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Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Caupolicán
Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles4, está hoje exposto no Museo
O’Higginiano y Bellas Artes de Talca, Chile. Obra de Raymond-Auguste Quinsac Monvoisin (1790-
1870), artista francês que trabalhou no Chile entre 1843 e 1858.
*
O presente artigo foi escrito com base em pesquisa realizada durante o período de pós-doutoramento, desenvolvido com
o apoio da CAPES e da FAPEMIG. Agradecemos ao prof. Jorge Coli a leitura do texto.
1 Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867; óleo sobre tela, 350 x 430 cm; Museu de Arte de Lima, Peru.
2 Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883; óleo sobre tela, 180 x 261 cm; Museu Nacional de Belas Artes.
3 Leandro Izaguire, El suplicio de Cuauhtémoc, 1893; óleo sobre tela, 294,5 x 454 cm; Museo Nacional de Arte, México-DF.
4 Raymond Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, 1859; óleo sobre tela, 220 x 277 cm;
Fig. 1 – Raymond Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles, 1859;
óleo sobre tela, 220 x 277 cm; Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca, Chile.
5 Estudou na École des Beaux-Arts de Bordeaux, sua cidade natal, e na École des Beaux-Arts de Paris, onde frequentou o
atelier de Pierre Narcisse Guérin.
6 Monvoisin, La abdicación de O’Higgins, 1855, hoje perdido. Reproduzido em: Miguel Sola & Ricardo Gutierrez, Raymond
Quinsac Monvoisin, su vida y su obra en America (Buenos Aires: Academia Nacional de Bellas Artes, 1948).
7 Raymond Monvoisin, La captura de Caupolicán, 1854; óleo sobre tela, 297 x 386 cm., Museo Histórico Nacional de
Santiago, Chile.
8 Sola & Gutierrez, Raymond Quinsac Monvoisin, 49.
9 David James, Monvoisin (Buenos Aires: Emecé Editores, 1949), 89. Miguel Luis Amunátegui publicaria em 1862,
Descubrimiento i conquista de Chile, e, em 1882, Vida del jeneral don Bernardo O’Higgins: (su dictadura, su ostracismo).
10 Agradecemos a Juan Manuel Martínez, pesquisador do Museo Histórico Nacional de Santiago, as informações sobre esse
quadro.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 3
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Em 1858, Monvoisin retornou definitivamente a Paris, quando pinta outra versão da captura
de Caupolicán11, também referida nas Notas Autobiográficas.
Caupolicán era líder dos mapuche, que viviam nos territórios hoje conhecidos como Chile e
Argentina. Resistiu aos avanços dos colonizadores, porém, traído, foi capturado após a Batalha de
Antihuala, em 5 de fevereiro de 1558, e executado pelos espanhóis, por empalamento. Sua luta foi
tema do poema épico La Araucana, do espanhol Alonso de Ercilla y Zuñiga (1533-1594). Ercilla, de
origem nobre, passou a juventude a serviço de Carlos V, acompanhando o príncipe Felipe em viagens
por outros estados do império. Em 1555, vai para o Peru e segue García Hurtado de Mendoza,
recém-nomeado Governador e capitão-general do Chile, nas batalhas contra os sublevados
araucanos (assim chamavam os espanhóis aos mapuches), tornando-se testemunha da morte de
Caupolicán. Em seu poema, Ercilla canta a guerra, exaltando o povo a quem combate, deixando claro
a admiração pelo amor dos índios à terra e à liberdade.
Claudio Cifuentes Aldunate, em artigo de abordagem semiótica, fixa em cinco etapas a
evolução do personagem de Caupolicán e correspondentes representações: 1) Unidade dual; Força
corporal e inteligência a serviço do povo; Vencedor, famoso e em equidade de papel com Carlos V; 2)
Desintegração de sua imagem; Unidade dual de força e inteligência a serviço de si mesmo; Perdas
bélicas, de prestígio e de fama; 3) Restabelecimento parcial de sua imagem através da eloquência e
sagacidade; 4) Desintegração total de sua imagem na perseguição e prisão; 5) Recuperação de sua
integridade através do batismo e morte; Valente, temido e digno, é executado com o atributo cristão
que lhe faltava12.
Monvoisin lê La Araucana, mas, nas duas versões sobre Caupolicán, não enfatiza a coragem do
líder mapuche nas batalhas ou na morte, não explora a relação conquistador/ conquistado. O pintor
fixa-se na reação da esposa do herói, Fresia, ao vê-lo prisioneiro. Prende-se à quarta etapa apontada
por Claudio Aldunate, relativa à desintegração total do personagem.
A existência do poema épico de Ercilla possibilitou que, por algum tempo, heróis da resistência
mapuche contra os espanhóis no século XVI, como Lautaro, Caupolicán e Galvarino, fossem
reconhecidos após a independência. Entretanto, o agravamento dos conflitos de fronteira e as
campanhas militares de extermínio, levadas a efeito de 1860 a 1865, tanto do lado chileno (chamada
11 Monvoisin, Caupolicán, jefe de los Araucanos, prisionero de los españoles; óleo sobre tela, 226 x 281 cm; Colección
Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca.
