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CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”.

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Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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CAUPOLICÁN, ATAHUALPA, AIMBERÊ E CUAUHTÉMOC:


ÍNDIOS VENCIDOS NA PINTURA HISTÓRICA LATINO-AMERICANA*

Maraliz de Castro Vieira Christo


Universidade Federal de Juiz de Fora

Importantes representações artísticas de líderes indígenas históricos surgem na América Latina


durante o século XIX. A análise comparada dessas obras resulta fecunda.
Quatro dentre essas obras mostram pontos de contato significativos. São elas: Caupolicán, jefe
de los Araucanos, prisionero de los españoles, do francês Raymond Monvoisin (1790-1870) – que
trabalhou por mais de uma década no Chile –, datada de 1859; Os funerais de Atahualpa1, do
peruano Luis Montero (1826-1869), de 1867; O último Tamoio2, do brasileiro Rodolpho Amoêdo
(1857-1947), de 1883; e El suplicio de Cuauhtémoc3, do mexicano Leandro Izaguirre, de 1893. Nelas
são representados quatro grandes chefes indígenas: o mapuche Caupolicán, o inca Atahualpa, o
tamoio Aimberê e o asteca Cuaultémoc.
São quadros de grande formato e expressiva qualidade técnica, destinados às exposições, aos
olhares nacionais, mas estrangeiros também. Expostos internacionalmente, receberam críticas
positivas, foram premiados e adquiridos por instituições oficiais nos países de origem. Suas imagens
circularam das mais diferentes formas.
Uma primeira observação é evidente: a imobilidade dos corpos. Nas telas, os chefes indígenas
são prisioneiros; corpos impedidos de qualquer movimento pela morte ou pelas cordas que os
prendem. A imobilidade reforça a ideia da raça extinta, isolando sua grandeza no século XVI. Sua
força deve derivar da expressão moral, herança reivindicada pelos liberais na construção das
identidades nacionais. No século XIX, heróis indígenas em luta não são quase representados. Quando
aparecem cenas de conflito, revelam uma visão oposta: o índio como selvagem anônimo, raça
degenerada ameaçadora do progresso, a exemplo das cenas sobre raptos de mulheres brancas ou
investidas dos índios, conhecidas como malons, no cone sul.

Caupolicán

Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles4, está hoje exposto no Museo
O’Higginiano y Bellas Artes de Talca, Chile. Obra de Raymond-Auguste Quinsac Monvoisin (1790-
1870), artista francês que trabalhou no Chile entre 1843 e 1858.

*
O presente artigo foi escrito com base em pesquisa realizada durante o período de pós-doutoramento, desenvolvido com
o apoio da CAPES e da FAPEMIG. Agradecemos ao prof. Jorge Coli a leitura do texto.
1 Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867; óleo sobre tela, 350 x 430 cm; Museu de Arte de Lima, Peru.
2 Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883; óleo sobre tela, 180 x 261 cm; Museu Nacional de Belas Artes.
3 Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtémoc, 1893; óleo sobre tela, 294,5 x 454 cm; Museo Nacional de Arte, México-DF.
4 Raymond Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, 1859; óleo sobre tela, 220 x 277 cm;

Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca, Chile.


CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 2
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Fig. 1 – Raymond Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, 1859;
óleo sobre tela, 220 x 277 cm; Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca, Chile.

A escassa biografia de Monvoisin salienta a trajetória de um pintor de sólida formação 5 que,


embora tenha conseguido prêmios e certa notoriedade na corte de Luís XVIII e Luís Felipe, não se
sentia suficientemente reconhecido, a ponto de abandonar Paris e buscar fama na América Latina.
No Chile, Monvoisin estabelece ótimo relacionamento com a elite local, ávida por ser
representada, realizando mais de 300 retratos entre 1843 e 1857, a começar pelo do General D.
Manuel Bulnes, presidente do país. No que concerne à história chilena, pinta La abdicación de
O’Higgins, em 18556, La captura de Caupolicán por los españoles7, como menciona em Notas
Autobiograficas8. Seu biógrafo, James David, informa que Manuel Solar Gorostiaga, esposo de
Rosario Echeverría Guzmán, assinalou em agenda, datada de 1853, ter firmado contrato com
Monvoisin, em 1º de agosto, para a execução dos quadros sobre a abdicação de O’Higgins e a prisão
de Caupolicán, no valor de $3.000. James informa ainda que o historiador e político Miguel Luis
Amunátegui (1828-1888) teria sugerido o tema de Caupolicán, como também ter o artista viajado a
Auracania, entre 1854 e 1855, para documentar-se e fazer uma coleção de croquis com fisionomias
dos índios9. No século XX, o quadro esteve na sala de jantar da fazenda Santa Corina, de propriedade
da família Riesco Jaramillo, até o começo da década de 1970 10, quando passou ao estado chileno e
tornou-se conhecido.

5 Estudou na École des Beaux-Arts de Bordeaux, sua cidade natal, e na École des Beaux-Arts de Paris, onde frequentou o
atelier de Pierre Narcisse Guérin.
6 Monvoisin, La abdicación de O’Higgins, 1855, hoje perdido. Reproduzido em: Miguel Sola & Ricardo Gutierrez, Raymond

Quinsac Monvoisin, su vida y su obra en America (Buenos Aires: Academia Nacional de Bellas Artes, 1948).
7 Raymond Monvoisin, La captura de Caupolicán, 1854; óleo sobre tela, 297 x 386 cm., Museo Histórico Nacional de

Santiago, Chile.
8 Sola & Gutierrez, Raymond Quinsac Monvoisin, 49.
9 David James, Monvoisin (Buenos Aires: Emecé Editores, 1949), 89. Miguel Luis Amunátegui publicaria em 1862,

Descubrimiento i conquista de Chile, e, em 1882, Vida del jeneral don Bernardo O’Higgins: (su dictadura, su ostracismo).
10 Agradecemos a Juan Manuel Martínez, pesquisador do Museo Histórico Nacional de Santiago, as informações sobre esse

quadro.
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Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Fig. 2 – Raymond Monvoisin, La captura de Caupolicán, 1854;


óleo sobre tela, 297 x 386 cm; Museo Histórico Nacional de Santiago, Chile.

Em 1858, Monvoisin retornou definitivamente a Paris, quando pinta outra versão da captura
de Caupolicán11, também referida nas Notas Autobiográficas.
Caupolicán era líder dos mapuche, que viviam nos territórios hoje conhecidos como Chile e
Argentina. Resistiu aos avanços dos colonizadores, porém, traído, foi capturado após a Batalha de
Antihuala, em 5 de fevereiro de 1558, e executado pelos espanhóis, por empalamento. Sua luta foi
tema do poema épico La Araucana, do espanhol Alonso de Ercilla y Zuñiga (1533-1594). Ercilla, de
origem nobre, passou a juventude a serviço de Carlos V, acompanhando o príncipe Felipe em viagens
por outros estados do império. Em 1555, vai para o Peru e segue García Hurtado de Mendoza,
recém-nomeado Governador e capitão-general do Chile, nas batalhas contra os sublevados
araucanos (assim chamavam os espanhóis aos mapuches), tornando-se testemunha da morte de
Caupolicán. Em seu poema, Ercilla canta a guerra, exaltando o povo a quem combate, deixando claro
a admiração pelo amor dos índios à terra e à liberdade.
Claudio Cifuentes Aldunate, em artigo de abordagem semiótica, fixa em cinco etapas a
evolução do personagem de Caupolicán e correspondentes representações: 1) Unidade dual; Força
corporal e inteligência a serviço do povo; Vencedor, famoso e em equidade de papel com Carlos V; 2)
Desintegração de sua imagem; Unidade dual de força e inteligência a serviço de si mesmo; Perdas
bélicas, de prestígio e de fama; 3) Restabelecimento parcial de sua imagem através da eloquência e
sagacidade; 4) Desintegração total de sua imagem na perseguição e prisão; 5) Recuperação de sua
integridade através do batismo e morte; Valente, temido e digno, é executado com o atributo cristão
que lhe faltava12.
Monvoisin lê La Araucana, mas, nas duas versões sobre Caupolicán, não enfatiza a coragem do
líder mapuche nas batalhas ou na morte, não explora a relação conquistador/ conquistado. O pintor
fixa-se na reação da esposa do herói, Fresia, ao vê-lo prisioneiro. Prende-se à quarta etapa apontada
por Claudio Aldunate, relativa à desintegração total do personagem.
A existência do poema épico de Ercilla possibilitou que, por algum tempo, heróis da resistência
mapuche contra os espanhóis no século XVI, como Lautaro, Caupolicán e Galvarino, fossem
reconhecidos após a independência. Entretanto, o agravamento dos conflitos de fronteira e as
campanhas militares de extermínio, levadas a efeito de 1860 a 1865, tanto do lado chileno (chamada

11 Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles; óleo sobre tela, 226 x 281 cm; Colección
Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca.
12 Claudio Cifuentes Aldunate, “Caupolicán: creación y recreaciones de un mito”, Noter og kommentarer fra Romansk

Institut 53 (1982): 64.


