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Unus Mundus
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UNUS MUNDUS:
os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e
suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da
totalidade quaternária, segundo C. G. Jung
2006
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UNUS MUNDUS:
os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus, as fases alquímicas e
suas relações com o ritmo ternário dos processos psíquicos em busca da
totalidade quaternária, segundo C. G. Jung
2006
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BANCA EXAMINADORA
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AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha família que ofereceu todo apoio moral, afetivo e
financeiro para que esta dissertação pudesse ser realizada. Agradeço ao prof. e diretor de
Teologia do Mackenzie Antônio Máspoli de Araújo Gomes, que na faculdade de Psicologia,
foi o único professor que aceitou o encargo de me orientar na monografia sob o título, "O Self
e a Pedra Filosofal", resultado da investigação científica no campo da Psicologia e Alquimia.
Além disso, o prof. Máspoli foi a pessoa que incentivou a minha jornada neste mestrado,
indicando para isto, o programa de Ciências da Religião da Puc de São Paulo. Agradeço
também à todos os professores que tive o privilégio de encontrar no programa, em especial,
Enio da Costa Brito, Denise Gimenez Ramos e Amâncio César Santos Friaça. E, por fim,
agradeço ao meu orientador Eduardo Rodrigues da Cruz, pelos apontamentos, correções e,
principalmente, pela confiança no projeto inicial desta dissertação.
4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................................7
I - Unus Mundus: Um registro da influência do alquimista Dorneus na visão completa do mundo natural de C. G. Jung
I. 1. - Introdução ao universo da alquimia, e sua importância para a Psicologia Analítica....................................................... .14
I. 2. Os graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus...................................................................................................28
I. 3. Sobre a influência de Dorneus nas correspondências Jung-Pauli........................................................................................30
III – As fases alquímicas e suas realções com os graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, analisados à luz da Psicologia
Profunda de C. G. Jung
III. 1. O Opus Alchymicum e seus estágios................................................................................................................................67
III. 2. – A fase alquímica nigredo, à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.............................................................74
III. 3. – A Solutio na fase alquímica nigredo..............................................................................................................................81
III. 4. –A Separatio e a Mortificatio na fase alquímica nigredo.................................................................................................95
III. 5. – A fase alquímica nigredo e sua relação com o primeiro grau da Coniunctio de Gerardus Dorneus............................110
V – Unus Mundus e o símbolo quaternário:Uma contribuição para o estudo do religioso no campo simbólico.....................184
V. 1. – Paul Tillich e Carl Jung.………………………………………………………………………………………………190
VI – Conclusão..........................................................................................................................................................................203
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................................................................213
5
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO
A alquimia sempre exerceu grande fascínio sobre mim, desde a época em que dediquei
maior atenção ao estudo das obras de Carl Gustav Jung, resultando daí o desejo em apenas
concluir o curso de Comunicação e Artes que estava desenvolvendo e, ingressar em outra área
de trabalho. Na Faculdade de Psicologia, desenvolvi, "O Self e a Pedra Filosofal", uma
monografia resultado da investigação científica no campo da Psicologia e Alquimia. Neste
trabalho, realizo uma análise dos três graus da Coniunctio do alquimista Gerardus Dorneus
sob a perspectiva junguiana, orientada pelo professor e diretor de Teologia do Mackenzie
Antônio Máspoli de Araújo Gomes. Aconselhada por este, me dirigi ao programa de Ciências
da Religião da PUC de São Paulo.
Carl Gustav Jung passou o final de sua vida estudando a alquimia e descobriu que o
processo alquímico em busca do "ouro" correspondia à um processo psíquico, ou seja,
enquanto faziam suas experiências químicas, os alquimistas passavam por determinadas
experiências psíquicas que lhes pareciam ser o comportamento particular do processo
químico. Na verdade, como se tratava de uma projeção, o alquimista vivenciava estas
vivências psíquicas como uma propriedade da matéria, embora algum deles tenham
pressentido a simbólica aí existente e souberam do parestesco de tais imagens com sua própria
estrutura psíquica.
O ponto culminante do procedimento alquímico, a criação da Pedra Filosofal, continua
sendo a etapa mais misteriosa e complicada. Em um sentido mais direto, tanto o processo de
individuação quanto o simbolismo alquímico concentram seus esforços últimos no momento
da Coniunctio (Conjunção), ou seja, concomitantemente, no encontro consciente do ego com
o Self e, na produção final da Pedra Filosofal. Assim, a operação alquímica da Coniunctio
seria o objetivo último, onde o alquimista esperava atingir a meta da obra, o verdadeiro ouro,
a Pedra Filosofal. Desta maneira, todo o Opus Alchymicum correspondia, numa perspectiva
junguiana, aos esforços do homem para alcançar o centro do processo de individuação.
Em Mysterium Coniunctionis, Jung dedicou longa atenção ao alquimista Gerardus
Dorneus. A Coniunctio em especial, foi descrita por este alquimista e subdividida em três
graus. Jung encontrou nos três graus da conjunção de Dorneus um terreno seguro para
explicar a seqüência dos processos psíquicos que ocorrem na "retorta", em busca do centro no
processo de individuação. Sob a ótica junguiana, ao descrever e subdividir em três graus o
processo alquímico da Coniunctio, Dorneus, está descrevendo as implicações psíquicas de
um encontro do ego com o Self. Edward F. Edinger é da mesma opinião ao afirmar em sua
8
obra intitulada, The Mystery of the Coniunctio, que Jung "demonstrou que a conjunção
alquímica na verdade ocorrem em três estágios"1 e assim, dedicou uma boa parte da sua
última obra na análise minuciosa destes:
Em todo caso deve-se mencionar desde agora que no século XVI já GERARDUS
DORNEUS reconheceu o aspecto psicológico do casamento alquímico e o entendeu
claramente como aquilo que hoje concebemos como o processo de individuação
(JUNG, 1990, p.223, § 334).
Quando, pois, DORNEUS, fala da libertação da alma presa nas cadeias do corpo, está
ele exprimindo, em uma linguagem um pouco diferente, a mesma coisa como
ALBERTO MAGNO, quando ele trata da transformação artificiosa ou da preparação
do argentum vivum. (prata viva, mercúrio) ou quando o rei em sua veste cor de
açafrão se racha ao meio. Em todos os três casos se representa a substância do
arcano. Desse modo a gente entra na escuridão, a nigredo (negrura), pois o Arcanum,
o mistério, é escuro (JUNG, 1990, p. 276, § 396).
1
"With the help of a lot of alchemical texts chiefly those from the alchemist Gerhard Dorn, Jung demonstrates
that the alchemical coniunctio actually takes place in three stages." EDINGER, E. F. The Mystery of the
Coniunctio: Alchemical Image of Individuation. Toronto: Ed. Inner City Books, 1994, p. 77.
9
2
PERROT, E. O caminho da transformação. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 404.
10
principais fases alquimícas como a nigredo, albedo e a rubedo, que podem ser produzidas por
uma combinação de procedimentos alquímicos, como por exemplo a nigredo, através da
solutio, da separatio, e da mortificatio, não foram estudadas e analisadas nestes termos.
Posteriomente, há uma outra obra de Edinger, citada acima, The Mystery of The
Coniunctio: alchemical image of individuation, cujo o material deste livro foi primeiro
apresentado pelo autor em forma de palestras no C. G. Jung Institute of San Francisco. Nesta
obra, Edinger aborda a coniunctio e os escritos junguianos sobre este tema em dois ensaios. O
primeiro, "Introduction to Jung´s Mysterium Coniunctionis", é um breve ensaio, onde Edinger
busca promover um maior entendimento do "mistério da conjunção", no entanto, como o
autor mesmo assume, seria ma is uma tentativa de encorajar outros suficientemente à fazer um
esforço similar.3 No segundo ensaio, Edinger se ocupa da série de dez figuras do texto
alquímico Rosarium philosophorum, o qual Jung estudou profundamente no seu trabalho A
Psicologia da Transferência. Edinger faz uma interpretação psicológica junguiana das dez
figuras alquímicas e promove um maior entendimento do processo alquímico como um todo
assim como da seqüência dos processos inconscientes que se desenvolvem na Opus
alchymicum. Entretanto Edinger apenas comenta suscitamente os três estágios da conjunção
alquímica de Dorneus e as três fases alquímicas mal são citadas e, muito menos relacionadas
com os estágios do alquimista Dorneus. Sendo assim, uma compreensão suscinta dos três
processos gerais psíquicos necessários à união final e à unificação do homem, não se
encontrada nesta obra.
Uma última obra de Edinger, na qual ele se ocupa da problemática alquímica sob o
prisma junguiano é "The Mysterium Lectures: a journey throught C. G. Jung`s Mysterium
Coniunctionis". Neste livro, Edinger aborda, novamente a obra de Jung Mysterium
Coniunctionis, parágrafo por parágrafo, elucidando tanto os símbolos alquímicos quanto a
interpretação junguiana deles. Edinger busca uma maior amplificação da última maior obra
junguiana, devido o seu grau de dificuldade. Muitos símbolos alquímicos são estudados
profundamente. Os três estágios do alquimista Dorneus analisados por Jung também passam
pelo prisma do autor, porém Edinger não relaciona estes com as três principais fases
alquímicas.
A alquimia, ao atribuir fases aos processos alquímicos, demonstra à Psicologia
Analítica, que formas simbólicas se sucedem nestas. Consequentemente, um estudo das três
3
"...I hope that what I have to say tonight will open it up for you sufficiently to encourage you to make a similar
effort." EDINGER, E. F. The Mystery of the Coniunctio: Alchemical Image of Individuation. Toronto: Ed. Inner
City Books, 1994, p. 7.
11
produção da Quintessência de Dorneus estabelece equivalência com tudo aquilo que culmina,
produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: segundo a tese, uma união dos opostos.
Sabe-se que a união dos opostos somente ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e
mudados em quintessência; assim também Gerardus Do rneus considera a produção da
quintessência necessária para a realização da união da unio mentalis com o corpo. Análogo
ao Mercúrio filosofal e à Quintessência de Dorneus, que, respectivamente, restaura a unidade
da substancia e, promove o Unus Mundus a partir da união da unio mentalis com o corpo,
esta dissertação indicará que a terceira fase, a rubedo, do ponto de vista psicológico,
corresponde agora a integração desses conteúdos na vida real do indivíduo; fato este que
somente poderá ser vivenciado se o indivíduo for confrontado com uma união dos opostos.
Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados alquímicos
concomintantemente juntas; a feminina alba e o servo rubedo formam o par tradicional do
Casamento alquímico, isto é, o relacionamento recíproco do feminino e do masculino. Na
concepção junguiana, o objetivo final da alquimia, a união dos contrários, na pedra,
“corresponde à individuação, à unificação do homem. Diríamos que a pedra é uma projeção
do si-mesmo unificado" (JUNG,1988, p. 161, § 264).
No quinto capítulo, a dissertação analisará a terceira etapa da Coniunctio de Dorneus,
a união com o Unus Mundus, que se tornou também objeto das representações figurativas,
como no estilo da Assunção e coroação de Maria. Mediante as representações da coroação de
Maria a alquimia prepara o caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino
da terra, do corpo e da matéria à sua Trindade física. Desta maneira, o capítulo indicará de
que forma essa discussão em torno do símbolo da quaternidade alquímica traz uma
contribuição para o estudo do religioso no campo simbólico, enriquecendo neste sentido a
análise e a constatação junguiana de que, se entendermos a Trindade como um processo em
três etapas, este processo deveria prolongar-se até chegar à totalidade absoluta, isto é no
símbolo quaternário. Além disso, o capítulo também buscará estabelecer um paralelo para o
pensamento junguiano na fórmula apresentada por Tillich para a recuperação do eu essencial
primordial expresso no dina mismo da vida trinitária, estabelecendo neste ponto, não só as
semelhanças nas versões que Jung e Tillich, compartilham da experiência ligadas à
integração dos opostos, como também as diferenças. Chegando assim, ao final das
considerações sobre o conceito de Unus Mundus, como ápice do processo alquímico, esta
dissertação buscará contribuir para o estudo do religioso no campo simbólico, à luz da
Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.
13
Entretanto, faz-se necessário acrescentar, que esta dissertação não teve oportunidade
de acesso aos originais de Dorneus, tendo que se fiar nas citações reproduzidas nas obras de
Jung. Mesmo assim, acredita-se que este fato não chegou à oferecer impecilho, visto que,
diferentemente da unio mentalis (conjunção do espírito mais a alma) e da unio corporis
(reunião da unio mentalis com o corpo), o único trecho rico em detalhes e, por isso, mais
relevante para a compreensão dos graus da Coniunctio do alquimista Dorneus, ou seja, a
produção da Quintessência, foi transcrito, quase que em sua totalidade, por Jung em
Mysterium Coniunctionis.
14
1
JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991, p. 17, § 1.
2
Embora a obra junguiana seja a que tenha abordado o simbolismo alquímico, do ponto de vista psicológico, à
fundo, ela não foi a pioneira neste assunto. A obra Probleme der Mystik und ihrer Symbolik (1914) escrito pelo
psicanalista Herbert Silbert (1881-1923) foi o primeiro grande estudo psicanalítico da alquimia
(HANEGRAAFF, 1998, p. 512). Com ra zão também H. SILBERER denominou a conjunção a “idéia central” do
processo alquímico. Segundo Jung, “este autor reconheceu corretamente o caráter simbólico por excelência da
alquimia” (JUNG, 1990, p. 210, § 320).
3
A palavra " espagírica" é formada pela união de dois radicais grecos: “spao”= separar e “ageiro”= reunir, pois
"que separa e reune".
15
... disse-me certa vez que, com freqüência deparava-se com certos temas nos sonhos
de seus pacientes que não era capaz de entender e foi, então, que um dia resolveu
consultar velhos livros sobre alquimia e percebeu uma ligação. Por exemplo, certa
paciente sonhou que uma águia estava, a princípio, voando alto no céu mas, depois,
de repente, virou a cabeça, começou a comer as próprias asas e despencou por terra.
(...) Então, um dia, ele descobriu o Manuscrito de Ripley, que dá uma série de
ilustrações do processo alquímico - publicadas, em parte, em Psicologia e Alquimia -
e onde há uma águia com cabeça de rei, que vira para trás e come as próprias asas
(VON-FRANZ, 1980, p.3).
Assim, Jung dedicou longa atenção à alquimia, pois para a Psicologia Analítica, o
simbolismo alquímico estaria mais próximo do produto inconscie nte que qualquer outro
material. À favor desta idéia, Von-Franz alega que a maioria dos materiais transmitidos pelas
gerações através dos mitos, contos de fadas, e muitos outros, sofrem o crivo crítico de nossas
consciências, ou seja, o “simbolismo transmitido pela tradição, é em certa medida,
racionalizado e expurgado das grosserias do inconsciente, os pequenos detalhes que o
inconsciente lhe apõe, por vezes contradições e obscenidades" (Ibidem, p. 5). Nesta
constatação, Von-Franz oferece o exemplo de São Nicolau von der Flüe, o santo suíço que
teve a visão de uma figura peregrina e divina que avançou para ele, ostentando um manto de
pele de urso e cantando uma música de três palavras. O relato original se perdeu e apenas se
conhecia a versão de seus biógrafos, que omitiu o detalhe do manto de pele de urso. As três
palavras seriam a Trindade, o peregrino divino seria Cristo, mas quanto a pele de urso, este
detalhe foi abandonado e, só com a casual redescoberta do relato original é que passou a ser
incluído. Ao relatar este fato, instintivamente uma pergunta vem à mente: afinal de contas,
qual o significado da pele do urso? Não obtendo uma resposta, uma primeira reação seria
optar por excluir este dado, o que, ironicamente, comprovaria a tese abaixo de Von-Franz:
Neste sentido, Jung encontrou na alquimia um campo no qual valia a pena se dedicar.
Ele resolveu ir à fundo nesta "arte" e descobriu que o alquimista ao se debruçar nas
experiências químicas, projetava o inconsciente na escuridão da matéria; o que ele atribuia
ser o comportamento particular do processo químico, era na verdade do seu próprio
inconsciente:
16
... Na minha opinião, o praticante tinha certas vivências psíquicas enquanto praticava
as experiências químicas no laboratório; no entanto, essas vivências se lhe
afiguravam comportamentos específicos no processo químico. Como se tratava de
projeções, naturalmente ele não sabia, no nível da consciência que a vivência nada
tinha a ver com a matéria propriamente dita (isto é, tal como hoje a conhecemos). O
alquimista vivenciava a sua projeção como uma propriedade da matéria; mas o que
vivenciava na realidade era o seu inconsciente (JUNG, 1991 [A], p.256-257, § 346).
Assim, Jung observou que o processo alquímico tomado como um todo, oferecia uma
espécie de mapa do processo de individuação, ou seja, pelo menos em sua forma e estrutura,
o conjunto de imagens e tratados alquímicos fornecia o material necessário ao estudo do
processo de individuação:
... Aqui foi mostrado que Jung fez bem em não se precipitar na confirmação de
conexões com o processo cerebral , pois mais tarde se tornou claro que estes
complexos afetavam toda a esfera corpórea do que apenas o cérebro. Hoje isto é
adotado como condição. Nós podemos falar de aspectos psicossomáticos de neuroses
cardíacas, e assim por diante. Há neuroses que tipicamente afetam o funcionamento
do coração, complexos neuróticos que tipicamente afetam o funcionamento digestivo,
o funcionamento do fígado, o funcionamento da vesícula biliar. Se a psique
inconsciente parece estar conectada com o corpo, então é natural pensar que ela está
conectada com todo o corpo e não apenas especialmente com os processos no
cérebro. Em propostas mais recentes, o cérebro parece ser apenas um de uma
17
Embora seja bastante forte a crença de que a psique seja apenas um sistema intelectual
de conceitos lógicos; para Jung, uma vez que só temos alguma noção da matéria através de
imagens psíquicas, transmitidas pelos sentidos, a psique é a própria existência. Em outras
palavras, o indivíduo só estuda a psique através de seus próprios processos psíquicos.
Primeiro, em épocas remotas, a parte fundamental da vida psíquica aparentemente se situava
fora, nos objetos humanos e não humanos, achava-se projetada, por assim dizer. Com a
retirada das projeções, desenvolveu-se lentamente um conhecimento consciente. Com o
processo histórico da “des-animação” do mundo, tudo quanto se acha fora, ou seja, de caráter
divino ou demoníaco, para Jung, deve retornar à alma, ao interior do homem desconhecido,
ou seja, no confronto dialético do consciente e do inconsciente. Justamente a conciliação dos
opostos (conjunção) é um dos problemas que mais se ocupou a alquimia. Neste sentido, o
simbolismo alquímico se destaca para o psicólogo, na medida em que "há muita pouca
manifestação imediata do inconsciente, seja na história ou em qualquer lugar" (VON-
FRANZ, 1980, p.7).
É um tanto irônico que em pleno século XXI, ainda existam aqueles que apoiam a
teoria de que o inconsciente não tem base científica. Esta afirmativa se encontra no texto de
José Rodriguez Guerrero, em Exame de uma amálgama problemática: Psicologia Analítica e
Alquimia (2001), no qual o autor faz uma crítica da perspectiva junguiana em relação à
alquimia:
4
“… Here it was shown that Jung had done well not to rush into establishing connections with processes in the
brain, for it later became clear that these complexes affect the whole bodily sphere rather than just the brain.
Today this is taken for granted. We might speak of the psychosomatic aspect of heart neuroses, and so on. There
are neuroses that typically affect the functioning of the heart, neurotic complexes that typically affect the
digestive function, the liver function, the gallbladder function. If the unconscious psyche appears to be
connected with the body, then it is natural to think that it is connect with the whole body and not just especially
with processes in the brain. In more recent views, the brain appears to be just one of a number of sophisticated
apparatuses, which is specialized in ordering our perception of external world”. VON FRANZ, Marie -Louise
Psyche and matter. Massachusetts: Ed. Shamhala Publications, 1992, p. 3.
5
“Como resultado, lo inconsciente del individuo, concepto postulado originalmente por Freud y aquí llamado
"inconsciente ordinario", dependería para Jung, no de las pautas feudianas, sino de un elemento de grado
18
superior: el inconsciente colectivo. Ni uno ni otro tienen base científica. Del inconsciente en el individuo ya
hablamos al tratar a Freud. Respecto al tildado como "colectivo" se trata de un factor supuestamente originado al
margen del mundo sensible, supraindividual, transcultural, no sometido a un plano espacio-temporal. Tanto él
como sus componentes virtuales, los Arquetipos, resultan así totalmente inverificables.” GUERRERO, José
Rodriguez. Examén de una amalgama problemática: psicología analítica y alquimia.“Azogue”, nº 4, 2001, não
paginado. Texto disponível na Internet: http://idd00dnu.eresmas.net/jung.htm.
6
“De igual modo se manifiesta la necesidad de abordar el estudio de los alquimistas y de sus obras desde los
modelos filosóficos que conocieron, así como en el contexto histórico, religioso, social y cultural del cual
surgieron. La excesiva generalización en las conclusiones es reconocida como causa habitual de error y, como
19
Refutar a afirmação acima, seria quase o mesmo que retomar toda a teoria junguiana
em seus pressupostos mais básicos; algo que inevitalmente será realizado neste capítulo ao
indicar a influência do alquimista Dorneus, nas trocas epistolares entre Jung e o físico
Wolfgang Pauli, em busca de uma visão completa do mundo natural. Porém, inicialmente,
nota-se que para o leigo, que não tem a possibilidade de observar de que maneira se
comportam os complexos autônomos, em geral se inclina a atribuir, em consonância com a
tendência mais comum, a origem dos conteúdos psíquicos ao mundo ambiente.
Pode-se considerar, por exemplo, como um dos maiores méritos de Jung, o de haver
reconhecido, como conteúdos arquetípicos da alma, as representações primordiais coletivas
que estão na base das diversas formas de religião. Sobre este aspecto, considera Jung:
...O ponto de vista religioso coloca obviamente a ênfase naquilo que imprime, o
impressor, ao passo que a psicologia ciêntífica enfatiza o tipo (...), o impresso, o qual
é a única coisa que ela pode apreender. O ponto de vista religioso interpreta o tipo
como algo decorrente da ação do impressor; o ponto de vista científico [da
psicologia] o interpreta como símbolo de um conteúdo desconhecido e inapreensível.
Uma vez que o tipo é menos definido, mais complexo e multifacetado do que os
pressupostos religiosos, a psicologia, com seu material empírico, é é obrigada a
expressar a forma mediante uma terminologia que independe de tempo, lugar e meio
(JUNG, 1991 [A], p.29, § 20).
Nesse sentido, na linguagem científica, o termo Si- mesmo não se refe re nem a Cristo,
nem a Buda, mas à totalidade das formas que representam, e cada uma dessas formas é um
símbolo do Si- mesmo. Por mais obscuro que pareça o núcleo histórico dos fenômenos, às
exigências modernas de exatidão em relação aos fatos, não deixa de ser verdadeiro que os
efeitos psíquicos grandiosos que se prolongam através dos séculos, não surgiram sem uma
causa aparente. Contra essa concepção Jung, assegura a necessidade do distanciamento para
chegar-se à um desdobramento e à uma formulação dos conteúdos “revelados”. O
conhecimento dos fundamentos arquetípicos universais permite uma comprensao mais
profunda das representações primordiais coletivas. Segundo Jung, é muito provável que a
semelhança universal entre os processos psíquicos “se deva à uma regularidade igualmente
universal, da mesma forma pela qual o instinto que se manifesta nos indivíduos representa a
expressão parcial de uma base instintiva universal” (JUNG, 1988, p. 5, §12). O fato é que
respuesta, se advierte la importancia enorme de tener presente la identidad propia de cada texto y de cada
alquimista a la hora de estudiarlo en vista de la importante condición autodidacta que la adquisición del
conocimiento alquímico ha tenido a lo largo de la historia.” GUERRERO, José Rodriguez. Examén de una
amalgama problemática: psicología analítica y alquimia.“Azogue”, nº 4, 2001, não paginado. Texto disponível
na Internet: http://idd00dnu.eresmas.net/jung.htm.
20
certas idéias ocorrem quase em toda a parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um
todo espontâneo, independente da migração e da tradição:
7
“Is there in cultural history a "regular sequence" [3] of developmental stages of consciousness?” GIEGERICH,
Wolfgang. Ontogenia = Filogenia, Critica fundamental da Psicologia Analítica de Erich Neumann (1975).
Acesso em: http://web.utanet.at/salzjung/ontogeny.htm .Versão original GIEGERICH, Wolfgang. SPRING - um
anuário da psicologia arquetípica e do Pensamento Junguiano. Dallas: Spring Publications,1975, p.110-129.
21
fundadas sobre umas poucas configurações matriciais arcaicas, comuns a toda espécie
humana. Isso explica, ironicamente, o argumento usado por Giegerich, ou seja, ser possível
encontrar desenvolvido um mito do sol- herói, integrado inteiramente na vida ritual entre as
culturas antigas e primitivas. Inversamente, todos os períodos posteriores no desenvolvimento
cultural de civilizações individuais e da humanidade têm naturalmente seus mitos de criação8 .
O fato é que os mitos da criação não estão presentes somente nas culturas supostamente de
idades antigas, mas podem estar presentes no tema de um sonho do homem do século XXI.
Como o próprio Jung assegura no prefácio de sua obra mais importante Mysterium
Coniunctionis:
... Propriamente qualquer um estranhará com razão na primeira vez quando certas
formas simbólicas do antigo Egito são colocadas em íntimo relacionamento com
conteúdos modernos da religião popular da Índia e também com o material onírico
tirado de sonhos de um europeu que nada suspeita. O que parece difícil para um
historiador e o filólogo não representa obstáculo para o médico. (...) Se ele for
psiquiatra, então nem se admirará com a semelhança fundamental dos conteúdos
psicóticos, quer provenham da Idade Média ou da Contemporânea, da Europa ou da
Austrália, dos indianos ou dos americanos. Os processos fundamentais são de
natureza instintiva, e por isso universais e extremamente conservativos. O pássaro
tecelão constrói o ninho de sua maneira característiva, pouco importanto onde se
encontre; e, como não há razão para supor-se que há 3.000 anos tenha construído
ninho diferente, também não há nenhuma probabilidadede que ele altere seu estilo
nos próximos milênios (JUNG, 1997, p.XVII).
8
“For how then would it be possible to find, even among primitives (among whom according to Neumann "the
earliest stages of man's psychology" prevail), full-fledged hero-myths, that is to say myths presupposing a
considerably developed consciousness, according to the System in question? (...) Conversely, all late periods in
the cultural development both of individual civilizations and of mankind naturally have their creation myths,
which allegedly correspond to early ages.” GIEGERICH, Wolfgang. Ontogenia = Filogenia, Critica
fundamental da Psicologia Analítica de Erich Neumann (1975). Acesso em:
http://web.utanet.at/salzjung/ontogeny.htm.
9
“Neumann does not show that the creation myth precedes the hero myth or that the latter is followed by the
transformation myth.(…), historically speaking, any mytheme may occur at any time” Loc. cit.
10
JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p.124,§ 468, nota
10.
22
... se a fase uroborica, a separação dos pais do mundo, etc., são significados como
estritamente simbólicos, isto também significaria que as fases e os estágios em si
mesmos, e certamente a noção inteira da evolução e a filogenia no geral, deve do
mesmo modo ser tomados simbolicamente e não como uma passagem remetendo aos
processos históricos.12
11
“So, too, matriarchal and patriarchal consciousness cannot be shown to ensue in history with the regularity of a
law.” Loc. cit.
12
“Moreover, if the uroboric phase, matriarchy, the separation of the world parents, etc., are meant as strictly
symbolic, this would also mean that the phases and stages themselves, indeed the entire notion of evolution and
phylogeny in general, are likewise to be taken symbolically and not as in any way referring to historical
processes.” Loc. cit.
23
exercer sua função. Sabe-se que nada há de espantoso no fato de o inconsciente aparecer
projetado e simbolizado, pois, de outra forma, nem poderia ele ser percebido. Sendo assim,
somente através da identificação e análise do simbolo, que a Psicologia tem condição de
identificar em que direção aponta a libido. Posteriormente, tal tipo poderá comprovadamente
ser um tendência da psique (libido-energia psíquica) à formar específicas representações
simbólicas; identificando-se aí o padrão arquétipico por detrás destas. Somente, neste sentido,
o psicólogo tem condições de identificar diferentes tendências psíquicas. Tais tendências não
são simbólicas. Podemos descrevê- lo em linguagem racional e científica, mas nem de longe
exprimiríamos seu caráter vital. Pelo contrário, são a mais alta voz da natureza no homem. O
fato é que se subestima tanto a dependência da consciência ao inconsciente que se chega à
considerar a influência deste como apenas “simbólica”. De qualquer forma, Giegerich
considera que “a mera tentativa de procurar na história por correspondências aos padrões
mitológicos que Neumann estabelece, pode já ser considerada redutível”13 . Claramente ao
qualificar o método de Neumann como “redutivo”, o autor remete ao "reducionismo", que
nas últimas décadas, adquiriu o status de termo de baixo calão, em certos meios acadêmicos.
Entretanto, o reducionismo é analítico e, reciprocamente, qualquer análise que mereça este
nome é uma instância do reducionismo. Na prática, utilizamos este método para quase tudo,
não somente nos domínios do intelecto. O próprio sentido humano da visão funciona por
reducionismo. A imagem é processada em diversas camadas de células, de tal forma, que
diversos aspectos vão sendo extraídos da imagem original. Também o sentido humano da
audição baseia-se em uma decomposição espectral, que decompõe (analisa) os sons em suas
diversas freqüências. De maneira semelhante, este é o modo pelo qual a Psicologia Analítica
funciona. Como é humanamente impossível obter uma imagem completa da psique, visto que
o único instrumento que dispomos para analizar o objeto é a própria psique, tratamos de
decompôr e analisar as suas projeções, isto é, a aparência de objeto, de tal forma que diversos
aspectos vão sendo extraídos da imagem original. Isso possibilita a constatação da tendência
da psique em formar representações simbólicas, padronizadas em seu sentido genérico e,
consequentemente, o estabelecimento de padrões arquetípicos no desenvolvimento da
consciência. Nesse sentido, a Psicologia Analítica, à medida em que amplia o seu
conhecimento científico em relação à psique, acrescentando uma ampliação psicológica de
13
“…the mere attempt to search history for correspondences to the mythological patterns Neumann establishes
might already be considered reductive.” Loc. cit.
24
14
O Rosarium philosophorum foi imprimido originalmente como a parte II do De Alchemia Opuscula complura
veterum philosophorum...Frankfurt, 1550. Também foi publicado no segundo volume da coleção de textos
alquímicos de diversos autores Artis Auriferae (1593). O Rosarium contém uma série de 20 gravuras: “O texto é
dividido nas seções associadas com estas vinte ilustrações. Estas seções introduzem as idéias que surgem do
conteúdo simbólico das gravuras, as quais tecem estas observações com várias citações de sábias autoridades na
alquimia, frequentemente usando trechos longos de outros escritores da alquimia. Assim o Rosarium é um
recolhimento do material dentro de uma determinada estrutura, ao invés de ser inteiramente um enunciado
original de idéias da alquimia” (MCLEAN, Adam. A Commentary on the Rosarium philosophorum. Texto
disponível na internet: http://www.alchemywebsite.com/roscom.html). O Rosarium, por causa do seu
entrelaçamento físico-espiritual, era do interesse particular de Jung, Entretanto, em Psicologia da Transferência
Jung mostra somente 11 das 20 ilustrações.Talvez Jung não tenha tido acesso à uma edição completa do livro,
pois como frequentemente ocorre no decorrer dos séculos, algumas destas ilustrações podem ter sido removidas
na sua cópia.
25
assim, Jung alerta para que o empreendimento deva ser considerado como uma simples
tentativa, o qual ele próprio não gostaria de conferir caráter conclusivo:
Nós nos movemos aqui no campo de singularidades individuais, que não se prestam à
comparação. O que podemos, sem dúvida, é por um pouco de ordem nesse processo,
mediante a ajuda de certas categorias suficientemente amplas. Podemos descrevê-lo
ou pelo menos esboçá-lo por meio de analogias apropriadas; sua essência profunda,
porém é a singularidade da experiência individual, que ninguém pode captar de fora,
mas na qual está envolvido aquele que a experiencia. A série de gravuras que nos
serviu de fio de Ariadne é uma dentre muitas. (...) Mas nenhum desses esquemas
seria capaz de exprimir totalmente a multiplicidade infinita das variações individuais,
que, todas, têm a sua razão de ser. (...) A importância prática do fenômeno, porém, é
de tal ordem, que a tentativa se justifica, por mais que sua imperfeição possa dar
margem a desentendimentos [sem grifo no original] (JUNG, 1999[C], p.186, § 538).
... uma “causa” só pode ser uma entidade demonstrável. Uma causa “transcendental”
é uma contradictio in adiecto [uma contradição nos termos], porque o que é
trancendental por definição não pode ser demonstrado. (JUNG, 2002 [A], p. 23, §
856).
... São fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio e por isso podemos
atribuir-lhes uma certa autonomia. Pela mesma razão, devemos considerá-los não só
como objetos em si, mas como sujeitos dotados de leis próprias. Podemos,
naturalmente descrevê -los e até certo ponto interpretá-los como objetos, sob o ponto
de vista da consciência (...).Entretanto, se levarmos em conta esta autonomia, as
representações a que nos referimos devem ser tratadas como sujeitos, ou seja,
devemos reconhecer seu caráter espontâneo e também a sua intencionalidade, i. É,
uma espécie de consciência e de “liber arbitrum” [livre arbítrio] (JUNG, 2001, p. 5, §
557).
... Uma das tarefas mais importantes da higiene mental consiste em prestar
continuamente uma certa atenção à sintomatologia dos conteúdos e processos
inconscientes, uma vez que a consciência está continuamente exposta ao risco da
27
... A imagem da “coniunctio” deve sem dúvida ser contemplada sob este aspecto: a
união no plano biológico, como símbolo da “unio oppositorum” (união dos opostos)
em seu sentido mais elevado. É o mesmo que declarar, por um lado, que a união dos
opostos é tão essencial para a arte régia, quanto a coabitação para a razão comum, e
por outro, que o “opus” é uma analogia da natureza, o que faz com que a energia do
instinto se desloque, pelo menos em parte para uma atividade simbólica. A criação de
tais analogias libera o instinto e toda a esfera biológica da pressão de conteúdos
inconscientes. A ausência do símbolo, porém, sobrecarrega a esfera do instinto
(JUNG, 1999[C], p. 118, § 460).