12 Claudio Cifuentes Aldunate, “Caupolicán: creación y recreaciones de un mito”, Noter og kommentarer fra Romansk
(...)
13
Benjamín Vicuña Mackenna, Lautaro y sus tres campañas contra Santiago. 1553-1557. estudio biográfico
según nuevos documentos.( Santiago : Impr. de la Librería del Mercurio, 1876), 6.
14 La Araucana, canto XXXIII.
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O perfil, os cabelos, o brinco, o colo à mostra e o gesto de Fresia com o filho em muito
lembram a Medeia, pintada em 1838, por Delacroix, antigo colega de Monvoisin no atelier de Guerin,
em Paris. Transmudada em Medeia, Fresia se universaliza.
Fresia, por ser a única que detém a ação, rouba a cena de Caupolicán; entretanto, Mouvoisin
cria um sutil dilema para o observador, incidindo maior luminosidade sobre o peito desnudo e
atlético de Caupolicán. Semelhante procedimento chama a atenção para a sensualidade existente em
torno do líder mapuche, representado sem nenhuma característica étnica, não evidenciando o olho
cego15, ostentado beleza ocidental, deitado na liteira, forrada com exótica pele de felino, ladeado por
duas jovens16; talvez alusão à poligamia em que viviam os mapuche. O grupo estimula a fantasia do
observador que, abstraindo-se do drama a sua volta, poderá transferir os três personagens para uma
situação de alcova, convidativa a jogos amorosos. Este pensamento torna ainda mais aflitiva a
condição de Caupolicán; amarrado, incapaz de transformar sua potência em ato, de tocar as jovens,
que, por sua vez, mesmo não tendo as mãos atadas, igualmente não podem tocá-lo, entrelaçando os
dedos. Lembremo-nos que, nesse momento, segundo o poema de Ercilla, Fresia lhe está dizendo:
“ese membrudo cuerpo en sexo de hembra se ha trocado”17.
A tela pintada na França contrasta, e muito, com a primeira versão da prisão de Caupolicán,
executada no Chile em 1854, hoje exposta no Museu Histórico Nacional18. Apesar de assinada pelo
artista, apresenta composição e técnica muito inferiores, sugerindo pouco empenho do pintor; vale
lembrar que, concomitantemente, o artista realizava outra obra de grande formato, La abdicación de
O’Higgins19. Na composição chilena, Caupolicán está de pé, com mãos atadas às costas, entre índios
e espanhóis, enquanto Fresia, de joelhos, em primeiro plano, com o filho já no solo, executa um
gesto de dor, ao colocar a mão direita sobre a cabeça, e de repulsa, ao estender o braço esquerdo
com a palma da mão em direção a Calpolicán. Na tela parisiense, Monvoisin surpreende ao inverter
as posições de Fresia e Caupolicán, colocando-o em posição inferior à esposa, ou seja, deitado e
imóvel, a seus pés.
A segunda versão, a que nos interessa nesse artigo, hoje no museu de Talca, foi realizada para
ser exposta no Salon de Paris de 1859, onde recebeu a terceira medalha, e oferecida à venda ao
governo do Chile. Em publicação explicativa das obras do Salon, constam três telas de Monvoisin,
dentre elas Caupolicán:
15 Alonso Ercilla destaca seu problema de visão, no Canto II: “... tenía un ojo sin luz de nacimento/ como un fino granate
colorado,/ pero lo que en la vista le faltaba,/ en fuerza y esfuerzo le sobraba”. Afonso Ercilla, La Araucana, (3 ed.,
Santiago de Chile: Editorial Andres Bello, 2005), 38.
16 Alonso Ercilla apresenta Caupolicán prisioneiro de forma bem diversa, mostrando-o atado aos outros índios, sem nenhum
privilégio: “… quando la triste Palla descubriendo/ al marido que preso iba adelante,/ de sus insignias y armas
despojado,/ en el montón de la canalla atado,/...”. Ercilla, La Araucana, 226.
17 Tradução livre da autora: “esse robusto corpo em sexo feminino se transformou”.
18 Monvoisin, La captura de Caupolicán, 1854; óleo sobre tela, 297 x 386 cm; Museo Histórico Nacional de Chile.
19 Josefina de la Maza Chevesich, em artigo ainda inédito, intitulado Llevando la luz al país de los ciegos, la llegada de
Raymond Q. Monvoisin a Chile en 1843, ressalta exatamente essa variação qualitativa da obra de Monvoisin.
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As telas expostas apresentam grande unidade. Todas enfocam a tensão entre brancos e índios
na região araucana, tendo como centro crianças e mulheres; aumentando a ideia de fragilidade e
barbárie.
