta, que são “Ânsia” (Dedicado ao dia
das crianças), “A vida real dos homens nossos irmãos” e “A guerra antes do
meu filho”, nos quais predominam a questão existencial, sobre o fundo do
meio ambiente guineense.
Kôte, pseudônimo de Norberto Tavares de Carvalho, nasceu em 6 de
junho de 1953, em Xime-Bafatá. Fez seus estudos no próprio país e na Su-
íça, onde vive e trabalha atualmente. Foi preso em 1973, levado para a ilha
das Galinhas. Só aparece com dois poemas em Mantenhas para quem luta.
São eles “Laba quinty” (relativamente longo) e “Descaso”. Eles tratam do
sofrimento do guineense e do africano em geral.
Jorge Ampa, nascido em 28 de agosto de 1950, morreu em janeiro de
1993, tem por nome oficial Jorge António da Costa, embora assinasse sem-
pre como Jorge Ampa. Ele comparece em Mantenhas para quem luta com
três poemas, embora sob o nome de Jorge Ampa Cumelerbo. Ele achava que
devia usar um nome que refletisse pelo menos em parte sua origem africana.
Apesar de haver informações de que tinha vários poemas inéditos, na verda-
de ele era mais jornalista. Tinha uma coluna no jornal Nô pintcha, intitulada
“Coisas nossas”. Dotado de espírito crítico, dizia que o grande problema da
Guiné-Bissau é que seus filhos sempre dizem i ka ten problema (não tem
problema). Publicou o artigo “Nomi di kasa” (apelidos) em Papia (v. 1, n.
2, 1991, pp. 119-121).
Atanásio Miranda. Não encontramos a data de seu nascimento, mas
ele faleceu em 1981. Aparece em Poilão, com dois poemas, ou seja, “Vem à
minha tabanca” e “Música que foi cantada”, ambos reproduzidos e comen-
tados por Sparemberger (2003: 116-118). Eles são fortemente marcados
pela cor local. Não está representado nas demais antologias.
Tavares Moreira. Aparece unicamente em Poilão, motivo pelo qual po-
deríamos dizer que é um poeta hápax, ou poeta cometa, ou seja, aquele que
aparece só uma vez, diferentemente do poeta bissexto, que aparece como os
anos assim chamados. Augel (1998) não faz nenhum comentário sobre ele.
Sparemberger (2003: 118-119) transcreve três poemas (“O poeta, cidadão
do mundo”, “Caminha” e “A minha mãe”) afirmando que “pertencem ao cor-
pus da Literatura guineense, malgrado certo evasionismo e universalismo”.
Eunice Borges. Nasceu na ilha do Fogo, Cabo Verde, em 11 de maio
de 1917, embora descendente de guineenses (ilhas dos Bijagós). Faleceu a
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 113

7 de fevereiro de 2004. Quando se casou, mudou-se para a Guiné-Bissau,


onde exerceu diversos cargos na administração do país. Como Amílcar Ca-
bral, muitos estudiosos não a incluem na literatura guineense, ou literatura
na Guiné-Bissau. Ela publicou em Poilão e na Antologia poética da Guiné-
Bissau. Nesta última tem os poemas “Mulher da minha terra”, “O nosso
soldado” e “Manta da minha mãe”. Não temos informação sobre nenhuma
outra publicação sua. O primeiro poema poderia ser um hino ao feminismo.
A ternura do último merece ser vista na íntegra: “A minha mãe / tinha uma
manta velhinha / cheia de buracos / que me cobria / quando eu era peque-
nina! // Mamã, / a manta com que me cobrias / tinha tanto calor / que fez
nascer dentro de mim / aquele amor tão grande / que a vida não faz morrer”.
Aristides Gomes, o Hó, nasceu em 8 de novembro de 1954, em Can-
tchungo. Abandonou os estudos em Bissau para se envolver na luta de liber-
tação nacional. Depois da independência retomou os estudos e formou-se
em sociologia e ciências políticas na França. Desempenhou cargos ministe-
riais no país, incluindo o de primeiro ministro. A Antologia do jovens poetas
contém seu poema “Ao povo sul-africano”.
Serifo Mané, nascido em 15 de agosto de 1958, é funcionário público.
A mesma antologia contém um único poema seu, ou seja, “Ningin ka pudi
kala ña boka” (ninguém vai me calar) que, como afirma Augel (1996: 104-
105), “é uma variação em torno da conhecida canção de José Carlos Schwarz
“N na nega bedju” (recuso-me a envelhecer), que também foi incluída na
coletânea”. Tanto ele quanto Aristides Gomes são poetas hápax ou cometa.
Sparemberger (2003: 188) lembra Carlos Sequeira, que publicou pelo
menos o poema “Eu em mim, falar em drama”, além do texto em prosa “Eu
agora, escrever em drama”. O crítico parece confundi-lo com José Pedro
Sequeira, que aparecera em Mantenhas para quem luta. O poema está re-
produzido nas páginas 189-199. Lembra outrossim Julião Soares de Sousa,
nascido em Bula, formado em História. Publicou o livro de poemas Um novo
amanhecer (Coimbra: Minerva, 1996), prefaciado por Pires Laranjeira. Dos
25 textos do livro, Sparemberger (2003: 382) transcreve “Viver a esperan-
ça”. Esse autor transcreve um trecho do comentário do prefaciador. Por fim,
aduz Abdul Carimo Có, nascido em Pinade, Guiné-Bissau, em 1958. Estu-
dou no Brasil. Sparemberger reproduz um dos três poemas seus publicados
por Manuel Ferreira na revista África.
Há poemas de autores que não apareceram em antologias, como “Se
um dia”, de Carlos Morgado, publicado em Bantaba n. 4, 1983, p. 35. A re-
114 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

vista Tcholona também tem publicado poemas Arlinda Martins Nunes, Car-
los Vaz, Amarildo Jair Ramos Araújo e Umar Cora. No excelente site www.
didinho.org encontram-se muitos poetas, antigos e novos. Vejamos a lista
dos que comparecem aí, mas não estão comentados no presente livro (status
até janeiro de 2010):
- Alberto Oliveira Lopes, com dez poemas, escritos no Brasil.
- César Inácio Vieira e Roberto de Sousa Cordeiro, com uma coletâ-
nea de 25 poemas.
- Delo Belo, com 2 poemas.
- Fernando Casimiro (Didinho), organizador do site, com treze poe-
mas, dois deles dedicados ao falecido Valeriano Luiz da Silva (de Anápolis
- GO).
- Flaviano Mindela dos Santos, com duas compilações de poemas em
crioulo, mencionados no capítulo VII.
- Ismael hipólito Djata, com 9 poemas em crioulo.
- José Bacar (José Carlos Cócamaro), com um poema.
- Kansala, com 3 poemas em crioulo.
- Mamadu Lamarana Bari, nove poemas, enviados do Brasil.
- Pedro Higino Delgado, 10 poemas, do livro Sombra e claridade (sem
local nem data).
- Ricardo Pellegrin El Kady, 16 poemas, alguns deles letras de músi-
cas, nem sempre guineenses (ele é cantor).
- Roberto Sousa Cordeiro, com 7 poemas.
- Samuel Pinto Fernandes, com 3 poemas, dos quais um em crioulo.

Além disso, muitos dos autores mais conhecidos, e estudados neste e


em outros capítulos do livro, estão representados no site.
Isso mostra que há uma intensa produção artística e literária de gui-
neenses residentes no exterior. Dadas as precariedades da vida na Guiné-
Bissau em tudo, só falta a designação que sugerimos Literaturas guineenses
ser substituída por Literatura Guineense na Diáspora.
Para terminar, gostaríamos de mencionar o “título à parte” Os conti-
nuadores da revolução e a recordação do passado recente (1979), cujos dois
poemas em crioulo são rapidamente comentados no capítulo VII. Trata-se
de 39 “poemas”, incluindo-se os dois em crioulo, escritos por jovens esco-
lares, cheios de entusiasmo, mas ainda imaturos e parcos de conhecimentos
literários. Embora nenhum deles tenha continuado a carreira literária, apre-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 115

sentamos a lista completa, com a idade entre parênteses, apenas a título de


registro: Bacar Cassamá (19: dois poemas), Valentin António Bandy (15,
dois poemas), Jorge Siuna Guad (18: quatro poemas), Luís Carlos (18: dois
poemas), Manuel Nassum (19), Malam Gomes (16), Bubacar Baldé (19:
três poemas), Mussá João Correia (14: dois poemas), Alberto Silvino Tambá
(17), Djibril Seidy (17: três poemas), Said Siad Mané (17), Malam Mané
(18), Malam Seidy (18), Alberto Faradai (19), Abdú Cassamá (16), Braima
Biai (14), Romana Dias (16), Agostinho Lopes (17), Malam Gomes (16),
Armando Indanhy (17: cinco poemas), Jorge N’Haga (18), Daniel Mentes
(18), N’Hamo Sambu (18) e Linda Pereira (16). Diante das precariedades
do país, trata-se de uma iniciativa válida. Além da afirmação de Fernando
Pessoa de que “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, o recém-
falecido poeta santista-brasiliense Cassiano Nunes também dizia que toda
tentativa é melhor do que o nada.
O Anexo II de Sparemberger (2003) é dedicado a Artur Augusto da
Silva (1912-1983), caboverdiano de nascimento, incluindo comentários que
sobre ele fizeram Amândio César, Luciano Caetano da Rosa e Mário Matos,
além de lembrar os contos que ele publicou em Tcholona e em Mundo portu-
guês. Transcreve seis poemas, ou seja, “Dança do peixe verga”, “Árvores da
Guiné”, “Queimada”, “Tornado”, “Aquarela” e “O lutador”, tirados do livro
E o poeta pegou num pedaço de papel e escreveu (Bissau: Instituto Camões/
Centro Cultural Português, 1997).
116 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

VI. LITERATURA EM CRIOULO I:


AS NARRATIVAS ORAIS

A cultura guineense, semelhantemente à africana em geral, é basi-


camente oral. A tal ponto que o historador e filósofo maliano Hampaté Bâ
afirmou que “em África, quando morre um velho, é uma biblioteca que
arde” (apud Bull 1989: 168). Em outros capítulos do livro pode-se ver
que existem diversas manifestações da oralidade, tais como os provérbios,
as adivinhas e os rumores, além dos cantos tradicionais, sobretudo man-
dingas, das fórmulas mágicas, do tchur, dos sistemas antroponímicos etc.
Mas, entre todas elas, parecem sobressair-se sobranceiras as narrativas
orais. Trata-se, geralmente, de fábulas ou apólogos, já que as personagens
frequentemente são animais, às vezes até mesmo vegetais, entes inorgâni-
cos, ou lugares. Veremos que inclusive a Terra, o Céu e elementos da natu-
reza (chuva, fogo etc.) podem intervir. Parece que toda literatura começa
por esse tipo de manifestação, quase sempre em verso, como já se pode ver
em Esopo (620-560 a.C.) e em Fedro (século I d.C.), para não mencionar
Lafontaine (1621-1695), Jakob Grimm (1785-1863) e Wilhelm Grimm
(1786-1859), entre inúmeros outros que recolheram/criaram fábulas. Os
dois irmãos Grimm afirmaram isso explicitamente. Entre nós poderíamos
mencionar Coelho Neto (1864-1934) e Monteiro Lobato (1882-1948),
entre os divulgadores de fábulas.
O próprio nome “fábula” já dá uma ideia da natureza do objeto de
que trata, ou seja, a oralidade. A palavra vem do latim “fabula”, relacionada
ao verbo “fabulare” (conversar, narrar) que, por sua vez, provém de “fari”
(falar). As fábulas antigas geralmente eram versificadas, o que ocorre até em
textos mais filosóficos como o Tao te ching, de Lao Tzu (séc. VI a.C.). No
entanto, as fábulas guineenses (e africanas em geral) não estão nesse caso,
elas estão narradas em prosa. Porém, muitas delas contêm cantos versifica-
dos (via de regra em mandinga). Normalmente, a mitologia de um povo está
contida em fábulas, como já salientara Ernst Cassirer em Linguagem e mito
(São Paulo: Perspectiva, 1972).
Em crioulo, esse tipo de texto se chama storia, do português “história”.
Essas storias são continuidade de uma longa tradição africana. Provavelmen-
te, “Lubu ku garsa” (a hiena e a garça) tenha sido a primeira fábula crioula
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 117

a ser publicada, no caso no folheto A fraternidade, Guiné a Cabo Verde, em


1883, por Marcelino Marques de Barros, que divulgou também “Storia d’un
fiju starbaganti”, na Revista lusitana (vol. 5, p. 284-289, 1897/1899), em
edição bilíngue guineense-caboverdiana, e “Tris golós” (os três gulosos),
também na Revista lusitana (vol. 10, p. 307-310, 1908), com tradução em
português. Em Literatura dos negros (1900) ele publicou a mais as storias
“A noiva da serpente”, “História de Sanhá”, “Storia de Djambatutu, rei di
pastrus” (O rei Djambatutu), “Storia di lubu ku karnel” e “Falkon ku jugu-
di”, todas na versão crioula e em português, exceto as duas primeiras, que
são “contos mandingas”. Elas estão apresentadas só em português, embora
na segunda haja muitos trechos em crioulo bem como versos cantados em
mandinga, como veremos mais abaixo. No entanto, a primeira coletânea de
fábulas a aparecer em crioulo é a de Teresa Montenegro e Carlos Morais
Junbai (Bolama: Imprensa Nacional, 1979). A Ku Si mon Editora, de Bis-
sau, publicou uma série de opúsculos, sob o título geral de Contes créoles
de Guinée-Bissau. Tivemos acesso a seis desses opúsculos, contendo um
total de sete fábulas. Além dela, temos todas as coletâneas mencionadas no
capítulo III.
Já vimos que diversos tipos de personagens aparecem nessas narrati-
vas. No entanto, o que predomina são os animais. Seres inanimados também
podem intervir, como em “Tchon ku deus” (a terra e Deus) e “Seu papia,
tchon ruspundi” (O céu falou, a terra respondeu), além de cidades, como
Bolama. O objetivo é quase sempre tirar uma lição de moral. Às vezes, a
storia visa a expressar aquilo que se gostaria que acontecesse como, por
exemplo, expedientes para que o mais fraco ganhe do mais forte. As duas
personagens mais comuns nessas narrativas são a hiena (lubu) e o coelho
(lebri), de modo que o título mais frequente é “storia di lubu ku lebri”, ou
seja, “história da hiena e do coelho”. Vejamos uma pequena storia e sua tra-
dução, tirada da primeira coletânea organizada por Montenegro e Morais.
Escolhemo-la por economia de espaço, por ser a mais curta.

Salton ku si mindjer
Un mindjer sai pa ba panha salton na roda di mar. I tchiga, i panha salton manga
del, i fia na korda. I bin panha un salton e fia na korda. Mindjer di salton sai, i odja
si omi, i ba tchora djanan la na metadi di tarafi. I na tchora, i na tchora, i fala si omi
ku panhadu, i na tchora. Salton fala si mindjer: “Ka bo tchora. Ora ku bo sinti
nha tcheru na iassadu bo ta tchora, ma tementi N ka iassadu inda, ka bo tchora”.
Mindjer ku panhal i ditanda gora korda e ba laba kurpu. Salton salta, i kapli na
118 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

corda e miti dentru di koba. I fala si mindjer: “N tarda contau. Tementi bo ka na


sinti nha tcheru na fugu, sibi cuma N ka muri”.

Tradução
O saltão e sua mulher
Uma mulher saiu para apanhar saltões à beira-mar. Ela chegou, apanhou um
monte de saltões e enfiou na corda. Pegou saltões e enfiou na corda. A mulher
do saltão saiu e viu seu homem e foi chorar pra valer no meio do mangue. Ela
chorou, chorou, dizendo que seu homem fora apanhado, e chorou. O saltão lhe
disse: “Não chore. A hora que você sentir meu cheiro sendo assado, você chora;
mas, enquanto eu ainda não estiver assado, não chore”. A mulher que o apanhara
pôs a corda [de peixes] no chão e foi tomar banho. O saltão saltou e escapuliu da
corda e se meteu dentro de um buraco. Ele disse a sua mulher: “Eu não lhe disse!
Enquanto você não sentir o meu cheiro no fogo saiba que eu ainda não morri”.

Do ponto de vista linguístico, pode-se ver que a única palavra crioula


que não provém do português é “ka” (não), embora alguns autores tenham
tentado derivá-la de “nunca”, porém, sem sucesso, uma vez que, segundo
Marques de Barros, ela provém do verbo mandinga ka, que significa negar.
Apesar disso, sem a tradução é impossível a um falante de português decodi-
ficar o texto. Esse é um dos charmes e um dos mistérios das línguas crioulas.
Apesar de mais de 80% de seu vocabulário ser originário de uma língua domi-
nante (em geral européia), elas não são entendidas pelos falantes dessa língua,
conhecida em crioulística como língua lexificadora, fornecedora do léxico.
Entrando na análise do conteúdo, nota-se que, para uma visão de
mundo ocidental, em “Salton ku si minjer” está implícito um certo machis-
mo. A fêmea se desespera, enquanto que o macho mantém a serenidade à es-
pera de uma oportunidade de se safar, oportunidade que acaba aparecendo.
Como disseram Montenegro e Morais, em comentário de rodapé, uma das
coisas que mais saltam à vista nessa storia é a posição subalterna e de de-
pendência da fêmea (mulher), fato corriqueiro em quase toda a África. Essa
dependência e subalternidade transparecem em diversas outras instâncias da
vida guineense. Uma situação muito comum é o régulo (ou o pai) dar a filha
em casamento a alguém como prêmio, como, por exemplo, na “Storia di lion
ku lebri”, a primeira de Lubu ku lebri II. Mas, o tema recorre em diversas
outras storias, não só dessa coletânea, mas de todas as demais. Por exemplo,
em “Si bu mame sta li, bu na raparal?” (Se sua mãe estiver aqui, você a nota-
rá?), de Uori, fala-se da dificuldade da mulher, que tem que se virar sozinha,
quase sem a ajuda do homem, inclusive para parir. Em “Iabrin porta, ali e
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 119

na rikitin” (Abra a porta, estão me cutucando), da mesma coletânea, uma


jovem que gostava de dançar foi aliciada para um baile de serpentes. Quan-
do percebeu o fato, tentou fugir, mas as serpentes se puseram a correr atrás
dela, tentando agarrá-la (cutucar). Ela pediu ajuda da mãe, do pai e da avó,
debalde, todos lhe disseram que se virasse, já que gostava tanto de bailes. O
único que enfrentou as serpentes para salvá-la foi um tio. No entanto, não
o fez por generosidade, tanto que ela passou a servi-lo, mais precisamente,
a ser sua mulher. De um ponto de vista freudiano, teríamos aqui o “perigo”
do sexo para as jovens, uma vez que serpente é um símbolo fálico. O que é
mais, esses falos estavam quase tocando-a, pelo menos de raspão. O “peri-
go” só deixaria de existir se o “sexo” fosse feito com alguém “de confiança”,
da família, no caso, o tio. O importante é que sempre a mulher leva a pior,
arca com o ônus mais pesado. Na storia “Si bu ka na ba konta pasada ami
N na kambantau” (só a levo se não disser nada a ninguém), da mesma cole-
tânea que a anterior, de novo a mulher se vê em dificuldade. Quem a tira da
situação é um homem, ou seja, o nomorado (kirida).
As dificuldades da mulher se manifestam em diversas outras situações.
Primeiro, o homem tem direito à poligamia, o que pode causar uma série
de problemas entre as kunbosas (coesposas). Um caso típico é o de querer
agradar o marido. Em geral a mais nova (noiba nobu) tem beleza, mas a
mais velha (dona-kasa) tem experiência. É a mulher que arca com quase
todo o trabalho (kansera) de cuidar das crianças. Tanto que traz os filhos
pequenos às costas (banbu), amarrados por um pano, a fim de fazer todo o
trabalho, enquanto o homem fica aguardando em casa. Em segundo lugar,
em muitas etnias é a mulher que deve prover a casa de alimento, plantan-
do arroz, vendendo alguma coisa na rua (bidera) e assim por diante. Para
mencionar apenas mais um sofrimento da mulher, os grupos muçulmanos
praticam a excisão do clitóris (fanadu) das meninas.
Nas caminhadas, normalmente o macho vai na frente. Pode aconte-
cer de nenhum deles conseguir comida para a família, motivo pelo qual as
mulheres têm que se virar. Sempre que ela ousa fazer algo por conta pró-
pria, ou seja, não sob a tutela de um homem, acaba se dando mal, como se
pode ver em “Ka bu papia ku ningin” (não fale com ninguém), de Junbai.
Do contrário, ela morre ou é condenada ao mutismo, como acontece nesta
última storia.
O próprio título de uma das storias de Junbai, ou seja, “No kuji pa bu”
(nós escolhemos por você), deixa bem claro esta posição de inferioridade, de
120 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

subordinação da mulher, que depende do homem em tudo que diz respeito


a poder. Pela enésima vez, a jovem se dá mal por ter escolhido um marido
por conta própria. O eleito era na verdade uma serpente travestida de rapaz,
como ela queria. Porém, isso representava perigo para ela, que foi salva por
três irmãos (matchu), cada um deles com uma especialidade, respectivamen-
te, adivinho (pauteru), mecânico, carpinteiro, caçador (montiadur) e ladrão.
Enfim, há diversas outras manifestações da subalternidade da mulher, dos
maus tratos e do preconceito contra ela, tanto nas storias quanto em outras
manifestações da oratura guineense. Assim sendo, terminamos os comentá-
rios sobre o tema com um provérbio crioulo, colhido na Casamansa (sul do
Senegal), que diz que Sintidu di minjer i kurtu suma ponta di si mama, ou
seja, a inteligência da mulher é tão pequena quanto o bico de seu seio. En-
fim, o próprio líder das Lutas de Libertação, Amílcar Cabral disse que “entre
os fulas, a mulher não goza de nenhum direito social; participa na produção,
mas não colhe os seus frutos. Por outro lado, a poligamia é uma instituição
respeitada, sendo a mulher considerada, de certa forma, como propriedade
do marido” (Unidade e luta I, Lisboa: Nova Seara, 1976, p. 101).
Alguém poderia alegar que estamos sendo preconceituosos contra a
cultura africana/muçulmana, uma vez que essas atitudes fazem parte dos
hábitos locais que, como tais, devem ser respeitados. Pelo menos é isso que
disse um amigo antropólogo. A Ecologia Profunda, desenvolvida pelo filó-
sofo norueguês Arne Naess, não julga comportamentos como “certos” ou
“errados”. No entanto, na opinião dele, se na própria África (e nos próprios
países muçulmanos) houver um pequeno segmento da sociedade que seja
contra tais práticas, é esse segmento que devemos apoiar. Levando a idéia
um pouco mais longe, errado é tudo que traz sofrimento, por ser contra a
vida. O que não o traz, em princípio não pode, legitimamente, ser conside-
rado errado.
O pano de fundo de “Salton ku si minjer” é a pesca, atividade que tem
por objetivo a alimentação, uma das principais preocupações dos guineen-
ses (e de toda a África). O tema aparece também sob a forma de plantação
ou colheita de arroz na bolanha (terreno alagado para cultivo de arroz). O
contrário de alimentação, ou seja, a fome, é tão ou mais frequente. Em uma
contagem perfunctória, constatamos que esses temas aparecem em acima de
80% das narrativas. Em muitas delas vê-se a expressão “i kume tok i farta”,
ou seja, ele comeu até fartar-se. Aparece também, na versão portuguesa, sob
a forma “e aí, ele comeu”. A esmagadora maioria dos guineenses está no
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 121

umbral que separa a fome da saciedade. Cada vez que alguém come é uma
alegria sem tamanho. É uma vitória contra a morte. Muitos furtos são de al-
guma coisa de comer. As trapaças normalmente têm por finalidade enganar
determinada pessoa e comer o que ela tem. A fome é um problema tão sério
na África que o crioulo marca uma época do ano como na tempu di fomi, ou
seja, a época da seca, como se pode ver, por exemplo, na storia “Salton ku
tataruga” (o saltão e a tartaruga).
No contexto do tema fome/comer, gostaríamos de mencionar um
caso de canibalismo. Na storia “Sene, un son na si mame” (Sene, um filho
único), Junbai, as localidades de Uato, Bolama e Caledje vão caçar, pois
não é época de colheita (kebur). Ateiam fogo no mato a fim de empurrar os
animais para determinada direção. Acabam abatendo apenas uma farfana
(roedor que destrói as culturas de grãos). Como a carne desse animal não
é suficiente para as três localidades, surge uma discussão sobre o que fazer.
Descobrem que um menino que participa da caça é filho único, está sozinho.
Com isso, resolvem matá-lo a fim de misturar sua carne com a da farfana.
Aliás, isso ilustra a questão mininus di kriason (meninos para criação), que
frequentemente são maltratados pelos pais adotivos. O assunto é tão sério
que aparece em muitas narrativas orais bem como em rumores, como defi-
nidos no capítulo XI.
Na verdade, há muito tempo não há canibalismo na Guiné-Bissau, se
é que ele existiu algum dia. No entanto, registramos um rumor (cf. cap. XI)
segundo o qual os felupes eram antropófagos. Mas, como todos os rumores,
é como as bruxas espanholas, nas quais ninguém crê, mas que “las hay, las
hay”. Há um caso curioso de animais que comem gente em “Anton bu ka
oja ki rapás ku ta tchomado Jon Bulidur?” (então, vocês não viram o garoto
chamado João Travesso?), de Uori. Isso revelaria uma visão simbiótica do
mundo.
A storia “Salton ku si minjer” mostra ainda o que poderíamos chamar
de lógica do subjugado. Ele tem que estar sempre atento para agarrar-se à
primeira oportunidade de se safar. Sua vida é direcionada por estratégias
de sobrevivência, e não só em relação ao dominador, mas, sobretudo, em
relação à fome. Antes, ele era subjugado pelo régulo. Depois, vieram os colo-
nizadores que fizeram tudo que já sabemos. Por fim, os ex-combatentes pela
independência assumiram o poder, tornando-se tão ou mais tirânicos que os
dois anteriores, além de se envolverem em uma corrupção que se tornou a
norma, não a exceção. A ideia de submissão aos poderosos está expressa até
122 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

em provérbios. Um deles diz que Sufridur ta padi fudalgu (o sofrimento gera


a fidalguia). No Brasil, já ouvimos a afirmação de que “enquanto o chicote
vai e volta, as costas descansam”.
Outro tema bastante recorrente nas narrativas orais crioulo-guineen-
ses são as festas, nas quais geralmente há muita dança e comida à vontade, o
que as ligaria ao tema anterior, da fome/comida. O fato é que o que não falta
são ensejos para se festejar alguma coisa. Na Storia di kasamenti di fidju di
reglu (história do casamento da filha do régulo), Lubu ku lebri II, o rei fizera
um tambor de couro de percevejo (dabi), e quem descobrisse de que animal
era esse couro, casar-se-ia com sua filha. Todo mundo aguardava os candi-
datos em festa, mas ninguém acertava. Até que um rapaz, que tinha ajudado
uma velha na fonte, ficou sabendo por ela o segredo e acabou ficando com
a moça. Vários outros incidentes intervêm em seguida, mas o importante é
que tudo se deu na festa de casamento da filha do rei.
Até mesmo morte e luto são motivos para festejos. Um bom exemplo é
o tchur (choro, exéquias, funerais). O tempo de duração dessa manifestação
varia muito de etnia para etnia, embora haja um núcleo comum. Segundo
Montenegro e Morais (1995: 214), “o choro tradicional é anunciado através
do bombolom e inclui abate de animais, comida e bebida em abundância,
música, canto e dança, em homenagem ao defunto e em celebração da sua
passagem para o mundo dos espíritos dos antepassados. A sua duração, a
qualidade e quantidade da assistência e a grandiosidade dos festejos depen-
dem da importância social do falecido, das posses dos familiares, ou ainda
da distância a percorrer por aqueles cuja presença nas cerimónias seja tida
como indispensável (parentes próximos e/ou amigos importantes”.
Um componente importante nos festejos é a música. Em alguns ca-
sos ela tem efeitos encantatórios. Em “Ami ki mas tudu jiru” (eu sou mais
esperto que todo mundo), de Contes créoles de Guinée-Bissau (Ku Si Mon
Editora, 1994), Deus mandou o coelho (lebri) pegar uma perdiz (tchoka)
e um crocodilo (lagartu). Pegar a primeira não foi nenhum problema, mas
o segundo, por viver dentro da água, era de acesso mais difícil. Por isso, o
coelho chamou um jogral (djidiu, “griot”) para tocar tambor, com o que to-
dos se puseram a dançar, inclusive o crocodilo, que saiu da água. Com isso,
todos começaram a dar pauladas nele, o que o fez se jogar na água de novo.
Voltaram a tocar tambor, com mais intensidade, mas o crocodilo se recusava
a vir dançar em terra, até que não resistiu à sedução da música e acabou
cedendo e vindo à terra. Após muitas porretadas, o coelho conseguiu pegar
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 123

o crocodilo e levá-lo a Deus. O fato é que a música, a dança, a festa, enfim,


acabam dominando as pessoas, ou melhor, os animais, no caso.
Pode acontecer até mesmo de a storia começar por uma festa, como
é o caso de “Kunankoi ku galiña di matu” (a boeira e a pintada), de Contes
créoles de Guinée-Bissau (Ku Si Mon Editora, 1995). Na verdade, eles foram
a mais de uma festa. Nessas festas, todo mundo admirava a beleza da pinta-
da, rindo da feiura da boeira, ridicularizando-a. Como a pintada era amiga
da boeira, ofereceu-lhe suas penas e sua roupa, para que ficasse bonita. O
problema é que a boeira não devolveu nada à pintada, que ficou reclamando
“tô fraco, tô fraco”. Adicionalmente, essa storia explica o canto da pintada e
porque ela e a boeira não se dão bem até hoje. Além disso, explica porque a
pintada não tem penas e foi para o mato procurando a boeira, enquanto que
esta fica sempre atrás da casa, próximo ao curral, escondendo-se.
Como já foi salientado, o africano em geral e o guineense que não é
exceção são muito extrovertidos, apreciam muito a interação com o outro,
inclusive o contato físico. Por aí já se pode entender porque tudo é motivo
para festa. Vimos também que a festa é regada a muita bebida, como biñu
di palma (vinho de palmeira) e outros. Atualmente, incluem-se bebidas oci-
dentais como cerveja, de que existia uma fábrica local (CICER) havia muitos
anos, vinho, aguardente etc. A maioria das outras manifestações da cultura
guineense elencadas no capítulo XI vão na mesma direção, como as manju-
andadi. Tudo isso está associado a outra característica dos guineenses, qual
seja, a já mencionada hospitalidade (osprindadi). Em muitas storias, uma ou
outra personagem empreende viagem, com o que necessariamente precisa se
hospedar na casa de outrem. Às vezes acontece que o hóspede não se com-
porta como deveria, embora isso ocorra amiúde com jovens, adolescentes ou
crianças. Isso leva a outro tema muito frequente: o da travessura e tolerância
para com a criança.
Tolerância para com as travessuras das crianças e dos adolescentes
é muito comum, ao lado de uma preocupação com sua segurança. Várias
storias tratam desse assunto. Um caso prototípico de travessuras é a “Storia
di tris buliduris” (história de três arteiros/malvados), de Lubu ku lebri I, ou
seja, Jon (João), Manel (Manuel) e Anicetu (Aniceto). Eles eram tão difíceis
que os pais os expulsaram de casa. Na primeira aldeia (tabanca) a que che-
garam, o régulo os recebeu muito bem e lhes ofereceu três filhas para se di-
vertirem. Eles se mostraram bastante trabalhadores e muito divertidos. Uma
das moças se engravidou, o que levou os três a decidirem verificar o que
124 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

estava dentro da barriga dela. Como isso causou sua morte, eles acabaram
matando as outras duas. Para completar, subiram num pé de cabaceira, sob
a qual o rei costumava descansar. Um deles acaba defecando na vasilha em
que o régulo comia lá embaixo. Inclusive seu rosto ficou sujo de bosta. Ele
gritou, chamou os seguranças, que chegaram e viram os três garotos mor-
rendo de rir. Com isso, começaram a cortar a árvore para que eles caíssem.
Mas, uma lagartixa começou a dar voltas à árvore, o que impedia que caísse.
João, o mais malvado, ao saber disso matou a lagartixa. Quando a árvore ia
cair, passou um abutre (jugude), que levou os três sobre suas costas. Ao par-
tirem da aldeia, João quebrou uma asa do abutre e Aniceto quebrou a outra.
Com isso eles caíram, tendo João perdido os sentidos. Só que uma tartaruga
soltou um peido no seu nariz, reanimando-o. A tartaruga o levou à casa de
um ferreiro, mas João a assou e comeu. Na casa do ferreiro, tudo se repetiu,
João acabou fazendo com que o ferreiro matasse a própria filha por engano.
No final, o ferreiro conseguiu castigá-lo, transformando-o em hiena (lubu),
que foi para o mato.
Nesse caso, os meninos foram punidos: Manuel e Aniceto morreram,
e João virou bicho do mato, que é uma espécie de castigo. No entanto, nem
sempre isso acontece. Na longa storia “Es ier Sara ku Denba” (estes eram
Sara e Demba), de Junbai, Sara, o irmão mais novo, vivia provocando con-
fusão, que Demba tinha que tentar consertar. Depois de diversas cenas de
malvadeza de Sara, semelhantes às de João na storia anterior, em diferentes
terras, acabaram chegando a um lugar onde era sempre noite. O arteiro Sara
acaba descobrindo que era uma serpente que havia engolido o sol. Fez uma
armadilha para pegá-la e a matou com a espada. Depois disso, foram dor-
mir. Quando o galo cantou, começou a clarear. O régulo tocou o bombolom
para chamar todo mundo e saber o que acontecera. Sara acabou mostrando
a cabeça da serpente que havia engolido o sol, razão da escuridão. Como
recompensa, o régulo pede a Sara que fique como rei da aldeia, mas ele re-
cusou, e disse que seu desejo era que o rei construísse uma escada até o céu.
Relutantemente, o rei concordou, e pôs todo mundo a construí-la. Depois
de pronta, Sara pôs-se a subi-la, acompanhado de Demba, pedindo que a
cortassem quando chegassem ao céu. No final, cortaram-na, produzindo um
grande estrondo. Por isso, sempre que troveja, é esse estrondo que está se
repetindo. Os relâmpagos são o clarão da espada de Sara a dar espadadas
para um lado e para outro. Como se vê, essa storia lembra um pouco a Torre
de Babel da Bíblia.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 125

A criança pode aparecer também dotada de sabedoria, com precoci-


dade. Em “Storia di kin ku mas obi kiriol” (história de quem mais conhece o
crioulo), Lubu ku lebri II, dois homens que saíram pelo mundo à procura de
quem mais conhecesse o crioulo do que eles, encontraram um menino que
os deixou estupefatos diante da esperteza que demonstrou. Ele argumentava
muito bem, usava metáforas e outras imagens, incomuns em crianças de sua
idade. Os dois homens acabaram por se render, e reconhecer que, realmen-
te, o menino falava crioulo melhor do que eles. Em “Nna, bai padin, N misti
tan bai fanadu” (mamãe, dê-me à luz, pois eu também quero ir à circun-
cisão), Uori, temos um caso de rara precocidade. Além de começar a falar
ainda no ventre da mãe, assim que nasceu o menino seguiu os dois irmãos
maiores, que batiam nele para que voltasse, mas ele continuava seguindo-os.
Como era feiticeiro (pauteru), evitou que os dois mais velhos fossem mortos
pela avó, que também era feiticeira. Ele a confundiu, de modo que ela matou
os próprios filhos. Em seguida, ela saiu em perseguição dos três irmãos. De
novo, o menino feiticeiro inverte as coisas, e é a mulher que morre, em vez
deles.
Em “Desafasakaleron”, Uori, temos uma história parecida. O menino
não só pede à mãe que o dê à luz para seguir os irmãos, mas acaba saindo
por conta própria, pela coxa da mãe, motivo pelo qual recebeu o nome que
tem. Também Desafasaraleron era um feiticeiro, que se transformava no que
quisesse (em agulha, em enxada, em pano). Chegaram à casa de um irmão
só por parte de pai, que queria matá-los. Esse irmão era feiticeiro e régulo da
aldeia. Mesmo maltratado pelos dois irmãos, Desafasakaleron adquiriu asas
e os levou para o outro lado do rio, livrando-os da morte.
As histórias de crianças podem até ser cruéis, mas se nota sempre
uma grande tolerância e admiração pelas suas proezas. O fato é que indire-
tamente, elas mostram uma outra faceta da cultura crioulo-guineense, que
é o valor atribuído à vida familiar, mesmo quando as coisas não tomam a
direção que todos gostariam que tomassem. Nesse contexto, são comuns as
poligamias masculinas, com todos os problemas que as comborças (coespo-
sas) têm, os problemas com os filhos, o papel dos pais, dos avós e assim por
diante.
Em muitas storias nota-se que a esperteza (djiresa) é vital para a so-
brevivência. Um ocidental poderia ser levado a ver nisso uma espécie de “lei
de Gérson”, querer levar vantagem, mesmo à custa dos outros. Acontece
que, como já foi salientado em diversas passagens, os guineenses sofrem fre-
126 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

quentemente de inanição. Isso justificaria o uso de expedientes nem sempre


“éticos”, para conseguir comida, para sobreviver. Só ousaria atirar a pri-
meira pedra quem nunca passou fome, como nós da classe média ocidental.
As storias guineenses são muito complexas e sofisticadas. Há muitos
outros temas que podem ser explorados nelas. Nosso objetivo aqui foi ape-
nas o de dar uma pálida ideia de sua riqueza. Há uma sombra de mistério
em muitas delas. Pode acontecer de deuses e animais que falam terem qua-
lidades e sentimentos humanos. Inclusive casamentos entre seres humanos
e animais podem ser vistos, além de uma grande convivência entre eles. É
como o paraíso, com todas as espécies convivendo e interagindo umas com
as outras.
Muitas narrativas são entremeadas de versos, cantados, em uma lín-
gua que não o crioulo, ou seja, em uma língua étnica, geralmente o man-
dinga. Isso contribui para todo o mistério que fica no ar em quase todas
elas. Como disse Pagliaro (1983), citando Novalis, “uma fábula é como o
desenrolar das imagens no sonho sem coerência”. Ele continua afirmando
que, “segundo a teoria de Jacob acima enunciada, a fábula tem a mesma
origem que o sonho”. Nesse caso, “a passagem de um sonho verdadeiro
e propriamente dito à fábula não é coisa extraordinária”. Para ele, “outro
elemento comum à fábula e ao sonho é a falta de qualquer relação temporal
com a realidade”. Ainda reportando-se a Jacob, Pagliaro afirma que “as fá-
bulas têm uma dupla origem: são sonhos verdadeiros propriamente ditos, ou
são produtos da fantasia de alguém acordado, quando já não actuam outros
factores psicológicos diferentes dos que actuam no sonho”. Por fim, voltan-
do a Novalis, nosso autor assevera que “nada é mais contrário ao espírito
da fábula do que um facto moral e uma conexão lógica. Na fábula apenas
encontramos pura anarquia natural” (p. 185-246).
Falando dos mitos, Lévi-Strauss afirma o seguinte: “Reconheçamos,
antes, que o estudo dos mitos nos conduz a constatações contraditórias.
Tudo pode acontecer num mito; parece que a sucessão dos acontecimentos
não está aí sujeita a nenhuma regra lógica ou de continuidade; toda relação
concebível é possível. Contudo, esses mitos, aparentemente arbitrários, se
reproduzem com os mesmos caracteres e segundo os mesmos detalhes,
nas diversas regiões do mundo”. Tudo isso se aplica in totum às storias
guineenses.
Como a comunicação com o além é misteriosa, é comum ser feita
em uma linguagem que ninguém entende, o que acontecia também quando
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 127

as cerimônias católicas eram feitas em latim (a missa, as orações e outras).