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Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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de “Pacificação da Araucánia”), como do lado argentino (“a conquista do deserto”), desencadearam


um processo de desconstrução dos antigos líderes mapuche, cantados em La Auraucana. Benjamín
Vicuña Mackenna, destacado liberal e membro da elite progressista chilena, por exemplo, por várias
vezes se pronunciará contra o mito construido por Ercilla. Em sua obra Lautaro y sus tres campañas
contra Santiago. 1553-1557, de 1876, Mackenna ambicionava reconstituir a verdade histórica
escrevendo: vamos a ver a Lautaro presentarse genuinamente bárbaro, cruel, ebrio, falso y hasta
traidor; es decir, indio araucano en toda la extensión de los defectos de su raza.13
Monvoisin, na segunda versão para a captura de Caupolicán, executada em Paris, concentra a
ação no primeiro plano. Ao centro, Caupolicán encontra-se atado, deitado sobre uma espécie de
liteira no chão, rodeado por vários índios, também prisioneiros. Do lado esquerdo, sua mulher lhe
estende o filho. Os espanhóis mal aparecem, situados atrás dos índios, sugeridos pelo movimento
vertical das lanças e de um crucifixo, embora duas cabeças sejam visíveis, a de um soldado e a de
Ercilla. Ao fundo, montanhas banhadas pela luz, possivelmente do entardecer.
No poema, Fresia se revolta contra Caupolicán, por se deixar capturar vivo:

“¡Ay de mi! ¡Cómo andaba yo engañada


con mi altiveza y pensamiento ufano,
viendo que en todo el mundo era llamada
Fresia, mujer del gran Caupolicano!
Y agora, miserable y desdichada,
todo en un punto me ha salido en vano,
viéndote prisionero en un desierto,
pudiendo haber honradamente muerto.

(...)

“Toma, toma tu hijo, que era el ñudo


con que el lícito amor me había ligado;
que el sensible dolor y golpe agudo
estos fértiles pechos han secado:
cría, críale tú, que ese membrudo
cuerpo en sexo de hembra se ha trocado;
que yo no quiero título de madre
del hijo infame del infame padre

Diciendo esto, colérica y rebiosa


el tierno niño le arrojó delante,
y con ira frenética y furiosa
se fue por ora parte en el instante. (...)”14

Ao representar este momento, o artista reduz a cena a um problema doméstico, concentrando


o espectador na tensão existente entre o casal mapuche.
No quadro, o gesto de Fresia provoca nos araucanos visível constrangimento; apenas o
soldado espanhol a olha diretamente e Ercilla, de soslaio. O artista compôs uma forte diagonal, que
leva o observador do tronco de árvore quebrado, símbolo da morte, aos braços estendidos da esposa
e a Caupolicán, que desvia o rosto e abaixa o olhar. A ação da mulher contrasta com a imobilidade de
Caupolicán, tornando-a, além de física, moral. É Fresia, não os conquistadores, que faz de Caupolicán
um derrotado.

13
Benjamín Vicuña Mackenna, Lautaro y sus tres campañas contra Santiago. 1553-1557. estudio biográfico
según nuevos documentos.( Santiago : Impr. de la Librería del Mercurio, 1876), 6.
14 La Araucana, canto XXXIII.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 5
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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O perfil, os cabelos, o brinco, o colo à mostra e o gesto de Fresia com o filho em muito
lembram a Medeia, pintada em 1838, por Delacroix, antigo colega de Monvoisin no atelier de Guerin,
em Paris. Transmudada em Medeia, Fresia se universaliza.
Fresia, por ser a única que detém a ação, rouba a cena de Caupolicán; entretanto, Mouvoisin
cria um sutil dilema para o observador, incidindo maior luminosidade sobre o peito desnudo e
atlético de Caupolicán. Semelhante procedimento chama a atenção para a sensualidade existente em
torno do líder mapuche, representado sem nenhuma característica étnica, não evidenciando o olho
cego15, ostentado beleza ocidental, deitado na liteira, forrada com exótica pele de felino, ladeado por
duas jovens16; talvez alusão à poligamia em que viviam os mapuche. O grupo estimula a fantasia do
observador que, abstraindo-se do drama a sua volta, poderá transferir os três personagens para uma
situação de alcova, convidativa a jogos amorosos. Este pensamento torna ainda mais aflitiva a
condição de Caupolicán; amarrado, incapaz de transformar sua potência em ato, de tocar as jovens,
que, por sua vez, mesmo não tendo as mãos atadas, igualmente não podem tocá-lo, entrelaçando os
dedos. Lembremo-nos que, nesse momento, segundo o poema de Ercilla, Fresia lhe está dizendo:
“ese membrudo cuerpo en sexo de hembra se ha trocado”17.
A tela pintada na França contrasta, e muito, com a primeira versão da prisão de Caupolicán,
executada no Chile em 1854, hoje exposta no Museu Histórico Nacional18. Apesar de assinada pelo
artista, apresenta composição e técnica muito inferiores, sugerindo pouco empenho do pintor; vale
lembrar que, concomitantemente, o artista realizava outra obra de grande formato, La abdicación de
O’Higgins19. Na composição chilena, Caupolicán está de pé, com mãos atadas às costas, entre índios
e espanhóis, enquanto Fresia, de joelhos, em primeiro plano, com o filho já no solo, executa um
gesto de dor, ao colocar a mão direita sobre a cabeça, e de repulsa, ao estender o braço esquerdo
com a palma da mão em direção a Calpolicán. Na tela parisiense, Monvoisin surpreende ao inverter
as posições de Fresia e Caupolicán, colocando-o em posição inferior à esposa, ou seja, deitado e
imóvel, a seus pés.
A segunda versão, a que nos interessa nesse artigo, hoje no museu de Talca, foi realizada para
ser exposta no Salon de Paris de 1859, onde recebeu a terceira medalha, e oferecida à venda ao
governo do Chile. Em publicação explicativa das obras do Salon, constam três telas de Monvoisin,
dentre elas Caupolicán:

“Monvoisin (Raymond-Auguste Quinsac), né à Bordeaux (Gironde), élève de


Pierre Guérin. Méd. 1re cl. (Historie) 1831 – [EX]. Quai Conti, 9.
2194 – Deux époux du Paraguay.
Après avoir eu leurs enfants massacrés par les Indiens des Pampas
(République Argentine), ils sont obligés de fuir leurs ennemis.
2195 – Caupolican, chef des Araucaniens, prisonnier des Espagnols.
Sa femme, apprenant qu’il s’était laissé prendre au lieu de périr en se
défendant, s’élançe à sa rencontre et lui présente son fils: Tiens, dit-
elle, voici ton enfant, je te le rends; je ne puis ni ne veux prendre soin
du fils d’un láche!
2196 – Une Chilienne prisonnière des Indiens des côtes de
l’Araucanie (Amérique du Sud).