Alguns alquimistas pressentiram que o que estavam em busca era algo mais que o
"ouro vulgar". O alquimista Gerardus Dorneus, que será especificamente abordado neste
trabalho, era um deles. Dorneus foi um alquimista paracelsiano do final do século XVI, que
exclamava: "Transformai- vos de pedras mortas em pedras filosofais vivas"15 , exprimindo,
segundo Jung, "claramente a identidade daquilo que está no homem com aquilo que está
escondido na matéria" (JUNG, 1991[A], p.281, § 378). O Alquimista Gerardus Dorneus foi
daqueles que mais se ocupou com a problemática da Conjunção. Para este alquimista no
tratado intitulado A Filosofia meditativa, a Conjunção Alquímica, em especial, foi descrita e
subdividida em três graus, que podem ser entendidos como três etapas necessárias à uma
"Conjunção perfeita".
Dorneus trabalha com três categorias nestes três graus da Coniunctio: espírito, alma e
corpo. Resumidamente no primeiro grau da Coniunctio, tem-se a unio mentalis, que
corresponde a união (conjunção) do espírito mais a alma. O segundo grau consiste em reunir
a unio mentalis com o corpo. Finalmente no terceiro grau da Coniunctio ocorre a conjunção
completa, a saber, a união com o unus mundus (mundo uno).
Inicialmente é necessário advertir que os conceitos espírito, nous (espírito do universo)
e pneuma são utilizados de maneira promíscua no sincretismo. O significado mais antigo de
pneuma é vento, sopro, logo um fenômeno aéreo; daí a equivalência do ar e pneuma 16 .
Segundo Jung:
15
DORNEUS, Gerardus. Theatrum Chemicum, I, 1602, p.267. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio
de Janeiro: Vozes, 1991, p.281, § 378.
16
Anaxímenes de Mileto, terceiro e último filósofo da escola jônica antiga, propõe o ar como elemento
fundamental da natureza, a partir de cuja a complexificação se formam todas as coisas. Embora pouco se saiba
sobre a sua vida, ele é contudo citado com frequência para dizer que foi sua a proposição do ar como elemento
básico na formação de tudo.
29
O termo "nous" foi usado pelos primeiros Filósofos. Anaxágoras (c. 500 - 428 a.C.),
nativo de Clazomene, filósofo grego pré-socrático da escola jônica nova, caracterizou-se por
ter concebido todas as coisas da natureza por um número indefinido de pequenas partículas
homogêneas invariáveis, a que chamou espermas. Dotou uma destas partículas de
inteligência (Nous) a qual é ordenadora de tudo. O Nous, na filosofia de Anaxágoras ainda
que signifique Inteligência, é também força motriz, todavia com ação racional.
Dadas as circunstâncias em que Nous foi usado, tem-se preferido não traduzir o
termo, citando-o simplesmente no original grego.O nous para designar a mente superior é
facilmente confundido com a função intelectual, de modo que se faz necessário esclarecer
que se trata antes do spiritus rector, o espírito que rege e orienta. Entretanto alerta Jung:
Em muitas passagens é incerto se spiritus (ou esprit, tal como BERTHELOT traduziu
do árabe) significa espírito no sentido abstrato da palavra. Isto ocorre com alguma
certeza em DORNEO (séc. XVI), pois este diz que Mercurius possui em si mesmo a
qualidade de um espírito incorruptível, semelhante à alma; por sua incorruptibilidade
é designado intellectualis (pertencente portanto ao mundo intelligibilis!) (JUNG,
2003, p. 210, § 264).
Dorneus entende por espírito todas as capacidades morais mais elevadas, como
inteligência, conhecimento e decisão moral. Para Dorneus, o espírito confere à alma certo
influxo divino e o conhecimento de uma ordem superior do mundo.
Alma (anima) como corpo sutil significa algo de imaterial ou “mais sutil” do que o ar.
Sua qualidade essencial é a de vivificar e de ser viva. Por isso é apreciável sua representação
como princípio de vida. Segundo Jung, este fato:
…corresponde a uma distinção que se fazia, na Idade Média, entre “corpus” (corpo) e
“spiramen” (respiração); o que se entendia por “spiramen” Era muito mais que um
simples “sopro”. O que se designava desse modo era a anima, que é uma espécie de
sopro (…). Tal sopro é, antes de mais nada, uma atividade do corpo, entendida porém
como realidade autônoma, e constituindo uma substância (ou hipóstase) paralela ao
corpo. Com isto se queria dizer que o corpo vive, sendo a vida representada como
uma entidade autônoma associada, ou seja, como uma alma independente do corpo
(JUNG, 1999 [A], p. 20, § 197).
A oposição entre espírito e a alma provêm da subtilidade material desta última. Ela
está mais próxima do corpo (physis) e é mais densa e grosseira do que o espírito:
30
Conforme antiga tradição, a alma anima o corpo, como ela por sua parte é animada
pelo espírito. Ela tende para o corpo e para tudo o que é corpóreo, sensível
emocional. Ela está aprisionada "nas cadeias" da Physis (natureza) e almeja "praeter
physicam necessitatem", isto é, para além da necessidade física (JUNG, 1990, p.228,
§ 338).
17
C. A. Meier (1905-1995), psiquiatra e psicoterapeuta, conheceu na intimidade os intercâmbios ocorridos entre
Pauli e Jung, tendo também participado ativamente com a elaboração de seus próprios trabalhos e reflexões a
respeito. Foi co-fundado do Instituto C. G. Jung, em Zurique, e tamb ém ocupou a cadeira, na qualidade de
sucessor de Jung, de Profesor Honorário de Psicologia no Instituto Federal Suiço. A obra em questão foi
31
Pauli e Jung buscavam uma visão mais completa do mundo natural, que fosse
proporcionada por um alargamento dos horizontes epistemológicos. Assim, defendia-se uma
mudança na linha demarcatória entre o que deve estar ao alcance do nosso conhecimento
(físico, concreto, apreensível) e o que não está ao nosso alcance (metafísico, irrepresentável).
Segundo César Rey Xavier, autor da dissertação de mestrado (2001) "Encontros e permutas
entre dois pensadores- um estudo sobre as correspondências entre Wolfgang Pauli e Carl
Gustav Jung", na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo18 :
... Muitos são os indicadores de que os estudos e pesquisas que Jung vinha
efetuando, especialmente na confecção de seu de seu “Mysterium Coniunctionis”,
paralelamente àquela fase das cartas, tenham-lhe dado um forte respaldo para suas
novas, e, de início, desconcertantes assertivas para a psique. (XAVIER, 2001, p.175)
Coincidentemente, neste período, o estudo dos tratados alquímicos estava por detrás
dos bastidores daquelas discussões. Neste universo alquímico abordava-se incessantemente o
valor anímico nos mistérios da matéria. Escreve Jung:
... O "espírito do mundo" (...) para a Alquimia da primeira metade do século XVII
porquanto, ao que sabemos, a expressão usada preferencialmente era a "anima
mundi" (...) o espírito do mundo, constitui uma projeção do inconsciente, porque não
se encontra um método ou uma aparelhagem capazes de proporcionar uma
experiência objetiva deste gênero, e consequentemente, de oferecer uma prova da
existência objetiva de uma animação do mundo [sem grifo no original] (JUNG,1988,
p.133, § 219).
publicada primeiramente em alemão, no ano de 1992, pela Springer-Verlag. Em 1996, a Alianza Editorial
publicou a compilação de Carl A. Meier traduzindo-a para o espanhol.
18
Esta dissertação foi publicada sob o título “A permuta dos sábios: estudo entre as correspondências entre Jung
e Pauli” pela editora Annablume no ano de 2003.
32
de mediadora entre matéria e espírito, estes sim passando a representar uma legítima
oposição. Para Xavier, “a situação da psique como mediadora reproduz fielmente o
significado que esta ambivalência tinha para muitos alquimistas, entre eles o já citado
Dorneus” (XAVIER, 2001, p. 175). No trecho abaixo Jung discorre sobre o elemento
espiritual em posição de "igual para igual" perante a matéria:
Quanto ao espírito (pneuma), gostaria de dizer que espírito e matéria são um par de
conceitos opostos que designa apenas o aspecto bipolar da observação no tempo e no
espaço. Nada sabemos de sua substância. O espírito é tão ideal quanto a matéria. São
meros postulados da razão. Por isso falo de conteúdos psíquicos dos quais são
rotulados de espirituais (pneumáticos) e outros de "materiais". (JUNG, 2002 [B],
p.25)
Para Jung, não sabemos realmente a ontologia dos reinos material e espiritual, a partir
do momento que o único instrumento que dispomos (psique) transforma tudo em psíquico:
...devemos verificar que matéria e espírito são dois conceitos diferentes que designam
coisas antagônicas e que, enquanto sejam representações de distinta procedência, são
psíquicos [...] Porquanto a psique represente às duas entidades metafísica , quer dizer,
não diretamente concretáveis, como conceitos, une a estas duas entidades antagônicas
ao dotá-las de uma forma de existência psíquica e elevá-las deste modo à consciência
(JUNG, p.160 In: MEIER, 1996)
Neste sentido, a ontologia dos reinos material e espiritual faria parte do reino não
concretável. Este reino não concretável, irrepresentável, segundo as próprias denominações
transcorridas entre Jung e Pauli, apenas poderia ser apreendido pela psique, visto que ela se
33
... A experiência psíquica tem duas fontes: o mundo externo e o inconsciente. Toda
experiência direta é psíquica. Há experiência fisicamente transmitida (mundo
exterior) e a experiência interiormente transmitida (espiritual). Uma é tão válida
quanto a outra. (JUNG, 2002 [B], p.180)
Para Jung, o fato de que tudo passa pelo psíquico, confere à psique aquela situação
mediadora em meio ao espírito e à matéria; é nela que os reinos se encontram, ou seja, é
através da psique que se torna m possíveis as representações dos reinos espiritual e material,
pois, caso contrário, suas ontologias não teriam qualquer efeito sobre nosso conhecimento,
uma vez que não teriam como se expressar:
Para mim a psique é um fenômeno quase infinito. Não tenho a mínima idéia do que
ela é em si, e sei apenas muito vagamente o que ela não é. Também só sei em grau
limitado o que é individual e o que é geral na psique. Parece-me um sistema de
relações que, por assim dizer, abrange tudo, sendo "material" e "espiritual" em
primeiro lugar designações de possibilidades que transcendem a consciência. Não
posso afirmar que nada seja "apenas psíquico", pois tudo na minha experiência direta
é psíquico em primeiro lugar. Eu vivo num mundo perceptual, mas não num mundo
subsistente por si. Este último é real o bastante, mas só temos informações indiretas
sobre ele. Isto vale tanto das coisas externas quanto as "internas", ou seja, das
existências materiais e dos fatores arquetípicos (...) Não importa sobre o que eu fale
, os dois fatores se interpenetram de uma forma ou de outra. Isto é inevitável, pois
nossa linguagem é um reflexo fiel do fenômeno psíquico com seu duplo aspecto
"perceptual"e "imaginary". (JUNG, 2002[B], p.244-245)
Relembrando que Dorneus trabalha com três categorias nestes três graus da
Coniunctio, ou seja, espírito, alma e corpo, há fortes indícios que Jung tenha se inspirado em
Dorneus ao atribuir à psique a qualidade de mediadora entre a matéria e o espírito. Segundo
Xavier, "tudo indica que Jung tenha emprestado esta noção do pensamento alquímico,
especialmente de Gerardus Dorneus (...), a cuja a obra vinha se dedicando assiduamente por
aquela época” (XAVIER, 2001, p.159).
Entretanto, Jung abominava o fato de considerarem-no "metafísico", pois tinha plena
consciência da limitação imposta ao aparelho psíquico, e mesmo aos aparelhos
experimentais. Sendo assim, no que concerne à observação daquelas camadas
ontologicamente distantes e inacessíveis às nossas capacidades, ele considera:
34
Naturalmente não podemos tirar daí a conclusão metafísica de que no mundo das
coisas "em si" não há espaço nem tempo, e que, consequentemente, a mente humana
se acha implicada na categoria espaço-tempo como em uma ilusão nebulosa. Pelo
contrário, verifica-se que o espaço e o tempo são não apenas as certezas mais
imediatas e mais primitivas em nós, como são empiricamente observáveis, porque
tudo o que é "perceptível” acontece como se estivesse no tempo e no espaço (JUNG,
1998 [B] p.434).
Neste sentido, naturalmente a função representativa da psique não pode ser estendida
pata além de suas possibilidades. Assim, a psique não é capaz de apreender conscientemente
a maior parte da real procedência ontológica destes, já que são partes do inconsciente.
Entretanto ela busca expandir-se e tornar concretáveis o máximo que puder daqueles
conteúdos irrepresentáveis a priori. Jung estava convencido de que a substância
irrepresentável que habitava a ontologia da matéria e do espírito poderia ser a mesma da
própria psique. A psique estaria em posição destacada, como único instrumento (meio) de
decodificar as manifestações do arquétipo, e em ultima instância decodificar o reino o qual
ele pertence, o irrepresentável. Neste sentido, a parcela de sua substância que é inapreensível,
seria da mesma natureza que a dos dois outros reinos, daí serem possíveis fenômenos como a
sincronicidade quando um único arquétipo pode estar atuando como fator ordenador dos
reinos da matéria e do psíquico. O problema era que, uma vez que os arquétipos constelam-se
na psique, poderia pensá- los apenas em termos psíquicos:
Não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo
inconsciente com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente
variadas que nos remetem para uma forma básica irrepresentável que se caracteriza
por certos limites formais e determinados significados fundamentais, os quais
entretanto só podem ser apreendidos de maneira aproximativa (JUNG, 1998 , p.218).
35
Jung estava disposto a mostrar a Pauli o fato de que, aquilo que estavam procurando,
ou seja, a linguagem neutra, perpassava a ambivalência da própria psique, ambivalência esta
capaz de acessar e ser acessada por representações de ontologias de reinos distintos ao seu,
como os da matéria e do espírito. Ta l ambivalência do fator psíquico implicava numa psique
que representa e uma psique, que em si mesma, é um dado não concretável:
Neste sentido, embora a Psique seja o trono de qualquer subjetividade, pois tudo na
minha experiência direta é psíquico em primeiro lugar, ela também é perpassada por
elementos objetivos, neutros, irrepresentáveis, visto que ela em si mesma também é
"irrepresentável".
A preocupação de Jung pairava na necessidade de tornar clara e bem definida a
ambivalência psíquica apontando para duas formas de mediação, simultânea e paradoxal: em
uma delas a psique é o ponto de encontro das representações possíveis, isto é, a psique nos
permite reunir subjetivamente o que Jung chamou de “etiquetagens” de procedência material
ou espiritual. Seria a vivência psíquica propriamente dita, onde a psique une os elementos
distintos através da capacidade de representá- los na consciência. Em outra, a psique através
de seu componente psicóide (irrepresentável) é o ponto de encontro metafísico das
irrepresentabilidades, (ou das não concretabilidades), isto é, esta sua componente psicóide
reúne objetivamente as ontologias de procedência material ou espiritual, pois paradoxalmente
a própria psique já seria formada a partir da união dos outros dois, a matéria e o espírito, visto
que, em seu substrato mais profundo, é de uma mesma procedência transcendental.
Em suma, Jung alude à capacidade da psique de representar a matéria e o espírito,
dotando-os de conceitos, ou seja, subjetivando-os, conscientizando-os, capacidade esta que
não deixa de ser uma forma de ligar ou unir os reinos da matéria e do espírito. E
concomitantemente, Jung também se refere à substância metafísica própria da psique que,
como tal, toma parte da mesma trancendentalidade dos reinos da matéria e do espírito.
Assim, na carta de maio de 1953, Jung apresentaria o seguinte esquema quaternário
como esboço para o esquema interdisciplinar:
36
Transcedental (Psicóide)
Matéria Espírito
Psique
Assim é possível testemunhar, durante as trocas epistolares entre Jung e Pauli, como
as três categorias da Coniunctio de Dorneus influenciaram o desenrolar das trocas epistolares
37
entre Jung e Pauli e a visão completa do mundo natural. Análogo ao conceito junguiano de
psicóide; o "Unus Mundus" é a "linguagem neutra" que vinham tentando estabelecer.
38
...Querer confinar uma disciplina que, durante 2000 anos, assombrou o mundo
ocidental aos esforços para contrafazer o ouro, é esquecer o extraordinário
conhecimento que os antigos possuíam dos metais e das ligas metálicas, é também
subestimar as suas qualidades intelectuais e espirituais (ELIADE, 1987, p.116-117).
...foi sobretudo a descoberta experimental da Substancia viva, tal como era sentida
pelos artesãos, que deve Ter desempenhado o papel decisivo. Com efeito, é a
concepção de uma Vida complexa e dramática da Matéria que constituiu a
originalidade da alquimia em relação à ciência grega clássica (Ibidem, p. 118).
Longe de querer abarcar a história da Alquimia, que merecia um volume inteiro para
não ser levianamente tratado, esta questão envolvendo a concepção primitiva de um Cosmos
sacralizado, no qual a natureza, o psíquico e o sagrado constituem uma só substância, vai de
encontro com objetivo deste capítulo. Este capítulo procurará esboçar algumas linhas de
orientação que contribuíram para dar a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na
Idade Média, percorrendo a alquimia asiática, alexandrina e a árabe. Para tal incumbência, é
necessário que se leve em conta, primeiramente, a distância que separa a experiência religiosa
arcaica da experiência moderna dos “fenômenos naturais”. Em outras palavras:
Observando outras fontes históricas propriamente ditas, a transmutação dos metais foi
praticada por chineses, indianos, egípcios, gregos e árabes. Todos eles contribuíram para dar
a forma que a alquimia finalmente viria a apresentar na Idade Média.
A China, por exemplo, não conheceu uma ruptura entre a mística metalúrgica e a
alquimia. Desde os tempos imemoriais, havia na China, as técnicas dos mineiros e das
fundições de bronze, ao lado da medicina arcaica, à procura de uma droga da longevidade.
Arnold Waldstein, autor francês do livro Os segredos da Alquimia, assegura que na "...China,
a antiga metalurgia sagrada se transformou muito cedo numa mística servida por uma prática"
(WALDSTEIN,1979, p.40). Entretanto, não são todos os estudiosos que concordam com este
ponto de vista. Contrária à idéia de uma continuidade das técnicas arcaicas mágico-
ritualísticas dos mineiros e ferreiros, Goldfarb, com relação à origem da alquimia chinesa,
assegura que esta só poderia instituir-se como tal, a partir do estabelecimento da sabedoria
chinesa. Para a autora, foi no taoísmo, doutrina atibuída a Lao-Tzé (por volta de 600 a.C.)
que, principalmente, a partir do século III a.C., originou as investigações desta ordem.:
Nada será compreendido da alquimia chinesa, se não a integrar nas suas concepções
fundamentais sobre o mundo. O pensamento chinês faz sua a correspondência tradicional
entre o microcosmo e o macrocosmo, tão familiar na teoria alquímica - " o que está acima é
como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está acima", diz a A Tábua da
Esmeralda de Hermes Trismegisto.1
De acordo com a crença chinesa, todas as substâncias que podem ser encontradas na
terra e no cosmos estão infundidas de um dos dois elementos essenciais, o yin, feminino e
passivo e o yang, masculino e ativo. Nota-se que no estudo das duas principais tradições
1
TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991.p. 23. (Cf. mais
sobre este alquimista, no sub-capítulo Alquimia Alexandrina).
44
2
Cf. mais sobre o símbolo do ouroboros no sub-capítulo Alquimia Alexandrina.
45
representa perfeitamente o grande Ciclo do Universo, assim como seu reflexo, o Magnum
Opus. A serpente abrangente reforça a idéia da unidade cósmica, na qual o mundo acima
banha o mundo abaixo e toda a matéria é intercambiável.
Experimentar a ordem cósmica na vida humana pode possibilitar, no entendimento da
tradição chinesa, desde a sabedoria até a transcendência, harmonia, rompimento das barreiras
do espaço-tempo e a imortalidade. Ora, toda a tradição alquímica invoca a seu favor o
testemunho da experimentação:
Desta maneira, o homem possui, no seu próprio corpo, todos os elementos que
constituem o Cosmos e todas as energias que asseguram a sua transformação periódica. Um
documento que merece destaque na alquimia chinesa, O Segredo da Flor de Ouro, cuja a data
da primeira impressão é do século XVII, mas acredita-se que seu conteúdo foi transmitido
oralmente desde o seculo VIII, traz como tônica a operação alquímica no próprio corpo do
alquimista. O conteúdo deste foi estudado à fundo pelo próprio Jung, em obra que recebe seu
nome. Porém, de maneira reduzida, pode-se adiantar que, através do movimento circular da
luz e a preservação do centro, o adepto procurava preparar o elixir no próprio corpo,
promovendo desta maneira a perfeição e a imortalidade.
Os pensadores chineses desenvolveram assim uma imagem filosófica do Universo que
sofreria poucas mudanças ao longo de mais de um milênio. Mas a melhor faceta da alquimia
taoísta, baseada nos princípios universais do yin e do yang, iria desabrochar no domínio da
magia sexual e do tantrismo, aproximando-se assim da alquimia hindu, a mais desconhecida.
A Índia conheceu igualmente as investigações alquímicas que constituem uma das
disciplinas ocultas do tantrismo. Para alguns autores, a alquimia seria um ramo do tantrismo;
para outros seria o inverso. Goldfarb defende a idéia de que a alquimia, surge, na India, como
interpretação das práticas míticas arcaicas, envolvendo a agricultura, a metalurgia, a
medicina, todas elas ligadas à magia e neste sentido, foram os sabios budistas, os que se
aproximaram dos mineiros, ferreiros e médicos hindus arcaicos com intuito de interpretar
seus processos na óptica da sabedoria budista. Já Eliade considera ser significativo o fato de a
alquimia hindu ser exclusivamente conhecida e praticada por determinadas seitas ascéticas.
46
Estas seitas, segundo Eliade, “são tântricas, o que quer dizer que pertencem a essa corrente de
síntese mística do início da Idade Média que assimilou todas as técnicas espirituais da India,
incluindo as mais ‘primitivas’”(ELIADE, 2000, p. 60).
Essa questão em torno da realidade das operações alquímicas hindus envolve toda
uma discussão de fundo idealístico. Somente alguém para quem o sentido da alquimia tenha
sido esquecido pode associá- la à uma técnica que visa conhecer e dominar o mundo físico-
químico. Segundo Varenne:
O valor cósmico dos metais, o papel redentor das operações alquímicas, a mística
alquímica foi o que interessou os tântricos. Ao procurar o elixir da vida, a alquimia
aproximava-se da mística e de todas as outras técnicas espirituais hindus que se propunham
chegar à imortalidade, e muito particularmente, do tantrismo e do hatha- ioga, que tinham por
objetivo a obtenção de um corpo são e imortal. Na concepção ocidental da alquimia, as
operações sobre as substâncias minerais só eram válidas, a medida em que envolviam,
principalmente, experiências químicas, mas no universo místico, onde se move o alquimista,
como foi visto anteriormente, as experiências às quais o adepto se entrega procedem de uma
visão metafísica do universo. Neste sentido, segundo Eliade:
3
Fato significativo, somente na China e na Índia eram ingeridos os preparados alquímicos, fossem eles o ouro
alquímico ou um derivado de mercúrio.
47
Os estudiosos não estão de acordo quanto às origens históricas da alquimia hindu. Para
alguns, a alquimia foi introduzida na Índia pelos árabes, para outros, ela precede a influência
árabe em três séculos. A influência provável da alquimia árabe sobre a alquimia hindu tinha
como principal argumento a seu favor o fato de, alegadamente, a existência do mercúrio na
Índia só se verificar depois da invasão muçulmana. Mesmo supondo que a alquimia hindu
tenha nascido com a descoberta e utilização do mercúrio, constata-se que existia, de há longa
data, uma “alquimia específica” que não pode ter sido influenciada pelo Islão e que
desempenhava a mesma função que a alquimia chinesa, isto é, que não se ocupava do mundo
físico-químico, mas do rejuvenescimento e da imortalidade. Segundo Eliade:
O Egito foi considerado pela grande maioria dos estudiosos como a pátria de origem
da alquimia. Os primeiros manuscritos egípcios conhecidos, escritos, não em hieróglifos, mas
em grego, datam do início do século III da era Cristã até o começo do século VI.
É principalmente em Alexandria, centro cultural e intele ctual de muitos gregos,
egípcios e judeus, também conhecida como a "Cidade Rainha do Mediterrâneo", que a
alquimia é praticada durante esse período. Grande porto de trânsito (símbolo da "trialéctica"
egípcia, grega e romana: Thot, Hermes, Mercúrio), Alexandria estava predestinada à realizar
uma prodigiosa síntese das contribuições egípcias, pré-socráticas, platônicas, aristotélicas.
Não há como não ficar perplexo quando se adentra na mescla de influências
históricas-espirituais que se apresenta o universo da alquimia. Os filósofos gregos, por
exemplo, sustentavam que o universo era um todo unificado, então tudo nele devia ser
constituído por uma só substância subjacente (analogamente, os alquimistas atribuíam à
substâncias mais tangíveis a composição básica de toda a matéria). Primeiramente, o grego
Empédocles4 sustentou no século V a.C. que a água, o ar, o fogo, juntamente com a terra,
eram os elementos básicos, ou "raízes", da matéria. Por vários séculos, esta teoria dos quatro
elementos radicais reinaria suprema; dois dos maiores pensadores do mundo clássico, Platão
e Aristóteles consideraram- na aceitável. Aristóteles utilizou esta hipótese ao desenvolver seu
estudo sistemático dos fenômenos naturais. Porém subjacente à esta idéia, Aristóteles
acreditava que havia um elemento mais básico do que a terra, o ar, a água e o fogo, uma
substância, que séculos mais tarde no universo alquímico, viria a ser conhecida pelo de
matéria original. Sobre este substrato amorfo, considera Goldfarb:
4
Pela indicação das olimpíadas nasceu em 500 a.C. e morreu em 428 a.C.
49
A origem dos gnósticos é bastante obscura, mas, é sem dúvida, oriental. Já presentes
no primeiro século antes de Cristo, constituíram não uma escola filosófica, mas um
tipo de sincretismo religioso anterior ao cristianismo. Os detalhes de sua concepção
de mundo são pouco conhecidos mas em linhas gerais, acreditavam nos deuses-
planetas dos caldeus, associando-os, de forma mágica e dual (do tipo bem/mal,
luz/escuridão) aos fenômenos naturais. Esta associação era reproduzida,
principlamente, através dos ritos de redenção, e morte, retirados talvez da antiga
metalurgia do Oriente Médio. Provavelmente por isso tenha o gnosticismo exercido
tanta influência na formação do saber alquímico alexandrino (GOLDFARB, 2001, p.
58).
5
Alguns relatos afirmam que Hermes Trimesgisto era a encarnação de Thoth, deus da sabedoria e escriba do
mundo subterâneo, que veio à terra e reinou como faraó. Thoth foi o inventor da escrita e também deu ao mundo
a matemática, a astronomia, a medicina e a magia. Quando os gregos incorporaram Thoth à sua própria
mitologia, equipararam-no à Hermes, mensageiros dos deuses, patrono dos viajantes e dos mercadores. Seja qual
for sua verdadeira identidade, os alquimistas adotaram Hermes Trismegistus, o “Três -vezes-Grande” (como
Hermes era chamado) como se fosse um deles e o seu ofício tornou-se conhecido como a “Arte
Hermética”.Evidentemente os tratados herméticos não são de alquimia, mas estabelecem uma interpretação
sapiencial das técnicas mágico-míticas egípcias.
51
egípcio Thoth. São revelações divinas da sabedoria divina, nas quais o cosmos constitui uma
unidade, cujas as partes são interdependentes, princípio que se tornou básico na alquimia. O
pensamento hermético, agregado à elementos da cosmologia grega, contribuiu sem dúvida
para o nascimento da alquimia alexandrina. Assim, sob a influência do sincretismo filosófico-
religioso, combinado com os conhecimentos práticos dos metalurgistas, muitos estudiosos
consideram que, foi neste momento histórico, que a visão filosófica que os gregos tinham do
mundo, se voltou para a perícia metalúrgica dos antigos egípcios e, unindo-se às práticas
tradicionais dos ourives, deu a luz à arte da alquimia.
O mais célebre alquimista grego, apelidado "a coroa dos filósofos", foi Zózimo
originário de Panópolis, que viveu em Alexandria no século III. Este alquimista possui um
lugar de destaque na história da alquimia, principalmente no que diz respeito à idéia do
prodigioso Filho dos Filósofos. Ponto crucial da doutrina secreta alquímica, a imagem central
do filius Philosophorum (filho dos filósofos) se fundamenta em uma concepção do Ánthropos
(homem divino) da doutrina gnóstica. A antiga doutrina do Ánthropos ou homem primordial6
diz que a divindade ou o agente criador do mundo deve ter-se tornado manifesto na forma de
um homem primogênito, quase sempre de grandeza cósmica. Este ser, o qual inquietou a
fantasia especulativa durante mais de dezesseis séculos, segundo Jung:
Zózimo possuía uma espécie de filosofia mística ou gnóstica, cujas idéias centrais ele
projetava na matéria. Daí, sua importância: segundo Jung, a idéia do Ánthropos entrou na
alquimia em primeiro lugar através deste célebre alquimista:
... Os alquimistas, se ainda eram pagãos, tinham uma concepção mística de Deus,
proveniente da Antiguidade tardia e que poderia ser designada como gnóstica, por
exemplo, em Zózimo; se eram cristãos tinham ainda um acréscimo considerável as
concepções mágico-pagãs a respeito de um demônio ou de uma virtus (força) ou de
uma alma divina ou da anima mundi (alma do mundo), que estava inerente à physis
6
O símbolo do homem primordial, o primeiro ser que emerge com a criação do cosmos, é comum a um número
de tradições religiosas e filosóficas.
52
(natureza) ou nela aprisionada. Imaginava-se esta como sendo aquela parte de Deus
que constitui a quintessência (...) (JUNG, 1990, p.28-29, § 29).
...A concepção do Ánthropos nasce da idéia de que originariamente tudo era dotado
de alma, e é por isso que os antigos mestres interpretavam seu Mercurius como a
anima mundi (alma do mundo); assim como o primeiro era contradiço em toda
matéria, valia o mesmo para a última. Ela estava impressa em todos os corpos como
sua “raison d`être” e como a imagem do demiurgo, que se encarnou em sua criação e
até mesmo ficou prisioneiro dela; com isso se aludia ao mito do homem primordial,
que foi devorado pela Physis (natureza). Nada parecia mais simples do que identificar
essa anima mundi (alma do mundo) com a imago Dei (imagem de Deus) bíblica. Ela
representava a veritas (verdade) revelada ao espírito (JUNG, 1990, p. 282, § 403).
inicial permaneceu em estado potencial dentro da matéria e, com isto, se conservou também o
estado caótico inicial. Por isso os alquimistas achavam que a prima matéria era uma parte do
caos primordial “gravido” do espírito. O estado de imperfeição assemelha-se a um estado de
dormência; neste estado os corpos encontram-se como que acorrentados e adormecidos na
Physis. Estes são despertados pela substância divina extraída da pedra miraculosa, cheia do
espírito.
Por “espírito” eles entendiam uma espécie de corpo sutil, que também chamavam de
“volátil”, identificando-o quimicamente com óxidos e outros compostos separáveis. Eles
tencionavam extrair o espírito divino primordial do caos: este extrato foi chamado
quintessência, agua eterna, tintura. Como foi visto mais acima, deram ao espírito também o
nome de mercúrio, o qual, ainda que corresponda ao conceito químico de mercúrio, como
Mercurius noster (nosso mercúrio), não era o Hg comum; filosoficamente, designa Hermes, o
deus da revelação que, sob o aspecto de Hermes Trismegisto, era o pai da Alquimia. A "pedra
que tem um espírito", é a panacéia, a medicina universal, o antídoto, a tintura que transforma
o metal vil e imperfeito em ouro e o cascalho sem valor em pedras preciosas. Ela é a
portadora da riqueza, poder e saúde e em nível mais elevado, como um vivus lapis
philosophicus, é um símbolo de redentor, do Ánthropos e da imortalidade.
Como a sabedoria cabalística7 coincidia com a sabedoria da alquimia, assim também a
figura de Adam Kadmon8 (homem originário judaico) foi identificada com a do filius
philosophorum. Esta é uma continuação da doutrina gnóstica do Anthropos na alquimia, cuja
forma originária é encontrada nos textos mais tardios atribuídos a Zózimo, os quais se pode
distinguir três domínios de fontes: o judaico, o cristão e o pagão. Lá encontramos o
Ánthropos, o primeiro homem, o homem terreno carnal denominado Adam e o homem
espiritual interior nele é denominado "luz". Segue abaixo um pequeno trecho do texto
atribuído a Zózimo, reproduzido no livro Psicologia e Alquimia, de Jung:
7
Na alquimia mais tardia passa para o plano posterior o elemento do sincretismo pagão, a fim de conceber
maior destaque ao elemento cristão. No século XVI finalmente torna-se de novo muito mais intensamente
perceptível o elemento judaico em consequencia do influxo da cabala, que tinha se tornado acessível a circulos
mais amplos primeiramente por Johanes Reuchlin e também sob a influencia de Marsílio Ficino e Picco Della
Mirandola.
8
Sobre Adam Kadmon não existe clareza total nos escritos cabalísticos. Às vezes ele é concebido como a
totalidade das Sefiroth, outras vezes ele aparece como uma primeira radiação, perante as Sefiroth e elevada
acima delas,pela qual Deus se manifestou e de certo modo se revelou como macrocosmo de toda a criação.