Com título próximo ao exposto em Paris, Deux époux du Paraguay, conhecemos três obras de
Monvoisin. Esposos paraguayos, óleo pintado em 1842, pertencente, em 1948, à coleção de Antonio
Santamarina, em Buenos Aires, reproduzido no livro de Sola e Gutierrez. É retrato de casal com
roupas típicas, contra céu ligeiramente nublado. Apesar de sérios, os personagens não aparentam ter
passado pela experiência do assassinato dos filhos pelos índios, principalmente a mulher, mais
idealizada, sem tensão. Há, no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires, uma aquarela
idêntica ao óleo, datada de 1859, intitulada Matrimonio paraguayo, reproduzida no livro de Ana
Francisca Allamand, e, por fim, Los refugiados del Paraguay, reproduzida no livro de David James21.
Também datada de 1859, esta última obra representa o mesmo casal das duas anteriores, apesar das
pequenas diferenças: maior tristeza nos semblantes, céu mais agitado, mulher de perfil olhando para
o horizonte, e o homem que deixa de ter na mão o tradicional chimarrão para segurar o que
aparenta ser uma espada, da qual se vê apenas o punho, levemente sustentado pelos dedos, num
profundo sentimento de impotência. Monvoisin transformou um estudo de tipos locais em quadro
de maior carga dramática, principalmente pela explicação que o acompanha.
A tela Une Chilienne prisonnière des Indiens des côtes de l’Araucanie (Amérique du Sud) refere-
se ao rapto de mulheres brancas pelos indígenas; tema de longa tradição literária e pictórica no Chile
e Argentina, que necessita de breve parêntese explicativo.
Em 1612, Ruy Diaz de Gusmán, nascido na América espanhola e mestiço, escreveu a História
del descobrimiento, conquista y población del Rio de la Plata, que circulou com o nome de La
Argentina manuscrita, onde narra a conquista do ponto de vista espanhol, expondo o mal-estar com
a mestiçagem. No texto, quase autobiográfico, Gusmán insere o personagem ficcional Lúcia Miranda,
esposa de um conquistador espanhol, raptada pelos índios. O episódio define o espaço americano
como próprio dos conquistadores e o índio como violador das fronteiras, invertendo a situação
vivenciada pelos povos americanos: usurpação, escravidão e morte. Nos séculos XVII e XVIII, vários
cronistas jesuítas se referiram à história de Lúcia Miranda como um mito de origem da discórdia
entre conquistadores e índios 22.
Embora o texto de Gusmán nunca tenha deixado de circular, a obra só foi publicada em 1836.
No ano seguinte, o escritor argentino Esteban Echeverría edita o poema épico La cativa, parte do
livro Rimas, com grande repercussão. A resistência indígena implicava no ataque às vilas e, por vezes,
no rapto de mulheres, cujas histórias difundiam-se pela tradição oral e, posteriormente, pela
imprensa. Ficção e realidade se fundiram, produzindo-se um vasto conjunto de textos estimuladores
o imaginário23. A cativa branca mais célebre foi Trinidad Salcedo, cujo drama narrado pelo oficial
y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX (Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 2001), 239-285.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 7
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inglês Thomas Sutchiffe, em seu livro Sixteen years in Chile and Peru: from 1822 to 1839, foi pintado
pelo bávaro Rugendas24, com o qual Monvoisin se relacionava.
Rugendas conheceu o poema de Echeverría e produziu cerca de vinte e cinco obras sobre o
rapto de mulheres por índios, mesmo após ter regressado à Alemanha. Importante ressaltar que, no
século XIX, grande parte dos raptos já não eram realizados por indígenas, mas por bandoleiros, a
exemplo do rapto de Trinidad Salcedo; entretanto, as representações insistiam na dicotomia branco/
índio e civilizado/ bárbaro.
Monvoisin pintou dois quadros sobre o tema das cativas brancas, ambos relacionados a um
fato verídico, o naufrágio do veleiro (mais precisamente um bergantim) denominado Jovem Daniel,
ocorrido em 1849, na costa de Puancho, entre os rios Tolten e Imperial. Os náufragos, em torno de
trinta pessoas, conseguiram salvar-se, porém foram mortos pelos índios. Dentre eles estava Elisa
Bravo, que teria sido poupada e tomada por esposa pelo cacique Curin, embora várias expedições de
resgate enviadas pelo Estado e pela família não a encontrassem 25. No primeiro quadro26, o artista
mostra Elisa, em meio ao bater das ondas na praia, desesperada, tentando proteger os filhos,
ameaçados pelos índios agrupados em torno dela; no segundo27, retrata Elisa melancólica, sentada,
com duas crianças mestiças ao colo, observada pelo cacique, trajado como camponês, diante de uma
casa de madeira, e por duas mulheres sentadas na penumbra. Os dois trabalhos foram xilogravados
por Augusto Trichon, famoso gravador, nascido em Paris no início do século XIX, professor de Gastón
Raymond Ernest Monvoisin, sobrinho do artista28. Igualmente a imagem de Elisa circulou em
litografia, algumas vezes em cores. Elisa com os filhos mestiços foi a obra exposta por Monvoisin no
Salon de Paris, ao lado de Caupolicán e do casal de paraguaios.