15 Alonso Ercilla destaca seu problema de visão, no Canto II: “... tenía un ojo sin luz de nacimento/ como un fino granate
colorado,/ pero lo que en la vista le faltaba,/ en fuerza y esfuerzo le sobraba”. Afonso Ercilla, La Araucana, (3 ed.,
Santiago de Chile: Editorial Andres Bello, 2005), 38.
16 Alonso Ercilla apresenta Caupolicán prisioneiro de forma bem diversa, mostrando-o atado aos outros índios, sem nenhum

privilégio: “… quando la triste Palla descubriendo/ al marido que preso iba adelante,/ de sus insignias y armas
despojado,/ en el montón de la canalla atado,/...”. Ercilla, La Araucana, 226.
17 Tradução livre da autora: “esse robusto corpo em sexo feminino se transformou”.
18 Monvoisin, La captura de Caupolicán, 1854; óleo sobre tela, 297 x 386 cm; Museo Histórico Nacional de Chile.
19 Josefina de la Maza Chevesich, em artigo ainda inédito, intitulado Llevando la luz al país de los ciegos, la llegada de

Raymond Q. Monvoisin a Chile en 1843, ressalta exatamente essa variação qualitativa da obra de Monvoisin.
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Note. Ce tableau ne sera exposé qu’après l’ouverture de Salon.”20

As telas expostas apresentam grande unidade. Todas enfocam a tensão entre brancos e índios
na região araucana, tendo como centro crianças e mulheres; aumentando a ideia de fragilidade e
barbárie.
Com título próximo ao exposto em Paris, Deux époux du Paraguay, conhecemos três obras de
Monvoisin. Esposos paraguayos, óleo pintado em 1842, pertencente, em 1948, à coleção de Antonio
Santamarina, em Buenos Aires, reproduzido no livro de Sola e Gutierrez. É retrato de casal com
roupas típicas, contra céu ligeiramente nublado. Apesar de sérios, os personagens não aparentam ter
passado pela experiência do assassinato dos filhos pelos índios, principalmente a mulher, mais
idealizada, sem tensão. Há, no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, uma aquarela
idêntica ao óleo, datada de 1859, intitulada Matrimonio paraguayo, reproduzida no livro de Ana
Francisca Allamand, e, por fim, Los refugiados del Paraguay, reproduzida no livro de David James21.
Também datada de 1859, esta última obra representa o mesmo casal das duas anteriores, apesar das
pequenas diferenças: maior tristeza nos semblantes, céu mais agitado, mulher de perfil olhando para
o horizonte, e o homem que deixa de ter na mão o tradicional chimarrão para segurar o que
aparenta ser uma espada, da qual se vê apenas o punho, levemente sustentado pelos dedos, num
profundo sentimento de impotência. Monvoisin transformou um estudo de tipos locais em quadro
de maior carga dramática, principalmente pela explicação que o acompanha.
A tela Une Chilienne prisonnière des Indiens des côtes de l’Araucanie (Amérique du Sud) refere-
se ao rapto de mulheres brancas pelos indígenas; tema de longa tradição literária e pictórica no Chile
e Argentina, que necessita de breve parêntese explicativo.
Em 1612, Ruy Diaz de Gusmán, nascido na América espanhola e mestiço, escreveu a História
del descobrimiento, conquista y población del Rio de la Plata, que circulou com o nome de La
Argentina manuscrita, onde narra a conquista do ponto de vista espanhol, expondo o mal-estar com
a mestiçagem. No texto, quase autobiográfico, Gusmán insere o personagem ficcional Lúcia Miranda,
esposa de um conquistador espanhol, raptada pelos índios. O episódio define o espaço americano
como próprio dos conquistadores e o índio como violador das fronteiras, invertendo a situação
vivenciada pelos povos americanos: usurpação, escravidão e morte. Nos séculos XVII e XVIII, vários
cronistas jesuítas se referiram à história de Lúcia Miranda como um mito de origem da discórdia
entre conquistadores e índios 22.
Embora o texto de Gusmán nunca tenha deixado de circular, a obra só foi publicada em 1836.
No ano seguinte, o escritor argentino Esteban Echeverría edita o poema épico La cativa, parte do
livro Rimas, com grande repercussão. A resistência indígena implicava no ataque às vilas e, por vezes,
no rapto de mulheres, cujas histórias difundiam-se pela tradição oral e, posteriormente, pela
imprensa. Ficção e realidade se fundiram, produzindo-se um vasto conjunto de textos estimuladores
o imaginário23. A cativa branca mais célebre foi Trinidad Salcedo, cujo drama narrado pelo oficial

20 “2194 – Casal paraguaio.


Após terem os filhos massacrados pelos índios dos Pampas (República Argentina), foram obrigados a fugir de seus
inimigos.
2195 – Caupolican, chefe dos araucanos, prisioneiro dos espanhóis.
(...) Sua mulher, percebendo que ele se deixou prender, ao invés de morrer defendendo-se, dirige-se a ele a e mostra-lhe o
filho: Olha, diz-ela, eis tua criança, eu a entrego a ti; eu não posso e nem quero cuidar do filho de um covarde!
2196- Uma chilena prisioneira dos índios das costas da Araucânia (América do Sul).
Nota. Este quadro será somente exposto após a abertura do Salão.” (tradução livre da autora).
Explication des ouvrages de peinture et dessins, sculpture, architecture et gravure et architecture exposis au Palais des
Champe-Elysées le 15 avril 1859. Ministère de la Maison de L’Empereur. Direction générale des Musées Impériaux.
Exposition publique des ouvrages des artistes vivants pour l’année 1859. BNF.
21 David James, Monvoisin (Buenos Aires: Emecé Editores, 1949).
22 Cristina Iglesia, “La mujer cautiva: cuerpo, mito y frontera”, in “La violencia del azar”, Ensayo sobre literatura argentina,

(Buenos Aires, FCE, 2002), 23-38.


23 Laura Maloseti Costa, “Buenos Aires-Chicago: la vuelta del Malón”, in Laura Maloseti Costa, Los primeros modernos: arte

y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX (Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2001), 239-285.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 7
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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inglês Thomas Sutchiffe, em seu livro Sixteen years in Chile and Peru: from 1822 to 1839, foi pintado
pelo bávaro Rugendas24, com o qual Monvoisin se relacionava.
Rugendas conheceu o poema de Echeverría e produziu cerca de vinte e cinco obras sobre o
rapto de mulheres por índios, mesmo após ter regressado à Alemanha. Importante ressaltar que, no
século XIX, grande parte dos raptos já não eram realizados por indígenas, mas por bandoleiros, a
exemplo do rapto de Trinidad Salcedo; entretanto, as representações insistiam na dicotomia branco/
índio e civilizado/ bárbaro.
Monvoisin pintou dois quadros sobre o tema das cativas brancas, ambos relacionados a um
fato verídico, o naufrágio do veleiro (mais precisamente um bergantim) denominado Jovem Daniel,
ocorrido em 1849, na costa de Puancho, entre os rios Tolten e Imperial. Os náufragos, em torno de
trinta pessoas, conseguiram salvar-se, porém foram mortos pelos índios. Dentre eles estava Elisa
Bravo, que teria sido poupada e tomada por esposa pelo cacique Curin, embora várias expedições de
resgate enviadas pelo Estado e pela família não a encontrassem 25. No primeiro quadro26, o artista
mostra Elisa, em meio ao bater das ondas na praia, desesperada, tentando proteger os filhos,
ameaçados pelos índios agrupados em torno dela; no segundo27, retrata Elisa melancólica, sentada,
com duas crianças mestiças ao colo, observada pelo cacique, trajado como camponês, diante de uma
casa de madeira, e por duas mulheres sentadas na penumbra. Os dois trabalhos foram xilogravados
por Augusto Trichon, famoso gravador, nascido em Paris no início do século XIX, professor de Gastón
Raymond Ernest Monvoisin, sobrinho do artista28. Igualmente a imagem de Elisa circulou em
litografia, algumas vezes em cores. Elisa com os filhos mestiços foi a obra exposta por Monvoisin no
Salon de Paris, ao lado de Caupolicán e do casal de paraguaios.
O conjunto dos três quadros, enviados por Monvoisin ao Salon de 1859, revela a existência de
três casais, recordando antigas pinturas de castas do período colonial: um casal branco, entristecido
e impotente face ao assassinato dos filhos pelos índios; um casal mestiço, composto por um cacique
assassino, travestido de camponês, e uma mulher branca raptada, violentada, mãe de mestiços; por
fim, um casal indígena, composto por um covarde e uma mulher vingativa, mãe desnaturada.
Monvoisin explorou o exótico e apresentou o povo americano com extremo pessimismo.
A inserção de Caupolicán no conjunto dos casais do Salon de 1859 reforça a leitura negativa,
que o artista apresenta do herói dos mapuche.

Atahualpa

Luis Montero (1826-1869), peruano, pintou a tela Os funerais de Atahualpa29 em 1867, na


cidade italiana de Florença. Após dezessete conturbados anos vivendo de sua profissão, às voltas
com problemas financeiros, o artista retornara a Florença, onde, de 1848 a 1850, estudou na
Academia de Belas Artes. Objetivava Montero melhores condições para executar seu quadro,
encomenda do governo peruano.