Neste caso, tem-se a impressão como se Adam Kadmon fosse uma primeira manifestação de Deus, intercalada
entre Deus e o mundo, por assim dizer um segundo Deus. O Adam Kadmon é o homo maximus (homem
máximo), que representa o próprio mundo.
54
Ao que tudo indica, segundo Jung, o filho de Deus, em Zózimo, é um Cristo gnóstico10
no qual o "homem" ou o "filho do homem" não coincide com a figura cristã e histórica do
salvador. O Filho de Deus é idêntico a Adam, é o Ánthropos, o primeiro homem. A substância
do arcano aparece aqui como o “homem interior”. O homem espiritual interior é semelhante
ao Cristo interior ou Deus que nasceu na alma do homem. Sendo assim, segundo Jung, o
homem- luz preso em Adão em Zózimo "é uma manifestação da doutrina pré-cristã do homem
primordial" (JUNG, 2003, p.133). Neste sentido, a imagem central do filius Philosophorum
(filho dos filósofos) exprime o "verdadeiro homem", o Ánthropos (homem divino) no
indivíduo, ou seja, "o ´homem total` oculto e ainda não manifesto, que é também o homem
mais amplo e futuro" (JUNG, 1991 [A], p.20, § 6).
Mercúrio, a designação preferida para aquele ser que na obra alquímica se transforma
a partir da prima matéria até atingir a pedra filosofal, era simbolizado como um ser vivo de
natureza hermafrodita, pois tratava-se de um espirito ctônico, material, por assim dizer, de
aspecto masculino-espiritual e feminino–corporal. De igual, maneira, a natureza dupla do
mercúrio se acha projetada no simbolismo alquímico na figura do andrógino.
Conforme a antiga tradição, da criação e queda do primeiro par humano no ciclo de
lendas judaicas e muçulmanas, Adão era Andrógino, antes da criação de Eva. Não se deve
deixar de considerar que, manifestamente, a partir da doutrina gnóstica do homem primordial
hermafrodito, penetraram no cristianismo certas influências e aí, produziram a concepção que
Adão foi criado como um andrógino. Neste sentido, como um sinônimo bíblico para o
Mercurio alquímico se oferecia sem dificuldade a figura de Adão; primeiro como andrógino
em correspondência ao Mercurio hermafroditua; e segundo, em seu aspecto duplo como
primeiro e segundo Adão. Aí, em Zózimo, Adão já é uma figura dupla, a saber: o homem
carnal e o homem luminoso.11
9
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. .Paris 1887/88. Apud:
JUNG,C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Vozes, 1991, p.378- 381.
10
Na esfera do Gnosticismo cristão, a figura de Cristo constitui uma ilustração do Homem Primordial, Adão.
Da mesma forma que Adão antes da queda, Cristo encarna a imagem divina; o Adão mítico.
11
Segundo as doutrinas cabalísticas, o Adam Kadmon era andrógino.
55
Devemos agora voltar-nos para a questão de como acontece justamente Adão tenha
sido escolhido como símbolo para a prima materia ou respectivamente para a
substância da transformação. Isso certamente se baseia sobretudo no fato de Adão ter
sido formado do lutum (barro), e portanto a partir daquela materia vilis (materia vil)
“espalhada por toda parte”, que axiomaticamente é considerada como prima materia
e que, por isso, é desesperadamente difícil de ser encontrada, anda que esteja diante
dos olhos de todos”. Ela é um pedaço do caos primordial, aquela massa confusa, que
ainda não diferenciado. Dela se pode, pois fazer ainda tudo (JUNG, 1990, p. 138, §
217).
A idéia destes antigos filosofos era de que Deus se revelou em primeiro lugar na
criação dos quatro elementos. A prima matéria, a terra caótica primitiva, mãe de todas as
coisas, era o estado primordial da inimizade dos elementos. Estes elementos não estão unidos
no caos; apenas coexistem lado a lado, devendo por isso, ser unidos mediante o processo
alquímico. O intuito dos alquimistas era transformar a matéria recompondo a unidade na
pedra (ouro) e misticamente, no hermafrodita divino, no segundo Adão, no corpo de
ressureiçao, glotrificado e imortal. O demiurgo, adormecido e oculto, no seio da matéria, é
idêntico ao chamado homo philisophicus, o homem filosófico, o segundo Adão. Este último é
o homem espiritual, superior. Enquanto o primeiro Adão era mortal, por ser composto dos
quatro elementos perecíveis, o segundo é imortal, por ser composto de uma substância pura e
imperecível.
De modo semelhante descreve a alquimia o princípio de transformação do rei, a partir
de um estado imperfeito, para formar um ser intacto, perfeito, íntegro e incorruptível. Tal
figura já se acha presente no tratado de Zózimo, “Verdadeiro livro do Sophe, do egípcio e do
Senhor divino dos hebreus das forças de Sabaoth”. Comentando a citação presente em
Mysterium Coniunctionis, Jung considera, a passagem abaixo, a mais antiga menção do rei na
alquimia:
12
A dualidade enxofre -mercúrio será abordada no sub-capítulo sobra a alquimia árabe, responsável pela
introdução destes no simbolismo alquimico através do alquimista Jabir.
56
... Deste modo o ouro filosófico é uma espécie de representação corpórea da psique e
do pneuma, na qual ambos significam algo como “espírito de vida”. Na realidade é
um “aurum non vulgi” (ouro não do vulgo), por assim dizer um ouro vivo, que sob
todos os pontos de vista, corresponde ao Lapis (pedra). Este é de fato um ser vivo,
dotado de corpus, anima e spiritus (corpo, alma e espírito) e por isso capaz de ser
personificado como um homem “excelente”, portanto, por exemplo, como um rei,
que há longo tempo é considerado um deus encarnado (JUNG, 1990, p. 13-14, § 6).
Através destas representações, a alquimia retratava aquele ser que devia retornar
àquele estado inicial obscuro e padecer através da desagregação, despedaçamento e
13
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris, 1887/88. Apud:
JUNG,C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p.13, § 5 .
57
Como o sol significa na alquimia o ouro, o rei evidentemente corresponde ao Sol. Isso
já se faz notavel na própria citação acima de Zózimo, no qual a pedra (no caso, o cobre) é
comparado à um sol terrestre e por isso à um rei, como o sol no firmamento. A propriedade
divina do Sol era consideravelmente viva para o homem pagão e medieval. É quase
impossivel que para um alquimista tenha passado despercebido o fato de que o sol dele
tivesse alguma relação com o homem. Segundo Jung, o sol é simbolo da fonte da vida e da
totalidade última do homem14 :
De tudo o que já foi dito sobre a substancia ativa do sol, já deve ter ficado esclarecido
que na alquimia “Sol” não indica propriamente uma substância química determinada,
mas sim uma “virtus” ou uma força misteriosa, à qual se atribui um efeito produtor e
transformador (JUNG, 1997, p. 90, § 110).
14
Ocasionalmente o enxofre (sulphur) é identificado com o ouro. O sol deriva pois do sulphur.
58
... A obtenção do redondo e perfeito significa que o filho (...) agora atinge a sua
perfeição, isto é, que o Rex (rei) atinge a juventude (eterna) e que seu corpo se tornou
incorruptível. Como o quadrado representa o quatérnio (quaternidade, grupo de
quatro) dos elementos, que são inimigos entre si, da mesma forma a figura circular
indica a união deles para formar um. O um formado dos quatro é a quinta essentia
(quintessência) (...) (JUNG, 1990, p. 67, § 100).
...Ouvi a voz daquele que estava sobre o altar, e disse a mim mesmo: vou perguntar-
lhe quem é. E ele me respondeu com voz delicada, dizendo: ‘Eu sou Ion. O sacerdote
dos santuários escondidos e mais interiores, e me submeto a um tormento
insuportável. Com efeito, alguém veio às pressas, de madrugada, subjugou-me e me
transpassou com uma espada e me dividiu em pedaços, mas de tal maneira, que a
disposição de meus membros continua harmoniosamente como antes. E arrancou a
pele de minha cabeça com a espada que ele vibrou com força e recolheu os ossos com
os fragmentos de carne, queimanndo tudo no fogo, com a própria mão, até que
percebi me haver transformado em espírito. Este é o meu tormento insuportável.
Enquanto falava e eu o obr igava a fazê-lo, seus olhos se tornaram de sangue. Eu o vi
transformar-se num homenzinho que perdera uma parte de si mesmo (homenzinho
mutilado e diminuído). E Arrancava pedaços de sua carne com os próprios dentes e
desmaiava.17
15
“Existe no mar um peixe redondo, desprovido de espinhas e escamas, mas com muita gordura.” Allegoria
super librum Turbam. In: Artis Auriferae, Basiléia, 1593, p. 141. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e religião. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p. 59, § 92, nota 27.
16
As obras encontram-se no famoso Codex Marcianus, de origem alquímica e publicadas por M. Berthelot em
Collection des Anciens Alchimistes Grecs, em 1887. As visões (ou parte delas) também foram publicadas e
traduzidas para o português pelas edições 70, em Alquimia e Ocultismo, em 1991. Optou-se por citar neste
capítulo o trecho resumido das visões, publicado em O símbolo da transformação na missa de C. G. Jung.
17
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa. Rio de Janeiro:Vozes, 1991 [B], p. 27.
59
Segundo Jung, aparecem aqui pela primeira vez, na literatura, as idéias e conceitos de
um homunculus (homenzinho). Como foi visto mais acima, o tema da divisão em pedaços, do
castigo, da tortura, que a materia prima deve suportar a fim de ser transformada, se insere no
contexto ma is vasto do novo nascimento. A serpente, seu sacrifício e desmembramento, o
milagre da transformação do ouro, a dissolução e decomposição dos metais são de fato
representações alquimicas que tratam do tema da transformação de um modo original. A
procura destes processos pelos alquimistas tem um valor simbólico, estando ligada à
transmutação do próprio alquimista. Enquanto o alquimista incandesce no forno a sua materia,
ele se submete também, por assim dizer, “moralmente” ao tormento pelo fogo e à mesma
purificação e transformação. Por isso, o homem em sua estrutura interior deve incandescer até
o mais alto grau, pois dessa forma a sua impureza é consumida. Assim como o dragão
devorador, enquanto Ouroboros (o todo uno), o homúnculo de Zózimo representa aqui o
uróboro que se autodevora e que dá a luz a si mesmo18 . Como foi visto anteriormente na
figura do Rei, o despedaçamento é uma condição previa de redenção. Na figura do homúnculo
de Zózimo, o despedaçamento corresponde à ideia de uma transformação e, assim como o rei
renasce rejuvenescido em outras parábolas, na sequência das visões, o homúnculo percorre as
etapas de transformação do cobre passando pela prata até o ouro. Neste sentido, é o homem
interior que está representado nas qualidades paradoxais de um “homenzinho”. Segundo Jung,
“...Tais etapas correspondem a uma gradual valorização” (JUNG, 2003, p. 91, § 118).
Nota-se que o motivo da tortura tão recorrente nos textos alquímicos já se encontrava
nas vizões de Zózimo e neste sentido a importância deste alquimista para toda a alquimia
ulterior. Além disso, foi possivel observar que, tanto a figura do rei, central no simbolismo
alquimico, quanto a figura do homunculo (homenzinho), segundo Jung, devem à Zózimo suas
primeiras aparições. Além disso, justamente Zózimo ofereceu nesse sentido uma imagem
arquetípica sob a forma do Ánthropos (homem) divino, que, naquela época havia alcançado
importância decisiva, tanto do ponto de vista filosófico como religioso19 . Segundo Jung, "...as
idéias deste autor foram normativas direta e indiretamente para toda a orientação gnóstica-
filosófica posterior da alquimia" (JUNG, 1990, p.14, § 8).
Com o tempo, os escritos dos sábios alexandrinos foram ficando cada vez mais
teóricos e evanescentes. No período de 475 a 700 d. C., os monofisistas e os nestorianos
18
Simbolo pagão muito antigo, que se fundamenta na teologia egípcia: a saber, segundo Jung, na doutrina da
homoousia (igualdade de substancia de deus- pai com o deus –filho- faraó). Ouroboros deriva do grego oura
(“cauda”) boros (“devorar”) e signica “o que devora a própria cauda”.
19
Figuras como as de Zózimo e Maria Prophetissa são expoentes máximos da escola alquímica de Alexandria.
Entretanto a égípcia helenizada, Maria, a divina, como era chamada por Zozimo, somente será abordada no
quarto capítulo, devido a sua contribuição na compreensão deste através do “axioma de maria”.
60
levaram- na através da Síria e da Pérsia - de onde, após o auge do Islã, vieram sábios que
traduziram textos e os divulgaram pelo mundo árabe.
prata. Ou ainda Chemeia derivaria do grego chumos (sumo), i.é, a arte de extrair o suco ou
propriedades medicinais das plantas.
De qualquer maneira, as descobertas dos adeptos islâmicos deram ao mundo pala vras
novas como elixir, arsênico, álcool, alambique, álcali, atanor. A própria noção de elixir,
somou uma nova contribuição árabe neste universo. Este, tal como a pedra filosofal,
transmudaria a matéria vil em ouro, fazendo muitas outras coisas além disso. Já vimos como
as idéias dos alquimistas taoístas retomavam também as noções de "erva da eternidade", do
elixir da "Longa Vida", pertencentes à esfera das mitologias quase universais, como busca da
imortalidade. Porém, como assegura Eliade, foram os árabes que contribuiram para a
associação da noção de elixir à obra alquímica e à Pedra Filosofal:
De qualquer forma, a alquimia árabe tem uma peculiaridade. Ela, em si mesma, não
evoluiu de um estado de técnica mágico-mítica, nem é um resultado de uma interpretação
sapiencial de uma técnica preexistente. Ela foi adquirida pelos árabes, por assim dizer, já
pronta. Foi transposta de suas origens alexa ndrino-caldaicas para o contexto árabe já na forma
de alquimia e não de técnica mágico- mítica. Tanto é assim que é possível que o primeiro livro
árabe de alquimia seja o Livro da Composição Alquímica, escrito pelo conquistador árabe
Omeya Khalid Ibn Yazed ou khalid Ibn Jazid, principe omíada (séc. VII) relatando o que lhe
fora transmitido por um monge romano-egípcio, Morienus. Assim, o Alchimiae de Liber de
compositione ou O livro da Composição da Alquimia acredita-se ter sido o primeiro livro de
alquimia a ser traduzido do árabe para latim. Data-se de 1144 e marca o começo do interesse
europeu com a alquimia que resistiu por quase 900 anos. Com a tradução deste livro, Europa
foi familiarizada ao universo alquímico pela a primeira vez e os nomes de Morienus e de
Khalid tornaram-se conhecidos a todos os alquimistas em Europa.
Por outro lado, os alquimista árabes puderam distinguir nitidamente entre o conteúdo
protoquímico das operações alquímicas e as diferentes interpretações sapienciais projetadas
sobre ele. Isto porque estavam em contato direto com as diferentes sabedorias: as
alexandrinas, com sua origem sincrética greco-egípcio-judaica; os persas e sírios, com sua
62
origem caldaica; e as hindus, com sua origem budista. Percebiam que a interpretação
sapiencial era diferente, mas a técnica subjacente era a mesma. Disto resultou que muitos
destes foram mais protoquímicos experimentais que místicos sapienciais. Daí o grande
desenvolvimento da paleoquímica árabe - a qual realmente formou a base da química
européia. Assim é que o interesse principal da alquimia árabe era o da preparação dos elixires
para a cura das doenças. Formaram eles uma farmacopéia de remédios, à base de sais
minerais, a qual permaneceu em uso até bem próximo de nossos tempos. Entre os
responsáveis por essa farmacopéia estão os dois primeiros grandes alquimistas árabes. O
primeiro é Jabir ibn Hayyan20 (721-815) considerado o pai da alquimia árabe, que os
ocidentais denominavam Geber. Foi um médico e um grande sábio, que tentou aplicar a
matemática ao estudo do cosmo e descobriu um certo número de corpos químicos novos,
como a aqua rigia (agua régia), uma das poucas substancias suficientemente corrosivas para
dissolver o ouro. A sua obra mais importante, a Summa perfectionis magisterii, só é
conhecida em tradução latina.
No domínio teórico, Jabir desenvolveu as teorias de Aristóteles. Enquanto o grande
filósofo grego ensinava que as "exalações" da terra geravam metais e minerais, Jabir afirmava
que o processo não era tão direto. Segundo ele, os vapores fumarentos transformavam-se
primeiro em enxofre (Sulphur), e os brumosos em mercúrio. Estes, por sua vez, eram blocos
básicos de todos os metais. Impurezas inatas do enxofre e do mercúrio causavam a formação
de metais menores como o ferro e o chumbo. Mas se o alquimista conseguisse tornar essas
substâncias quimicamente puras, o resultado seria o ouro. Jabir distingue dois princípios
geradores dos metais: o enxofre e o mercúrio. O enxofre designa o princípio da fixidez da
matéria, pela secura ígnea do fogo e coagulação da terra, cuja a propriedade sulfurosa é ativa,
ou seja, secativa/coaguladora. O mercúrio designa o princípio da mutabilidade da matéria,
pela umidade fria da água e volatilidade do ar, cuja a propriedade mercurial é passiva, ou
seja, dissolvente/volátil de todos os metais.
A idéia de que os metais eram compostos de enxofre e mercúrio (posteriormente será
incluído um terceiro: o sal ) se configura como a principal contribuição da teoria de Jabir para
a alquimia. Entretanto há controvérsias com relação à este fato. Primeiramente Marcelin
Berthelot acreditava, no século XIX, que a obra latina de Geber, bastante popular na alquimia
do século XIII, nada teria a ver com a figura de Jabir, cujo o trabalho era pouco conhecido
20
Sobre os trabalhos de Jabir confira :STAPLETON, H.E. The antiquity of alchimy, Ambix, vol. V, 1956.Cf.
também em HOLMYARD, E.J. (ed.) The works of Geber, reedição inglesa de 1678, feita por. R. Russel, New
York:E.P.Dutton & Co.,1928.
63
pelos medievais europeus. Além disso, Goldfarb considera que a obra Jabiriana, parte
provavelmente das idéias de Balinus, o qual associam ao nome Apolônio de Tyana, filósofo
itinerante da Capadócia, figura importantíssima na formação da escola neopitagórica. Supõe-
se que sejam seus os originais de Balinus, criador da teoria da dualidade enxofre- mercúrio
que mais marcou a alquimia árabe. Entretanto, Goldfarb também menciona que,
provavelmente, Jabir tivessse conhecimento da teoria chinesa sobre a composição mineral do
ouro alquímico. Os alquimistas chineses imaginavam que o ouro alquímico deveria surgir do
equilíbrio de Yin e Yang. O princípio Yin ficaria a cargo do mercúrio, renascido pela
mortificação do cinábrio, parte feminina e receptora que seria unido ao princípio masculino
Yang, um princípio sulfuroso, ativo e penetrante, e dessa união nasceria o ouro alquímico.
Neste sentido Goldfarb considera:
De qualquer modo, Jabir ficou com o crédito ter sido o responsável pela introdução
destas concepções no universo alquímico. Waldstein, já citado anteriormente, assegura que
"...são numerosos os que lhe atribuem o mérito de ter posto em evidência a dualidade
enxofre- mercúrio, que será a base de toda a alquimia ulterior" (WALDSTEIN, 1990, p.38).
Posteriormente, um terceiro elemento foi incluído nesta concepção da dualidade enxofre-
mercúrio: o sal. Ele é o meio de união entre o Enxofre e o Mercúrio. O sal designa o princípio
anímico da matéria, pois é o elemento novo que aparece no mundo. A alma do mundo
penetra tudo, e da mesma forma o sal. Ele está simplesmente em toda a parte, e por isso
preenche a expectativa relativa à substancia do arcano, de que ela deva ser encontrada por
toda a parte. Compete ao sal as qualidades como substancia luminosa e o significado de um
princípio cósmico. Apesar de geralmente a substância do arcano ser identificada como
Mercurio Filosófico, só em época posterior, o Sal adquiriu significação de um princípio e,
entao, apareceu mais claramente como substancia do arcano e figura independente na tríade,
enxofre- mercúrio-sal:
... Não causa nenhuma estranheza se o “sal” se torna uma das designações de
substância do arcano. Parece que essa designação se desenvolveu nos começos da
64
Idade Média por influência árabe. Os véstígios mais antigos dela se encontram na
Turba Philosophorum, onde o sal e a água do mar já sao sinônimos da aqua
permanens (água eterna). (JUNG, 1997, p. 181, § 234).
Esta inclusão do sal na dualidade alquímica do enxofre- mercúrio foi atribuída à Abu
Bakr Muhammad ibn Zakaryya al-Razi (866-925), médico e sucessor de Jabir, conhecido
como al- Razi ou Rahzes. Escreveu 21 livros de alquimia, mas somente alguns são
conhecidos. No Kitab Sirr al-Asrar (Livro do Segredo dos Segredos)21 , Razi faz uma
exposição minuciosa e classificatória dos equipamentos e das substâncias utilizadas até então
na alquimia. De maneira reduzida, com relação às substâncias, classificava estas como
animal, vegetal e mineral. As minerais podiam ser espíritos, pedras, corpos, vitríolos, boraxes
e sais. Os espíritos podiam ser de quatro variedades: dois voláteis e incombustíveis, o
mercúrio e o sal amoníaco, e dois voláteis e combustíveis, o enxofre e o arsênico.
Os textos de Jabir e al- Razi inclinam-se mais para uma apresentação da alquimia
prática, experimental, deixando de lado a parte mística e filosófica típica de Alexandria.
Assim, embora admitissem a transmutação de metais e a busca de elixires, os principais
alquimistas desta época concentraram-se mais nos aspectos práticos da arte no laboratório.
Esta atitude influenciou não só os alquimistas árabes posteriores como também, séculos mais
tarde, os alquimistas europeus22 . Por outro lado, os árabes contribuíram substancialmente para
a formulação da teoria da composição das substâncias (teoria enxofre- mercúrio). É
desnecessário comentar que esse triunvirato de ingredientes, mercúrio, sal e enxofre, viveria
por séculos nas tradições da alquimia.
Apesar do Mercúrio Filosofal geralmente constituir a meta do Opus alchymicum, os
filósofos sempre dissimularam o nome vulgar da sua matéria, sob uma infinidade de epítetos.
21
Há um outro livro chamado O secretorum do secretum; é um tratado medieval conhecido também como o
segredo dos segredos, ou o livro do segredo dos segredos. É uma tradução latina do século XII de uma pesquisa
enciclopédia árabe que aborda uma larga escala de tópicos incluindo política, ética, fisionomia, astrologia,
alquimia, e medicina. Acredita-se ser uma recomendação suposta de Aristóteles a Alexandre, durante sua
campanha em Persia Este é um livro completamente diferente e é uma fonte comum de confusão por causa da
semelhança dos nomes, pelo conteúdo similar e, pelo período de tempo. Texto disponível em :
http://www.colourcountry.net/secretum/node2.html
22
Um outro grande filósofo-cientista surgiu na Pérsia no século X, Abu Ali al-Husayn ibn Abd Allah ibn Sina
(980-1037) ou Avicena, seu nome no ocidente. Avicena, um insaciável estudioso, dedicou-se à medicina e à
filosofia tendo sido considerado, pelo seu vasto conhecimento, o principal sábio da Pérsia. É reconhecido no
ocidente como príncipe da medicina. É o primeiro filósofo árabe, do qual se conserva uma biografia e restam
quase todas as obras . Avicena, pressupondo a unidade da filosofia, tentou conciliar as doutrinas de Platão e
Aristóteles. Sua filosofia sintetiza a tradição aristoteliana, as influências Neoplatonicas e da teologia
muçulmana.Embora aceitasse a teoria aristotélica dos elementos, Avicena rejeitava a transmutação de metais.
Reconhecia que o que os alquimistas conseguiam na verdade era fazer imitações colorindo os metais vulgares de
branco (prata), amarelo (ouro) e cor de cobre. Acreditava que estas qualidades eram impingidas aos metais e que
os processos usados, entre os quais a fusão, por exemplo, não podiam afetar a proporção de seus elementos
constituintes. Considerava que a proporção de tais elementos era uma característica de cada metal. Assim como
suas obras as idéias alquímicas de Avicena tiveram grande influência nos séculos posteriores.
65
Em resumo, é exato afirmar que o enxofre e o mercúrio são os únicos parentes da pedra.
Assim, o Mercúrio Filosofal é designado de maneira adequada como duplex, como ativo e
passivo. Sua parte “ascendente”, que se mostra ativa é chamada de Sol (ou enxofre), com
muito acerto e, somente por meio dessa parte, é que se percebe a outra parte, que é passiva.
Esta última recebeu, pois o nome de lua (ou mercúrio no sentido estrito), porque ela toma do
sol a luz que tem.
Entretanto, em algumas variantes da alquimia, ao enxofre se atribui também o poder
de dissolver, matar e reanimar os metais que são propriedades de mercúrio e, neste sentido, se
atribui quase tudo o que se diz do primeiro. Sendo assim, em alguns textos alquímicos, o
sulphur (enxofre) é um dos muitos sinônimos para designar a prima matéria em seu aspecto
duplo, isto é como materia inicial e como produto final. Nestes textos, no começo se acha o
enxofre cru ou vulgar, no fim ele é um produto do processo de sub limação. Sob este aspecto
representa ele, o ouro, ou respectivamente, o Sol. Como foi visto no sub-capítulo anterior
referente à alquimia alexandrina, também o Sol, em alguns tratados, significa a substancia do
arcano, de modo que para retratar a natureza dupla deste, os alquimistas chegaram a inventar
até uma sombra para o sol. Esta concepção já se encontra na Turba Philosophorum um dos
mais importantes tratados árabes: “quem pois tingir o veneno dos sábios com o sol e sua
sombra, chegou ao mais alto mistério”23 .Também o Sal, por ser a substancia do arcano em
alguns casos, não escapou do caráter paradoxal e a duplicidade de natureza. Desse modo se
diz na Gloria Mundi “que no sal há dois sais”24 .
Porém, de modo geral o Sol, como ouro é considerado a metade masculina e ativa do
Mercúrio Filosofal e a Lua, como prata, a parte feminina e passiva deste último25 . Com a
síntese final do mercúrio e do enxofre, o alquimista encontra o mercúrio filosófico, e assim
encerra-se este sub-capítulo.
Sabe-se que os esforços pioneiros de Jabir abriram uma idade de ouro para a alquimia
árabe. Foi principalmente por intermédio dos árabes que a alquimia atingiu o Ocidente
Cristão. É pela Espanha - que durante muitos séculos, ficara sob o domínio dos muçulmanos
na maior parte do território - que se fará a principal penetração, a partir do século X. A
alquimia chegou à Europa através das traduções e adaptações de textos árabes, as quais, por
sua vez, já eram traduções e adaptações de velhos textos helenísticos. Nestes textos originais,
23
Turba Philosophorum. In: RUSKA, Julius. Buch der Alaune and Salve (De speciebus salium). Berlim, 1905, p.
130. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 94, § 114, nota 38.
24
Gloria mundi, alias paradysi tabula. In: Musaeum Hermeticum. Frankfurt, 1678, p. 217s. Apud: JUNG, C. G.
Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 244, §331.
25
De acordo com a autoridade máxima da Tabua de Esmeralda, o sol é o pai de mercúrio e a lua, sua mãe. Cf em
TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.23.
66
a alquimia já tinha adquirido, um estágio final, se bem que diferente da européia; pois que
houve uma reinterpretação cristã ocidental. Tais reinterpretações serão evidentemente
abordadas nos próximos capítulos, ao tratarmos dos estágios do alquimista Gerardus Dorneus.
67
Também a egípcia helenizada Maria Prophetissa2 (ou Maria, a Judia), uma das
mulheres alquimistas mais importantes e um dos alquimistas mais antigos que se tem notícia,
faz referência ao “negro, o branco e ao alaranjado”, em seu tratado “Diálogo de Maria e Aros
sobre o Magistério de Hermes”3 . A sucessão de cores no procedimento alquímico negro,
branco e alaranjado, fazem alusão à nigredo, albedo e a rubedo durante a Obra:
1
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
26.
2
Tal como aconteceu com a maioria dos primeiros adeptos, a identidade de Maria, perdeu-se na obscuridade. No
passado, os alquimistas achavam que se tratava de Miriam, irmã de Moisés, ou a copta, mas há poucas
evidencias para comprovar tal hipótese. Não é impossivel que esteja relacionada com a Maria da tradição
gnóstica. É mais provavel que ela tenha vivido aproximadamente no século II, em Alexandria e, seja qual for a
sua origem, o certo é que era um gênio para desenhar equipamentos de laboratório e usá-los de maneira original.
Sua principal contribuição foi um aparelho chamado Kerotakis, destinado a esquentar substancias químicas e
coletar seus vapores. Maria, também destaca-se como a inventora do famoso “banho–maria”.
3
O texto original foi impresso em um número de compêndios em latim e em alemão, como por exemplo no
primeiro volume do Artis Auriferae (Da arte aurifera), sob o título Practica Mariae propheyissae in artem
alchimicam (Exercícios práticos da profetisa Maria referentes à arte alquímica). Texto disponível na internet:
http://www.levity.com/alchemy/maryprof.html. O texto integralmente também foi publicado, tal como aparece
68
Conservai os vapores – ripostou Maria – e não deixeis que nada escape. Fazei o
vosso fogo em proporção com o calor do sol do mês de Junho e Julho. Mantende-vos
junto do vosso vaso e vereis coisas que vos surpreenderão. Em menos de três horas a
vossa matéria tornar-se-á negra, branca e alaranjada; os vapores penetrarão no corpo
e o espírito ficará preso. A mistura tornar-se-á então como leite penetrante e
fundente. Este é o segredo escondido. 4
... E da mesma maneira que o corpo do homem contém os quatro elementos, Deus
criou-os também distintos e separados e unidos e dobrados em Uno, mas repartidos
por todo o corpo, que os contém a todos como se estivessem submergidos nele, e os
retém todos numa coisa só. Mas se cada um deles pode realizar uma operação
particular, e diferente dos demais, ainda que estejam no mesmo corpo, isto não
impedirá que cada um deles tenha a sua cor particular e o seu próprio domínio. Passa-
se exatamente o mesmo no nosso Magistério (porque as cores que dependem cada
uma de um elemento aparecem uma após a outra). Os filósofos disseram muitas
coisas similares sobre este Magistério (...) 5
Durante o diálogo, Khalid parece não compreender se a sucessão de cores durante a Obra,
e suas conversões umas nas outras, ocorrem em uma única operação, ou com duas ou mais.
No trecho a seguir, Morienus trata sobre a necessidade da Obra alquímica seguir uma exata
sequência de fases para atingir o seu fim:
MORIEN – A matéria muda com uma só operação, mas quanto mais cores diferentes
recebe do calor do fogo, mais nomes diferentes se lhe dá. (...) Pois da mesma maneira
que o Magistério tem um nome próprio, há também uma disposição ou operação que
lhe é particular, e para a fazer só há um caminho certo. (...) 6
na versão da edição francesa de “Bibiothèque des auteurs chimiques” de 1672, na seleção de textos alquímicos
publicados em Alquimia e Ocultismo, pelas Edições 70, em 1991.
4
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 38.
5
DIÁLOGOS entre o rei Khalid e o filósofo Morien sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU, Hermes
et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 56.
6
Ibidem. p. 58.
69
A sucessão de cores também é anunciada em Jabir ibn Hayyan (séc. VIII), mais
conhecido como Geber no ocidente, já citado anteriormente e, considerado o pai da alquimia
árabe. Destaca-se a seguinte citação presente no comentário da décima quinta gravura do
Rosarium philosophorum (Rosário dos Filósofos):
... Eu dar-lhe-ei um axioma fundamental, a menos que você transforme o cobre acima
dito no branco, e faça moedas visíveis e então mais tarde transforme-as outra vez na
vermelhidão, até uma Tintura: resulta que certamente você realiza nada. Queime
conseqüentemente o cobre, quebre-o acima, prive-o de seu negrume, cozinhando,
molhando, e lavando, até o mesmo tornar-se branco. Domine-o então. 8
7
“Geber in his First Book and 26th Chapter: We grant therefore unto thee according to the opinion of the ancient
men which were following this art, that the natural principles of the work of nature, are a stinking spirit, that is
Sulphur, and quick water, which we also grant to be named dry water. But we have divided the stinking spirit,
for it is white in secret and both red and black in the magistery of this work, but in manifest both of them tend to
be red.” THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary0.html .
8
“…I will give you a fundamental axiom, that unless you turn the afore said copper into white, and make visible
coins and then afterwards again it into redness, until a Tincture: results, verily, ye accomplish nothing. Burn
therefore the copper, break it up, deprive it of its blackness by cooking, imbuing, and washing, until the same
becomes white. Then rule it” TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/turba.html .
70
para a necessidade de queimar, cozinhar e lavar o cobre até que este seja despojado de sua
“obscuridade”. Entretanto no “décimo dito”, tal sequência de cores é citada detalhadamente:
Arisleus diz -- Saiba que a chave deste trabalho é a arte das moedas. Pegue entao o
corpo que eu tenho demonstrado a você e reduza-o à tabuletas finas. Em seguida
mergulhe as tabuletas na água de nosso mar, que é água permanente, e, depois que
isto estiver coberto, ajuste-as sobre um fogo delicado até que as tabuletas estejam
derretidas e se transformem águas ou a Etheliae, que são um e a mesma coisa.
Misture, cozinhe, e ferva em um fogo delicado até que Brodium esteja produzido,
como a Saginatum. Agite então em sua água de Etheliae até que coagulem, e as
moedas tornem-se diversificadas, que nós chamamos a flor do sal. Cozinhe-a,
conseqüentemente, até que esteja privada do negrume, e a brancura apareça. Então
friccione-a, misture-a com a cola do ouro, e cozinhe até que se transforme Etheliae
vermelho. Use a paciência na trituração a fim de que não você se torne cansado.