O conjunto dos três quadros, enviados por Monvoisin ao Salon de 1859, revela a existência de
três casais, recordando antigas pinturas de castas do período colonial: um casal branco, entristecido
e impotente face ao assassinato dos filhos pelos índios; um casal mestiço, composto por um cacique
assassino, travestido de camponês, e uma mulher branca raptada, violentada, mãe de mestiços; por
fim, um casal indígena, composto por um covarde e uma mulher vingativa, mãe desnaturada.
Monvoisin explorou o exótico e apresentou o povo americano com extremo pessimismo.
A inserção de Caupolicán no conjunto dos casais do Salon de 1859 reforça a leitura negativa,
que o artista apresenta do herói dos mapuche.
Atahualpa
24 Francisca del Valle Tabatt, “El repertorio visual de las cautivas blancas en Chile en el siglo XIX”, in Juan Manuel Martínez
Silva, ed., Arte americano: contextos y formas de ver - Terceras Jornadas de Historia del Arte (Santiago: RIL editores,
2006), 151-158.
25 Sola & Gutierrez, Raymond Quinsac Monvoisin, 41-42.
26 Monvoisin, El naufragio del joven Daniel, 1859; óleo sobre tela, 176 x 130 cm; Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca,
Chile.
27 Monvoisin, Elisa Bravo en cautiverio, c. 1858; óleo sobre tela, 176 x 130 cm; Museo O’Higginiano y Bellas Artes de Talca,
Chile.
28 Sola & Gutierrez, Raymond Quinsac Monvoisin, 41-42.
29 Luis Montero, Los funerales de Atahualpa, 1864-1867; óleo sobre tela, 350 x 430 cm; Museu de Arte de Lima, Peru.
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 8
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Florença tornou-se centro para o qual se dirigiram muitos artistas latino-americanos, visando
tanto a aprendizagem, quanto à viabilização de obras de grande formato. Antonio Ciseri (1821-1891),
por exemplo, recebeu como alunos em seu atelier o uruguaio Juan Manuel Blanes, os bolsistas do
governo argentino: Martín Boneo, Mariano Agrelo, Claudio Lastra e, mais tarde, Ángel Della Valle30;
como também, o brasileiro Aurélio de Figueiredo, quando, em Florença, entre 1873 e 1875, auxiliava
o irmão Pedro Américo a pintar a Batalha de Avaí, enorme representação da Guerra do Paraguai,
encomendada pelo Estado Imperial brasileiro.
Atahualpa (1502-1533) foi o décimo terceiro e último imperador inca, traído e aprisionado
pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro, em 16 de novembro de 1532. Atahualpa, convidado
por Pizarro para jantar e conversar, chegou à praça da cidade andina de Cajamarca, acompanhado
apenas por sua guarda de honra. Ali, foi recebido pelo padre Vicente Valverde, que, por intermédio
de tradutor, exigiu a conversão ao cristianismo do imperador inca e de seu séquito, assim como
submissão ao rei espanhol; caso contrário, Atahualpa seria considerado inimigo da Igreja Católica e
do Reino da Espanha. De acordo com a lei espanhola, a recusa permitiria aos espanhóis declararem
imediata guerra aos incas. Reagindo, Atahualpa teria perdido seis mil guerreiros, em menos de duas
horas de luta, e se tornado prisioneiro no Templo do Sol. Em troca da liberdade, Atahualpa ofereceu
peças de ouro suficientes para encher o grande aposento em que se encontrava, assim como o dobro
da mesma quantia em prata. Pizarro recebeu o resgate, mas não o libertou, condenando-o a ser
queimado vivo na fogueira. No momento da execução, Valverde teria conseguido que Atahualpa
aceitasse ser batizado para atenuar-lhe a pena, transformando-a em morte por garroteamento,
aplicada em 26 de julho de 1533.
A exemplo de Monvoisin, Montero não pintou o imperador inca em luta, como grande líder,
mas seu cadáver em poder dos conquistadores. Para a escolha do momento a ser representado
baseou-se o artista peruano na leitura de La historia de la conquista del Perú, do historiador
americano William Prescott, publicada em 1847-1848:
30 Roberto Amigo Cerisola & Gabriel Peluffo Linari, Juan Manuel Blanes: la nación naciente - 1830-1901 (Montevideo:
Museo Municipal de Bellas Artes Juan Manuel Blanes, 2001).
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31 William Prescott, Historia de la conquista de Peru, v. 1 (Madrid, 1847-1848), 447-448, apud Roberto Amigo, Tras un Inca:
los funerales de Atahualpa de Luis Montero en Buenos Aires (Buenos Aires: Fundación para la Investigación del Arte
Argentino, 2001), 17.
32 Giotto, Morte e ascensão de São Francisco, c. 1325; afresco, 280 x 450 cm; Cappella Bardi, Santa Croce, Florença.
33 Tzvetan Todorov, A conquista da América: a questão do outro (3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2003), 226, 247.