24 Francisca del Valle Tabatt, “El repertorio visual de las cautivas blancas en Chile en el siglo XIX”, in Juan Manuel Martínez
Silva, ed., Arte americano: contextos y formas de ver - Terceras Jornadas de Historia del Arte (Santiago: RIL editores,
2006), 151-158.
25 Sola & Gutierrez, Raymond Quinsac Monvoisin, 41-42.
26 Monvoisin, El naufragio del joven Daniel, 1859; óleo sobre tela, 176 x 130 cm; Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca,

Chile.
27 Monvoisin, Elisa Bravo en cautiverio, c. 1858; óleo sobre tela, 176 x 130 cm; Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca,

Chile.
28 Sola & Gutierrez, Raymond Quinsac Monvoisin, 41-42.
29 Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867; óleo sobre tela, 350 x 430 cm; Museu de Arte de Lima, Peru.
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Fig. 3 – Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867;


óleo sobre tela, 350 x 430 cm., Museu de Arte de Lima, Peru.

Florença tornou-se centro para o qual se dirigiram muitos artistas latino-americanos, visando
tanto a aprendizagem, quanto à viabilização de obras de grande formato. Antonio Ciseri (1821-1891),
por exemplo, recebeu como alunos em seu atelier o uruguaio Juan Manuel Blanes, os bolsistas do
governo argentino: Martín Boneo, Mariano Agrelo, Claudio Lastra e, mais tarde, Ángel Della Valle30;
como também, o brasileiro Aurélio de Figueiredo, quando, em Florença, entre 1873 e 1875, auxiliava
o irmão Pedro Américo a pintar a Batalha de Avaí, enorme representação da Guerra do Paraguai,
encomendada pelo Estado Imperial brasileiro.
Atahualpa (1502-1533) foi o décimo terceiro e último imperador inca, traído e aprisionado
pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro, em 16 de novembro de 1532. Atahualpa, convidado
por Pizarro para jantar e conversar, chegou à praça da cidade andina de Cajamarca, acompanhado
apenas por sua guarda de honra. Ali, foi recebido pelo padre Vicente Valverde, que, por intermédio
de tradutor, exigiu a conversão ao cristianismo do imperador inca e de seu séquito, assim como
submissão ao rei espanhol; caso contrário, Atahualpa seria considerado inimigo da Igreja Católica e
do Reino da Espanha. De acordo com a lei espanhola, a recusa permitiria aos espanhóis declararem
imediata guerra aos incas. Reagindo, Atahualpa teria perdido seis mil guerreiros, em menos de duas
horas de luta, e se tornado prisioneiro no Templo do Sol. Em troca da liberdade, Atahualpa ofereceu
peças de ouro suficientes para encher o grande aposento em que se encontrava, assim como o dobro
da mesma quantia em prata. Pizarro recebeu o resgate, mas não o libertou, condenando-o a ser
queimado vivo na fogueira. No momento da execução, Valverde teria conseguido que Atahualpa
aceitasse ser batizado para atenuar-lhe a pena, transformando-a em morte por garroteamento,
aplicada em 26 de julho de 1533.
A exemplo de Monvoisin, Montero não pintou o imperador inca em luta, como grande líder,
mas seu cadáver em poder dos conquistadores. Para a escolha do momento a ser representado
baseou-se o artista peruano na leitura de La historia de la conquista del Perú, do historiador
americano William Prescott, publicada em 1847-1848:

“A la mañana siguiente le trasladaron a la Iglesia de San Francisco, donde


se celebraron sua exequias con gran solemnidad. Pizarro y los principales
caballeros asistieron de luto, y las tropas escucharon con devota atención el
oficio de difuntos, que celebró el padre Valverde. Interrumpieron la
ceremonia muchos gritos y sollozos que se oyeron a las puertas de la Iglesia,
las cuales abriéndose de repente, dieron entrada a un gran número de
indias esposas y hermanas del difunto, que invadiendo la gran nave,

30 Roberto Amigo Cerisola & Gabriel Peluffo Linari, Juan Manuel Blanes: la nación naciente - 1830-1901 (Montevideo:
Museo Municipal de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, 2001).
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 9
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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rodearon al cuerpo diciendo, que no era aquel el modo de celebrar los


funerales de un Inca, y declaran su intención de sacrificarse sobre su tumba
y acompañarle al país de los espíritus. Los circunstantes ofendidos de ese
loco proceder manifestaron a las invasoras que Atahuallpa había muerto
cristiano, y que el Dios de los cristianos aborrecía de tales sacrificios.
Despúes las intimaron que se saliesen de la iglesia, y muchas de ellas al
retirarse se suicidaron con la vana esperanza de acompañar a su amado
señor en las brillantes mansiones del Sol.”31

No quadro, a celebração cristã ocorre no interior de pretensa construção inca, aguçando-se o


contraste cultural. Dispostas como em friso, trinta e seis figuras agrupam-se de forma distinta. Do
lado direito, a celebração. Padres e soldados se concentram em torno do cadáver de Atahualpa. Os
olhares se dirigem para o lado esquerdo, onde soldados tentam impedir que adentre ao templo
cristão um bando de mulheres, aos gritos, solicitam o corpo do imperador inca. Colunas, velas,
lanças, bandeira e estandarte da morte contrabalançam a forte horizontalidade da composição.
O grupo feminino exterioriza a indignação, o desespero e a dor, principalmente as quatro
mulheres em primeiro plano. Seus corpos sintetizam esses sentimentos, ao postar-se a primeira de
pé, com o filho de Atahualpa, enfrentando um soldado, a segunda e a terceira de joelhos e a última
jogada ao chão, seguindo uma clara diagonal em declínio. O mundo feminino, como lugar da
expressão dos sentimentos, está presente em inúmeros quadros, a exemplo do paradigmático
Juramento dos Horácios, de Jacques-Louis David. No quadro de Montero esse topos comum se torna
mais complexo, por serem representadas mulheres índias, por natureza, consideradas, apenas
susceptíveis a sentimentos primitivos, tais como as paixões.
Montero escolheu, no relato de Prescott, uma cena de forte contraste cultural, dada a
estranheza causada pela intenção das mulheres, não apenas em resgatar o corpo de Atahualpa e
reverenciá-lo segundo as próprias tradições, mas de acompanhá-lo post-mortem. O que, por si só,
atrairia atenção sobre o quadro. Entretanto, o artista foi suficientemente hábil para não permitir que
superstição e possibilidade de suicídio coletivo monopolizassem a cena. Em oposição ao mundo
sentimental e primitivo feminino, o pintor criou um espaço masculino, pertencente aos
conquistadores; um mundo da razão e da ordem. Nele, contraste maior reside entre conquistador e
conquistado, vencedor e vencido, Pizarro e Atahualpa.
O cadáver de Atahualpa está deitado sobre a mesa, paralela à base do quadro, tendo a cabeça
estrategicamente sustentada um pouco acima da linha do corpo. A disposição recorda-nos o afresco
de Giotto com São Francisco de Assis velado pelos irmãos, representado na Capela Bardi da Igreja de
Santa Croce, em Florença; certamente não desconhecido de Montero 32. Ao lado do último imperador
inca, ereto, de perfil, como uma esfinge, Pizarro. O confronto entre linhas horizontais e verticais
acentua a oposição entre os personagens.
A imobilidade natural do cadáver é reforçada pela horizontalidade e pela corrente, que ainda
lhe prende os pulsos. Vencido e morto, Atahualpa encontra-se à mercê de outras vontades. Trata-se
agora de submetê-lo ao ritual cristão, de conquistar-lhe a alma, último reduto, condenando-o
eternamente ao domínio ocidental. Montero reforça a ideia de Atahualpa ter sido ingênuo ao
extremo para cair na armadilha de Pizarro e, por medo de morte ainda mais dolorosa, ter aceitado o
batismo.
A conversão dos caciques foi ponto fundamental na conquista. Fazer parte da religião cristã,
como destaca Todorov, era valor absoluto a ser imposto acima da vida ou da morte do indivíduo 33. Se
em verdade se converteram ou não, é fato menos relevante que sua reiteração. Textos e imagens
divulgaram essa ideia por todo o período da colonização, tornando-se a iconografia do batismo forte