Algo semelhante se dá com o árabe clássico entre os muçulmanos e o sâns-
crito entre os hindus. Entre algumas denominações evangélicas, ainda hoje
o pastor pode, de repente, passar à glossolalia, a “falar línguas”, como acon-
tece na própria Bíblia (Atos dos apóstolos 2,1), em que temos o episódio
das línguas de fogo, em que de repente pessoas de línguas as mais diversas
passaram a se entender.
Pode haver versões diferentes da mesma fábula, o que se explica pelo
fato de ela ser transmitida oralmente. Por exemplo, a “Storia di kamalion
ku santchu” (a história do cameleão e o macaco), de Lubu ku lebri I, ocor-
re também em Contes créoles de Guiné-Bissau. Além disso, ela já estava
presente em Giusti. Cada uma dessas versões apresenta diferenças, embora
o fundo comum seja o mesmo. A “Storia di lubu ku mortu” (história do
coelho e a morte), Lubu ku lebri I, comparece também em Bull (1989), sob
forma ligeiramente diferente. O mesmo se pode dizer de “Storia di lebri ku
lubu ku iran-segu” (história do coelho, a hiena e a serpente), que está pre-
sente em Lubu ku lebri I e no livro de fonologia crioula de Chérif Mbodj.
Mas, há casos em que parece tratar-se de outra storia, mas as personagens
e as funções são as mesmas. Nesse caso entrariam “Desafasakaleron” e
“Nna, bai padin, N misti tan bai fanadu”, ambas de Uori. Embora estejam
na mesma coletânea, as personagens tenham nomes diferentes e os episó-
dios sejam ligeiramente diferentes, são praticamente a mesma fábula. Os
exemplos abundam.
Como disse Claude Lévi-Strauss (1970: 224), falando de novo do
mito e usando a técnica de Vladimir Propp, “uma compilação de contos
e de mitos conhecidos ocuparia uma massa imponente de volumes. Mas
se podem reduzir a um pequeno número de tipos simples, se forem postas
em evidência por detrás da diversidade dos personagens algumas funções
elementares; e os complexos, esses mitos individuais, se reduzem também a
alguns tipos simples, moldes aonde vem agarrar-se a fluida multiplicidade
dos casos”. O já mencionado Antonino Pagliaro afirma que da fábula da
Gata Borralheira (Cinderella), de Giuseppe Pitrè, haveria pelo menos “umas
boas 345 versões entre povos de todas as raças” (Pagliaro 1985: 239). Pode
até acontecer de tudo ser diferente (personagens, lugares, tempo etc.), mas
as funções serem as mesmas. Lévi-Strauss apresenta fórmulas de combina-
tória de elementos para explicar esse fato, aproximadamente como os traços
fonológicos que formam nos fonemas.
128 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Como qualquer povo cuja tradição é de fundo oral, o guineense apre-


cia muito a interação verbal, fato melhor explorado no capítulo sobre as
adivinhas (IX). O contar/ouvir a fábula é uma manifestação de interação.
Tanto que o narrador sempre começa pela expressão “ier ier...”, que equivale
aproximadamente ao nosso “era uma vez ....” Para deixar claro que está em
sintonia com ele, a audiência responde “iera sertu”, ou seja, “era uma vez,
sim”, “é isso mesmo”. Só após essa resposta o narrador inicia a narração.
No meio pode haver interrupções pela audiência. No final, frequentemente
ele apresenta o fecho “Sin ki storia kaba”, isto é, assim a história termina.
O gosto pela interação se manifesta de diversas outras formas. Uma
delas é a hospitalidade, típica da África em geral. O termo “ospri” (hóspede)
ocorre em diversas storias. O hóspede deve ser bem tratado, do contrário
o anfitrião pode ser considerado susu korson (lit. “coração sujo”), ou seja,
antipático, não hospitaleiro, não amigável.
Tudo isso se dá devido ao fato de o africano se intrometer muito na
vida do outro. Na fábula “Falkon ku jugudé” (o falcão e o abutre), temos
uma amostra clara dessa atitude, de falar/conversar muito. Alguns falam até
demais para nossos padrões, embora isso não seja verdadeiro para os anci-
ãos, mais taciturnos, embora não em grau tão acirrado como se vê no Tao
te ching, de Lao Tzu, que chega a afirmar que “quem não sabe fala / quem
sabe cala”. Afinal, também eles são africanos.
Um tema muito comum nas storias crioulas, embora não em “Sal-
ton ku si minjer”, são as explicações para fenômenos ou fatos/dados da na-
tureza, numa espécie de microcosmogonia. Assim, a já mencionada fábula
“Tchon ku deus” tem como pano de fundo uma explicação para a origem da
chuva, num país (e num continente) em que ela é sempre escassa, sobretudo
no deserto do Sahara, que avança na direção da Guiné-Bissau. O problema
é que quando a chuva vem, pode chover tão forte que pode matar gente e
muito animal, além de destruir plantações. As enchentes podem ter efeito
tão devastador quanto a seca (tempu di fomi), embora as primeiras matam
instantânea e ocasionalmente, ao passo que a segunda é insidiosa, vai defi-
nhando paulatinamente tudo que é vivo.
Na storia “N ka na riba mas” (eu não voltarei mais), de Junbai, há
uma explicação de porque o cachorro é doméstico e o lobo é selvagem. Há
explicação inclusive para o latido do cachorro e o uivo do lobo. Em “Sapu,
karangis ku kakri” (o sapo, o caranguejo e o cacre), explica-se porque o
sapo vive na água doce. Além disso, dá-se o porquê de seu coaxar. Em “N ka
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 129

sibi nundé ki deus na tiran ña koitadesa” (não sei quando [=onde] Deus vai
me tirar desta pobreza), Uori, há uma explicação das características do grou
coroado (ganga), ou seja, sua crista. É que alguém estava fazendo tranças
em seu cabelo (tisi kabelu), mas diante da notícia da morte dos filhos, ele
teve que voltar para casa inopinadamente. Com isso, ficou o meio da cabeça
sem trançar, isto é, sua atual crista.
Na já mencionada storia “Sara ku Denba”, podemos ver a origem do
relâmpago e do trovão, após toda uma sequência de peripécias. Enfim, há
inúmeros outros casos, que não vamos examinar, em nome da brevidade.
Até aqui, falamos do conteúdo das storias crioulo-guineenses. Veja-
mos agora um pequeno comentário sobre sua forma. A narrativa “Salton ku
si minjer” transcrita acima é excepcionalmente curta. O normal é as storias
serem mais longas. Algumas são bastante longas, como “Sara ku Denba”
(Sara e Demba), de Junbai, e “Desafasakaleron” (nome próprio), de Uori.
Essas duas narrativas têm mais de um “capítulo”, lembrando uma telenovela
brasileira. A primeira compreende quatro seções ou “capítulos”. A segunda
não está formalmente dividida em seções, mas é a mais longa entre todas as
que analisamos, compreendendo uma grande quantidade de episódios.
Por se tratar de narrativas orais, as storias não são estruturadas exa-
tamente como as ocidentais, numa sequência cartesiana. Aos nossos olhos
elas pareceriam ingênuas, desestruturadas. É que o objetivo dos africanos
ao narrá-las é a interação, o entretenimento. Portanto, como no caso das
manifestações musicais, o importante é o ritmo, a cadência. Mais importan-
te do que uma estrutura com início-meio-fim, nos moldes ocidentais (ou o
happy end dos enlatados americanos) é o encadear-se de incidentes. Assim,
cada narrador pode ir aumentando os incidentes em que as personangens
se veem envolvidas, indefinidamente, se necessário, como está bem explici-
tado na “passada” de Odete Semedo, comentada no capítulo IV. Inclusive
isso revelaria as habilidades do narrador, para deleite dos ouvintes. Assim,
ele os entreteria por mais tempo. As aparentes ausências de “lógica”, epi-
sódios “desnecessários” para o enredo etc. se devem ao fato de as storias
terem sido contadas oralmente. Quem as transcreveu e publicou geralmente
era estrangeiro, como Emilio Giusti (brasileiro radicado na França) e Tere-
sa Montenegro (chilena), embora esta última conheça a cultura guineense
profundamente, pois vive no país há várias décadas. Para a visão dos oci-
dentais, às vezes parece tratar-se de um amontoar-se de episódios, que vão
se justapondo um após o outro. Podem até mesmo aparecer personagens e
130 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

episódios incidentais, que entram na narrativa como um deus ex macchina.


Nesse sentido, valeria a pena lembrar o conhecido recurso linguístico
da repetição, também usado para encompridar a narrativa. Falando mais
do recurso morfológico da reduplicação, em O crioulo português da Guiné-
Bissau de Hildo Honório do Couto, lembrou que há repetição (ou alon-
gamento) no nível do fonema (garaandi ‘grande’), do lexema (pasia-pasia
‘passear muito’), chegando ao nível frasal, como em “i bai, i bai, i bai tok
i kansa”, ou seja, ele andou, andou, andou até não aguentar mais. Agora,
poderíamos acrescentar que há repetição até mesmo em níveis superiores,
como o do parágrafo e, talvez, em unidades maiores. As diversas versões da
mesma história parecem ser exemplos do último caso. O que importa aqui
é que a repetição também colabora para uma maior duração dos momentos
de fruição que são as sessões noturnas de narração de histórias, em geral por
pessoas mais velhas, em volta do fogo.
Quem analisou as narrativas orais crioulo-guineenses em pormenores
foi o filólogo-linguista e estudioso de literatura Benjamim Pinto Bull. Partindo
do esquema de Propp, ele disseca a estrutura das storias, salientando suas
características gerais, o caráter e o papel maior dos principais animais. Nesse
caso, entra em minúcias na análise não só do coelho (lebri), mas também da
hiena (lubu), do elefante, do hipopótamo (pis-kabalu), da perdiz (tchoka) e
do camaleão. Após mencionar o objetivo das storias, Bull discute a visão de
mundo ou filosofia que está por traz de tudo. Por fim, ele lembra alguns te-
mas frequentes, tais como justiça, solidariedade, hospitalidade, respeito pelas
tradições e a realidade da vida quotidiana. Conclui afirmando que “a storia
é a expressão da inteligência e sobretudo da imaginação do povo guineense,
nomeadamente do povo rural, no âmbito da sua tradição oral. Tem a storia um
valor moral, um valor recreativo e uma função social” (Bull 1989: 219-240)
Há storias que lembram a brincadeira verbal “um elefante incomoda
muita gente, dois elefantes incomodam muito mais. Três elefantes incomo-
dam muita gente, quatro elefantes incomodam .....” e assim sucessivamente.
A linguagem é usada mais em sua função fática, de comunhão, do que na
função referencial. O termo “comunhão” lembra gregarismo. Vimos em ou-
tras passagens que o guineense é altamente gregário, sociável, expansivo.
Ele adora falar, interagir com o outro. Portanto, quanto mais longa for a
narrativa, melhor, pois propicia uma comunhão mais prolongada.
O guineense leva a sério a filosofia do fruir, do carpe diem. O lin-
guista jamaicano-trinidadiano Mervyn Alleyne afirmou, a propósito do povo
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 131

jamaicano, que na tradição africana é isso que importa. No espírito do que


ele diz, poderíamos aduzir o caso de um ocidental e um africano, esperando
um ônibus que nunca chega, na parada. O primeiro fica tenso, coça a cabe-
ça, vai para um lado e para o outro, olha no relógio, na direção pela qual o
ônibus deveria vir, fica impaciente e mal-humorado. O segundo, por outro
lado, procura conversar com as pessoas que ali se encontram, usufruindo o
momento. Será que o ocidental estaria mais certo do que o africano?
De tudo que ficou dito, nota-se que as narrativas orais são uma ótima
instância para se estudarem as relações entre língua e meio ambiente, nos
termos do que foi feito no livro Ecolinguística - Estudo das relações entre
língua e meio ambiente, de Hildo Honório do Couto. Aí está dito que a lin-
guagem nasceu do mundo e para falar dele. Tudo nela é, de algum modo,
projeção dele. Só que, como asseverou Bakhtin, ela não apenas o reflete,
mas também o refrata. O que é mais, no início de sua formação, tanto onto-
genética quanto filogenética, a linguagem nasce se relacionando diretamente
com o mundo, refletindo-o. No entanto, após formada, ela adquire uma
certa autonomia relativamente ao mundo, momento em que pode também
refratá-lo. Essa autonomia advém da reciclagem de recursos já existentes ou
uso de recursos que existem no sistema, mas que ainda não foram ativados.
É o caso da sílaba /flès/, que não aparece em nenhuma palavra da língua,
embora esteja prevista por sua fonotática. Outro exemplo poderia ser a pa-
lavra “prostitucionalismo” que, embora não esteja ativada, está prevista na
gramática morfológica do português. Assim por diante.
Nas fábulas entram diversos seres, que interagem entre si, indepen-
dentemente de no mundo real eles interagirem. Exatamente como ocorre na
linguagem, vis-à-vis mundo. Ela nasceu para falar dele, mas, após formada,
adquire uma relativa autonomia, permitindo a mentira, a ficção, a poesia,
assunto desenvolvido detalhadamente no livro recém-mencionado. Usam-se
dados do mundo, mas às vezes combinados de modo que no mundo não
estão combinados.
Gostaríamos de terminar lembrando uma distinção que o ecocrítico
norteamericano Joseph Meeker faz entre o “modo cômico” e o “modo trá-
gico”. De acordo com ele, as personagens que se enquadram no primeiro
não têm nada de heróicas. Elas se assemelham a um organismo que está em
um ecossistema perfeitamente equilibrado (coumunidade clímax), sempre
se adaptando. Não lutam por valores abstratos como honra, patriotismo e
amor, típicos da tragédia. Não lutam por ideais, mas pela vida. Os perso-
132 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

nagens da tragédia são como as espécies pioneiras, que têm que resistir
heroicamente. Frequentemente, a tragédia termina em funeral, ao passo que
a comédia em geral termina em casamento. A personagem cômica aprecia
festas, lautas refeições. Às vezes, nos parecem um tanto antiéticas, mas, se
puderem vencer o antagonista sem machucá-lo, melhor. São glutões, sem-
pre querendo comer mais (Meeker 1996).
Tudo isso se aplica perfeitamente às personagens das storias. A hie-
na é a glutona, que sempre se dá mal porque está sempre querendo comer
mais. Faz até o papel de trouxa tendo por finalidade esse objetivo. O coelho,
por seu turno, é o espertalhão. Está sempre passando a hiena para trás com
mentiras e ardis mil. Se necessário, finge-se de doente, de morto. Vale até
fazer com que a hiena morra, mas, se isso não for imprescindivelmente ne-
cessário, ela pode continuar viva, contanto que o coelho leve a vantagem.
Por outras palavras, ambos se enquadram no modo cômico. É na poesia que
vamos encontrar manifestações do modo trágico, como entendido por Me-
eker. Frequentemente, a poesia guineense é heróica, engajada politicamente.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 133

VII. LITERATURA EM CRIOULO II: A POESIA

A língua aparentada caboverdiano já dispõe de pelo menos um roman-


ce em crioulo, ou seja, Oju d’agu de Manuel Veiga (Praia: Instituto Cabover-
diano do Livro, 1987). No guineense, porém, a única coisa escrita que existe
é a poesia, se excluirmos as narrativas orais, que, na verdade, são transcritas
da tradição oral africana. Nessas mesmas narrativas, já havia manifestações
da oralidade guineense sob a forma de verso, antes que aparecessem poemas
propriamente ditos escritos em crioulo na década de 70 do século XX. Al-
guns exemplos são as kantiga di manjuandadi, as kantiga di ditu, as kantiga
di tina etc. Eis uma kantiga di manjuandadi, colhida por Semedo (1996),
no contexto da manjuandade Pé-di-Kakri (sobre as manjuandades, ver o
capítulo XI): “Kamba San Djon pa N bai muri /Nin si N ba muri /Ami N bai
/N na bai kamba San Djon /Ami N na bai”. Tradução: “Eu atravesso [o rio]
para ir a São João / Mesmo que eu vá morrer / Eu vou /Eu vou atravessar [o
rio] para ir a São João /Eu vou”. Embora essa cantiga tenha sido produzida
em data relativamente recente, ela se insere na longa tradição guineo-africa-
na. Esse tipo de cantiga frequentemente é improvisado, no entanto, sempre
em verso, mesmo porque se trata de “cantiga”, de textos que são sempre
cantados, em geral em mandinga, como se pode ver nas diversas coletâneas
de storias (narrativas orais, fábulas) já coligidas e publicadas (ver cap. VI).
Marcelino Marques de Barros (1843-1929) transcreveu alguns textos
da tradição oral, em seu Literatura dos negros (1900), que seriam os pri-
meiros versos em crioulo. Temos também a produção dos djidius, griots, ou
seja, jograis. Trata-se de um personagem que “é simultaneamente o cronista
de famílias nobres e conselheiro de reis, depositário dos mitos fundadores e
das crónicas do grupo étnico, trovador, poeta, aedo e músico”. Eles se ma-
nifestam na melodia conhecida como kumbé. Alguns desses djidius ficaram
famosos na Guiné-Bissau, tais como Malan Camaleon, Djafalu, Maundé,
Amizade Gomes e Malé (Rosa 1993: 81). A partir das Guerras de Liber-
tação, temos também as letras de canções, que são verdadeiros poemas,
escritas em crioulo, como as de José Carlos Schwarz.
Além de José Carlos Schwarz, diversos outros poetas escreveram le-
tras para canções. Entre eles poderíamos citar Aliu Bari, que os escreve des-
de 1967; Armando Salvaterra, desde 1970; Huco Monteiro entre outros.
134 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Se as “letras” de José Carlos são consideradas poemas, por que as demais


não o são? Augel (1997) chama as de Armando Salvaterra de “poemas mu-
sicados”, enquanto que as de Aliu Bari são chamadas “canções”. De Bari,
transcrevemos a “canção” “No sinta na sukuru” (Estamos no escuro): “No
sinta na sukuru / djintis na djimpininu / sukuru sukuru / sukuru di tempu
de tchuba // Ma i ke / ña ermons, oh / ali no sinta na sukuru / no ta pidi
Deus, oh / pa i danu sol pa no kenta / sukuru sukuru / sukuru di tempu di
tchuba”. Tradução literal: “Estamos no escuro / as pessoas nos espreitam /
escuro, escuro / escuro do tempo de chuva // O que é / meus irmãos, oh
/ Estamos aqui no escuro / pedimos a Deus, oh / para mandar o sol para
nos aquecer / escuro, escuro / escuro do tempo de chuva”. Será que alguém
que não saiba que Schwarz e Salvaterra são grandes intelectuais guineenses
e que Bari é uma pessoa simples consideraria o texto do último inferior aos
deles? Mais abaixo, transcrevemos e comentamos um poema de Armando
Salvaterra.
A produção poética em crioulo propriamente dita só começou na dé-
cada de setenta. Alguns poemas foram publicados esparsamente em revistas
guineenses ou estrangeiras. A primeira antologia publicada na Guiné-Bis-
sau, Poilão (1973), não contém nenhum poema em crioulo. Na segunda,
Mantenhas para quem luta (1977), já aparecem dois (de 51 poemas), de
José Carlos Schwarz. São eles “Cal coldade de amanhã, Maria” e “Quebur
nobo” (nova colheita).
Não se pode esquecer Garandessa di no tchon (Lisboa, 1978), de Fran-
cisco Conduto de Pina. Dos 22 poemas, dois estão em crioulo, ou seja, “Strela
negra” e “Lun’ngada” (luar). Dessa obra afirma Rosa (1993: 193) que “a par
da marca conscientemente política destes poemas onde se celebra Amílcar Ca-
bral e o P.A.I.G.C., outros motivos como a fraternidade e a infância ou o tema
histórico da rainha bijagó Oquinca Pampa, símbolo da resistência, constituem
o conteúdo fundamental da obra”. Segundo Augel (1996), é “a primeira ini-
ciativa individual de publicação da lírica guineense”, além de ser a primeira vez
que se publicam poemas em crioulo em livro individual.
A seção “Espaço crioulo” de Momentos primeiros da construção: an-
tologia dos jovens poetas (Bissau: Imprensa Nacional, 1978) consta de sete
autores, sendo que no restante do livro têm-se a produção em português, de
cinco autores. Os que escreveram em crioulo são Hélder Proença, José Car-
los Schwarz, Huco Monteiro, Armando Salvaterra, Nelson Medina, Serifo
Mané e Djibril Baldé.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 135

Só a título de registro, temos também Os continuadores da revolução


e a recordação do passado recente, 39 poemas de 34 jovens, sendo dois deles
poemas em crioulo, quais sejam, “No fidjo bai mato”, de Bacar Cassamá (18
anos) e “Hora de riba de luta”, de Bubacar Baldé (19 anos). Os próprios tí-
tulos já dizem de que tratam os poemas. O primeiro, fala dos sofrimentos de
uma mãe cujo filho foi lutar contra os “tugas” no mato. Apesar de sentir sua
falta, ela sabe que isso tem por objetivo trazer dias melhores para todos os
guineenses. O segundo trata dos que já retornaram dos campos de batalha
para dar continuidade à “obra de Cabral”. Isso reflete bem os objetivos da
coletânea expressos no título.
Tudo isso culmina com Kebur - barkafon di poesia na kriol (Bissau,
1996), organizado por Moema Parente Augel, que também assina o prefá-
cio e a introdução. É a primeira coletânea de poemas exclusivamente em
crioulo jamais publicada. São 13 autores e 99 poemas. Como essa cole-
tânea é a primeira de poemas exclusivamente em crioulo, vamos tomá-la
como ponto de partida para toda a discussão que subsegue. Por outras
palavras, vamos falar um pouco de todos os autores que aparecem nela,
acrescentando aqui e ali o que foi divulgado por eles mesmos ou por outros
poetas em outras publicações. Apresentamo-los na ordem em que apare-
cem na antologia.

Atchutchi

Adriano Gomes Ferreira, conhecido como Atchutchi, nasceu em Bis-


sau, em 9 de janeiro de 1949, portanto, é dos mais velhos de toda a cole-
tânea (só Pascoal Aurigemma, já falecido, é mais velho que ele). Foi eletro-
técnico, jornalista e radialista. Mas, é como compositor e letrista que é mais
conhecido, tanto que não aparece em nenhuma das coletâneas anteriores,
tais como Poilão (1973) e Mantenhas para quem luta (1977). Foi membro
dos conjuntos Top Sound Group e Quinteto Zeus em Portugal em 1970.
Em 1974, parcipou do conjunto N’Kassa Cobra, já na Guiné-Bissau. É o
organizador e líder do conhecido conjunto Super Mama Djombo, também
em 1974, em Bissau. É autor do roteiro sonoro do filme Udju asul di Yonta
(Os olhos azuis de Yonta), de Flora Gomes (1991). Os seus poemas são
basicamente letras de música. Talvez essa seja a razão de não ter aparecido
nas antologias: ele era tido como cantor que, no máximo, escrevia “letras”
para canções. José Carlos Schwarz também dizia que era cantor, não po-
136 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

eta. No entanto, aparece na maioria das coletâneas de poesia guineenses.


Vejamos um breve comentário sobre alguns dos poemas de Atchutchi con-
tidos em Kebur.
Uma das coisas que se nota logo de cara é que esses textos não são
nada descritivos. Ele escreve como se uma palavra puxasse outra. Sua
preocupação não é com descrever situações. Nesse contexto, entram tam-
bém antíteses, como /N na punta / ke ku ka nunka sedu/ (eu pergunto /
o que é que nunca foi). Em algumas passagens, pode até haver “lógica”
na ligação entre as idéias, como faz no poema “Dus pasu”, cujas duas
primeiras estrofes dizem: “Purmeru djestu / tudu balenti / na ña gustu
/ N fasil konfianti // Kamiñu di oranu / listradura di pasadu / pabia di
paranu / N na kunsil kansadu”, ou seja, //O primeiro gesto / todo valente
/ de acordo com meu gosto / eu o faço confiante // O caminho de outrora
/ resquícios do passado / porque o futuro / será muito difícil”. Sem um
conhecimento da cultura e da história da Guiné-Bissau, é muito difícil
entender seus poemas, como é o caso também de “Bissau kila muda”:
“Belanti da Silva / Sunkar Dabó / o mundu / Djusepa Krani”. A propósi-
to, poderíamos lembrar que o objetivo do artista não é propriamente ser
lógico, descrever o mundo existente. Como diziam os romanos, poetis et
pictoribus omnia licet”.
É interessante notar que o autor não trata do tema principal de sua ge-
ração, que são as lutas contra o ex-colonizador bem como a concitação aos
guineenses para construir o novo país. Pelo contrário, ele se atém a questões
de sentido da vida, mesmo quando questões sociais e políticas entram tan-
gencialmente. Um belo poema lírico é “Noiba nobu”: “Noiba nobu / noiba
na ba kasamenti / ku kara alegri // Tudu kontenti / djubi kuma k’i na ri / no
tera i bunitu / tudu ki si mindjeris // No juventudi / djubi ke na soronda /
Guineenses // Matchu bedju / pega na bu noiba bu leba / bo ntindi N’utru //
Pa no vivi / pa no kumpu familia / pa no brinka / sabi na no tera.” Tradução
aproximadamente literal: “Jovem noiva / noiva vai para o casamento / com
feição alegre //Toda contente / veja como ela sorri / nossa terra é bonita /
todas as suas mulheres //Nossa juventude / observa que elas rebrotam / gui-
neenses // Velho guerreiro / tome sua noiva e vá com ela / vocês entendem
um ao outro // Para vivermos / para formarmos família / para brincarmos /
alegremente em nossa terra”.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 137

Djibril Baldé

Djibril Baldé nasceu em Cufar, na região administrativa de Tombali,


no dia 3 de agosto de 1955. Formou-se em Pedagogia em Bissau, em 1980.
Em Portugal, fez um curso de Contabilidade. Em 1990, cursou Administra-
ção no Brasil. Fez parte do fervor inicial pela música, tendo feito parte do
conjunto Ka Bu Iara Sete, que foi apadrinhado por José Carlos Schwarz.
Este inclusive lhe deixou tudo, até mesmo a guitarra, quando foi trabalhar
na embaixada de seu país em Havana. Como muitos intelectuais de sua ge-
ração, exerceu diversos cargos públicos na administração de Guiné-Bissau,
como Director-Geral de Planificação e Projectos do Ministério da Educação
Nacional. No que tange a sua biografia, é um dos autores sobre os quais
temos menos informação. Ele não é muito prolífico, pelo menos em termos
de publicações.
De qualquer forma, Baldé só escreve em crioulo, como é o caso dos
dois poemas que publicou na Antologia dos novos poetas: Momentos primei-
ros da construção (1978), ou seja, Mininus de nha tera (crianças de meu
país) e N’djudja bu n’djita (qualquer coisa como ‘a união faz a força’). Em
Kebur (1996), ele comparece com seis poemas. Nos poemas da primeira
antologia, o autor deixa transparecer um desejo de que o estado de coisas
que existia na Guiné-Bissau até aquela data melhore. Fazem-se muitas refe-
rências a diversos componentes da cultura guineense, no sentido de reforçar
a guineidade (ginendadi), de criar uma identidade para um país que tem que
ser “formado” a partir da herança colonial, ou seja, formado por quase 20
etnias, cada uma com sua cultura e respectiva língua. Nos poemas de Kebur,
escritos entre 1990 e 1994, ele já não se atém a questões de colonialismo,
lutas de libertação e “construção da nação”. Vejamos o poema “Bo na kansa
kabesa” (Você se cansa). Como sabemos, reciprocidade se expressa pelo uso
de “kabesa”, como se pode ver (Couto 1994).

Bo na kansa kabesa Você se cansa

Bo na korta polon você corta poilões


pa ke para quê
bo na kema si dungutu você queima suas radículas
pa ke para quê
ala raís pega fugu eis a raiz pegando fogo
138 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

ora ki ris di polon quando a raiz do poilão


na iardi está ardendo
kada kin ta tchugi cada um cavouca
si mandioka sua mandioca
si batata sua batata
pa kusida para cozinhar

N sibi sertu Eu sei bem


kuma i na sai como vai sair
kusidu o cozido
toradu o torrado
i na sai! vai sair!

Como muitos outros poetas de seu país, Djibril Baldé faz uso de mui-
tos recursos linguísticos que os poetas brasileiros dificilmente usariam nos
dias de hoje, como a exclamação “ai!” e outras. Uma outra característica sua
e deles é a grande quantidade de versos na forma exclamativa ou na de per-
gunta (Si bu sibi ba! ‘Se você soubesse!’, Bu ka na kontal? ‘você não conta
a ele?’, Anta i ke? ‘E aí?’).

Ernesto Dabó

Ernesto Dabó nasceu em 18 de julho de 1949, em Bolama. Foi para


Portugal ainda na infância, cursando o secundário (liceu). Na Escola Agrí-
cola da Paiã, em 1969, fez parte do conjunto da marinha Os Náuticos, com
o qual visitou vários países da CPLP, inclusive a Guiné-Bissau. Ainda em
Lisboa, participou de movimentos clandestinos pela independência de seu
país. Ao chegar à Guiné-Bissau, em 1971, juntou-se a José Carlos Schwarz
na fundação do conjunto Cobiana Djazz, o primeiro do país a adquirir no-
toriedade. De volta a Portugal, em 1971, funda o conjunto Djorson, que
gravou o primeiro disco de música moderna guineense. Em 1980, vai cur-
sar Direito Internacional na União Soviética. Ao regressar à Guiné-Bissau,
assume funções públicas, como a direção da TV local, bem como assessor
direto do presidente da república.
Dabó não aparece em nenhuma das antologias anteriores a Kebur
(1996), na qual tem seis poemas (“Si bu fia”, “Ña speransa”, “Lamine”,
“Kerensa asul”, “Papu” e “Kasal”). A razão é certamente o fato de ser sem-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 139

pre tido como músico e letrista. De todos os poetas de Kebur, é talvez o que
apresenta uma linguagem mais rica, em termos de raridade do vocabulário
usado, de hermetismo para quem não conhece a cultura guineense e, por-
tanto, não tem conhecimentos profundos do crioulo. Mesmo quem trabalha
com essa língua há muitos anos, tem dificuldade com diversos termos e
metáforas usadas pelo autor.
Em alguns casos, enfatiza a rima, coisa não muito comum nos poetas
guineenses. Em “Lamine”, esse recurso é utilizado de ponta a ponta, mesmo
que algumas rimas sejam imperfeitas. Na primeira estrofe, por exemplo, te-
mos: “N soma na djanela / pabia bentu garba ku bela / kirias na torkia fala”,
literalmente, “eu assomei à janela / porque o vento não se entendia com a
vela / as crias se comunicam”. Como já se pode ver, mesmo que conheçamos
o significado de cada item lexical, não é garantido que consegamos entender
o que o poeta quis dizer. Afinal de contas, a função da arte não é propria-
mente falar de estados de coisas, para usar a expressão de Wittgenstein. O
conceito de comunicação fática de Bronislaw Malinowski, que mais tarde foi
integrado nas seis funções da linguagem de Roman Jakobson, é mais ade-
quado. Por outras palavras, a função da arte é mais entreter, não informar
sobre algo. É mais manter a coesão, a fim de usufruir a mensagem artísti-
ca, no caso, poética. Isso pode ser mais facilmente constatado em outras
manifestações culturais crioulas, como as narrativas orais, as adivinhas e,
sobretudo, a música. Cada uma delas está discutida em capítulos específicos.
Como José Carlos, Dabó queria criar uma música guineense, assim
como já existia uma música caboverdiana, uma senegalesa etc. Queria criar
um estilo guineense.

Nelson Medina

Nelson Medina nasceu em 9 de outubro de 1958, em Bissau, de uma


família de 12 irmãos. Como conviveu com a geração de José Carlos Schwarz,
participou de grupos musicais, como o M’Barranso, na segunda metade da
década de setenta. É autor de muitas letras de música. Também como mui-
tos jovens de sua geração, fez faculdade em Cuba, no caso Educação, espe-
cializando-se em Psicopedagogia, em 1983. Mais tarde, fez pós-graduação
em Administração e Gestão Pública na FESP do Rio de Janeiro. Voltando à
Guiné-Bissau, participou da administração do país, sendo no momento dire-
tor da Aldeia Infantil SOS, além de estar ligado à associação de deficientes.
140 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Medina está presente em Momentos primeiros da construção: antologia


dos jovens poetas (1978), com poemas em crioulo, que é a língua em que sem-
pre escreve. Em Augel (1998) há uma pequena análise de dois deles. Quatro
anos depois, publicou um livro individual de poemas, Sol na mansi: poemas
(Bissau: Programa de Incentivo a Iniciativas Culturais [PIIC], 2002). O li-
vro foi prefaciado por Tony Tcheka. O segundo poema da antologia de 1978
comentado por Augel está reproduzido em Sol mansi, que quer dizer “o dia
amanheceu”. Vejamos o poema “Mininus di nha tera”, do segundo livro.

Mininus di nha tera Crianças de minha terra

Sol na kenta foroba O sol aqueceu as alfarrobas


fuska-fuska na djimpini ba dja mas a escuridão/crepúsculo já
espreitava
mininus ku bariga pimpinhidu di reia e as crianças com a barriga do-
rida/cheia de areia
na miskinha vão queixar-se
i mas un dia di fomi de mais um dia de fome
ku na dispidi vão despedir-se

Kurpu intchadu pabia di kandjan O corpo inchado pela lanterna


kurpu di sarna ku pe di djigan corpo de sarna com pé de ma-
tacanha
mininus di nha tera crianças de minha terra
tristis pabia susegu ka ten tristes porque descanso não
têm
ma ku rostu finkadu na speransa di amanha mas com o rosto fincado na
esperança de amanhã
Mininus di nha tera Crianças de minha terra
tene speransa forti esperm com firmeza
flur di amanha flor de amanhã
aos sin kantchaklet agora sem seiva

Como se pode ver, o poema é um brado de esperança nas crianças


que, a despeito de desnutridas e doentes, são a esperança do futuro do país.
Em Kebur, Nelson Medina comparece com 11 poemas. O primeiro
deles porta o mesmo nome da antologia, ou seja, “Kebur” (colheita). O tema
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 141

é a necessidade de se plantar para que se possa colher, com efeito, “aos no


kebra / kebur de aos / i pa paranta amanha” (“hoje nós colhemos / colheita
de hoje / para plantar o amanhã/”). Os demais poemas tratam da necessi-
dade de resistência aos reveses da vida (“Malgós ku malgosadu” = amargo
amargou), de jogos de palavras em que vêm à tona diversos aspectos da
cultura guineense (“Iuli-iuli= mais ou menos ‘entrar-e-sair’), de um pedido
ao companheiro Kumpo (“Kamarada Kumpo: dia na tchiga” = companheiro
Kumpo, o dia está chegando) para que ajude a melhorar a vida do povo po-
bre, de “Djon Djila” que suga o sangue dos guineenses /pa fidju di ñu pudi
studa na Oropa/ (para que seu filho possa estudar na Europa), de que não
se pode espoliar a Guiné-Bissau impunemente porque a democracia che-
gou (“Nene Nkurlu” = nome próprio), de um agradecimento, “Djarama”,
(‘obrigado’ em fula) a todos /ku lumianu kamiñu di sirbintia/ (/que ilumina-
ram o caminho da serventia/), e assim por diante.
Como só escreve em crioulo, é de se esperar que Medina apresente
especificidades formais. Com efeito, ele faz uso de um rico vocabulário, de
metáforas e metonímias de aspectos da cultura de seu país. Um dos poemas
termina com um conhecido provérbio (ditu), que é “... po / tudu tarda ki tar-
da na mar / i ka ta bida lagardu”, ou seja, “... o pau / por mais que fique no
mar / não se transforma em crocodilo”. Embora poemas de amor não sejam
muito comuns na literatura guineense, pelo menos um dos que compõem
Kebur trata do tema. Trata-se de “Muskeba”, /ña preta fina di Bande/, da
qual diz que “kada ora ku N lembra di bo/ i ta dan gana/ .... /di N muri na bu
pitu”, ou seja, “minha negra esbelta de Bandim/ .... /quando eu me lembro
de você / me dá vontade / de morrer no teu colo” (“Bandim” é uma imensa
feira de Bissau, onde se pode comprar de tudo).

Huco Monteiro

Huco Monteiro, ou simplesmente Huco, é nomi di kasa de João José


Silva Monteiro, que nasceu em 19 de fevereiro de 1959, em Bissau. Formou-
se em sociologia na França. Na fase de juventude, participou dos conjuntos
musicais Chave d’Ouro, redenominado Nkassa Kobra, Panteras Guinéus e
Djorson, ao lado de Serifo Mané, Ernesto Dabó e Diana Handem. As músi-
cas cantadas por Zé Manel têm diversas canções cujas letras foram escritas
por ele. Ainda nessa fase, fundou o movimento cultural Pa Kaplinti Baluris,
juntamente com Hélder Proença, Aristides Gomes e Serifo Mané. O objetivo
142 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

desse movimento era o de promover a guinendadi (guineidade), sendo que,


então, isso era considerado um tanto subversivo, mesmo diante do fato de a
independência ter se dado em 1974. É sociólogo, analista político e diploma-
ta. Ele esteve em diversos postos da administração do país, como o Ministé-
rio de Negócios Estrangeiros, o Ministério da Educação, além de vice-reitor
da Universidade Colinas de Boé. Além disso, é investigador do INEP (Insti-
tuto Nacional de Estudos e Pesquisas), na área de estudos socioeconômicos.
Huco aparece na coletânea Momentos primeiros da construção (1977) com
seis poemas em crioulo, uma vez que ele só faz poesia nessa língua. Em Ke-
bur (1996) o autor comparece com 10 poemas.
Augel (2006) publica o poema inédito “Sinais de paz” que, a despei-
to do título em português, está escrito em crioulo, um longo poema de 42
versos. Como foi escrito no calor da Guerra Civil (1998-1999), durante
a qual tropas senegalesas foram chamadas pelo presidente para protegê-lo
de militares rebeldes e do próprio povo, o poema tem “dois pensamentos
centrais: o horror ao inimigo e o amor pela pátria”, como diz Augel em sua
detalhada análise. Como essa invasão estava pondo em perigo a própria exis-
tência da Guiné-Bissau como país autônomo, o poeta tem “o claro intento
de pôr em relevo a unidade dentro da diversidade”. Para isso, usa tropos
que enfatizam a guineidade, como locais, pessoas, costumes, etnias. E por
se falar em etnias, elas entram justamente no contexto da unidade na diver-
sidade, de “um entendimento interétnico”, para “fortalecer a unidade na-
cional”, não de uma fragmentadora etnicização, como fazem alguns líderes
e intelectuais. Isso aparece sob diversas formas, como baraka (< barraca)
por Guiné-Bissau. Baraka é o lugar sagrado do processo de iniciação dos
jovens via circuncisão (rapazes) e excisão do clitóris (moças). Usa termos
pejorativos para os soldados senegaleses, como djamba (pequeno pássaro),
uma vez que esse povo é conhecido na Guiné como djambar. Chama aten-
ção para o fato de os invasores não conhecerem os nomes de bairros locais,
tais como M’Pandja e Psak. Os patriotas guineenses são como po di sangi
(pau-de-sangue), de madeira resistente, difícil de ser cortada. Transparece
até mesmo o machismo típico de quase toda a África. A “firmeza e coragem
reunidas para a defesa da pátria são expressas de forma extremamente ir-
reverente, pois a expressão no firma tchan no matchundadi (v. 35-36) tem
inequivocamente o sentido pornográfrico de um vangloriamento do macho
(firma matchundadi literalmente significa ‘com o pênis erecto’), como ho-
mens de verdade” (p. 99-100).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 143

A poesia de Huco Monteiro vai muito além disso. Vejamos o poema


“Anós tudu i Buruntuma”, de Kebur. Como se pode ver, para entender o
poema é necessário ter um mínimo de conhecimento da cultura guineense.

Anos tudo i Buruntuma Nós somos todos Buruntuma

Si anos i ris o simintera Se somos raiz ou sementeira


Nteradu enterrados
Si no ka lanta pulga se não levantamos pulgas
I polon o bissilon poilões ou bissilões
Pa N ka fala katakumba o mandjandja para não falar de catacumba
nem de cola

Anos tudu i buruntuma Somos todos buruntuma

Mitidu na un tatcha di badodos Dentro de uma vasilha de doce


Na sangi di no Guiné no sangue de nossa Guiné
I kil un iardi di sukulubembe quer ardendo como o sukulu-
bembe (uma pimenta)
I kil un malgosura di djagatu quer amargando como o djaga-
tu (uma beringela)
I kil un badju di kusunde o di ngumbe quer em um baile de kusunde
ou de gumbé

Bu fidjus tudu i buruntuma, Guiné. Seus filhos são todos buruntu-


ma, Guiné.

Dulce Neves

Dulce Maria Vieira das Neves, ou simplesmente Dulce Neves, nas-


ceu em Mansoa, em 28 de janeiro de 1958, transferindo-se logo para Bis-
sau. Aí fez os estudos secundários. Ela é conhecida sobretudo como uma
pessoa da música. Compõe melodias, letras e canta. Vem fazendo diversas
apresentações tanto na Guiné-Bissau quanto no exterior, como em Por-
tugal. Chegou a ganhar prêmios internacionais, como o da Rádio France-
sa Internacional (1985) e o troféu do Prix du Président du Mali (1985).
144 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Dulce não participou de nenhuma das antologias de poemas publicadas


no país, exceto Kebur. Mas, isso se explica pelo fato de ser tida como
musicista, não poetisa, exatamente como acontece com Aliu Bari, entre
outros. Praticamente todos os seis poemas seus que aparecem em Kebur
são “letras” de canções. Isso lembra um pouco Chico Buarque de Holanda
e Vinicius de Moraes, sobretudo o segundo que, além de ótimo poeta, foi
um grande compositor, além de cantor. Vejamos o poema “Si mortu ten di
leban” (se a morte tem que me levar).

Si mortu ten di leban Se a morte tem que me levar

Si mortu ten Se a morte tem


de leban que me levar
pa i pera n bokadiñu son
que ela espere só um pouqui-
nho

N misti mati Eu quero participar
sabura di no tera das coisas boas de nossa terra
N misti mati eu quero ver
avansu di no povu os avanços de nossa gente
N misti odja eu quero ver
garasa mais bunitu o riso mais bonito que há
na rostu di mininus no rosto das crianças

Pa se bariga Que suas barrigas


ka orfa di fomi não inchem de fome
pa e tene mesiñu que tenham remédios
e tene skola e escola
pa no garandis que nossos anciãos
ka muri di fadiga não morram de cansaço
N misti odja tudu eu quero ver tudo
kila ña djintis minha gente
antis di N muri antes de morrer.

Como se pode ver, na poesia de Dulce Neves não há aquela profusão


de metáforas, metonímias e referências a entidades da cultura guineense e
outras que faz o entendimento para os de fora tão difícil. Talvez pelo fato
de se comunicar diretamente com o povo cantando, procure falar o mais
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 145

simples possível. Afinal, como disse certa vez Ferreira Gullar, para ser bom
poeta o falar difícil não é imprescindível.
Os outros cinco poemas de Kebur mantêm o mesmo tom de simplici-
dade. Em “Singa” (singrar), ela fala da solidão, além da preocupação com
o dia-a-dia, preocupação típica de mulheres na África, pois frequentemen-
te são elas que têm que prover a casa. “Sareia” (sereia) tem um tom um
tanto onírico, uma vez que ela fica sonhando com um mundo encantado,
como se fosse um homem desejando que uma sereia apareça para viverem
um lindo amor. O terceiro poema é “Sukundi sukundi” (muito abriga-
do) é parecido com “Sareia”. O quarto, “Kidu”, retoma o tema do amor,
como se pode ver nos dois últimos versos: “Kidu ami di bo / Kidu abo di
mi” (“Kidu eu sou sua / Kidu você é meu”). O quinto poema é o que está
transcrito acima. O sexto retoma a questão da fome. Os cincos primeiros
versos já atacam a questão: “Ña pape labra / i ka kume / ña mame karga
kufu / i ianda orik / i ka kume”, ou seja, “meu pai trabalhou / mas não
comeu / minha mãe carregou os cestos / está sempre labutando / mas não
comeu”.