Embeba a Ethelia com sua própria água, que precedeu dela, que é também água
permanente, até a mesma tornar-se vermelho. 9
9
“Arisleus saith:- Know that the key of this work is the art of Coins. Take, therefore, the body which I have
shewn to you and reduce it to thin tablets. Next immerse the said tablets in the Water of our Sea, which is
permanent Water, and, after it is covered, set it over a gentle fire until the tablets are melted and become waters
or Etheliae, which are one and the same thing. (…). Then stir in its water of Etheliae until it be coagulated, and
the coins become variegated, which we call the Flower of Salt. Cook it, therefore, until it be deprived of
blackness, and the whiteness appear. Then rub it, mix with the Gum of Gold, and cook until it becomes red
Etheliae. Use patience in pounding lest you become weary. Imbue the Ethelia with its own water, which has
preceded from it, which also is Permanent Water, until the same becomes red. (…)”.TURBA Philosophorum.
(s.d). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/turba.html.
71
Para cada grau maior de perfeição do Elixir, é o mesmo que para o Elixir branco, até
que, por fim, tinja o Sol de quantidades infinitas de Mercúrio e de Lua. Agora,
possuis um precioso arcano, um tesouro infinito. Por isso, os filósofos dizem: “A
nossa Pedra tem três cores: negra no princípio, branca no meio e vermelha no fim”.
Um filósofo afirma: “O calor, actuando, primeiramente, sobre o húmido, engendra
negrura, a sua acção sobre o seco engendra brancura e, sobre esta, engendra a
vermelhidão. Porque a brancura não é mais que a privação completa de negrura. O
branco fortemente condensado pela força do fogo, engendra o vermelho.” “Todos
vós, investigadores que trabalhais a Arte - disse outro sábio - Quando vejais aparecer
o branco no vaso, sabei que o vermelho está oculto nesse branco. Falta-vos extraí-lo
dele, e, para isso, é preciso aquecer fortemente, até à aparição do vermelho. 11
(38) Pois nossa terra se decompõe e torna-se preta, então ela é decomposta na
elevação ou separação; mais tarde tornando-se seca, sua obscuridade vai se afastando,
e então ela fica embranquecida, e o dominio feminino da escuridão e da umidade
perece; então também o vapor branco penetra através do corpo novo, e os espíritos são
ligados acima ou fixados na secura. E isso que é corrompido, deformado e preto
através da umidade, desaparece se afastando; assim o corpo novo levanta-se outra vez
desobstruído, puro, branco e imortal, obtendo a vitória sobre todos seus inimigos. E
como o calor trabalhando em cima daquele que é úmido, causa ou gera o negrume,
que é a cor principal ou primeira, assim sempre pela decocção mais e mais calor
trabalhando em cima daquele que está seco gera a brancura, que é a segunda cor; e
então trabalhando em cima disso que está puramente e perfeitamente seco, produz o
amarelamento e a vermelhidão, desta forma muitas cores. NÓS devemos saber
conseqüentemente, essa coisa que tem suas cabeças vermelhas e brancas, mas seus pés
branco e mais tarde vermelho; e seus olhos de antemão pretos, essa coisa, eu digo, é a
única matéria do nosso magistério. 12
10
O presente tratado, Compositum de Compositis, encontra-se no tomo IV do Theatrum Chemicum, pg.825, de
onde foi traduzido para francês por Albert Poisson. Texto disponível na Internet:
http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm. A tradução portuguesa é de Rubellus Petrinus.
11
MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. Acesso em: http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-
p.htm.
12
“(38) For our earth putrefies and becomes black, then it is putrefied in lifting up or separation; afterwards
being dried, its blackness goes away from it, and then it is whitened, and the feminine dominion of the darkness
and humidity perisheth; then also the white vapor penetrates through the new body, and the spirits are bound up
or fixed in the dryness. And that which is corrupting, deformed and black through the moisture, vanishes away;
so the new body rises again clear, pure, white and immortal, obtaining the victory over all its enemies. And as
heat working upon that which is moist, causeth or generates blackness, which is the prime or first color, so
72
Obtêm-se-se nesta citação retirada do Livro secreto de Arthephius, uma visão das três
fases condensadas em um só parágrafo 13 . Como na citação presente do Composto dos
compostos, o calor, atuando, primeiramente, sobre o úmido, engendra negrura, a sua ação
sobre o seco engendra brancura; Arthephius também considera, primeiramente, que “o calor
trabalhando em cima daquele que é úmido, causa ou gera o negrume, que é a cor principal ou
primeira”. Neste sentido, o embranquecimento da terra decomposta, só ocorre quando o que é
“corrompido, deformado e preto através da umidade” desaparece e “o domínio feminino da
escuridão e da umidade perece”. Por isso o Livro secreto de Arthephius ressalva à “sempre
pela decocção mais e mais calor trabalhando em cima daquele que está seco”; pois desta
maneira separa-se da mistura a parte mais volátil por evaporação seguida da condensação e “o
corpo novo levanta-se outra vez desobstruído, puro, branco e imortal, obtendo a vitória sobre
todos seus inimigos”. O termo “levanta-se outra vez” denota que está operação é repetida
várias vezes, como na “Ethelia de Arisleus”, que é embebida com sua própria água, até que
“gere a brancura, que é a segunda cor”. Além disso, assim como na citação do Composto dos
Compostos, quando aparece o branco no vaso, sabe-se que o vermelho está oculto nesse
branco; desta maneira, a mistura é elevada ao seu grau máximo de pureza pelo movimento
circular continuado. Isso significa, segundo Arthephius, que “o vapor branco penetra através
do corpo novo, e os espíritos são ligados acima ou fixados na secura”; por isso o branco
fortemente condensado pela força do fogo, engendra o vermelho, como assegura o Composto
dos Compostos.
A sucessão de cores é também abordada no sexto capítulo do tratado The mirror of
alchemy (O espelho do alquimia), atribuído à Roger Bacon (1214-1294), o qual é intitulado
“Das cores acidentais e essenciais que aparecem no trabalho”. Segue abaixo um trecho deste
capítulo:
always by decoction more and more heat working upon that which is dry begets whiteness, which is the second
color; and then working upon that which is purely and perfectly dry, it produces citrinity and redness, thus much
for colors. WE must know therefore, that thing which has its head red and white, but its feet white and
afterwards red; and its eyes beforehand black, that this thing, I say, is the only matter of our magistery.”
ARTHEPHIUS (s.d.) The Secret Book of Artephius. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/artephiu.html
13
Arthephius nesta citação faz referencia ao estágio do amarelamento, "citrinitas" que gradualmente caiu em
desuso no século XIV e XV. O termo em inglês “citrinity” foi citado em algumas traduções inglesas como o
tratado alquímico Atalanta fugiens do alemão Michael Maier e O livro das figuras hieroglícas do francês
Nicolas Flamel. Neste último, na tradução de Luis Carlos Lisboa, o termo encontra-se traduzido por “alanjado”.
Preferiu-se na presente citação traduzir “citrinity” por “amarelamento”, devido ao termo em inglês “citrine”. Do
Latim, citrina, citrino, é uma variedade de quartzo amarelo que constitui pedra preciosa. No entanto, há também
Citrinus, do latim medieval , que significa da cor da cidra ou do limão.
73
Nota-se que, como Arthephius, em seu livro secreto, Bacon nesta citação também
menciona “uma cor do citrino ” fazendo referência ao estágio do amarelamento, "citrinitas",
que no século XIII, ainda era bastante mencionada nos tratados.
Essas citações poderiam preencher grossos volumes e estenderem-se até o século XX,
com Fulcanelli, um dos últimos grandes adeptos conhecidos nesta arte, se certamente não
bastasse abrir qualquer livro que se refira, de longe ou de perto à alquimia, para saber que nele
são mencionadas as três cores principais que durante os trabalhos se sucedem: o negro, o
branco e o vermelho. De fato, parece que é esse o aspecto do trabalho que foi melhor descrito
pelos adeptos quando se referiam às fases coloridas da obra. Estas fases gerais poderiam ser
produzidas por uma combinação de diferentes procedimentos químicos-alquimícos, como a
solução (solutio), a calcinação (calcinatio), a coagução (coagulatio), sublimação (sublimatio),
e outras, sendo a Coniunctio (união), necessariamente a última, por representar a unificação
na pedra filosofal.
14
“CHAPTER VI.Of the accidental and essential colours appearing in the work.The matter of the stone thus
ended, you shall know the certain manner of working, by what manner and regiment, the stone is often changed
in decoction into diverse colors. Whereupon one says, So many colors, so many names. According to the diverse
colors appearing in the work, the names likewise were varied by the Philosophers: whereon, in the first operation
of our stone, it is called putrifaction, and our stone is made black: whereof one says, When you find it black,
know that in that blackness whiteness is hidden, and you must extract the same from his most subtle blackness.
But after putrifaction it waxes red, not with a true redness, of which one says: It is often red, and often of a
citrine color, it often melts, and is often coagulated, before true whiteness. And it dissolves itself, it coagulates
itself, it putrifies itself, it colors itself, it mortifies itself, it quickens itself it makes itself black, it makes itself
white, it makes itself red.(…)” BACON, Roger (1597). The mirror of alchemy. Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/mirror.html
74
III. 2. – A fase alquímica Nigredo à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung
interior da psique total, embora cerque a personalidade por todos os lados e assim, abranja
tanto a vida consciente como a inconsciente, sua essência permanece no inconsciente Nesta
concepção junguiana, cada um de nós deve explorar o seu próprio inconsciente. No entanto, a
consciência resiste a tudo que é inconsciente e desconhecido. Neste processo, necessita-se
sempre voltar a trás, continuamente, para restabelecer as relações com o Si- mesmo. Sendo o
Si- mesmo, a meta do desenvolvimento psíquico “a aproximação em direção à este último não
é linear, mas circular, isto é ‘circum-ambulatória’” (JUNG, 1996, p. 174). Consequentemente
a ampliação da consciência se faz por etapas e ciclos, e assim, aos poucos, passa-se a integrar
os conteúdos inconscientes na consciência.
Nos tratados alquímicos, a matéria original muda progressivamente de cor ao longo
das operações e essa sucessão de cores devia ser escrupulosamente respeitada. A Nigredo ou
negrura, era considerado pelos alquimistas o primeiro procedimento alquímico, o estágio
inicial, do enegrecimento. Este estágio era almejado pelos alquimistas como principal ponto
de partida, pois de acordo com os adeptos desta arte, o começo se encontrava no negro. No
entanto, para este procedimento alquímico era necessário encontrar uma matéria
desconhecida, que entre os alquimistas era conhecida como prima materia. À propósito deste
primeiro corpo, parcela do caos original e mercúrio comum dos filósofos, também conhecido
como nossa água, massa confusa, substância universal, virgem sem mácula, dissolvente
universal, etc, o dicionário alquímico de Martin Ruland 15 , o Lexicon alchemiae, publicado
primeiramente em 1612, oferece nada menos, nada mais que cinquenta sinônimos para esta
matéria – prima:
Para ilustrar, serão citadas as cinco primeiras definições da prima materia encontradas
no Lexicon alchemiae :
15
A seção sobre a prima materia do dicionário alquímico de Ruland está disponível na internet, transcrito por
John Glenn: http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html.
16
“…The philosophers have so greatly admired the Creature of God which is called the Primal Matter, especially
concerning its efficacy and mystery, that they have given it many names, and almost every possible description,
for they have not known how to sufficiently praise it.” RULAND, Martin (1612) Lexicon Alchemiae. Acesso em:
http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html
76
As citações sobre a matéria do Opus Magnum nesta presente dissertação poderiam ser
infindas, visto que este é o assunto em que os filósofos mais exercitaram sua ciência prática.
Todos que escreveram sobre a arte esconderam o nome verdadeiro desta matéria, como a
chave principal da arte. Tendo potencialmente todas as qualidades e propriedades de coisas
elementares, deram- lhe os nomes de todos os tipos de coisas. É o começo material e fim de
todas as coisas.
Essa “prima materia” há tempos procurada, porém nunca encontrada, está no próprio
homem, como intuíam alguns alquimistas. Na verdade, naturalmente como se tratava de uma
projeção, não viram bem que estavam lidando com um evento psíquico, embora alguns
tenham pressentido de que se tratava de uma própria transformação. Como havia uma
conexão íntima entre o ser humano e o segredo da matéria, os alquimistas exigiam que o
operador estivesse à altura de sua tarefa e, por isso deviam realizar em si mesmos, o processo
que atribuía à matéria. Ao enfrentar o caos da prima materia, este retorno produz um estado
de confusão e escuridão que os alquimistas classificavam como nigredo:
A base da "opus " é a matéria - prima que é um dos segredos mais importantes da
alquimia. Isto não é surpreendente, uma vez que ela representa a substância
desconhecida portadora da projeção do conteúdo psíquico autônomo. Evidentemente
tal substância não era especificada, pois a projeção emana do indivíduo, sendo
portanto diferente em cada caso. Portanto, não é correto afirmar que os alquimistas
nunca definiram a "matéria -prima"; muito pelo contrário, foram tantas as definições
17
“1. They originally called it Microcosmos, a small world, wherein heaven, earth, fire, water, and all elements
exist, also birth, sickness, death, and dissolution, the creation, the resurrection, etc.2. Afterwards it was called the
Philosophical Stone, because it was made of one thing. Even at first it is truly a stone. Also because it is dry and
hard, and can be triturated like a stone. But it is more capable of resistance and more solid. No fire or other
element can destroy it. It is also no stone, because it is fluid, can be smelted and melted. They further call it the
Eagle Stone, because it has stone within it, according to Rosinus.3. It is also called Water of Life, for it causes
the King, who is dead, to awake into a better mode of being and life. It is the best and most excellent medicine
for the life of mankind.4. Venom, Poison, Chambar, because it kills and destroys the King, and there is no
stronger poison in the world.5. Spirit - because it flies heavenward, illuminates the bodies of the King, and of the
metals, and gives them life.” RULAND, Martin (1612) Lexicon Alchemiae. Acesso em:
http://www.levity.com/alchemy/ruland_e.html
77
dadas que estas acabaram por contradizer-se repetidamente (JUNG, 1991 [A], p.329, §
425).
18
Segundo Goldfarb, em seu livro, Da alquimia à quimica, quando os árabes conquistaram a Persia e o Egito, no
século VII, entraram em contato com essas duas culturas por meio da tradução de seus livros. Entre os livros
gregos, traduzidos, estava O Livro dos Segredos da Criação, atribuído a Apolônio de Tiana. Uma parte deste
livro é a célebre Tabua de Esmeralda. Tal prestígio recebeu este tratado que sua autoria foi atribuída ao próprio
Hermes Trimegisto.
19
TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 23.
20
Jung acrescenta: “...Nos casos em que ele aparece irromper diretamente, como nas visões, nos sonhos,
iluminações ou psicoses, etc., sempre é possível provar que foram precedidos por condições psíquicas onde a
projeção aparece nitidamente”(JUNG,1999 [C], p. 56, § 383).
78
matéria una e divina pode tomar formas diversas, combinar-se a si mesma e produzir novos
corpos em número indefinido; o inconsciente também gera uma multiplicidade de imagens
primordiais, que são suscetíveis de transformações infinitas, uma vez que fecunda a si mesmo,
concebe dele mesmo e dá à luz a si mesmo:
foi declarado no Rosário dos Filósofos21 . A água em todas as suas formas – como mar, lago,
rio fonte , etc – é uma das caracterizações mais usadas para indicar o inconsciente. Como o
caos, a prima materia se identifica com as águas dos primórdios e, na alquimia também ela
tem “mil nomes”, aqua permanens (água eterna ou água divina), aqua vitae, ou seja, a água
miraculosa, pois ela é o material original da pedra filosofal. A água está na primeira figura do
Rosarium Philosophorum. Jung a intitulou de “A fonte de Mercúrio”:
21
“They have also said that our stone is made of one thing and it is true for the whole magistery is done with our
water, for that water is the sperm of all metals, and all metals are resolved into it, as has been declared.” THE
ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary0.html .
22
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
23
“We are the beginning and first nature of metals,Art by us maketh the chief tincture.There is no fountain nor
water found like unto me.I heal and help both the rich and the poor,But yet I am full of hurtful poison.” THE
ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
80
de que e com qual o magisterio é efetuado, é cara e barata, e por isso “ajuda ao rico e aos
pobres”.
Devido ao seu poder de dissolução, a água estava associada à operação alquímica da
solutio (solução). Pela solução filosófica verdadeira, o corpo é transformado em sua primeira
água, a qual tem sido desde o começo um mesmo corpo. Para o alquimista, a solutio significa
o retorno da matéria diferenciada ao seu estado original indiferenciado, à prima materia. Já no
citado tratado “Diálogo de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes”, Maria, a Prophetissa,
faz referência à Solutio:
Reduz tudo isto a água corrente – continuou Maria -- e purificai sobre o corpo fixo
esta água verdadeiramente divina tirada dos enxofres, e fazei com que esta
composição se torne líquido pelo segredo das naturezas no vaso da filosofia.24
Edinger realizou em seu livro Anatomia da psique, uma primeira tentativa de organizar
e analisar os procedimentos químico-alquímicos como a solutio (solução), a calcinatio
(calcinação), a coagulatio (coagulação), a sublimatio (sublimação), a mortificatio
(mortificação), a separatio (separação), a coniunctio (conjunção), à luz da psicologia
junguiana. Entretanto, as principais fases coloridas da obra, nigredo, albedo e rubedo, que
podem ser produzidas por uma combinação de procedimentos químicos-alquímicos, não
foram estudadas e analisadas nestes termos. Com relação específicamente à fase alquímica da
nigredo, assegura Jung :
24
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 37.
81
Arisleus diz -- Saiba que a chave deste trabalho é a arte das moedas. Pegue entao o
corpo que eu tenho demonstrado a você e reduza-o à tabuletas finas. Em seguida
mergulhe as tabuletas na água de nosso mar, que é água permanente, e, depois que
isto estiver coberto, ajuste-as sobre um fogo delicado até que as tabuletas estejam
derretidas e se transformem em águas ou a Etheliae, que são um e a mesma coisa.25
Com freqüência, realiza-se a solutio sobre um rei. Como foi visto anteriormente, na
alquimia, o rei desempenha um papel central, porque alude ao mito do herói, incluindo a
renovação do rei e de Deus. Por esta razão encontram-se um número de alegorias que
envolvem a transformação de um rei. O tratado alquímico Splendor Solis26 é um dos mais
bonitos manuscritos alquímicos iluminados. O tratado consiste em uma seqüência de 22
gravuras elaboradas, cujo o processo simbólico mostra a morte e o clássico renascimento
alquímico do rei. Uma gravura em especial mostra no plano de fundo o rei do mar gritando
por socorro:
25
“Arisleus saith:- Know that the key of this work is the art of Coins. Take, therefore, the body which I have
shewn to you and reduce it to thin tablets. Next immerse the said tablets in the Water of our Sea, which is
permanent Water, and, after it is covered, set it over a gentle fire until the tablets are melted and become waters
or Etheliae, which are one and the same thing. (…).” TURBA Philosophorum. (s.d). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/turba.html
26
O Splendor Solis foi associado com o legendário Salomon Trismosin, suposto professor de Paracelso. Os
escritos de Trismosin foram publicadas mais tarde com ilustrações da gravura, no Aureum Vellus.Uma tradução
francesa, intitulada La toyson d`or também foi emitida em Paris em 1612.
82
27
As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está
disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/show.dml?id=1555.
83
...Os antigos viram surgir ao longe um nevoeiro, que encobriu e umedeceu a terra
toda, e viram também a impetuosidade do mar e das ondas de água sobre a face da
terra; e viram que elas se tornaram podres e fedorentas trevas. E viram também o rei
da terra afundar e ouviram que ele gritava com voz ansiosa: Quem me salvar, reinará
comigo e reinará em minha claridade, no meu trono real. 28
28
Aureum Vellus. Rorschach, 1598. IN: JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990,
p. 82-83, §131.
84
... Tais irrupções são ameaçadoras por serem irracionais e inexplicáveis à pessoa em
questão. Elas acusam uma alteração significativa da personalidade, na medida em que
representam um penoso segredo pessoal, isolando a pessoa e alienando-a do seu
ambiente (JUNG, 1991 [A], p. 59, §57).
O forte efeito dos conteúdos inconscientes permite tirar conclusões quanto à energia
dos mesmos. Todos os conteúdos inconscientes, quando ativados (isto é, quando se
tornam manifestos) possuem, digamos assim, uma energia específica, graças à qual
eles podem manifesta-se universalmente (...). Mas esta energia, em circunstância
normais, não é suficiente para fazer com que o conteúdo inconsciente irrompa no
consciente. Isso requer uma certa condição por parte do consciente. É necessário que
este apresente um déficit sob a forma de uma perda de energia. A energia perdida vai
aumentar no inconsciente o valor psíquico de certos conteúdos compensatórios
(JUNG, 1999[C], p. 49, § 372).
Aqueles no caminho do erro crêem que dissolver os corpos é uma operação tão fácil
que imaginam que o ouro imerso no Mercúrio dos Sábios deve ser devorado num
piscar de olh os, compreendendo mal a passagem do conde Bernard Trévisan, onde
fala de seu livro de ouro mergulhado na fonte e que ele não pode recuperar. Mas
aqueles que penaram com a dissolução dos corpos podem atestar a verdadeira
dificuldade desta operação. Eu mesmo, por ter sido freqüentemente testemunha
ocular, certifico que é preciso grande sutileza para controlar o fogo, após a preparação
da matéria, de modo a dissolver os corpos sem queimar suas tinturas.30
29
Eirenaerus Philaletha é pseudônimo, sob o qual se suspeita ter escrito o conhecido inglês Eugenius Philalethes,
ou Thomas Vaughan (1961-1665). O tratado parece ter sido escrito em 1645.
30
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
85
A Allegoria Merlini31 está entre os tratados medievais mais antigos, o qual mostra a
morte e a resurreição do rei. Conta a alegoria que certo rei pretendia conquistar um poderoso
povo e por isso preparou-se para a guerra. Porém, quando ele ia começar, exigiu que um de
seus soldados lhe dêsse um copo d`água que “poderosamente amava”. O rei começou a beber
e bebeu outra vez até que todos seus membros se encheram e, todas suas veias ficaram
inchadas, e ele ficou todo descolorido. E disse:
Estou pesado e minha cabeça dói, e imagino todos os meus membros repartindo-se
em um outro. Conseqüentemente eu comando que você me ponha em um quarto
claro, que deva ser um lugar morno e seco, então eu suarei e a água será seca, e eu
estarei livre também dela.32
Nota-se que enquanto o tratado alquímico Splendor Solis representa a Solutio com o
rei em vias de afogar-se, a alegoria de Merlin, promove um tipo de afogamento interior, uma
hidropsia, ou seja, uma acumulação anormal de fluido nas cavidades naturais do corpo. A
figura do rei na alquimia como símbolo do sol, do mundo claro e diurno correponderia na
31
A associação com figura céltica de Merlin é obscura e não há nenhuma referência interna (nem certamente
algumas ligações com os mitos de Merlin), que pudesse explicar porque este nome é associado com a alegoria. A
alegoria existe desde o século XIV – XV em um manuscrito na Biblioteca Nacional de Paris e foi publicado
como Merlini-Allegoria, profundissimum Philosophici Lapidis Arcanum perfecte continens, no compêndio
alquímico Artis Auriferiae, em 1593.Texto dis ponível na internet: http://www.levity.com/alchemy/merlin.html.
32
"I find myself heavy, and my head aches, and I fancy all my members divide themselves from one another.
Therefore I command you that you do bring me into a light chamber, which must be in a warm and dry place,
then I shall sweat and the water will be dried in me, and also I will be freed from it". THE ALLEGORY of
Merlin (s.d). Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/merlin.html.
86
33
O problema consiste em manter a integridade, do que Edinger nomeou de “eixo ego – Si-mesmo”, ao mesmo
tempo em que se dissolve a identificação do Ego ao Si-mesmo.
87
Este apelo a qualidades obviamente morais deixa claro que a opus não exige apenas
capacidades intelectuais ou conhecidamente técnicos, como por exemplo o
aprendizado pratico do exercicio da quimica moderna, mas constitui muito mais um
empreendimento que além de psiquico tambem é moral. É frequente encontrarmos
nos textos exortações deste tipo. Elas propõem uma atitude semelhante à que é
exigida na execução de um trabalho religioso (JUNG, 1999[C], p.103, § 451).
34
Michael Maier, médico, filósofo e alquimista alemão, escreveu o tratado alquímico Atalanta Fugiens. O
Atalanta Fugiens foi publicado primeiramente em latim em 1617. O Atalanta fugiens, é uma espécie de obra
hermética total, já que consiste em Estampas, Epigramas em verso, Discurso em prosa e pequenas peças
musicais em forma de fuga, cada um desses tipos de textos distintos criados em número de cinquenta. Neste
sentido era um exemplo adiantado de combinação de texto gráfico e som na exibição da informação.
35
“… He that delivers me shall have a great reward”. MAIER, Michael (1617). Atalanta fugiens. Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/atl31-4.html.
88
Mas que deve ser feito ao rei quando ele é portanto libertado? Primeiramente
daquelas águas que ele recebeu deve ser aliviado pela sudorese, do frio pelo calor do
fogo, do embotamento de seus membros pelo Banho moderadamente quente, da fome
e do querer alimento pela administração de uma dieta conveniente e de outras
enfermidades por seu inverso e pelos remédios Saúde-restauradores. (...) 38
O tratado alquímico aconselha que o rei seja aliviado daquelas águas que recebeu no
mar pela sudorese. Além disso, no trigésimo oitavo emblema, Michael Maier retrata o rei em
um banho vaporoso, como se observa na imagem a seguir:
40
A Alegoria de Duenech foi publicada no vasto compêndio alquímico, Theatrum Chemicum III, p.756-757,
Ursel, 1602. Esta disponível também em http://www.levity.com/alchemy/duenech.html.
41
Nesta alegoria alquímica, o rei sofre de uma profunda melancolia. No I Ching, a melacolia é um atributo do
princípio maleável ou obscuro e por isso imperfeito e desejável de ser transformado: “o atributo do princípio
maleável ou obscuro não é a alegria e sim a melancolia” (WILHELM, Richard. I Ching, o livro das mutações.
São Paulo: Ed. Pensamento,1998, p. 177). Segundo Jung, “o homem civilizado apresenta manifestações
análogas. Também lhe acontece perder repentinamente toda disposição e iniciativa, sem saber por quê. A
descoberta da causa verdadeira nem sempre é facil e desemboca regularmente em discussões bastante delicadas
sobre os fundamentos psíquicos. A atividade vital pode ficar paralisada por omissões de todo tipo, por deveres
negligenciados, por obstinações deliberadas, de tal forma que uma determinada quantidade de energia, que não
tem mais utilização no consciente, reflui para o inconsciente onde vai ativar certos conteúdos (compensatórios) e
isso com tal intensidade, que começa a exercer uma ação coercitiva sobre o consciente”(JUNG, 1999[C], p. 49-
50,§372).
42
Além desta passagem, mais uma relação do sal com a negrura é encontrada em Mylius em sua Philosophia
Reformata, de 1622: “O que resta no fundo da retorta é o nosso sal, isto é, nossa terra, e é de cor preta, um
dração que devora sua própria cauda. Pois o dragão é a matéria que resta após a destilação de sua água, e aquela
90
em detalhes o simbolismo do sal na alquimia. Inicialmente pela relação próxima com a água
do mar, ele aparece como sinônimo do estado inicial ou prima materia. A passagem do
tratado alquímico Gloria Mundi43 diz: “Saiba que o sal de que Geber fala não tem nenhuma
das propriedades específicas do sal, no entanto é chamado um Sal, e ainda é um sal. É preto e
de mau cheiro.”44
Com frequência os alquimistas usaram as qualificações “mau cheiro”, “água fétida”,
“espírito fedorento” para qualificar a matéria primeira da arte, a qual devem todos alquimistas
trabalhar. A água fedorenta, é a mãe de todos os metais, do que, pelo que, e com que, os
filósofos preparam o elixir no começo e na extremidade; é a terra feculenta da qual todos os
filósofos falam. Grande parte desta água é feita preta e maus odores fazem alusão ao fedor
sepulcral e ao negrume da origem que lhe é inerente. Como assegura diz Basílio Valentim45
em sua primeira chave da filosofia:
Tens que saber, meu amigo, que todos os corpos imundos e leprosos são impróprios
para a nossa obra, pois a sua lepra e impureza não só não podem produzir algo de
bom como também impedem que o que é limpo possa engendrar.46
Entretanto estas qualificaçoes referentes ao estado inicial da matéria muito mais que
uma impureza de substancias; buscavam significar uma podridão e corrupção moral. Em uma
discussão psicológica, análogo ao primeiro processo geral da alquimia, a nigredo, o primeiro
estágio no processo de individuação, se caracteriza pelo encontro com a sombra. A sombra,
segundo Jung, “ constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu
como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender
energias morais” (JUNG, 1988, p. 6, § 14). Para que este processo ocorra, é necessário que a
atitude consciente aceite o que parece ser uma “critica do inconsciente”. Problemas morais
água é chamada de cauda do dragão, e o dragão é a sua negrura, e o dragão é embebido em sua água e coagula, e
deste modo devora a sua cauda” MYLIUS, Joannes Danielis. Philosophia reformata. Frankfurt, 1622, p.195.
Apud: JUNG,C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p.184,§ 238.
43
Incluído no Musaeum Hermeticum de 1625, embora tenha sido publicado primeiramente no alemão enquanto
Gloria Mundi sonsten Paradeiss Taffel, Frankfurt, 1620.
44
“Know that the Salt of which Geber speaks has none of the specific properties of salt, and yet is called a Salt,
and is a Salt. It is black and fetid.” THE GLORY of the world. (1620). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/glory1.html
45
Basílio Valentim, segundo os seus escritos, foi um monge pertencente à Ordem Beneditina, que viveu nos
princípios do século XV. Mas na opinião da maioria dos estudiosos, inclusive de Jung, os manuscritos não
podem ser anteriores ao século XVII. Entre seus livros mais famosos está As Doze chaves da filosofia, cuja a
versão de 1609 foi reproduzida em Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.119-147. Ao
que parece, este nome era apenas um pseudónimo que significa “rei valente”, por trás do qual, se esconde, na
opinião de Jung, como possível autor, Johan Toide de Turinga. Seja como for, a sua obra começou a ser
conhecida a partir de 1602.
46
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da Filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991,p. 123.
91
A alquimia anuncia uma fonte de conhecimento que, por assim dizer, é paralela,
senão até equivalente à Revelação, mas que fornece "água amarga" e não se
recomenda de modo algum ao julgamento humano. Ela é acre e amarga ou como o
vinagre (acetum/azedo), isto é torna-se árduo para uma pessoa aceitar a escuridão e a
negrura (...) e atravessar essas trevas da sombra. É amargo, na verdade, ter de
reconhecer - por trás de seus ideais tendentes para as alturas, por trás de suas
convicções parciais e freqüentemente pertinazes, mas por isso tanto mais acariciadas,
e por trás de suas reivindicações orgulhosas e heróicas - apenas egoísmo crasso ,
veleidades infantis e apegos de comodismo.(...) Como dizem os alquimistas, o
processo começa pela nigredo ou a produz como condição prévia da síntese, pois
jamais podem ser unidos os opostos que não estiverem constelados ou trazidos à
consciência (JUNG, 1997, p.249, § 338).
Este estado psíquico, onde a aparente unidade da pessoa se desagrega sob o impacto
do choque com o inconsciente, não se recomenda de modo algum ao julgamento humano pois
ela é a “água amarga”, e a “preparação para as umidades destruidoras”. Nesta tomada de
consciência da sombra, trata-se de reconhecer aspectos obscuros da personalidade, que é
indispensável para o autoconhecimento. Entretanto, isto implica em um trabalho árduo que
pode se estender por muito tempo.
A sudorese, pequena quantidade de sais dissolvidos, geralmente é o resultado de
grande fatiga e trabalho excessivo. Psicologicamente corresponde à secagem dos complexos
inconscientes que vivem na água, pois o desejo, exigência ou expectativa antes inconscientes,
primeiro aparecem em estado de identificação com o ego. Edinger em seu livro Anatomia da
92
47
Uma das versões da Visio Arislei se encontra no terceiro texto alquímico do primeiro volume da coleção de
textos alquímicos Artis Auriferae. Michael Maier reserva também uma versão intitulada “Epitalâmio em honra
das núpcias de Beia e de seu filho Gabrico” em Symbola aurea mensae duodecim nationum.Frankfurt, 1617.
Segundo Jung, Arisleu é uma corruptela de Archelaos, devido a uma transcrição árabe. Archelaos poderia ser um
alquimista bizantino do século VIII-XI. No entanto, uma vez que a Turba atribuída a Arisleu remonta à tradição
árabe, presume-se que Archelaos tenha vivido em época bem anterior. Ruska identifica-o com Anaxágoras.
93
quinta figura do Rosarium Philosophorum, onde se diz:”Com tal amor (Beya) abraçou o
Gabricus que ela mesma absorveu completamente a natureza dele e o dividiu em pedaços
indivisíveis.”48 Eis a gravura correspondente:
48
“...And she embraceth Gabrick with so great a love that she hath conceived him wholly in his nature and
divided him into inseperable parts.” THE ROSARY of the Philosophers (1550). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/rosary2.html
49
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary2.html
94
afogados, isto é, ficam retidos no inconsciente e caem na morte espiritual por não
serem capazes de desenvolvimento ulterior em sua orientação (JUNG, 1997, p. 192, §
251).
50
O Tratado da Pedra Filosofal, de Abraham Lambsprinck, apareceu pela primeira vez numa coletânea de textos
alquímicos, publicada em 1599, em Frankfurt, por Nicolau Bernaudo, que afirma tê-lo traduzido do alemão, de
“um manuscrito muito antigo”. Ele reapareceu em outras coletâneas similares, como por exemplo, no oitavo
volume do Museu Hermético, publicado em 1678, também em Frankfurt.
51
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html.
52
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 277.
95
... O separar a realidade das camadas da ilusão que a envolvem nem sempre é sentido
como agradável, mas muito antes como penoso e até doloroso (...) pois o
desmascaramento da realidade não somente é, em geral difícil, mas não raramente é
até perigoso. As ilusões não seriam tão frequentes, se elas também não fossem boas
para alguma coisa e se ocasionalmente não encobrissem um lugar delicado com uma
escuridão salutar, da qual às vezes se espera que jamais caia sobre ele algum raio de
luz (JUNG, 1990, p. 276, § 396).