31 William Prescott, Historia de la conquista de Peru, v. 1 (Madrid, 1847-1848), 447-448, apud Roberto Amigo, Tras un Inca:
los funerales de Atahualpa de Luis Montero en Buenos Aires (Buenos Aires: Fundación para la Investigación del Arte
Argentino, 2001), 17.
32 Giotto, Morte e ascensão de São Francisco, c. 1325; afresco, 280 x 450 cm; Cappella Bardi, Santa Croce, Florença.
33 Tzvetan Todorov, A conquista da América: a questão do outro (3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003), 226, 247.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 10
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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elemento de propaganda religiosa. No México, por exemplo, os batismos dos senhores de Tlaxcala –
aliados de Cortés contra os mexicas –, do rei de Texcoco e do próprio Cuauhtémoc foram
representados em grandes telas34.
Luis Montero ambicionava apresentar a obra na Exposição Universal de Paris de 1867. A
ausência de recursos para a viagem até a capital francesa o impediu de fazê-lo, limitando-se a expô-
la no próprio atelier, em Florença, com grande repercussão. O artista planejou exibi-la também no
Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos Aires, antes de chegar a Lima. Esse périplo lhe garantiu
destaque na imprensa dos referidos países, ampliando as expectativas no Peru, bem como recursos
econômicos para a viagem, com a cobrança de ingressos na exibição da tela. Como o quadro,
destinado ao governo peruano, não estivesse à venda, no Brasil, o imperador D. Pedro II dele
encomendou algumas cópias fotográficas35 e, em Buenos Aires, realizou-se cópia litográfica,
publicada no Correo del Domingo36.
Nesses países a crítica lhe foi muito favorável, salientando as qualidades de grande pintura e o
tema escolhido, revelador da crueldade dos conquistadores, principal chave de leitura da tela.
Quanto mais frágil se representa o herói, mais atenção se dá a seu algoz.
Desde Florença uma crítica ao quadro é recorrente: o naturalismo da representação de
Atahualpa em contraste com a idealização das mulheres, revestidas de beleza ocidental. Enquanto
reconhecia-se, pelo físico e trajar, as mulheres como jovens italianas travestidas de incas, portanto,
inverossímeis, destacava-se o corpo de Atahualpa. A roupa, o pendente de ouro na orelha, o adorno
da cabeça com plumas e borda vermelha, tradicionais aos reis incas, e, principalmente, sua face,
possuiriam verdade étnica inquestionável.
A disparidade entre a representação do imperador comparada a de suas esposas e irmãs
alimentou intenso debate. Para uns, desvalorizaria Atahualpa, privado da beleza idealizada,
destinada aos grandes personagens, preso em sua feiura étnica. Para outros, a beleza das mulheres
revelaria, além de uma exigência estética, a verdadeira origem dos peruanos: uma ramificação dos
antigos gregos37. Natália Madluf conseguiu resolver o enigma da diferença de representação entre o
inca morto e as mulheres38. Uma carta, datada de 14 de julho de 1865, enviada de Turim, Itália,
assinada pelo diplomata peruano Luis Mesones, doada ao Museo de Arte de Lima, revela ser o artista
peruano mestiço Francisco Palemón Tinajeros, morto por problemas respiratórios em Florença, o
modelo de Luis Montero para Atahualpa. O naturalismo presente na representação do último
imperador inca correspondia à observação d’après nature do cadáver de um índio.
Em 1868, Montero chega apoteoticamente a Lima, premiado pelo governo com medalha de
honra e vinte mil soles. Adquirida pelo Estado, a obra circulou como imagem, reproduzida nas notas
de quinhentos soles. Nos conflitos com o Chile, a tela foi levada para Santiago como botim de guerra
e posteriormente devolvida.
A aceitação do quadro deriva do fato de ser obra de artista americano, com formação
europeia, bem avaliada pela crítica internacional, executada em grande formato, obedecendo a

34 A tela anônima, Bautizo de los Señores de Tlaxcala, presente na Catedral de Tlaxcala, acha-se reproduzida em: Imágenes
de los naturales en el arte de la Nueva España, siglos XVI al XVIII (México DF, Banamex, 2005 ) 27. No capítulo “La
construcción de una Iglesia indiana. Las imágens de su edad dorada”, de Antonio Rubial e M. Teresa Suárez Molina, para
o catálogo da exposição Los pinceles de la historia, el origen del reino de la Nueva España (1680-1750), encontram-se
reproduzidas as obras: uma gravura de Juan Moreno Tejada, El bautizo del rey de Texcoco, de 1783, um óleo de Gregorio
José de Lara, de 1755, com igual tema, e a grande tela representando o batismo de Cuauhtémoc pelo padre Bartolomé
de Olmedo, pintado por José Vivar y Valderrama, atualmente, no Museo Nacional de Historia, em Chapultepec, México-
DF.
35 Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro(1º set. 1867).
36 Correo del Domingo, vol. VIII, n. 298 (22 dez. 1867).
37 Ver principalmente o artigo do argentino Vicente Fidel López, “Los funerales de Atahualpa (pintura original de Don Luis

Montero)”, La Revista de Buenos Aires 14 (53) (1867). Sobre a recepção do quadro em Buenos Aires ler: Roberto Amigo,
Tras un Inca, Los funerales de Atahualpa de Luis Montero en Buenos Aires (Buenos Aires: Fundación para la Investigación
del Arte Argentino, 2001), onde o artigo de Vicente F. López encontra-se reproduzido.
38 Natália Madluf Brahim, “El rostro del Inca. Raza y representación en Los funerales de Atahualpa de Luis Montero”, ILLAPA

- Revista del Instituto de Investigaciones Museológicas de la Universidad Ricardo Palma 1 (1) (2004): 11-28.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 11
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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parâmetros técnicos reconhecidos como convenientes à pintura de história, tratando de forma digna
o herói inca e, sobretudo, por representá-lo morto.
Roberto Miró Quesada assinalou a identificação de Luis Montero com projetos crioulos e
liberais de seu tempo, nos quais se reconhece a importância do indígena do passado, a ser, não
obstante, superado, objetivando a construção um novo Peru, a partir da herança hispânica 39.

Aimberê

O último Tamoio40, tela exposta no Salon de 188341, pintada por Rodolpho Amoêdo (1857-
1947), quando estudou em Paris com Alexandre Cabanel, é obra singular. Retrata o corpo do índio
Aimberê devolvido à praia e amparado pelo padre Anchieta. O tema integra o poema épico A
Confederação dos Tamoios, publicado em 1856, por Gonçalves de Magalhães, um dos responsáveis
pela introdução do romantismo no Brasil.

Fig. 4 – Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883; óleo sobre tela, 180 x 261 cm;
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil.

Aimberê conheceu o cativeiro juntamente com seu pai, Kaiçuru, chefe tupinambá, na
primeira metade do século XVI, início da colonização da capitania de São Vicente, atual estado de São
Paulo. Presenciando a morte do pai devido a maus tratos, Aimberê, agora cacique, insuflou entre os
índios a revolta e organizou a fuga do cativeiro. Livre, promoveu a união de vários chefes indígenas –
tupinambás, goitacazes e aimorés –, ensejando, em 1554, a Confederação dos Tamoios, que
abrangeu área hoje situada entre o sul do litoral fluminense e a cidade de São Paulo. Objetivando a
expulsão dos portugueses e o fim da escravidão, aliou-se aos protestantes franceses que, entre 1554
e 1567, permaneceram na Baía da Guanabara 42, impingindo aos portugueses sérias derrotas. Sem

39 Roberto Miró Quesada, “Los funerales de Atahualpa”, El Caballo Rojo - Suplemento del Diario Marka (13 nov. 1983): 10-
11. Ensaio reproduzido em: Pueblo Indio 1 (1985): 37-40 e em: Márgenes. Encuentro y Debate VI (10-11) ( 1993): 107-114.
40 Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883; óleo sobre tela, 180 x 261 cm; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro,

Brasil.
41 Cf. explication des ouvrages de peinture (...), 4:

AMOÊDO (Rodolphe), né a Rio-de-Janeiro, élève de M. Cabanel. - Rue des Beaux-Arts, 10.