Respício Nuno

Respício Nuno Marcelino Silva nasceu em 10 de novembro de 1959


em Bissau. Fez o curso de mestrado em linguística em Moscou, terminado
em 1991. Aí, chegou a ser presidente da organização dos estudantes estran-
geiros. De volta à Guiné-Bissau, passou a trabalhar na área de comunicação
social, criando o programa de rádio Tchon Tchoma, juntamente com Félix
Sigá e Sunkar Dabó. É na rádio que começou a divulgar sua produção poé-
tica, nos programas Blufo e Bambaran di Padida, de 1978 a 1983. Uma no-
vela de sua lavra foi apresentada de forma seriada em um de seus programas.
Essa seria uma das primeiras, se não a primeira manifestação de textos de
ficção escritos em crioulo, mesmo que não tenha sido publicada. Tem tam-
bém revistas em quadrinhos, que foram publicadas durante as eleições de
1994, além da melodia e da letra da canção “Bo bai pubis”. Há a informação
de que tem contos inéditos escritos em crioulo, no que seria também pionei-
ro, pois, como sabemos, as únicas manifestações em prosa em crioulo são os
contos tradicionais (storias) transcritos e publicados (ver capítulo VI). Ele já
passou pela administração do país, exercendo o cargo de Director Geral da
Juventude, Cultura e Desportos.
146 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

No que tange a sua produção poética em crioulo, Respício Nuno não


tem muita coisa publicada. Ele não aparece em nenhuma das antologias an-
teriores a Kebur (1996), na qual está presente com oito poemas. Um deles é
“Un karta” (uma carta), que transcrevemos a seguir.

Un karta Uma carta

Islentisimu siñor Excelentíssimo senhor


suma i na falta como faltam
seti noti pa lun’a muri sete noites para a lua se por
N na falau, kau disabidu eu lhe digo que a coisa não está
nada bem

Ma suma tambi kunkulun Mas como a enxurrada



di bumbulun ka obidu de bombolons não é ouvida
iar difuntu ka susega nan talvez por isso os defuntos não
sossegaram

N na falau tambi Digo-lhe ainda


noba di ba ñu as novidades de vossa excelên-
cia
rapian kurpu... fizeram meu corpo arrepiar
N pudi ka bin masa filidjamba posso não vir a amassar filijam-
ba
na kil nfernu njitadu naquele inferno rejeitado
i ta kontra i janfa son por causa de coisa ruim

Islentisimu siñor Excelentíssimo senhor


suma i falta un tchuba como falta uma chuva (um
ano)
pa turbada diskubrinu ntudju para a tempestade descobrir
nossos entulhos
N na tistimuña ba ñu: eu testemunho perante vossa
excelência:
kau pretu nok!! a coisa está preta!!
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 147

Pa kabanta Para terminar


N na falau son un kusa: só digo mais uma coisa:
no ka sedu kanua kontra mare! nós não somos canoa contra a
maré!

Augel (2006) publica dois dos diversos poemas inéditos do autor, es-
critos ainda no rescaldo da Guerra Civil de 1998-1999, seguidos de uma
detalhada análise. A autora chama a atenção para o fato de que “o poeta
faz uma crítica aberta e direta àqueles antigos combatentes da liberdade da
pátria, aqui chamados pelo autor de ‘donos do mato’, que subiram na hierar-
quia e atualmente são donos do poder” (p. 102). O próprio título do primei-
ro poema (Disgrasa ‘Desgraça’) já sugere o tom de sua mensagem: o que os
políticos estão fazendo (em 1998-1999 e hoje) com o povo guineense é uma
desgraça. No segundo poema (Ermondadi), “o sujeito poético compara a
guerra a um grande vendaval que provoca redemoinhos e espalha a destrui-
ção ‘escancarando as portas da Guiné’” (p. 108) a perigos externos, sendo
que o não menos perigoso de todos o fato de os políticos exporem o país ao
perigo de desaparecer como tal. Como já dissemos alhures, a Guiné-Bissau
é uma ilha lusófona rodeada por um mar de países pertencentes ao domínio
da francofonia. Como estes últimos são muito mais fortes e cada um deles
muito maiores, territorial e populacionalmente, o fato de o presidente Nino
Vieira ter chamado tropas senegalesas para defendê-lo contra militares in-
surgentes foi uma calamidade (disgrasa) para o povo. O que deveria haver
para que a Guiné-Bissau possa vislumbrar um futuro alvissareiro é “ermon-
dadi”. O poema de Kebur acima transcrito vai pelo mesmo diapasão desses
dois, embora ele não esteja falando da Guerra Civil, mas das guerras de
libertação e do colonizador.

Conduto de Pina

Como já observado, Francisco Conduto de Pina é pioneiro sob pelo


menos dois aspectos. Ele foi o primeiro escritor bissau-guineense a ter uma
publicação individual, ou seja, Garandessa di no tchon (1978), cujo título
em crioulo significa mais ou menos “as maravilhas de nossa terra”, com
prefácio de Pedro João C. G. Cruz Pires. Trata-se de um opúsculo de 35
páginas, em edição do próprio autor, contendo 22 poemas, sendo dois em
148 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

crioulo, ou seja, “Strela negra” e “Lun’Ngada” (luar). Como muitos outros


poetas e escritores de seu país em geral, tem muitos originais na gaveta. Em
1997, publicou O silêncio das gaivotas (Bissau: Centro Cultural Português),
com 54 poemas, sendo oito em crioulo, prefaciado por Tony Tcheka. Os po-
emas em crioulo são “Poema II”, “N’obi bu gritu” (ouvi teu grito), “Parma-
nha paradu” (manhã parada), “Bambaran di nha korson” (Bambaram [pano
de carregar crianças às costas] de meu coração), “Papé” (pai), “Fala ... fala”,
“Djubi ku djubidu” (ver e visto) e “Kredi” (credo!). A primeira coletânea de
poemas em crioulo, Kebur (1996), reproduz cinco poemas de O silêncio,
embora às vezes com títulos ligeiramente alterados. Os que não são repro-
duzidos são “Poema II” e “Fala ... fala”. O fato é que, Conduto tem, ao todo,
pelo menos 10 poemas crioulos publicados em livro. Deve haver outros,
levando-se em conta que o autor começou a poetar quando tinha apenas 13
anos de idade. É importante observar que no livro Palavras suspensas, que
está saindo (2010) pela Thesaurus Editora de Brasília, há três poemas em
crioulo, que são “Nés nós pali”, “Nhara guiné” e “N’ndjanti tras di ianda”.
Vejamos o poema “Parmaña paradu”, o primeiro de Kebur (1996).

Parmaña paradu Manhã parada

Suma abo Como você


es parmaña torna esta manhã de novo
sta paradu está parada
suma di kustumu como de costume
sta paradu está parada
suma tudu dia como todo dia
i ta sta paradu ela está parada
pa ki mindjeris di sukuru para as mulheres de luto
sta paradu suma sol estarem paradas como o sol
ku ka sta paradu! que não está parado

Os dois últimos versos já revelam uma das características da poesia


de Conduto de Pina, que é o jogo de palavras, às vezes de sentido contra-
ditório, antitético, embora o tema do poema seja a letargia em que todos
se encontravam, mesmo diante dos danos causados pela guerra, que são
sempre lembrados pelas “mindjeris di sukuru”, as mulheres de “escuro”, ou
seja, de preto, de luto.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 149

O amor entre homem e mulher não é o tema preferido do autor. O


amor filial está presente em dois dos seis poemas de Kebur. O primeiro,
“Bambaran di ña korson” fala da mãe, tanto que ele termina dizendo que
“Ami i parti di bu sangi / flor di bu bariga”, de sentido transparente. O se-
gundo é “Ña pape”, em que o poeta fala da saudade do pai que já se foi. Ele
diz ao pai que “N tchorau / mas larma ka sain udju / N ka diskisiu” (“eu
o chorei / mas as lágrimas não saíram de meus olhos / eu não o esqueci”).
Um tema recorrente na literatura guineense, os horrores da guerra
e suas lembranças inapeláveis, está presente no poema “Gritu di revolu-
son”, tema que já fora um dos motivos principais de seu primeiro livro. O já
mencionado jogo de palavras está presente em “Kredu” que, além do mais,
tematiza a questão da comida. Como se pode ver, sobretudo no capítulo
VI, a fome é uma realidade constante na vida não só do guineense, mas do
africano em geral. Mas, o jogo de palavras é mais visível em “Djubi ku mati”
(espiar e presenciar), em que Conduto joga com as ideias de presenciar sem
ver (mati sin odja) e de ver sem presenciar (djubi sin mati), em que está em
causa o diz-que-diz-que.

Armando Salvaterra

Armando Salvaterra, às vezes chamado de Sandor, nasceu em 18 de


outubro de 1946, em Bissau, e morreu em 1977, na mesma cidade. Foi um
dos companheiros de José Carlos Schwarz na época das Guerras de Liberta-
ção e nos momentos imediatamente subsequentes, tendo escrito muitas das
letras das canções interpretadas por ele no conjunto Cobiana Djazz. Talvez
por esse motivo, Salvaterra seja menos conhecido no contexto da literatura,
não aparecendo na primeira coletânea (Poilão, 1973) embora suas letras
de canções não difiram muito das de Schwarz, que entra em praticamen-
te todas as antologias. Em Mantenhas para quem luta (1977), Salvaterra
aparece com o poema “Depois de mim”, em português. Na seção “Espaço
Crioulo”, de Momentos primeiros da construção (1978), encontra-se o seu
poema “E largal?” (eles o deixaram?). Rosa (1993) sequer o menciona em
seu conspecto da literatura guineense. Nem mesmo o detalhado trabalho
de Moema Parente Augel abre um espaço para a análise de sua obra (Augel
1998). No entanto, o pouco que ele escreveu nos poucos anos que viveu
não está aquém dos outros autores de Kebur, nem de outras publicações.
Onde a presença de Salvaterra é bastante conspícua é na área das letras de
150 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

canções, exatamente como José Carlos Schwarz. É o caso de “Mindjeris di


panu pretu” (mulheres de luto), “Dipus ki e lebal” (depois que o levaram)
e “Estin” (ei, você aí!), todas interpretadas por Schwarz no Cobiana Djazz.
O primeiro deles é o seguinte: “Mindjeris di panu pretu / ka bo tchora pena
// Si kontra bo pudi / ora ki un son di nos fidi / bo ba ta rasa / pa tisinu no
kasa // Pabia li ki no tchon / no ta bai nan te / bolta di mundu / i rabu di
pumba.” Tradução literal: “Mulheres de pano preto / não chorem mais // Se
puderem / quando um de nós ficar ferido / rezem / para trazer-nos a nossa
casa // Porque aqui é nossa terra / não importa aonde formos / a volta do
mundo / é um rabo de pomba.” O poema é dedicado às esposas, mães e
irmãs dos homens que morreram na guerra, motivo pelo qual estão vestidas
de preto. O poeta as concita a não ficarem passivas, mas a continuar levan-
do a vida, rezando (rasa) pelos que estão na luta. Ele tem esperança que as
coisas vão melhorar, pois o mundo dá muitas voltas, como afirmam os dois
últimos versos grifados, que são um conhecido provérbio crioulo. Aliás, o
uso de provérbio nas letras das canções dessa época é uma constante. Ao
lado do uso do crioulo, isso revela um desejo de falar a linguagem da maioria
da população guineense. De fato, as apresentações do Cobiana Djazz eram
recebidas entusiasticamente pelo público, mesmo diante do perigo represen-
tado pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), uma espécie da
KGB da ditadura portuguesa da época.
Em Kebur (1996), Salvaterra comparece com dez poemas. São eles
“Kobardisa di un dia” (1973), “Djitu ka ten, ermon!” (1975), “N tarda na
perau” (1975), “Forsa di karne” (1975), “Nteru” (1975), “Kutos ke fiu na
bida!” (1975), “Orfan di mundu” (1971), “Mininus ku bambaran na kos-
ta” (1972), “Bo kunsa mas” (1974) e “Katchur iandadur, os o pankada”
(1974). Como se pode ver, sua produção emergiu em um lapso de tempo
relativamente curto, ou seja, de 1971 a 1975. Certamente, a morte pre-
matura privou a Guiné-Bissau de uma grande produção poética. Aliás, ele
sempre revela um medo de partir cedo (N tarda perau ‘Eu te espero há muito
tempo’).
Um dos temas principais é a impotência frente às asperezas da vida
(Djitu ka ten, ermon! ‘não há o que fazer, irmão!’), em que a miséria tam-
bém aparece (/bu odja un koitadi ke na pidi/ ‘vês um pobre a pedir esmola’).
Aí se inclui a questão do sentido da vida. Os problemas da luta armada e as
questões sociais aparecem só tangencialmente, às vezes na forma de “no
tera” (nosso país), às vezes na existência do crioulo (“Aonti / kriol i ka na
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 151

tudu boka / ke no ta obil ba! / Ma gosi / suma i disgustu di katchur / te gatu


ku kamalinon / no ta sintil nel!”), ou seja, “ontem / não era em todas as
bocas que ouvíamos o crioulo / Mas agora / como é sofrimento do cachorro
/ até nos gatos e camaleões / ouvimo-lo”. Em “Mininus ku bambaran na
kosta” (meninos carregados nas costas), o poeta pergunta: /kal tera ke bo na
bin ba difindi? / (que terra vocês vieram defender?). No verso seguinte, ele
sugere uma resposta em forma de pergunta: “utrus teras ke bo ka kunsi? / o
ki tchon ke iera ba di bu pape?” (“outras terras que vocês não conhecem? /
ou a terra que foi dos pais de vocês?”
Do ponto de vista da forma, Salvaterra faz uso de provérbios e ditos
populares, muito comuns nas letras de canções, como o título do décimo
poema de Kebur: “Katchur andadur, os o pankada”, ou seja, cão vadio pode
encontrar osso ou pauladas. O tema desse texto é alguém “sem lenço nem
documento”, perdido na vida, sem eira nem beira, que não sabe como nem
porque está aqui, mesmo sabendo que a pátria acaba de ser libertada. A mor-
te também está presente, por exemplo, em “Nteru” (enterro).

José Carlos Schwarz

José Carlos nasceu no dia 6 de dezembro de 1949 e morreu em 27 de


maio de 1977. Em 1967 e 1968, escreveu os primeiros quatro poemas, em
francês (“Émoi”, “Un tout petit instant”, “Je t’aime”, “Tes mains”). Os pri-
meiros poemas em português datam da década de 1970. Quanto ao crioulo,
usou-o sempre nas canções. Ele só cantava em crioulo, única língua que
poderia unir o país, pois sabia que assim falava mais diretemente ao povo de
sua terra. A primeira dessas canções é de 1970, “Nna” (mãezinha). Ele es-
creveu pelo menos umas 54 “letras” para serem musicadas, além de poemas
em português. José Carlos chegou a afirmar que não era poeta; só escrevia
letras para suas canções. Trata-se, porém, de modéstia. Tanto que ele figura
em praticamente todas as antologias poéticas da Guiné-Bissau.
Vejamos o poema “N na nega bedju”, datado de 1975, com a dedi-
catória “Para Noucha porque tenho-te desejado tanto...” (sua esposa): “N
na nega bedju / ka djudju bin pirgisa / kamiñu lundju inda di ianda // N na
nega bedju / ka udju bin sukuru / N misti mati bardadi di tudu dia // N na
nega bedju / ka mon bin moli / pa tempu di kumpu tera, ai ka fikan // N na
nega bedju / bedjisa di mau sintidu / kurpu bo ta ntera, i ka nada! // N na
nega bedju / pa kerensa ki N ten na bo, Guiné / N na nega bedju / pa keren-
152 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

sa ki N ten na bo // N na nega bedju / pa kerensa ki N ten na bo, Kauberdi /


N na nega bedju / pa kerensa ki N ten na bo!” Tradução: “Recuso-me a en-
velhecer / que meus joelhos não enfraqueçam / o caminho a percorrer ainda
é longo // recuso-me a envelhecer / que meus olhos não se escureçam / eu
quero o dia-a-dia // recuso-me a envelhecer / que minhas mãos não fiquem
moles / que na hora de construir nosso país não me deixem // recuso-me
a envelhecer / uma velhice sem sentido / o corpo podem enterrar, isso não
importa! // recuso-me a envelhecer / pelo amor que tenho por ti, Guiné /
recuso-me a envelhecer / pelo amor que tenho por ti // Recuso-me a enve-
lhercer / pelo amor que tenho por ti, Cabo Verde / recuso-me a envelhecer
/ pelo amor que tenho por ti!”
“N na nega bedju” é uma das muitas letras de canções que José Carlos
escreveu, tanto para o conjunto Cobiana Djazz, fundado e liderado por ele,
quanto para outros de que fez parte. Na versão cantada, muitas estrofes e
muitos versos são repetidos, fato que já se pode entrever na transcrição que
acabo de apresentar. No entanto, quando o poema é cantado, as repetições
são muito mais numerosas, chegando às vezes a parecer enfadonhas para
um ocidental, desejoso de chegar ao final o mais rapidamente possível, como
vimos ao falar das narrativas orais. Além disso, nota-se claramente que é
um poema engajado, que manifesta um desejo político, não algo que esteja
acontecendo. O desejo é a “construção da nação”, que seria certamente uma
tarefa ingente. Mas, o amor não deixa de aparecer, no caso, na dedicatória
a Noucha (Nuxa), sua esposa. Como nos disse Wilson Trajano Filho, um
estudioso da cultura guineense, esse autor é uma espécie de Chico Buarque
guineense, a despeito de sua trajetória meteórica. A certamente maior co-
nhecedora da literatura guineense, Moema Parente Augel, dedica um livro
de 422 páginas inteiramente a José Carlos Schwarz (Augel 1997).

Odete Semedo

Maria Odete da Costa Soares Semedo nasceu em Bissau em 7 de


novembro de 1959. Formou-se em Língua e Literatura Modernas na Uni-
versidade Nova de Lisboa e sempre esteve ligada à área do ensino, inclusive
na administração do país. Não é a primeira mulher a publicar um livro in-
dividual na Guiné-Bissau porque antes dela Domingas Samy já publicara o
livro de contos A escola (1993). No que tange à poesia, no entanto, ela é a
primeira a publicar um livro individual, se não contarmos o folheto que Con-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 153

duto publicou em Lisboa. Trata-se de Entre o ser e o amar (Bissau: INEP,


1996), com prefácio do sociólogo Carlos Lopes. Ela não havia participado
de nenhuma das seis primeiras antologias de poesia guineense. Foi só na
coletânea Kebur: Barkafon di poesia na kriol (1996), organizada por Moema
Parente Augel, que ela apareceu com seis poemas em crioulo, nenhum deles
repetidos em Entre o ser e o amar.
Entre o ser e o amar está dividido em dois blocos. O primeiro (Oscila-
ções) consta de doze poemas, sendo três (“Flor sem nome”, “Noite imacula-
da” e “Esperança”) só em português e os demais em crioulo e português. Os
poemas bilíngues não são uma mera tradução um do outro. Frequentemente a
versão portuguesa apresenta mais versos do que a crioula, que vem em primei-
ro lugar. Como a própria autora afirma na introdução, “a tradução fá-los-ia
perder a autenticidade”. De modo que a poetisa procede quase como Haroldo
de Campos, fazendo uma espécie de transcriação. O segundo bloco de poe-
mas, Entre o ser e o amar, que dá nome ao livro, consta de 32 poemas, sendo
22 bilíngues, cinco só em português e cinco só em crioulo.
O próprio título do livro, Entre o ser e o amar, já nos permite vislum-
brar o que ela diz em toda a obra. Uma preocupação constante da poetisa é
a expressão de si mesma, mostrar aos outros que está aqui entre as demais
pessoas. Ela quer expressar-se para se comunicar com elas. No entanto, essa
comunicação não é fácil, a começar do instrumento a ser utilizado. Esse di-
lema está verbalizado já no primeiro poema, intitulado “Na kal lingu ke N na
skirbi nel?” (em que língua eu devo escrever?). Para um ocidental, poderia
ser uma pergunta pedante, pois com ela o poeta poderia estar sugerindo que
pode escrever em mais de uma língua. No contexto guineense e africano,
porém, essa pergunta tem a sua razão ser. A invasão europeia produziu uma
ruptura na história dos povos locais, que teriam seu curso próprio, para o
bem ou para o mal. No contexto dessa ruptura está a imposição da língua do
colonizador. Com isso, mesmo tendo os africanos suas línguas tradicionais,
do contato entre as duas partes frequentemente surgiu, em muitos países,
uma língua mista, o crioulo, como é o caso da Guiné-Bissau. A despeito
de ter a marca europeia, essa língua ainda é capaz de representar a cultura
africana melhor do que a língua europeia. Tanto que muita gente já não
domina a língua étnica de seus ancestrais, só falando o crioulo e a língua do
colonizador.
Mesmo nos países que apresentam essa situação, toda a escolarização
é feita na língua do colonizador, não em uma língua africana ou no crioulo.
154 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Tudo que se escreve, escreve-se na língua europeia. Ela é a língua oficial. As-
sim sendo, não é de admirar que Semedo se pergunte em que língua escrever.
Ela está dividida entre a língua do coração e a língua da razão, ou seja, entre
o crioulo e o português, respectivamente. Por via das dúvidas, ela escreve em
ambas. As declarações de amor (Ña deklarasons de amor), as façanhas das
mulheres e homens de sua terra (“fasañas di mindjeris / ku omis di ña tchon”),
os anciãos (omis garandi), os fatos passados e suas canções (Di no pasadas
ku no kantigas), tudo isso ela cantará em crioulo (Na kriol ke N na kantal).
No entanto, a fim de deixar sua mensagem escrita para que outros povos e
outras gerações distantes a recebam, “Deixarei o recado / Num pergaminho /
Nesta língua lusa / Que mal entendo” para que”.. ao longo dos séculos”, “No
caminho da vida / Os netos e herdeiros / saberão quem fomos”, como diz na
versão portuguesa, que é “Em que língua escrever”.
A necessidade de se expressar e ser ouvida pelo outro pode ser vis-
lumbrada em praticamente todos os poemas de Semedo, mesmo que indi-
retamente. Às vezes, ela está “Na metadi di tchon ku seu / Suma barku sin
rumu”, ou seja, “Entre o céu e a terra / Qual barco sem rumo” (Oscilações),
outras vezes ela diz que “N misti sedu poeta / Pa N kanta / Pa N sinti / Pa
N tchora”, em português “Queria ser poeta / Cantar / sentir / Chorar”, pois
acha que só os poetas conseguem expressar tudo isso e algo mais (N misti
sedu poeta). Esse desejo se repete no poema seguinte (Ami = Eu), pois “Na
poesia ke ña liberdadi sta”.
Como se pode ver no último poema (N ka purfia = Não discuti), Se-
medo está sempre envolvida numa luta pela expressão, como disse Fidelino
de Figueiredo: “Falei da língua / Da míngua / Da letra (So)letrei a minha
nostalgia / Lendo pasmado / Nos olhos desmesurados / O infinito”, para
citar só a versão portuguesa. Como disse Carlos Drummond de Andrade, é
uma luta com palavras, e lutar com palavras é luta vã, mesmo assim lutamos
mal rompe a manhã. Augel (1998: 263-280) contém uma detalhada análise
da poesia de Odete Semedo. Em Augel (1999: 38-40) há uma síntese dessa
análise.
O livro No fundo do canto (Belo Horizonte: Nandyala, 2003) já foi
comentado no capítulo sobre poesia em português. Ele contém apenas 6 po-
emas em crioulo, que vão no mesmo sentido dos já comentados. Para mais
comentários sobre sua obra, e não só a poética, pode-se consultar Queiroz
(2007).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 155

Félix Sigá

António Félix Sigá, conhecido como Félix Sigá, nasceu em Bissorã,


em 16 de maio de 1954. Aí fez o curso primário, mudando-se para Bissau
em 1969, para fazer o secundário. Por essa época, fez o que muitos jo-
vens de sua geração fizeram, ou seja, fundou um conjunto musical, no caso,
Tchon Tchoma. Entre todos os escritores guineenses, Sigá é o que teve a
maior diversidade de atividades profissionais: carpinteiro, fiscal, contabilis-
ta, professor, revisor do jornal Nô pintcha, compositor/cantor, jornalista e
diretor do setor de cultura da Secretaria da Juventude, Desportos e Cultura.
Não teve formação universitária. Pelo contrário, é um autodidata. No en-
tanto, sua produção não fica muito atrás da dos que tiveram oportunidade
de frequentar uma universidade, no exterior, uma vez que não as havia na
Guiné-Bissau. Atualmente há duas.
Participou da Antologia poética da Guiné-Bissau (1990), com seis
poemas em português, objetivo da coletânea. Publicou o livro individual de
poemas, O arqueólogo da calçada (Bissau: INEP, 1996), em português, já
comentado no capítulo V. Como informa Augel (1998: 284), ele tem dois
livros inéditos, ou seja, Homem, terra e amor falante e Semente entre pedras.
Não temos informação de se foram publicados. Numa entrevista concedia
ao site www.guine.com (acessado em 01/01/2008), ele informa que tem
manuscritos, como Do etéreo ao vital pululando, que “realizará um sonho
de sua vida”. Trata-se de “um livro de poemas esotéricos, que dinamizam
o espírito humano em todos os sentidos e aspectos”, inspirado nos valores
femininos da Guiné-Bissau. Informa ainda que teria os manuscritos de uns
14 livros na gaveta que não consegue publicar. Em Kebur (1996) aparece
com dez poemas.
No mesmo site o autor afirma que Amílcar Cabral não era guineense,
portanto, não seria um herói nacional. Nisso, ele vai contra toda a tradição
pós-independência, que cultua esse líder africano como um mártir e o maior
herói guineense. Trata-se de uma afirmação bombástica que, ao que indi-
cam as fontes históricas, não faz sentido. É mais ou menos como dizer que
Simon Bolívar, Tiradentes ou Artigas não eram nada daquilo que a história
nos conta.
Alguns dos temas explorados pelo autor são a questão da passagem do
tempo, como acontece em “Kambansa” (travessia). Uma espécie de autoa-
firmação, em que mostra como é e se quiserem aceitá-lo tem que ser assim.
156 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

“Na kalur di lansol” (no calor dos lençóis), mostra o que sente quando vê
a cama que foi cenário de noitadas de amor. Explora outrossim os embates
entre o indivíduo e o mundo, as forças da natureza, como no poema “Bentu”
(vento).
Do ponto de vista da forma, os poemas em crioulo do autor são de
difícil compreensão para os de fora. Além de um rico vocabulário, ele faz uso
de ideofones em pelo menos quatro dos dez poemas. Além disso, não são
infrequentes aliterações (okala toma sakala ku makala ‘o detrator assume o
espírito da circuncisão e do felino’), os jogos de antíteses (sibi ku ria ‘sobe e
desce’; ria ku subi ‘desce e sobe’), além de expressões tomadas de emprés-
timo ao português (D’es-ti-guardi). Enfim, o vocabulário usado por Sigá é
bastante variado e rico.

Tony Tcheka

Tony Tcheka, ou António Soares Lopes Júnior, escreveu muito mais


em português, como vimos no capítulo V. Quanto a poemas em crioulo, ele
tem oito na antologia Kebur: Barkafon di poesia na kriol (1996), dez em
seu primeiro livro individual, Noites de insónia na terra adormecida (1996),
sendo que quatro são reproduzidos da antologia (“Balur di kebur”, “Dur di
mame”, “Kanta di fomi” e “Fugu de ña korson”), da primeira (Kantu kriol)
de cinco seções e, finalmente, cinco no seu segundo livro individual de po-
emas, Guiné sabura que dói (2008). A produção em português, muito mais
extensa, já foi examinada no capítulo V. O primeiro poema de “Kantu kriol”,
ou seja, “Kanta di fomi” data de 1974. Os demais são dos anos oitenta, no-
venta e da primeira década de dois mil. Vejamos brevemente sua produção
em crioulo.
Além dos recursos onomatopaicos “tan-tan / tantaran” muito comuns
na cultura africana em geral, o próprio título do poema “Kanta di fomi” já
revela um dos maiores flagelos que atormentam a África, a fome (/fomi na
peran kasa/ ‘a fome me espera em casa’, /patin sopa/ ‘me dá sopa’). O di-
lema é /I dan o i ka dan/ ‘ele me dá ou não dá’. Tudo isso porque //nada ka
ten// ‘não há nada’ em casa. O tema da miséria pode ser percebido em todos
os demais dezanove poemas que aparecem nas três publicações. Mesmo que
sob a forma de colheita (Balur di kebur), o trabalho das mulheres que têm
que trabalhar e ainda carregar objetos pesados na cabeça (Dur di mame), ou
ainda a dureza da vida (Bida mufinu, Koti-Koti). A mulher é sobrecarregada
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 157

de tarefas, pois é ela que tem que plantar e pilar arroz, vender algo na rua, e
até pescar (Tchur di Mpinte, Fatu di pilum). O tema recorre também nos me-
ninos de rua (Tchiku ten-ten), que perambulam assobiando a fim de espantar
a fome (“sibia ku djitu / djitu di panta fomi”). Esse é apenas um dos temas
sociais que preocupam Tony Tcheka. Um outro é, por exemplo, a preocu-
pação com a migração para a cidade ou para o estrangeiro (Noba di prasa,
Malam di mar). Em sua opinião, isso se dá porque “sabi i li na prasa / kasabi
i la na tabanka”, ou seja, o prazer está na cidade e o desprazer lá na aldeia. A
inconformidade com a infelicidade que prevalece no país também é um tema
presente na sua poesia, não só em português, mas também em crioulo afir-
mando que /i hora di nô busca tadju/pa tapa burgonha/ (Limárias na kuri).
O autor tem também momentos de lirismo. Um bom exemplo é o
poema “Fugu di ña korson” (fogo do meu coração), que lembra o soneto
de Camões que começa pelo verso “Amor é fogo que arde sem se ver”. Um
outro é “Flur di mi” (minha flor), no qual ele diz que o objeto de seu amor é
o /ramedi di ña korson/ de modo que pareceria brega ao ocidental de hoje,
mas muito poético em crioulo. No poema “Kerensa” (bem-querer), Tcheka
chega a confessar que diante dela “ña korson / ta tirmi / suma tambur” (meu
coração/ treme / como um tambor/ que, para nós pode não ser lá assim tão
poético mas, na cultura africana evoca tradições centenárias.
Algo que salta à vista nesses poemas é que o poeta já não fica repetindo
bordões contra a violência perpetrada pelo ex-colonizador, os grandes feitos
dos que lutaram nas Guerras de Libertação, como fizera em poemas que
saíram nas antologias anteriores, e como fizeram praticamente todos os au-
tores que nelas apareceram. Aqui o autor olha mais para frente. Nota-se que
Tcheka tem uma preocupação grande com a forma do poema. Alguns deles
lembram a “poesia concreta” dos irmãos Haroldo de Campos e Augusto de
Campos, juntamente com Décio Pignatari. Tony Tcheka é um dos poetas
mais proeminentes da literatura guineense.
Além dos poemas dos diversos autores comentados, ou mencionados
acima, há muitos outros publicados esparsamente, como os que saíram em
Tcholona e outras publicações, tanto guineenses quanto estrangeiras. Além
disso, existem muitos inéditos guardados na gaveta (dos autores e/ou de
familiares). Não esqueçamos também as kantigas recolhidas da oralidade em
línguas étnicas (cf. Barros 1900), as kantigas di manjuandadi, di tina e ou-
tras. As letras de música que são verdadeiros poemas, como as de José Carlos
Schwarz, Armando Salvaterra, Aliu Bari, entre outros.
158 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Entre as publicações esparsas, poderíamos citar os três poemas de


Noni Vieira (“Fidalgundadi”, “Nha fiansa”, “Fidjirasta”), publicados em
Tcholona n. 4, p. 7, 1995; Tony Davyes (“Pa mi kumpu menus borgoña”),
Tcholona 5, p. 13, 1996. Noni Vieira e Davyes estão comentados no capítulo
sobre a poesia em português.
Atualmente, encontram-se diversos poemas em crioulo (e mais em
português) na internet. Por exemplo, no site www.didinho.org, temos sete
de Tony Tcheka, três deles presentes em Kebur (1996) e todos em Noites de
insónia na terra adormecida (1996). De Rui Jorge Semedo, temos quatro
poemas, dois tirados de seu livro Retrato (2007), ou seja, “Nô bambaran
djagassi” e “Nhara Guiné”, e dois de Strada di tchur (2001), que são “Stra-
da di tchur” e “Dur di un padida”, além de seis em português. Outro autor,
conhecido apenas por Kanssala aparece com dois poemas: “Sol di kaçabi” e
“Padjigada”. De Flaviano Mindela dos Santos, temos vinte poemas tirados
de seu Dinheru di abota (s/d) e sete de Sigridus de kerensa (s/d). De Odete
Semedo, temos “Na kal lingu ku N na skirbi nel” e “Miskiña”, ambos bilín-
gues em crioulo e português, provavelmente tirados de seu livro Entre o ser
e o amar (1996). Em outro site, encontramos o poema “Kerensa prenhadu”
de Huco Monteiro, o qual não se encontra em Kebur (1996) (http://djam-
badon.blogspot.com). Ambos sites foram acessados em 12/2/2008. É bem
provável que haja mais obras em outros sites e que outros poemas já tenham
sido incluídos nos já mencionados. Pelo menos à primeira vista, esses poe-
mas não ficam a dever muito aos que já foram publicados em obras coletivas
e em publicações individuais. O que é mais, dadas as dificuldades de se pu-
blicar na Guiné-Bissau, a internet é um ótimo veículo para os escritores do
país divulgarem sua produção que, pelo que se pode ver, é bastante prolífica.
Pelo menos como curiosidade, seria interessante registrar que em
www.albumdepoeta.com (acesso 02/01/2008) há um poema de Valeriano
Luiz da Silva, já falecido, intitulado “Homenagem à Guiné-Bissau”, com
tradução em crioulo de Filomena Embaló (autora do romance Tiara, co-
mentado no cap. IV), sob o mesmo nome. Enfim, já existe um considerável
número de manifestações poéticas em crioulo. Em geral, trata-se de uma
literatura da diáspora, pois a maioria dos autores em questão mora fora da
Guiné-Bissau.
Para um ocidental, alguns poemas pareceriam mera justaposição de
frases às vezes “sem coerência interna”, que lembrariam a canção “Qualquer
coisa”, de Caetano Veloso, em que uma palavra puxa outra, sem uma aparen-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 159

te lógica interna, havendo apenas uma associação de palavras pela sonorida-


de. Quando não, como na “salada de palavras” do filósofo tcheco-brasileiro
Vilém Flusser. No entanto, para os guineenses, tudo faz sentido, se é que o
objetivo de um poema é “fazer sentido”, e não pura e simplesmente despertar
a atenção do leitor para as potencialidades da criatividade verbal. Mas, isso
só ocorre com quem não conhece a cultura africana, em geral, e a cultura
guineense, em particular. Não basta conhecer o significado de dicionário
das palavras para se entender um poema crioulo e, talvez, poemas em geral.
O poema como um todo só faz sentido no contexto em que foi produzido,
o que prova que há uma relação inextricável entre língua e meio ambiente.
Tanto que não só os poemas em crioulo, mas toda e qualquer manifestação
cultural guineense e, na verdade, de qualquer país, só faz sentido quando
encarada da perspectiva do meio ambiente social, mental e natural no qual
emergiu (cf. Couto 2007: 19-21).
Gostaríamos de fazer um pequeno comentário a respeito de algo que
aparentemente seria uma contradição. Como sabemos, os africanos são po-
vos verbosos, que adoram curtir a vida. No entanto, na hora de fazer poesia,
o guineense é bastante lacônico, sobretudo na produção em crioulo, como se
pode ver em Kebur. A resposta pode estar no fato de, como acabamos de ver,
ter poemas escritos não faça parte da cultura africana ancestral. Pelo contrá-
rio, sobretudo na Guiné-Bissau, eles só começaram a aparecer na década de
setenta, durante e após as Guerras de Libertação. Tanto que, quando can-
tados, vários versos e até mesmo estrofes inteiras são repetidos várias vezes,
não só pelo próprio cantor, mas também por um coro. Aí sim, vem o que é
genuinamente africano, ou seja, o que importa não é terminar logo, mas o
próprio fruir, se possível gregariamente, como se vê nos capítulos VI e XI.
Por ter surgido no momento das lutas pela libertação do país do jugo
colonialista e logo após, grande parte da poesia guineense é engajada. Poder-
se-ia dizer que a poesia, e não só a poesia escrita em crioulo, desses primei-
ros momentos é praticamente uma continuação da pregação do líder das
guerras de libertação Amílcar Cabral. Por isso, ela revela um tom muito pró-
ximo do “modo trágico” de Meeker (1996), contrariamente ao modo cômico
das narrativas orais, como vimos no final do capítulo anterior. Fala-se muito
em pátria, em honra, em liberdade e temas correlatos. Com raras exceções,
essa poesia está para as espécies pioneiras da ecologia, que têm que ser for-
tes para conseguir seduzir outras espécies a fim de constituir a comunidade
clímax almejada, ou seja, a nação guineense.
160 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

VIII. OS PROVÉRBIOS

Gostaríamos de começar ressaltando que os provérbios são estudados


por uma disciplina chamada paremiologia. No entanto, o termo designa tam-
bém o conjunto dos provérbios de um país, como na expressão “paremiologia
guineense”, que designa tanto o conjunto dos provérbios usados na GuinéBis-
sau quanto a totalidade dos estudos que se têm feito sobre eles. Devemos sa-
lientar que paralelamente à lexicografia, que compila glossários e dicionários,
existe a paremiografia, ou seja, o ramo da paremiologia que se ocupa do regis-
tro e classificação dos provérbios (os chamados “dicionários de provérbios”).
Como sabemos, há provérbios de curso internacional, ao lado de ou-
tros de cunho apenas nacional e, até mesmo, regional. Em que pese o fato
de uma comparação dos provérbios guineenses com os portugueses (e os
brasileiros) ser de extrema importância (paremiologia comparada), o obje-
tivo aqui é falar exclusivamente dos provérbios guineenses. Nesse sentido, é
necessário estabelecer o minimum paremiológico guineense, de acordo com
a proposta do paremiólogo soviético G. L. Permiakov, ou seja, “o conjunto
básico de frases fixas” usadas pelos guineenses (Mieder, 1995). O minimum
paremiológico criouloguineense que propomos provisoriamente constituise
da lista de provérbios apresentada mais abaixo.
Segundo Kanyó (1981: 104), “não há nenhum consenso sobre que
textos podem ser considerados provérbios. Como A. M. Cirese mostrou em
um ensaio recente, há muitas diferenças não só entre as diversas definições
de provérbio, mas até mesmo entre os critérios que se usam para compilar
as coleções de provérbios”. Ele acrescenta que muitas das frases feitas que
essas coleções contêm não são provérbios. Por isso acha que o único recurso
seguro para caracterizá-los é o critério formal.
A essas alturas o(a) leitor(a) já deve estar se perguntando: “Afinal, o
que vem a ser provérbio”? No que concerne aos usuários dos provérbios,
nem mesmo a respeito do termo “provérbio” há unanimidade. Assim, já em
1908/9 o filólogo e paremiólogo brasileiro João Ribeiro usava indistinta-
mente os termos “dito”, “ditado”, “locução”, “sentença”, “provérbio”, “ane-
xim”, “adágio”, “brocardo”, “rifão”, “prolóquio”, “aforismo”, “modismo” e
“formulilhas”, entre outros. Para o autor, todos são frases feitas, como já diz
o próprio título de seu livro (Ribeiro 1960).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 161

O Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa dá as seguintes


definições, por ordem alfabética:
Adágio: “rifão; sentença moral”
Aforismo: “sentença moral breve e conceituosa; máxima”
Anexim: “rifão popular; dito sentencioso”
Apotegma: “dito sentencioso de pessoa célebre; aforismo; provérbio”
Ditado: “aquilo que se dita ou ditou para ser escrito; a escrita feita por
ditado; anexim, provérbio, adágio”
Dito: “palavra; expressão; sentença; frase; mexerico; o que se disse...”
Máxima: “axioma; sentença moral; conceito”
Provérbio: “máxima breve; anexim; rifão; desenvolvimento de rifão ou
sentença moral, em peça dramática”
Refrão: “adágio; provérbio”
Rifão: “provérbio; adágio; anexim”
Sentença: “locução que contém um princípio ou pensamento moral”

Quadro parecido se encontra nos dicionários ingleses (adage, apo-


thegm, aphorism, maxim, proverb, saying), franceses (adage, dicton, maxi-
me, proverbe) e alemães (Grundsatz, Lebensregel, Lebsatz, Lebensweisheit,
Maxime, Sprichwort, Spruch). Em crioulo só se usa o termo ditu (do portu-
guês “dito”), ao passo que no Brasil o termo popular é ditado. Provérbio só é
usado em um nível mais erudito. Os outros termos são todos desconhecidos
da grande massa do povo. De qualquer forma, o termo que se firmou entre
os paremiólogos é “provérbio”. No espanhol mexicano refrán é mais popular
(Arora, 1995; Martínez, 1995).
Reboul (s/d: 139, 142) associa provérbio a slogan e a clichê. Eles são
fórmulas culturais “cujo nome genérico poderia perfeitamente ser o de ‘pen-
samento’”. O autor chega a apresentar definições para alguns dos termos lis-
tados acima, tão frouxamente definidos pelos dicionários. Assim, para ele “o
provérbio difere do ditado mais ou menos como o slogan ideológico difere
do slogan comercial. O ditado, fórmula profissional ou receita precisa, é para
ser tomado ao pé da letra”, ao passo que “o provérbio... é mais ou menos
metafórico, aplicável portanto a situações, não idênticas, mas semelhantes
à que descreve; não é uma receita para agir, mas um preceito para pensar”.
Teresa Montenegro também afirma que “enunciados do tipo ‘a ver-
gonha é pior do que a morte’ (burguñu ma morti) ou ‘a verdade é como a
malagueta: arde’ (bardadi i suma malgeta: i ta iardi) dizem exactamente isso
162 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

e mais nada. Neles próprios está tudo dito. O provérbio, em contrapartida,


exige sempre uma segunda leitura capaz de transpor o umbral das aparên-
cias”. (Montenegro, 1994b: 40). Alhures ela afirma que “enquanto nestes
[os ditos] existem palavras abstractas que descrevem uma realidade que é a
mesma no enunciado e na situação de emprego, os provérbios são feitos de
imagens que se aplicam a duas situações diferentes: uma situação de origem,
da qual o provérbio extrai os seus exemplos, e uma situação de emprego, não
necessariamente única, correspondente a todas aquelas situações em que o
provérbio se pode aplicar com sucesso em virtude da semelhança das ima-
gens e das relações entre as imagens de uma e outra situação” (Montenegro,
1994b: 73). Mas, a própria autora ressalva que “na linguagem corrente em
português, dito e provérbio constituem designações intercambiáveis”.
Um clássico no estudo dos provérbios é André Jolles. Como especia-
lista em teoria da literatura, ele não se restringiu a essa manifestação linguís-
tica. Como se pode ver já no título de seu livro, Jolles incluiu no que chamou
de formas simples (einfache Formen), não apenas o provérbio, mas também
a lenda, a gesta, o mito, a adivinha, o caso (“cas” em francês), os memo-
rábiles (“mémorables” em francês), o conto e a piada (“Witz” em alemão e
“trait d’esprit” em francês). O provérbio é incluído no grupo dito (alemão:
“Spruch”; francês: “locution”). Como se vê, para o estudo do provérbio do
ponto de vista do conteúdo, a teoria de Jolles é um outro ponto de partida
possível. No caso, porque em crioulo temos também pelo menos as fábulas
e as adivinhas (Jolles 1930).
No estudo dos provérbios criouloguineenses, seguimos a proposta do
paremiólogo Alan Dundes, segundo o qual é necessário distinguirse o nível
do texto proverbial, o da textura e o do contexto, além do nível linguístico e
do nível lógico (para os dois últimos, cf. Kanyó, 1981). O texto consiste na
ocorrência registrada de determinado provérbio. Assim sendo, cada variante
de um provérbio seria um texto diferente. A textura (texture) é a própria
estrutura do provérbio. Por fim, o contexto abrange a situação “social e in-
teracional específica” bem como o significado e a função do provérbio (cf.
Grzybek, 1995).