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elemento de propaganda religiosa. No México, por exemplo, os batismos dos senhores de Tlaxcala –
aliados de Cortés contra os mexicas –, do rei de Texcoco e do próprio Cuauhtémoc foram
representados em grandes telas34.
Luis Montero ambicionava apresentar a obra na Exposição Universal de Paris de 1867. A
ausência de recursos para a viagem até a capital francesa o impediu de fazê-lo, limitando-se a expô-
la no próprio atelier, em Florença, com grande repercussão. O artista planejou exibi-la também no
Rio de Janeiro, Montevidéu e Buenos Aires, antes de chegar a Lima. Esse périplo lhe garantiu
destaque na imprensa dos referidos países, ampliando as expectativas no Peru, bem como recursos
econômicos para a viagem, com a cobrança de ingressos na exibição da tela. Como o quadro,
destinado ao governo peruano, não estivesse à venda, no Brasil, o imperador D. Pedro II dele
encomendou algumas cópias fotográficas35 e, em Buenos Aires, realizou-se cópia litográfica,
publicada no Correo del Domingo36.
Nesses países a crítica lhe foi muito favorável, salientando as qualidades de grande pintura e o
tema escolhido, revelador da crueldade dos conquistadores, principal chave de leitura da tela.
Quanto mais frágil se representa o herói, mais atenção se dá a seu algoz.
Desde Florença uma crítica ao quadro é recorrente: o naturalismo da representação de
Atahualpa em contraste com a idealização das mulheres, revestidas de beleza ocidental. Enquanto
reconhecia-se, pelo físico e trajar, as mulheres como jovens italianas travestidas de incas, portanto,
inverossímeis, destacava-se o corpo de Atahualpa. A roupa, o pendente de ouro na orelha, o adorno
da cabeça com plumas e borda vermelha, tradicionais aos reis incas, e, principalmente, sua face,
possuiriam verdade étnica inquestionável.
A disparidade entre a representação do imperador comparada a de suas esposas e irmãs
alimentou intenso debate. Para uns, desvalorizaria Atahualpa, privado da beleza idealizada,
destinada aos grandes personagens, preso em sua feiura étnica. Para outros, a beleza das mulheres
revelaria, além de uma exigência estética, a verdadeira origem dos peruanos: uma ramificação dos
antigos gregos37. Natália Madluf conseguiu resolver o enigma da diferença de representação entre o
inca morto e as mulheres38. Uma carta, datada de 14 de julho de 1865, enviada de Turim, Itália,
assinada pelo diplomata peruano Luis Mesones, doada ao Museo de Arte de Lima, revela ser o artista
peruano mestiço Francisco Palemón Tinajeros, morto por problemas respiratórios em Florença, o
modelo de Luis Montero para Atahualpa. O naturalismo presente na representação do último
imperador inca correspondia à observação d’après nature do cadáver de um índio.
Em 1868, Montero chega apoteoticamente a Lima, premiado pelo governo com medalha de
honra e vinte mil soles. Adquirida pelo Estado, a obra circulou como imagem, reproduzida nas notas
de quinhentos soles. Nos conflitos com o Chile, a tela foi levada para Santiago como botim de guerra
e posteriormente devolvida.
A aceitação do quadro deriva do fato de ser obra de artista americano, com formação
europeia, bem avaliada pela crítica internacional, executada em grande formato, obedecendo a
34 A tela anônima, Bautizo de los Señores de Tlaxcala, presente na Catedral de Tlaxcala, acha-se reproduzida em: Imágenes
de los naturales en el arte de la Nueva España, siglos XVI al XVIII (México DF, Banamex, 2005 ) 27. No capítulo “La
construcción de una Iglesia indiana. Las imágens de su edad dorada”, de Antonio Rubial e M. Teresa Suárez Molina, para
o catálogo da exposição Los pinceles de la historia, el origen del reino de la Nueva España (1680-1750), encontram-se
reproduzidas as obras: uma gravura de Juan Moreno Tejada, El bautizo del rey de Texcoco, de 1783, um óleo de Gregorio
José de Lara, de 1755, com igual tema, e a grande tela representando o batismo de Cuauhtémoc pelo padre Bartolomé
de Olmedo, pintado por José Vivar y Valderrama, atualmente, no Museo Nacional de Historia, em Chapultepec, México-
DF.
35 Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro(1º set. 1867).
36 Correo del Domingo, vol. VIII, n. 298 (22 dez. 1867).
37 Ver principalmente o artigo do argentino Vicente Fidel López, “Los funerales de Atahualpa (pintura original de Don Luis
Montero)”, La Revista de Buenos Aires 14 (53) (1867). Sobre a recepção do quadro em Buenos Aires ler: Roberto Amigo,
Tras un Inca, Los funerales de Atahualpa de Luis Montero en Buenos Aires (Buenos Aires: Fundación para la Investigación
del Arte Argentino, 2001), onde o artigo de Vicente F. López encontra-se reproduzido.