30 - Le dernier des Tamoyos
Anchietta, missionnaire portugais au Brésil, trouve le cadavre d'Aynabire,chef de la tribu des Tamoyos, sur une plage où il
l'ensevelit.
(Histoire du Brésil)
Citado por: Jorge Coli, “A Batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relações com a pintura internacional”, Tese de
Livre Docência, Universidade estadual de Campinas (1995).
42 Os tamoios praticavam o escambo e o comércio do pau-brasil com franceses, mesmo antes dos portugueses se

estabelecerem no litoral do Rio de Janeiro. Em 1555, os franceses buscaram consolidar a sua presença constituindo uma
colônia de povoamento, “França Antártica”, situada na Ilha de Villegaignon, na Baía de Guanabara, da qual participaram
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 12
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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alternativa, os lusos enviaram os jesuítas Anchieta e Nóbrega como mediadores para o


estabelecimento de acordo de paz com a Confederação. As cláusulas negociadas obrigaram os
portugueses a libertar todos os escravos índios. Não obstante, o período de paz durou pouco; em
1565, o governador geral do Brasil, Mem de Sá, enviou o sobrinho, Estácio de Sá, com reforços para
promover a expulsão dos franceses e o extermínio dos tamoios. Diante das vitórias portuguesas, os
franceses retiram-se da colônia e enquanto os tupinambás fogem para o interior. Sozinho, Aimberê
resistiu até 1567, quando morreu na mesma batalha em que foi ferido Estácio de Sá.
Gonçalves de Magalhães inicia a obra apresentando Aimberê como chefe dos tamoios,
opondo-se aos vis portugueses:

“Aimbire, o mais audaz entre os Tamoyos,


Meditava projectos de vingança
Contra a Lusa colonia Vicentina,
Donde p’ra seus irmãos o mal saía.
De sertão em sertão, de taba em taba
Andava elle incansável incitando
As tribus dos tamoyos à revolta”.

O poeta descreve batalhas entre índios e portugueses, o ataque de Aimberê a Piratininga para
resgatar a amada Iguaçu, sequestrada, e muitos outros feitos do guerreiro até a morte. Na batalha
que levou à expulsão dos franceses, Iguaçu é ferida no coração, morrendo aos pés de Aimberê que,
ao reagir, fere Estácio de Sá com flecha envenenada. Diante da derrota inevitável, Aimberê toma o
cadáver da esposa nos braços e brada feroz:

“Tamoio sou, Tamoio morrer quero,


E livre morrerei. Comigo morra
O último Tamoio; e nenhum fique
Para escravo do Luso. A nenhum deles
Darei a gloria de tirar-me a vida.
Rápido e cego, meneando a maça,
Foi abrindo uma estrada de cadáveres
Por entre o inimigo, ao mar lançou-se.”43

Aimberê, chefe da Confederação dos Tamoios, lutou implacavelmente contra os portugueses,


aliou-se aos invasores, em parte protestantes, não se deixando aprisionar vivo e tampouco se
convertendo. Tornou-se um herói impossível.
Na segunda metade do século XIX, o império brasileiro tomara a figura do índio como símbolo
alegórico da nação. A tela Primeira missa no Brasil44, executada por Victor Meirelles (1832-1903) em
1860, marcara a tônica sobre a qual o índio deveria ser visto: em total harmonia com o colonizador.
Posteriormente, o mesmo artista, através d’ A batalha dos Guararapes45, festejaria a união das três
raças constitutivas do povo brasileiro – branco, índio e negro – na expulsão do invasor holandês no
século XVII. Lembremo-nos de que a independência brasileira foi proclamada em 1822, pelo filho do
rei português, D. Pedro, permanecendo o domínio da dinastia de Bragança sobre a antiga colônia.

católicos e protestantes. Ronaldo Vainfas (dir.), Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808) (Rio de Janeiro: Objetiva, 2002),
312-314.
43 Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios (Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro,

1994), 208.
44 Victor Meireles, Primeira missa no Brasil, 1860; óleo sobre tela, 260 x 356 cm; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de

Janeiro.
45 Victor Meirelles, Batalha dos Guararapes, 1879; óleo sobre tela, 500 x 925 cm; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de

Janeiro.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 13
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Isto determinaria a valorização do passado colonial e do altruísmo dos portugueses em promover a


civilização nos trópicos, predominando a ideia de continuidade e de não ruptura com o período
anterior à Independência, em contraste com o restante da América Latina. A literatura indianista,
surgida no âmago do movimento romântico brasileiro, por vezes colocava em cheque essa pretensa
harmonia, atribuindo ao índio o papel de protagonista virtuoso; apesar de irremediavelmente
vencido e enterrado no passado.
Nas exposições da Academia Imperial de Belas Artes, os personagens indígenas, emersos
tardiamente da ficção para as telas, não eram guerreiros em busca da liberdade, antes mulheres
apaixonadas pelos colonizadores, que por esse amor morreram. Moema, Marabá e Iracema
demonstram nos dramas pessoais a impossibilidade de sobrevivência dos valores indígenas face à
cultura europeia46. Por serem índias, encetavam a possibilidade dos artistas aventurarem-se pelo nu
feminino, de forma natural, sem transgressões, uma vez que o nu era permitido em temas exóticos.
Rodolpho Amoêdo fez surpreendente escolha representando Aimberê, chefe indígena que não
se opôs apenas aos portugueses, mas ao futuro Brasil, aliando-se ao invasor francês, contrapondo-se
também à Igreja católica, por serem os franceses em parte hereges protestantes.
Ante tema tão delicado, a solução encontrada pelo artista foi não radicalizar a representação.
Como Monvoisin e Luis Montero, Amoêdo não apresenta Aimberê em luta, liderando. O artista o
exibe morto, nos braços da Igreja conciliadora. A colonização pode ter sido cruel, provocando a justa
reação de virtuosos guerreiros, mas a civilização cristã a todos recebe, inclusive a bárbaros canibais
suicidas47. Como se lê no poema de Gonçalves de Magalhães:

“Viram nas ondas flutuar dois corpos,


Que o mar na enchente arremessava às praias.
De Aimbire e de Iguaçu os corpos eram!
Vio-os Anchieta com chorosos olhos:
Para a terra os tirou; e nessa praia,
Que inda depois de mortos abraçavam,
Deu-lhes a réquia, para sempre unidos.”48

Na tela, o padre jesuíta Anchieta, responsável pelas negociações de paz entre índios e
portugueses, acolhe nos braços, solitário, o corpo de Aimberê, cujo sacrifício é associado ao cristão,
seguindo a iconografia de uma pietá49. O artista evitou representar Iguaçu, impedindo a fixação no
drama vivido pelo casal, no amor entre ambos, para expressar o amor incondicional da Igreja,
personificado no gesto comovente de Anchieta.
A escolha de Anchieta constitui igual decisão problemática, face à posição ambígua do jesuíta
no conflito, permitindo aos portugueses informações estratégicas sobre os índios e objetivando a
divisão interna da Confederação dos Tamoios50. A particular ligação de Anchieta com Aimberê
também se reveste de tensão, pelo fato do jesuíta considerá-lo o próprio demônio, como muitas

46 Obras sobre temática indigenista que participaram das Exposições Gerais no Império: 1860: Frederico Tirone, Enterro de
Atalá, Fuga de Atalá; 1862: Jules Le Chevel, Paraguassú e Diogo Álvares Correa; 1866: Victor Meirelles, Moema; 1879:
Firmino Monteiro, Exéquias de Camorim; 1884: Augusto Rodrigues Duarte, Exéquias de Atalá (também apresentada na
Exposição Universal de Paris, em 1878); Aurélio de Figueiredo, Ceci no banho; José Maria de Medeiros, Iracema; e
Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio e Marabá. Carlos Roberto Maciel Levy, Exposições Gerais da Academia Imperial e da
Escola Nacional de Belas Artes. Período Monárquico. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884 (Rio de Janeiro:
Edições Pinakotheke, 1990).
47 O canibalismo dos tupinambás tornou-se muito conhecido após a publicação do livro de Hans Staden, Viagens e

aventuras no Brasil, 1557. O alemão, contratado pelos portugueses para lutar contra a Confederação dos Tamoios, foi
feito prisioneiro e permaneceu vários meses entre os tupinambás, presenciando rituais antropofágicos, posteriormente
narrados em suas memórias.
48 Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios, 209.
49 Ver: Ana Maria Tavares Cavalcanti, “O último tamoio e o último romântico”, Revista de História da Biblioteca Nacional 26