Textos

Apesar de o crioulo guineense ser um dos menos estudados, a sua pare-


miologia já conta com algumas recolhas e uns poucos estudos interpretativos.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 163

Chataigner (1962) é o primeiro historicamente, tendo recolhido 76 provérbios


na região da Casamansa (sul do Senegal). Biasutti (1987) transcreve 60. Bull
(1989), por seu turno, transcreve 96, além de ser a primeira tentativa de in-
terpretação dos ditados crioulos. Montenegro (1994a, b) também representa
uma boa interpretação desta manifestação linguística do crioulo. O segundo
ensaio (Montenegro, 1994b), além de ser o estudo mais detalhado sobre a
paremiologia guineense, contém muitos exemplos, podendo ser consultado
também nesse sentido. Por fim, Andreoletti (s/d) é a mais detalhada recolha
paremiográfica crioula já publicada, contendo 466 provérbios.
A lista seguinte é uma tentativa de detectar o minimum paremiológi-
co criouloguineense. A metodologia adotada consistiu em incluir apenas os
provérbios que foram transcritos por pelo menos três dos paremiógrafos re-
cémmencionados. Não é certamente a mais correta, pois pode perfeitamente
acontecer de um provérbio muito usado ter sido transcrito por apenas um
autor. No entanto, algum princípio tinha que ser adotado. E como tudo que
temos consiste nas referidas recolhas (todas feitas por estrangeiros, exceto
Benjamim Pinto Bull), achei que não havia outra saída. De qualquer forma
isso não prejudica substancialmente o fio condutor deste capítulo, que é o de
dar um conspecto da paremiologia guineense. Além disso, de vez em quando
citamos algum provérbio que não está contido na lista.
Confrontando os provérbios transcritos por pelo menos três dos cinco
autores acima citados, chegamos a um mínimo (média) de 46, elencados a
seguir.

1. Manpatas kru ta kai, kusidu ta kai (os frutos do “mampatas” po-


dem cair crus ou cozidos)
2. Baga baga i ka ta kata iagu, ma i ta masa lama (o cupim não busca
água mas faz o seu barro)
3. Baka ku ka ten rabu Deus ku ta banal (à vaca que não tem rabo
abanaa Deus)
4. Praga di buru ka ta subi na seu (praga de burro não chega ao céu)
5. Kunbersa di magru ka ta obidu na kau di fola baka (palavra de ma-
gro não é ouvida no lugar de esfolar vacas)
6. Bu ten kujer, bu na kume ku mon (você tem colher e come com a
mão)
7. Galiña kargadu ka sibi si kamiñu i lunju (galinha carregada não
sabe se o caminho é longo)
164 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

8. Kin ku misti pis, i ta ba moja rabada na iagu (quem quer o peixe


tem que molhar o traseiro)
9. Rabu di sancu i kunpridu, ma si bu rikitil i ta sinti dur (o rabo do
macaco é comprido, mas se você o beliscar ele sente dor)
10. Kobra kuma riba tras ka ta kebra kosta (a cobra diz que virar para
trás não quebra as costas)
11. Kana seku i ka ta dobradu (cana seca não dobra)
12. Lifanti ka ta sinti si toada (o elefante não sente seu barulho)
13. Anduriña kuma i na pupu riba di kabesa di ñor deus, i ba kai riba
di si kabesa (a andorinha disse que fazia cocô na cabeça do senhor Deus e
foilhe ele cair em sua própria cabeça)
14. Kasa beju ka ta falta barata (em casa velha não faltam baratas)
15. Lifanti ka pirgisa ku si dinti (o elefante não sente o peso de seu
dente)
16. Garandis fala kuma manganas si ka hululidu i ka ta padi (os anci-
ãos dizem que o manganás não dá fruto se não for chamuscado)
17. Tudu fiu ki fiu, nunka bu ka ta fala kuma bu fiju fiu (por mais feio
que seu filho for, você nunca dirá que ele é feio)
18. Sancu ka ta jukta i fika si rabu (o macaco não pula e deixa seu rabo)
19. Si bu misti konta, bu ten ku misti liña (se você quer conta/colar
tem que querer a linha)
20. Panela fala kaleron: ka bu tisnan! (a panela disse à caldeira: não
me chamusque!)
21. Si bu misti farel, para balei (se você quer farelo prepare o balaio)
22. Mesiñu ku bu sibi kuma bu ka na pul na bu caga, ka bu pul na
caga di utru (remédio que você não põe em sua ferida, não o ponha na ferida
dos outros)
23. Bardadi i suma malgeta, i ta iardi (a verdade é como a pimenta
malagueta: arde)
24. Faka di atorna ka ta moku, i ta moladu (a faca da vingança não
fica rombuda, amola-se)
25. Fiansa ta kebra kujer di prata (confiança pode quebrar colher de
prata)
26. Po, tudu garandi ki garandi, mancadu ta durbal (por maior que
seja a árvore/pau o machado a derruba)
27. Garafa ka ta ientra na jugu di pedra (garrafa não se mete em briga
de pedras)
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 165

28. Kon kuma i ka kunsi po ku ta matal ma i kunsi kil ku ta fural uju


(o macacocão diz que não conhece o pau que o mata mas conhece o que lhe
fura o olho)
29. Bakia baka di kunankoi: sin liti, sin nata (pastorear vaca de “ku-
nankoi” pássaro : sem leite, sem nata)
30. Kabra ten korda tok i na rastal; baka mistil, ma i ka ta oja (a cabra
tem corda e até a arrasta; a vaca a quer mas não a tem)
31. Riu ka ta inci mar, mar ku ta inci riu (não é o rio que enche o mar,
é o mar que enche o rio)
32. Cuba tarda, oca kamiñu lalu (a chuva demorou a vir e quando
chegou a estrada já estava lamacenta)
33. Kacur iandadur, os o pankada (cachorro andador, osso ou por-
retada)
34. Mandadu ta frianta pe, ma i ka ta frianta korson (mandar alguém
pode descansar os pés mas não descansa o coração)
35. Lanca fundiadu ka ta gaña freti (barco fundeado não ganha frete)
36. Bolta di mundu i rabu di pumba (a volta do mundo é um rabo de
pomba)
37. Jugude ka bai fanadu, ma i kunsi uju (o abutre não fez circuncisão
mas conhece as coisas)
38. Dun di boka mas di ke dun di fraskera (quem é senhor da boca
vale mais do que tem muitas coisas)
39. Kama ku bu ka dita nel, bu ka sibi si ten dabi (cama em que você
não deita, você não sabe se tem percevejo)
40. Po pudi tarda o tarda na iagu, i ka ta bida lagartu (por mais tempo
que fique na água o pau não vira crocodilo)
41. Kuri ku kosa juju ka ta ndianta (correr e coçar o joelho não se
combinam)
42. Si bu pidi galiña di matu siti, i ta falau pa bu jubi na si kabesa, si
tene kabelu, i pa bia i tene siti (quando você pede óleo de palma à galinha da
Índia ela diz para olhar para sua cabeça: se tiver cabelo é porque tem óleo)
43. Tataruga misti baja, ma rabada ka ten (a tartaruga quer dançar
mas não tem ancas)
44. Lifanti ku nguli kuku, i fiansa na si kadera (elefante que engole
coco confia no seu cu)
45. Panga bariga ka ta kontra ku bunda largu (caganeira não dá em
quem tem cu grande)
166 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

46. Tapada altu ta tuji baka kumi fison (cerca alta impede a vaca de
comer o feijão)

É claro que a lista é provisória, que o minimum paremiológico criou-


loguineense deve conter muito mais provérbios do que esses 46. Assumimos
essa falha. Na verdade, o ideal seria trabalhar com o maximum paremiológi-
co. Ele consistiria da somatória de todos os provérbios que já foram usados
por falantes monolíngues de crioulo. Na prática, o maximum paremiológico
criouloguineense consistiria dos 466 provérbios apresentados por Andreolet-
ti (s/d) mais os que se encontram em Biasutti (1987), Bull (1989), Chataig-
ner (1962) e Montenegro (1994a, b). No entanto, o estudo do minimum já
é um bom ponto de partida, além de ser mais praticável.
Gostaria de salientar que se o minimum proposto certamente fica
aquém da realidade paremiológica guineense, o maximum correria o sério
risco de ir além dessa realidade. Poderia incluir frases feitas ou fórmulas
culturais que não chegam a ser provérbios. Pelo fato de o aspecto for-
mal do provérbio ser de importância decisiva em sua definição, às vezes
uma frase que apresenta forma semelhante à de algum provérbio pode ser
tomada por provérbio. É muito comum paráfrases de provérbios serem
percebidas como se fossem provérbios. São os pseudoprovérbios (Arora,
1995). Em Reboul (s/d) temos o slogan de uma marca de calçados “O
preço se esquece, a qualidade permanece”, que um paremiólogo tomou
por provérbio.
No caso do crioulo, as seguintes expressões dadas por Bull (1989)
como provérbios parecem não sêlo: 1) coka ku lebri (a perdiz e o coelho);
2) Sila ku Prera, dus kurpu num korson (Sila e Pereira, dois corpos em um
coração; 3) bondadi di mañoka (bondade de minhoca); 4) si N sibi ba (se eu
soubesse) e 5) jitu ka ten (não tem jeito). Para Kanyó (1981), o provérbio
deve atender à fórmula sujeitoverbocomplemento, mesmo que um ou mais
desses termos esteja elítico.
Como muito bem notaram Kanyó (1981) e Flonta (1995), entre ou-
tros, os textos proverbiais apresentam muita variação de forma. Nem sempre
o uso concreto de um provérbio por um indivíduo da comunidade linguística
o reproduz exatamente como outros já o haviam reproduzido. Casos como
o provérbio brasileiro água mole em pedra dura tanto bate até que fura, que
parece ocorrer sempre sob essa forma, nem sempre se dão. Só para dar um
exemplo, o provérbio de número cinco apresenta mais duas variantes:
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 167

5a. Fala di magru ka ta ciga na tabanka (Chataigner, 1962)


5b. Palabra di magru ka ta obidu na kau di fola baka; i ta faladu kuma
tripa ki na buska o padas di karna pa ba fasi kaldu (Andreoletti, s/d)

O que faz com que variantes diferentes formalmente sejam considera-


das ocorrências (tokens) do mesmo provérbio (type)? Flonta (1995) afirma
que é preciso procurar um “denominador comum”, “a constante” nessas
diversas ocorrências, o que pode ser feito levandose em conta não só a forma
lógica e semântica subjacente (Kanyó, 1981), mas também as “palavrascha-
ve”, que contêm o “conceitonúcleo” do provérbio. No provérbio cinco, as
palavraschave são “fala”, “magru” e “kau di fola baka”. Ademais, “fala” pode
ser substituída por “palabra” e por “kunbersa”. Nos três casos o conceito-
chave se mantém. A palavra “ciga” (do port. “chegar”) pode aparecer sob a
expressão “ta obidu” (é ouvida), ao passo que “kau di fola baka” pode ser
substituída por “tabanka” (conjunto de habitações tipicamente africanas).
Por fim, a variante registrada por Andreolettti contém um apêndice, ou seja,
i ta faladu kuma tripa ki na buska o padas di karna pa ba fasi kaldu (dizse
que procura tripa ou pedaço de carne para fazer caldo).
Uma dimensão importante incluída na caracterização do provérbio é a
do receptor. Afinal, o processo de comunicação em que ele entra não consta
só de emissor. Segundo Arora (1995), se o receptor considera o que lhe
foi dito como provérbio, já temos uma primeira evidência de que realmente
se trata de um provérbio. A aceitação do provérbio pelo ouvinte é, assim,
uma primeira prova de que ele é tradicional, de que é um discurso citado
(Bakhtin, 1981: 144154), e não uma invenção do falante. Como veremos
abaixo, juntamente com a corrência (“currency”, frequência), a tradicionali-
dade é um dos traços mais importantes do provérbio.
Embora intimamente associada ao uso, portanto pertencente ao tópico
quatro (contexto), há uma característica “textual” do provérbio que não deve
ser esquecida aqui, pois tem a ver com a roupagem sob a qual ele aparece
(texto). Tratase de fórmulas introdutórias do tipo “como diz o ditado....”
Os crioulófonos frequentemente introduzem seus ditus precedidos de frases
introdutórias como “garandis fala kuma” ou “garandis kuma” (os anciãos
dizem que...), “Kon kuma” (o macacocão diz que...), “kacur di mangu kon-
ta” (o mangusto diz que...), “bijago ta fala” (os bijagós etnia guineense
dizem...), “fula ta fala” (os fulas dizem...) (Montenegro, 1995b: 44, 59). A
autora acrescenta que “quando um provérbio crioulo é comprido, enuncia-
168 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

mse apenas as primeiras palavras ou a primeira parte do discurso proverbial,


cabendo ao interlocutor ou à assistência completá-lo, o que é uma maneira
de manifestar o seu acordo com o conteúdo do discurso proverbial”.
Talvez pelo fato de em geral ter uma longa tradição, frequentemente se
afirma que muitos textos proverbiais contêm arcaísmos. A construção tarda o
tarda do provérbio número 40 com certeza é bem antiga, remontando à tra-
dição mandinga (Montenegro, 1995b: 53), que é a língua africana que mais
peso teve na formação do crioulo. Essa construção pode aparecer também
sob a forma tarda ki tarda, que também pode ser um arcaísmo. Infelizmente
não se tem certeza sobre nada disso devido à incógnita que é a história do
crioulo (Kihm, 1994: 182185 faz uma análise sintática e semântica dessa
construção). De qualquer forma, mesmo concedendo que “arcaísmos ocor-
rem em provérbios, eles não têm nenhum papel relevante” (Kröll, 1993: 66).
Uma das características mais marcantes dos provérbios, que não têm
necessariamente a ver com sua estrutura, é sua brevidade. Alguns autores di-
zem que eles são condensados, outros falam em textos fechados ou finitos ou
em completude (textos que têm um pensamento completo). Kanyó (1981:
8081) afirma que “a finitude dos provérbios como unidades textuais é garan-
tida tanto pela entoação quanto pela estrutura gramatical e semântica”, ao
que acrescentaríamos o paralelismo (também mencionado com ênfase pelo
autor alhures), a rima, o ritmo, enfim, todas as características que o próprio
Kanyó menciona em seu livro.

Textura

O termo “texture”, proposto por Alan Dundes, visa ao aspecto estrita-


mente formal do provérbio, ou seja, sua estrutura. Em casos ideais, o provér-
bio apresenta todo um conjunto de características formais que o distinguem
dos enunciados normais (textos) da língua. Assim, o provérbio brasileiro
lembrado acima é um dístico (água mole em pedra dura/tanto bate até que
fura) constituído de dois versos alexandrinos, que rimam (dúra/fúra). Os
dois versos se apresentam paralelamente ritmados: (/água mólei/em pedra
dúraj/) paralelo a (/tánto bátei/até que fúraj/). Como se vê, o ritmo é dado
pela sequência de sílabas acentuadas e sílabas fracas. O primeiro grupo rít-
mico de cada “verso” tem a penúltima sílaba tônica (mó e dú) e a primeira
subtônica (á e pé) o morfema átono “em” não conta para o ritmo, fato que
se dá também com a sílaba inicial de “até”. O mesmo padrão acentual se
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 169

verifica no segundo grupo. Além do paralelismo fônico da rima, há também


o paralelismo semântico expresso na antonímia “móle/dúra”, paralelismo re-
forçado pela coincidência dos acentos. Até mesmo na predicação do substan-
tivo inicial de cada verso há paralelismo. Em ambos casos ela é redundante,
uma vez que a moleza é uma qualidade inerente da água e a dureza éo da
pedra. Tratase, portanto, de um recurso “poético”. Enfim, há muito mais a
dizer sobre o aspecto formal e conteudístico desse provérbio, o que fugiria
dos objetivos aqui colimados. Para mais comentários sobre o assunto, pode-
se consultar Couto (1974).
Um dos melhores estudos sobre o aspecto estritamente estrutural
dos provérbios é o de Kanyó (1981), exemplificado com provérbios ale-
mães. Ele se dedica sobretudo ao aspecto sintático, da perspectiva da gra-
mática gerativa da época, ou seja, o modelo padrão. Um dos seus objetivos
básicos era detectar a estrutura profunda dos provérbios, sobretudo o que
hoje se chama forma lógica. No final do livro, porém, ele apresenta outras
características do provérbio, como o paralelismo de traços prosódicos e fo-
nológicos, a metrificação, a rima, a aliteração, a ambiguidade e o contraste
de homônimos.
No que tange às características formais dos provérbios crioulos, elas
foram detalhadamente estudadas por Montenegro (1995b). Assim sendo,
o que vamos fazer aqui é, sobretudo (mas não só), passar em revista o que
ela fez, embora não necessariamente na ordem em que as apresentou. Em
consonância com diversos outros paremiólogos, a primeira caraterística (a
segunda de Montenegro) é o paralelismo de duas sentenças ou frases. Um
bom exemplo é o provérbio de número 36, Bolta di mundu i rabu di pumba.
Não contando o morfema “i”, que pode ser traduzido por “é”, tratase de um
dístico, cujos dois versos constam de quatro sílabas cada, se não contarmos
a sílaba átona final. Mas, há outros tipos de paralelismos como a rima (im-
perfeita embora), o ritmo e o número de palavras em cada verso. Por fim,
ambos constam da fórmula SPS (S = substantivo, P = preposição).
A segunda “fórmula consiste numa proposição única constituída por
um sujeito (S) e um verbo (V), seguidos ou não de complementos (C). O
verbo é precedido da partícula de aspecto (PA) ta e a formulação é sempre
marcada pela negação (N) ka” (Montenegro, 1995b: 46). O provérbio nú-
mero 4, Praga di buru ka ta subi na seu, é um bom exemplo. No minimum
paremiológico apresentado acima, temos pelo menos mais uns 11 exemplos.
Como veremos abaixo, o “ta” é uma forma que exprime a recorrência, a
170 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

iteratividade, verdades eternas (cf. Kröll, 1993: 67; Cândido, 1972). Na lin-
guagem da lógica isso seria representado pelo quantificador universal (∀).
“A terceira fórmula apresenta duas proposições, a primeira no condi-
cional e a segunda no imperativo, sendo aquela subordinada a esta” (p. 50),
como exemplificado pelos provérbios de número 19 e 21. Embora superficial-
mente diferentes, os provérbios que entram na quarta fórmula têm a mesma
estrutura lógica. Eles constam de “duas proposições, sendo a primeira subor-
dinada (substantiva subjetiva) à segunda (principal), cada uma delas com um
sujeito (semanticamente o mesmo) que corresponde ao homem em geral”:
kin (ku) ((quem (que)) (p.52), como no provérbio de número 8. A identidade
estrutural das duas fórmulas reside no fato de ambas se reduzirem à implica-
ção lógica, ou seja, se P, então Q. Tanto que o próprio provérbio 8 apresenta a
variante com si, na transcrição de alguns autores.
A quinta fórmula contém uma construção tipicamente crioula, pro-
vavelmente transferência do substrato africano (Montenegro, 1996b: 53).
Ela é expressa pela fórmula tudu X ki X, sendo a variante africana X o X. A
primeira, mais vernácula, pode ser vista nos provérbios de número 17 e 40.
A segunda pode ser vista na seguinte variante de 40: Po pudi tarda o tarda na
iagu, i ka ta bida lagartu (a parte que interessa está sublinhada).
O sexto tipo de texto proverbial criouloguineense se apresenta em for-
ma interrogativa, iniciandose pela expressão kal dia ku (que dia que? quan-
do?). O minimum paremiológico supra não contém nenhum exemplo, mas
poderíamos aduzir o de Montenegro (1996b: 55) Kal dia ku paja i juntadu
ku fugu si i ka kema ki misti? (quando é que a palha foi juntada ao fogo se
não é para se queimar?).
O sétimo tipo é constituído pela forma tônica do pronome de segunda
pessoa abo (você), ou o de primeira ami (eu), seguido de algo equivalente
à cópula, i (“ser” e derivados). O elenco mínimo acima tampouco contém
exemplos dessa construção, mas podemos tirar os seguintes de Montenegro
(1996b: 5556): (a) abo i rasa polon/ si bu na kai/ bu ka ta kai abo son (você
é raça de poilão, se você cair, não cai só) e (b) ami i rasa papaia/ N ka ta
durmi na bariga di algin (eu sou raça de mamão, não fico dormindo na bar-
riga de alguém). Notese que o primeiro contém rima.
O oitavo modelo de texto proverbial consta de duas sentenças numa
construção adversativa. Os provérbios de número 2, 34, 37 e 43 ilustramno.
Juntamente com a quinta fórmula, o presente modelo seria subjacentemente
derivado da forma lógica A e B (A e nãoB).
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 171

O nono e último modelo apresentado por Montenegro consta do


nome de um animal seguido de kuma (diz que), como nos exemplos 10, 13
e, talvez, o 20, embora aqui quem fala é uma panela, não um animal. Esse
tipo de texto proverbial se aproxima um pouco, se não é idêntico, ao Welle-
rism inglês que, segundo Taylor (1995) “é uma citação seguida da menção
do falante (frequentemente com seu nome) e uma alusão à cena”. Esse tipo
não passa de uma variante da segunda fórmula. Ele apenas acrescenta um
presumível autor da frase, como ocorre também com uma das variantes do
provérbio 16, ou seja, garandis fala kuma manganas si ka hululidu i ka ta
padi (os anciãos dizem que se não se chamuscar o manganás ele não parirá
= dará fruto). Como já vimos acima, tratase de fórmulas introdutórias de
provérbios. Portanto, praticamente todo e qualquer provérbio criouloguine-
ense pode ser precedido desse tipo de construção.
Nos termos de Kanyó (1981), as fórmulas de Montenegro mostram
apenas a estrutura superficial dos provérbios. Ele acha que é necessário re-
duzilas todas a fórmulas lógicosintáticas subjacentes. Isso permite verificar
“que construções não podem ser consideradas como provérbios, isto é, que
não se adequam a nenhuma fórmula de provérbio. No entanto, não é sufi-
ciente para determinar que construções são provérbios, uma vez que nem
tudo que se enquadra em uma fórmula de provérbio pode ser considerado
provérbio”. Pode tratarse de pseudoprovérbios, como vimos acima. Para ele,
o resultado da análise lógica deve “ser complementada com determinações
gramaticais, semânticas, pragmáticas e retóricopoéticas” (p. 133). É o que
ele tenta fazer na parte final de seu livro.

Contexto

Por contexto devese entender a contextualização do provérbio, ou


seja, o seu uso. Ora, como notou muito bem Teresa Montenegro, o provér-
bio não é um texto criado pelo emissor no ato de envio de sua mensagem ao
receptor (ato de comunicação), ele é sempre um discurso citado, ou seja, o
texto proverbial foi criado numa situação de comunicação anterior. O que
os membros da comunidade de fala fazem ao usar um provérbio qualquer
é repetir algo que já fora produzido antes. Daí a necessidade de distinguir
entre uma situação de origem, em que ele foi produzido pela primeira vez,
e uma situação de emprego (Montenegro, 1995b: 6976). Esta última é a do
seu uso real por um membro x da comunidade y num ato de comunicação
172 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

concreto z. Tudo que se diz do provérbio tem a ver com a relação entre as
duas situações.
Em primeiro lugar, praticamente todos os paremiólogos afirmam que
o provérbio tem um sentido metafórico, não um sentido denotativo propria-
mente dito. Ora, isso tem a ver com o significado de emprego que é atribu-
ído a ele pelo falante no ato de proferilo, ou seja, na situação de emprego.
Esse significado de emprego nunca é o mesmo que o que ele deve ter tido
na situação de origem, ou seja, o significado de origem, para retomar outra
dicotomia de Montenegro. Na situação de origem, quando foi proferido pela
primeira vez, com certeza o provérbio teve um significado denotativo. Na si-
tuação de emprego, seu significado é sempre metafórico, não propriamente
conotativo.
Para se entender isso, vejamos a música “Sentinela” de Milton Nas-
cimento, em que há um estribilho cantado por Nana Caymi, com o seguinte
conteúdo: “Meu senhor, eu não sou digna / de que visites a minha / pobre
morada. Porém se tu / o desejas, queres me visitar, / doute meu coração”.
Na verdade, esse texto não “conota” uma passagem bíblica. Pelo contrário,
ele remete diretamente (denota) a parte da liturgia da missa católica em que
o sacerdote apresenta a hóstia aos fiéis, que respondem: “Senhor, eu não
sou digno de que entreis em minha casa. Mas, dizei uma só palavra e minha
alma será salva”. Esse texto, por seu turno, remete diretamente (denota) ao
texto do evangelho em que Jesus cura o servo do centurião ver também o
momento em que Jesus ressuscita a filha de Jairo (Couto, 1983: 141150).
O último texto descreve (denota) diretamente uma situação de origem, em
que os fatos se deram concretamente. Portanto, muito do que chamamos de
“conotação” não passa de denotação indireta.
O mesmo parece poder ser dito da relação entre o significado de
origem e o significado de emprego do provérbio. Com efeito, o provérbio
é metafórico, seu significado de emprego apresenta uma relação de simi-
laridade com o de origem porque no momento em que é usado denota
uma situação (situação de emprego) que, por sua vez, denota a situação
original (situação de origem). O provérbio de número 8 descreve uma
situação original em que membros da comunidade notaram pela primeira
vez que para se obter o peixe é necessário entrar na água, o que acarreta
molhar o traseiro, e não apenas as pernas. Essa constatação pode ter sido
descrita por um dos participantes e, talvez, até mesmo repetida na hora
por outros. Com o tempo, a mesma frase foi sendo aplicada a situações
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 173

semelhantes. Daí, a possível situação de emprego apresentada por Mon-


tenegro (1995b: 71):

Um grupo de amigos está a descansar na praia e veem chegar algumas banhistas


que não conhecem. Um rapaz diz a uma das raparigas do grupo que gostaria de
conhecer uma das banhistas e que, por ser mais fácil, fale ela no seu lugar e venha
depois apresentarlha. A rapariga recusa, respondendo Si bu misti pis, bu ten ku
moja rabada.

Fica patente a similaridade existente entre o possível significado de


origem e o significado de emprego, do que decorre a metaforicidade do pro-
vérbio. Para mais contextualizações (situações de uso, atualizações) de pro-
vérbios guineenses, podese consultar Montenegro (1995a, b) e Bull (1989:
129156).
Da relação entre situação de origem e situação de emprego resulta
uma outra dimensão muito importante dos provérbios, ou seja, a dicoto-
mia tradicionalidade / corrência (currency) (Arora, 1995; Mieder, 1995).
Um provérbio será tão mais legítimo e vivo quanto mais tradição ele tiver,
ou seja, quanto mais longo for o tempo que ele vem sendo repetido. E a
repetição é diretamente a corrência. Assim, um provérbio será tão mais
vivo, reconhecível por todos os membros da comunidade de fala quanto
mais frequentemente ele for citado. Infelizmente não dispomos de dados
sobre a história dos provérbios guineenses e muito menos sobre sua fre-
quência de uso. Porém, se considerarmos entre os 46 provérbios supra os
que foram registrados historicamente primeiro (por Chataigner, publica-
dos em 1962, mas certamente recolhidos bem antes dessa data), podese
dizer que pelo menos 22 deles (como os de número 22 a 28) podem ter
uma longa tradição o que não implica que outros também não a tenham.
Ademais, a região onde foram recolhidos é a Casamansa, ao sul do Se-
negal, que desde 1886 pertence à França e que, por isso mesmo, desde
então perdeu o contato com o português. O fato de coincidirem com pro-
vérbios recolhidos na própria GuinéBissau em época mais recente parece
evidência bastante de uma provável tradição e de uma certa recorrência,
frequência de uso.
Os provérbios são tidos como representativos da sabedoria popular
sob forma condensada. E como as condições de vida do homem sobre a terra
são muito semelhantes por toda parte, frequentemente há muita equivalência
entre os provérbios de diversos povos sem que tenha havido transmissão de
174 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

uma cultura a outra. Por exemplo, os de número 14 e 23 têm um equivalente


direto em português, ou seja, em casa velha não faltam baratas e a verdade
dói. Como se vê, a equivalência se dá mais pelo conteúdo (as situações em
que podem ser usados) do que pela forma. Na verdade, formalmente só há
equivalência de itens lexicais, ou seja, de palavraschave. Isso se dá porque a
migração de provérbios de uma comunidade para outra provoca uma “ero-
são da forma” (Flonta, 1995) é bem provável que o primeiro deles seja um
empréstimo do português. Além disso, cada língua tem sua estrutura grama-
tical específica, o que já impede uma identidade formal total entre provérbios
de línguas diferentes.
Ao falar em difusão, ou melhor, em migração de provérbios de uma
comunidade para outra, parece que estamos afirmando que essa é a causa
(única) de existência de provérbios semelhantes em comunidades diferentes.
No entanto, o fato de as condições biológicas serem muito parecidas já pa-
rece sugerir a possibilidade de surgirem provérbios semelhantes em comu-
nidades diferentes, independentemente uns dos outros. Pelo menos quando
a semelhança é apenas de conteúdo isso pode ser amplamente comprovado.
Assim, o provérbio 34 diz mais ou menos o mesmo que o provérbio brasilei-
ro quem quer vai, quam não quer manda.
Sabemos que ao usar um provérbio, o falante está se desincumbin-
do da responsabilidade pelo que afirma, pondo a tradição a falar por ele
(Bakhtin, 1981; Rocha, 1995). Por isso, o verbo do provérbio crioulo fre-
quentemente aparece com o morfema ta, que denota ação repetida, habitu-
al, iterativa. Dos 46 que constituem o corpus aqui usado, apenas 14 não o
contêm. Desses 14, em pelo menos dois a ausência do ta parece se dever a
um erro do compilador (sempre estrangeiro, exceto Benjamim Pinto Bull).
É o caso dos provérbios de número 15 e 20, por exemplo, que poderiam
melhormente ser formulados como Lifanti ka ta pirgisa ku si dinti e Panela
ta fala kaleron: ka bu tisnan, respectivamente. O ta expressa o quantificador
universal, que representa as verdades universais que se pressupõe que os
provérbios expressem.
Nem mesmo quando o texto proverbial aparece sob forma de impe-
rativo (número 20) e de interrogativo, ele deixa de ter validade universal. O
minimum paremiológico supra não contém nenhuma ocorrência de inter-
rogativo, mas o provérbio Kal dia ku paja i juntadu ku fugu si i ka kema ki
misti?, dado para exemplificar o sexto tipo de texto proverbial de Montene-
gro (1995b), é um exemplo. É interessante notar que esse provérbio poderia
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 175

ser formulado também pelo modelo de ta, embora o verbo misti (< é mister,
‘querer’).
Muitas vezes se afirma que “os provérbios pertencem à retórica do
homem simples” (Kröll 1993: 66). Entretanto, nem todos os paremiólogos
aceitem essa tese. Pelo contrário, embora reconhecendo que muitos provér-
bios estão caindo em desuso, embora outros possam surgir, Mieder (1995)
defende a tese contrária, ou seja, a de que existe um mínimo de provérbios
que o indivíduo deve conhecer se quer ter um mínimo de cultura, letramento
(literacy). Na China, o uso de provérbios é tido como índice de nível social
alto e de cultura (Davis 1981).

Observações finais

O crioulo português da GuinéBissau não é a única língua crioula que


faz uso abundante de provérbios. Em todos os demais crioulos de base lexi-
cal portuguesa (Couto 1996) eles ocorrem com muita frequência. E o que
é mais, eles são comuns nos crioulos de base inglesa e francesa do Caribe
bem como nos crioulos franceses do Índico, como o crioulo francês da Ilha
Maurício e o das ilhas Seychelles. Até mesmo crioulos de outras bases le-
xicais, como o kituba e o lingala na África, os contêm (Salikoko Mufwene,
comunicação pessoal).
Está assente em crioulística que os crioulos são línguas de pouca tra-
dição, que têm sua origem em data recente. Assim, “antes de 1530 não havia
o sãotomense [crioulo português de São Tomé e Príncipe]; antes de 1650,
não havia o sranan [crioulo inglês do Suriname]; antes de 1690, não havia
o haitiano [crioulo francês do Haiti]; e antes de 1880 não havia o havaiano
[crioulo inglês do Havaí” (Bickerton, 1981: 1). O tok pisin (crioulo inglês
da Papua Nova Guiné) também surgiu por essa época. Enfim, não se co-
nhece nenhum crioulo que tenha uma vida tão longa como o português, o
espanhol ou o alemão. Todos os crioulos atualmente existentes surgiram em
data relativamente recente.
Os provérbios, ao contrário, são sempre tidos como manifestações
linguísticas com longa tradição, como vimos na categoria da tradicionalida-
de, que faz parte de sua própria definição, como já se vê no próprio fato de
serem discursos citados. Eles não foram formados apenas antes da situação
de emprego, mas muito antes, há muito tempo atrás. Isso significa que a
176 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

comunidade de fala que os contém deve ter uma longa tradição. Isso vai de
encontro ao que acabamos de ver sobre a história dos crioulos. Então, por
que uma manifestação linguística de tão longa tradição é tão comum, senão
geral, em sociedades crioulas?
Essa questão é importante porque permite discutir três das hipóteses
que se têm formulado para explicar a origem dos crioulos. De acordo com
a hipótese superstratista, eles proviriam basicamente da língua coloniza-
dora, de superstrato, chamada de lexificadora pelo fato de fornecer acima
de 80% do vocabulário crioulo. Um defensor veemente dessa hipótese é
Chaudenson (1992). Uma segunda é a hipótese substratista, que defende a
tese de que o essencial das línguas crioulas se deve às línguas de substrato,
às línguas dominadas, dos povos colonizados, como defendida por, entre
outros, Alleyne (1989). A terceira é a hipótese universalista, do bioprogra-
ma, segundo a qual a gramática das línguas crioulas se deve basicamente ao
dom biológico para a língua, apanágio do ser humano (Bickerton 1981). O
maior argumento a favor dessa hipótese é o fato de línguas tão distancia-
das histórica e geograficamente entre si como o crioulo português de São
Tomé e Príncipe e o crioulo inglês do Havaí (bem como os crioulos de base
africana e outros) terem uma estrutura muito semelhante.
Diante dessas três hipóteses, poderseia perguntar se os provérbios
crioulos proviriam basicamente da língua lexificadora (português), das de
substrato ou nascem espontaneamente (hipótese universalista). Examinando
os 46 provérbios do minimum paremiológico supra, podese dizer que ape-
nas os de número 3 e 4 são indiscutivelmente de origem portuguesa. Os de
número 20, 21, 22 e 35 talvez tenham alguma influência dessa língua, mas é
provável que outras influências sejam mais fortes. Examinando os 466 textos
proverbiais de Andreoletti (s/d), a figura parece não se alterar muito. Enfim,
a origem superstratista é muito restrita.
A formação espontânea, que estaria em consonância com a hipótese
universalista, a despeito de defendida por Barros (1900) a propósito das
fábulas, é difícil de ser testada no caso dos provérbios, embora não deva ser
excluída de antemão, diante das semelhanças de meio ambiente na face da
terra. Como é que se pode saber se um provérbio como Kobra kuma riba
tras ka ta kebra kosta (número 10) surgiu espontaneamente ou não? Afinal,
o que é “surgir espontaneamente”? O simples fato de surgir um provérbio
“espontaneamente” já não seria indício de uma certa tradição em formar
provérbios? No caso de nossa língua, parece que a falamos espontanea e na-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 177

turalmente. Porém, não devemos nos esquecer de que levamos muitos anos
para aprendê-la e que, se tivéssemos nascido em outro país poderíamos estar
falando a língua local com a mesma “naturalidade”.
Diante do que ficou dito nos dois últimos parágrafos, parece inevitável
a conclusão de que a maioria dos provérbios criouloguineenses tem suas raí-
zes na tradição oesteafricana. Sabemos que em praticamente todas as línguas
africanas os provérbios são amplamente usados. Temos dados sobre os do
mandinga e os do balanta, mas em D’Aby (1984) pode se ver que eles são
comuns em toda a Costa do Marfim. Em suma, a hipótese que parece mais
consentânea com a existência e origem dos provérbios criouloguineenses é a
substratista. Trocado em miúdos, eles seriam uma continuação da tradição
africana (Trajano Filho, 1994).
178 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

IX. AS ADIVINHAS

Introdução

De acordo com o Aurélio, o termo adivinha ou adivinhação designa


uma “brincadeira que consiste na proposição de enigmas fáceis para serem
decifrados”. Trata-se de um jogo verbal, introduzido tradicionalmente em
Portugal e no Brasil pela expressão “O que é, o que é”. Essa brincadeira
verbal já foi muito comum entre nós, embora atualmente esteja perdendo
terreno nos centros urbanos, certamente devido à televisão, que vem pa-
dronizando a cultura mundial. Felizmente, as crianças pequenas ainda se
deliciam com ela.
As adivinhas não são as únicas manifestações da literatura oral criou-
lo-guineense. Talvez até mais numerosas do que elas são as fábulas, nar-
rativas orais, comentadas no capítulo VIII. Outra manifestação da oratura
crioulo-guineense e de muitos crioulos pelo mundo afora são os provérbios
(ditus). O capítulo VIII é dedicado a eles.
O que vamos fazer neste capítulo é discutir as adivinhas usadas pelos
falantes do crioulo português da Guiné-Bissau, de uma perspectiva eco-
lógica, ou ecocrítica. Por abordagem ecológica, ou ecocrítica, entende-se,
para uma primeira aproximação, o estudo do “papel que o meio ambien-
te natural exerce sobre a imaginação de uma comunidade cultural, em
determinado momento histórico específico” (Heise 1997). Segundo com
Glotfelty (1994), “a ecocrítica é o estudo das relações entre a literatura e o
meio ambiente físico”. Por essas duas definições, já se pode entender o que
fazem os ecocríticos. De acordo com Glotfelty, que é uma das represen-
tantes mais proeminentes dessa orientação, “toda crítica ecológica com-
partilha a premissa fundamental de que a cultura humana está ligada ao
mundo físico, afetando-o e sendo afetada por ele”. Ainda de acordo com
essa autora, “a ecocrítica tem como objeto as interconexões entre nature-
za e cultura, especialmente os artefatos culturais língua e literatura”. Ela
apresenta 14 perguntas que os ecocríticos geralmente fazem. Entre elas
temos: (a) “Como a natureza está representada neste soneto”? (b) “Que
papel o cenário físico exerce sobre o enredo deste romance”? (c) “Os va-
lores expressos nesta peça teatral estão consistentes com o conhecimento
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 179

ecológico”? (d) “Como nossas metáforas sobre a terra influenciam o modo


pelo qual a tratamos”?
Todos os ecocríticos são unânimes em afirmar que essa abordagem é
holística e interdisciplinar, como toda abordagem ecológica deve ser. O que
os une não seria propriamente o corpus doutrinário propriamente dito, mas
o objeto de estudo, que é o meio ambiente. De acordo com Tag (1994), a
tarefa com que se defronta o ecocrítico “é tão gigantesca e complexa que há
uma tentação de se recolher no conforto do conhecimento especializado”.
Ainda de acordo com ele, “a língua não é inerentemente separada do mun-
do natural, como algumas teorias podem sugerir; pelo contrário, ela está
surgindo do mesmo processo evolucionário de que a própria terra surgiu”.
Alguns ecocríticos chegam a rejeitar o pressuposto de que a realida-
de é socialmente construída. Por esses e outros motivos, esses estudiosos
evitam o antropocentrismo. Na verdade, não há motivos para isso. O ser
humano é o único animal da face da terra que mata outro animal por prazer
(caça, pesca) e até mesmo um ser da mesma espécie, às vezes por motivos
fúteis. Pode acontecer até mesmo de matar o semelhante com requintes de
crueldade. O indivíduo humano pode inclusive matar a si próprio (suicídio).
Tudo isso mostraria que o ser humano não seria tão superior aos outros
seres vivos como pensa que é, sobretudo se levarmos em conta valores da
vida em um sentido mais amplo. Para mais detalhes, pode-se consultar Fill
(1993) e Couto (2007).
Antes de passar ao estudo das adivinhas crioulas propriamente di-
tas, gostaríamos de salientar que na maioria dos crioulos do mundo elas
ocorrem em profusão. Como se vê em Bavoux (1994) e Hazaël-Massieux
(1994), nos crioulos do Oceano Índico de base francesa elas ocorrem em
grande quantidade. Ainda no âmbito dos crioulos franceses, sabemos que as
adivinhas ocorrem até mesmo na variedade do crioulo da Guiana Francesa
falada no estado do Amapá, o karipuna, no vale do rio Uaçá. A despeito de
ser falada por um grupo de ameríndios, essa tradição tipicamente crioula
e africana é bastante frequente entre eles (Forte et al. 1983; Tobler 1983).
Günther (1973) mostra que as adivinhas são bastante usuais no
crioulo português da Ilha de Príncipe, onde são conhecidas sob o nome de
pyada. Essa ilha faz um país com a Ilha de São Tomé. O autor transcreve 61
exemplos, acompanhados de tradução e uma pequena interpretação, ambas
em alemão. No crioulo minoritário de São Tomé, chamado angolar (o majo-
ritário é o próprio são-tomense), elas também ocorrem, como nos informou
180 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Gerardo Lorenzino (comunicação pessoal), que publicou um livro sobre a


língua. Ele nos forneceu sete adivinhas, colhidas ao vivo.
Bem mais próximo do guineense, temos o crioulo caboverdiano. Já
em 1880, Francisco Adolfo Coelho apresentara 15 adivinhas, reproduzidas
em Coelho (1880/1882/1886: 12-15). É interessante notar que 8 delas têm
equivalentes no guineense, uma delas justamente a que dá título à coletânea
N sta li, N sta la. O equivalente caboverdiano é Mi li, mi lá, ambas referindo-
se a “sentido, idéia, pensamento”. No mesmo volume, também Paula Brito
(1967: 396-398) reproduz 20 adivinhas caboverdianas. No entanto, apenas
três coincidem com adivinhas guineenses, sendo uma delas justamente a que
acaba de ser citada.