38 Natália Madluf Brahim, “El rostro del Inca. Raza y representación en Los funerales de Atahualpa de Luis Montero”, ILLAPA
- Revista del Instituto de Investigaciones Museológicas de la Universidad Ricardo Palma 1 (1) (2004): 11-28.
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parâmetros técnicos reconhecidos como convenientes à pintura de história, tratando de forma digna
o herói inca e, sobretudo, por representá-lo morto.
Roberto Miró Quesada assinalou a identificação de Luis Montero com projetos crioulos e
liberais de seu tempo, nos quais se reconhece a importância do indígena do passado, a ser, não
obstante, superado, objetivando a construção um novo Peru, a partir da herança hispânica 39.
Aimberê
O último Tamoio40, tela exposta no Salon de 188341, pintada por Rodolpho Amoêdo (1857-
1947), quando estudou em Paris com Alexandre Cabanel, é obra singular. Retrata o corpo do índio
Aimberê devolvido à praia e amparado pelo padre Anchieta. O tema integra o poema épico A
Confederação dos Tamoios, publicado em 1856, por Gonçalves de Magalhães, um dos responsáveis
pela introdução do romantismo no Brasil.
Fig. 4 – Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883; óleo sobre tela, 180 x 261 cm;
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil.
Aimberê conheceu o cativeiro juntamente com seu pai, Kaiçuru, chefe tupinambá, na
primeira metade do século XVI, início da colonização da capitania de São Vicente, atual estado de São
Paulo. Presenciando a morte do pai devido a maus tratos, Aimberê, agora cacique, insuflou entre os
índios a revolta e organizou a fuga do cativeiro. Livre, promoveu a união de vários chefes indígenas –
tupinambás, goitacazes e aimorés –, ensejando, em 1554, a Confederação dos Tamoios, que
abrangeu área hoje situada entre o sul do litoral fluminense e a cidade de São Paulo. Objetivando a
expulsão dos portugueses e o fim da escravidão, aliou-se aos protestantes franceses que, entre 1554
e 1567, permaneceram na Baía da Guanabara 42, impingindo aos portugueses sérias derrotas. Sem
39 Roberto Miró Quesada, “Los funerales de Atahualpa”, El Caballo Rojo - Suplemento del Diario Marka (13 nov. 1983): 10-
11. Ensaio reproduzido em: Pueblo Indio 1 (1985): 37-40 e em: Márgenes. Encuentro y Debate VI (10-11) ( 1993): 107-114.
40 Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio, 1883; óleo sobre tela, 180 x 261 cm; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro,
Brasil.
41 Cf. explication des ouvrages de peinture (...), 4:
estabelecerem no litoral do Rio de Janeiro. Em 1555, os franceses buscaram consolidar a sua presença constituindo uma
colônia de povoamento, “França Antártica”, situada na Ilha de Villegaignon, na Baía de Guanabara, da qual participaram
CHRISTO, Maraliz C. V. . “Caupolicán, Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc, índios vencidos na pintura histórica latino-americana”. 12
Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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O poeta descreve batalhas entre índios e portugueses, o ataque de Aimberê a Piratininga para
resgatar a amada Iguaçu, sequestrada, e muitos outros feitos do guerreiro até a morte. Na batalha
que levou à expulsão dos franceses, Iguaçu é ferida no coração, morrendo aos pés de Aimberê que,
ao reagir, fere Estácio de Sá com flecha envenenada. Diante da derrota inevitável, Aimberê toma o
cadáver da esposa nos braços e brada feroz:
católicos e protestantes. Ronaldo Vainfas (dir.), Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808) (Rio de Janeiro: Objetiva, 2002),
312-314.
43 Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios (Rio de Janeiro: Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro,
1994), 208.
44 Victor Meireles, Primeira missa no Brasil, 1860; óleo sobre tela, 260 x 356 cm; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de
Janeiro.
45 Victor Meirelles, Batalha dos Guararapes, 1879; óleo sobre tela, 500 x 925 cm; Museu Nacional de Belas Artes, Rio de
Janeiro.
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Portuguese Studies Review, Trent University (Ontario, Canadá), Vol. 18, 2010. prelo.
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Na tela, o padre jesuíta Anchieta, responsável pelas negociações de paz entre índios e
portugueses, acolhe nos braços, solitário, o corpo de Aimberê, cujo sacrifício é associado ao cristão,
seguindo a iconografia de uma pietá49. O artista evitou representar Iguaçu, impedindo a fixação no
drama vivido pelo casal, no amor entre ambos, para expressar o amor incondicional da Igreja,
personificado no gesto comovente de Anchieta.