Como foi visto anteriormente,a Visio Arislei traz o motivo do despedaçamento pela
água, isto é, a Solutio. Entretanto a dissolução em partículas traz também o tema do ferimento
e da tortura que remonta na alquimia ao tempo de Zózimos e suas visões, como já foi
mostrado no capítulo anterior. Segundo Jung, “nesta forma tão completa, o motivo aliás nao
retorna jamais” (JUNG, 1997, p. 29,§27). Eis a seguir o trecho final destas visões:
Com isto, caindo (em mim) de novo, voltei a adormecer (...) e, quando me aproximei
do lugar do sacrifício, o homem que levava a espada disse-me: “Corta-lhe a cabeça e
esquateja a sua carne e os seus músculos, pedaço a pedaço, a fim de que a sua carne
possa ser fervida segundo ensina o método, e possa depois sofrer o sacrifício”. Neste
ponto despertei e disse para mim: “Compreendo bem que estas coisas se referem aos
líquidos da arte dos metais.” E de novo, o que trazia a espada disse: “Completaste a
subida dos sete degraus.” E o outro, ao mesmo tempo que se fundia em chumbo por
acção de todos os líquidos, disse: “A obra está completa.”53
53
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
29.
96
54
Figura disponível em: disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/show.dml?id=1555.
97
Rosinus disse/ quis dar um ensinamento parabólico ao descrever (o quadro de) um ser
humano, que jazia morto/ e que ao mesmo tempo tinha o corpo extremamente alvo/
como o sal/ Seus membros estavam separados e sua cabeça era finalmente dourada/
mas separada do corpo/ próximo a ele se erguia um homem rude de face negra
terrível/ que tinha na mão direita uma espada de duplo corte, banhada de sangue/ era
o executor da pobre vítima/ na mão esquerda ele trazia um cartão sobre o qual estava
escrito: Eu te matei/ para que recebas uma vida superabundante/ mas devo esconder a
tua cabeça/ para que o mundo não te veja e espalharei teu corpo por toda a terra/ e o
enterrarei para que apodreça/ e se multiplique/ e produza frutos em incontável
abundância.55
55
Salomon Trismosin, La toison d`or, pp. 206-207. In: BELTRAN, M.H. R. Imagens de magia e de ciência:
entre o simbolismo e os diagramas da razão. São Paulo: EDUC 2000, p.76.
98
Aqui está o Pai suando por seu filho. E, no fundo do coração reza ao Senhor, que é
quem, na verdade, tudo pode, já que foi Ele quem criou tudo que há. Ele pede que de
si faça surgir, o Filho de seu corpo, a fim que possa Ressuscitar e retornar à vida
plena.57
Quando o rei se torna velho e necessitado de renovação, então se prepara o seu afundar
no banho ou no mar, sua dissolução e decomposição, o extinguir-se da luz em trevas, sua
renovação no estado de caos. Com isso se exprime o pensamento que a posição da
56
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html
57
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 285.
99
O lobo como prima materia devorando o rei (Michael Maier, Atalanta fugiens, 1617)58
Basílio Valentim, em seu livro mais famoso, as Doze chaves da filosofia, já citado
anteriormente, parece fazer referência à este emblema do Atalanta fugiens. No texto que
segue o primeiro emblema e “a primeira chave da filosofia”, Valentim assegura:
...se queres operar nas nossas matérias, pega um feroz lobo cinzento, o qual (...) é
encontrado nos vales e nas montanhas do mundo, onde ele perambula quase
selvagem com fome. Dê à ele o corpo do rei, e, quando ele o tiver devorado, queima-
o totalmente até as cinzas em um grande fogo. Por esse processo, o rei será libertado
(...) 59
58
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl21-5.html.
59
“If you would operate by means of our bodies, take a fierce grey wolf, which, (…) is found in the valleys and
mountains of the world, where he roams about savage with hunger. Cast to him the body of the King, and when
he has devoured it, burn him entirely to ashes in a great fire. By this process the King will be liberated (…)”
VALENTIM, Basílio (1609). As Doze Chaves da Filosofia. Acesso em:
http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html
100
...a morte do rei é um tempo de crise e de transição. O regicídio é o crime mais grave.
Psicologicamente, significaria a morte do princípio que rege a consciência, a mais
elevada autoridade da estrutura hierárquica. Por conseguinte, a morte do rei seria
acompanhada por uma dissolução regressiva da personalidade consciente. Esse curso
de eventos é indicado pelo fato de o corpo do rei servir de alimento a um lobo
raivoso; isto é, o ego foi devorado pelo desejo faminto. O lobo, por sua vez alimenta
o fogo. Mas lobo = desejo e desejo=fofo. Assim, o desejo consome a si mesmo.
Depois de uma descida ao inferno, o ego (rei) renasce, à feição da fênix, num estado
purificado ( EDINGER, 1999, p.39).
60
Do grego Therion = animal selvagem + morphé= forma, e significa, “em forma de animal”.
101
1997, p. 87, § 138). Já nas visões de Zózimo, o dragão aparece como sendo um dos símbolo
da prima materia:
...Observa bem de que lado se encontra a entrada do templo, toma uma espada em
tuas mãos e procura-a. Pois o lugar em que se acha o acesso à porta do templo é
exígio e estreito. Há um dragão estendido à porta; ele é o guardião. Subjuga-o
abatendo-o em primeiro lugar; depois deves escalpelá -lo; toma sua carne com os
ossos, retalha seus membros; junta a carne dos membros um a um como os ossos na
entrada do templo; faze assim um degrau para ti; sobe-o e entra, lá encontrarás o que
procuras (...)61
O dragão que devora a própria cauda é um antigo símbolo alquímico que representa o
“nous” devorado pelas próprias trevas no momento em que é abraçado pela “physis”. Ocorre
que “nous” e “physis” encontram- se em princípio como “caos”. Misturados um com o outro,
não há ainda discernimento. Enquanto a consciência não se manifesta, os opostos do
inconsciente permanecem latentes. Eles são ativados pela consciência e o “regius filius”, é
então tragado pela “physis”, adquirindo um predomínio sobre a consciência. O dragão é um
ser primitivo que vive nas cavernas, e em uma ánalise psicológica, representa uma
personificação da psique instintiva. Jung analisa o trecho acima das visões de Zózimo e
assegura:
61
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 65.
102
O mito do herói conhece a condição de ser tragado pela baleia, assim como Jonas foi
tragado pelo peixe e retido em seu ventre. A finalidade de todo conhecimento e de toda a opus
é a transformação e a ressurreição do adepto. Da mesma maneira como o heroi resgata a
donzela cativa do dragão, assim também o alquimista redime a anima mundi de sua prisão na
matéria por meio da mortificatio da prima materia.
Como foi visto no capítulo anterior, o sol é um sinônimo alquímico de ouro;
consequentemente, o rei no essencial é um sinônimo do Sol. Sendo assim, por vezes, o rei é
substituído pelo sol, onde ele, como consciência dominante é engolido pelo leão, isto é, como
mostra a décima oitava no Rosarium philosophorum:
62
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl21-5.html.
63
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/rosary5.html.
103
Estejas bem certo de que, se bem que nosso Mercúrio devora o Sol, não é da maneira
que pensam os Químicos Filosofistas. Porque, mesmo se o unes ao nosso Mercúrio,
após uma espera de um ano recuperarás o Sol intacto e em plena posse de sua virtude
primeva, se não o fizeste cozinhar ao grau conveniente de calor. Quem o contrario
afirmar, Filósofo não pode ser.64
... este animal régio, que já na época helenística era considerado como a etapa da
transformação do Hélio, significa o velho rei (...). Ao mesmo tempo representa ele, na
forma teriomórfica, o rei que se transforma, isto é, na forma em que ele, a partir de
seu estado inconsciente, se dá a conhecer. A forma animal exprime que o rei de certo
modo foi subjugado ou encoberto pelo leão e que por isso toda a sua manifestação de
vida consiste apenas em reações animalescas, que justamente nada mais são do que
emoções. Emocionalmente, no sentido de afetos desgovernados, é um assunto
essencialmente animal (...) (JUNG, 1990, p. 47-48, § 65).
Sendo assim, o leão, símbolo do poder vital e da soberania solar, é o rei dos animais e
aspecto teriomórfico do sol, ou uma etapa de transformação dele. Por isso, há também uma
versão com o próprio leão submetido à mortificatio, pela amputação de suas patas. A
64
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
104
65
Segundo Jung, o leão ígneo, quer representar “ a emocionalidade passional, que significa a etapa previa do
conhecimento de conteudos inconscientes” (JUNG, 1990, p. 46, § 64).
66
Parte da imagem tirada do frontispício do Songe de Poliphile (1600), editado por Béroalde de Verville. Figura
disponível em EDINGER, E. F. Ego e arquétipo. São Paulo: Ed. Cultrix, 2000, p. 285. Também disponível em
JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1991, p. 48.
67
JUNG, C.G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p.73,§ 116, nota 256.
105
conduz da maior profundidade, representada pelo aspecto primitivo do dragão na caverna, até
as maiores alturas, na águia solar. Do nivel animal e arcaico o alquimista busca-se o homem
místico.
Uma gravura em especial na “terceira chave dos filosofos” do tratado As doze chaves
da filosofia, de Valentim, retrata um dragão com asas e, logo acima da cabeça do dragão,
sobrepõem-se as imagens de um lobo e um pássaro; como pode ser visto à seguir:
A terceira chave dos filósofos (Basílio Valentim, As doze chaves da filosofia, 1609)68
O fogo pode sufocar-se e apagar-se com a água; muita água deitada sobre um pouco
de fogo faz-se dona deste. Assim se deve fazer o nosso sulfeto ígneo, moderado,
vencido e obtido devidamente pela água, para que depois a água ígnea devore e
68
Figura disponível em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html.
106
domine as águas e se retire. Mas não poderemos obter aqui uma vitória, se o rei não
tiver dado a sua virtude e força à sua água e não lhe tiver dado a sua virtude e força à
sua água e não lhe tiver proporcionado o seu libre e cor real, para com ele ser
dissolvido e convertido em invisível, devendo, contudo, aparecer outra vez e mover-
se à vista. E, ainda que isto não se possa fazer sem dano nem lesão do seu corpo, far-
se-á contudo com aumento da sua natureza e virtude.69
... Jung conseguiu provar o significado transpessoal da luta do herói porque não
tomou o aspecto familiar pessoal como o ponto de partida para o desenvolvimento
humano, mas sim o desenvolvimento e a transformação da libido. Nesse processo de
transformação da humanidade, a luta do herói desempenha um papel eterno e
fundamental na superação da inércia da libido, inércia que se apresenta no símbolo da
mãe-dragão circundante, isto é, do inconsciente (NEUMANN, 2003, p. 122).
69
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 127-128.
107
Mas Adonis é morto pelo varrão, (isto é, pela agudeza do vinagre, ou pela água se
dissolvendo, a qual possui dentes terríveis como um varrão) e tem seus membros
despreendidos e cortados fora. Mas Venus esforça-se para ajudar seu amante; e
quando ele estava morto, o estendeu e o preservou entre alfaces. 71
O porco e o javali, são animais que representam o aspecto selvagem da psique, por
serem vorazes glutões. Não à toa o texto compara a dissolução da água com os terríveis dentes
destes animais. Estes são os responsáveis pelo estado de desagregamento produzido pelo
impacto do choque com o inconsciente. A figura do cão também se encontra na alquimia
como um dos simbolismos para representar o aspecto da prima materia, isto é, da psique
instintiva. Tanto o lobo, o cão e até mesmo o leão, são colocados no mesmo nível, pois são as
forma de sangue quente do animal devorador e impetuoso. Cérbero, o guardião do inferno, era
um cão mostruoso, de cabeça tripla e cauda de dragão, com que violava todos os que iam ter
os infernos. Ele era o cão de Hades, o deus infernal. No sétimo capítulo do tratado alquímico
70
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl41-45.html.
71
“But Adonis is slain by the Boar, (that is, by the sharpness of Vinegar, or dissolving water, which hath terrible
teeth like a Boar ) and has his members loosened and cut off. But Venus endeavours to help her Lover; and when
He was dead, laid out and preserved him among Lettuces.” MAIER, Michael (1617) Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/atl41-45.html.
108
A Entrada aberta ao palácio fechafo do rei, Eirenaerus Philaletha, faz referência à figura do
cão72 :
Daí nascerá o Camaleão, quer dizer, nosso Chaos, onde estão escondidos todos os
segredos, não em ato, mas em potência. É esse o infante Hermafrodita, envenenado
desde o berço pela mordida do cão enraivecido de Corascena, por causa de uma
hidrofobia permanente, ou medo da água, que o torna louco e insensato; e agora que a
água é o elemento natural mais próximo dele, ele a abomina e foge dela. Ó Destinos!
Não obstante, encontram-se na floresta de Diana, duas pombas que suavizam sua raiva
insensata ( se as aplica com arte da Ninfa Vênus ). então para impedir que esta
hidrofobia o retome, mergulhe-o nas águas, e que ele pereça. Neste momento, o Cão
Negro Enraivecido, sufocado, incapaz de suportar as águas, subirá quase até a sua
superfície; persegue-o à forca de chuva e golpes, e faz com que fuja para bem longe;
assim desaparecerão as trevas. Quando a Lua brilhar plenamente, dará asas à Águia,
que voará (...).73
72
Segundo Jung, “...a figura do cão penetrou na alquimia ocidental pelo Liber Secretorum, que é um tratado de
Kalid, talvez escrito originariamente em árabe” (JUNG, 1997, p. 140-141,§169).
73
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
109
... De tal modo constitui a lua o caminho para o céu que os pitagoreus a designaram
como terra celeste e o céu terrestre e astro, porque a natureza inteira é inferior no
mundo dos elementos em relação ao intelligibile. (...) Na mesma proporção em que (a
lua) se afasta deste [o sol] para atingir a oposição, aumenta também a sua
luminosidade para nós neste mundo, mas desaparece no lado que olha para cima.
Reciprocamente, se ela está em conjunção quando para nós está obscurecida, se
encontra totalmente luminada de brilho na parte que está voltada para cima (para o
Sol). Isto acontece para nos ensinar que, quanto mais nosso intelecto descer para as
coisas dos sentidos, tanto mais se desvia das coisas inteligíveis, e vice-versa.75
Esta temática envolve toda uma problemática que a alquimia se viu envolvida, a saber,
a problemática da união simbólica do elemento animal com as mais elevadas conquistas
morais e intelectuais do espírito humano. Esta questão traz também o capítulo para o seu
objetivo central que é o de demostrar, sob a ótica junguiana, de que modo o primeiro grau da
Coniunctio de Dorneus está relacionado com a fase alquímica da nigredo. É compreensível
74
Segundo Jung, Blaise de Vigenere (1523-1596 ) era um conhecedor muito douto do hebraico. Na alquimia a
cabala foi aceita tanto direta como indiretamente, por isso é possível encontrar citações do Sohar.
75
Theatrum Chemicum.VI, p. 17. In: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p.
21, § 19.
110
também que se fez necessário abordarmos alguns aspectos essenciais presentes na simbólica
da fase seguinte, a albedo, de modo que se demonstre que quanto mais se caminha para uma
unio mentalis, mais se afasta da simbólica envolvida no contexto da nigredo e mais se
aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir
a respectiva fase “negra”.
III. 5. – A fase alquímica nigredo e sua relação com o primeiro grau da Coniunctio de
Gerardus Dorneus
...No mito alquímico do rei, a confrontação vem expressa pela colisão do mundo
paterno espiritual- masculino do Rex Sol (rei sol) com o mundo materno feminino-
ctônico da agua permanens (água eterna), ou respectivamente do “caos” (...) O
reflexo do Sol é a Luna feminina, que dissolve o rei em sua umidade. É como se o
Sol descesse e penetrasse na profundeza escura do mundo sublunar, para unir as
forças do (mundo) com as do inferior (...). A dominante da consciência, agora
tornada inoperante, desaparece de modo ameaçador nos conteúdos ascendentes do
inconsciente, pelo que ocorre primeiramente um obscurescimento da luz. O combate
entre a dominante da consciência do eu e os conteúdos do inconsciente é sustentado
primeiramente de modo que a inteligência procura colocar cadeias em seu oponente
(JUNG, 1990, p. 111-112, § 170).
76
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. O símbolo da transformação na missa. Rio de Janeiro:Vozes, 1991, p. 27.
77
Theatrum Chemicum. Vol. I, Ursel, 1602, p. 166. Apud: Jung, C. G. Misterium Coniunctionis. Rio de Janeiro:
Vozes, 1990, p. 268, § 386, nota 178.
78
Treatrum Chemicum. Vol. III, Ursel, 1602, p. 854 Apud: Jung, C. G. Misterium Coniunctionis. Rio de Janeiro:
Vozes, 1990, p.266, § 384, nota 162.
79
Treatrum Chemicum. Vol. II, Ursel, 1602, p.524s. Apud: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro:
Vozes, 1991, p.418, § 484, nota 171.
112
Nicolas Flamel (1330-1418), o mais célebre alquimista francês, em sua obra mais
famosa O livro das figuras hieroglíficas, também menciona a expressão “cabeça do corvo” no
texto sobre quarta figura que trata sobre a “Albificação” e o “Embranquecimento”. A figura
retrata um homem semelhante a São Paulo, vestido com uma roupa branco-alaranjada,
segurando uma espada e tendo a seus pés um homem ajoelhado. Na explicação da figura,
Flamel considera:
... Observa bem este homem na forma de São Paulo, vestido com uma roupa
inteiramente branco alaranjada. Se bem o considerares, ele vira o corpo em postura
que demonstra que ele quer tomar a espada nua, ou para cortar a cabeça, ou para
fazer qualquer outra coisa a este homem que está a seus pés de joelho, vestido com
uma roupa alaranjada, branca e negra, o qual diz em seu rolo: (…) suprime minha
negritude, termo da arte. Mas queres saber o que quer dizer este homem que toma a
espada? Significa que se deve cortar a cabeça do corvo, ou deste homem, vestido de
diversas cores, que está de joelho. Tomei esse desenho e figura de Hermes
Trismegisto em seu Livro da Arte Secreta, onde ele diz: Suprime a cabeça a este
homem negro; corta a cabeça ao corvo, ou melhor, embranquece nossa areia
(FLAMEL, 1973, p. 94).
Assim como o homem com a espada arranca a pele da cabeça de Ion, o dragão também
sofre o escalpelamento, ambos nas visões de Zózimo, em trecho já citado: “Há um dragão
estendido à porta; ele é o guardião. Subjuga-o abatendo-o em primeiro lugar; depois deves
escalpelá-lo”80 . O escalpelamento, segundo Jung, “deve significar um apropriar-se pars pro
toto do princípi da vida ou da alma” (JUNG, 2003, p. 73, § 93). A mesma operação realizada
com auxílio da espada aparece na segunda figura de Lambsprink:
80
ZÓZIMO. In: BERTHELOT, Marcellin. Collection der anciens alchimistes grecs. Paris 1887/88. Apud:
JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 65.
81
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html
113
O texto que acompanha a figura, assegura: “Os sábios afirmam que vive no Bosque,
um Dragão cuja a pele é de um negror completo. Mas se alguém lhe cortar a cabeça, ele perde
na hora sua escuridão. E se torna, inteiro, branco como a neve.”82 Jung comenta o significado
psicológico do símbolo alquímico da decapitação83 :
...A decapitação é importante como símbolo, por ser uma separação da “intelligentia”
(inteligencia) da “passio magna et dolor” (grande sofrimento e dor), que a natureza
causa à alma. Ela é como uma emancipação do pensar residente na cabeça, que é a
“cogitatio” (cogitação) ou uma libertação da alma “das cadeias do corpo”. Ela
corresponde à intenção de DORNEUS de estabelecer uma “unio mentalis in
superatione corporis” (união mental por meio da superação do corpo (JUNG, 1990, p.
269, § 387).
Logo que uma projeção é realmente retirada, se estabece uma espécie de paz – a
pessoa torna-se tranquila e é capaz de observar as coisas de um ângulo objetivo. Ela
pode examinar o problema ou o fator específico de forma objetiva e serena, e talvez
usar alguma imaginação ativa a respeito do mesmo sem se tornar constantemente
emocional ou recair no emaranhado de emoções. Isso corresponde à albedo e
constitui, de certa forma, o primeiro estágio do processo em que a pessoa se torna
82
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 54.
83
Edinger acrescenta: “That`s the unio mentalis. And, (…), one of the images for that phenomenon is
decapitation - beheading, separating the head from the body. That`s a stark and vivid image for the fact that
everything going on in the head gangs up against the body, doesn`t want to have anything to do with the body,
and so separates from it, (…)” [Esta é a unio mentalis. E, (...), uma das imagens para esse fenômeno é
decapitação - degolando, separando a cabeça do corpo. Esta é uma imagem completa e vívida para o fato que
tudo que vai sobre a cabeça conspira contra o corpo, não quer ter qualquer coisa a fazer com o corpo, e assim se
separa dele (...)] (EDINGER, 1995, p. 285).
84
Jung acrescenta: “A unio mentalis (união mental) representa, pois, tanto na linguagem alquímica como na
psicológica a ‘cognitio sui ipsius’ ou o conhecimento de si mesmo” (JUNG, 1990, p. 254, §370).
114
mais tranquila, mais despreendida e objetiva; filosoficamente mais imparcial. Ela tem
um ponto de vista au dessus de la melée; pode colocar-se no topo da montanha e
observar a tempestade que se desenrola embaixo e que ainda está naturalmente em
curso, mas pode ser vista sem medo ou sem que a pessoa se sinta ameaçada por ela
(VON-FRANZ, 1980, p. 195).
... o eu se revela fraco demais para se opor a necessária resistência aos afluxos dos
conteúdos do inconsciente e, é consequentemente assimilado pelo inconsciente, o que
dá origem a um enfraquecimento e obscurescimento da consciência do eu, a uma
identificação deste com a totalidade inconsciente. Tanto um como o outro destes dois
procedimentos impossibilitam a realização do eu [sem grifo no original] (JUNG,
1998[A], p. 161).
psicológica, de fato, essa assertiva deve ser tomada em sentido simbólico, e não de forma
literal. Os desejos devem ser mortos em sua forma projetada, de cunho obsessivo. Segundo
Jung:
... Não compensa mutilar por muito tempo o ser vivo pelo primado do espiritual,
razão pela qual mesmo o piedoso não pode impedir de sempre de novo pecar uma vez
ou outra, e o racionalista deve sempre de novo aborrecer-se com suas
irracionalidades. (...) Felizmente a natureza cuida de fazer com que os conteúdos
inconscientes mais cedo ou mais tarde despontem na consciência para aí provocar as
perturbações correspondentes. Uma espiritualização duradoura e livre de
complicações é por isso tão rara que seus detentores são canonizados pela Igreja
(JUNG, 1990, p. 226,§335).
85
TRISMEGISTO, Hermes. A Tábua de esmeralda de Hermes Trismegisto. In: EDINGER, E. F. Anatomia da
Psique. São Paulo: Ed. Cultrix, 1999, p. 247.
118
Latim de unio mentalis, que significa uma união mental, o qual ocorre simultaneamente a
separação da alma do corpo. Assim como para uma primeira Coniunctio, descrita na união da
alma com o espírito pelo alquimista Dorneus, foi necessário uma separação da alma do corpo,
assim também, na concepção alquímica da fase da nigredo, o metal dissolvido, triturado,
"despedaçado", entregará um grão puro, ou seja, a alma que ele traz em si mesmo. Assim
compreende-se porque os alquimistas ensinam aos verdadeiros adeptos que "o sapiente sabe
apaziguar a sua dor", uma alusão à necessidade da mortificação e da decomposição da
semente mineral, matéria prima da obra:
Em termos psicológicos isto significa que a união da consciência (Sol) com seu
parceiro feminino, o inconsciente (Lua), tem de início um resultado não desejado: daí
surgem animais peçonhentos, como dragão, serpente, escorpião, basilisco, sapo;
depois leão, urso, lobo, cão, e finalmente águia e corvo. Como se vê, aparecem aí
animais de rapina, primeiro os de sangue frio, depois os de sangue quente, e
finalmente as aves de rapina e o agourento devorador de carniça. Os primeiros filhos
do matrimonium luminarium são pouco agradáveis (JUNG, 1997, p. 138, § 167).
86
As pombas, por sua brancura, eram associadas à fase da albedo, e, “na alquimia representam elas, como todos
os seres alados, spiritus ou animae, (...) isto é, a substancia de transformação que é extraída” (JUNG, 1997, p.
150,§ 179).
119
... O sol percorre as diversas etapas da transformação passando pelo dragão, pelo leão,
pela águia até o hermaphroditus. Cada etapa representa um novo grau de compreensão,
sabedoria e iniciação “Nisi me interfeceritis” (se não me matardes) normalmente se
refere à mortificatio do dragão, que é, pois a primeira etapa perigosa e venenosa da
anima (=mercúrio) libertada da prisão na prima materia (Ibidem, p. 135, §163).
mentalis87 . Mas neste estado ideal e abstrato não se vive, desta maneira, demostrar-se-á de que
modo a fase alquímica da albedo está relacionada com a produção da Quintessência de
Dorneus.
87
Sobre este aspecto, acrescenta Edinger: “...is the first stage of coniunctio, namely the unio mentalis. That
would corresponds to a reductive analysis of the shadow (...)” [... é o primeiro estágio da coniunctio, a saber a
unio mentalis. Isso corresponde a uma restrita análise da sombra] (EDINGER, 1985, p. 280).
121
De modo geral, a afirmativa de que a Arte pode romper a coesão da matéria e isolar o
mercúrio do enxofre, corresponde à uma separação da alma das cadeias do corpo. O metal
dissolvido (Solutio), despedaçado (Separatio), e mortificado (Mortificatio) na fase da nigredo,
entregará um grão puro, ou seja, a alma que ele traz em si mesmo. Na linguagem dos
alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, e a aurora1 , que luta para nascer na
alma liberta do fardo corporal, goza de um espírito tão fugidio, que, pela sua volatilidade,
esta libertação das cadeias da prima materia era anunciada na fase “branca”. Já nas visões
oníricas de Zózimo, encontram-se referências à albedo, como se pode observar no trecho a
seguir:
Para alguns alquimistas, a obtenção da parte volátil da matéria, era suficiente para uma
comemoração, sob certo ponto de vista, precipitada, da conquista do elixir. Diz-se
“precipitada”, pois na opinião dos alquimistas mais respeitados, tal procedimento alquímico
não se configurava como o requisito necessário para a obtenção da “chave da obra”.
Aprofundando-se no estudo dos tratados clássicos de alquimia, a concepção mais aceita era a
de que, a alma liberta do fardo corporal, pela sua volatilidade, gozava de um espírito tão
fugidio, que o adepto se via no trabalho de fixá-lo em um corpo apropriado. Alberto Magno,
O Grande, no primeiro capítulo de seu tratado Compositum de Compositi, o Composto dos
Compostos, citado anteriormente, sobre o “Arsênico”, considera que alguns, “ignorando a
composição do Magistério, trabalham só com Mercúrio, pretendendo que ele tenha um corpo,
1
Jung acrescenta: “O alvejamento (albedo s. dealbatio) é comparado ao “ortus solis” (nascer do sol). É a luz que
surge após as trevas, a iluminação após o obscurescimento” (JUNG,1999[C], p138, § 484).
2
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
27.
122
... não se deve confiar no Mercúrio sublimado, nem dissolvido (já que) o total é
fugitivo (a não ser) no calcinado depois da dissolução, como disse o expositor em Luz
de Luzes: Estando sublimado é fugitivo do fogo e branco pela sua natureza, mas
depois do seu coagulante fica coagulado e calcinado, fixo e retido. 5
Conservai os vapores – ripostou Maria – e não deixeis que nada escape. Fazei o
nosso fogo em proporção com o calor do sol no mês de Junho e Julho. Mantendo-vos
junto do vosso vaso e vereis coisas que vos surpreenderão. Em menos de três horas a
vossa matéria tornar-se-á negra, branca e alaranjada; os vapores penetrarão no corpo
e o espírito ficará preso. A mistura tornar-se-á então como o leite penetrante e
fundente. Este é o segredo escondido. 6
Na citação de Maria, os vapores fazem alusão à alma liberta do fardo corporal, pela
sua volatilidade. Esta, deve retornar ao corpo, sendo por isso fixada em um corpo apropriado;
por isso a afirmação de que “os vapores penetrarão no corpo e o espírito ficará preso”.
A concepção da necessidade da fixação da alma em um corpo apropriado no
pensamento alquímico é bastante compreensível, pois o corpo sem a alma morrerá; segundo
Jung, como "é a alma que anima o corpo, e com isso representa o princípio de toda a
realização, então os filósofos não podiam deixar de observar que nesse caso o corpo e o
mundo dele estavam mortos” (JUNG, 1990, p.278, § 398). Neste sentido, antes da síntese
final do enxofre e do mercúrio, fazia-se necessário uma outra operação alquímica: a
purificação e regeneração da matéria. Para o alquimista, esta purificação e regeneração se
dava através de sucessivas destilações, onde o mercúrio, a "alma-espírito" é dissolvido
novamente na matéria e, se eleva novamente. Passando da alquimia greco-egípcia para a
alquimia árabe, observa-se que a obtenção da parte volátil da matéria pela nigredo e a
necessária fixação em um corpo apropriado na fase da albedo já se encontrava nos tratados de
3
MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm.
4
Bernardo Trevisano, ao que parece, deve ter vivido na segunda metade do século XVI. Alquimista renomado,
alquimistas como Basílio Valentim já fizeram suas homenagens à este alquimista.
5
TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, p. 75. Texto disponível também em: http://www.levity.com/alchemy/span01.html.
6
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70,1991, p. 38.
123
Morienus, nos Diálogos entre o rei Khalid e o filósofo Morienus sobre o magistério de
Hermes:
MORIEN – Antes de ser feita, tem um odor forte e cheira mal mas, uma vez feita,
cheira bem, isto fez exclamar o sábio: “Esta água deita o cheiro do corpo morto e já
privado da sua alma.” O corpo neste estado cheira muito mal, com um odor de
tumba. Por isso o sábio disse que aquele que tenha branqueado a alma, a tenha feito
subir pela segunda vez e tenha conservado bem o corpo e rechaçado toda a
obscuridade e mau cheiro, já poderá fazer entrar a alma no corpo, e quando estas
partes se juntam acontecem coisas maravilhosas.7
O “branquear a alma” denota que a obtenção da parte volátil da matéria pela nigredo,
ou seja, a alma liberta do corpo que “cheira mal”, necessita da fixação em um corpo
apropriado. Sendo assim, Morien, sob a afirmação de que “aquele que tenha branqueado a
alma, a tenha feito subir pela segunda vez”, chama a atenção para a purificação e regeneração
da matéria através de sucessivas destilações. O termo “segunda vez” ou “levanta-se outra
vez” denota que está operação é repetida, como na “Ethelia de Arisleus” citado em capítulo
anterior, que é embebida com sua própria água, até que “gere a brancura, que é a segunda
cor”. Assim se faz o Mercúrio dos filósofos, afirma Morien, conservando bem o corpo, tendo
“rechaçado toda a obscuridade e mau cheiro, já poderá fazer entrar a alma no corpo”. Isto é o
que atesta os alquimistas também ao dizer que é preciso que o corpo seja liquefeito com o seu
dissolvente, a fim de alterar a sua natureza corporal, até que, o corpo se converta em espiritual
e volátil e, o volátil, se converta em corpóreo e fixo. Este processo foi antigamente
desenvolvido pelos filósofos da arte no enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil
fixo. Esta operação é anunciada novamente por Morien neste trecho dos diálogos:
MORIEN – Toda a nossa operação consiste em nada mais do que tirar a água da terra
e voltar a pô-la outra vez na terra até que esta apodreça. Pois esta terra apodrece com
a água e limpa-se com ela; depois de se ter limpo, estará terminado o regime de todo
o Magistério, com a ajuda de deus. Esta é a operação dos sábios; é a terceira parte de
todo o Magistério. Ainda te advirto de que se não limpas bem o corpo impuro e não
secas e pões branco nem o animas, fazendo-lhe entrar uma alma, se não o libertas de
todo o seu mau odor de modo que, depois de se limpar, caia sobre ele a tintura e o
penetre, não terás feito nada no magistério por não teres observado bem o seu
regime.8
7
DIÁLOGOS entre o rei Khalid e o filósofo Morienus sobre o Magistério de Hermes. In: TRISMEGISTU,
Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 59.
8
Ibidem. p. 63-64.
124
anteriormente. Por isso, “tirar a água da terra” faz alusão ao mercúrio sublimado e,
consequentemente, à alma liberta do corpo. Segundo Morien, esta “água” deve ser tirada da
terra e posta outra vez, até que a terra esteje “limpa”. A terra aqui designa o princípio da
fixidez da matéria, e por isso estava associada à propriedade sulfurosa- ativa, ou seja, à secura
ígnea do fogo e à coagulação da terra e, neste sentido, à propriedade secativa/coaguladora dos
metais. Esta “terra” é o “corpo impuro”, o qual deve ser limpo e seco, reanimado, na fase da
albedo, “fazendo- lhe entrar uma alma”, segundo Morien. Somente assim, o alquimista liberta
o corpo “de todo o seu mau odor”, como afirma o alquimista acima, porque o revive.
O tema da subida e da descida do volátil se encontravam principalmente nas sentenças
da “Tábua de Esmeralda de Hermes Trismegistus” que orientaram toda a alquimia medieval:
“...Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra, e recebe as forças das coisas superiores e
das coisas inferiores”9 . Assim também, Fulcanelli, um dos últimos representantes da alquimia,
já no século XX, também assegura:
...A água viva "mais celeste do que terrestre", agindo sobre a matéria grave, rompe a
sua coesão, amolece-a, solubiliza-a pouco a pouco, prende-se apenas às partes puras
da massa desagregada, abandona as outras e sobe à superfície arrastando o que pode
agarrar de conforme à sua natureza ardente e espiritual. (FULCANELLI, 1990, p.