As adivinhas crioulo-guineenses

Tivemos contato direto com as adivinhas crioulas na Guiné-Bissau,


tendo inclusive gravado algumas contadas ao vivo. Mas, vamos partir de
um corpus já publicado por dois estudiosos do assunto. Um deles é Teresa
Montenegro, chilena que vive na Guiné-Bissau há muitos anos pesquisando
sua língua e cultura, em parceria com o guineense Carlos Morais. O trabalho
deles está, anonimamente, em N sta li, N sta la (Bolama 1979), coletânea
de 55 adivinhas acompanhadas de comentário e crítica. Bal (1980) contém
45 adivinhas coletadas na Casamansa. Bull (1989: 175-183), guineense,
reproduz 36 adivinhas, sendo que 19 delas estão também em N sta li, N sta
la. Como a obra anterior, também Bull apresenta um comentário que se po-
deria chamar de ecocrítico avant la lettre, como se verá mais abaixo. O fato é
que partimos de um corpus total de 74 adivinhas. Chataigner (1963) dedica
três parágrafos às adivinhas da variedade senegalesa do crioulo, falada na
Casamansa. Ele as inclui no mesmo contexto dos provérbios e das fábulas.
Mas, quem fez uma das primeiras tentativas de interpretação é a incansável
Teresa Montenegro (1996).
O fato de partir de um corpus publicado não significa que nossos
dados não apresentem problemas. Primeiro, todas as 17 adivinhas que se
encontram nas duas coletâneas estão verbalizadas diferentemente em cada
uma delas. Por exemplo, “Pratinhu inci os” (um pratinho cheio de ossos),
de N sta li, N sta la, em Bull está reproduzida como “Kabás inci os / Boka
ku dinti” (uma cabaça cheia de ossos / a boca e os dentes). Segundo, gran-
de parte das adivinhas de N sta li, N sta la é apresentada em mais de uma
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 181

versão. É o caso da de número 3, “N tene dus rapás; e ta durmi na un kasa


ma e ka kunsi uN utru / uju” (lit.: eu tenho dois rapazes; eles dormem na
mesma casa, mas não conhecem um ao outro / olhos). Nada menos do que
três versões diferentes dessa adivinha são apresentadas: (i) “N tene dus fiju;
e ka ta oja uN utru” (eu tenho dois filhos; eles não vêem um ao outro), (ii)
“N tene dus rapa siñu pertu di utru senpri, ma e ka ta toka utru” (lit.: eu te-
nho dois garotos perto um do outro, mas eles não tocam um no outro), (iii)
“N tene un kasa bunitu ku janela bunitu, ku ta iabri i fica sin ningin ka bulil”
(lit.: eu tenho uma casa bonita com janelas bonitas que se abrem e fecham
sem que ninguém as toque).
O motivo para essa variação de forma é que as adivinhas são dinâmi-
cas, podendo ser enriquecidas por quem lança o desafio ao interlocutor. A
cada vez que se lança uma adivinha já conhecida, o proponente pode acres-
centar sua marca pessoal, adaptando-a ao meio ambiente espácio-temporal
e social em que ele e o interlocutor se encontram.
Geralmente, o jogo de adivinhação é praticado “à noite, em volta de
um fogo, ou ao luar”, momento em “que as crianças e os menos jovens se
reúnem para escutar as adivinhas da boca de um garandi - um ancião” (Bull
1989: 180). Se as nossas começam pelo “O que é, o que é...”, as guineenses
são sempre lançadas pela fórmula introdutória Dibinha, dibinha (adivinha,
adivinha). Para que a interação “adivinhadora” tenha continuidade, o ou-
vinte (ou os ouvintes), tem que responder Dibinha sertu (adivinha sim, com
certeza). Só depois disso é que o proponente da adivinha a lança para ser
respondida pelo interlocutor. Um de nós pôde sentir a importância desse
ritual inicial quando coletava dados para estudar a língua crioula. Pediu a
um dos presentes que contasse uma adivinha. Ele se prontificou na hora,
dizendo Dibinha, dibinha. Como o pesquisador (Hildo Couto) não conhecia
as regras do jogo, não retrucou com o esperado Dibinha sertu. O informante
ficou calado, esperando a resposta. Nisso um dos presentes respondeu pelo
pesquisador, com o que o jogo pôde ter continuidade.

As adivinhas e o meio ambiente africano-guineense

Já vimos que a Guiné-Bissau é um pequeno país oeste-africano de ape-


nas 36.126km e uma população de um milhão e 500 mil habitantes. Nesse
universo são faladas mais de 15 línguas. Para complicar as coisas, o país se
encontra em uma dupla encruzilhada. Do ponto de vista geoclimático, ele se
182 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

encontra na transição do deserto para as savanas e florestas. Do ponto de


vista sócio-histórico, constitui uma mescla de duas tradições, para não dizer
três. A primeira é a realidade original africana. A segunda, a realidade trazida
pela colonização europeia. Uma possível terceira realidade é a islâmica que, de
certa forma, sempre conviveu com as lídimas tradições africanas.
É importante acrescentar que, a despeito de estar às portas do deserto,
a Guiné-Bissau se localiza na região do norte da África que dispõe de mais
recursos hídricos. Além de rios, há braços do mar que adentram a terra por
quilômetros e quilômetros. Há relativamente muita floresta, terra boa para
cultivo, muitos animais. Portanto, é um ecossistema bastante propício para
uma vida simples, porém sem grandes problemas. Mas, pela discussão que
subseguirá, poder-se-á ver que não é bem o que acontece. A cada dia que
passa, o povo se vê mais depauperado, a fome domina grandes contingentes
da população, certas zonas dos centros urbanos parecem ruínas, pelo de-
curso do tempo, mas também pela guerra, como é o caso da capital, Bissau.
A tradição africana ancestral consta de uma perfeita sintonia com o
meio ambiente. Tanto que a crença mais disseminada é o animismo, a adora-
ção a fenômenos da natureza, dos quais dependemos para sobreviver. Mas,
o advento do islamismo começou a perturbar esse equilíbrio ecológico, que
só não foi maior porque foi muito bem assimilado pelos africanos. Hoje em
dia, grande parte das etnias locais (mandingas, fulas e outras) está plena-
mente islamizada. O que perturbou definitivamente o equilíbrio das relações
entre humanos, outros animais e natureza física foi o advento dos europeus,
no caso os portugueses, embora os africanos tenham conseguido tirar desse
encontro o meio-termo, a mescla linguística que é o crioulo (Couto 1994).
É nesse meio ambiente que se inserem as adivinhas. Observemos as
de (1) e (2).

(1) N tene un bajuda brabu, ma si kusiña sabi / Bagera ku mel ‘Eu


tenho uma moça arisca, mas que cozinha muito bem / Abelha e mel’
(2) I ta leba kumida, ma i ka ta kume-l / kujer ‘Ela leva leva comida,
mas não a come / colher’

Em (1) e (2) já se pode ver um dos temas mais recorrentes na litera-


tura oral guineense e, consequentemente, nas adivinhas, o ato de comer. Em
(2) ele aparece sob a forma kumida, e em (1) sob a forma verbal mesmo.
Para se ter uma idéia de sua importância na ecologia local, gostaria de notar
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 183

que apenas nas 36 adivinhas de Bull (1989), a palavra ocorreu 6 vezes sob a
forma kume ‘comer’, 2 vezes sob a forma ñeme ‘comer’ e 2 vezes sob a for-
ma kumida. Isso perfaz um total de 10 ocorrências. Nenhum outro radical
verbal chegou sequer à casa das quatro ocorrências. Na ecologia guineense,
o ato de comer é um dos mais salientes.
Além das 10 palavras ligadas ao radical “comer”, há muitas outras
do mesmo campo semântico. Algumas delas são kujer ‘colher’, arus ‘arroz’,
bobra ‘abóbora’, mandioka ‘mandioca’, liti ‘leite’, mankara ‘amendoim’, mel
e sal. Além disso, ocorrem termos relacionados com a produção de alimento,
tais como ansol ‘anzol’, bulaña ‘alagado para se plantar arroz’, lala ‘para
arroz de sequeiro’. Ao lado deles temos bibi ‘beber’, farta ‘fartar-se’ e kusiña
‘cozinhar’. É um ambiente em que predomina claramente a questão fome/
alimentação.
Vejamos a adivinha (3), que também tangencia a questão.

(3) N tene un bulaña garandi; N labra nel manga di arus. Oca ku N


bin korta ki arus, i ka ta inci mon / kabelu
‘Eu tenho uma bolanha grande, na qual plantei arroz. Quando colhi o
arroz, ele não encheu uma mão / cabelo’

O arroz é a principal fonte de alimentação dos guineenses. Não é de


admirar que em (3) apareça parte do processo de produção desse alimento:
a bolanha, ou seja, o alagadiço. A outra é o arroz de sequeiro (lala). Deve-se
observar também que a bolanha é “garandi” e que nela se produz “manga
di” (muito) arroz. No entanto, o resultado é decepcionante, pois, quando
ele chega ao consumidor “i ka ta inci mon”, não enche uma mão. Aí está,
subjacente, o problema central, a escassez de alimento.
A despeito de a região ser uma das mais bem aquinhoadas de água em
toda a região, sempre há longas estiagens. Por isso, o tema “água” é outra
constante, em todas as manifestações da oralidade crioulo-guineense. A adi-
vinha Maria di pe kunpridu / cuba ‘Maria de pés longos / chuva’ bem reflete
isso. A chuva é tratada como membro da família (Maria), mas que não é
como a maioria dos familiares, pois tem “pe kunpridu.”
Outras temáticas constantes são animais domésticos, tais como baka
‘vaca’, purku ‘porco’ e kacur ‘cachorro’, e selvagens, como bagera ‘abelha’,
karanga ‘piolho’, lagartisa ‘lagartixa’ e lifanti ‘elefante’. Poder-se-ia alegar que
gado bovino não é uma realidade nativa da região e que o elefante já não
184 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

existe lá há muitos anos. A presença do gado se deve, assim como as várias


ocorrências de expressões cristãs, ao influxo da cultura europeia. A do elefante
simplesmente mostra que as manifestações verbais em que ele ocorre têm uma
longa tradição que, na verdade, se estende por toda a África. Por outras pala-
vras, ele aparece nas tradições locais muitos anos após seu desaparecimento.
Além do mais, como diz Alleyne (1989), a África toda parece ter uma única
cultura, sobretudo quando a contrapomos à cultura europeia.
Montenegro (1996), que é um dos poucos ensaios dedicados exclu-
sivamente às adivinhas guineenses, acrescenta mais algumas adivinhas às já
publicadas nas duas coletâneas mencionadas acima. Quatro delas têm a ver
com a reprodução. Ei-las:

(4) Fonti bas di paja ‘fonte debaixo de folhagem’


(5) N tene un po di mandioka, N ta kaskal son na kabesa ‘eu tenho um
pé de mandioca, eu o descasco só na cabeça’
(6) Tris kuri bas di cuba; un son ientra i moja, ki dus ki fika fora e ka
moja ‘três fugiram da chuva; um entrou e molhou-se, os dois que ficaram
fora não se molharam’
(7) N tene un laranja, ma ningin ka pudi kumel; son gintis di fora ki
pudi kumel ‘eu tenho uma laranja, mas ninguém pode comê-la; só os de fora
podem comê-la’

A adivinha (4) exige como resposta “vagina”; a (5), o pênis; a (6), o


ato de penetração, em que os dois testículos ficam de fora. A adivinha (7) é
uma manifestação da interdição do incesto. Segundo Montenegro, a respos-
ta para ela é ña fiju femia ‘minha filha’ e ña ermon femia ‘minha irmã’. Se
alguém achar que se trata de obscenidade, ao ler as adivinhas crioulo-fran-
cesas do Oceano Índico (Bavoux 1994) ficará mais escandalizado ainda. De
qualquer forma, na tradição africana isso é tratado com mais naturalidade
do que em nossa cultura.
Montenegro (1996) contém diversas outras adivinhas, além de co-
mentários interpretativos. Gostaríamos de comentar mais uma, dado seu ca-
ráter claramente ecológico. Ela está reproduzida em (8).

(8) N tene un kasa garandi; i ten tetu, ma i ka ten firkija / seu ‘eu
tenho uma casa grande, que tem teto, mas não tem esteios (“forquilha”) /
abóbada celeste’.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 185

Essa adivinha demonstra que os falantes de crioulo têm uma visão


mais ampla do ecossistema em que estão inseridos. A casa dos organismos
vivos é a própria terra e seu envoltório, o que lembraria a Hipótese de Gaia,
de James Lovelock.
Como disse Teresa Montenegro, “No mundo das adivinhas tudo é per-
mitido. Sem pedir licença, pedras, rapazes, bombolons e formigas entram e
saem uns nos outros, uns dos outros, numa troca de papéis que não ameaça
deter-se e está sempre a começar. A natureza mete-se no corpo das pessoas
e desloca-se através dele à vontade, os objectos têm fôlego de pecador [= ser
humano]. A abelha é uma rapariga que está sempre a cozinhar um mesmo
prato delicioso, todo o formigueiro bate palmas cada vez que alguém passa,
o rosto é uma casa com janelas nos olhos e estes costumam ser amigos; mas
nem sempre - às vezes dormem na mesma casa sem se conhecer”. Alhures,
a autora afirma que “a adivinha veicula normalmente, numa forma leve e su-
gestiva, conhecimentos que correspondem às necessidades da vida no meio
em que circulam”, para “dar-lhe o sentido exacto no confronto com a reali-
dade”. Enfim, “as situações e imagens mais correntes nestas adivinhas dizem
respeito à vida e ao trabalho das pessoas no campo” (Montenegro e Morais,
1979b). Trata-se de um verdadeiro comentário ecocrítico avant la lettre.
O que tudo isso mostra é que, no contexto de uma visão ecológica,
ecocrítica, do mundo não é muito apropriado partir-se da linguagem e bus-
car na realidade aquilo a que ela se refere. Pelo contrário, parte-se do meio
ambiente e se procura o que dele existe na linguagem, sobretudo por meio
do léxico. Não é a linguagem que cria a realidade; é a realidade que se pro-
jeta na linguagem. Por isso, a maior parte das palavras são substantivos, nos
quais se projetam os seres (organismos) do meio ambiente. Os verbos vêm
em segundo lugar, em termos estatísticos, uma vez que neles se projetam as
relações que se dão entre os seres/organismos. A ecologia nos ensina que
as relações entre os organismos de um ecossistema podem ser harmônicas
ou desarmônicas. Ambas podem ser constatadas nas adivinhas guineenses,
inclusive nas que foram transcritas acima.

Adivinhas como interação comunicativa

Em uma sociedade, seres em simbiose necessariamente entram em


interações intraespecíficas, que podem ser harmônicas (cooperação) ou de-
sarmônicas (competição). No caso das manifestações da oratura crioulo-
186 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

guineense, interessam apenas as relações harmônicas. Isso vale ainda mais


para as adivinhas. Bull (1989) mostrou que, à noite, os jovens se sentam
em torno do fogareiro com os anciãos para ouvir deles as adivinhas. Esse
simples ato já revela que estão em comunhão, no sentido proposto original-
mente por Malinowski (1972), ampliado por Jakobson (1969) e por Couto
(2002).
De acordo com o ecolinguista Alwin Fill, há basicamente dois usos
da fala. O primeiro ele chama de zweckgebundenes Sprechen, que traduzi-
mos por fala teleológica. Trata-se de fala para solicitar informações, para dar
informações, para dar ordens e assim por diante. Como já diz a expressão
alemã, ela está ligada a uma finalidade. O enunciado do emissor leva algu-
ma novidade para o receptor. O segundo é o que chama de bandstiftendes
Sprechen, que significa aproximadamente “o falar que estabelece vínculos”.
Traduzimo-lo por fala comunial, em sintonia com a proposta de comunhão
recém-mencionada. Ainda de acordo com Fill, a maior parte dos atos de
fala que se dão em sociedade são do segundo tipo, ou seja, visam pura e
simplesmente a manter o grupo de interlocutores em comunhão (Fill 1993:
32-38). Como diz Jakobson a respeito da função fática, ela visa a estabelecer
o canal de comunicação, mantê-lo e encerrá-lo, independentemente do que
se comunica. Independentemente até mesmo de se comunica algo ou não.
O jogo da adivinha é justamente isso. Sua única função é reafirmar
a comunhão entre os participantes, mostrar que estão em harmonia, que
compartilham as condições biológicas da mesma biocenose, por estarem na
mesma casa que é a mãe terra (Gaia, Geia ou Gê). Não importa que tipo de
palavras se usem. O importante é que se relacionam fenômenos ou ações do
meio ambiente com fatos da vida humana, não importando se há racionali-
dade ou não nessa transposição. A única função dessa manifestação verbal é
fática, comunial, o que significa reafirmar laços sociais de solidariedade e de
identidade. No entanto, isso não impede que tudo que entra nas adivinhas
seja tirado dos meios ambientes natural, mental e social a que os atores per-
tencem, como se pode ver em Couto (2007).
O jogo da adivinha é interessante do ponto de vista da própria inter-
locução, ou seja, do diálogo. Mais do que qualquer outra manifestação da
oratura guineense, como o provérbio e a fábula. No caso dos dois últimos,
geralmente o interlocutor se mantém passivo, apenas ouvindo o que o locu-
tor tem a lhe dizer. No jogo da adivinha, o ouvinte participa ativamente desde
o momento da proposição inicial. Como já vimos, primeiro o emissor pro-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 187

põe a adivinha pela fórmula “dibinha, dibinha”. A seguir, o receptor retruca


“dibinha sertu”, com o que o emissor lança o enigma para ser solucionado.
Se o interlocutor der a resposta certa, seguir-se-á um congraçamento, uma
confraternização, uma comemoração sob a forma de risadas. Tudo isso tem
a ver com comunhão. Mas, se a resposta não for a esperada, pode acontecer
de o lançador da adivinha fornecê-la ele próprio ou até mesmo de um outro
circunstante fazê-lo. Isso prolongaria a fruição do momento de comunhão.
Não sabemos se o(a) leitor(a) percebeu um problema na afirmação de
que o “receptor retruca”. Sabemos que receptor recebe, ouve. Quem fala é
emissor. Por isso, temos que retornar a Couto (2002: 17-20), em que tentou
mostrar graficamente como se dá o fluxo interlocional, ou dialógico. Nesse
gráfico fica mais claro o que cada um dos participantes do jogo da adivinha
faz, ou seja, como cada um deles toma o seu turno.

F1-----------------> O1 (dibinha, dibinha!)


i i
O2<-----------------F2 (anuência: dibinha certu)
i i
F3-----------------> O3 (cabás intchi os)
i i
O4<-----------------F4 (resposta: boca cu dinti)
i i
F5-----------------> O5 (confirmação do acerto ou não)
i i

congraçamento, confraternização, risadas


(comunhão)

o gráfico, pode-se ver o papel de cada participante no fluxo interlocucional.


Em um primeiro momento, o emissor ou falante (F) propõe a adivinha, e o
receptor ou ouvinte (O) a recebe. Nesse momento, o ouvinte passa a exercer
o papel de F, só que F de nível 2, ou seja, F2, ao passo que quem tinha sido
falante no primeiro nível, passa a ser ouvinte, de nível 2, ou seja, O2. E assim
sucessivamente, até o desfecho final do jogo ou do diálogo.
Uma outra vantagem da representação gráfica supra é que deixa bem
claro que a adivinha é um ato de interação comunicativa, embora um ato de
interação comunicativa sui generis. Não se trata de uma sequência de per-
188 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

guntas e respostas, no sentido da fala teleológica, mas de um falar por falar,


não importando o conteúdo do que se fala, uma vez que se trata de fala co-
munial. O que interessa é que a adivinha se sobressai entre as manifestações
da literatura oral guineense (e africana em geral) pelo fato de, como elas, ter
por objetivo reafirmar laços de solidariedade comunial, mas, diferentemente
delas, por envolver o interlocutor ativamente. Talvez seja por isso que são
justamente as crianças que gostam mais do jogo da adivinhação, isto é, por
ser ele claramente de natureza lúdica.

Observações finais

É importante observar que a base de tudo é a terra, no sentido de


globo terrestre, como ecossistema maior, visão contemplada pela adivinha
(8). Nesse ecossistema global, temos que procurar ecossistemas menores,
como o guineense, por exemplo. É o espaço, o território (que serve como
habitat para as diversas espécies de animais) que permite a convivência entre
membros de cada uma delas. Nesse meio ambiente, todos os seres vivos têm
direito à vida. Não existe a priori superioridade de nenhum deles sobre os
demais.
A visão ecológica do mundo é holística e de longo prazo. Pelo holismo,
fica claro que não é legítimo mantermos o antropocentrismo. Afinal, nós de-
pendemos de muitas outras espécies vivas, tanto plantas como animais. Sem
elas nós próprios podemos desaparecer. Pela visão de longo prazo, somos
levados a ver que devemos preservar o máximo de espécies vivas possíveis,
não agredir a natureza. Do contrário, estaremos criando buracos no casco
do barco em que singramos o mar da vida. A existência de relações desarmô-
nicas é inevitável. No entanto, devemos procurar sempre a harmonia com a
natureza, mesmo porque não temos outra alternativa. Os resultados virão de
qualquer modo, quer queiramos quer não.
Não é correto afirmar que é preciso proteger a natureza, atitude que,
em si mesma, já revela antropocentrismo. Ela não precisa de nossa proteção,
uma vez seguirá seu curso conosco ou sem nós. A verdade é que não de-
vemos destruir no meio ambiente aquilo que é fonte de nossa subsistência,
embora o estejamos fazendo em uma atitude suicida. Enfim, a natureza irá
sempre em frente. Pelo menos por enquanto, está em nossas mãos a decisão
de seguir com ela (permanecer nela). Do contrário, desaparecemos como
espécie.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 189

As adivinhas crioulo-guineenses mostram esse inter-relacionamento


entre seres e meio ambiente de modo exemplar. O que é mais, um relacio-
namento muito mais harmonioso do que o que a civilização capitalista oci-
dental tem com ele. A perturbação foi levada ao ecossistema guineense, em
particular, e ao africano, em geral, justamente pela expansão desse sistema
capitalista. O que havia antes de sua chegada era uma perfeita harmonia
entre organismos e meio ambiente. Justamente por isso o jogo de adivi-
nhas tende a desaparecer da ecologia guineense, no bojo da globalização,
juntamente com tudo que representa a cultura legitimamente africana. O
problema é que para os africanos sobram apenas migalhas, quando não pura
e simplesmente miséria e lixo. De qualquer forma, a vida continua. Como o
africano em geral é um seguidor da filosofia do carpe diem (Alleyne 1989)
valoriza muito atividades lúdicas. A brincadeira da adivinhação é uma delas.
Tudo isso porque a vida continua.
190 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

X. A ANTROPONÍMIA

Certa feita, uma professora do Centro de Estudos Brasileiros de Bis-


sau notou que era comum os alunos não responderem à chamada com o
esperado “presente”, mesmo estando presentes. Quando ela perguntava por
que não respondiam, diziam que não tinham sido chamados. Na verdade,
ela os chamara pelo nome oficial, aquele que consta nos documentos. O pro-
blema é que eles eram conhecidos na comunidade só pelo que, entre nós, é
denominado apelido. Isso mostra que os nomes que valem efetivamente nas
tabancas (bairros tipicamente africanos, aldeias etc.) são esses apelidos, não
os nomes oficiais, geralmente portugueses.
Existe uma espécie de clássico da antroponímia da Guiné-Bissau,
ou seja, Carreira; Quintino (1964), que será citado mais abaixo. Couto
(2000) já tratou de questões antroponímicas guineenses, sobretudo a
hipocorística, embora de uma perspectiva eminentemente formal. A fina-
lidade era examinar a estrutura fonológica dos hipocorísticos que, como
veremos, são basicamente dissílabos e, em geral, com sílaba simples do
tipo CV (consoante + vogal), lembrando a linguagem infantil. Aliás, isso
parece ser uma tendência geral nas línguas do mundo. No português, por
exemplo, poderíamos dar exemplos como os seguintes, entre inúmeros
outros:

Cacá < Carlos, Caco < Carlos, Dudu < Edu < Eduardo, Isa <Isa-
bel/Isabela, Bia < Beatriz, Jô < Joana, Bela < Isabela, Nanda < Fernanda,
Bel < Isabel, Tonho < Antônio, Zé < José, Chico < Francisco

A maior parte desses hipocorísticos foi tirada de Ilari (1984). Couto


(1986/1987) é um estudo dos apelidos, inclusive os hipocorísticos, da cida-
de mineira de Cláudio.
O objetivo deste capítulo é fazer uma análise da antroponímia guine-
ense, com ênfase nos apelidos, nos quais se incluem os hipocorísticos. Por
apelido entende-se aqui todo e qualquer nome que se dê às pessoas no con-
texto familiar, escolar, nas confrarias ou em quaisquer outras associações de
pessoas. A título de ilustração inicial, vejamos uma pequena lista de apelidos
crioulo-guineenses.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 191

Abel Jassi (Amílcar Cabral), Nino Vieira (João Bernardo Vieira), Tony
Tcheka (Antônio Soares Lopes Jr.), Tony Davyes (Antônio Maria Davyes)

Esses quatro exemplos podem dar a impressão de que se trataria sem-


pre de compostos. Não é bem assim. Na verdade, os apelidos simples pare-
cem ser bem mais numerosos. A seguir, adiantamos alguns deles.

Baifás (= “vai depressa”), Bedja (= “velha”), Abokubin (= “tu que


vieste”), Ndjetadu (=”rejeitado, enjeitado”), Media (= “meio dia”), Kum-
pridu (= “comprido, alto e magro”)

Como se vê, eles são semanticamente transparentes, geralmente revelan-


do o sentimento ou desejo dos pais ou, mais frequentemente da mãe, quando a
criança nasce. Do contrário, são designações metafóricas ou metonímicas. Mas,
há outros tipos de apelidos no país, inteiramente aleatórios, como, por exemplo,
os seguintes, em que o nome oficial vem entre parênteses.

Atchutchi (Adriano Gomes Ferreira), Manó (Daniela Pereira), Kôte


(Norberto Tavares de Carvalho), Sakala (Agnello Augusto Regalla), Sandor
(Armando Salvaterra), Justen (Justino Nunes Monteiro), Talas (Tomás So-
ares Paquete)

Esses apelidos lembram muito os hipocorísticos, como os exemplifica-


dos acima com o português. Com isso, já podemos antecipar que hipocorís-
tico é aquela subclasse dos apelidos que é tirada do nome próprio da pessoa,
o mais das vezes da sílaba tônica, mas não só, às vezes reduplicada, como
nos três primeiros exemplos de hipocorísticos brasileiros. Os apelidos que
acabam de ser dados não estão nesse caso. Aliás, seria interessante notar que
todos esses nomes são de conhecidos escritores guineenses.
No que segue, vamos falar, primeiro, dos nomes oficiais. Em segundo
lugar, falamos dos apelidos propriamente ditos, ou seja, aqueles que não são
tirados do nome próprio. Em terceiro lugar, discutimos os hipocorísticos.
Os nomes oficiais são usados mais pelo segmento mais escolariza-
do da população. Entre eles, podemos citar Marcelino Marques de Barros
(1844-1929), citado na bibliografia, Honório Pereira Barreto (1813-1859) e
João Bernardo Vieira (ex-presidente da república). Como se vê, são nomes
inteiramente portugueses, quando não pelo fato de se tratar de pessoas da
192 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

elite intelectual, formada pelos colonizadores e, portanto, nomeados na lín-


gua portuguesa. Isso já nos levaria à conclusão de que esse tipo de nome não
está inteiramente em sintonia com as tradições africanas, mesmo quando
filtradas pela cultura crioula. Vejamos mais alguns exemplos.

Desejado Lima da Costa, Domingas Barbosa Mendes Samy, Filinto


Carlos Aires dos Reis Pereira, Marília Amarílis Carlota Uchoa de Lima, José
Francisco Xavier Fonseca de Castro Fernandes

Trata-se de nomes muito longos, até mesmo para padrões lusitanos, em


que nomes longos têm a ver com uma antiga tradição nobiliárquica. O último
desses quatro nomes, por exemplo, é quilométrico: ele contém seis partes,
além da preposição. Seria excessivamente longo até mesmo em Portugal, em
que podemos encontrar nomes como “Maria Lúcia Monteiro Sales da Silva”,
por exemplo. Provavelmente essa é uma das razões para a proliferação de ape-
lidos/hipocorísticos no país, ou seja, o uso de apelidos em geral, e de hipoco-
rísticos em especial, evita o emprego desses longos nomes. O penúltimo nome
tem o apelido substituto Lotinha; o último, Zeca ou Ciaca. O primeiro nome
nem é tão longo assim; o que ele tem de curioso é o prenome Desejado, em-
bora isso possa ocorrer no Brasil também. Porém, podemos encontrar nomes
curtos, como os seguintes:

Afonso da Silva, Ivete Monteiro, Silvestre Alves, Pedro Fernandes, Er-


nesto de Carvalho

Todos os nomes oficiais mencionados até aqui são inteiramente portu-


gueses. No entanto, talvez como um decalque da tradição portuguesa, exis-
tem também nomes compostos formados inteiramente de elementos étnicos.
Isso parece acontecer principalmente após as guerras de independência, de-
vido a um sentimento de nacionalismo. Vejamos cinco exemplos:

Mamadú Mané, Iaia Camará, Efe Cá, Caramó Sanussi Cassamá, Ma-
madú Djule Djaló

Pelos mesmos motivos, e talvez refletindo o caráter híbrido da cultura


crioula, existe uma outra possibilidade, que são os nomes mistos, constituí-
dos de um componente português e outro étnico e/ou crioulo. É importante
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 193

ressaltar que na época colonial quem não tivesse o primeiro prenome portu-
guês não podia ir à escola. Era uma das exigências para ser considerado “ci-
vilizado”. Daí a utilização de prenomes portugueses, muitas vezes seguidos
de um segundo da etnia.

Armando Sanca, Victor Mandinga, Jorge Ampa, Joãozinho Yalá, Dio-


nísio Cabi

O terceiro desses nomes, Jorge Ampa, merece um comentário à parte.


Na verdade, o nome completo original era Jorge António da Costa. Como o
próprio portador do nome nos informou, após a independência da Guiné-
Bissau, ele adotou o nome Jorge Ampa Cumelerbo, mantendo do original
português apenas o “Jorge”. Mesmo assim, ele sempre assinou seus textos
como Jorge Ampa, como professor, jornalista e escritor que era, tendo pu-
blicado um artigo sobre os “nomi de kasa”, ou seja, apelidos (Ampa 1991).
Há também nomes mistos envolvendo outras línguas, sobretudo ára-
be, além dos mistos de línguas étnicas, ao lado de outros inteiramente de
outras línguas.

Helzimann M. da Cunha, Vladimira Alves Pereira, Bubácar Djaló,


Ibrahima Camará, Hélder Proença, Iussuf Sanhá, José Carlos Schwarcz,
Pascoal D’Artagnan Aurigemma, Fafali Koudawao

A frequência de uso desses nomes é a mais variada possível. De uma


pequena amostra de 115 nomes, obtivemos as seguintes estatísticas:

Nomes só portugueses: 58
Nomes só étnicos: 30
Nomes mistos: 20
Nomes estrangeiros: 7

Os nomes mais interessantes na Guiné-Bissau são os apelidos, em


crioulo geralmente conhecidos como nomi di kasa (o “s” é sempre surdo,
como no espanhol), literalmente, nome de casa, embora haja outras designa-
ções conforme o contexto em que eles sejam usados. É o caso dos nomi de
torosa, literalmente “nome de troça”, galhofa) e dos nomi de mandjuandadi.
Vejamos uma pequena lista de nomi di kasa, ou seja, apelidos, alguns deles
194 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

encontráveis em Ampa (1991), outros coletados por nós (alguns já foram


mencionados acima).

Abel Jassi = Amílcar Cabral (líder das Guerras de Libertação), Ali


Babá = autor de uma carta publicada no jornal Nô Pintcha, Tchiku Té =
Francisco Mendes, Nino Vieira = João Bernardo Vieira (presidente da re-
pública várias vezes), Tony Davyes = Antônio Maria Davyes (escritor), Tony
Tcheka = Antônio Soares Lopes Jr. (escritor)

Todos os exemplos são compostos. No entanto, há apelidos constitu-


ídos de um único nome. Nesse caso, geralmente se trata de hipocorísticos,
como definidos acima. A seguir, temos uma lista de exemplos.

Kadi = Antônia Kadidjatu Alves, Lito = Carlos Lopes (via Carlito),


Filó = Filomena Miranda, Tetê = Teresa Montenegro, Tino = Florentino
João Lopes Nhaca, Lotinha = Marília Amarílis Carlota Ucha Lima, Djoca =
Joaquim Silva Tavares (Djokin > Djoca), Dino = Ricardino Jacinto Dumas
Teixeira, Caíto = João Carlos Freitas de Barros (via Carlito), Sidó = Sidónio
Pais

Para alguns apelidos/hipocorísticos de nosso corpus, não dispomos do


nome completo correspondente. No entanto, o princípio de formação deles
é aproximadamente o mesmo dos imediatamente anteriores.

Tchiku (<Chico) = Francisco, Didi = Pedro, Dudu = Pedro, Djodje


= Jorge, Kin = Joaquim, Lalau = Ladislau

Os dois últimos grupos lembram a tradição portuguesa de se forma-


rem hipocorísticos. Do ponto de vista da mudança fonética, alguns são de
difícil explicação, como é o caso de Didi, embora sempre se possa imaginar
uma derivação via Pedrinho > Pedinho. Partindo daí, teríamos uma evolução
normal, ou seja, tomando-se a sílaba tônica e reduplicadando-a. Quanto a
Kin, ocorreu também sob as variantes Kinkin e Kinzinhu.
Alguns apelidos/hipocorísticos são curiosos, uma vez que têm a ver
com partes de algum componente do nome completo. No entanto, é difícil
estabelecer uma regra fonética de derivação, como nos demais casos mos-
trados até aqui e no que vem logo depois.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 195

Petras = Pedro Mendes, José Bacar = José Carlos Cocamáro, Maio


Coopé = Mário Silva, Mário Djibol = Mário Silva Suculuma Barbosa, Nú
Barreto = Manuel Barreto da Costa
Como se vê, Petras parecer ser derivado mais da forma latina de que
provém Pedro, ou seja, “petra” (pedra). José Bacar toma o primeiro nome,
José, na íntegra, seguido de apenas a primeira sílaba do segundo. Maio
Coopé parte do primeiro componente do nome completo, enfraquecendo
a consoante medial, mediante uma semivocalização. Quanto a “Coopé”
é abreviação de “Cooperante”, tanto que ele é conhecido também domo
Maio Cooperante. Mário Djibol também resulta da adjunção de um nome
arbitrário (Djibol) ao primeiro componente (Mário). Em Nú Barreto temos
um processo semelhante ao de Maio Coopé, ou seja, alteração no primeiro
componente do nome completo. A diferença está em que o segundo com-
ponente do apelido (Barreto) aparece como existe no português padrão,
não alterado.
Alguns apelidos são formados de partes de mais de um dos compo-
nentes do nome completo, em geral a primeira sílaba. No entanto, pode-se
formá-los combinando outras partes desses componentes. A seguir, temos
alguns exemplos.

Aldença = Alberto Dença, Budja = Bubacar Djaló, Cabar = Car-


los Barroso, Cadogo = Carlos Domingos Gomes, Carbar = Carlos Alberto
Teixeira de Barros, Nifeco = Nicolau Ferreira da Costa, SKA = Samper
Katomuar

Isso não é gratuito. Os guineenses apreciam bastante esse tipo de


abreviação. Na verdade, esses nomes lembram as siglas que, em outros con-
textos, sobretudo no âmbito administrativo e comercial, ocorrem em grande
quantidade.

CICER = Companhia Nacional de Cervejas e Refrigerantes


INDE = Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação
INEP = Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Jovale = João Mota + Valdir Medina + Leopoldo Amado (grupo lite-
rário de 1979)
Ku Si Mon = Fafali Koudawao + Abdulai Silá + Teresa Montenegro
(nome de editora)
196 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

SOCOTRAM = Sociedade Comercial de Transformação da Madeira


UNAE = União Nacional de Artistas e Escritores da Guiné-Bissau

As siglas são tão comuns no país que Jean-Michel Massa incluiu várias
dezenas delas em seu Dictionnaire bilingue portugais-français Guinée-Bissau
vol. I (Rennes: GDR 817 - EDPAL / UHB, 1996). Quando conversamos
com os guineenses, temos a impressão de que eles consideram essas abre-
viações como verdadeiras palavras, o que daria uma certa razão a Massa.
Voltando aos apelidos propriamente ditos, existem também aqueles
que parecem hipocorísticos na forma fonológica, mas que não são tirados
do nome próprio, portanto, não são hipocorísticos propriamente ditos.

Kote = Norberto Tavares Carvalho, Huco = João José Silva Mon-


teiro (var.: Huco Monteiro), Itchiana = Maria Marques Ribeiro, Pantcho
= Rui Borges, Didinho = Fernando Casimiro, Beto = Carlos Vaz, Tundu
= Adriano Fonseca, Sandor = Armando Salvaterra, Tchuda = Herculano
Costa, Ticha = António Aly Silva, Samaty = Diamantino Barbosa Monteiro,
Lilison = Januário Tomás Sousa Cordeiro, Yachine = Bacar Banora, Cancan
= António Oscar Barbosa

Como já foi avançado acima, existem ainda os nomi di torosa, entre


outros. Entre os alinhados por Jorge Ampa (1991), contam-se os seguintes
(infelizmente, não temos nomes de manjuandade):

Manomi = vítima de uma difamação (< mau nome), Kumpridu =


pessoa muito alta e magra (< comprido), Nkurbadu = corcunda (<encur-
vado), Rapá Garandi = jovem muito alto (< rapaz grande), Seku-Seku =
magricela (seco+seco)

Já vimos que não é incomum os pais darem nomes aos filhos de acor-
do com as circunstâncias de seu nascimento e/ou revelando o que sentem
diante do nascimento ou, então, nomes que revelem alguma característica
da criança. Isso pode dar-se em qualquer tipo de apelido crioulo-guineense,
quer seja nomi de kassa, nomi de torosa ou não. Eis alguns exemplos, com a
explicação da razão de seu surgimento:
Matempu = nascido em “mau tempo”, Media = nascido ao “meio
dia”, Mortu = a morte (criança que não se quer que morra), Muridu =
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 197

morto (criança que já deveria estar morta, “morrida”, por ser indesejada),
Ndingui = estou sozinho (filho único), Nhelém = arroz miúdo (criança
muito miúda), Npanta = estou espantada (a mãe fica assim porque já era
velha e não esperava mais filho), Bimparbai = veio para ir (criança que veio
mas deve partir, por não ser desejada), Sinta = sente-se (fique quieto, não
vá embora [=morra] como seus irmãos), Ntonabin = eu tornei a vir (um
filho havia morrido, mas naceu outro)

Uma explicação que se dá para “Mortu” é que se destina a evitar


que o filho morra. Em geral se trata de filhos de pais que perdem sempre
os filhos.
Nesse tipo de nome, vale a pena ressaltar os que revelam o dia da se-
mana em que nasceram.

Sábadu = nascido em um sábado, Sugunda = nascido em uma se-


gunda-feira, Dimingu = nascido em um domingo, Domingas = idem, Kinta
= nascido em uma quinta-feira

São todos eles nomes muito comuns na sociedade guineense. É bem


verdade que Domingos (Dimingu) ocorre também na tradição de língua
portuguesa, o que não acontece com os demais dias da semana. Nunca ouvi-
mos falar em alguém chamado “Segunda-Feira” ou “Quinta-Feira”, embora
a possibilidade não possa ser de todo excluída no Brasil, em que qualquer
combinação de fonemas pode ser usada para se dar nome às crianças. No
entanto, os nomes mais estrambóticos refletem idiossincrasias individuais,
não são parte da tradição antroponímica do país.
Todos os apelidos, nomis di kasa, nomes de guerra ou pseudônimos
vistos até aqui são, comunitariamente, substitutos dos nomes próprios, ou
melhor dizendo, dos nomes completos. Pode acontecer também de indivídu-
os serem conhecidos apenas por apelido que, nesse caso, seria o seu nome
próprio na comunidade. Nesse caso, há uma coincidência entre apelido e
nome próprio, embora, mesmo os chamados apelidos em geral são nomes
próprios na comunidade. A seguir, temos três exemplos, além dos da penúl-
tima lista.