(2007): 64-69.
50 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil - Tomo I (Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000), 364.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 14
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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vezes expressou em peças teatrais.51 As ambiguidades em torno de Anchieta aguçam a percepção do


conflito. O corpo de Aimberê não estaria em mãos tão piedosas.
No quadro, Amoêdo veste Anchieta com hábito de franciscano, apesar de pertencer à ordem
de Santo Ignacio de Loyola. Desconhecimento do artista? Impossível saber. Entretanto, tal fato não
passou despercebido à crítica 52. A estranheza da troca de hábitos reitera a ambiguidade do
personagem.
O jesuíta poderia ser protagonista do quadro, caso o artista não o tivesse denominado O
último Tamoio e imposto a presença realisticamente notável do cadáver a atrair todos os olhares. O
observador não sabe se admira o gesto do padre ou lamenta a perda da energia vital de tamanho
corpo.
Anchieta amparará outro morto dessa guerra: Estácio de Sá. Em 1911, Antônio Parreiras
(1860-1937) realizará, sob encomenda do prefeito da cidade do Rio de Janeiro, então Distrito
Federal, o quadro Morte de Estácio de Sá53, igualmente executado em Paris54. Parreiras, a exemplo
de Amoêdo, não pinta a batalha, não fixa o momento em que Estácio de Sá é mortalmente ferido
pela flecha envenenada de Aimberê. Pinta-o moribundo no interior de uma cabana, tendo ao lado
Anchieta e aliados.
Na tela vê-se o interior da escura cabana e, pela porta aberta ao fundo, o exterior iluminado,
onde se aglomeram índios rezando. Dentro da cabana, do lado direito, Estácio de Sá jaz sobre a
cama, com Anchieta curvado sobre ele, segurando-lhe a mão. Uma série de personagens ligados ao
governo da colônia, alguns levemente feridos, distribuem-se nas extremidades do quadro, entre eles
o velho Mem de Sá – então terceiro governador-geral do Brasil. Ao centro encontra-se o índio
Arariboia, de pé, com os braços cruzados, expressão grave e olhos baixos, a observar uma flecha
quebrada ao solo; alusão à flecha envenenada que atingiu Estácio de Sá e metáfora do inimigo
derrotado, como bem salientou Valéria Salgueiro. A seu lado, uma índia caída cobre o rosto e chora.
Arariboia seria a antítese de Aimberê. Responsável pela arregimentação dos índios temininós,
que chefiava, foi peça fundamental na vitória de Estácio de Sá sobre a Confederação dos Tamoios.
Como recompensa, D. Sebastião, rei de Portugal, concedeu-lhe o título de Cavaleiro da Ordem de
Cristo e grande sesmaria, onde o povoado por ele fundado em 1573 originou a cidade de Niterói.

51 “ATO II: No 2º. ato entram três diabos, que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem S. Lourenço e S.
Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os diabos, cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimberê e
Saraiva, seus criados.
(...)
São Lourenço fala a Guaixará

Lou.: Quem és tu?


Gua.: Guaixará, o cauçu,
sou o grande boicininga,
o jaguar da caatinga,
eu sou o andirá-guaçu,
canibal, demo que vinga.

Lou.: E ele, é?
Aim.: O grão tamoio Aimberê,
sou jibóia, sou socó.
sucuriu taguató,
demônio-luz, mas sem fé,
tamanduá atirabebó.”
Teatro de Anchieta ( São Paulo: Edições Loyola, 1977), 145, 155.
52 Oscar Guanabarino, “Bellas Artes”, Jornal do Commercio (269) (1884): 1. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/guanabarino_1884.htm>. Acesso em: 12 ago. 2010.
53 Antônio Parreiras, Morte de Estácio de Sá, 1911; óleo sobre tela, 300 x 400 cm; Palácio Guanabara, Rio de Janeiro.
54 Sobre o quadro ver: Valéria Salgueiro, “Construindo a origem, virtudes e heróis na pintura de história: o caso da obra ‘A

morte de Estácio de Sá’ por Antônio Parreiras”, in Maraliz de Castro Vieira Christo, ed., “Dossiê: pintura de história”,
Anais do Museu Histórico Nacional 39 (2007).
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Arariboia, cristianizado, passou a chamar-se Martim Afonso, tornando-se o herói que auxiliou os
portugueses na expulsão francesa, merecedor, no século XX, de estátua em praça pública55.
A comparação entre as representações de Aimberê morto na praia e Arariboia torna mais
evidente o quanto Amoêdo minimizou o chefe da Confederação dos Tamoios, líder de luta sem
trégua contra os portugueses, herói impossível no panteão brasileiro.
Aimberê é o único dos índios representados cujo nome não aparece no título do quadro; é
simplesmente o último.

Cuauhtémoc

Cuauhtémoc (1502-1525), o último imperador asteca, ao contrário dos companheiros latino-


americanos de infortúnio, Caupolicán, Atahualpa e Aimberê, suscitou rica iconografia. Durante o
período colonial, textos enfatizaram o despropósito da resistência encabeçada pelo líder asteca,
responsabilizando-o pelo massacre promovido pelos espanhóis. Sua prisão era apresentada como ato
culminante da conquista levada a cabo por Cortés 56; com Cuauhtémoc cairia o império asteca. Uma
das imagens mais significativas de completa sujeição é sua presença na pia batismal, recebendo o
sacramento do padre Bartolomé de Olmedo, no quadro de Valderrama57.
No século XIX, a contrário senso, o aprisionamento de Cuauhtémoc significa o início de outro
relato épico de martírio e morte, exaltando-se as virtudes de um vencido58.
O livro de William H. Prescott, História antigua de México y la de su conquista, traduzido para
o espanhol em 1844, apresentava a valorização moral de Cuauhtémoc, antes mesmo que os
mexicanos a destacassem. Protagonista na obra do norte-americano, o último imperador asteca é
justo contraponto a Cortés; a oposição de ambos assemelhar-se-ia à de dois guerreiros do mundo
clássico.
Após a independência do México, intelectuais, notadamente os liberais, passaram a valorizar o
mundo pré-hispânico, ensejando, na segunda metade do século XIX, grande número de
representações sobre o período. Nos anos oitenta, o governo de Porfírio Díaz mandara erigir na
capital mexicana vários monumentos aos heróis nacionais, destacando-se o dedicado a Cuauhtémoc,
inaugurado em 1887, de autoria dos escultores Miguel Noreña, Gabriel Guerra e Epitacio Calvo, além
do engenheiro Francisco Jiménez. O monumento é encimado por grande escultura de Cuauhtémoc,
de corpo inteiro e em atitude altiva, durante o sítio de Tenochtitlan, a cidade asteca. Citlali o
descreve com precisão:

“Un hombre altivo, de bronce, avanza a nuestro encuentro mirándonos de


frente; porta un espectacular casco que tiene en la cimera largas plumas (es
el yelmo del guerrero que lo protege y que a la vez lo anuncia por su tamaño
y su suntuosidad), viste la coraza de escamas de serpiente velada por un
manto de estampado simétrico; sandalias, brazaletes y orejeras completan
su atavío. Este caballero es una mezcla romana y prehispánica; es un
emperador-guerrero que ha sustituido la diadema real (xihuitzolli) por el
casco que recuerda al de Marte, dios romano de la guerra. En la mano

55 Importante salientar que, no Brasil, o interesse em se eleger um índio como símbolo da raça recaía sobre aqueles que
auxiliaram os portugueses na expulsão dos invasores estrangeiros, como os índios Poty e Arariboia. Esse movimento deu-
se apenas no século XX, em plena república federativa, permeada por interesses locais, o que impediu a escolha de um
herói indígena para o país. A memória de Arariboia restringe-se à cidade de Niterói. Sobre isso ver: Paulo Knauss, “A
imagem do índio brasileiro: escultura, regionalismo e disputa simbólica”, in João Cézar de Castro Rocha, ed., Nenhum
Brasil existe: pequena enciclopédia (Rio de Janeiro: Topbooks, 2003), 1049-1061.
56 Elisa Vargaslugo, Imágenes de los naturales en el arte de la Nueva España, siglos XVI al XVIII (México: BANAMEX, IIE-

UNAM, 2005).
57 José Vivar y Valderrama, El bautizo de un noble indígena (Ixtlilxóchitl ou Cuaultémoc), século XVIII; óleo sobre tela, Museo

Histórico Nacional, México, DF.