204)
Por este processo acima descrito, separava-se da mistura a parte mais volátil por
evaporação, seguindo da condensação. Esse processo era repetido diversas vezes, onde a
essência extraída é levada ao estado máximo de pureza pelo movimento circular continuado.
Assim, através do famoso axioma alquímico, "solve et coagula" (dissolve e coagula), o adepto
tenta, através de todos os meios, dissolver o que foi agregado e reunir o que foi separado. Daí
o termo “arte espagírica”, ou seja, aquela que separa e que reúne. As repetidas extrações do
espírito mercurial, estão na imagem alquímica a seguir: o eterno processo de sublimação está
simbolizado pela pomba que voa para cima e para baixo. A conjunção e a separação estão
representadas pelas sublimações repetidas:
9
TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 23.
125
...Tomai o corpo claro, colhido nas montanhas pequenas e que não se faz pela
putrefacção, mas apenas pelo movimento. Moei esse corpo com a goma Elzaron e os
dois vapores. A goma Elzaron é o corpo que agarra e prende o espírito, moei-o todo e
aproximai-o do fogo, então fundir-se-á todo e se o projectardes sobre sua mulher a
totalidade por-se-á como água que se destila e congelar-se-á ao ar, e só então será um
corpo. ... Tereis de saber que os vapores de que acabo de falar são as raízes desta arte
e são o Kibrick branco e a cal húmida, a que os filósofos deram toda espécie de
nomes.11
10
Reproduzido em: ROLA, Stanislas Klossowiski de. Alquimia. Madrid: Ed. del Prado, 1996, p. 114
11
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 38-39.
126
Na citação acima, a alusão à fase da albedo, já se faz notar pela qualificação “corpo
claro”, segundo o qual não se obtinha pela putrefação da matéria 12 . Se o procedimento
alquímico não se realizava mais pela putrefação da matéria, como afirma Maria, este deveria
ser realizado pelo movimento local, ou seja, pela sublimação filosófica, outro termo usado
pelos alquimistas para anunciar a fase “branca”, como se nota a seguir, na citação do pai da
alquimia árabe, Geber, em trecho do tratado A Suma Perfeição:
Digo que toda a Obra consiste em colher a Pedra – ou seja – a matéria da Pedra – que
deve ser já suficientemente conhecida por tudo o que já dissemos,e dar-lhe o primeiro
grau de sublimação com um trabalho assíduo, com o fim de tirar-lhe toda a impureza
que a corrompe. A perfeição, que a sublimação dá a esta Pedra consiste em torná-la
tão fluída que fique elevada à ultima pureza e fluidez, e se converta em algo volátil e
espiritual. Ter-se-á, então, que fixá-la com os processos de fixação (...) a fim de que
possa resistir ao fogo, por mais violento que seja e permanecer nele sem se evaporar.
Este é o fim do segundo grau de preparação, que é preciso dar a esta matéria. Por
meio do terceiro grau acaba-se de vez a preparação. Faz-se, sublimando esta Pedra
(ou esta matéria) que por meio dessa passa de sólida que era, a volátil; logo de volátil
a sólida e, estando dissolvida (após nova dissolução que precedeu uma fixação), faz-
se outra vez volátil e volta-se a fixá-la, (…).13
Dissolvendo o que foi agregado e reunindo o que foi separado, o adepto tenta, através
de todos os meios, a “arte espagírica”, por isso na citação acima a afirmação de que “o
trabalho da nossa pedra não é mais que a separação e a conjugação”. No quinto capítulo,
12
Kibrick branco e a cal húmida também pela coloração fazem alusão à albedo.
13
GEBER. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.
50-51.
14
MAGNO, Alberto (s.d.) Compositum de Compositis. http://pwp.netcabo.pt/r.petrinus/Alberto-p.htm
127
15
Loc.cit.
16
Loc.cit.
17
Grande sábio valenciano, Arnaldo de Villanueva ou Arnau de Vilanova, nasceu em 1245 e morreu em 1313.
18
“First sublime the substance, and purge it of all corrupting impurity; dissolve also, therewith, its white or red
additament till the whole is as subtle and volatile as it can possibly become. Then fix it by all methods till it is
able to stand the test of the fire. After that, sublime the fixed part of the Stone together with its volatile part;
make the fixed volatile, and the volatile fixed, by alternate solution and sublimation; so continue, and then fix
them both together till they form a white or red liquid Tincture. In this way you obtain the priceless arcanum
which is above all the treasures of the world.” VILLA NOVA, Arnald de. (1546) Summary of the Rosary of
Arnold de Villa Nova. Acesso em: http://www.levity.com/alchemy/arnoldus.html.
128
...É que quando o calor do Sol age sobre elas, transforma-se primeiramente em pó ou
graxa e viscosa, que, sentindo o calor, foge para o alto na cabeça do frango com a
fumaça, isto é, com o vento e o ar; desce aí, esta água, lançada e infusa com as
confecções, volta para baixo, e descendo reduz e resolve tanto quanto pode do resto
das confecções aromáticas, fazendo sempre assim (...). Eis porque se chama a isso,
sublimação, e volatilização, pois voa ao alto, e ascensão e descenso, porque sobe e
desce no vaso (FLAMEL, 1973, p. 86).
não assume mais a forma fluída, nem pela força do fogo se evapora. Na verdade, o que se faz
com este metal, é a destilação muitas vezes repetida. Até que ele seja, por fim, bem fixado”20 .
Também na oitava figura do seu Tratado da pedra filosofal Lambsprinck oferece,
como ele próprio assegura, uma Receita para a Albificação no texto que segue o título
referido. Assim como Flamel, Lambsprinck indica a necessidade de repetidas “embebições”
para a obtenção do Corpo Branco. Este deve ser colocado repetidamente em esterco de
cavalo, ou em banho- maria, até ser digerido por seu ar próprio, ou, segundo o alquimista, pelo
“espírito separado anteriormente do corpo. O corpo se torna Branco através da Arte e,
igualmente, o espírito se torna Vermelho através dela. A obra tende à perfeição da sua
natureza, e é assim que se prepara a Pedra Filosofal”21 .
Um século mais tarde, Basílio Valentim, em As doze chaves da filosofia também
oferece uma espécie de receita para a fixação em um corpo apropriado, na segunda chave da
filosofia. Segundo Valentim, do mesmo modo quando se casa o nosso esposo Apolo com a
sua Diana, “deve-se fazer- lhes diversas espécies de vestidos, lavar- lhes diligentemente a
cabeça e inclusive o corpo todo, com a água, que será preciso preparar com muitas
destilações, pois há muitas espécies de águas e umas são melhores do que outras”22 . Nota-se
nesta citação, que a preparação do corpo se faz através de uma lavagem, isto é, de uma
purificação, segundo a qual se promove atraves de sucessivas destilações23 . Mais à frente
Valentim assegura na quinta chave da filosofia:
... Ao olhar para um espelho, vê-se a reflexão das espécies, a própria imagem de quem
olha, e se alguém quiser tocar com a mão na sua imagem só tocará no espelho para
que olhou. Do mesmo modo deve tirar-se desta matéria um espírito visível que
contudo seja inatingível. Este espírito é a raiz da vida do nosso corpo, e o Mercúrio
dos filósofos, do qual se prepara industriosamente o licor da nossa arte, que tu
tornarás material uma vez mais; (...). O nosso começo é um corpo bem ligado e sólido,
o meio é um fugaz espírito e uma água de ouro sem corrosão, por meio do qual os
sábios gozam os seus desejos nesta vida. O fim é uma medicina fixa, tanto para o
corpo humano com para os corpos metálicos (...)24
espírito é a raiz da vida do nosso corpo, e o Mercúrio dos filósofos, como assegura Valentim,
segundo o qual deverá ser fixado em um corpo apropriado, por isso, a afirmação a seguir de
que “tu tornarás material uma vez mais”. Finalmente na terceira chave da filosofia, Valentim
assegura:
... O que não se pode fazer antes que o mar salgado tenha tragado um corpo e
arremessado este, sendo sublimado a um ponto que ultrapasse em muito o esplendor
dos outros astros e o seu sangue tão aumentado e aperfeiçoado, que possa como o
pelicano que criva o seu peito sem molestar a sua saúde e sem nenhum incômodo
para as outras partes do seu corpo, alimentar com o seu próprio sangue todos os seus
filhos. É esta a tintura dos filósofos de cor purpurina e o sangue vermelho do
Dragão. 25
Nota-se na citação acima, que o “tragar e o arremessar” do corpo pelo mar salgado é
mais uma expressão entre outras, como o “abre e fecha” e o “sobe e desce no vaso”, ou seja,
faz referência à subida e à descida do volátil no Opus Alchymicum. Esta operação é repetida
até que o corpo seja “sublimado a um ponto que ultrapasse em muito o esplendor dos outros
astros”, como assegura a recomendação de Valentim. Além disso, a citação de Valentim faz
menção à um importante símbolo alquímico, o Pelicano:
25
Ibidem, p. 128.
26
Reproduzido em: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 160.
131
27
PHILALETHA, Eirenaerus (1645). A entrada aberta ao palácio fechado do rei. Acesso em:
http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm
132
Conforme o axioma central da alquimia: “Non fieri transitum nisi per medium” (Não ocorre a
passagem a não ser por um meio), a coniunctio nem sempre representa uma união imediata e
direta, porque necessita de um certo meio. Tal procedimento é descrito pela alquimia, na
passagem do branco para o vermelho, respectivamente da albedo para a rubedo alquímica.
Psicologicamente, trata-se mais precisamente, da necessidade de protegermos o eu contra o
inconsciente e de integrarmos o segundo no primeiro. Etienne Perrot, autor do livro O
caminho da transformação, segundo C. G. Jung e a alquimia, acrescenta:
A obra é feita de vaivém, de subidas e descidas (...).Uma das grandes divisas da obra
é: Coagula, solve, “coagula, dissolve”. Coagula: fixa a tua atenção no fim desejado,
reforça a tua atitude consciente, firma-te, limita o círculo de teus interesses, evitando
distrações e, dentro de tua transformação, recua em relação às produções
inconscientes; enfim, de modo mais vasto, expõe-te aos raios de sol, ao calor e à luz
do amor que rege o universo, a fim de fazeres secar essa Pedra, que se aglomera em
teu vaso. Por outro lado, quando as circunstâncias internas e externas o exigirem,
solve, “dissolve”: abandona-te, abre-te ao mar do inconsciente, deixa subir em ti o
lodo viscoso, que é a matéria -prima da pedra, ou, em sentido mais restrito, usa mais a
liberdade, relaxa e distrai-te, como as crianças entre duas aulas difíceis (PERROT,
1998, p. 225).
Mercúrio é cozido no banho até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve.
(Salomon Trismosin, Splendor Solis, século XVI)28
28
As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está
disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/showpic.dml?album=1555&picture=11153.
134
... Em termos psicológicos, isso corresponde a uma forma de lidar com um problema
concreto. Ficamos “acima” dele quando o vemos objetivamente. Abstraímos um
sentido geral dele e o vemos como um exemplo particular de uma questão mais
ampla. O simples fato de encontrar palavras ou conceitos adequados para um estado
psíquico pode ser suficiente para que a pessoa se afaste dele o bastante para olhá-lo
de cima (EDINGER, 1999, p. 135).
Isso de hipótese alguma significa que a importância do consciente tenha que ser
diminuída, “significa apenas que se deve de certa forma ‘relativizar’ o consciente no caso de
uma valorização excessiva e unilateral do mesmo” (JUNG, 1999[C], p.156,§ 502). Enquanto a
consciência procura o sentido unívoco e as decisões claras, deve ela constantemente libertar-
se de argumentos e de tendências opostos; nessa tarefa especialmente os conteúdos
incompatíveis permanecem inconscientes. Quanto mais isso acontece, tanto mais inconsciente
permanece a posição oposta:
135
29
Segundo Jung, uma atenção muito exclusiva aos processos interiores pode ser prematura e constituir meio de
furtar-se às tarefas imediatas, o qual tem como símbolo o puer aeternus, o “menino eterno”. Há casos em que o
sonho manda retificar uma atitude que dá muita importância ao inconsciente. Uma atração pelo domínio
espiritual e oculto, por exemplo, pode ser acompanhada de uma fuga diante dos problemas concretos, pessoais.
136
alturas e sobre-humanas. A ele se opõe o feminino, obscuro, telúrico (yin), com sua
emocionalidade e instintividade que mergulha nas profundezas do tempo e nas raízes
do continuum corporal (JUNG, 2003, p. 19- 20, § 7).
Uma das dificuldades da obra é a de manter a medida entre a energia inconsciente, que
irrompe, e a capacidade de integração da pessoa no nível consciente. Ademais, Perrot conclui,
“o que o homem exige não é sublimação, mas integração, porque o fim não está nem em
cima, nem embaixo, mas no centro, num centro situado mais profundamente que o ego”
(PERROT, 1998, p. 128). Também sobre este aspecto, Jung afirma que “a confrontação da
consciência com o inconsciente significa de uma parte a dissolução da personalidade, e de
outra parte simultaneamente uma recomposição da totalidade” (JUNG, 1997, p. 214, §288).
Em outras palavras, necessita-se voltar a atenção para a psique arquetípica e estabelecer
contato significativo e real com ela, o que significa que deve-se fazê- lo de modo consciente,
pois assim é possível entender o processo simbólico subjacente a ela. Em uma discussão
psicológica deste processo, o indivíduo deve examinar novamente suas atitudes e falhas,
porque apenas de certo modo, os motivos inconscientes são reprimidos. Na realidade, a
pessoa é sempre de novo advertida por um ressentimento incômodo quanto à existência do
que foi recalcado:
... Quem quer que seja que no tempo hodierno quizer tentar no caminho análogo, a
verificação de sua segurança no confronto com a realidade, fará experiencias
semelhantes. Mais uma vez aquilo que criou para si despedar-se-á na colisão com o
mundo, e ele não deverá desanimar por ter de examinar sempre de novo onde sua
atitude ainda tem falhas e quais são os pontos cegos no seu campo visual (JUNG,
1990, p. 291, § 413).
Sabe-se que a geração dos metais circular no processo alquímico da albedo, pelo
enigma: torna o fixo volátil, e, de novo, torna o volátil fixo; segundo um círculo, diz respeito
as sucessivas extrações do espírito mercurial. Pela arte circular o alquimista buscava produzir
a pedra. A idéia clássica da circulatio, do movimento através dos quatro elementos, da
repetição do processo ainda e sempre num outro nível, é a idéia clássica de circum-ambulação
137
do Si- mesmo ou seja, entre outras coisas, do processo de individuação através das diferentes
fases da vida. Von Franz analisa o processo alquímico da Circulatio, e considera:
30
DORNEUS, Gerardus. In: Theatrum Chemicum I (1602), p. 500. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 88, § 115. nota 143.
31
Segundo Jung, “este tratado é de origem árabe, e foi impresso em Manget: Biblioteca Chemica, 1702, I, 409s”
(JUNG, 1997, p. 9, § 8, nota 39).
32
Theatrum Chemicum (1613) IV, p. 789. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,
2003, p. 89, § 115, nota 144.
138
...Mas a vossa matéria ainda não chegou à sua propriedade, pela qual possa ser
chamada Ovo Filosófico, e por cuja a disposição possa, em última instância, ser
transformada em elixir completo, como o ovo em pinto, já que toda a nossa matéria
não foi totalmente levada a espírito redondo, feito pela devida circulação, mas é antes
um corpo por si fixo, que não foge, um espírito fugitivo somente por si, sem o fixo, o
que faz com que isto não pareça ser um ovo, porque o uno repete o resto. (...) Pois
nem o corpo permite que se separe sem a sua natureza, nem o espírito quando sobe
sem a sua secura, se pode converter em elixires, porque por meio do vapor não
podem misturar-se uns com os outros, e esta é a razão porque os filósofos chamaram
Ovo ao seu Mercúrio, e isto é assim porque como o ovo é uma coisa circular,
redonda, que contém em si duas naturezas e uma substância, o branco e o amarelo,
tira de si mesmo outra coisa que tem alma, vida e geração, ou seja, a saber, sai um
33
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html.
34
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 158.
139
pinto. Assim também aqui o Mercúrio contém em si duas coisas de uma natureza,
corpo e espírito, e tira de si a alma e a vida (...) 35
35
TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 76. Texto disponível também em:
http://www.levity.com/alchemy/span01.html.
36
“Fifthly, that that water ought to be pure and clean, and should not be made but of a purged Dragon. And let
the Dragon be purged by elevating it three times and then by reviving it.” THE ROSARY of the Philosophers.
(1550) Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
140
A sublimação filosófica pelo “trabalho das mulheres” também aparece um século mais
tarde, no terceiro emblema do Atalanta Fugiens de Michael Maier:
37
As pranchas do Splendor Solis estão reproduzídas em vários sites na internet. Esta, em específico, está
disponível em: http://my.opera.com/Filectio/albums/showpic.dml?album=1555&picture=11166.
141
A sublimação filosófica no trabalho das mulheres que é ensinado pela natureza (Michael
Maier, Atalanta fugiens, 1617)38
Quando as roupas de linho são poluidas e sujas pelo imundície terrestre (física), estas
são limpas pelo elemento seguinte a ele: a saber a Água; e então extraídas pelo calor
do sol como pelo fogo, que é o quarto elemento, e se isto for repetido
frequentemente, se torna limpa & livre das manchas. Este é o trabalho das mulheres
que é ensinado pela Natureza. Para nós vermos (...) se estiverem frequentemente
molhada com chuva assim como secas frequentemente pelo calor do sol será
reduzido a uma brancura perfeita.39
38
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl1-5.html.
39
“When Linen Clothes are soiled & made dirty by earthy Filth, they are cleaned by the next Element to it:
Namely Water; & then clothes being exposed to the Air, the moisture together with the Faeces is drawn out by
the heat of the Sun as by fire, which is the fourth Element, & if this be often repeated, they become clean & free
from stains. This is the work of women which is taught them by Nature. For we see (…) if they are often wet
with Rain & as often dried by the heat of the Sun will be reduced to a perfect whiteness” MAIER, Michael
(1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl1-5.html.
142
... esse trabalho consiste, entre outras coisas, na lavagem constante; por conseguinte,
até o trabalho da lavadeira é frequentemente mencionado no livro, ou a constante
destilação, o que também é feito com o propósito de purificação, pois o metal se
evapora e depois é precipitado num outro recipiente, removendo assim as substâncias
mais pesadas (VON-FRANZ, 1980, p. 194).
Deste fato também se conclui que a água referente à esta fase não está mais associada
à preparação para as umidades destruidoras descritas na fase “negra”, através do tema do
afogamento e da dissolução, no qual o rei se banha, mergulha ou se afoga; de modo geral, a
água que anuncia a fase da albedo é purificadora, isto é, é o orvalho, a água celeste, pois é “a
alma que desce do céu é idêntica ao orvalho, à “aqua divina” que significa o “rex de coelo
descendens” ( o rei que desce do céu)” (JUNG, 1999[C], p. 150, § 497). Basílio Valentim na
terceira chave da filosofia considera:
E tens que saber que se alguns vapores e nuvens se elevam da terra e se amassam no
ar, voltam a cair por causa do peso natural da água e a terra recebe mais uma vez a
sua humidade perdida com a qual se deleita e alimenta e pela qual se acha mais
própria pra produzir o seu fruto. É por isso que é preciso reiterar as preparações das
águas com muitas destilações, de maneira que a terra se empape com frequencia na
sua humidade. E tal humor tantas vezes obtido (seco), tal como o Euripo, deixa
frequentemente a terra em seco, depois volta sempre, até construir o palacio real, com
esforço, enfeitado, com grande cuidado e que o mar de vidro o tenha enriquecido,
com o fluxo e o refluxo, com muitas riquezas, o rei já poderá entrar e habitá-lo. 40
40
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.126.
41
O Mutus Liber é reconhecidamente uma das mais importantes obras da tradição alquímica. Composto de 15
pranchas, gravadas por Altus (La Rochelle, 1677), descreve os passos para a realização da Grande Obra apenas
por imagens.
143
Em especial nesta prancha, o alquimista e sua soror mystica recolhem aqui o orvalho
celeste. O casal colocou lençóis pregados em cima de quatro piquetes e deixou-os toda a noite
para que se impregnassem desse elemento sutil. José Jorge de Carvalho, doutor em
Antropologia, especialista em religiões comparadas, mitologia e arte, responsável pela
pesquisa e recompilação que culminou no mais completo estudo iconográfico e simbólico do
Mutus Liber, com relação à “flor do céu” nesta prancha, isto é, ao “orvalho celeste” assegura
que “a flor celeste representa a um só tempo o espírito (o que está em cima) que se tornou
42
Figura disponível em: http://perso.orange.fr/pensee.sauvage/L2/alchimie/mutus.htm
144
denso e a matéria (o que está em baixo) que se tornou sutil” (CARVALHO, 1995, p.92).
Ainda sobre o orvalho celeste, Basílio Valentim na quinta chave da filosofia chama a atenção
para o aspecto revificador deste:
Por isto conhecerás que a vida é um puro espírito, é a razão por que tudo aquilo que o
ignorante crê morto deve viver com uma vida inatingível, mas visível, espiritual e ser
conservado nela. Se queres que a vida coopere com a vida, devem alimentar-se estes
espíritos com o orvalho do céu,e tomarão a sua extracção de um ser celeste elementar
e terrestre que se chama materia sem forma.43
Deste fato se conclui que a a água na alquimia é aquela que mata e, também, revive a
matéria; neste sentido, tem ela, pois, segundo Jung, um “efeito duplo e oposto entre si”
(JUNG, 1990, p. 19, § 12). No texto que acompanha a segunda imagem alquímica, o
Rosarium Philosophorum ainda afirma que esta água “chamaram- na água da purificação ou
putrefação, e falaram a verdade, porque é purificado por sua água ou purificado de sua
obscuridade. É lavado e feito isso branco e mais tarde vermelho”44 . Ainda no texto que
acompanha a primeira figura, referindo-se ao Espelho da alquimia de Roger Bacon, na
seguinte citação sob o título “The mirror” afirma-se :
…até que o espírito e o corpo forem feitos todos um, de modo que os corpos
corpóreos sejam feitos incorpóreos, e incorpóreos sejam corporificados
Conseqüentemente, a água é a coisa que faz o branco e o vermelho É a água que mata
e revive. É a água que queima e faz quente. É a água que dissolve e coagula.45
Assim como a água que mata e revive, o simbolismo alquímico do Pelicano, traz
conotação correspondente; isto é, anteriormente foi observado a sublimação filosófica no
simbolismo alquímico do pelicano; entretanto, não foram esgotados os significados profundos
desta alegoria alquímica46 . Em outra parte da Citação do Tractatus Aureus Hermetis,
encontra-se a seguinte afirmação: “Ao aplicar o bico ao peito, curva ele todo o pescoço
juntamemte com o bico formando um círculo ... o sangue que escorre do peito devolve a vida
43
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p.132.
44
“… they have called it water of their purification or putrefaction, and they spoke the truth, because it is
purified by their water or purified from its blackness. It is washed and it maketh it white and afterwards red”
THE ROSARY of the Philosophers. (1550). Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
45
“…till the spirit and body be made all one, so that the corporate bodies be made incorporate, and the
incorporate be made corporate Therefore, water is the thing which maketh white and red. It is the water which
killeth and reviveth. It is the water which burneth and maketh hot. It is the water which dissolveth and
congealeth.” THE ROSARY of the Philosophers (1550). Acesso em:
http://www.alchemywebsite.com/rosary1.html.
46
Jung acrescenta: “...O pelicani rasga o peito para alimentar seus filhotes, sendo por este motivo uma conhecida
alegoria do Cristo” (JUNG, 1999[C], p. 177, §533).
145
aos filhotes mortos”47 . Eis o que pretendiam também significar com outro axioma Matar o
vivo para revificar o morto:
Esta formosa ave, cujas as asas são emblemas da volatilidade e expressão da pureza,
assim como a "água viva mais celeste do que terrestre", possui evidentemente as duas
qualidades essenciais do mercúrio. Este mercúrio que foi libertado inicialmente do fardo
corporal, pelo processo de dissolução, trituração e, despedaçamento, mencionados no capítulo
anterior. Este deve porém ser "sacrificado", porque fixado e coagulado novamente. Sendo
assim, a matéria que estava morta, porque separada do espírito mercurial, revive. Neste
capítulo, observamos a imagem alquímica do Splendor Solis, onde Saturno é cozido no banho
até que seu espírito, a pomba branca, dele se eleve. Ainda com relação à este, BasílioValentim
na nona chave da filosofia chama a atenção para o fato de que, ainda que Saturno tenha
adquirido,por sua vontade, o lugar mais alto sobre os demais planetas, deve, contudo, cair
abaixo de todos, isto é, “cortando- lhe as asas”:
Saturno, o mais alto dos planetas, é o mais baixo e abjecto do nosso magistério;
contudo, possui a primeira chave e, sendo vil e carecendo quase de autoridade, ocupa,
apesar de tudo, o melhor lugar. Ainda que tenha adquirido,por sua vontade, o lugar
mais alto sobre os demais planetas, deve, contudo, cair abaixo de todos, cortando-lhe
as asas e, com a sua morte, alcança toda a perfeição da obra, a fim de que o negro se
transforme em branco e o branco em vermelho. (...) E ainda que saturno pareça o mais
vil e menor de todos, tem, contudo, grande virtude e eficácia. A sua nobre essência (
que na realidade é um frio muito grande) junta-se com um corpo metálico volátil e
ígneo, que o torna fixo e sólido e inclusivamente mais firme e permanente que ele
mesmo. Essa transmutação toma a sua origem no mercúrio, no sulfureto e no sal. (...)
Mas quanto mais vil e abjecta é a matéria, mais elevado e subtil tem de ser o espírito
(...) 48
47
“Dum enim rostrum applicat pectori, totum volum cum rostro flectitur in circularem formam ... sanguis
effluens e pectore mortuis reddit vitam.” Manget, 1.c.I, 444b. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 9, §8, nota 40. O mesmo pensamento se repete no texto de Valentim citado
anteriormente: “o pelicano que criva o seu peito sem molestar a sua saúde para alimentar com o seu próprio
sangue todos os seus filhos.” VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et
al. Alquimia e ocultismo. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.
48
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo.
Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 141.
146
Tanto o verdadeiro pelicano filosófico, que criva o seu peito para alimentar com o seu
próprio sangue os seus filhos, assim como a expressão alquímica recorrente de que “a águia
pode ter suas asas amputadas”, como se observa na citação acima através da expressão
“cortando- lhe as asas”, em uma análise junguiana deste processo, significa a morte do estado
abstrato e ideal, pois é necessario insuflar “sangue”49 e, reanimar a emocionalidade e a
instintividade do corpo. Assim como a água que mata e revive, o simbolismo alquímico do
Pelicano traz conotação correspondente ao orvalho celeste da albedo, isto é, é o sangue e a
umidade anunciando o retorno da alma50 . No capítulo anterior, o tema da decapitação na fase
da nigredo, do ponto de vista psicológico do Opus Alchymicum demonstrou ser importante
símbolo da separação da inteligência do grande sofrimento e dor, que a natureza (aspecto
instintivo do corpo) causa à alma. Entretanto, na fase da albedo, a recomendação de que “a
águia pode ter suas asas amputadas”, do ponto de vista psicológico, significa que o que deve
ser excluído na fase da albedo é a unilateridade da consciência, desenraizada da experiência
imediata com a base inconsciente, para que assim, desta maneira, se volte para o corpo.
Sabe-se que Jung entendia o processo de individuação um processo intencional de
diferenciação psicológica que tem como fim o afastamento do indivíduo da base coletiva para
realizar seu destino próprio individual. Sobre este aspecto em especial, Jung analisou uma
sonho dos sonhos da série publicada em Psicologia e Alquimia, no qual a impressão visual
hipnagógica, do quarto sonho é descrita da seguinte maneira: “O sonhador está cercado por
muitas formas femininas indistintas. Uma voz interior diz- lhe “primeiro preciso separar- me
do Pai” (JUNG, 1991 [A], p. 59, § 58). Jung faz a seguinte análise psicológica do sonho:
49
Nas visões de Zózimo encontramos a seguinte citação, indicando a passagem da fase alquímica da albedo para
a rubedo: “De novo, ví o mesmo altar sagrado em forma de caldeiro e ví também um sacerdote vestido de
branco, que estava a celebrar aqueles temerosos mistérios. “Quem és?”, perguntei-lhe. Ele respondeu-me: “Sou
o sacerdote deste Santuário. É preciso meter sangue nos corpos, aclarar os olhos e ressuscitar os mortos.”
ZÓZIMO. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 29.
50
O sangue segundo Jung, “é um dos sinônimos mais conhecidos da aqua permanens (água eterna) e se apóia
muitas vezes na simbólica e na alegórica eclesiásticas do sangue” (JUNG, 1990, p. 43-44, § 61).
147
amparado pela tradição e pelo meio ambiente, quando se depende de um hábito que tem o
caráter de lei. É um estágio que se aceita passivamente, um estado de não-reflexão. Isto
significa o sacrifício das perspectivas comuns e a volta para uma ordem de valores que
ultrapasse os limites do eu; como afirma Perrot, seria “o bom senso das realidades profundas
da alma que zomba do bom senso exterior como a verdadeira eloquência zomba da
eloquência” (PERROT, 1998, p. 209). Afastar-se do mundo do Pai significa a aceitação de
caminhos estranhos, de saída imprevisível, revelado no sonho pela atração decisiva pelo
inconsciente (anima). Este último não deve, no entanto, ser subordinado aos julgamentos
racionais da consciência, “mas tornar-se vivência sui generis. O intelecto não aceita isto
facilmente, porque se trata de um ‘sacrificium intellectus’ que, embora não sendo total, é ao
menos parcial” (JUNG, 1991 [A], p. 60, § 59).
Entretanto Jung alerta para o fato de que esta “relativização”da consciência, não deve
chegar a ponto de permitir que o fascínio exercido pelas verdades arquetípicas subjugue o eu:
Edinger nomeou esse processo de coniunctio inferior, ou seja, uma união dos opostos que
foram separados de maneira imperfeita. O produto era sempre “um elemento morto, mutilado
ou fragmentado (uma sobreposição com o simbolismo da solutio e da mortificatio)”
(EDINGER, 1999, p. 228). Isso aparece mais claramente no Rosarium Philosophorum, onde a
nigredo não aparece como estado inicial, mas já como o produto de um processo anterior51 .
No Rosarium Philosophorum, isto acontece no abraço Beya em Gabricus: ela mesma
absorveu completamente a natureza dele e o dividiu em pedaços indivisíveis.
Psicologicamente, a coniunctio inferior sempre ocorre quando um ego se ident ifica com os
conteúdos inconsciente; o eu se revela fraco demais para se opor a necessária resistência aos
afluxos dos conteúdos do inconsciente e, é consequentemente assimilado pelo inconsciente52 ;
isto “gera inevitavelmente uma inflação do eu, caso não se faça uma separação prática entre
este último e as figuras inconscientes.” (JUNG, 1988, p. 21, § 44). Naturalmente será preciso
defender a realidade contra um estado fantasioso. O eu vive no tempo e no espaço e precisa
ajustar-se às leis desta realidade para poder subsistir. Neste sentido, a disciplina, por sua vez,
51
A Coniunctio inferior aparece também no Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, no qual, na décima
terceira prancha o rei como prima materia devora o filho. Na décima quarta prancha, a necessidade da
purificação da matéria é retratada através da imagem, na qual o rei transpira para que “o óleo e a tintura certa dos
filósofos jorre dele”. Ele pede a Deus que lhe restitua o único filho, que devorou. Posto isto, é-lhe enviada uma
chuva astral (orvalho), que dissolve o seu corpo enquanto dorme. Na décima sexta prancha, o pai que sofre então
uma completa transformação, primeiro numa “água transparente” e depois, numa “terra fecunda”, gerou um
novo filho. A prancha reproduz assim, o Pai (corpo), o Filho (espírito) e o guia (alma), que formam um só por
toda a eternidade.
52
Jung acrescenta: “Assim é que uma consciência masculina, por exemplo, cai sob a influência da anima,
podendo até mesmo ser possuido por ela” (JUNG, 1988, p. 21,§ 43)
148
53
Reproduzido em: PERROT, Etienne. O caminho da Transformação. São Paulo: Ed. Paulus,1998, p. 68.
Também disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.alchemywebsite.com/amclglr6.html
150
54
“Hoc accipe quod in sterquiliniis suis calcatur, si non absque scala ascensurus cades in caput”. Morienus.In:
PERROT, Etienne. O caminho da Transformação: segundo C. G. Jung e a alquimia. São Paulo: Ed. Paulus,1998,
p. 68.
55
Segundo Jung, “é o afastamento do homem em relação aos instintos a sua oposição a eles que cria a
consciência” (Idem,1998 [A], p.337).
151
ou seja, assimilados ao eu, o que denota novamente o perigo da inflação56 , embora por
motivos contrários:
56
Jung acrescenta: “... quanto maior for o número de conteúdos assimilados ao eu e quanto mais significativos
forem, tanto mais o eu se aproximará do si-mesmo, mesmo que esta aproximação nunca possa chegar ao fim.
Isto gera inevitavelmente uma inflação do eu, caso não se faça uma separação prática entre este último e as
figuras inconscientes” (JUNG, 1988, p. 21, § 44). Neste sentido, quando o homem se identifica com os
conteúdos a serem integrados, ocorre uma inflação positiva ou negativa. A inflação positiva, segundo Jung, “
assemelha-se a uma megalomania mais ou menos consciente; a inflação negativa vai resultar num aniquilamento
do eu. Também pode acontecer que esses dois estados se alternem.Em todo caso, a integração de conteúdos que
sempre estiveram inconscientes e projetados significa uma grave lesão do eu” (JUNG, 1999[C], p. 129, § 472).
57
O primeiro estágio da coniunctio, a saber a unio mentalis, corresponde a uma restrita análise da sombra.