Sakalá, Inó, Abokubin, Kanssala


198 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Nesse contexto, seria interessante lembrar o que disse a escritora


Odete Semedo. Ela informa que “na maioria dos grupos étnicos guineenses
a preocupação ou curiosidade é maior em relação ao sexo da criança, por-
que, no que respeita ao nome do recém-nascido, as circunstâncias em que o
bebé nascer, a relação entre os pais da criança, a relação da mãe da criança
com as suas rivais – em caso dos casamentos políginos –, a relação dos pais
com a comunidade, é que ditam o nome.” Acrescenta que “na etnia mandin-
ga, a uma criança desejada, muitas vezes é posto o nome de Meta ‘aquele(a)
que é esperado(a) há muito tempo’”.
Ainda entre os mandingas, acrescenta a autora, “a criança de cuja
saúde todos duvidam porque a mãe teve uma gravidez difícil, mas que no
entanto nasceu de boa saúde – e se se surpreender a mãe a olhar longamente
para o filho nos primeiros momentos de vida deste –, pode vir a chamar-se
Ntinhina, ‘estou a ver, mas não acredito no que vejo’”.
Semedo diz ainda que, entre os balantas, “por vezes, há contradições
entre os habitantes de uma aldeia, mas embora de cunho doméstico, muitas
vezes dão origem a graves conflitos. Quando uma das pessoas envolvidas
numa dessas desavenças vier a ter bebé, à criança pode chamar-se Busnas-
sum ‘deixem-me em paz/parem de falar de mim’ ou ainda Midana ‘não leve
em conta/ releve/jogue tudo para o alto’”. “Quando os pais, sobretudo o pai
da criança, aspiram a que o filho venha a reinar, ou, ainda, quando os pais
pertencem a uma família da linhagem nobre, ao filho pode ser posto o nome
de Nassin ‘chefe da aldeia’”.
Em circunstâncias diferentes desta última, mas em que, com orgulho,
os pais do recém-nascido entendem que a vinda da criança trouxe harmonia
em casa e na tabanca, o nome pode eventualmente ser Bufétar ‘amigo/ca-
marada’, na etnia manjaco”.
“Já na etnia mancanha”, continua Semedo, “quando se espera um
futuro melhor tanto para a criança recém-nascida como para toda a al-
deia, o nome adoptado pode ser Ulilé “há-de melhorar/há-de ser bom”.
Odete Semedo conclui afirmando que “os nomes acabam sendo parte da
vida da comunidade e das pessoas que nela vivem. Cada membro da co-
munidade acaba sendo, através do seu nome, portador de mensagens das
contradições, das amizades, dos desejos e das aspirações de que é feita a
convivência entre as pessoas duma comunidade. Por isso, “a nossa relação
com a vida, o espaço em que essa relação decorre, tudo e todos quantos,
em interacção connosco, aí vivem, passam e deixam rastos, acabam por
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 199

ser a nossa poesia, o nosso desabafo triste ou alegre” (Semedo 2006).


Um dos primeiros autores a estudar esse assunto especificamente na lín-
gua crioula foi o filólogo guineense Benjamim Pinto Bull. Grande parte
dos apelidos mencionados acima foram tirados de sua obra. Podería-
mos acrescentar diversos outros. Assim, Ndingi, literalmente “estou so-
zinho”. O nome revela o desejo dos pais que não querem ter só um filho.
O nome Kujidu, ou seja, “(re)colhido”, refere-se a criança abandonada
pela mãe ainda recém-nascida e que é recolhida por alguém, que lhe põe
esse nome. Às vezes, a criança encontrada nessas condições pode receber
também o nome de Kondon, “sozinho no mundo” (Bull 1989: 158-159).
Sobre esse assunto, pode-se consultar também o texto de Ampa (1991).
Gostaríamos de retomar pelo menos em parte o estudo sobre a estru-
tura fonológica dos hipocorísticos, uma vez que ela nos ajuda a entender sua
frequência no país bem como sua universalidade. Como foi demonstrado
por Roman Jakobson, a sílaba ótima é CV, “o único modelo silábico univer-
sal”, sobretudo quando combina uma consoante labial (p,b,m) com a vogal
/a/ (Jakobson 1967: 132-133).
A consequência natural desses achados de Jakobson é que, do ponto
de vista fonológico, a palavra ótima, menos marcada, ou seja, universal, é
a que resulta da reduplicação da sílaba CV, redundando na configuração
silábica CV.CV. Para o português, poderíamos mencionar palavras do baby
talk como “naná” (dormir), “papá” (comer), “xixi” (urina) e outras. Até na
linguagem normal, coloquial, podemos encontrar dissílabos simples como
esses, como “pa.pa”, “ca.co”, “pa.po” etc.
De um levantamento estatístico com 100 apelidos guineenses, no que
se refere ao número de sílabas, os resultados foram os seguintes:

apelidos quantidade
Dissílabos 60
Trissílabos 20
Monossílabos 9
Tetrassílabos 8
Pentassílabos 3

Como se vê, os hipocorísticos e/ou apelidos crioulo-guineenses com


duas sílabas perfazem mais da metade do total. À medida que o número de
sílabas vai aumentando, diminui proporcionalmente o número de ocorrên-
200 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

cia. A tal ponto que os pentassílabos foram apenas 3 do total. É interessante


notar que essas proporções se mantêm no vocabulário geral da língua criou-
la. Assim, de um total de 961 palavras, obtivemos estatísticas paralelas às
dos hipocorísticos.

palavras comuns quantidade porcentagem
Dissílabos 489 56,72%
Trissílabos 206 23,89%
Monossílabos 111 12,87%
Tetrassílabos 43 4,98%
Pentassílabos 9 1,04%
Hexassílabos 4 0,46%

Tudo isso mostra mais uma vez que a tendência geral na língua, a pa-
lavra ótima (minimal word) é a dissilábica, sobretudo quando há uma única
consoante antes da vogal. Isso pode ser visto no quadro abaixo, que mostra
que quanto mais consoantes as sílabas tiverem, menos frequente é o tipo de
palavra que as contém.

tipo de sílaba quantidade porcentagem


Monossílabos 111 12,87%
CV.CV 34 56,66%
CVC.CV 7 11,66%
CVC.CVC 7 11,66%
CV.CVC 5 8,33%
V.CV 2 3,33%

O número de formas dissilábicas com o padrão prosódico CV.CV


(com as duas sílabas simples) perfaz mais da metade do total, ou seja, 56%.
Em seguida, vêm os padrões em que a primeira e/ou a segunda sílaba é/são
mais complexa/s do que CV. Como o número total é relativamente pequeno,
não se podem tirar conclusões definitivas com base nelas. No entanto, o
mais importante é o fato de as tendências se manterem nelas, com pequenas
variações.
Uma outra constatação interessante é a de que, se a complexificação
do padrão silábico é inevitável, que seja apenas em uma da sílabas. Se ambas
forem complexas, o vocábulo é mais raro ainda, fato que a escassez de dados
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 201

não revela. Nos apelidos não houve nenhum caso de mais de uma consoante
antes da vogal. No vocabulário geral guineense, porém, eles ocorrem com
muita frequência, como nas palavras pratu (prato), prasa (praça), padri (pa-
dre) etc. Como mostrou a teoria fonológica, a posição antes da vogal não
conta para a prosódia da palavra.
Em uma análise mais microscópica, nota-se que de 34 padrões CV.CV
(dissílabos) guineenses, 8 (23,52%) têm a mesma vogal nas duas sílabas,
como em Didi e Tetê. Por outras palavras, pelo menos um quarto desse
padrão constitui-se de sílaba reduplicada, em consonância com as consta-
tações de Jakobson mencionadas acima. Sílabas mais complexas também se
reduplicam, como Jonjon (< João) e Kinkin (< Joaquim), formas nas quais
há uma consoante nasal após a vogal. Há também casos de reduplicações
parciais, tais como Lalau (<Ladislau), em que, além da sílaba reduplicada
(la.la), há um apêndice (-u). Pode acontecer também de apenas a consoante
se reduplicar, como é o caso de Joje (Jorge) e Nino. Por fim, há apelidos em
que apenas a vogal se reduplica, como em Duku.
Tanto nos hipocorísticos quanto no vocabulário geral guineense, se
uma palavra tem três sílabas, ou mais, ela deve ser preferencialmente a sílaba
ótima, não-marcada, simples (CV), como em Lotiña e Kadogo e Sakala,
embora no vocabulário geral guineense o padrão CVC.CVC.CV tenha ul-
trapassado de um o padrão CV.CV.CVC, fato que pode ser casual e que,
portanto, talvez possa ser revertido se contarmos todas as palavras da língua.
Hipocorísticos tetrassilábicos no guineense são sempre resultado da
reduplicação de um dissílabo. No texto de Jorge Ampa, mencionado acima,
temos, entre outros, Noiba-Noibu, reduplicação de “noiva”); Seku-Seku, de
Seku, “seco”, no sentido de magro. Outra possibilidade são os compostos de
dois dissílabos (Dona-Kasa, Abel-Jasi). A única exceção que encontramos é
Iciana, cujo esquema silábico é V.CV.V.CV.
Tudo que acaba de ser dito sobre as estratégias crioulas de dar nome na
Guiné-Bissau é uma continuação da tradição africana. Baseados em um in-
quérito realizado em 1945, entre os grupos étnicos do país, António Carreira
e Fernando Quintino publicaram o volumoso livro aqui citado como Carreira
& Quintino (1964). Eles informam que o número de antropônimos recolhidos
foi de 9.516. Os bijagós foram os mais contemplados na pesquisa. Informam
ainda que 179 dos nomes eram de povos islamizados, portanto, de origem árabe
(mandinga 62; fula 61; nalu 38; banhum 8; balanta-mane 6; beafada 2; cassanga
2). Entre os nomes temos: a) Abdulai (< Abdallah ou Abdel), com as variantes
202 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Abdu, Abdul, Abudu, Adu; b) Alfá (<Al-fahim ‘o sábio, sagaz’); c) Ali (< Aly);
d) Amadu (< Ahmed, Mammad ou Mohammed) e as variantes Amadi, Dudu,
Mã, Mama, Mamadi, Mama-adjã, Mamadu, Mama-ndim, Môdi, MOdi-bô,
Môdu, Môri; e) Ansumane (< Amina ~ Amine ~Ami); f) Bàkar (Abu-Bakr),
com as variantes Kàkari, Bôkar, Bôkardê, Bubakar, Bukar, Bukari; g) Braima (<
Ibrahim), variante Ibraima; h) Djibril (< Jabril ‘Gabriel’); i) Fatumata (Fathma,
filha do profeta); Maimuna (< Lemun ‘limão’ ou Mariama + Mun ou Muna);
j) Mariama (< Miriem ou Myriam ou Yama).
Todos os grupos animistas dão nomes de acordo com as circuns-
tâncias de nascimento da criança ou, então, de acordo com características
físicas. Quem nascia com “cabeça grande” podia ser chamado de Ukom
(felupe), Kampuka (pepel), Monku (balanta), Kotompó (bijagó). Uma pes-
soa de “olhos grandes” poderia ser Mekêsse (manjaco), Nkotésse (pepel).
Era comum haver nomes diferentes para homens e mulheres. Assim, em
Bijagó havia, para homens, Lôta ‘beiço comprido’, Kotonô ‘beiçolas’, Mômo
‘barbudo’ e Niberiá ‘orelhas quebradas’. Como nomes femininos tínhamos
Emuná ‘queixo grosso’, Kampui ‘boca larga’, Kumôpó ‘boca torta’, Néssamê
‘queixo chato’, Pissé ‘nariz achatado’.
Havia nomes tirados do português também. Em manjaco Djôssim é
adaptação de Joãozinho’’; Gassipar de ‘Gaspar’; Kalmente, ‘Clemente’ e
Mendi de ‘Mendes’. Os que mais adotavam nomes portugueses eram os
manjacos e os brames. Os povos islamizados (mandingas, fulas etc.) tinham
uma resistência muito grande a adotá-los. Como era de se esperar, entre eles
predominam, no caso de nomes estrangeiros, nomes de origem árabe.
A pesquisa revelou também que havia algumas estratégias para se
adotarem sobrenomes. Entre algumas etnias, podem ocorrer nomes clâ-
nicos que desempenham a função de sobrenome e até de patronímico,
como entre os pepéis. Por exemplo, Nsumba Kumba indica que Nsumba
é filho de Kumba, ou da morança de Kumba. Às vezes, são os apelidos
que exercem essa função, como em Betunga Siuli, ou seja, o Betunga que
tem orelhas grandes (Siuli), entre os brames. É muito comum também os
nomes étnicos serem usados como sobrenomes, como ocorre com amerín-
dios brasileiros, a exemplo dos conhecidos Mário Juruna e Marcos Terena,
entre outros.
Outra estratégia bastante usual para se formarem sobrenomes é o uso
do nome de famílias nobres, fidalgas, como os nomes dos régulos. Assim, e
para nos atermos apenas aos que ocorrem na literatura atual, temos Baldé
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 203

(fula, nalu), Embaló (fula), Djaló (fula), Mane (mandinga), Kamará (man-
dinga, balanda-mane, nalu), Silá (jakanka, sarakolé, mandinga), Sissoko
(fula?), Dabó (mandinga, nalu), Djassi (mandinga, banhun, nalu).
Se um sobrenome não for suficiente, acrescenta-se o nome do chefe
da morança. Entre os bijagós, registrou-se Tchufa Embunde Embana, que
quer dizer Tchufa, filho de Embune, morador da morança de Embana. Se
um quarto nome se fizer necessário, pode-se usar o nome do povoado. No
caso, temos Tchufa Embunde Embana Gã-Djola, ou seja, o Tchufa Embune
Embana do povoado de Gã-Djola. No caso, gã equivale aproximadamente
a “terra dos”, tendo sido adotada no crioulo como Tchon (< chão, terra),
como em Tchon di Pepel, bairro de Bissau.
Existe ainda o que Carreira & Quintino (1964: 407, 408) chamaram
de “nomes de guerra”, aproximadamente o nosso pseudônimo, que se tor-
naram mais usados no último quartel do século XIX, devido ao desenvol-
vimento econômico. Entendia-se como nome de guerra “o nome que em
certas circunstâncias aparece [...] substituindo o nome próprio”. Diferente-
mente do apelido, “é o próprio titular quem o escolhe, para melhor se iden-
tificar em determinado meio e, em alguns casos, para se elevar no conceito
dos demais”. Acrescentam que “os nomes de guerra são, portanto, os nomes
em uso nos locais de trabalho, adoptados pelos estivadores, pelos tripulan-
tes de embarcações de cabotagem e pelos serventes dos operários em obras
de construção civil. Não substituem os seus nomes tradicionais, senão nas
relações contraídas em ambiente de trabalho, ou mesmo nas relações com a
actividade desenvolvida nos centros urbanos”.
A maior parte dos nomes de guerra é portuguesa: Abílio Lopes, Agos-
tinho Sá, José de Almeida, Pedro Costa. Outros, mistos: Alberto Cá, Francis-
co Nanque, Paulo Nhaga. Outra alternativa é a combinação de nome portu-
guês com nome de etnia: Agostinho Papel, António Balanta, Barbosa Papel.
Nome étnico mais sobrenome português: Ochoco Sá, Papel da Silva, Sanca
Mendonça.
Algumas das fontes de inspiração para esses “nomes de guerra” po-
diam ser nomes de firmas comerciais, de personalidades, de navios da frota
mercante portuguesa e de topônimos. Entre os últimos, poderíamos mencio-
nar António Bandê, António Biombo, António Prábis e António Belém.
Na cultura da Guiné-Bissau, os homônimos (xarás) se consideram
sujeitos ao mesmo destino. Acontecendo algum mal a um deles, o outro
frequentemente muda de nome. Isso é o que se tem chamado de magia da
204 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

palavra, ou seja, a crença de que a presença do nome presentifica a coisa,


e vice-versa. Nome e coisa seriam uma unidade (cf. Pagliaro 1983). Não é
para menos que os nomes sejam tão importantes na cultura local. Eles emer-
gem do próprio contexto da situação, do meio ambiente em que são usados.
Há uma perfeita sintonia entre cultura local e nomes próprios. Não é por
acaso que os nomes portugueses sejam mais numerosos apenas na elite. O
grosso da população, sobretudo a que não tem contato com a cultura portu-
guesa, usa sempre nomes criados nos moldes vistos acima.
Enfim, a esmagadora maioria dos nomes legitimamente crioulos, e
africanos, mostra algo que a pesquisa feita em 1945 por Carreira e Quitino
já havia constatado: os nomes crioulos são claramente uma continuação da
tradição étnico-africana de nomear as pessoas. Como disse Trajano Filho
(1994), a cultura crioula é uma continuação da cultura africana. É a cultura
africana marcada pela presença do colonizador europeu, mas é basicamente
africana.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 205

XI. OUTRAS MANIFESTAÇÕES DA CULTURA


GUINEENSE

Há muitas outras manifestações da cultura guineense às quais não foi


possível dedicar um capítulo inteiro. Algumas delas têm a ver diretamente
com o que está dito nos capítulos anteriores sobre literatura oral e literatu-
ra propriamente dita. É o caso principalmente das revistas em quadrinhos
(bandas desenhadas), do teatro e do cinema, diretamente, mas também da
música, das manjuandades, dos gãs, do tchur e dos rumores, indiretamente.
Obviamente, não é possível cobrir todo o leque de manifestações culturais
guineenses. Vamos fazer uma breve resenha apenas daquelas que mais cha-
maram nossa atenção. Quem quiser se aprofundar no assunto pode começar
pela literatura mencionada aqui e na Bibliografia. Passemos às revistas em
quadrinho.

Revistas em quadrinho

Chamadas localmente de “bandas desenhadas”, as revistas em quadri-


nho começaram a aparecer no início da década de 80, sobretudo median-
te o trabalho dos irmãos Júlio (Fernando e Manuel), Humberto Gonçalo e
Malamba Sissé. Como sói acontecer com as canções, essa produção escrita
sai basicamente em crioulo. Pelo menos no início, os artistas produziam suas
obras de modo artesanal (mimeografadas) e as comercializam eles mesmos ou
mediante vendedores de feiras. O grande mérito deles é terem iniciado o que
se poderia chamar literatura crioula, como veremos logo a seguir. Como diz
Augel (1998: 48), Fernando Júlio fala do “eterno confronto entre a brutalidade
e a estupidez de um lado e a astúcia e a inteligência do outro, como antigamen-
te entre a hiena e o coelho, o que está representado nas suas personagens de
3 Nkurbados”. Os nomes dessas três personagens já evoca o ridículo, ou seja,
Ataia Ju, Bafatoriu e Sapu Fora. Manuel Júlio criou a personagem Ntori Palan
na década de 80, personagem que se tornou muito popular na Guiné-Bissau.
Trata-se de um anti-herói, que usa a astúcia para se sair bem. Sobre Ntori
Palan, há um detalhado comentário em Bull (1989: 121-128).
Como disseram Alain Kihm e Jean-Louis Rougé (3 Nkurbados, Soron-
da 14, p. 127-136, 1992), as “bandas desenhadas”, apesar de escritas por
206 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

pessoas cultas, conhecedoras da cultura portuguesa, também são legítimas


manifestações de uma possível literatura crioulo-guineense. “Embora popu-
lares, estas obras não o são no sentido naïf”. “Os seus autores não pertencem
de facto ao povo”, além de o desenho ser de origem europeia. Mas esse é
o dilema de toda manifestação crioula, ou seja, essa ambiguidade, essa me-
diação entre duas culturas. Como se vê, apenas a forma externa é europeia
(ou influenciada pela cultura europeia). A forma interna, ou seja, o conteúdo
é claramente africano. Isso significa que os temas, as tramas, os problemas
humanos tratados são todos do quotidiano guineense (e africano). Tanto
assim que evocam o conto oral tradicional. Por isso, os autores afirmam que
“não seria exagerado afirmar que começaram a criar uma literatura”, mesmo
que o veículo seja um crioulo aportuguesado. Enfim, “trata-se do primeiro
esboço de prosa literária kriol que lemos nestas obras”.

Teatro e cinema

Ao falar do teatro, Rosa (1993) afirma que “esta forma de expressão


ainda é praticamente inexistente”. Acrescenta, porém, que algo do que se
pode chamar de represtação teatral já existe, e existia antes da chegada dos
colonizadores, como os rituais fúnebres, de casamento, as manjuandades
e a atividade dos djidius (jograis). Rosa continua afirmando que até início
da década de 90, surgiram pelo menos 5 grupos teatrais, um deles dirigi-
do pela brasileira Teresa Costa. Na década de 30, Henrique de Oliveira
patrocinava apresentações na Casa Gouveia (depois Armazéns do Povo).
António José Flamengo apresentou comédias e outras peças leves com a
companhia Revista Africana de Fantasia e Crítica Social, também em casas
comerciais. Havia também encenação de peças infantis por missionários,
além de outras para a juventude, ligadas à fascista Mocidade Portuguesa.
Na passagem dos anos 50 para os 60, Porfírio Costa (Alansó) ousou de-
safiar o governo fascista português, tendo ele e seus companheiros, como
João Forbes, sido perseguidos pela PIDE. Em meados da década de 60,
Paulo Santi fez algumas apresentações na aldeia Morés por ocasião da vi-
sita de Luis Cabral, primeiro presidente da Guiné-Bissau independente, e
da de Amílcar Cabral. Vicente Poungoura Mendes fez apresentações para
crianças no Senegal, sob supervisão de Lucete Cabral, na altura esposa de
Luis Cabral. Por volta de 1969, um grupo de jovens ligados ao já formado
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 207

PAIGC que começou a sobressair-se apresentou-se em Conakry, diante de


Sékou Touré e de Miriam Makeba. No final da década de 70, foi represen-
tada em Bolama e nas Ilhas Bijagós a peça A velha de Acoco, com grande
participação da audiência.
Após a independência (1974), foi criada uma escola de música, um
grupo de balé e uma escola de arte. Em princípio, essas iniciativas deveriam
ser impulsionadoras de um teatro guineense. Com efeito, foi criado o Gru-
po Teatro Nacional Okinka Pampa, com exibições inclusive no exterior, e
o Grupo Teatral de Bafatá (1977), por um missionário católico. O grupo
Afrocid, da brasileira Teresa Costa, encenou peças como Milô, Chassô e
África liberdade.
O maior nome do teatro guineense é certamente Carlos Vaz, drama-
turgo, ator e diretor. Ele criou o grupo Teatro Popular Guineense em 1980.
Apesar da falta de apoios das autoridades competentes, o teatro tem
vindo nos últimos anos a ganhar uma maior dinâmica com a criação de vá-
rios outros grupos um pouco por todo o país. Em 1989, foi criado o Teatro
Estudo Africano, além do Teatro Radiofônico. Há também o Grupo Teatral
Bantabá, da Ilha de Bubaque. Em 1997 surgiu outro grupo, Kampu Kinti,
que não se solidificou. O fato é que sempre surgiram aqui e ali grupos inte-
ressados em atividades teatrais de que citamos também: Voz da Guiné, Te-
atro Lanta, Grupo Amizade (de S. Domingos), Irmãos Unidos (do Gabú),
Teatro dos Oprimidos, Ussoforal, Teatro Experimental de Bissau, Netos
do Bandim, Netos da Amizade, Teatro Escolar do Liceu Nacional Kwame
N’Krumah e Brigada Cultural Estudantil.
Com uma projeção internacional, destacamos ainda a companhia de
teatro “Os Fidalgos”, em cena desde 2002. Com várias peças encenadas, de
que salientamos O lutador, Era uma vez em África, Barta Ba, Balada, a com-
panhia teve reconhecimento internacional com a peça Namanha Macbunhe
que, retratando a história da ascensão e queda de um guerreiro, é uma adap-
tação africana da peça  Macbeth de William Shakespeare. Com encenação
de Andrzej Kowalski, colaborador da Cena Lusófona, foi apresentada em
2007 no Teatro da Trindade em Lisboa, com grande sucesso.  
Geralmente, as apresentações têm apenas esboços escritos, quase não
se publicam os textos. Enntre os não publicados, estão os de Jorge Cabral,
que escreveu pelo menos três peças em crioulo, que permanecem inéditas.
O incansável Carlos Vaz, “único teatrólogo do país” na palavras de Augel
(1998: 391) e conhecido como Beto, estudou artes cênicas em Portugal.
208 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Seu trabalho de final de curso virou o livro Para um conhecimento do teatro


africano (Lisboa: Ulmeiro, 1978). Vaz escreveu pelo menos cinco peças. São
elas: a) No odja dja manga di kusa n’e mundu (já vimos muitas coisas neste
mundo), monólogo representado pelo próprio autor em 1980; b) Si kusa
muri, kusa ku matal (1981), por sinal um provérbio que aparece também
sob a forma “Si dukut muri, dakat ku matal” (Se uma coisa morreu, outra
coisa a matou), encenada pelo grupo Wi-ka, e que trata dos desmandos po-
líticos e da corrupção; c) Sufridur ka ta padi fidalgu (1981) é uma forma ne-
gativa do provérvio “Sufridur ta padi fidalgu” (o sofrimento nos enobrece);
d) Tempu ka ten di pera tchuba (1982), ou seja, não há tempo para esperar
pela chuva, que também é um dito popular, muito bem recebido pela crítica
local; e) Si bu tene fogu (1993), quer dizer, “se você tem fogo”, procura
conscientizar as pessoas sobre problemas ambientais, como as queimadas,
tema explorado em várias manifestações culturais guineenses, como as nar-
rativas orais. Praticamente toda a produção de Carlos Vaz está em crioulo.
Em francês foram publicadas as peças Patriote (1966), de Bankera
Kanfory, e Amílcar Cabral ou la tempête en Guinée-Bissau (1976), de Ale-
xandre Kum’a N’dumbe, ambas tratando da luta contra o colonialismo. Em
seu livro já mencionado, Carlos Vaz fornece muitas informações sobre o
teatro bissau-guineense, ele que é o principal ator nesse processo.
Periodicamente realizam-se encontros de teatro de que participam os
diversos grupos e que constituem ocasiões não só para se debater sobre a
situação do teatro no país, mas também para a realização de ateliês sobre a
expressão corporal, dança, música e interpretação.
Se o teatro guineense já é bastante pobre devido à precariedade da vida
na Guiné-Bissau em todos os níveis, o cinema é mais pobre ainda, quando
não por requerer instrumentos, em geral caros, mesmo diante da criação do
Instituto Nacional de Cinema (INC) logo após a independência. De qual-
quer forma, quando se fala em cinema na Guiné-Bissau, o primeiro nome
que vem à mente é o de Flora Gomes. Em segundo lugar, vem o de Sana Na
N’Hada. Aliás, as duas primeiras realizações cinematográficas no país foram
os curtas-metragens O regresso de Cabral (1976) e Anós no oça luta (1976),
coproduzidos pelos dois. Mas, em 1977, Gomes ainda produziu os curtas
A reconstrução e N’trudu. Em 1987, ele lança o primeiro longa-metragem,
Mortu Nega, que, como lembra Odete Semedo, “é aquele a quem a morte
recusou levar”. O segundo, Udju azul di Yonta, é produzido em 1991, com a
colaboração de Atchuchi e Odete Semedo. O filme trata de problemas como
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 209

o desapontamento com os rumos que a sociedade e a política guineenses es-


tavam tomando, inclusive o desejo de imitar costumes europeus. Em 1994,
o diretor produz o curta-metragem A Máscara; em 1995, A Identificação de
um país. O terceiro longa-metragem, Po di Sangi, aparece em 1996. O quar-
to longa-metragem é produzido em 2002. Trata-se de Nha fala, a primeira
comédia musical do cinema africano. Uma das últimas realizações desse
diretor é As duas faces da guerra, documentário sobre a guerra colonial, em
co-autoria com a portuguesa Diana Andringa.
Quanto a Sana Na N’Hada, além dos curtas em coautoria com Flora
Gomes, produziu também Os dias da Ancono (1979) e Fanado (1984). Em
1994, produziu seu primeiro longa-metragem, Xime. Por fim, em 2005 pro-
duziu o documentário Bissau d’Isabel.
Novos talentos têm surgido nos últimos anos, embora não tenham
conseguido realizar muita coisa diante das precariedades acima aludidas.
Entre eles temos Adulai Jamanca, que produziu um documentário com Sana
Na N’Hada sobre José Carlos Schwarz. Enfim, talentos existem. O que falta
são recursos e condições de trabalho. Tanto que muitas dessas realizações
foram apresentadas em festivais no estrangeiro e algumas delas chegaram a
ganhar prêmios.
Filomena Embaló apresenta um ótimo apanhado em “O cinema da
Guiné-Bissau” (www.didinho.org: acesso 23/5/2008), a principal fonte em
que nos baseamos para essas poucas notas sobre o cinema guineense.

Música

É bem provável que uma das facetas mais importantes da cultura gui-
neense (e da africana em geral) seja a música, com tudo o que a rodeia
como, por exemplo, o ritmo, a dança, os bailes, os instrumentos etc. Ela
faz parte de uma longa tradição. Por exemplo, ao falar das narrativas orais
(cap. VI), vimos que em algumas delas intervém um canto, amiúde por um
pássaro, dando uma mensagem vinda de longe e envolta em mistério. O fato
é que se trata de versos cantados.
Como informa Aliu Bari em entrevista, o djidiu (jogral) Malan Cama-
leon é o primeiro a cantar em crioulo, de 1945 a 1950. Os djidius se mani-
festam na melodia conhecida como gumbé. Alguns deles ficaram famosos na
Guiné-Bissau. Além de Camaleon, temos Djafalu, Maundé, Amizade Gomes
e Malé (Rosa, 1993: 81). Temos também as kantiga di manjuandadi, as
210 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

kantiga di ditu, as kantiga di tina etc. Odete Semedo (Tcholona 6-7, p. 5-9,
1996) entrevista Tia Antera sobre as kantiga di mandjuandadi. Uma delas é
“Iaian”, uma das mais antigas, para noivas. Há-as também para amigo(a)s,
kantigas di ditu (para os inimigos), para namorados, maridos que se com-
portam bem, para os que se comportam mal, kantiga para apaziguar etc.
“Lope i Balancia”, da esposa para a cunhada e o marido, é resposta a um
maldizer. Kantiga pode ser bem curta, como esta para Nhu Amâncio, amigo
de Tia Antera: “Lope di kordon / Rodian kordon” (“Lope de cordão / enrole
em mim cordão”). A kantiga deve ter duplo sentido, um ar de mistério. Há
uma da manjuandade, “Pé di Kakri”, muito antiga, que fala de uma moça
que atravessa o mar para encontrar o amado, não importando se morre no
caminho, já mencionada no capítulo VII.
No que tange à música moderna, Félix Sigá informa, no artigo “Gui-
neidade e diapasão: música moderna guineense” (Tcholona n. 1, p. 18-20
e n. 2/3, p. 8-11, 15 1994), que a primeira gravação guineense foi um dis-
co de 45 rotações de 1973, do grupo Djorçon, produzido por José Carlos
Schwarz, com as músicas “N ba Bolama” (eu fui a Bolama) e “Nna” (ma-
mãe), a segunda escrita por Armando Salvaterra, sendo as músicas inter-
pretadas por Ernesto Dabó, que acabara de deixar o conjunto Os Náuticos,
da marinha portuguesa. O segundo disco, um LP do Cobiana Djazz (cujo
mentor é José Carlos Schwarz) saiu também em Portugal, em 1977, com 18
músicas, exaltando a liberdade e a unidade em torno do partido. Nos termos
de Sigá, essa formação “foi não só a fundadora da música moderna guine-
ense como também a maior orquestra de todos os tempos do país”. De 1972
a 1974, essa música levou “a uma adesão da juventude de Bissau em massa
à causa da independência”. A tal ponto que seus componentes (José Carlos,
Aliu Bari e Duco) foram presos e levados para a Ilha das Galinhas, o que
motivou a canção homônima de José Carlos “Djiu di Galinha”. Procurou-se
forjar um “estilo musical crioulo assumível como nacional”. Após a inde-
pendência, o Cobi (como era chamado carinhosamente) passou a ser uma
espécie de grupo oficial do governo.
O terceiro disco guineense, também de José Carlos Schwarz e com
participação de Miriam Makeba, foi divulgado em 1978, um ano após a
morte de Zé Carlos. Denunciavam-se os desvios ideológicos dos novos man-
datários do país, o nepotismo e a corrupção, diante da miséria do povo. Nos
capítulos V e VII, já falamos sobre a obra desse autor. No entanto, vale a
pena lembrar que muitas de suas canções (letra e música) marcaram época
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 211

no país, tais como “Apili”, “Mininu di Kriason”, e “Minjer di panu pretu”. O


quarto disco, do conjunto Super Mama Djombo, saiu em 1980, “o segundo
maior grupo da Guiné-Bissau”, seguindo a mesma linha do Cobi. Devido a
canções críticas ao desgoverno que grassava (e grassa) no país, seus compo-
nentes foram muito perseguidos pelo regime. Algumas de suas canções são
“Luta ka ta maina” (a luta não terminou), “Ramedi ki ka ta kura” (remédio
que não cura) e “Sur di no pubis” (suor de nosso povo), todas em crioulo
“puro”, basiletal. Desse grupo participava o poeta Atchutchi. O quinto disco
foi de Zé Manuel Fortes (Zé Manel), no momento da separação entre Cabo
Verde e Guiné-Bissau (1981), intitulado “Tustumunhus di Aonti” (testemu-
nhos de ontem), com oito músicas. Seu autor, ex-baterista do Super Mama
Djombo, “foi o primeiro artista individual a editar um álbum”.
No exterior também começou a se manifestar a produção musical gui-
neense. Já em 1978, Fernando Carvalho lançou um disco em Portugal. Tam-
bém aí, Sidónio Pais ou Sidó (ex-vocalista dos “Capas Negras”), juntamente
com egressos de diversos outros grupos (Capas Negras, Mama Djombo,
Tiná-Koia), fundaram o Saba Miniamba, lançando um 33 rotações. Foi o
“primeiro álbum de um grupo sem vínculos com o PAIGC”.
Após o “reajustamento” político de 1980, houve a “desestatização”
do “Cobi” (1982), que começou a entrar em decadência. Em 1988, o grupo
Nkassa Cobra se transferiu para a França. Restaram conjuntos como Iran di
Terra, Kanutecunda, Tchifre Preto e Pussua Nanki. Diante das dificuldades
de se fazerem cursos de música, de se adquirir material como instrumentos,
cordas e outros, o recurso era gravar em fita cassette, na Guiné-Conakry.
Mesmo assim, a música era um dos poucos alentos para a juventude local.
Há também música em línguas étnicas, como o estilo balanta kussun-
dé e o crioulo gumbé. Cabá Mané, “o maior divulgador da música guineense
no exterior”, só canta em beafada, manjaco, balanta e mancanha. O mesmo
faz Salvador Embaló, que vive na Dinamarca.
Entre os músicos guineenses atuantes no exterior sobressaem-se, entre
outros, Sidó, Naka, Rui Sangará, Eneida Marta, Nino Galissa, Buka Pussic
e Manecas Costa. Até 1994, Sigá alinha acima de 20 músicos, contando-se
os que vivem na Guiné-Bissau e os que estão no exterior. Enfim, poderíamos
citar diversos outros, como Buka Janota, Fernando Fafé, Mário Babrem etc.
Como disse a musicóloga Odette Ernest Dias, que ouviu algumas gra-
vações, a música moderna guineense revela uma forte polirritmia, tendo a
percussão como uma de suas mais importantes características, mas uma
212 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

percussão não violenta, suave. Ela notou também que quase sempre há um
responsório que, como já salientamos no capítulo VII, é característica da
música africana. Por fim, Dias notou que esse ritmo africano lembra muito
a pulsação humana. O responso imprime uma interatividade nessa música.
Como vimos lembrando ao longo deste livro, o africano em geral é altamente
interativo e apreciador do ritmo. Nesse sentido, parece que o estribilho, que
também é muito comum nas canções, teria a mesma função. Até mesmo nas
narrativas orais ele ocorre em muitas kantigas com o fito de salientar deter-
minada mensagem de um modo um tanto mítico, frequentemente cantada
por um pássaro, como se pode ver no capítulo VI. Aliás, essas narrativas
apresentam um “ritmo” muito parecido com o das canções.
Nas “letras” das canções, repetem-se muitas estrofes e muitos ver-
sos. Alguns inclusive várias vezes, normalmente pelo próprio cantor, mas
também por um coro. Como está comentado mais pormenorizadamente no
capítulo sobre as narrativas orais, essas repetições têm a ver com a visão
de mundo do africano em geral. Para ele o mais importante é a fruição, é a
continuidade de algo que é agradável, não um happy end. Se a atividade está
sendo prazerosa, pode continuar ad libitum.
O carnaval, introduzido pelos padres e posteriormente estendido às
etnias, segundo alguns autores é hoje a maior manifestação popular do país,
com influências do carnaval brasileiro. Também nele há canções. O livro de
Mariana Ferreira, Sons da tradição (Radda Barnen/SNV, s/d), registra a
música das etnias manjaco, balanta-brassa e bijagó. Não só registra, com
pautas, mas analisa. Mostra costumes como a naturalidade do sexo entre
jovens bijagós, o surpreendente casamento de mulheres de meia idade com
homens mais jovens. Esse livro está resenhado por Arlinda Nunes (Sons da
tradição - um livro de Mariana Ferreira, em Tcholona 5, p. 19 e 23, 1996).

Manjuandade

Como disse o compositor Aliu Bari, manjuandade (mandjuandadi) é


uma instituição eminentemente crioula, embora, é claro, tenha profundas
raízes na tradição cultural africana. Tanto que em outros países do con-
tinente existem instituições semelhantes, como o baniu manjaco e o kari
dos mandingas, de origem senegalesa. Algumas manjuandades manjacas
são chamadas société. Domingues (2000) afirma que elas tomam traços da
cultura das diversas etnias que compõem a Guiné-Bissau, o que confirma
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 213

a sua crioulidade. Não é por acaso que uma das manjuandades se chama
justamente Adjagassi, da palavra crioula djagasi (<wolof/bainuk) que signi-
fica justamente mescla. Dessa manjuandade participam mulheres de várias
etnias, ou seja, pepel, bijagó, mancanha e balanta, todas animistas. Às vezes
se usam outras denominações para as manjuandades, tais como kolegason
(ao pé da letra “colegação”) e grupu di kamaradia (grupo de amizade). No
que segue, baseamo-nos sobretudo em Trajano Filho (1998: 314-405) e em
(Domingues, 2000: 415-495).
No final da década de 90, Domingues constatou que no Ministério da
Educação, Cultura, Juventude e Desporto estavam registradas 15 manjuan-
dades. Eram elas: Esperança di Bandim, Bambaram, Kimbum, Mumbessa,
Escama, Batelé, Kit Mom, Nô Djunta Mon, Sabi-Sim, Corta Nansi, Netus
di Kansalá, Pé di Um Chu, Djamon Diata, Bolama Faró e Abre Os Olhos.
Em 1987/8, Wilson Trajano Filho havia registrado 20, ou seja, Kafriela,
Pe di Mesa, Patoma, Speransa di Bandin, Kombe Fina, Bambaran, Ban-
taba di Amisadi, Pe di Moxu, Flor di Harmonia, Kasaká, Mumbesa, Finka
Pe, Funcionalismo, Barata Feia, Kasav di Renu, Kasav di Bula, Kimbun e
Bolamensa, além de Besa Mar (dos manjacos) e Raízes di Gumbé (dos gui-
neenses residentes em Portugal). Só quatro aparecem na lista de 1999 de
Domingues, ou seja, Speransa di Bandin, Mumbesa, Kimbun e Bambaran,
o que mostra o caráter dinâmico desse tipo de associação. Os dois autores
mencionam outras manjuandades no decorrer de seus ensaios. Por exemplo,
Domingues menciona ainda Alamuta, Bodisano Nó Vive (deixe-nos viver),
Netos di Gumbé e outras. Tia Antera mencionou as seguintes, para Odete
Semedo: Kakri Sinhu, Pé di Kakri (já extintas), Udju Nobu, Melgas-No-
bu, Kapar-Tudu, Kombe Fina, Koral Fina, Pé di Kombe, Pé di Mesa, Pé di
Banku, Feretcha, Pé di Muchu, Ramu, Kode di Ramu, todas de Bissau. A Pé
di Mesa bissauense tem a equivalente Pé di Banku em Bolama; a Pé di Banku
de Bissau é chamada Ris em Bolama; a Ramu de Bissau é Ris em Bolama.
Tia Antera acrescentou que as manjuandades têm uma rainha, um rei, uma
meirinha, um meirinho, um cordeiro, ajudantes e soldados.
Segundo Domingues, as manjuandades que consultou tinham de um
a 23 anos de existência. Trajano Filho fala de algumas cuja existência recu-
ava a quatro gerações. Há autores que acham que elas nasceram em data
relativamente recente. Para outros, elas teriam surgido no final do século
XIX. Seja lá como for, elas dão continuidade a padrões culturais africanos,
mesmo que crioulizados.
214 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Há ainda os clubos que, segundo Domingues (2000) “se divulgaram


entre as classes populares e [...] assumiram, [...], os valores patriarcais da
cultura ocidental, representada pelos colonos, excluindo as mulheres dos
cargos e actividades mais importantes”.
Mas, o que vem a ser manjuandade? A maioria dos dicionários e glos-
sários definem “manjuandade” como associação de coetâneos, de pessoas
da mesma faixa etária. Luigi Scantamburlo, no segundo volume de seu Di-
cionário do guineense, diz que se trata de “agrupamento de mulheres ou de
homens do mesmo grupo de idade; pessoas que participaram do mesmo
fanado” (circuncisão). O termo é derivado de manjuá, de origem manjaca,
significando “indivíduo da mesma idade; colega; companheiro”. Tanto que
o equivalente de nossos “cê tá me estranhando?” ou “não te dei essa con-
fiança” em crioulo é Ami i ka bu manjua, ou seja, eu não sou da sua iguala,
como se dizia no interior de Minas em tempos idos. Veremos que todas essas
conceituações têm sua dose de verdade.
De acordo com Trajano Filho, há um continuum no que tange à
composição das manjuandades. Primeiro, temos as que estão intimamente
ligadas a uma etnia, como o baniu manjaco. Segundo, vêm as manjuan-
dades crioulas, que misturam influências étnico-africanas com dados da
cultura europeia. Terceiro, vêm as que, a despeito de ainda ser crioulas,
estão muito ligadas à vida urbana, ou seja, seus membros são kriston, jaga-
sidu (mestiços) ou assimilados. Quarto, temos as de estrutura mais frouxa,
constituídas de membros que se reúnem quase só para lanches, jantares,
festas ou piqueniques. Elas seriam semi-associações, não associações ple-
nas como as dos três outros tipos. Tanto que, contrariamente às demais,
a língua principal dos encontros é o português, sendo que nas demais é o
crioulo que é usado.
De um modo geral, os autores afirmam que as manjuandades são
organizações urbanas, quando não pelo fato de o crioulo ter nascido e ser
mais forte justamente nos ajuntamentos dessa natureza. Mas, há evidências
de que há, e houve, algo semelhante nas zonas rurais. Na verdade, as urba-
nas adotaram muitas características das rurais. Se elas dão continuidade a
tradições africanas, outra coisa não seria de se esperar.
O número de participantes das manjuandades varia muito. Algumas
chegam a ter 100 membros. O interessante é que as mulheres constituem a
grande maioria, chegando a 70% de sua composição, como na manjuanda-
de Irmãos Unidos de Caliquir. Segundo Domingues (2000: 431-438), “o
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 215

associativismo feminino na África Ocidental, dever-se-ia à posição social


da mulher nas sociedades linhageiras, em que as hierarquias baseadas na
senioridade e género, dispensando a participação das mulheres no poder
e autoridades públicos”. Em nota de rodapé, a autora acrescenta que “as
mulheres estão menos constrangidas pelas hierarquias das estruturas de pa-
rentesco, uma vez que por um lado, vivem entre a parentela do marido, e por
outro, o seu poder e acesso aos recursos no interior da sua própria família
é limitado”.
De um modo geral, dois dos objetivos centrais dessas associações são
a diversão e a ajuda mútua. Além disso, continua Domingues, “estes clubes
e associações, inseriam-se num incipiente movimento de construção de uma
identidade social própria dos ‘crioulos’, em contraponto à sociedade dos
colonos”. Tanto que a autora acrescenta que “é ainda possível encontrar
semelhanças entre as relações de interajuda e solidariedade que se estabele-
cem nas mandjuandades actuais, e as relações de amizade tradicionais es-
tabelecidas de forma ritualizada entre mulheres”. A autora acrescenta que
“as actuais mandjuandades de Bissau, podem ainda, relacionar-se com as
associações étnicas, de juventude, beneficência, e clubes desportivos, que
proliferaram após a Primeira Guerra Mundial, animados pelas populações
crioulas”.
Trajano Filho (1998) analisou a estrutura e funcionamento das man-
juandades em profundidade, sobretudo as crioulas. Entre inúmeros outros
aspectos, ele salientou que elas têm em comum a realização de atividades
como almoços, jantares, cerimônias fúnebres (toka tchur), de casamento,
batismos, bailes de tina (baju di tina), bailes em que se toca a tina, que é um
tambor com água até o meio, no qual se introduz uma cabaça cortada ao
meio, cabaça que se percute com as mãos. As cerimônias podem ser enco-
mendadas à rainha da manjuandade.
Durante a execução, em geral há danças, cantos e consumo de comi-
das. Algumas kantiga di mandjuandadi são específicas de cada grupo, mas
outras podem extrapolar o seu âmbito. Entre as mais conhecidas Trajano
Filho menciona a seguinte:

“Xo, xo galinha bai / Bu ka tchomadu // Xo, xo galinha, galinha / Xo, xo galinha


bai / Io, bu ka tchomadu // Nde k’u sai ku e melga xatu de / Xo, xo galinha”
(“Chô, chô galinha vai embora / você não foi chamada //Chô, chô galinha, gali-
nha /Chô, chô galinha vai embora / Oh, você não foi chamada // De onde você
saiu com essa mosca chata /Chô, chô galinha”).
216 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Para cobrir as despesas, faz-se uma vaquinha, cotização chamada


abota. Esta é tão importante que chega a constituir outra faceta das ativi-
dades coletivas guineenses. Tanto que há abotas de caráter cooperativo se-
melhantes a caixas de auxílio mútuo, de caráter bancário e cooperativo. Isso
está detalhadamente desenvolvido em Domingues (2000).
Enfim, as manjuandades têm uma função eminentemente fática, ou
seja, manter a comunhão entre os participantes, quer os componentes sejam
todos de uma única etnia ou de etnias diferentes. Aliás, na Guiné-Bissau não
há conflitos étnicos propriamente ditos, como acontece em outros países
africanos, como Ruanda e Sudão. Mas, elas têm também objetivos lúdicos.
Tanto que em algumas cerimônias as mulheres que dançam podem entrar
em transe, chegando mesmo a fazer gestos obscenos. Enfim, nas reuniões de
manjuandade a mulher se solta por completo, uma vez que na sociedade lá
fora ela é altamente discriminada, reprimida e até oprimida. Há uma espécie
de catarse. O importante, porém, é que as manjuandades são dos compo-
nentes mais representativos da cultura guineense.