A escolha de Anchieta constitui igual decisão problemática, face à posição ambígua do jesuíta
no conflito, permitindo aos portugueses informações estratégicas sobre os índios e objetivando a
divisão interna da Confederação dos Tamoios50. A particular ligação de Anchieta com Aimberê
também se reveste de tensão, pelo fato do jesuíta considerá-lo o próprio demônio, como muitas
46 Obras sobre temática indigenista que participaram das Exposições Gerais no Império: 1860: Frederico Tirone, Enterro de
Atalá, Fuga de Atalá; 1862: Jules Le Chevel, Paraguassú e Diogo Álvares Correa; 1866: Victor Meirelles, Moema; 1879:
Firmino Monteiro, Exéquias de Camorim; 1884: Augusto Rodrigues Duarte, Exéquias de Atalá (também apresentada na
Exposição Universal de Paris, em 1878); Aurélio de Figueiredo, Ceci no banho; José Maria de Medeiros, Iracema; e
Rodolpho Amoêdo, O último Tamoio e Marabá. Carlos Roberto Maciel Levy, Exposições Gerais da Academia Imperial e da
Escola Nacional de Belas Artes. Período Monárquico. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884 (Rio de Janeiro:
Edições Pinakotheke, 1990).
47 O canibalismo dos tupinambás tornou-se muito conhecido após a publicação do livro de Hans Staden, Viagens e
aventuras no Brasil, 1557. O alemão, contratado pelos portugueses para lutar contra a Confederação dos Tamoios, foi
feito prisioneiro e permaneceu vários meses entre os tupinambás, presenciando rituais antropofágicos, posteriormente
narrados em suas memórias.
48 Gonçalves de Magalhães, A Confederação dos Tamoios, 209.
49 Ver: Ana Maria Tavares Cavalcanti, “O último tamoio e o último romântico”, Revista de História da Biblioteca Nacional 26
(2007): 64-69.
50 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil - Tomo I (Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000), 364.
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51 “ATO II: No 2º. ato entram três diabos, que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem S. Lourenço e S.
Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os diabos, cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimberê e
Saraiva, seus criados.
(...)
São Lourenço fala a Guaixará
Lou.: E ele, é?
Aim.: O grão tamoio Aimberê,
sou jibóia, sou socó.
sucuriu taguató,
demônio-luz, mas sem fé,
tamanduá atirabebó.”
Teatro de Anchieta ( São Paulo: Edições Loyola, 1977), 145, 155.
52 Oscar Guanabarino, “Bellas Artes”, Jornal do Commercio (269) (1884): 1. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/guanabarino_1884.htm>. Acesso em: 12 ago. 2010.
53 Antônio Parreiras, Morte de Estácio de Sá, 1911; óleo sobre tela, 300 x 400 cm; Palácio Guanabara, Rio de Janeiro.
54 Sobre o quadro ver: Valéria Salgueiro, “Construindo a origem, virtudes e heróis na pintura de história: o caso da obra ‘A
morte de Estácio de Sá’ por Antônio Parreiras”, in Maraliz de Castro Vieira Christo, ed., “Dossiê: pintura de história”,
Anais do Museu Histórico Nacional 39 (2007).
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Arariboia, cristianizado, passou a chamar-se Martim Afonso, tornando-se o herói que auxiliou os
portugueses na expulsão francesa, merecedor, no século XX, de estátua em praça pública55.
A comparação entre as representações de Aimberê morto na praia e Arariboia torna mais
evidente o quanto Amoêdo minimizou o chefe da Confederação dos Tamoios, líder de luta sem
trégua contra os portugueses, herói impossível no panteão brasileiro.
Aimberê é o único dos índios representados cujo nome não aparece no título do quadro; é
simplesmente o último.
Cuauhtémoc
55 Importante salientar que, no Brasil, o interesse em se eleger um índio como símbolo da raça recaía sobre aqueles que
auxiliaram os portugueses na expulsão dos invasores estrangeiros, como os índios Poty e Arariboia. Esse movimento deu-
se apenas no século XX, em plena república federativa, permeada por interesses locais, o que impediu a escolha de um
herói indígena para o país. A memória de Arariboia restringe-se à cidade de Niterói. Sobre isso ver: Paulo Knauss, “A
imagem do índio brasileiro: escultura, regionalismo e disputa simbólica”, in João Cézar de Castro Rocha, ed., Nenhum
Brasil existe: pequena enciclopédia (Rio de Janeiro: Topbooks, 2003), 1049-1061.
56 Elisa Vargaslugo, Imágenes de los naturales en el arte de la Nueva España, siglos XVI al XVIII (México: BANAMEX, IIE-
UNAM, 2005).
57 José Vivar y Valderrama, El bautizo de un noble indígena (Ixtlilxóchitl ou Cuaultémoc), século XVIII; óleo sobre tela, Museo
DF: INBA/UNAM, 2010), 400-439. Agradeço a Citlali a possibilidade da leitura de seu texto, mesmo antes de publicado.
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derecha levanta amenazante una lanza, con la otra mano estruja una hoja
de papel, que es un mensaje del conquistador donde solicita la denigrante
rendición.” 59
Na rendição, Cuauhtémoc pede a Cortés que o mate com o próprio punhal, pois prefere a
morte a ver sucumbir sua “pátria”. Cortéz se compromete a respeitar-lhe a vida e a posição
hierárquica. Não obstante, Cuauhtémoc será torturado para confessar a localização de supostos
tesouros, em flagrante desrespeito à palavra empenhada por Cortés. A escolha dos dois momentos
representados enfatiza o destemor e a nobreza dos atos de Cuauhtémoc, em contraste com as
atrocidades dos conquistadores espanhóis. A imagem do último imperador asteca sintetizará, a partir
de então, as virtudes e o nacionalismo do povo mexicano.