Entretanto, no segundo estágio, a saber, a união da unio mentalis com o corpo, é necessário que antes o indivíduo
se defronte com a sua anima, como será visto maios adiante neste capítulo. Sobre este aspecto Jung acrescenta:
“A sombra pode ser integrada de algum modo na personalidade, enquanto certos traços como o sabemos, opõem
obstinada resistência ao controle moral, escapando portanto a qualquer influência. De modo geral, estas
resistências ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um
grande esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo. Os traços da sombra podem ser
reconhecidos, sem maior dificuldade, mas tanto a compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção
parece provir, sem dúvida alguma, de outra pessoa (...)” (JUNG, 1988, p. 7, § 16).
58
Sobre este aspecto acrescenta Jung: “...Quem não é suficientemente responsável, por exemplo, precisa de um
desempenho moral, a fim de que possa satisfazer a mencionada exigência. Para aqueles, porém, que são
suficientemente enraizados no mundo, em virtude de seus próprios esforços, vencer suas virtudes, afrouxando,
de algum modo, os laços de sua relação com o mundo e diminuindo a eficácia de seu esforço de adaptação,
representa um desempenho moral notável” (Idem, 1988, p.23, § 47).
152
É necessário perder-se para ganhar-se, abandonar a linha que nos tínhamos fixado,
renunciar aos planos de cinco ou dez anos, para seguirmos uma lei mais profunda,
mais vasta, porque é a lei do mundo tal como nós, por nossa parte, devêmos vivê-la, a
lei da transformação universal, que é a maneira pela qual a divindade imutável se
manifesta no tempo e no espaço, aqui, em mim e através de mim. Que isso não se
verifica sem incerteza, sem noite, sem crise, é inevitável. Tudo o que ameaça a
autonomia do eu é fonte de temor (PERROT, 1998, p. 270).
Uma vez que realizou a divisão da uroboros no par de opostos – os “pais do Mundo”
– colocando-se no meio deles, o “filho” estabeleceu com esse ato a sua
masculinidade e saiu-se bem no primeiro passo da sua emancipação. O ego no meio
dos Pais do Mundo provocou a inimizade de ambos os lados da uroboros, atraindo a
fúria do superior e do inferior. Agora ele está diante da iminência daquilo que
chamamos a “luta com o dragão”, isto é a guerra com esses opostos (NEUMANN,
2003, p. 121).
153
59
Jung acrescenta: “A função de valor, ou seja, o sentimento, constitui parte integrante da orientação da
consciência; por isso, não podem faltar em um julgamento psicológico mais ou menos completo, pois de outra
forma o modelo do processo real a ser produzido seria incompleto. É inerente a todo processo psíquico a
qualidade de valor, isto é, a tonalidade afetiva. Esta tonalidade indica-nos em que medida o sujeito foi afetado
pelo processo, ou melhor, o que este processo significa pra ele na medida em que o processo alcança a
consciência. É mediante o ‘afeto’ que o sujeito é envolvido e passa, consequentemente, a sentir todo o peso da
realidade.(...) Psicologicamente não se possui o que não se experimentou na realidade. Uma percepção
meramente intelectual pouco significa, pois o que se conhece são meras palavras e não a substância a partir
dentro” (JUNG, 1988, p. 31, §61).
154
Considerai bem esses dois dragões, pois que são os verdadeiros princípios da
filosofia, que os sábios não ousaram mostrar a suas próprias crianças.O que está
embaixo, sem asa, é o fixo, ou macho; o que está em cima, é o volátil, ou bem a
fêmea negra e obscura, que será chamada de muitos nomes. O primeiro é chamado
enxofre, ou então calidez e secura, e o último, prata-viva, ou frigidez e umidade. São
o Sol e a Lua de fonte mercurial e origem sulfurosa, que pelo fogo continuado
60
O pensamento e o sentimento são funções da consciência sempre em oposição. Ao lado do pensamento, por
exemplo, não pode aparecer, como função secundária, o sentimento, pois, segundo Jung, “ sua natureza está em
demasiada oposição à natureza do pensamento” (JUNG, 1991[C], P. 382, § 736). Este conhecimento é um pré-
requisito indispensável para qualquer compreensão da integração dos opostos, pois como assegura Jung, “...
precisa-se, no mínimo, de duas funções ‘racionais’ para se esboçar o esquema mais ou menos completo de um
conteúdo psíquico” (Idem, 1988, p. 26, § 52 ). Se o indivíduo for do tipo sentimento, por exemplo, a função mais
desvalorizada será o pensamento. Neste caso resultará em um indivídio cuja a observação rancorosa, venenosa e
efeminada que ele emprega para desvalorizar todas as coisas, é provocada pelo ofuscamento animoso. Jung
completa: “... Por certo é possível que haja também muitos homens que argumentem de maneira bem feminina,
naqueles casos, por exemplo, em que são predominantemente possuídos pela anima, razão pela qual se
transmudam no animus da sua anima” (Idem, 1988, p. 12-13, §29).
155
tornam-se de hábitos reais, para vencer toda coisa metálica, sólida, dura e forte, assim
que estiverem unidos num só, e mudados em quintessência. São as serpentes e
dragões que os antigos egípcios desenharam em círculo, a cabeça mordendo a cauda,
para dizer que se originavam de uma mesma coisa, e que ela só bastava a si mesma e
que em seu circuito e circulação ela se aperfeiçoava (FLAMEL, 1973, p. 82).
Nota-se na citação de Flamel que o enxofre está associado ao leão sem asas, isto, é, ao
fixo, ao macho e ao Sol, consequentemente ao ouro. O mercúrio está associado ao leão com
asas, isto é, ao que está em cima, ao volátil, à fêmea, à Lua e à prata-viva. Também o
alquimista Lambrisprink na sétima figura do Tratado da Pedra Filosofal, retrata na imagem
alquímica a seguir, os dois pássaros de Hermes, ou seja, o pássaro que já aprendeu e aquele
que ainda não aprendeu a voar:
61
Figura dis ponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html
62
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 182-183.
156
Jung analisa especialmente esta imagem alquímica,na qual estes opostos são
simbolizados por dois pássaros no mato, um já emplumado e o outro ainda implume, e
considera que “aqui a oposição dos dois pássaros indica antes a oposição entre o espírito e
corpo” (JUNG, 1997, p. 4, § 3). Nota-se que o caracol com sua concha circular remete a
destilação circular da obra. O mesmo tema reaparece no sétimo emblema do Atalanta
Fugiens, o qual retrata um filhote de águia que tenta voar fora de seu próprio ninho e cai nele
outra vez:
63
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl6-10.html.
64
“...Therefore the supreme creator composed the whole system of this whole world of diverse & contrary
natures, namely of light & heavy, hot & cold, moist & dry, that one might by affinity pass into the other, & so a
composition be made of bodies which should be very different one from another in Essence, Qualities, Virtues &
Effects. For in things perfectly mixed are the light Elements, as Fire & Air, & likewise the Heavy, as Earth &
Water, which are to be poised and tempered together, that one flies not from the other.” MAIER, Michael
(1617). Atalanta fugiens. Acesso em: http://www.alchemywebsite.com/atl6-10.html.
157
A imagem alquímica a seguir, retrata o tema da tensão dos opostos através daquele que
está solto e o que está preso, ou o mercúrio e o enxofre sob a imagem de uma águia e um
sapo:
O que está solto e o que está preso, ou o mercúrio e o enxofre sob a imagem de uma águia e
de um sapo. (D. Stolcius v. Stolcenberg, Viridarium chymicum, 1624)65
... O sapo “está em oposição ao ar, é o elemento oposto a este, a saber a terra, na qual
unicamente pode ele movimentar-se a passo lento, e jamais ousa ele ir para qualquer
outro elemento. A cabeça dele é muito pesada e se inclina para a terra. Por esse
motivo representa ele a terra filosófica, a qual não pode voar (isto é, ser sublimada)
por ser firme e sólida. Sobre ela como base ou fundamento, deve ser edificada a ‘casa
dourada’. Se a terra não estivesse atuando, o ar evolaria para longe, também o fogo
não encontraria alimento, nem a água um recipiente.66
65
Reproduzido em ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo. Trad. Portuguesa de Teresa Curvelo. Lisboa: Ed.
Taschen, 1997, p. 27.
66
MAIER, Michael. In: Symbola Aurea Mensae, 1617, p. 200. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 2-3, § 2.
158
sempre e última e mais forte oposição. Segundo Jung, a “estrutura do espírito propria da
sombra primitiva nao pode ser atingida pela razão, mas na mais completa oposição” (Idem,
1990, p. 247, §335). Somente a partir daí, a parte que resiste, deixará de ter existência
autônoma, para se juntar à profunda unidade da psique. Deste modo, aquilo que, de início
escandalizava a consciência, é integrado mais tarde como sua atividade própria. Neste
processo psíquico, o inconsciente criará um simbolo mediador, um terceiro elemento
desproporcional e paradoxal, mas unitivo, pois qualquer conteúdo que transcenda a
consciência e, para o qual não há qualquer possibilidade de apercepção, pode dar origem à
uma simbolica paradoxal ou antinômica. A união do consciente ou da personalidade do eu
com o inconsciente personificado pela anima gera uma nova personalidade:
serena e voltada para a consolidação de sua situação interior e também para a contemplação
dos valores invisíveis:
Após a ascensão da alma, que abandonou o corpo nas trevas da morte, sucede, neste
capítulo, uma enantiodromia: à nigredo segue-se a “albedo”. O negrume, ou o estado
inconsciente, produzido pela união dos opostos, atinge seu ponto mais profundo, que é
ao mesmo tempo seu ponto de reversão. O orvalho caindo anuncia o retorno à vida e
uma nova luz. A descida a regiões cada vez mais profundas do inconsciente converte-
se numa iluminação vinda de cima. Ao desaparecer com a morte, a alma não se perdeu;
apenas foi constituir no além um pólo de vida oposto ao estado de morte neste mundo.
Conforme já dissemos, a unidade [lê -se umidade] do orvalho é o anúncio de que ela
está descendo de novo (Idem, 1999 [C], p. 145-146, § 493).
Digo-te isto com verdade. Que um trabalho deve suceder a um trabalho e uma
operação seguir-se a outra, pois o princípio deve purgar-se e limpar-se bem a nossa
matéria, depois dissolvê-la, fragmentá-la e reduzi-la a pó e cinzas. Logo (deve
resultar) um espírito volátil tão branco como a neve e outro tão volátil como o
sangue. Estes dois espíritos contém um terceiro, e apesar disso, não são senão um só
espírito. São eles três que conservam e prolongam a vida. Põe-nos juntos e dá-lhes de
comer e beber segundo a sua natureza, mantém-nos num leite de orvalho que esteja
quente até ao termo de sua geração.69
67
Sem dúvida, os símbolos oníricos com características de mandala já podem surgir muito tempo antes, sem que
isso implique diretamente o problema do crescimento do homem interior.
68
DIÁLOGOS de Maria e Aros sobre o Magistério de Hermes.In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 37.
69
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 132.
161
A sexta chave dos filósofos (Basílio Valentim, As doze chaves da filosofia, 1609)70
O macho sem a fêmea não é mais que meio corpo, tal como acontece com a fêmea
sem o macho, pois estando um sem o outro não podem engendrar nem multiplicar a
sua espécie; mas se estiverem casados e juntos, formam um corpo perfeito e
completo, próprio pra a geração.71
Tens portanto aqui duas naturezas casadas, onde uma concebeu a outra, e por esta
concepção está convertida em corpo de macho, e o macho no de fêmea, isto é, foram
feitos um só corpo, que é o andrógino dos antigos (...). Desta maneira, represento-te
que tens duas naturezas reconciliadas, que (se forem conduzidas e regidas
70
Figura disponível em: http://www.levity.com/alchemy/twelvkey.html.
71
VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e ocultismo,
Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 133.
162
Se os símbolos teriomórficos voltam à aparecer nesta fase, porém não mais ligados à
característica de ser sempre um desses animais alado e, o outro, desprovido de asas,
certamente aparecerão ligados ao aspecto do masculino e do feminino. A quarta imagem
alquímica do Tratado da Pedra Filosofal de Lambsprinck, é um exemplo disso:
Os sábios nos ensinam claramente que dois fortes leões, o macho e a fêmea,
vagueiam no esconso Vale das Sombras. (...) Aquele que, com saber e com astúcia
possa pegá-los com uma rede e os atar, e domafos, devolvê-los à Floresta, deste se
falará com justiça e com direito (...). Pode bem ser grande maravilha, que estes dois
leões sejam um. O Espírito e a Alma têm de estar bem juntos e unidos em seu
Corpo. 73
A imagem alquímica retrata dois leões, sendo um deles macho e o outro fêmea, mas
enquanto nos outros símbolos teriomórficos parece existir oposição entre o espírito e o corpo,
aqui a oposição é entre o espírito e a alma. Segundo Jung, a oposição entre o espírito e a alma
“provém da subtilidade material desta última. Ela está mais próxima do corpo hílico
72
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/lambtext.html.
73
TRATADO da Pedra Filosofal de Lambsprinck: o significado do simbolismo da alquimia. Tradução e
comentarios explicativos do Prof. Anysio N. Dos Santos. São Paulo: Ed. Ibrasa, 1996, p. 111.
163
(material) e é ‘ densior et crassio’ ( mais densa e mais grosseira) do que o espírito” (JUNG,
1997, p. 4, § 3).
Além destas imagens alquímicas que se ocupam dos símbolos ligados à conjunção do
branco e do vermelho, do masculino e do feminino, do marido e da esposa, a alquimia
também se ocupou de retratar esta importante operação através da simbólica Sol- Lua. Com
relação à esta, é necessário acrescentar que os símbolos alquímicos não possuem um
significado estático, como um leigo nos tratados alquímicos poderia supor. Um estudioso
mais atento e dedicado sabe que cada símbolo deve ser interpretado correspondendo à fase
tratada. Neste sentido, as interpretações de um mesmo símbolo mudam durante a obra
alquímica. A profundeza escura do mundo sublunar, por exemplo no início do Opus,
corresponde ao estado úmido e destrutivo da matéria, e por isso uma alusão à nigredo.
Posteriormente, da escuridão do inconsciente surge a luz da iluminação da albedo, trazendo o
plenilúnio (lua cheia), como foi visto anteriormente. No entanto, “seu papel mais importante é
o de ser a parceira do Sol na conjunção” (JUNG, 1997, p. 124, § 149). Neste momento do
Opus Alchymicum, a lua nova aparece para simbolizar a verdadeira Coniunctio superior, ou
seja, uma união daqueles opostos que foram separados de maneira perfeita: o Sol desce e
penetra na profundeza escura do mundo sublunar, para unir as forças do mundo superior com
as do inferior. No texto anônimo Consilium Coniugii de massa solis et lunae (Conselho de
casamento da massa do Sol e da lua, com seus compêndios) citado por Jung está escrito:
Sua alma sobe dele (do enxofre) para o alto e é elevada até o céu, isto é, ao estado de
espírito, e ela ao nascer do Sol se torna vermelha e ao surgir da Lua (se torna) de
natureza solar. E então o candelabro das duas luzes (...), isto é, a água da vida,
retornará à sua origem, isto é, à Terra e desaparece e é rebaixada e apodrece e é
afixada a seu amado, o enxofre terrestre.74
74
Consilium Coniugii de massa solis et lunae,cum suis. In: Ars Chemica, Estrasburgo, 1566, p. 165. Apud: Jung,
C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 212, § 285.
75
Jung acrescenta: “...Quanto à albedo, a Terra e a Lua coincidem no mesmo, pois de uma parte a Terra, depois
de sublimada e calcinada, aparece como terra alba foliata, da qual se diz que é o ‘bem procurado’, ‘como a mais
branca neve’; e de outro lado a Luna é a senhora da albedo, a feminina alba da coniunctio (...)” (JUNG, 1997, p.
125, § 149).
76
Neste caso o enegrecimento (escurescimento) da lua depende do esposo Sol. A parte passiva aqui de mercúrio
é chamada de Lua, visto que ela se doa e se esvazia; ela é a nutrição e a morada de todos os metais, o alimento e
a mãe de todos os metais. A parte ativa é atribuida ao masculino, isto é ao enxofre terrestre, que sugará o
164
Aquilo que sobe é aqui a alma da substancia do arcano. (...) A anima como Luna
atinge o seu pleniluniom, o brilho semelhante ao do Sol, para depois decrescer até o
novilunium e para o abraço do enxofre terrestre, (...). Pertence a este contexto a
descrição horrorosa da coniunctio da lua nova, que se encontra no Scrutinium
Chemicum de Majer: A mulher e o dragão jazem enrolados no sepulcro. (JUNG,
1997, p. 213, § 287).
Na alquimia mais tardia tanto o sol como a lua são substâncias do arcano e, também
algo de volatil, espiritual. Assim, nota-se que a prima materia é a mãe de Mercúrio e, ao
mesmo tempo, concluída a sublimação, dá-se a germinação de uma alma de um branco
resplandecente (anima candida) e, por isso é chamada de filha. Por outro lado, o Sol que
ascende da prima materia (inconsciente maternal), isto é, a alma –espírito, é o Filho77 e, ao
mesmo tempo, de acordo com a autoridade máxima da Tabula Smaragdina, o pai de
Mercurius, que descerá ao vaso, isto é, no corpo, tendo este o papel de noiva- mãe (Lua), para
dar a luz ao Mercúrio Filosofal78 . Este fato contribui para a compreensão de que se trata de
dois aspectos de uma e mesma substancia, isto é, pra a qualidade binária do mercúrio
filosósico79 . Sobre uma análise psicológica de Mercurius duplex, Jung acrescenta:
... Dele deriva a mens humana, a vida acordada da alma, que se deriva consciência.
Esta parte reclama inexoravelmente a parte oposta que lhe corresponde, a qual é algo
de psíquico escuro, latente, não manifesto, isto é, o inconsciente, cuja a existência
somente pode ser conhecida pela luz da consciência. Como o astro noturno se eleva
saindo do mar noturno, assim a consciência se forma a partir do inconsciente, tanto
de maneira ontogenética como filogenética, e cada noite retorna ela novamente ao
estado primordial de sua natureza. Esta duplicidade da existência psíquica é tanto
alimento da mulher branca mercurial, transformando-se no enxofre vermelho dos filósofos. Jung acrescenta: “...
Na verdade, o envenenamento oculto, que aliás parte do frio e do úmido (portanto da parte lunar), ocasinalmente
é atribuído ao draco frigidus (dragão frio), que se supõe conter um spiritus igneus volatilis (um espírito ígneo e
volátil) e ser flammivomus (vomitador de fogo). Assim no 5°[aqui parece ocorrer um erro de tradução, pois
trata-se da quinquagésima imagem no Atalanta Fugiens e não da quinta imagem] Emb lema do Scrutinium
compete ao dragão ao papel masculino: Ele abraça a mulher no sepulcro em um amplexo mortal. O mesmo
pensamento aparece no 5º Emblema em que se coloca um sapo junto ao seio da mulher para que, aleitando ela o
sapo, venha ela a morrer, ao passo que sapo cresça. O sapo é um animal frio e úmido como o dragão. Ele esvazia
a mulher, como se a Lua se derramasse no Sol (...)” (Idem, 1997, p. 33, § 30). Confira as imagens alquímicas
em: http://www.alchemywebsite.com/atalanta.html.
77
Aqui a designação metafórica de Cristo como Sol, que, segundo Jung, “é frequente no modo de falar dos
Padres da Igreja, é tomada ao pé da letra pelos alquimistas e aplicada ao sol terrenus” (Idem, 1997, p. 96-97, §
118).
78
O autor anônimo do Consilium coniugii acrescenta “… Do mesmo modo a umidade da Lua mata o Sol ao
receber a luz solar que vem para ela, e também morre ao dar à Luz a prole dos filósofos.” Consilium Coniugii de
massa solis et lunae,cum suis. In: Ars Chemica, Estrasburgo, 1566, p. 141s. Apud: Jung, C. G. Mysterium
Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 25, § 21.
79
Jung conclui: “... Deste modo o Sol é pai e filho ao mesmo tempo; por isso existe o seu correspondente
feminino de mãe e filha em uma só pessoa; e, além disso, o masculino (Sol) e o feminino (Luna) são dois
aspectos de uma e mesma substancia, que é simultaneamente a causadora e a resultante de ambos; isto é, o
Mercurio duplex, de quem dizem os filósofos que nele está contido tudo o que é procurado pelos sábios” (Idem,
1997, p. 97, § 118).
165
modelo como imagem original para a simbólica do Sol e da Luna (JUNG, 1997, p.
93-94, §114).
80
Jung acrescenta: “... Tal como o alquimista purifica o ‘corpus’ de todas as ‘superfluitates’ no fogo em seus
mais altos graus, e submete o Mercurius à ‘tortura de passar de uma câmara nupcial à outra’, assim também o
processo psicológico da diferenciação não é um trabalho fácil, pois requer muita paciência e perseverança”
(JUNG, 1999 [C], p. 157, § 503).
166
Sendo assim, para que este Mercúrio tenha em si a natureza fixadora (que lhe é junta)
como também por causa da sua dupla natureza, os filósofos chamaram- lhe água pemanente e
perseverante ao fogo. Estando sublimado é fugitivo do fogo e branco pela sua natureza, mas
depois do seu coagulante, fica coagulado e calcinado, fixo e retido. Este coagulante, completa
Trevisano, “ é o corpo que fica oculto ao Mercúrio dos filósofos”82 . Não há dúvida, segundo
Jung, “ que a substância do arcano, quer seja coisa, quer seja pessoa, sobe da Terra, realiza a
união dos opostos e retorna à Terra, o que significa a sua própria transformação em ‘elixir’”
(JUNG, 1997, p. 212, §285). Assim cumprido fica o primeiro termo do axioma Solve et
Coagula, pela volatilização regular do fixo e pela combinação com o volátil; o corpo
espiritualizou-se, o espírito corporificou-se, obtendo-se um corpo glorificado (repetição).
Porque, se é conveniente dominar o combate e provocar o reencontro, é necessário ainda
captar a parte pura, essencial do novo corpo produzido, a única que nos é útil, a saber: o
mercúrio dos sapientes, o Mercúrio Filosófico83 :
Por fim, nota-se que quanto mais se caminha para a produção da Quintessência, mais
se afasta da simbólica da albedo e, mais se aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo
aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase “branca”: uma união dos
81
Figura disponível em: http://www.alchemywebsite.com/atl35-40.html.
82
TREVISANO, Bernardo. Tratado da Natureza do Ovo. In: TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo, p. 75.
83
De modo geral a fase da albedo é a luz que surge após as trevas, a iluminação após o obscurescimento. O
orvalho é sinônimo de “aqua permanens” e de “aqua sapientiae”, que por sua vez, significa a iluminação que se
produz quando se dá sentido a algo. Assim como o orvalho caindo anuncia o retorno à vida, o espírito Mercurius,
“em sua forma celeste como ‘sapientia’ e como Espírito Santo (fogo), vem de cima e purifica o negrume” (JUNG,
1999, [C], p. 138, §484).
167
opostos. A união dos opostos somente ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e
mudados em quintessência. Sendo assim, esta questão traz também o capítulo para o seu
objetivo central que é o de demostrar, sob a ótica junguiana, de que modo a fase alquímica da
albedo está relacionada com a produção da Quintessência de Geradus Dorneus.
Como foi visto anteriormente, a união dos opostos, somente ocorre assim que estes
estiverem unidos num só, e mudados em uma quintessência. Entretanto, era de conhecimento
do alquimista que não se reconciliaria os opostos, se não lhe viesse em socorro uma certa
substância: trata-se da idéia alquímica do Mercurius, esse ser duplo tanto espiritual como
material. Na perspectiva junguiana, o Mercúrio Filosófico corresponde àquele terceiro-
mediador, necessariamente um símbolo paradoxal, que promoverá união dos opostos. Tal
“substancia” é o objetivo da opus e simultaneamente um "auxiliar", algo que ele não realizaria
a união dos opostos se não viesse em socorro certa substancia. Segundo Jung: "o Mercúrius,
pois, não é apenas o medium coniungendi (meio da união), mas simultaneamente é também
aquilo que deve ser unido, porque ele forma a essência (...) do masculino como do feminino"
(JUNG, 1990, p. 215, § 324).
Para o alquimista Gerardus Dorneus, seria a substância celeste, a Quintessência, o
“remedio incorruptível” que transformaria o corpo e produziria a reuniao da posição espiritual
(unio mentalis) com a esfera corporal. Dorneus começa o processo alquímico da produção da
Quintessência com a destilação do vinho filosófico. O vinho, segundo Dorneus, “pode ser
preparado a partir dos grãos, e igualmente também de todas as outras sementes”. (DORNEUS,
p. 232, § 343. In: JUNG, 1990). Pela destilação do vinum philosophicum (vinho filosófico) ele
acrescenta:
... Por esse processo, a anima (alma) e o spiritus (espírito) são separados do corpo, e
sublimados tantas vezes até que eles sejam liberados de toda “phlegma” (fleuma),
isto é, de todo líquido, que já não contenha nenhum “espírito” (DORNEUS, p. 240,
§351. In: JUNG, 1990).
mental) ou, sua posição espiritual, ao corpo; isto é, no preparo da phlegma vini (fleuma do
vinho). Neste sentido, segundo Jung, a unio mentalis “coincide novamente com a
quintessência sublimada a partir da phlegma (líquido viscoso)”84 , isto é é reproduzida
novamente no interior da destilação do vinho filosófico na condição mediadora da produção
da quintessência necessária entre a unio mentalis e o corpo. A extração do pneuma (espírito)
ou da alma (anima) da matéria sob a forma de uma substância volátil ou líquida (isto é, capaz
de evaporar-se), mortifica o corpo85 . Sendo assim, “apenas começa o processo químico, e já é
o corpo o que resta na retorta após a destilação do vinho” (JUNG, 1990, p. 242, §354). Sobre
este resíduo, que resta na retorta após a destilação do vinho filosófico, acrescenta Jung:
...esta “phlegma” (líquido viscoso) é então tratada assim como o corpo aéreo da alma
no purgatório. Como este, também, o resíduo do vinho deve passar por muitos fogos
sublimadores, até que ele esteja tão purificado que daí possa ser separada a
quintessência da “cor do ar ou do céu” (Ibidem, p. 242, §354).
Com o corpo que resta na retorta após a destilação do vinho filosófico, recomenda
Dorneus:
... Este resíduo, o chamado corpus (corpo), é incinerado “com fogo ardentíssimo”, e
depois pelo acréscimo de água quente é transformado em um “lixivium asperrimum”
(lixívia fortíssima), o qual então é separado cuidadosamente da cinza por uma
inclinação do vaso. Com o resto ou borra procede -se novamente da mesma maneira, e
por tanto tempo até não restar na cinza mais nenhuma “asperitas” (aspereza ou
caráter de base). A lixívia é então filtrada e a seguir evaporada em um vaso de vidro.
Deste modo se obtém o “tartarum nostrum” (nosso tártaro), o calculus vini (ou a
pedrinha do vinho), o “sal natural de todas as coisas”. Este sal, se coloca sobre uma
placa de mármore em lugar úmido e fresco, pode deliqüescer, formando água
tártárica”. Isto é a quintessência do vinho filosófico (DORNEUS, p. 240-241, § 351.
In: JUNG, 1990).
84
JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1990, p. 242, § 355.
85
Entretanto essa mesma substancia revive a matéria; ou seja, “essa ‘aqua permanens’ (água eterna) era
empregada para reanimar o corpo e devolver-lhe a alma, e também, ainda que de modo contradidório, para a
‘extração da alma’” (JUNG, 1990, p. 18-19, § 11).
169
Dorneus, volta-se novamente para a matéria, isto é, o chamado corpus (corpo), onde está
projetado o inconsciente, que dá a luz à si mesmo. Dorneus acrescenta:
Pelo tratamento alquímico dos ‘grana’ (grãos, sementes da uva) é preparado “nosso
Mercurius pela mais elevada sublimação (exaltatione). Pode ser feita a mistura do
novo céu, do mel, da chelidonia, das flores do alecrim, da mercurialis, do lírio
vermelho, do sangue humano, com o céu do vinho vermelho ou branco, ou do Tártaro
(tártaro) (...) (DORNEUS, 233-234, § 345 In: JUNG, 1990).
86
Sobres este aspecto acrescenta Jung: “... A psique do adepto, reinando com libertade plena, se serve de
substâncias químicas e dos processos, à semelhança de um pintor que dá formas à imagem à sua fantasia por
meio das tintas da sua palheta. Portanto DORNEUS, para descrever a união da unio mentalis (união mental) com
o corpo, lança mão de substâncias químicas e de instrumentos, isso não quer dizer outra coisa senão que ele
procura tornar plásticas suas fantasias por meio de processos químicos. Para este fim escolhe ele as substâncias
adequadas, como o pintor das tintas apropriadas” (JUNG, 1990, p. 237, § 347).
87
No “Aurora consurgens”, o Espírito Santo é comparado com a água mercurial que transforma tudo em
celestial, e tem um efeito purificador, vivificador e fertilizante. Sobre o líquido miraculoso, a água divina, Jung
acrescenta: “... Em seu aspecto funcional imaginaram-na como uma espécie de água batismal que, a modo da
água benta da Igreja, possui uma propriedade criadora e transformadora. Ainda hoje a Igreja Católica celebra o
rito da benedictio fontis (benção da fonte) do Sabbathum sanctum na vigília pascal. O rito consiste, entre outras
coisas, no descensus spiritus sancti in acquam (descida do espírito santo na água). Com isto a água comum
adquire a propriedade divina de transformar o homem e proporcionar-lhe o novo nascimento espiritual. Esta é,
precisamente, a idéia que os alquimistas tinham da água divina, e não haveria dificuldade alguma em derivar o
aqua permanens do rito da benedictio fontis, se a “água eterna” não fosse de origem pagã e, sem dúvida, a mais
antiga das duas. Encontramos a água miraculosa nos primeiros tratados de alquimia grega, que datam do século
I” (JUNG, 1999 [B], p. 107, § 161).
170
557). Aqui, na produção da quintessência, Dorneus procura tornar plásticas suas fantasias por
meio de processos químicos: esse é o “líquido” que provém do inconsciente, isto é, os
conteúdos inconscientes que forçam a orientação da atenção88 . Com relação à Dorneus, Jung
acrescenta:
... Ele sente sua operação como uma ação que atua de modo mágico e confere
propriedades mágicas à substância representada. A projeção de propriedades mágicas
alude à existência de efeitos correspondentes na consciência, isto é, o adepto sente
que um efeito numinoso se despreende do lapis (pedra), seja qual for a denominação
dada por ele à substância do arcano. Nosso racionalismo, porém, talvez nem conceda
tal coisa às imagens que o homem moderno projeta de sua intuição de conteúdos
inconscientes. Este último parece de fato ser influenciado por tais imagens. Chega-se
a esta conclusão ao analisar mais exatamente as reações psíquicas quanto às suas
representações. Estas com o tempo, exercem um efeito calmante e criam algo como
um fundamento interior (Idem, 1990, p. 290, § 412).
Deste modo se obtém o “tartarum nostrum” (nosso tártaro), o calculus vini (ou a
pedrinha do vinho), o “sal natural de todas as coisas” como afirma Dorneus anteriormente.
Como foi visto no capítulo anterior, o sal pode aparecer no simbolismo alquímico
primeiramente associado à sua propriedade amarga, pois o amargor designa a corrupção e
impureza do estado inicial da prima materia; assim também a transpiração pela sudorese
(fluído aquoso, constituído por água e pequena quantidades de sais dissolvidos), apareceu no
simbolismo alquímico como os resultado do processo de tormento constante na fase da
nigredo. Do ponto de vista psicológico da Opus, a volatilização pelo suor é o produto do
reconhecimento dos conteúdos inconscientes pela consciência; e por isso corresponde à
secagem dos complexos inconscientes que primeiro aparecem em estado de identificação com
o ego. Pela evaporação se obtem a retirada da cobertura negra da consciência. Neste ponto,
entretanto, o opus ainda não chegou ao fim, porque resta terra negra, o corpo da pedra. É,
pois, “necessário que as ‘evaporationes’ se precipitem para a ablução da negrura, ‘unde tota
terra albescet’ (pelo que se torna branca a terra toda)” (Idem, 1997, p. 197, § 258). Sobre este
aspecto também acrescenta Von-Franz:
88
Essa projeção inconsciente, segundo Jung, “...somente muito mais tarde, se isso acaso ocorrer, será
compreendida como tal e então retirada. (...) Com isso se suprime a identidade inconsciente com o objeto, e “a
alma é libertada de suas cadeias” (JUNG, 1990, p. 243, § 356).
171
fogo a umidade corruptível tem que ser destilada e depois é vertida a umidade
vivificante (VON-FRANZ, 1980, p. 201).
89
Sobre este aspecto acrescenta o alquimista Basílio Valentim : “Tal como o sal conserva todas as coisas e as
preserva da podridão, o sal filosófico defende e preserva todos os metais para que não possam ser totalmente
destruídos ou reduzidos a nada e não possam fazer nada sem que morra também o bálsamo e o espírito do sal,
que é o que são. Neste caso, serão só um corpo morto, que não serviria para nada, porque os espíritos metálicos o
abandonariam e, arrancados pela morte natural, deixarão o seu domicílio vazio e morto e nunca lhe poderá dar
vida”. VALENTIM, Basílio. As doze chaves da filosofia. In: TRISMEGISTU, Hermes et al. Alquimia e
ocultismo. Trad. de Maria Teresa Carrilho. Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991, p. 130.
90
Com relação ao sal na fase da albedo, Basílio Valentim, conclui: “Mas, meu amigo, tens que saber que o sal
que vem das cinzas tem, com frequencia, uma virtude oculta mas que de nada serve, se o seu interior não se
exterioriza, pois só o espírito dá a vida e a força. O corpo sozinho nada pode. Se puderes encontrar este espírito,
possuirás o sal dos filósofos” Loc. cit.
91
No entanto, é importante ressaltar na presente dissertação, como bem afirma Jung, de que “a experiência
psicológica acentua em primeiro a reação subjetiva na formação das imagens e reserva a si o juizo – libera et
vacua mente (com a mente livre e vazia de preconceitos) – quanto a possíveis efeitos objetivos” (JUNG, 1990, p.