Gãs

Segundo o antropólogo Trajano Filho (1998), estudioso da cultura


crioula guineense, o gã (gan) seria uma forma de organização social. Em
suas palavras, “os gãs têm sido a unidade básica de organização social desde
a fundação dos primeiros estabelecimentos fortificados pelos portugueses e
os luso-africanos”. Acrescenta que “seu campo semântico implica as noções
de grupo familiar e o espaço em que a família mora: uma casa, um bairro,
um distrito ou uma vila” (p. 167). Para o autor “os gãs eram, tanto a unidade
sociológica central nas vilas, habitadas por luso-africanos mestiços e euro-
peus, como a principal instituição de crioulização” (184). Os gãs seriam os
próprios agrupamentos crioulos, em termos de famílias que tinham euro-
peus como pater familias. De acordo com Barros (1897/9: 297), as famílias
(gãs), “poderosas casas” de Cachéu no final do século XIX eram os Bení-
cios, os Dias, os Alvarengas e os Barretos. Em Bissau seriam os Nozolinis,
os Mattos, os Barros etc. Só no Tchon di Pepel, tradicional bairro, tínhamos
Gã da Silva, Gã di Bar, Gã Gume, Gã Teixeira e outros.
É bem provável que o conceito de “gã” seja bem anterior ao que Trajano
Filho imagina. Seria uma instituição tipicamente africana. Tanto que existe em
outras regiões. Além disso, ele aparece muito nas narrativas orais, mas não
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 217

com nomes portugueses, como os que Trajano apresenta. Na coletânea Jun-


bai, temos Gan-Fodeba, definido da seguinte forma: “Actualmente, tabanca
da ilha de Bolama próxima à praia de Nova Ofir. Nome de origem mandinga
que poderia significar ‘morada do grande sacerdote’ (fodé = sacerdote, letra-
do; ba = grande). É corrente ainda hoje a palavra ‘gan’ para designar lugar:
Gan-Moriá, Gan-Crioulo, Gan-Biafada (lugar dos mouros, lugar onde se fala
crioulo, lugar dos beafadas), Gã-Federico etc. No século XIV, a região do Gao
marcava, junto com Tumbuctu, os limites extremos da expansão do Império
Mandinga” (p. 67). Em (Uori), aparece Gan-Moriá, próximo a Caledje, na
ilha de Bolama (p. 17). O linguista guineense Benjamim Pinto Bull afirma
que o termo designa uma família, um quarteirão, ou um bairro onde mora
uma família. Jean-Louis Rougé diz, em seu Petit dictionnaire étymologique du
kriol de Guinée-Bissau et Casamance, que “gã” é um prefixo que serve para
formar topônimos, como o ga bainuk e wolof. Outros autores asseveram que
ele indica povoado, povoação, ou que é um prefixo que forma substantivos
que exprimem a idéia de lugar. Nesse sentido, teríamos ainda Gan-Mamadu,
Gan-Biafada, Gan-Ture etc. No poema em crioulo “N’hara Guiné”, do livro
Retrato (2007), Rui Jorge Semedo menciona “Gã Gumi”, “Gã da Silba”, “Gã
Montero”, “Gã Kotê”, “Gã N’Bana” e “Gã Vera”.
Parece que a palavra tem o mesmo sentido de tchon (terra, chão),
como em Tchon di pepel (terra dos pepéis), na região de Bissau. No entanto,
quando se enfatiza a família, diz-se os Benícios, os Dias etc. expressões em
que em vez do artigo se usa o morfema africano “ba-”, ou seja, Ba-Benícios,
Ba-Dias etc. Os cronistas portugueses dos primeiros séculos confundiram-
no com o “grã” ibérico, que ocorre em compostos como Grã-Bretanha,
grão-duque etc.
O hábito de se designar determinada região como “terra dos” recorre
em diversos outros contextos culturais. O sufixo indo-europeu “-ia” teria
função semelhante. Assim, “Itália” seria a terra dos ítalos; Ibéria, a dos ibe-
ros; Romênia, a dos romenos e assim por diante. Ele foi adaptado pelos ger-
mânicos sob a forma “-land”, como em Deutschland (= terra dos Deutsche
‘alemães’) e England [<Angland] (terra dos anglos).
Já no final do século XIX, a instituição do gã no sentido de famílias
tradicionais começou a se desintegrar, embora ainda existam diversas pes-
soas que portam os sobrenomes dos gãs mencionados pelo antropólogo Wil-
son Trajano Filho. No entanto, no sentido de “terra dos”, que é o original, o
termo perdura até os dias de hoje.
218 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Tchur

A palavra tchur, também escrita cur, vem do português “choro”, eti-


mologia que já dá uma idéia do que significa. Ela se especializou para indicar
as cerimônias e as festas em memória de uma pessoa falecida. (Bull 1989),
por exemplo, define-o como “exéquias, pranto, luto, casa onde se apresen-
tam as condolências”. Acrescenta que toka tchur são cerimônias tradicionais
tempos depois da morte de um ou mais membros da família”. Esse autor
dedica todo um capítulo ao tchur. No dia da morte, estende-se uma esteira
(stera di tchur) durante uma semana, período em que a família do falecido
recebe condolências (fala mantenha). Às vezes, o visitante fica algum tempo
consolando os parentes. No oitavo dia, reza-se uma missa, se são católicos,
e se faz uma lauta refeição, o que os animistas também fazem. Nesse dia,
levanta-se a esteira (ialsa stera), que é colocada num canto da casa. Algum
tempo depois, pode-se estender a esteira de novo (toka tchur), havendo co-
tização (abota) para as cerimônias e comidas. Tanto as cerimônias da pri-
meira semana quanto as que têm lugar posteriormente (que duram três dias)
são anunciadas pelo bombolom ou tantã. Durante as cerimônias matam-se
vacas, porcos, galinhas, além de se beber muito, cantar e dançar. No final do
terceiro dia, regressa-se ao kau di tchur (lugar do choro), momento em que
se levanta de novo a esteira e cada um regressa a sua casa. Toda a cerimônia
é fasi tchur (lit. ‘fazer exéquias’). Pode-se contratar uma cerimônia de tchur.
O culto aos mortos é levado tão a sério que mesmo tempos mais tarde,
ao se tomar alguma bebida alcoólica, lançam-se algumas gotas fora (darma
pa asalma) em homenagem aos que já partiram. Para os guineenses, os mor-
tos continuam presentes entre eles. Se se esquecer desse gesto, pode ser que
o ato se dê espontaneamente, o que é atribuído a um protesto dos mortos
(asalma). Acreditava-se que também eles precisavam se alimentar.
Na entrada “cur” do glossário de Uori de Teresa Montenegro e Carlos
Morais, há uma explicação bastante elucidativa sobre o tchur, reproduzida
no capítulo VI. Valeria acrescentar os textos de cronistas antigos que esses
autores reproduzem. De André Álvares de Almada (Tratado breve dos rios de
Guiné do Cabo Verde, 1594), transcrevem a seguinte passagem: “Os choros
duram muitos dias; ajuntam muitos mantimentos, muita carne e vinho, e
os que hão-de vir ao choro trazem também de comer. E juntos, uma velha
ou velho começa a louvar os feitos do defunto, e nos fins dão todos juntos
grandes urros, com vozes mal formadas; dura isto por espaço de alguns dias,
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 219

em mentes dura o mantimento; todo aquele ano está a cova do defunto por
quem se fez o funeral coberta com um pano branco, e no cabo do ano torna
a haver outra junta de mantimentos e tornam a renovar o choro, mas dura
poucos dias, e no cabo deles fazem grandes festas de bailes, ao som de seus
atambores e atabales: chamam a isso tirar o dó”. De Francisco de Lemos
Coelho (Duas descrições seiscentistas da Guiné, 1669), os autores reprodu-
zem o pequeno trecho em que fala da cerimônia do tchur entre os bijagós, ou
seja, “há muita vaccaria como em todas [as ilhas bijagós], de que elles fazem
muita estima para matarem nos seus choros”. Essas duas citações mostram
que a tradição do tchur tem uma longa história na cultura guineense, em
particular, e na africana, em geral.

Rumores

Trajano Filho (1998: 406-658) inclui no rol de componentes da cul-


tura guineense, e da africana em geral, o que chamou de rumores. Trata-se
de boatos que correm de boca em boca, sendo que ninguém se declara seu
autor, mesmo que o tenha sido. Vale sempre o “ouvi dizer que” (obi li leba
la ‘ouve aqui, leva pra lá’). Analisá-los é extremamente difícil devido ao fato
de se apresentarem em diversas versões, quando não pelo fato de serem emi-
nentemente orais. Talvez, a melhor maneira de abordá-los seja pela meto-
dologia de Propp e Lévi-Strauss mencionada no capítulo VI. O autor afirma
que, embora sejam componentes da cultura crioula tanto quanto as storias,
as adivinhas e os provérbios, os rumores são mais fluidos do que todas essas
manifestações. Às vezes se usa a palavra bokasinhu (boquinha), sendo que
seu divulgador pode ser chamado de tchutchidur (cochichador) ou kin ki
ta tchutchi (aquele que cochicha). Pode ser chamado também de banoberu
(arauto), composto de “ba” (que é o mesmo prefixo de plural africano que
ocorre em Ba-Dias, Ba-Benícios), mais “noba” (notícia) e o sufixo “-eru
(eiro)”.
Entre os cerca de 100 rumores que Trajano Filho registrou, alguns dos
mais conspícuos são sapa kabesa (cortar cabeça), mininus di kriason e o da
invisibilidade. Os sapa kabesa eram seres misteriosos, que andavam por aí
cortando a cabeça das pessoas para serem vendidas no Senegal a fim de ser
usadas em certas cerimônias. O tchutchidur desse rumor chegou a mencio-
nar pessoas que foram vítimas dessas lúgubres criaturas, embora não sou-
besse definir bem quem eram esses decepadores de cabeça. O dos mininus
220 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

di kriason tem a ver com algo muito comum na sociedade africana. Crianças
não bem-vindas (como os filhos de adolescentes que não os desejavam), são
amiúde maltratadas. Daí a surgirem rumores (boatos) sobre casos concretos
de crianças que até foram mortas por quem cuida delas é um pulo. O tercei-
ro tipo de rumor mencionado pode ser exemplificado com alguns heróis das
guerras de libertação que se tornavam invisíveis e invulneráveis. Os inimigos
não os viam, eles não eram atingidos pelas balas adversárias.
Um dos informantes disse a Hildo Couto que ouvira dizer que os fe-
lupes (uma das etnias guineenses) matavam os estranhos que fossem até eles
e guardavam seus crânios pregados nas paredes, como troféus. Em seguida,
indagadas outras pessoas sobre o fato, várias delas asseveraram que também
ouviram dizer que isso acontecia, mas que não podiam garantir se era verda-
de ou não. Quando o pesquisador lhes perguntava se poderiam ir com ele a
uma tabanca (aldeia) felupe, eles simplesmente esboçavam um sorriso, sem
dizer sim nem não. Isso levou-o a inserir os rumores no ar de mistério que os
africanos gostam de cultivar. Pode ser até um certo exibicionismo (ronku). Os
africanos parecem se comprazer em manter esse mistério, sobretudo frente a
um estrangeiro, com o intuito de mostrar que, embora os de fora sejam mais
poderosos do que eles economicamente, eles têm mistérios que quem não é de
sua cultura não consegue entender. É algo só deles, os africanos.

Irã

Gostaríamos de lembrar o papel do irã na Guiné-Bissau. Original-


mente, iran se referia a uma espécie de cobra, hoje iran-segu (irã-cego),
que lembra a nossa sucuri. Hoje refere-se a um tipo de espírito. De novo,
citamos Montenegro e Morais. Segundo eles, “existem iran familiares e co-
lectivos, sendo alguns de renome em toda a área guineense, como o Mama
Jombo da Gâmbia e o Sákala dos beafadas. Na Guiné-Bissau, o iran de
Cobiana, o Mama Kaboi ou Jombó, atrai peregrinos de todos os pontos do
país. À imagem e semelhança (objectos de culto representados por ícones)
dos santos da Igreja Católica, os iran são igualmente padroeiros e encon-
tram-se associados à gestão de áreas determinadas da vida dos prosélitos:
podem presidir à circuncisão como antigamente o Kamacole entre os nalus,
ou proteger a gravidez, como o Kembé. O iran que surge na narrativa oral
em criol é um espírito que tem como função dominante punir os infractores
das normas sociais”. Note-se que o nome dos conjuntos musicais “Mama
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 221

Djombo” e “Cobiana Djazz” foi tirado daí. Os irãs estão associados a muitas
crenças guineenses. Para mais informações, pode-se consultar o artigo de
Carlos Vaz “Os irans de Bassarel” (Tcholona 2/3.16-19, 1994). Como se
pode ver nesse texto, às vezes os irãs são representados em esculturas, que
podiam ser estacas, forquilhas e, mais recentemente, figuras presumivelmen-
te de antepassados mortos esculpidas em madeira.
Há diversas outras manifestações da cultura guineense. Benjamim Pin-
to Bull lembra ainda a questão das alcunhas (apelidos), estudadas no capítulo
X, as superstições, as fórmulas invocatórias, os esconjuros, as cerimônias ma-
trimoniais, as de batizados (entre os católicos) e as de rapa (rapar) entre os
muçulmanos, as viagens e a hospitalidade para com o viajante, entre outras,
além dos provérbios, das adivinhas e das narrativas orais. Pode acontecer de
as pessoas evitarem casar-se em agosto, pois agustu, gustu o disgustu (agos-
to é mês de desgosto). Quando alguém espirra (algin ki spira na metadi di
kombersa), o outro pode dizer N ka dau tabaku ou N ka dau pitada, ou seja,
não te dei uma pitada. Nunca se deve chamar alguém durante a noite em voz
alta, algin ka ta tchomadu di noti, pois os espíritos malignos podem ouvir e
aparecer. Muitas crenças estão fixadas em provérbios. Assim, bari omi pe, i ka
ta otcha minjer, ou seja, se se varrer os pés de um homem ele não encontrará
mulher (para casar). Arrumar as coisas com a mão esquerda, rakada ku mon
skerdu, pode trazer azar. Nunca se deve consertar roupa no corpo, ropa na
kurpu ka ta kusidu, ka ta pergadu boton, a não ser nos defuntos.
Quando se recebe um hóspede (ospri) na hora da refeição, ele é convi-
dado para sentar-se à mesa e partilhar da comida porque bianda na kaleron
ka ten dunu (comida que está na panela não tem dono). O ospri deve ser
sempre bem tratado, pois ospri ki ta kumpu, ospri ki ta dana (é o hóspede
que faz a boa ou a má fama de uma casa). Além disso, kil ki bu mostral, el
ki na bai konta (aquilo que se mostra ao hóspede é o que ele vai contar aos
outros).
Quando comparamos todas essas manifestações da cultura guineen-
se, verificamos que confirmam praticamente todos os princípios subjacentes
às que foram analisadas em capítulos anteriores. Quase toda atividade na
Guiné-Bissau é interativa. A linguagem é usada basicamente em sua função
fática. Predomina o desejo de comunhão, de manter a coesão social, de en-
fatizar a convivência, a conviviality de Trajano Filho (1998). É o gosto pela
fruição do momento, pelo ritmo, pela música, e quanto mais durar melhor.
Tudo isso de forma grupal, compartilhada, comunial.
222 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

XII. A COMUNIDADE DE FALA GUINEENSE

Gostaríamos de retomar ao que foi discutido no capítulo I (Situa-


ção Linguística), a fim de averiguar se, a despeito da grande diversidade
linguística, a Guiné-Bissau poderia ser pensada como uma unidade, de
alguma forma que não seja apenas a dos detentores do poder estatal.
Em termos linguísticos, o objetivo do presente capítulo é investigar se
esse país tão multilíngue pode ser considerado uma comunidade de fala.
Para entendermos esse conceito, faz-se necessário recuar à situação pro-
totípica original, como a das tribos indígenas sul-americanas, em que
cada povo vivia no próprio território, falando a própria língua, como já
notara o antropólogo Morgan, a propósito dos índios iroqueses norte-
americanos.
Para recuperar essa provável situação prototípica original, basta in-
terrogar o leigo. Sempre que ele ouve o nome de uma língua que lhe seja
desconhecida, a primeira pergunta que lhe vem à mente é sobre que povo
a fala. A segunda pergunta é sobre o lugar em que esse povo habita. Não é
o momento para se discutir o assunto em pormenores, mas aí já temos os
três ingredientes para entendermos a situação que temos em vista. De acor-
do com ela, para que haja uma língua (L), é necessário que pré-exista um
povo ou população (P) que a tenha formado e que a use. Além disso, esse
povo deve necessariamente viver em determinado lugar ou território (T). A
totalidade formada por P, T e L constitui o que se vem sendo chamando de
ecossistema fundamental da língua (EFL) que, no fundo, é o ecossistema
natural da língua, tomando-se por base o ecossistema biológico. Também
esse último consta de uma população de organismos, vivendo em um habi-
tat ou território (biótopo, nicho, meio ambiente), juntamente com as inter-
relações que se dão não só entre organismos e habitat (meio ambiente), mas
também entre os indivíduos que constituem a população. O EFL, que pode
também ser chamado de comunidade, vem sendo representado como se vê
na figura 1.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 223

Ecossistema Fundamental da Língua


(Comunidade)
Fig. 1

No caso, P e T, ou seja, a totalidade da população como conjunto de


indivíduos e seu entorno, constituem o meio ambiente (MA) da língua ou,
mais especificamente, o MA fundamental/natural da língua. Questões estu-
dadas nesse domínio incluem a relação palavra-coisa, como já faziam os gre-
gos (cf. Crátilo, de Platão). Outras questões interessantes que aí se incluem
seriam a narração, a descrição e a dissertação, por exemplo, discutidas nas
Palavras Finais. A relação língua-mundo, por exemplo, foi evocada no ca-
pítulo VI, quando falamos das narrativas orais. Só a título de completude,
vejamos os dois outros ecossistemas da língua.
O segundo ecossistema em questão é o ecossistema mental da língua.
Trata-se da língua em relação aos indivíduos da população considerados
como entidades psíquicas, vale dizer, seus cérebros ou mentes. Mais preci-
samente, trata-se da língua em relação às redes de conexões neurais, como
o que vem sendo estudado pela neurolinguística, entre outras neurociências,
a psicolinguística, o conexionismo etc. O cérebro, a mente ou as redes de
conexões neurais constituem o MA mental da língua, pois é a eles que ela se
opõe no interior desse ecossistema.
Se a relacionamos aos membros da população como um conjunto or-
ganizado, temos o ecossistema social da língua, no interior do qual a língua
se opõe ao que chamamos sociedade, que constitui o MA social da língua.
Praticamente tudo que se discute no presente livro em termos de realidade
linguística guineense se enquadra ou no MA fundamental (englobante) ou
no MA social da língua.
Em Couto (2007: 89-108), esses conceitos ecolinguísticos estão dis-
cutidos pormenorizadamente. Basta acrescentar que ecolinguística é o estu-
do das relações entre língua e meio ambiente, lembrando-se que há os três
MA da língua recém-mencionados e respectivos ecossistemas.
224 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

A pergunta que se põe agora é se a Guiné-Bissau poderia ser enqua-


drada no esquema do ecossistema fundamental da língua. É claro que ela
não se enquadra no esquema um povo, vivendo em um território e falando
uma língua. Com efeito, no interior desse país são faladas diversas línguas,
além das transições entre uma e outra, chamadas de mesoletos. Aparente-
mente, seria difícil incluí-la no referido esquema. No entanto, se observar-
mos a distinção entre comunidade de língua e comunidade de fala, veremos
que até mesmo uma situação de multilinguismo como esta pode ser consi-
derada da perspectiva desse ecossistema.
Comunidade de língua é um conceito relativamente simples. É o do-
mínio do que chamamos normalmente de língua como um sistema, inde-
pendentemente do uso. Assim, a comunidade de língua portuguesa abrange
Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e, mais
recentemente, Timor Leste, uma vez que, de alguma forma, ela se faz pre-
sente em todos esses países. O domínio do islandês é a Islândia; o do trumai,
o território ocupado por essa tribo. A comunidade de fala, por seu turno, já é
bem mais complexa. Ela pressupõe não só o sistema de língua (gramática?)
implícito na comunidade de língua, mas uma série de características adicio-
nais. Primeiro que tudo, um território contínuo e de dimensões relativamen-
te pequenas, de modo que os atos de interação comunicativa possam se dar
quotidianamente com facilidade. Segundo, nesse espaço convivem pessoas
(P) que compartilham um sistema viário, legal, de comunicação, de ensino
etc. O essencial para a comunidade de fala é, no entanto, o território e os
atos de interação que nele se dão. A comunidade de língua é uma totalidade
encarada a partir do sistema (langue), ao passo que a comunidade de fala é
uma totalidade encarada a partir dos atos de fala (parole) efetivos.
Como se pôde ver, esses dois conceitos evocam a distinção feita por
Saussure entre língua (langue) e fala (parole). Evocam também o par de
conceitos do inglês language community e speech community, que corres-
pondem aos dois conceitos saussureanos, nessa ordem. Por fim, temos os
conceitos alemães de Sprachgemeinschaft e Sprechgemeinschaft. O primeiro
tem por base a palavra Sprache (língua), e o segundo a palavra sprechen (fa-
lar). Quanto a Gemeinschaft, significa justamente comunidade. Mas, ainda
no alemão, existem duas expressões que têm a ver diretamente com comuni-
dade de fala. Trata-se de Interaktionsgemeinschaft, que significa literalmente
“comunidade de interação”, e de Kommunikationsgemeinschaft, que signi-
fica, também literalmente, “comunidade de comunicação”. Uma vantagem
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 225

das duas últimas expressões alemãs, que correspondem a comunidade de


fala, é que enfatizam a ideia de que o que caracteriza a última é a interação
concreta entre indivíduos.
É verdade que no interior da Guiné-Bissau são faladas acima de 15
línguas, algumas delas de famílias linguísticas diferentes, outras faladas mais
além-fronteiras do que aquém-fronteiras. No entanto, a comunicação sem-
pre se deu em seu interior sem maiores dificuldades. Não se conhece ne-
nhum caso de incomunicação no país devido à ausência de uma língua em
comum. Para facilitar essa interação, temos o crioulo que funciona como
uma língua franca, além de ser língua nativa e/ou materna de muita gente.
Portanto, o requisito dos atos de interação comunicativa estão atendidos.
Quanto ao requisito do espaço, também ele é obedecido, pois, como vi-
mos alhures, o território bissau-guineense é contínuo e de proporções rela-
tivamente pequenas. Portanto, temos um caso perfeitamente equiparável ao
ecossistema da ecologia biológica. Mesmo levando em conta o fato de seu
território ter sido delimitado arbitrariamente pelo colonizador, ignorando o
domínio das etnias locais. Também o ecossistema biológico é delimitado de
certa forma “arbitrariamente”, no caso pelo investigador, como se pode ver
em qualquer manual de introdução à ecologia e/ou à biologia. Até mesmo
Arthur Tansley, um dos primeiros biólogos a utilizar o conceito, já dizia que
um átomo pode ser encarado como um ecossistema, assim como o universo
como um todo, passando pelo planeta terra.
No caso, o ecossistema linguístico da Guiné-Bissau, ele foi delimita-
do violentamente pelos colonizadores e seus sucessores, mas foi delimitado.
Hoje é um fato consumado. O que temos que fazer agora é tentar entender
esse fato consumado como um ecossistema. Em todos os sentidos recém-
mencionados, esse país é uma comunidade de fala, e comunidade de fala
é um ecossistema delimitado pelo linguista, como o sociolinguista William
Labov já disse em diversas oportunidades. Sendo uma comunidade de fala,
é comunidade, por mais complexa, fluida e porosa que possa ser, portanto,
pode ser considerada um EFL, mesmo que um FEL que ainda não se conso-
lidou. Tanto que sempre se fala em “construção da nação”.
Toda padronização ou uniformização é de certa forma autoritária e às
vezes violenta. Não se cria um sistema de regras sem impô-lo a determinado
grupo, a não ser que essas regras sejam criadas cooperativamente, como
apregoam, entre outros, o anarquista Piotr Kropotkin, a Ecologia Profunda
de Arne Naess e o taoísmo; não competitivamente, como defendiam Da-
226 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

rwin e Marx, para mencionar apenas dois dos mais importantes autores.
Até na natureza está provado que as espécies que mais se adaptam, ou seja,
cooperam, sobrevivem mais do que as que apenas competem por meios de
sobrevivência. Alguns autores falam em coordenação versus subordinação,
respectivamente, mas dá na mesma.
A comunidade de fala da Guiné-Bissau pode ser representada como se
vê na figura 1, retomando o que se viu no quadro 4 do capítulo I.

Fig. 1

Como pontos extremos desse complexo ecossistema, temos o sub-


ecossistema do português lusitano (PL), falado apenas pelos portugueses
que se encontram no país e por uns pouquíssimos guineenses que foram es-
colarizados em Portugal e/ou trabalham na administração do país. Nas mais
das vezes, o que os últimos falam é um português acrioulado (PA), ou seja,
um português com uma inconfundível marca do crioulo. Logo a seguir, vem
uma variedade de crioulo que poderíamos chamar de crioulo aportuguesado
(CA), ou seja, um crioulo que apresenta fortes influências de português. É a
variedade da língua usada pelas pessoas cultas, o que significa que é a forma
usada nos poucos programas de rádio em que a língua é o meio de comuni-
cação. Quanto ao povo analfabeto, sobretudo o das regiões rurais, fala um
crioulo mais basiletal, no círculo chamado de crioulo tradicional (CT). Para
um grande contingente da população, o crioulo é segunda língua, uma vez
que tem como L1 uma das diversas línguas étnicas mencionadas acima. A
variedade de crioulo falada por muitas pessoas pertencentes a esse segmento
da sociedade guineense é um crioulo nativizado (CN), ou seja, um criou-
lo com forte marca das línguas nativas (nos dois sentidos do termo). Isso
acontece principalmente com as pessoas vindas das tabancas do interior, que
aprendem o crioulo já em idade adulta. Por fim, temos as línguas étnicas, ou
línguas nativas (LN). Poderíamos acrescentar pelo menos mais um círculo
para variedades de línguas nativas influenciadas pelo crioulo, algo como lín-
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 227

gua nativa acrioulada (NA). Isso se dá muito no nível lexical: são inúmeros
os empréstimos que elas fazem ao crioulo.
Os círculos da figura 1 podem ser lidos também do ponto de vista da
facilidade/dificuldade de intercompreensão, ou seja, a interação que permite
considerar a Guiné-Bissau como um país. Talvez só entre PL e LN não exista
nenhuma possibilidade de entendimento. Por exemplo, um português que só
conheça sua língua e um fula que só conheça a sua pertencem a ecossiste-
mas linguísticos excludentes. Entre falantes de PA e de CA o entendimento
se dá sem grandes problemas. O mesmo se dá entre CT e CA. Quanto a CN,
comunica-se melhor com CT e, com mais dificuldades, com CA. LN tam-
bém se comunica com CN, uma vez que compartilham a cultura africana. Às
vezes até mesmo entre um falante de LN e um falante de PA poderia haver
alguma chance de uma comunicação por mais precária que seja, no caso, via
CT. Entre falantes de CN e de PA as chances de entendimento são maiores,
uma vez que os espectros linguísticos dos dois se interseccionam com CA e
CT. Além disso, a maioria dos guineenses tem pelo menos um domínio pas-
sivo do crioulo. Tudo isso faculta a intercomunicação.
Aliás, seria interessante lembrar que um popular do mercado do Ban-
dim certa feita disse a que “lingua i raça” (a língua é o povo). A despeito
disso, grande parte dos guineenses consideram o crioulo como “lingu di nin-
gin” (língua de ninguém), portanto, nenhuma etnia tem resistência a ele. Por
esse motivo, podemos inverter a fórmula para “kriol i lingu ku tudu gintis ta
papia na Gine”, ou seja, o crioulo é a língua que todos os guineenses falam.
Alguns observadores alegam que haveria pouco contato interlinguís-
tico na Guiné-Bissau, que cada indivíduo interagiria mais com membros de
seu próprio grupo. Porém, pelo menos nas “praças” (cidades, vilas, povo-
ados) e, sobretudo, nos mercados, há uma intensa interação interlinguís-
tica. De modo que poderíamos retomar o conceito de mercado linguístico
de Bourdieu (1984). O autor refere-se mais a “mercados” intralinguísticos,
mas, se partirmos da ampliação que Calvet (1987) fez dele para abranger
os “mercados” interlinguísticos, a afirmação de que não há contatos (ou de
que há poucos contatos) dessa natureza deixa de fazer sentido. Na própria
capital, Bissau, há pelo menos dois mercados: o Central e o conhecido como
Bandim. O segundo se dá ao ar livre e abrange um bairro inteiro. Nele há
um contato de povos e línguas das mais diversas procedências. A língua que
permite a comunicação entre todos é o crioulo, em suas diversas variedades,
como as que vimos na figura 1. Aliás, desde priscas eras os mercados têm
228 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

sido um locus de contatos multilíngues. Em Calvet (1987), diversos exem-


plos são apresentados e discutidos, inclusive casos em que não há uma lín-
gua franca para intermediar o entendimento, o que há é uma “troca muda”.
Mas, isso é o início de um processo que pode levar a uma pidginização (e
ulterior crioulização) e/ou ao surgimento de uma língua franca, o que o
próprio pidgin já é.
Não se podem esquecer as interações comunicativas que se dão no
seio dos grupos étnicos. Línguas como balanta, fula, mandinga são faladas
por contingentes consideráveis da população bissau-guineense. Devido a
casamentos interétnicos, algumas delas frequentemente fazem as vezes de
língua franca regional, secundando o crioulo, que é a língua franca por exce-
lência no país. Além disso, muitas pessoas têm pelo menos um conhecimen-
to passivo de mais de uma língua étnica. Tudo isso favorece o entendimento
(resultado de interação eficaz), que é um dos requisitos para que se possa
falar em comunidade de fala.
Da perspectiva ecolinguística, Guiné-Bissau é um ecossistema lin-
guístico, embora um ecossistema complexo, como sói ser a maioria deles.
A continuidade territorial (e as interações comunicativas que se dão nesse
território) são tão importantes que até alguns não linguistas, que partem de
perspectivas bem diferentes das nossas reconhecem o papel do território na
identidade da comunidade de fala bissau-guineense, embora visando a ou-
tros objetivos. É o caso de Augel (2006), que afirma que “a área geográfica,
o território passou metonimicamente a simbolizar a nação”, com o que “o
‘outro’ passou a ser exclusivamente o invasor, esquecendo-se qualquer tipo
de rivalidade ou de concorrência entre as etnias do país” (p. 89). A autora
continua falando de “unidade dentro da diversidade”, em “entendimento
interétnico e fortalecer a unidade nacional”, como ocorre no poema “Sinais
de paz” de Huco Monteiro que, ainda segundo ela, “defende a integridade
do território guineense”. Por fim, ela diz que “o sentimento de pertença ao
território-nação recrudesceu” (p. 91). Idéias semelhantes podem ser vistas
em Lopes (1987).
Em Augel (2007: 200-203), a autora retoma e aprofunda essas idéias,
salientando que durante a guerra civil de 1998-1999, “o território nacional
estava de repente ameaçado”, com “a presença de soldados senegaleses”
chamados pelo presidente que não conseguia se defender com recursos do
próprio país. Com isso, “o território passou a adquirir uma transcendência,
passou a ser um atributo cultural e social ao qual foi dada uma prioridade e
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 229

uma urgência, definindo-se por ele, através dele, a identidade nacional”. Isso
significa que, a despeito de ter sido delimitado pela violência, o território da
Guiné-Bissau é um fato consumado, uma realidade inevitável. Portanto, os
guineenses devem tentar entender-se, formando uma “nação”, mesmo que
plural, cuja unidade só é possível ser pensada no contexto da diversidade.
Na ecolinguística, tudo isso tem uma explicação bastante natural. Di-
ferentemente do linguista gerativista norte-americano Steven Pinker, que
defende a tese de que há um “instinto da linguagem”, o que na realidade
existe é o instinto da comunicação. Com efeito, comunicação é interação,
e interação existe em qualquer lugar e em qualquer tempo. Ela sim, é uni-
versal, uma vez que existe não só no nível social (linguístico, no caso), que
é a comunicação propriamente dita. Em termos evolucionistas, a interação
existe não apenas no nível do superorgânico, que é o social. No nível do or-
gânico, biológico, dos organismos vivos, ela é a base de tudo. Até mesmo no
nível do inorgânico, do mineral, ela está presente, aí incluso o subatômico.
Nesse nível, ela se manifesta sob a forma de energia. Por isso, em vez de
“universais da linguagem”, o que há são universais da comunicação.
Aplicando esses princípios à questão guineense, pode-se dizer que
o espaço (território) é condição necessária e suficiente para que aja inte-
ração. No caso específico, os guineenses de diversas etnias, com línguas
e culturas relativamente diferentes, foram delimitados no mesmo espaço
físico, no qual têm que conviver da melhor maneira possível. Quaisquer
seres que se veem juntos no mesmo espaço interagem. No caso de seres
vivos humanos, a interação mais comum é a linguística. Só que para que a
comunicação linguística seja eficaz é necessário que haja uma linguagem
comum, como sabemos desde pelo menos a teoria da comunicação for-
mulada pelos engenheiros Claude Shannon e Warren Weaver. No espaço
da Guiné-Bissau não havia essa linguagem comum única, mas uma plu-
ralidade de mais de 15 línguas diferentes. Como a comunicação tinha que
se dar de alguma forma, a criatividade dos guineenses fez do limão uma
limonada, ou seja, formou uma língua a partir de uma mistura da língua
do colonizador com as suas próprias línguas. Aí surgiu o crioulo, que é a
única língua que une o país e que, de acordo com o próprio líder do movi-
mento de libertação do país, Amílcar Cabral, é uma espécie de ponte para
se chegar à língua do ex-colonizador, o português. Mas, o mais importante
é que o crioulo é a língua de unidade nacional. É principalmente ele que faz
do país Guiné-Bissau uma comunidade de fala. Para mais detalhes sobre
230 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

o crioulo e sua importância na Guiné-Bissau como elemento agregador,


pode-se ler Couto (1994).
Para entender o que se passa na Guiné-Bissau é preciso recuar um
pouco na história a fim de vermos o que foi o ponta-pé inicial para o surgi-
mento do atual estado (nação?) Guiné-Bissau. Como sabemos, o país resul-
tou da presença colonial europeia na região, portanto, de uma força exóge-
na, de uma lógica exterior à África, isto é, a lógica colonial de Carlos Lopes.
O Movimento de Libertação Nacional (MLN) representou uma tentativa de
ruptura com essa lógica, de 1960 a 1974. Embora tenha conseguido uma
ruptura apenas política, o MLN tem uma importância fundamental para a
compreensão do atual estado chamado Guiné-Bissau. Por isso, devemos
levá-lo em consideração no caso presente.
Quer queiram os nacionalistas guineenses, quer não, a Guiné-Bissau
não existiria como tal hoje se não tivesse havido a colonização europeia, com
todas as suas consequências. Como disse Carlos Lopes, “não existe uma le-
gitimidade e continuidade territorial para a nação guineense, que não seja a
imposta pela presença colonial” (LOPES 1987: 61). Isso porque a realidade
primeira e primitiva da África são as etnias, com todas as suas diversidades,
ou seja, seus usos, costumes, línguas, enfim, com suas culturas específicas e
seus domínios geográficos respectivos (pp. 15-40). Foi a presença do colo-
nizador europeu a partir do século XV e do XVI que começou a alterar esse
quadro.
Naturalmente, nenhuma etnia aceitaria a língua de nenhuma outra
como língua de todo o país. Ter-se-ia que procurar uma outra língua que
servisse de expressão da unidade nacional. Diante desse estado de coisas, foi
inevitável a valorização de uma língua que espelhava a fusão da cultura eu-
ropeia com a africana que, desse modo, passou a ser o único princípio uni-
ficador do mosaico étnico e linguístico guineense. Essa língua era o crioulo.
Vê-se, assim, que a situação de fato criada pela presença do coloni-
zador europeu na África, mais especificamente na Guiné-Bissau em nosso
caso, fez do crioulo o fator maior de unificação das “colônias”, “províncias
ultramarinas”, ou seja lá que nome se lhes queira dar. Portanto, o atual esta-
do Guiné-Bissau se formou sob o signo do crioulo. E por “crioulo” deve-se
entender tanto a língua quanto o produto híbrido biológico do europeu com
o africano, às vezes também chamado de “filho da terra” ou “mulato”.
Ao falar da possibilidade de se considerar a Guiné-Bissau como uma
unidade do ponto de vista da comunicação, ou seja, como comunidade de
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 231

fala, de certa maneira já estávamos tocando numa das questões que mais
preocupam os governantes e a intelectualidade não só guineense, mas de
toda a África recém-libertada. Os colonizadores europeus criaram um pro-
blema para os africanos (países heterogêneos étnica e linguisticamente, com
fronteiras estabelecidas a partir exclusivamente dos interesses europeus).
Coube aos africanos encontrar uma solução para esse problema. No caso
específico da Guiné-Bissau, além de ter tido sua configuração atual deter-
minada pela lógica colonial, isto é, em função dos interesses portugueses na
região, era difícil manter a integridade do país (a antiga Guiné Portuguesa),
tanto frente aos régulos locais, que sempre faziam guerra aos portugueses
e/ou exigiam deles algum tributo, isto é, a “daxa” (do port. taxa), quanto
frente aos concorrentes europeus, como a Inglaterra, a Holanda e a França.
Esta última acabou abocanhando a Casamansa em 1886, apesar do empe-
nho pessoal do crioulo lusitanizado Honório Pereira Barreto para que isso
não acontecesse.
O sociólogo Carlos Lopes lança a pergunta: “Existe ou não uma na-
ção na Guiné-Bissau?”, embora não lhe dando uma resposta direta. A única
afirmação concreta dele é a de que “o movimento de libertação nacional
lhe introduziu um critério novo e pertinente, a vontade política colectiva de
construir uma nação” (Lopes 1988: 164). O tema “construção da nação” é
tão importante para os africanos que em 1986 se realizou em Bissau um co-
lóquio precisamente sobre ele, no caso só sobre os países africanos de língua
oficial portuguesa (PALOP). Posteriormente as atas foram publicadas sob o
título de A Construção da Nação em África (Bissau: INEP, 1988), nas quais
se encontra o texto de Lopes. Até hoje o discurso oficial enfatiza essa ques-
tão. Enfim, autoridades governamentais e intelectualidade estão engajadas
hoje como ontem em forjar a unidade nacional no conjunto heteróclito que
é a Guiné-Bissau.
A nosso ver, toda essa discussão não chega a bom termo porque des-
de as propostas de Cabral até hoje não tiveram as autoridades guineenses
coragem suficiente para tomar medidas radicais (que vão à raiz do proble-
ma), isto é, propostas como a do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Segundo
ele, dever-se-ia adotar o crioulo como língua oficial do ensino no país. O
português seria apenas uma língua estrangeira privilegiada. Pelo contrário,
todo o ensino escolar guineense se dá em português, do primeiro ao último
ano, ou seja, o décimo primeiro. O governo investe muito mais no portu-
guês do que nele. Aliás, no crioulo ele não investe absolutamente nada. O
232 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

próprio Amílcar Cabral reconhecia sua importância para a nação guineense,


mas encarava-o apenas como meio, ou ponte, para se aprender o português.
Parece que os únicos a defender decididamente a adoção do crioulo como
língua nacional e do ensino são os linguistas e outros intelectuais estrangei-
ros como Paulo Freire. Os guineenses no fundo querem é o acesso à língua
dominante europeia, apesar de o crioulo ser sua língua primeira, materna ou
não, no uso quotidiano. Ou seja, o crioulo vai abrindo caminho na marra,
sem nenhum amparo oficial.
Em síntese, quer se trate do crioulo nativizado, quer se trate do crioulo
aportuguesado, a única solução para a Guiné-Bissau qua nação e comunida-
de de fala homogênea é o crioulo. Qualquer outra solução seria contrapro-
ducente. Com efeito, as línguas étnicas desfariam o país que se pulverizaria
em múltiplas unidades nacionais e respectivos nacionalismos (veja-se o caso
das minúsculas Abcásia e Ossétia do Sul se desligando da Geórgia [2008]).
Além do mais, tais línguas extrapolam o domínio das fronteiras guineenses,
sendo faladas também em países limítrofes. É o caso de línguas veiculares
menores como o mandinga e o fula. Portanto, no complexo quadro multi-
linguístico guineense a única possibilidade de união nacional é o crioulo,
pois ele é a única língua que “não é de ninguém” em especial, mas de todo
mundo no país. Tanto que já no fim do século passado o Marcelino Marques
de Barros o chamava de “o guineense”.
Já houve tentativas, poucas, de etnicizar a luta por parte de alguns
líderes e intelectuais. Como já foi observado, isso só dividiria o país. Essas
tentativas não deixam de fazer sentido, pois a realidade mais legítima para os
povos africanos são suas respectivas línguas e culturas. No entanto, diante
do fato consumado imposto pelo colonizador, não lhes resta outra alternati-
va senão tentar se adequar a ele. As tentativas em sentido contrário têm le-
vado a resultados trágicos, como as guerras étnicas que houve recentemente
em Ruanda (entre hutus e tutsis), o genocídio no Sudão e a xenofobia de
grupos étnicos sul-africanos, entre muitos outros casos.
Felizmente, essas tentativas não têm vingado na Guiné-Bissau, nem
na maioria dos países africanos da região. Quando se fala em valorização da
etnicidade, fala-se no sentido de valorizar a cultura local, que apresenta uma
impressionante unidade, independentemente da etnia a que pertence cada
manifestação. A coisa chega a tal ponto que Mervyn Alleyne (1989) defende
uma unidade cultural africana em geral em um nível profundo, como na
forma interna (innere Form) de Wilhelm von Humboldt. Mesmo quando a
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 233

manifestação cultural concreta, a forma externa (äussere Form) do mesmo


autor, pareça diferente da de outras etnias, isso só se dá em nível superficial.
Há um fundo cultural comum a todos os africanos. Essa comunidade cultu-
ral vai aumentando à medida que se estreita o âmbito espacial. No caso da
Guiné-Bissau que, como já vimos, é um pequeno país de pouco mais de 36
mil quilômetros quadrados, essa unidade é ainda maior. Juntando-se tudo
isso e a presença naturalmente agregadora do crioulo à vontade política dos
dirigentes, que vivem tentando demarcar a comunidade bissau-guineense,
inclusive via escolarização em português, têm-se muitos ingredientes para
que essa demarcação se efetive. Mas, como se trata de um ecossistema flui-
do, poroso basta um solavanco para pô-la em perigo. É o que aconteceu du-
rante a guerra civil de 1998-1999. Porém, como as bases para a comunidade
estão presentes, a guerra não logrou êxito. Apenas depauperou o país ainda
mais do que ele já era.
234 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