Na iconografia de Cuauhtémoc, a cena do suplício pelo fogo tornou-se preponderante. É
possível que as primeiras representações tenham surgido não na escultura ou na pintura, mas no
teatro. Ao longo do século, a imagem popularizou-se em pequenas estampas até ser
monumentalizada em praça pública e na exposição colombiana de Chicago64.
As obras de Gabriel Guerra e Leandro Izaguirre possuem pontos em comum. Ambos
representam Cuauhtémoc de perfil, atado a um assento de pedra lavrada com antigos hieróglifos,
estendendo corajosamente os pés sobre as chamas que sobem de um braseiro. Seu comportamento
contrapõe-se ao do outro nobre asteca, Tetlepanquetzal, submetido a igual tormento, que retrai os
Conclusão
Todas as telas aqui apresentadas figuram chefes guerreiros opositores à conquista: Caupolicán,
Atahualpa, Aimberê e Cuauhtémoc. Mortos ou quase.
Há, contudo, variações.
Raymond Monvoisin e Luis Montero exploraram o estranhamento entre culturas diferentes e a
encenação teatral, quase operística, contrapondo a imobilidade dos chefes ao destempero feminino
na manifestação da dor ou da cólera. Rodolpho Amoêdo e Leandro Izaguirre, mais comedidos,
revestiram as respectivas telas de solene austeridade.
Cuauhtémoc é o único que reage, enfrentando a tortura e olhando frontal e altivamente o
algoz. Atahualpa e Aimberê estão mortos, enquanto Caupolicán abaixa o rosto, constrangido frente
às acusações da esposa. A representação do líder mapuche não se coaduna com a figura de um
herói. Ao expor o drama doméstico vivido por Caupolicán, junto a outros quadros referentes ao
continente americano, no Salon parisiense de 1859, o francês Monvoisin concebeu uma triste
América índia e mestiça.
As representações de Aimberê e Atahualpa enfatizam a determinação dos conquistadores em
controlar corpo, alma e memória dos líderes vencidos. O caso de Aimberê é extremo. O último
tamoio não se rendeu, não se converteu, não se deixou aprisionar e matou o opositor. A fórmula
encontrada para a representação aceitável deste herói, impossível a uma nação que se projetava
branca e cristã, consistiu na apropriação do cadáver por uma igreja conciliadora.
Os quatro índios encontram-se nos próprios contextos ambientais. Atahualpa e Cuauhtémoc,
no interior de construções que buscam caracterizar a sofisticação das relativas culturas; Caupolicán e
Aimberê, em meio à natureza. Os cenários denotam a derrota no solo de próprios territórios.
As telas poderiam ser, em parte, explicadas pela sensibilidade oitocentista quanto ao herói
vencido67. Diante dos enfrentamentos internacionais, das instabilidades nacionais e das oscilações
entre vitórias e derrotas, o heroísmo, imutável e invencível, seria o moral. A honra e o estoicismo
tornar-se-iam os verdadeiros suportes dos heróis, o que deles se esperava ante as inevitáveis
adversidades. Na América Latina tal fato parece mais evidente na estreita relação entre o civil e o
religioso, valorizando-se o martírio.
65 José Juárez, El martírio de San Lorenzo; óleo sobre tela, 496 x 329 cm; Museo Nacional de Arte, INBA, México.
66 Ver, por exemplo, o quadro The trial of Sir William Wallace at Westminster, pertencente à Guildhall Art Gallery de
Londres, atribuído ao inglês Daniel MacLise (1806-1870), conhecido pintor de história do período vitoriano, um dos seis
artistas responsáveis, em 1844, pela decoração do Parlamento de Westminster. MacLise representa em grande tela o
julgamento de William Wallace, onde o herói aparece do lado direito do observador, entre dois soldados, tendo à volta
mais de uma dezena de personagens tensos, que dialogam entre si. A posição ereta, a estatura elevada, o corpo robusto
e a veste branca iluminada o destacam. As amarras não lhe atam os punhos, não o colocam em posição subserviente;
mesmo uma aparente coroa de espinhos não parece ferir-lhe a pele ou a dignidade.
67 Maraliz de Castro Vieira Christo, “Pintura, história e heróis: Pedro Américo e ‘Tiradentes esquartejado’”, Tese de
Nos quadros analisados representaram-se o último mapuche, o último inca, o último tamoio e
o último asteca. Está definido o lugar que devem ocupar: o passado longínquo. A não ênfase da
valentia na luta ou da liderança na resistência e a reiteração da imobilidade, associadas ao fato de
estarem todos, mortos ou não, no plano horizontal, deixam nu o processo de desmonte dos heróis.