58 Citlali Salazar Torres, “Cuauhtémoc: Raza, Resistencia y Territorios”, in El Éxodo: los héroes en la mira del arte (México,

DF: INBA/UNAM, 2010), 400-439. Agradeço a Citlali a possibilidade da leitura de seu texto, mesmo antes de publicado.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 16
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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derecha levanta amenazante una lanza, con la otra mano estruja una hoja
de papel, que es un mensaje del conquistador donde solicita la denigrante
rendición.” 59

Em contraste com a imagem do defensor da cidade, na base do monumento encontram-se o


relevo de Noreña, representando a rendição do último imperador asteca a Cortés, e, na face oposta,
o de Gabriel Guerra sobre o suplício imposto ao herói, que, ao contrário de Moctezuma, se opôs aos
espanhóis desde o início.
Esses mesmos temas foram explorados em telas monumentais por Joaquín Ramírez (filho),
Rendictión de Cuauhtémoc a Cortés60, e Leandro Izaguirre (1867-1941)61, El suplicio de Cuauhtémoc62,
ambas executadas em 1893, visando participar da Exposição Universal Colombiana de Chicago63.

Fig. 5 – Leandro Izaguirre, El suplicio de Cuauhtémoc, 1892;


óleo sobre tela; 294,5 x 454 cm; Museo Nacional de Arte, México-DF.
Reproducción autorizada por el Instituto Nacional de Bellas Artes y Literatura, 2010.

Na rendição, Cuauhtémoc pede a Cortés que o mate com o próprio punhal, pois prefere a
morte a ver sucumbir sua “pátria”. Cortéz se compromete a respeitar-lhe a vida e a posição
hierárquica. Não obstante, Cuauhtémoc será torturado para confessar a localização de supostos
tesouros, em flagrante desrespeito à palavra empenhada por Cortés. A escolha dos dois momentos
representados enfatiza o destemor e a nobreza dos atos de Cuauhtémoc, em contraste com as
atrocidades dos conquistadores espanhóis. A imagem do último imperador asteca sintetizará, a partir
de então, as virtudes e o nacionalismo do povo mexicano.
Na iconografia de Cuauhtémoc, a cena do suplício pelo fogo tornou-se preponderante. É
possível que as primeiras representações tenham surgido não na escultura ou na pintura, mas no
teatro. Ao longo do século, a imagem popularizou-se em pequenas estampas até ser
monumentalizada em praça pública e na exposição colombiana de Chicago64.
As obras de Gabriel Guerra e Leandro Izaguirre possuem pontos em comum. Ambos
representam Cuauhtémoc de perfil, atado a um assento de pedra lavrada com antigos hieróglifos,
estendendo corajosamente os pés sobre as chamas que sobem de um braseiro. Seu comportamento
contrapõe-se ao do outro nobre asteca, Tetlepanquetzal, submetido a igual tormento, que retrai os

59 Torres, “Cuauhtémoc: Raza, Resistencia y Territorios”, 400-439.


60 Joaquin Ramírez, La rendición de Cuauhtémoc, 1893; óleo sobre tela, 200 x 350 cm; Palácio Nacional, México.
61 Leandro Izaguire era então jovem professor de desenho de modelos de gesso da Escola Nacional de Belas Artes.
62 Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtémoc, 1893; óleo sobre tela, 294,5 x 454 cm; Museo Nacional de Arte, México-DF.
63 Fausto Ramirez, El suplicio de Cuauhtémoc, in Catálogo comentado del acervo del Museo Nacional de Arte, Pintura, siglo

XIX, Tomo I (México: Instituto Nacional de Bellas Artes, 2002), 329-342.


64 Ramirez, El suplicio de Cuauhtémoc, 329-342.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 17
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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pés, contorcendo-se de dor e pedindo ajuda. A posição de Cuauhtémoc, em muito, lembra as


representações do suplício de São Lourenço, particularmente a produzida por José Juárez (1617- c.
1664). Entretanto, há uma grande diferença na expressão facial. No quadro de José Juárez65, São
Lourenço, sobre a grelha, olha a solicitar clemência ao anjo, que lhe é próximo, e à comunidade
celeste abrigada na parte superior do quadro; em Guerra e Izaguirre, Cuauhtémoc desafia seus
oponentes. Na tela de Leandro Izaguirre, a oposição é mais evidente: o tesoureiro da coroa, Julián de
Alderete, responsável pelo interrogatório do imperador asteca, posiciona-se à sua frente,
estabelecendo-se entre ambos a mesma dura troca de olhares, comum às representações de heróis
vencidos que enfrentam dignamente seus opositores66.
Além da exposição de Chicago, o quadro de Izaguirre esteve presente na exposição da Escola
Nacional de Belas Artes de 1899, atraindo a atenção da crítica, adquirido pelo governo mexicano em
1901 e incorporado ao acervo da antiga academia.

Conclusão

Todas as telas aqui apresentadas figuram chefes guerreiros opositores à conquista: Caupolicán,
Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc. Mortos ou quase.
Há, contudo, variações.
Raymond Monvoisin e Luis Montero exploraram o estranhamento entre culturas diferentes e a
encenação teatral, quase operística, contrapondo a imobilidade dos chefes ao destempero feminino
na manifestação da dor ou da cólera. Rodolpho Amoêdo e Leandro Izaguirre, mais comedidos,
revestiram as respectivas telas de solene austeridade.
Cuauhtémoc é o único que reage, enfrentando a tortura e olhando frontal e altivamente o
algoz. Atahualpa e Aimberê estão mortos, enquanto Caupolicán abaixa o rosto, constrangido frente
às acusações da esposa. A representação do líder mapuche não se coaduna com a figura de um
herói. Ao expor o drama doméstico vivido por Caupolicán, junto a outros quadros referentes ao
continente americano, no Salon parisiense de 1859, o francês Monvoisin concebeu uma triste
América índia e mestiça.
As representações de Aimberê e Atahualpa enfatizam a determinação dos conquistadores em
controlar corpo, alma e memória dos líderes vencidos. O caso de Aimberê é extremo. O último
tamoio não se rendeu, não se converteu, não se deixou aprisionar e matou o opositor. A fórmula
encontrada para a representação aceitável deste herói, impossível a uma nação que se projetava
branca e cristã, consistiu na apropriação do cadáver por uma igreja conciliadora.
Os quatro índios encontram-se nos próprios contextos ambientais. Atahualpa e Cuauhtémoc,
no interior de construções que buscam caracterizar a sofisticação das relativas culturas; Caupolicán e
Aimberê, em meio à natureza. Os cenários denotam a derrota no solo de próprios territórios.
As telas poderiam ser, em parte, explicadas pela sensibilidade oitocentista quanto ao herói
vencido67. Diante dos enfrentamentos internacionais, das instabilidades nacionais e das oscilações
entre vitórias e derrotas, o heroísmo, imutável e invencível, seria o moral. A honra e o estoicismo
tornar-se-iam os verdadeiros suportes dos heróis, o que deles se esperava ante as inevitáveis
adversidades. Na América Latina tal fato parece mais evidente na estreita relação entre o civil e o
religioso, valorizando-se o martírio.

65 José Juárez, El martírio de San Lorenzo; óleo sobre tela, 496 x 329 cm; Museo Nacional de Arte, INBA, México.
66 Ver, por exemplo, o quadro The trial of Sir William Wallace at Westminster, pertencente à Guildhall Art Gallery de
Londres, atribuído ao inglês Daniel MacLise (1806-1870), conhecido pintor de história do período vitoriano, um dos seis
artistas responsáveis, em 1844, pela decoração do Parlamento de Westminster. MacLise representa em grande tela o
julgamento de William Wallace, onde o herói aparece do lado direito do observador, entre dois soldados, tendo à volta
mais de uma dezena de personagens tensos, que dialogam entre si. A posição ereta, a estatura elevada, o corpo robusto
e a veste branca iluminada o destacam. As amarras não lhe atam os punhos, não o colocam em posição subserviente;
mesmo uma aparente coroa de espinhos não parece ferir-lhe a pele ou a dignidade.
67 Maraliz de Castro Vieira Christo, “Pintura, história e heróis: Pedro Américo e ‘Tiradentes esquartejado’”, Tese de

Doutorado em História, Universidade Estadual de Campinas (2005).


CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 18
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Nos quadros analisados representaram-se o último mapuche, o último inca, o último tamoio e
o último asteca. Está definido o lugar que devem ocupar: o passado longínquo. A não ênfase da
valentia na luta ou da liderança na resistência e a reiteração da imobilidade, associadas ao fato de
estarem todos, mortos ou não, no plano horizontal, deixam nu o processo de desmonte dos heróis.

Juiz de Fora, Brasil, inverno de 2010.

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