XIII. PALAVRAS FINAIS

A cultura da Guiné-Bissau antes do advento dos europeus e, até certo


ponto, nos dias atuais, é fundamentalmente oral, fruto da própria história do
país que gerou uma situação pouco ou nada propícia a que a escrita possa
ganhar o lugar que lhe cabe na cultura nacional. São vários os elementos
que explicam essa situação, dos quais citamos alguns. Primeiramente, uma
política educativa colonial restritiva e tardia. Com efeito, o primeiro estabe-
lecimento de ensino secundário só foi aberto em 1958, enquanto que, por
exemplo, em Cabo Verde, o primeiro liceu foi inaugurado na Praia em 1860.
O acesso ao ensino era bastante restrito, estando dele excluída a maioria da
população (99,7% em 1961) abrangida pelo “Estatuto do Indigenato”. A
imprensa também chegou tardiamente à colônia, em 1879, enquanto que
nas demais colônias ela foi instalada entre 1842 e 1857. Os Boletins Ofi-
ciais, que possuíam secções reservadas a colaborações literárias, só apare-
ceram em 1880, na medida em que entre 1843 (data em que apareceram
os boletins nas outras colônias) e 1879 havia um boletim comum à Guiné
e Cabo Verde, editado na Praia, Cabo Verde. A primeira editora pública, a
Editora Nimba, só apareceu depois da independência em 1987, tendo tido
uma duração efêmera, fechando alguns anos depois. A estas causas remotas,
associam-se outras mais recentes que têm a ver com as insuficiências do en-
sino (a taxa de analfabetismo ronda ainda os 70-80%) e ao pouco ou quase
nenhum apoio à promoção da cultura nacional em geral e da literatura em
particular. A inexistência de bibliotecas, de uma casa de edições, a falta de
dinamismo da própria União Nacional de Artistas e Escritores são alguns
dos fatores que têm travado o desenvolvimento do movimento literário na-
cional. Abdulai Sila, o primeiro romancista contemporâneo do país, teve que
fundar a sua própria editora em 1994.
O uso da língua, e das línguas, é basicamente para a interação co-
municativa (interlocução, diálogo), mais do que em muitas outras culturas.
Os seus textos escritos (a literatura propriamente dita) ainda são bastante
incipientes, embora não insipientes, como salientamos em diversos capítulos
anteriores. Por isso, gostaríamos de terminar o livro apresentando um mo-
delo que mostra o lugar de cada manifestação linguístico-cultural, tomando
como ponto de partida a manifestação linguística por excelência, que é o
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 235

diálogo. Partindo desse modelo, veremos que “texto” não é só o escrito. A


começar dos enunciados que emergem dos diálogos, toda manifestação ver-
bal considerada em si mesma é um texto, inclusive os que são resultado de
atos de interação comunicativa, nos quais um emissor (falante) envia uma
mensagem a um receptor (ouvinte), como explicitado no capítulo IX. Quan-
do o ouvinte responde, temos um minidiálogo, como ocorre, por exemplo,
nas adivinhas.
O enunciado do falante pode ser encarado em si, momento em que se
tem um átomo textual. Combinado com a resposta, ou seja, o enunciado do
ouvinte, temos a célula textual, que é um minidiálogo, vale dizer, um texto
dialógico. Esse tipo de texto é o mais natural, o que se dá no dia-a-dia dos
membros da comunidade de fala. A tal ponto que Bakhtin (1981) considera
o enunciado do falante com o do ouvinte, o diálogo, o ponto de partida até
para a paragrafação. Além de mais natural, esse texto é espontâneo. Ele pode
ser de tamanho os mais variados. A sua manifestação escrita mais conheci-
da é o drama, a peça teatral. Na Guiné-Bissau, as adivinhas se aproximam
dele, como vimos no capítulo IX. Mas, no interior dos contos, das novelas e
dos romances pode-se encontrar diálogo também, mais nos primeiros e nos
últimos do que na novela, segundo Massaud Moisés, em seu livro A criação
literária (1967).
Na literatura, pelo menos como é entendida pelos “literatos”, o que
predomina é o texto monológico (monólogo). Como salientou também
Bakhtin, trata-se de uma situação menos natural do que o texto dialógico.
Este é resultado da troca entre os comunicantes sobre o entorno, o meio
ambiente. Geralmente falam de seus interesses imediatos, tanto se referindo
a dados desse entorno quanto para finalidades meramente fáticas, de comu-
nhão, ou seja, de solidariedade grupal e de manutenção dessa solidariedade.
O diálogo se dá de modo inextricavelmente ligado à ecologia da interação
comunicativa. O texto monológico, por seu turno, já se apresenta relativa-
mente distanciado dessa ecologia, mesmo quando é até certo ponto referen-
cial. Enfim, todo e qualquer texto monológico tende a apresentar um maior
ou menor distanciamento de um presumível referente, vale dizer, do mundo.
Vejamos o gráfico abaixo. A seta (a) mostra o percurso de distancia-
mento da situação normal de uso da linguagem, ou seja, o diálogo. A seta (b)
mostra o percurso inverso. Dito de outro modo, (a) vai do concreto para o
abstrato, ao passo que (b) vai no sentido do abstrato para o concreto.
236 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

Nesse gráfico pode-se perceber visualmente que o diálogo é o pro-


duto imediato da interação comunicativa; ele emerge diretamente dela, na
situação (1). Todos os demais tipos de texto se distanciam dela. Primeiro,
temos os textos referenciais, ou seja, aqueles que de alguma maneira falam
do entorno de quem os emite. Trata-se, portanto, de textos descritivos. Se
descrevem estados de coisas (cf. Wittgenstein 1968), são do tipo que se cha-
ma de descrição (2) propriamente dita. Se descrevem eventos, como os fatos
narrados nas storias, constituem o que se chama narração (3).
Há também os textos não referenciais, ou seja, aqueles cujo objetivo
não é nem descrever um estado de coisas nem narrar um fato acontecido
propriamente dito. De qualquer forma, há um distanciamento gradual em
relação ao mundo, começando pela ficção (4), que tem muita afinidade com
a narração, embora não seja referencial. Ela narra “fatos” do meio ambiente
mental e do social, não do natural ou físico, quando não pura e simplesmen-
te os inventa, mas sempre tendo por base experiências do mundo real. Ela
é possível devido à relativa autonomia que a linguagem adquire depois de
formada, o que lhe permite falar inclusive de unicórnios, de mundos imagi-
náveis e possíveis, não de mundos reais, como em geral se faz na descrição e
na narração. O texto poético, a poesia (5), cujo resultado é o poema, sequer
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 237

descreve situações imaginárias. Pode até usar dados desses mundos, mas
seu objetivo é concatenar palavras de modo a produzir efeitos agradáveis e/
ou surpreendentes no leitor. O poeta pode combinar ideias a seu belprazer,
em consonância com o dito latino de que poetis et pictoribus omnia licet (aos
poetas e aos pintores tudo é permitido).
Por fim, temos a dissertação (6), cujo objetivo não é descrever esta-
dos de coisas, narrar eventos reais (narração) ou imaginários (ficção) nem
combinar ideias tiradas dos mundos reais e/ou imaginários para efeitos es-
téticos (poesia), mas simplesmente concatenar ideias, de modo a produzir
um arrazoado, como comprovar uma tese, por exemplo. Um bom exemplo
são os silogismos, como “Todos os homens são mortais; Sócrates é homem,
logo, é mortal”. Mas, os textos tipicamente dissertativos com que lidamos
são os filosóficos.
A descrição lembra o signo indicial de Peirce, em que há uma ligação
real entre o falar e o de que se fala. Normalmente não há um distanciamento
muito grande entre o que se diz e aquilo de que se fala. A narração remete
mais ao signo icônico, uma vez que nesse tipo de texto há um distanciamento
temporal entre o momento do evento e o momento de produção do próprio
texto. Tanto que nas línguas ocidentais a forma verbal da narrativa é quase
sempre o pretérito (cf. Veni, vidi, vici), embora nas línguas crioulas (caso do
guineense) geralmente o narrador se coloca no próprio momento do evento,
com o que a forma verbal narrativa é o verbo em sua forma não marcada (N
bai = eu fui). De qualquer forma, mesmo nesse caso, o narrador só pode
narrar um evento depois de ele ter acontecido, motivo pelo qual os verbos em
sua forma simples do crioulo são traduzidos pelo nosso pretérito. Os demais
tipos de texto, dissertativo, ficcional e poético se aproximam mais do signo
simbólico do mesmo autor, uma vez que, neles, a conexão que há entre texto e
mundo exterior é meramente convencional, quando há conexão.
Pode-se dizer que a descrição tem a ver com o substantivo, tanto que,
mesmo quando se usa verbo, o mais comum é o verbo “ser”. A narração tem
mais afinidades com o verbo, uma vez que nela predomina a ação. Ação é,
prototipicamente, expressa em verbos, nas línguas que os têm. A disserta-
ção, por fim, lembra os conetivos, já que o que interessa é a concatenação
de idéias, tanto com finalidades estéticas (poesia) quanto com o objetivo de
argumentar. Enfim, trata-se de conexão de ideias, com finalidades diversas
conforme o texto for dissertativo, ficcional ou poético.
Todas essas formas foram representadas nos textos precedentes. O
238 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

diálogo (1) sob a forma teatral e cinematográfica ainda está engatinhando


na Guiné-Bissau. No entanto, ele está muito bem contemplado nas adivinhas
como se pode ver no capítulo IX. Nesse capítulo vimos inclusive que há um
fluxo dialógico, que geralmente termina em um congraçamento. Quanto à
descrição (2), aparece sob variadas formas em diversos capítulos. Um deles
é o que descreve a situação linguística do país (cap. I), embora às vezes
ele contenha algo de dissertação também. O que fala da situação da língua
portuguesa na Guiné-Bissau (cap. II) também está nesse caso, nas mesmas
circunstâncias. Nessa categoria se inclui ainda o capítulo que traça um per-
fil geral da literatura (cap. III), uma vez que ele tenta expor (descrever) o
que existe na literatura guineense, embora frequentemente de mistura com
um pouco de narração. Por fim, o capítulo que apresenta uma radiografia
a Guiné-Bissau como uma comunidade de fala e, consequentemente, um
ecossistema fundamental da língua (cap. XII) também é descritivo, assim
como o que dá uma visão geral das manifestações culturais bissau-guineen-
ses (cap. XI).
A narração (3) se manifesta prototipicamente nas storias, que são as
narrativas orais discutidas no capítulo VI, e nos contos analisados no capí-
tulo IV. Vimos que, nelas, o momento de referência não é o momento em
que se fala, mas o do próprio evento. Por esse motivo, a forma verbal que
se reporta a ele é o verbo puro, sem nenhuma partícula modalizadora (no
crioulo geralmente não há flexão). Isso significa que uma frase como mininu
kume mangu equivale a “o menino comeu a manga”, não “*o menino come
manga”, já que em português o tempo zero (0) é o momento do ato de fala,
não o do próprio evento. Tudo que ocorre antes dele é passado; tudo que
ocorre depois, futuro.
Talvez a única modalidade de texto que não esteja representada de
modo pleno e direto nos capítulos precedentes seja a dissertação (4), em-
bora nos (cap. IV) ela apareça complementarmente. Inclusive a ficção (5)
já existe na literatura guineense, como testemunham os contos e romances
discutidos no mesmo capítulo. No entanto, fora do que tradicionalmente se
tem considerado como literatura (belas letras) a dissertação está amplamen-
te presente, nos ensaios sociológicos de Carlos Lopes e Carlos Cardoso, nas
crônicas jornalísticas, bem como nas crônicas intituladas “Coisas Nossas”,
de Jorge Ampa, entre outras modalidades de texto. Quanto à filosofia, que
seria o texto dissertativo por excelência, parece ainda não ter sido produ-
zida no país, a não ser um que outro pequeno ensaio publicado aqui e ali.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 239

Entretanto, em um sentido mais amplo, pode-se dizer que ela está presente
nos discursos dos anciãos, os omi garandi, cujos argumentos são sempre
respeitados, por conterem a sabedoria ancestral. Até certo ponto, os provér-
bios também contêm características dissertativas, sobretudo se levarmos em
conta que contêm ensinamentos. A modalidade texto poético ou poema (6)
está contemplada no capítulo VII, sobre a poesia em crioulo, e no V, sobre a
poesia em português.
Os assuntos tratados no capítulo X (antroponímia) e no VIII (provér-
bios) são temas especiais. O primeiro tem a ver com as unidades lexicais da
língua (antropônimos), que constituem as bases para se criarem textos, ou
seja, a referência. Os nomes próprios estudados na primeira estão intima-
mente imbricados no meio ambiente cultural guineense. Os provérbios, por
seu turno, parece compartilharem algo com os itens lexicais. Seriam frases
(enunciados, textos) cristalizados, que funcionam como um todo compacto.
Com efeito, um provérbio pode descrever uma situação, narrar uma mini-
história, ou argumentar sobre determinado assunto, com o objetivo de trazer
à baila um ensinamento. Basta dar uma olhada nos 46 exemplares transcri-
tos no capítulo VIII para se constatar isso.
A Guiné-Bissau é um país em formação, como os próprios intelectuais
e políticos locais admitem. Tanto que o tema “formação da nação” é bastante
recorrente. Isso se deve ao modo pelo qual seu território foi delimitado, ou
seja, pela violência dos europeus. Com isso, tudo é incipiente. A literatura
não poderia ser diferente, tanto que há até o problema de se decidir em que
língua escrever prosa, poesia e ficção, como acontece com Odete Semedo. A
língua portuguesa ainda não se implantou plenamente no país; o crioulo ain-
da não dispõe de um sistema de escrita aceito por todos e as línguas étnicas
ainda não estão codificadas. Somando isso às precariedades do país, entre
as quais a da imprensa, o povo guineense fica limitado a fazer o que sempre
fez, produzir textos dialógicos, storias, contar adivinhas e provérbios. Nesse
sentido, ele tem uma riqueza cultural inigualável. A literatura propriamente
dita já existe, mas ainda incipiente, como tem sido salientado em diversas
oportunidades.
240 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

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LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 245

APÊNDICE
Entrevista que Pascoal D’Artagnan Aurigemma concedeu a Hildo Honório do Couto
(Embaixada Brasileira na Guiné-Bissau, 13 de outubro de 1990)

hhc- Quantos anos o senhor tem?


pda - Eu tenho 52, a caminho de 53.

hhc - O senhor nasceu onde?


pda - Eu nasci em Farim, região de Oio, República da Guiné-Bissau.

hhc - Qual foi a primeira língua que o senhor falou?


pda - A minha língua materna, que é o crioulo, depois com os anos, quando fui crescendo,
fui aprendendo o português, quando fui para a escola, claro que consegui de facto apren-
der melhor o português e avançar.

hhc - O senhor viveu fora da Guiné?


pda - Vivi alguns anos fora da Guiné, sim senhor. Saí daqui pra Cabo Verde, depois de
Cabo Verde fui pra Portugal, depois alguns países como p. ex. Inglaterra, França, Suíça,
Espanha... Estive ao todo uns treze anos fora da Guiné-Bissau, a primeira vez. A segunda
vez, estive mais uns dois ou três anos. Inda agora estou cá outra vez na Guiné.

hhc - O senhor estudou fora da Guiné?


pda - Estudei em Cabo Verde e em Coimbra.

hhc - O que que o senhor estudou nesses dois países?


pda - Em Cabo Verde eu fiz o primeiro ciclo dos liceus. E em Portugal concluí os estudos
liceais, e andei matriculado no primeiro ano de direito, mas depois tive que interromper
devido à escassez financeira. Naquela altura nós, os africanos, tínhamos muita dificuldade
em conseguir bolsas de estudo, o que agora já não acontece, agora já há mais facilidade-
des, há mais possibilidades. Mas nós naquele tempo tinhamos essas dificuldades. Por isso
mesmo não pude avançar. Tive que interromper os estudos. A partir daí andei então pelo
estrangeiro, como se diz, a ver se conseguia melhorar a minha situação, como se diz, a ver
se conseguia ter um salvo-conduto, para arrumar para a América Central. Ali então talvez
se conseguisse um emprego, uma possibilidade qualquer para estudar, num país de língua
oficial portuguesa, p. ex., como o Brasil. Mas, acabei por desistir exatamente porque não
tinha condições, pra poder fazer essas andanças.

hhc - A sua vida artística, o senhor poderia falar um pouquinho sobre ela?
pda - Bom, eu desde criança, já tinha uma certa tendência para escrever alguns contitos
caseiros e alguns poemas que dedicava normalmente às minhas colegas de escola e a al-
guns amigos meus. Mas com o tempo, fui notando de facto que tinha uma certa tendência
246 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

para a literatura e a partir daí fui procurando ler, cultivar-me cada vez mais e melhor. Fui
tentando escrever, escrever. Até que hoje tenho feito alguma coisa. Já escrevi nos meus
tempos de jovem um livro de contos, que tem o título de Ressaca, publicado nos anos
cinquenta. Depois, a partir daí parei de escrever. Fui escrevendo meus continhos, uns
poemas que foram publicados em alguns jornais portugueses e outros brasileiros também.
E a partir daí vim pra minha terra, e aqui escrevi um caderno de poemas, Djarama, quer
dizer, um agradecimento aos nossos combatentes, por terem conseguido a liberdade de
nosso país, a independência nacional, portanto. E depois, mais tarde, escrevi um carder-
no de poemas, que agora está aqui a ser apreciado, que é o Amor e esperança. E tenho
neste momento um outro caderno de contos, que é A fonte de Plubá, que é exatamente
histórias do passado colonial português. É tudo quanto tenho presentemente. Além de
contos e poemas dispersos.

hhc - Sobre a questão política, como foi sua vida durante o período da luta?
pda - Bom, como todos os africanos, tanto da Guiné, como de Cabo Verde, e agora
Moçambique, São Tomé, claro, todo jovem daquele tempo, eu estou sentindo que estáva-
mos a ser explorados (sentíamos dentro de nós próprios uma situação de instabilidades)
por um grupo, ou grupos, de gente que não só castigava, massacrava, prendia, matava,
fazia tudo. E depois que abriu a guerra, que começou a Guerra de Libertação Nacional,
imediatemante, nós todos, eu, por exemplo, procurei colaborar, dentro de minhas possi-
bilidades, com o partido, PAIGC, por ser o mais democrático. E hoje, felizmente, estamos
livres em nossa pátria de Amílcar Cabral.

hhc - Vamos para um assunto que me interessa muito, que é a questão das línguas. O que
que o senhor acha do crioulo?
pda - Bom, o crioulo, eu acho que é bom. É uma língua nossa, pertence-nos. Nós senti-
mos o crioulo dentro de nós próprios. Precisamos efetivamente ver o crioulo mais evoluí-
do, mais estudado. Por forma que, mais dia menos dia, ele venha a constituir, no mundo,
ao contrário, uma língua acessível a todos, não só a nós guineenses. O crioulo tem sido
a língua guineense que, efetivamente, nos tem conduzido, a nós todos, filhos desta terra,
muito embora a Guiné-Bissau tenha sido um autêntico palco de línguas nativas, fula,
balanta mandinga etc. etc. O crioulo tem conseguido congregar todos. Precisamos de
gente como o senhor Hildo, o professor Hildo, portanto, que se debruce, que nos ajude
a encontrar as possibilidades para fazer com que a língua crioula seja gramatizada com
todos os seus pormenores para que venha mais tarde a ser utilizada em qualquer assem-
bléia pública.

hhc - Existe hoje alguma etnia, como os felupes, onde as pessoas não falam nem enten-
dem o crioulo?
pda - Existem sim. Sobretudo aquelas tabancas mais recônditas, em que aquele povo
vive praticamente isolado, sem nenhuma possibilidade de contactos conosco, em cidades
como Bissau etc. Existe sim. Essas existem.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 247

hhc - Eu tive informação de outros guineenses de que, mesmo nesses casos, sempre é
possível encontrar uma outra pessoa que fala o crioulo. O senhor concorda com isso?
pda - Sim, pode ser que haja, casos isoladíssimos até. Porque, a viver mesmo nessa taban-
ca talvez seja um pouco arriscado dizer que sim. Mas, isso não quer dizer que não haja
um ou outro indivíduo, ou de passagem, ou por qualquer motivo, a sair da cidade para lá,
pode ser que haja, portanto.

hhc - Voltando à questão política, sobre o período Luís Cabral, na Guiné-Bissau?


pda - O período Luís Cabral, na Guiné-Bissau. Não, eu não gostaria de falar desse perí-
odo. Enfim, um período bastante negativo. Um período muito... Enfim, não vale a pena
lembrar. Falar durante esses três anos que Luís Cabral esteve à frente dos destino de
nosso país.

hhc - Mas, eu como estrangeiro, eu tenho muito pouca informação sobre esse fato. O
senhor poderia citar alguma coisa marcante que aconteceu no período dele?
pda - As execuções, por exemplo. Execuções indiscriminadas e em massa. Coisa horrível.
Africano a matar africano. Às vezes sem grandes motivos. Nunca nos caiu bem. E talvez...
Enfim, uma coisa horrível.

hhc - Eu fiquei sabendo que ele era nascido em Cabo Verde. Será que isso teria alguma
coisa a ver com esse fato?
pda - Eu não sei bem, o que que ele pensava. Guineense ele não era, com certeza. Ca-
boverdiano é. O que que ele pensava sobre essa situação, concretamente, não sei dizer.

hhc - Fazendo a pergunta de outra maneira. Ele era a favor da unidade Cabo Verde-
Guiné-Bissau?
pda - Eu acho que sim. Estou convencido disso. Até porque ele defendia isso, essa ideia

hhc - Quanto à legalidade na Guiné-Bissau, tem uma constituição?


pda - Quanto a?

hhc - Existe uma constituição na Guiné-Bissau?


pda - Existe.

hhc - Ela foi elaborada quando?


pda - Concretamente, não me recordo. Mas sei que existe.

hhc - Já houve uma revisão da constituição?


pda - Fala-se nisso.

hhc - Está se falando agora?


pda - Sim.
248 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

hhc - Em que língua o senhor acha que se expressa melhor e com mais facilidade?
pda - Crioulo e português.

hhc- Em primeiro lugar?


pda - O crioulo. Em primeiro lugar o crioulo. Em segundo lugar o português. Não me
abdico do crioulo. Porque é a minha língua de nascença, minha língua-mãe. O português,
gosto muito da língua portuguesa, por isso faço sempre os possíveis, o melhor, para cul-
tivar a língua portuguesa.

hhc - E por que que o senhor produziu toda a sua obra literária em português?
pda - Foi uma obra de acaso. Mas não quer dizer que eu não saiba escrever em crioulo.
Também sei escrever em crioulo. Escrevi em português como poderia ter escrito [...]

hhc - Seria possível escrever um conto, ou um romance, em crioulo?


pda - Eu acho que sim. É uma questão de tempo. Porque, quem está habituado a escrever
só em português, para escrever em crioulo leva talvez o dobro do tempo que levaria para
escrever em português. Exatamente porque as formas [...].

hhc - E será que o crioulo tem um vocabulário suficiente para tratar de um tema abstrato,
de política, por exemplo?
pda - O crioulo é uma língua pobre, não há dúvida. Mas, nós que conhecemos o crioulo
sabemos dar-lhe aquela forma natural que nos leva a atingir aquele ponto que nós preten-
demos, muito embora seja uma língua pobre como eu lhe disse. É isso.

hhc - O que que o senhor acha desse crioulo moderno, que se usa com uma grande quan-
tidade de palavras portuguesas, às vezes até uma frase quase que inteira em português?
pda - Bom, é a juventude de hoje. Já não se compara com a juventude de nosso tempo.
Em nosso tempo falávamos o crioulo puro. Agora ouço falar em crioulo aportuguesado.
Não entendo bem porquê. Se é mais fácil para eles; se é mais bonito para eles, não sei. Eu
gosto do meu crioulo, pronto. Aquele crioulo mesmo, requintado, com tudo, com uma
malaguetazinha, um limão.

hhc - O senhor acha válida essa modernização do crioulo, digamos assim?


pda - Eh!, válido! Nesse caso falaríamos português, em vez de crioulo. Ou falamos um
crioulo, como deve ser, ou então vamos falar português, como deve ser. Neste caso então,
se o espanhol estivesse misturado com o português, qual seria a validade do português,
qual seria a validade do espanhol?

hhc - Mas, nesse caso, então, o crioulo não teria futuro porque o mundo está evoluindo
cada vez mais.
pda - Está evoluindo, concordo, perfeitamente com isso. Mas, não se vai tirar todo o
primor ao crioulo, porque se formos substituir o crioulo, se formos juntando ao crioulo
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 249

muitas palavras do português, o crioulo de antigamente acaba por desaparecer de facto.


Desaparecer ou então entramos todos com o português. A evolução com maior rapidez
até. Eu não estou de acordo com isso. Eu vejo, por exemplo, os notociários em portu-
guês. Quando vou ler em crioulo, é quase como ler em português. As palavras são quase
todas em português. Já não é crioulo. O homem da tabanca não está a perceber certas
partes, próprias do que é o crioulo, de origem crioula. Ele fica na mesma, sem saber o que
quer dizer. O noticiário em crioulo é para ajudar aqueles que não sabem mesmo nada de
português.

hhc - Qual é sua opinião a respeito do crioulo e do português no futuro da Guiné-Bissau?


pda - Os dois juntos, de facto. Farão carreira, as duas línguas mesmo.

hhc - Como?
pda - Tanto o crioulo bem falado como o português bem falado servirão os interesses dos
guineenses.

hhc - Quer dizer, o senhor defende, então, que o guineense fosse um povo bilíngue!
pda - É. Exactamente. Perfeito. É essa a idéia.

hhc - Mas, então, haveria setores em que o português seria usado e setores em que o
crioulo seria usado. Se sim, quais são?
pda - Não. Quer dizer, não é sectores em que português seria usado e sectores em [que
o crioulo seria usado]. Qualquer cidadão estaria à altura de falar tanto o português como
deve ser, ou o crioulo como deve ser. Ele poderia utilizar essas duas línguas em qualquer
situação, em qualquer sector da vida do país.

hhc - Eu queria me referir, especificamente, por exemplo, se se usaria o crioulo numa si-
tuação assim mais voltada mais para o lar, para a casa, para a vida familiar, e o português
numa vida mais voltada para a rua e para o exterior. É nesse sentido que eu queria dizer.
pda - Na minha forma de pensar, tanto a língua crioula seria usada na vida familiar como
a língua portuguesa na mesma. Quer dizer, uma família ficaria a conhecer tão bem a
língua portuguesa, como também ficaria a conhecer tão bem a língua crioula. Porque
do crioulo, eu penso que nós não podemos abdicar, é a nossa língua-mã. E o português
é uma língua de escola que aprendemos, uma língua já com muita cultura, com muitas
possibilidades. Portanto, acho que serve. Serviria mesmo os interesses [...]

hhc - As reuniões da Assembleia, em que língua que elas se dão?


pda - Assembleia Nacional Popular?

hhc - É.
pda - Não sei. Eu nunca lá vou. Acho que deve ser em crioulo, talvez. Devido à maior
porcentagem ser de pessoas que dominam mal o português.
250 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

hhc - Será que há algum representante que não domina nem o crioulo, digamos, um de
uma etnia?
pda - Bom. Não conheço. Nunca lá entrei. Nunca assisti uma reunião da Assembleia.

hhc - Os discursos do presidente à nação são feitos em que língua?


pda - Na maior parte em português. Na língua portuguesa. Depois são passados também
para a língua crioula, para aquelas pessoas que não compreendem o português. Que têm
dificulades com o português.

hhc - Mas, quem que passa para o crioulo? É ele mesmo ou outras pessoas?
pda - Eu penso que deve ser outras pessoas. Não sei. Deve ser outras pessoas que depois
que ele fez o discurso passam para o crioulo.

hhc - Quer dizer que ele não lê o discurso em português e depois repete em crioulo!
pda - Não. Não ouvi nenhuma vez isso. Também às vezes ele faz discursos em crioulo,
mas lá fora, na tabanca, para nosso povo, né?

hhc - Ah, sim. Essa é outra pergunta que eu queria fazer. Ele já fez algum discurso assim
em praça pública?
pda - Já fez.

hhc - Em que língua?


pda - Português. Crioulo. Português. Nosso presidente é muito querido. Muito conhe-
cido.

hhc - Qual é a etnia dele?


pda - Parece-me muito, não tenho certeza, mas parece-me muito que é pepel.

hhc - Pepel é aqui da região de Bissau, né?


pda - De Bissau.

Parte da entrevista em crioulo


[A solicitação [pergunta] foi feita antes de ligar o gravador)

Nbon, gosi ja ami...ami me D’Artagnan, Pascoal D’Artagnan, di Jeba ki, N na tona


papia pa bos, ma na kiriol gora.
N misti fala kuma N nasi li na Farin, na Oio, na 1938, 15 di marsu, ma N kiria li
na Bissau. N kiria ku ña kuñadus. Elis dan tok N kansa N sedu omi. N pasa ña mininesa
suma tudu mininus la pasa, brinka-brinka, kuri, juga bola i... N bin fasi ña skola primariu
li, dispus N kunsa na sina lingua di purtugis. Oca ki N kaba sina ja lingu di purtugis ki N
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 251

na linpu un bokadu, N pega fasi ña poemas ku ña kantus ki N ta skirbi-skirbi. I, entre-


tantu, N bin bai pa Cabo Verde, Nde ku N bai fasi purmeru siklu ku liseu. Oca ki N kaba
N ba pa Portugal, N ba studa liseu la tanbe. N kabanta liseu tudu, N bin fasi ña purmeru
anu tanbe di direitu, ma N ka ciga di konklui pabia N ka tene ba diñeru. Entretantu na kil
kansera la tudu, N bin oja kuma N misti bai pa dianti ma jitu ka ten. N resolvi ranja ña
sedula maritima pa N jubi si N ta oja ba manera pa N bai pa America Central. Ma N ka
konsigi bin tona bai mas para America Central purki pusibilidadi ka ten. N kuri-kuri un
bokadu pa Eropa te ki na fin. N bin tona riba mas. N bin N sta na Guine ate aos N sta li.
Kiriol. Nbon, ña mame i balanta mansonka. Ladu di ña mame tudu...ña jorson di
ladu di ña mame tudu i mansonka. Ña mame muri na 1978, i muri ku 77 anu, i Nteradu
na Farin. Ña pape iera italianu, i bin pa Gine ma N ka kunsi nin familia la di ña pape. I
bin pa Gine, na Farin di sinta ba nel tok i bin tarda i duenti i bin bin pa Bissau. Ami i
fiju di ña mame. Na ladu di ña mame, anos i tris ermon, na ladu di ña pape anos tanbe i
tris ermon. Ami ki i uniku macu na ladu di ña pape. Ami i na garandi tanbe na ladu di ña
mame. Manera ku na ña jorson asin ki N kaba.
Nbon, es i ña mensajen pa bos ki na studa na Brasilia. Aos, N ta sinti dentru di mi
grandi alegria pa N sibi kuma jovens di ña tera na numeru mas-o-menus di des, sigundu
profesor Hildo falan li gosi, sta la e na studa. El i na leba ña kadernu di poema si i ten
alguns palabras la ki i ka na kunsi na kriol bo ta judal ku el pa i mendal el, pa pul na ...pa
i splikal ke ki ki palabra na kiriol misti fala. N ta diseja pa bo studa tudu diritu pa bo pega
tesu, purki talbes bo na kunsi, ami ña nomi i D’Artagnan. Bo ka iari kunsi ami tanbe N ka
sibi abos i kins ki kins ki sta la ma di kualker manera i entri nos ermons i ante di nos di un
tera. N deseja bos saudi, pa Deus kunpaña bos pa bo forma, bo bali amana-amaña bo bin
judanu ku e no pais pa no lebal pa dianti. Pa Deus kunpaña bos i juda bos diritu, pa ka bo
diskisi di nos pa li. No ka misti diñeru pa bo bin patinu, no misti bo kabesa, bo sabeduria,
bo balur di studu ku bo ba studa pa bo bin judanu ku el. Kilis ki i dutur, bo bin kuranu
anos ku beju; kilis ki i adivogadu bo bin judanu ba li pa ka lebsimenti ten. Kilis ki injeñeru
bo bin judanu ku kasa. Ki ki i labradur pa i bin judanu. Ki ki ten kursu di injeñeru labra-
dur pa i bin judanu ku no tera li, pa no pudi labral diritu, enfin, pa bo judanu li pa no bai
pa dianti. El ki N deseja, pa bo pega tesu, pa bo juda tan prufesor Hildo, purki prufesor
Hildo i bon omi. I bin judanu pa i judanu na no kriol di no tera, nos i ta pablikadu i ba ta
sinadu pa no ba ta papia tan kriol linpu puru.
Kiriol ki skirbidu, kiriol ki no na ba ta skirbi Nutru propi. Nbes di no ba ta utilisa
son purtugis no ta ba ta utiliza tan kriol la nu kartas ku nos ta skirbi. I kila la ki N misti ba
fala bos, i kila la ki N deseja fala bos. Bon sorti i muitas felisidadis pa bos. Bo obi?

Tradução

Bom, agora, eu sou D’Artagnan, Pascoal D’Artagnan, de Geba, que agora volta a falar-
lhes, mas desta vez em crioulo. Gostaria de dizer que nasci em Farim, região de Oio,
em 1938, 15 de março, mas me criei em Bissau. Fui criado com meus cunhados [..], até
virar homem. Eu passei minha infância lá como qualquer criança, brincando, correndo,
252 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló

jogando bola. Fiz lá o curso primário, depois comecei a aprender a língua portuguesa.
Quando terminei de aprender bem o português, comecei a fazer meus poemas e meus
contos. Nesse meio tempo, fui para Cabo Verde a fim de fazer o primeiro ciclo do liceu.
Assim que terminei, fui para Portugal, a fim de estudar o liceu lá também. Terminado
o liceu, comecei a fazer o primeiro ano de direito, mas não cheguei a concluí-lo por-
que não tinha dinheiro. No meio de muita dificuldade, tentei avançar, mas não havia
como. Resolvi arranjar uma cédula marítima a fim de ver se haveria um modo de ir par
a América Central. Mas, não consegui ir para a América Central, pois não tinha meios
para isso. Corri para lá e para cá, fui para a Europa, onde fiquei até retornar. Estou na
Guiné até hoje.
O crioulo. Bom, minha mãe era balanta mansoanca. Do lado de minha mãe, todos
os meus parentes são mansoanca. Minha mãe morreu em 1978. Ela morreu com 77
anos. Está enterrada em Farim. Meu pai era italiano, ele veio para a Guiné, mas eu
nunca conheci os parentes dele. Ele veio para a Guiné, para Farim, onde ficou até
adoecer e vir para Bissau. Eu sou filho de minha mãe. Pelo lado de minha mãe, somos
três irmãos. Pelo lado de meu pai, são também três irmãos. Eu sou o único do sexo
masculino pelo lado de meu pai. Eu cresci junto com minha mãe. Sobre minha família
é só isso.
Bom, esta é minha mensagem para vocês que estão estudando em Brasília. Sinto em
mim uma grande alegria agora, por saber que jovens de minha terra em número de
aproximadamente dez, segundo o professor Hildo acaba de me dizer, estão lá estudan-
do. Ele está levando um caderno de poemas meus. Se houver algumas palavras crioulas
que ele não conhece, peço-lhes que o ajudem a entender o significado delas. Desejo que
vocês todos estudem bastante porque talvez vocês conheçam, meu nome é D’Artagnan.
Vocês podem não me conhecer. Tampouco eu sei quem é que está lá mas, de qualquer
maneira, estamos entre irmãos, pois somos da mesma terra. Desejo-lhes saúde, que
Deus os acompanhe e que se formem. No futuro, vocês poderão ajudar-nos, a fim de
levar nosso país para frente. Que Deus os acompanhe e os ajude, e que não se esqueçam
de nós aqui. Nós não queremos que nos deem dinheiro. O que queremos é o conhe-
cimento que trarão, sua sabedoria, o valor do estudo que estão fazendo que poderá
nos ajudar. Os que forem médicos, que venham curar nossos velhos. Aqueles que são
advogado, que nos auxiliem em nossas pendências. Os que são engenheiros, que nos
ajudem a construir casas. Quem for lavrador, que venha a nos ajudar. Quem tiver curso
de agrônomo, que venha a nos ajudar a cultivar a terra, a fim de a cultivarmos de modo
correto, enfim, que nos ajudem a avançarmos. É isso que desejo, que deem duro, que
ajudem o professor Hildo, porque o professor Hildo é boa pessoa. Ele veio ajudar-nos
com o crioulo de nosso país. Quando [seu trabalho] for publicado, poderemos aprender
a falar o crioulo puro. Um crioulo escrito, no qual poderemos escrever uns aos outros.
Em vez de utilizarmos apenas o português, poderemos utilizar também o crioulo nas
cartas que escrevermos. É isso que gostaria de lhes dizer. Boa sorte e muitas felicidades
a vocês todos. É o que eu queria dizer.
LITERATURA, LÍNGUA E CULTURA NA GUINÉ-BISSAU 253

NOTA
A entrevista foi gravada em fita cassette, em um gravador antigo, de modo que há muito
ruído. Além disso, D’Artagnan já estava, com voz fraca, visivelmente debilitado pelo mal
do qual viria a falecer pouco mais de um ano depois. Há muitas repetições de palavras e
de frases, além de pausas, pigarreios, risos, ênfases tonais em determinadas palavras, que
não foram levadas em consideração. O sinal [...] indica trechos incompreensíveis. Afora
isso, a transcrição é fiel ao que foi dito. A gravação original está guardada. Minha inten-
ção foi trazer a público esta que talvez seja a única entrevista deste autor a ser divulgada.
O ato de transcrição foi muito penoso, mas para mim valeu a pena. Espero que o(a)s
leitore(a)s me perdoem as falhas (hhc).
254 Hildo Honório do Couto e Filomena Embaló
Papia 20, 2010, foi composto em
tipologia Life, corpo 10,5 pt, impresso
em papel Pólen 80g nas oficinas da
thesaurus editora de brasília.
Acabou-se de imprimir em 2010, ano
em que se comemoração aos 20 anos de
existência da revista.

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