290, § 412).
172
... Esta é a base da verdadeira filosofia, Quem considerar tudo isso consigo mesmo e
libertar seu espírito de todos os cuidados mundanos e distrações, “este aos poucos e
de dia para dia verá com seus olhos espirituais (oculis mentalibus) brilhar as faíscas
da iluminação divina (scintillas divinae illustrationis) (...) (DORNEUS, p. 235, § 346.
In: JUNG, 1990).
Os oculi piscium na Opus Alchimicum indicam que o lapis (Si- mesmo) está em
formação, e forçam a participação, o envolvimento pessoal e a atitude crítica, pois é
necessário que o homem seja afetado no processo. Esse enredamento nos conteúdos
inconscientes provocados pelo efeito numinoso destes ocorre, segundo Jung, “com a
finalidade expressa de integrar à consciência os enunciados do inconsciente por causa de seu
conteúdo compensativo, e assim realizar esse sentido da totalidade” (JUNG, 1990, p. 288, §
410). O afeto liberado pela aquisição do conflito torna-se o fogo capaz de secar e purificar a
contaminação do inconsciente, pois o que agora se realiza é a confrontação decisiva com o
inconsciente93 . De fato acontece como se a atenção reanimasse o inconsciente e deste modo
eliminasse os obstáculos que o separam da consciencia: o que é meio caminho andado para a
experiência e a criação do símbolo da totalidade.
Nota-se que do ponto de vista psicológico da Opus, a reunião da unio mentalis com o
corpo chama a atenção para a questão da experiência real; pois pode haver conhecimento,
sem que este se torne atuante, se a ele não se juntar a experiência. Por esta razão também é
que a questão relacionada à reanimação do corpo, isto é, de tornar a unir a alma ao corpo
desprovido dela, constituía um problema na alquimia: daí a importância da produção do
remédio que devia servir para prender a unio mentalis (união mental) ao corpo e, também da
92
Sobre este aspecto, acrescenta Jung: “..Os olhos de peixe estão sempre abertos, e por isso devem enxergar
sempre, razão pela qual os alquimistas os empregam como símbolo para a atenção permanente” (JUNG, 1990, p.
286, §406).
93
No procedimento alquímico da calcinatio, após o processo de intenso aquecimento, resta somente um fino pó
seco. Os simbolismos usados para representar este produto final eram as cinzas brancas, o cal e também o sal.
Todos estes aludem à fase de embranquecimento, a albedo.
173
...Com o mel entrava na mistura o prazer dos sentidos e a alegria da existência, e com
isso também o cuidado oculto e o temor por causa do “veneno”, isto é, do perigo
mortal do enredamento do mundo. Com a celidônia entrava o sentido e o valor mais
elevado dos “filhos da terra”, o si-mesmo como o todo da personalidade, o remédio
“curador”, isto é, o remédio unificante que é até reconhecido pela psicoterapia
moderna, a união com o amor espiritual conjugal, expresso pelo alecrim, e para que
não faltasse o inferior ou o ctônico, a mercurialis acrescenta a sexualidade juntamente
com o rubeus (vermelho), o homem movido pelas paixões, sob o símbolo do lírio
vermelho. Quem dá a isso tudo também o seu sangue, “coloca também toda a sua
alma no prato da balança”. Tudo é unido com a quintessência azul, ou com a anima
mundi (alma do mundo), extraída da matéria inerte (...) (JUNG, 1990, p. 248-249, §
364).
Nota-se pela análise junguiana, que a natureza dos conteúdos psíquicos que são
projetados por Dorneus na mistura apontam para o regresso à água da vida, isto é, para um
modo de vida imediato95 ; por meio destes ingredientes acredita Dorneus que a mistura adquire
a propriedade não apenas de eliminar o impuro, mas também de transformar o espírito em
corpo. A fase alquímica da reanimação do corpo, segundo Von- Franz, corresponde ao
objetivo psicológico da “espontaneidade consciente”, isto é, participar conscientemente no
fluxo da vida:
Emergir da água e sentar-se ao sol, e depois ter que mergulhar de novo na água é um
negócio muito perigoso. Isso pode ser feito mediante uma recaída no estado anterior,
mas não tem qualquer mérito. Deve-se retornar, mas conservando a segunda forma de
consciência analítica, preservando a percepção consciente da sombra e da anima, etc.
Assim a segunda fase é espontaneidade consciente, na qual a participação da
consciência não se perde, e isso é algo muito difícil, porque é bem mais fácil continuar
superanalisando, ou recair no estado anterior de inconsciência [sem grifo no original]
(VON-FRANZ, 1980, p. 202).
94
Sobre este aspecto acrescenta Jung: “Se eles tivessem realizado a re-animatio (re -animação) por via direta, a
alma por assim dizer teria recaído em sua ligação anterior, e tudo voltaria a ser como antes. Mas não se podia
nem por um instante deixar entregue a si mesmo esse ser volátil, que se achava incluso e guardado
cuidadosamente no vaso hermético, isto é, na unio mentalis (união mental), porque este Mercurius evasivo de
outra forma evolaria e retornaria à sua natureza anterior, como, segundo atestam os alquimistas, não raramente
acontecia. O caminho direto e natural teria consistido simplesmente em conceder à alma, curso livre, pois ela
sempre se volta para o corpo. Como, porém, ela está mais presa ao corpo do que ao espírito, então ela se
separaria deste e retornaria ao estado de inconsciência anterior, sem ter levado consigo algo da luz do espírito
para dentro da escuridão do corpo. Por esta razão é que a reunião com o corpo constituía um problema. Expresso
na linguagem psicológica, isso significaria que o conhecimento adquirido pelo recuo das projeções não
suportaria a colisão com a realidade (...)” (JUNG, 1990, p. 279, § 398).
95
Na concepção junguiana, a experiência individual é a vida imediata; a “vida imediata é sempre individual, pois
o individuo é o sustentáculo da vida” (JUNG, 1999 [B], p. 55, § 88).
174
Após relatar uma série de ingredientes, que devem ser acrescentados ao “céu”,
Dorneus conclui:
... Ele acredita na necessidade da operação alquímica, como também no êxito dela;
ele está convencido de que a quintessência é indispensável na “praeparatio”
(preparação) deste corpo, e que este último por meio desse remédio é melhorado a tal
ponto que possa realizar-se a coniunctio (conjunção) do espírito e da alma (Ibidem, p.
241, § 353).
96
O vinho também segundo Jung, “constitui, pois, um sinônimo adequado, porque ele, sob a forma de um
líquido físico, representa o corpo, mas como álcool indica o espírito (spiritus)” (JUNG, 1990, p. 232, § 343).
97
Análogo ao mercúrio dos filósofos, o Si-mesmo se caracteriza por um centro organizador de onde emana o
impulso interior de crescimento, portanto, neste sentido, ele corresponde à um "auxiliar". Mas simultaneamente,
o Self corresponde à algo que devemos estar conscientemente orientados, e assim corresponde também à algo
que deva ser recuperado devido à sua parcela inconsciente. Em outras palavras, ele fica, paradoxalmente, no
homem e ao mesmo tempo fora dele; concomitantemente ele é o caminho e o objetivo para a realização dos
opostos no processo de individuação.
175
Embora Jung tenha indicado a relação do primeiro grau de Dorneus com a primeira
fase alquímica da nigredo, um estudioso mais desatento no assunto, poderia, prematuramente,
subentender que o segundo e o terceiro grau de Dorneus, corresponderiam, respectivamente,
às outras duas etapas gerais da alquimia, a saber, a albedo e a rubedo. Porém, com um certo
domínio, tanto sobre a temática alquímica, quanto da psicologia junguiana, nota-se que estas
relações não ocorrem nesses termos. Ou seja, é possível estabelecer e demonstrar a relação do
primeiro grau de Dorneus com a nigredo, como o próprio Jung indicou e, como no capítulo
anterior se demonstrou. Porém, como no segundo grau da Coniunctio de Dorneus está
incluído o processo alquímico da produção da Quintessência, estas relações não se
estabelecem desta maneira. Sendo assim, esta dissertação demonstra que quanto mais se
caminha para a produção da Quintessência, mais se afasta da simbólica da albedo e mais se
aproxima em seus aspectos psíquicos, de tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir
a respectiva fase “branca”: uma união dos opostos. Assim como a união dos opostos, somente
ocorre assim que estes estiverem unidos num só, e mudados em quintessência, também
Gerardus Dorneus considera a produção da quintessência, ser “necessária para a unio mentalis
(união mental) com o corpo” (Ibidem, p. 237, § 347).
Eis porque a famosa fase alba, que remete à brancura e a pureza do espírito, nao
corresponde à meta final de um alquimista. A fase alquímica da Rubedo, remete à
vermelhidão do sangue e da vida98 , mas este desenvolvimento da consciencia, isto é, “a
integração desses conteúdos na vida real do indivíduo (opus ad rubeum!)” (Idem, 1997, p.
147, § 175), somente poderá ser vivenciado se o alquimista for confrontado com uma união
dos opostos. Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados
alquímicos concomintantemente juntas, pois a feminina alba e o servo rubedo formam o par
tradicional do Casamento alquímico, isto é, o relacionamento recíproco do feminino e do
masculino. Assim a conjunção do úmido, do corpo e da (Lua) com o quente, o espírito e o
(Sol) resulta naquele bálsamo. Por isso também esta concepção alquímica se repete em
Dorneus, que não hesita em afirmar que a mistura toda é então unida “com o céu do vinho
vermelho ou branco ou com o Tartarus” (tártaro)...” (DORNEUS, p. 234, §345. In: JUNG,
1990). Sobre este aspecto, Jung acrescenta:
98
Os alquimistas também não hesitavam em afirmar que a fase da rubedo somente consistia no aumento gradual
do fogo, isto é, do ponto de vista psicológico, do aquecimento gradual pelo desejo. O fogo significa paixão,
afeto, concuspicência e as forças impulsivas e emocionais da natureza humana em geral, ou seja, tudo o que se
pode entender sob o termo “libido”. Sobre este aspecto acrescenta Jung: O aquecimento pelo desejo tem o seu
análogo na alquimia, que é o aquecimento gradual daqueles corpos que contenham o arcanum. Neste caso tem
papel importante o símbolo da cura pelo suor, como indicam certas representações. Como no maniqueísmo o
suor dos arcontes significa a chuva, assim entre os alquimistas o suor representa o orvalho (JUNG, 1997, p. 36,§
33).
176
Se procurarmos conceber a natureza em sentido mais elevado como uma noção geral
que abranja todos os fenômenos, veremos que um dos seus aspectos é o físico e o
outro espiritual (pneumático). Desde a antiguidade o primeiro deles é considerado o
feminino e o segundo o masculino. A meta do primeiro é a união, mas o segundo
tende para a distinção (JUNG, 1997, p. 85, § 101).
Eis porque a conjunção da unio mentalis com o corpo é uma tarefa ainda a ser
realizada pela humanidade no futuro. A alquimia parece ter suspeitado disso e, por isso, era o
corpo que merecia ser tratado pela sua corrupção99 , de outra forma a unio mentalis nao
suportaria o conflito entre a vida do mundo e o modo de ser do espírito. A existência corporal,
seria uma espécie de imã hostil, as quais as exigências vitais deveriam ser atendidas em
primeiro lugar. Nesta situação o eu somente entra em consideração por poder oferecer
resistência, defender sua própria existência e afirmar-se, onde o conflito for de pouco valor, a
pessoa se coloca do lado da razão e da moral convençional100 . Deste modo os motivos
inconscientes são novamente reprimidos101 . Entretanto alerta jung:
... que ninguem tire desta constatação geral precipitadamente a conclusão que em um
caso individual exista cada vez uma hybris (soberba) da consciÊncia do eu, que
mereça ser subjugada ao inconsciente. Mas de modo algum o caso é sempre esse,
pois ocorre muito frequentemente que tanto a consciencia como a responsabilidade
do eu sao fracas demais e antes estao necessitadas de reforço (JUNG, 1990, p. 304, §
433).
99
Sobre este aspecto acrescenta Jung: “ ... o corpo se achava na situação de quem não está com a razão, pois em
consequência de fraqueza moral havia contraído o pecado original. Por isso era o corpo com sua escuridão que
precisava ser preparado. E isso acontecia, como já vimos, pela extração de uma quintessência” (JUNG, 1990, p.
300, § 429).
100
Sobre este aspecto, acrescenta Jung: “... Quanto a ideais considerados corretos, como é sabido, é impossível
impô-los por meio do esforço da vontade, por algum tempo e até certo ponto, a saber, até que se manifestem
sinais de cansaço e diminua o entusiasmo inicial. Mas então a decisão livre se transforma em espasmos da
vontade e a vida reprimida força, por todas as brechas , seu caminho para a liberdade. Esta é lamentavelmente a
sorte de todas as decisões tomadas exclusivamente pela razão” (JUNG, 1990, p. 279, § 398).
101
O recalque, segundo Jung, “ é a maneira semi -consciente de deixar correr as coisas, ou de externar desprezo
por uvas que pendem de ramos demasiado altos, ou de olhar em direção contrária para não enxergar os próprios
desejos” (JUNG, 1999[B], p. 80, §129).
102
Sobre este aspecto considera Jung, “...Jesus procurou ensinar a concepção mais adiantada e psicologicamente
mais correta de que a oposição à essencia do mal não é a fidelidade à lei, mas muito mais o amor e a bondade.”
(JUNG, 1997, p. 163,§200)
177
... há uma grande diferença, subjetivamente falando, em o individuo saber o que ele
esta vivendo e compreender o que esta fazendo e declarar-se responsável ou não pelo
que intenciona fazer ou já fez. Cristo formulou compkexivamente em uma única frase
aquilo que constitui a consciencia reflexa ou sua ausencia: “Se sabes o que fazes, és
feliz, mas se não sabes, és um maldito e transgressor da lei”. A inconsciência nunca
pode valer como desculpa perante o tribunal da natureza e do destino. Ao contrário,
grandes castigos pesam sobre ela e é por isso que toda a natureza inconsciente anseia
pela luz da consciência, à qual, no entanto, se contrapõe (Idem, 2001, p. 102, § 745).
Como foi visto anteriormente, a estrutura do espírito própria da sombra primitiva nao
pode ser atingida pela razão, mas na mais completa oposição103 . Existem camadas profundas
da psique que não podem ser atingidas pela intelecto e nem pela força da vontade. Nesta
altura do processo de individuação, a natureza vem ao nosso encontro com uma ajuda, isto é,
forças impessoais que se ocultam no interior e escapam ao nosso arbítrio e intenções. A
numinosidade destes fatores psíquicos então torna difícil um tratamento intelectual, pois é o
caráter afetivo que entra sempre em conta. O intelecto mera parte e função da psique não
basta para compreender a totalidade humana. O indivíduo participa pro et contra no processo,
de estados de conflitos agudos, e choques de deveres, ate que o inconsciente produza um
simbolo de natureza unificante, proponha um terceiro termo irracional,e consequentemente
imprevisto, e nao esperado como solução. Na alquimia o corpo era restaurado, como já vimos,
pela extração de uma quintessência. Entretanto, sabe-se que o que “a alquimia tenta para sair
de seu dilema é uma operação química que hoje poderíamos designar como um símbolo”
(JUNG, 1990, p. 283, § 404). A dinâmica força deste processo é o instinto que cuida, para que
tudo quanto pertence a uma vida individual seja nela integrado:
Jamais faltam ao eu razões opostas, de natureza moral e racional, que nem se pode
nem se deve pôr de lado enquanto elas ainda servem de apoio. Pois somente então
alguém se sentirá em um caminho seguro quando a colisão de deveres se resolver
como que por si mesmo, e esse alguem se tiver tornado vítima de uma decisão, que
foi tomada independentemente de nossa cabeça e de nosso coração. Nisto se
manifesta a força numinosa do si-mesmo, que dificilmente poderia ser experimentada
de outra maneira. Por isso a vivencia do si-mesmo significa uma derrota ao eu. A
enorme dificuldade dessa vivência consiste no fato de que o si-mesmo apenas pelo
conceito se distingue do que desde sempre chamamos de “Deus”, não porém na
prática (JUNG, 1990, p. 303-304, § 433).
103
A sombra é simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda, e não uma qualidade maligna absoluta.
Ela contêm qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existencia
humana; mas o homem se choca com as regras tradicionais.
178
Sabe-se que Jung localiza a base da função religiosa da psique na sua capacidade
natural de gerar a experiência do sobrenatural104 . Sendo assim, quando Jung trata da
experiência religiosa, está se referindo a uma experiência psíquica, ou seja, à uma relação da
consciência do indivíduo com uma instância que é inapreensível totalmente por conceitos105 .
Isto é, deixando de lado os atos da graça que fogem à alçada humana, Jung considera que,
sem a relação entre a consciência e o Si- mesmo, mediante a exploração do inconsciente, não
há experiência da totalidade e portanto não há acesso interior às formas sagradas. Porém, Jung
sofreu uma enorme resistência por parte dos teólogos da época, quanto à essa qualificação da
experiência religiosa, como podemos observar neste trecho a seguir:
... É quase uma blasfêmia pensar que uma vivência religiosa possa ser um processo
psíquico; é então introduzido o argumento de que tal vivência "não é apenas
psicológica". O psíquico é só natureza - e por isso se pensa comumente que nada de
religioso pode provir dele. Tais críticos não hesitam, no entanto, em fazer todas as
religiões derivarem da natureza da alma, excetuando a que professam (...) (JUNG,
1991 [A], p.22, § 9).
Sendo assim, chega sempre o momento em que a pessoa está só com “Só” em que
pode dizer como João da Cruz: “perdi o rebanho que seguia antes”. O encontro com o Si-
mesmo é um encontro solitário, é um encontro com o seu “máximo outro”. Segundo Jung, na
medida em que “o homem se acha somaticamente comprometido, o ‘adversário’, não é senão
o ‘outro em mim’” (JUNG, 1999 [B], p. 82, § 133). Na reconciliação com o outro dentro de
mim o que importa saber é se o homem é capaz por si de alcançar um degrau moral mais
alto. Sobre este aspecto acrescenta Jung:
... É justamente por esse o motivo que a observância da moral cristã nos faz cair nos
piores conflitos de deveres. Só quem se habituou a não tomar as coisas
rigorosamente ao pé da letra estará em condições de escapar deles.O fato de a ética
cristã nos levar a conflitos de deveres constitui um argumento a seu favor.
Produzindo conflitos insolúveis e, consequentemente, uma certa “afflictio animae”,
104
Ele também empresta de Rudolph Otto o termo que o fez famoso no mundo dos estudos religiosos do século
XX. Para os dois isso significava a experiência imediata do divino. Para Otto essa experiência era ambígua,
surpreendente, estimulante, condenatória e encorajadora. Nesse ponto, Jung concordaria com a descrição de Otto
sobre a experiência do sobrenatural. Eles só descordam em relação à origem dessa experiência. Para Otto, essa
experiência tinha como objetivo uma divindade que era chamada de “o outro completo”. O que Jung faz com a
idéia de Otto é internalizar a experiência desse outro Deus completo e discutir que o poder ou poderes que geram
essa experiência, não devem ser entendidos como um outro completo, mas como um interno completo. Ele
localiza esses poderes na dimensão arquétipa da psique, o inconsciente coletivo.
105
Jung acrescenta: “...este Deus age através do inconsciente do homem, obrigando-o a unir e a harmonizar as
influencias contrárias e permanentes, às quais sua consciencia esta submetida. O inconsciente pretende ambas as
coisas: separar e ubir. É por isso que o homem , em suas tentyativas de unificação pode sempre contar com a
ajuda de um mediador metafísico (...). o inconsciente quer introduzir-se na consiência, a fim de poder chegar à
luz, mas ao mesmo tempo, é impedido de tal designio” (Idem, 2001, p. 98, § 740).
179
... não obstante acredita ele na possibilidade da espiritualização unilateral, sem dar-se
conta de que a condição para esse efeito consiste justamente em uma materialização
do espírito, a saber, a quintessência azul. Na realidade, entretanto, seu esforço eleva o
corpo até aproximidade da espiritualidade, mas também atrai o espírito até a
proximidade da matéria. Ao sublimar ele a materia, materializa ele o espírito (Idem ,
1990, p. 293, § 419).
180
Chegamos assim, ao final das considerações sobre a fase alquímica albedo e sua
relação com a produção da Quintessência de Gerardus Dorneus, analisados à luz da Psicologia
Profunda de Carl Gustav Jung.
106
MARIA PROPHETISSA. In: JUNG, C. G. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1991, p. 34,
§26.
107
De Sulphure. Museum Hermeticum. 1678, p. 622s. Apud: JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 1990, p. 212, §320.
108
Jung comenta esta citação do De Sulphure, e acrescenta: “A síntese do um incorruptível ou respectivamente
da Quinta Essentia se realiza de acordo com o Axioma de Maria, no qual o quarto corresponde à terra. O estado
de separação cheio de inimizade da parte dos elementos corresponde ao caos e às trevas. Das sucessivas uniões
provêm um agens (agente: Sulphur, enxofre) e um patiens (paciente: Sal), como também um intermediário, um
ambivalente, a saber, o Mercúrius. Dessa clássica trindade alquímica resulta a relação de home m e mulher como
a oposição suprema e essencial. O fogo se acha no início e não é produzido por nada, e a terra se encontra no
fim e não atua sobre nada.Entre o fogo e a terra não reina nenhuma interactio (interação), e por isso os quatro
não formam um círculo, isto é, nenhuma totalidade. Esta apenas é produzida pela síntese do masculino e do
feminino (Idem, 1990, p. 212, § 321).
181
Substancia universal
Sal Enxofre
Água-terra Fogo - ar
Feminino Masculino
Mercúrio
Água-ar
Feminino- masculino
109
Como se sabe, “o um que é o quarto” remete ao tema da quadratura do círculo,, ou seja, aos símbolos da
totalidade, que o inconsciente em determinadas circunstancias produz espontaneamente. Deve-se mencionar
nesse sentido, antes de tudo, os objetos geométricos que encerram os elementos do círculo e da quaternidade. O
círculo e a quateridade possuem caráter de totalidade: “o primeiro por causa da “pefeição” de sua forma e a
segunda enquanto número mínimo resultante da divisão natural do círculo” (JUNG, 1988, p. 214, § 351).
110
Segundo Jung, a “psicologia sabe que os opostos correlatos constituem condições imprescindíveis e inerentes
ao ato de conhecimento, pois sem eles seria impossível qualquer tipo de diferenciação” (JUNG, 1988, p. 57,
§112).
182
inconsciente. elaé constituída pela “desobediência” e por isso é rejeitada não só por
motivos de ordem moral, mas também por razões de conveniência (JUNG, 1999 [A],
p. 87, § 292).
111
Edinger acrescenta: “This brings stage 2, the beginning of ego development, which is characterized by the
separation of subject and object. Here the ego begins to experience itself as separate from the world while still
caught in the polarity between Nature (Mother) and Spirit (Father)” [Isto traz o estágio 2, o começo do
desenvolvimento do ego, que é caracterizado pela separação do assunto e do objeto. Aqui o ego começa a
experimentar-se como separado do mundo apesar de ainda capturado ainda na polaridade entre a Natureza (Mãe)
e o Espírito (Pai)] (EDINGER, 1995, p. 279-280).
183
O velho sábio não é apenas “o si- mesmo psicológico”, mas também o próprio processo
de transformação. A formula alquímica para isso é o axioma de maria; deste modo ele é
reconduzido ao um que tem em si, e por isso ele é o três e o quatro. O indivíduo é assim
obrigado à suportar o oposto em benefício de sua inteireza. Aquilo que se achava mais
distante da consciência desperta e, parecia inconsciente assume, segundo Jung, “como que um
aspecto ameaçador, ao mesmo tempo que o valor vai crescendo na seguinte progressão:
consciência do eu, sombra, anima, si- mesmo” (Ibidem, p. 27, § 53). Chegamos, neste sentido,
ao final do axioma central da alquimia: “Um torna-se dois, dois torna-se três e do três provêm
o um que é o quarto”112 .
112
Jung conclui: “... O material apresentado mostra como o drama arquetípico de morte e renascimento está
oculto na coniunctio opositorum, ou também quais os afetos humanos primitivos se chocam violentamente nesse
problema. É o problema moral da alquimia de colocar em concordância com o princípio do espírito aquela
camada profunda da alma masculina, revolvida pelas paixões, a qual é de natureza feminino-maternal – na
verdade uma tarefa hércula (Idem, 1997, p. 37, § 34).
184
... Esta terceira etapa da unio (união) se tornou objeto de representações figurativas,
no estilo da assunção e coroação de Maria , nas quais Maria representa o corpo. A
Assumptio (assunção) é propriamente uma festa de núpcias, a versão cristã do
hierósgamos (casamento sagrado), cuja a natureza incestuosa primordial
desempenhou grande papel entre os alquimistas. (...) Por isso os alquimistas
representaram a unio mentalis (união mental) pelo Pai e pelo Filho e a união deles
pela pomba (Espírito Santo) (a spiratio ou espiração comum ao Pai e ao Filho), mas o
mundo corpóreo pelo feminino ou o “patiens” (passivo), a saber, Maria. Assim
prepararam eles, a seu modo, pelo espaço de mais de um milênio, o caminho para o
dogma da Assumptio (Assunção). Entretanto a partir do dogma e de sua
fundamentação, não é ainda evidente por si só a implicação amplíssima de um
casamento do princípio espiritual paterno, com o que é “material”, isto é, com a
corporeidade materna (Ibidem, p. 219- 220, §329).
1
Jung acrescenta que “o ‘morrer’ da igreja está ligado à parábola da lua escura” (JUNG, 1997, p. 24, § 20). O
momento desse eclipse e matrimônio místico é a morte na cruz. Assim Cristo foi ferido na cruz pelo amor à
185
igreja. Sobre este aspecto acrescenta Jung: “A sponsa é a lua nova escura – de acordo com a concepção cristã a
Igreja no tempo do amp lexo matrimonial – e esse amplexo é simultaneamente o ferimento do sponsus Sol-
Christus” (Ibidem, p. 28, §25). Além disso, H. Rahner em sua pesquisa Mysterium Lunae, segundo Jung, “fala de
modo apropriado das ‘trevas místicas da união dela (Lunae, i. E.. Ecclesiae) com Cristo’ no tempo da lua nova,
que significa a ‘Igreja moribunda’” RAHNER. H. Mysterium Lunae. I.c. p. 314.Apud: JUNG, C.G. Mysterium
Coniunctionis p. 24, §20, nota 138.
2
Jung acrescenta: “Depois de o magistério eclesiástico ter hesitado por longo tempo, e de já haver passado quase
um século da declaração da Conceptio Immaculata como verdade revelada, foi somente então em 1950 que o
papa achou ser oportuno declarar a Assumptio como verdade revelada, ao ver-se como que impelido por uma
corrente popular, que se tornava cada vez mais intensa. Tudo parece confirmar que essa declaração dogmática
foi motivada principalmente por uma necessidade religiosa das massas cristãs. Por trás disso se encontra o
numem arquetípico da divindade feminina, que se fez notar pela primeira vez como exigência no concílio de
Éfeso em 431, ao reclamar para ela o direito ao título de Theotokos (mãe de Deus) em oposição ao racionalismo
nestoriano se simples Anthropotokos (mãe do homem)” [sem grifo no original] (JUNG, 1997, p.179-180, § 231).
3
Sobre este texto alquímico, Jung acrescenta: “A Pandora é uma das mais antigas, senão a primeira apresentação
sinótica da alquimia em linguagem alemã. Sua primeira edição foi publicada em 1588 por Henricpetri, na
Basiléia. Atribui-se sua autoria ao doutor em Medicina HIERONYMUS REUSNER, tal como o prólogo sugere”
(JUNG, 2003, p. 146, § 180, nota 129). Cf. a figura em ROOB, Alexander. Alquimia e Misticismo. Trad.
Portuguesa de Teresa Curvelo. Lisboa: Ed. Taschen, 1997, 503. Jung acrescenta: “... A figura de Pandora indica
o grande arcano que os alquimistas sentiam de maneira pouco clara estar implicado na Assumptio” (JUNG,
1997, p. 180, §232).
4
O culto à “senhora do mundo interior” na alquimia também intercepta muitas vezes o culto da água mercurial
divina. No Aurora consurgens, o Espírito Santo é comparado com a água mercurial que transforma tudo em
celestial, e tem um efeito purificador, vivificador e fertilizante. A água de extraordinária natureza, que é água e
espírito, como foi visto anteriormente, mata e revifica. Neste sentido, “uma vez que a água procurada e
186
como Maria, concebe a “solução do céu” e depois a gera como lapis philosophorum. Desta
maneira a tradição alquímica, mediante as representações da coroação de Maria prepara o
caminho para a quaternidade acrescentando o elemento feminino da terra, do corpo e da
matéria à sua Trindade física. Sobre possível argumento, de que Cristo foi elevado aos céus
em corpo e alma, na perspectiva de Jung, aqui existe algo bastante diferente, pois “Cristo é
Deus, o que não se pode dizer de Maria. No caso desta, trata-se- ia, de um corpo muito mais
material, isto é, de uma realidade ligada ao espaço e ao tempo” (Idem, 1999 [A], p. 59, § 251).
Entretanto, analisando os textos alquímicos, nota-se que Mercurio como Cristo satisfazia esta
Trindade alquímica, pelo menos em parte, pois Cristo, participa de duas naturezas, isto é, da
divina e da humana, ou seja, é constituído de duas partes, a celeste e a terrena 5 . De modo
semelhante fala o anônimo da Ars chemica:
... É certo que a terra não poderia subir, se o céu antes não tivesse descido; da terra se
diz que ela será elevada ao céu quando, dissolvida em seu próprio espírito, ela se
unificar a com ele. Com a seguimte parábola quero satisfazer-te: O Filho de Deus
desceu (!) ao seio da Virgem e nele tornou-se carne, e nasceu como ser humano; ele
que, para a nossa salvação, nos mostrou o caminho, sofreu e morreu por nós e voltou
para o céu após a ressureição. Nele, a terra, isto é, a humanidade, foi elevada e
transferida sobre todas as esferas do mundo, para o céu espiritual da Santíssima
Trindade.6
Como foi possível constatar nesta dissertação, na alquimia se fala primeiro em subida
e somente então em descida. Como nas sentenças da Tábua da Esmeralda de Hermes
Trismegisto: “Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará à terra e recebe a força das coisas
superiores e das coisas inferiores. Terás por esse meio a glória do mundo”7 . Quanto à isso, é
preciso atender-se especialmente que o Opus, acrescenta Jung, “consta em geral de uma
subida que é seguida de uma descida, ao passo que o modelo provável cristão-gnóstico
primeiro apresenta uma descida e depois de uma subida” (Idem, 1997, p. 210, § 282). Como é
de conhecimento para os estudiosos da alquimia na visão junguiana, sabe-se que Jung
considera a alquimia “como que uma corrente subterrânea em relação ao cristianismo que
necessária representa um ciclo de nascimento e morte, todo o processo, consistindo em morte e renascimento,
significa a água da vida” (JUNG, 2003, p. 104, § 135).
5
Em Orthelius, lê -se acerca deste mediador: “pois... assim como.. o Bem sobrenatural e eterno, nosso mediador
e salvador, Jesus Cristo, que nos liberta da morte eterna, do diabo e de todo o mal, participa de duas naturezas,
isto é da divina e da humana, assim também este nosso Salvador terreno é constituído de duas partes, a celeste e
a terrena, mediante as quais ele nos restitui a saude e nos livra das enfermidades celestes e terrenas, espirituais e
corporias, visíveis e invisíveis” Theatrum Chemicum, 1661, VI, p.431. In: JUNG, C. G. Psicologia e religião.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1999, p. 96, § 150.
6
Liber de arte chimica incerti authoris. In: Art. Aurif.I, p. 612s. Apud: JUNG, C. G. Estudos Alquímicos. Rio de
Janeiro: Ed. Vozes, 2003, p. 105, §137, nota 209.
7
TRISMEGISTO, Hermes et al. Alquimia e ocultismo, Rio de Janeiro: Ed. Edições 70, 1991.p. 23.
187
reina na superfície” (Idem, 1991 [A], p. 34, §26.). No entanto, se em um primeiro olhar existe
a máxima tentação de aludir ao Mercúrio Filosófico, apenas um reflexo do salvador que é
Cristo, esta adução não se confirma em um segundo olhar. Isto ressalta o fato de o
inconsciente não atuar simplesmente em oposição à consciência, mas em compensação à ela.
Sendo assim, completa Jung, “não é uma imagem complementar de filha que o tipo do filho
do inconsciente chama do inconsciente ctônico, mas um outro filho” (Ibidem, p. 35, § 26).
Neste sentido, o filho dos filósofos, o Mercúrio Filosófico, na qualidade de hermafrodita,
apresenta os traços da contrapartida ctônica revelando que “o segredo alquímico é um
equivalente inferior dos mistérios superiores; é um ‘sacramentum’ não do espírito paterno,
mas da matéria materna” (Idem, 1999[C], p. 178, § 533).
Entretanto, a apoteose da Virgem- mãe sob a forma de elevação de Maria como
mostram as representações alquímicas, sugere que “a componente feminina exige como a
masculina, uma representação de caráter pessoal” (JUNG, 2001, p. 107, § 753) e assim,
provoca um aumento da Trindade física, mediante um quarto elemento de natureza feminina,
que coincide com a terra ou o corpo. Sem querer entrar no mérito atual das consequências que
este arquétipo (da divindade feminina) traz hoje em dia, que é algo da última moda e, que está
na linha de frente das idéias progressistas de nosso tempo, como por exemplo, as discussões
em torno do best seller O código da Vinci e o tema da entronização da mulher e do feminino;
a questão é que o fato deste tema ter encontrado tanto crédito, de uma parte prova, a
credibilidade fácil e generalizada, bem como a ausência de crítica do público e, de outra parte,
revela a existência da profunda necessidade que haja uma instância espiritual colocada acima
do eu. Porque supervalorizamos o aspecto físico falta à nossa razão hoje em dia a orientação
espiritual. Tal instância, como ja foi discutido anteriormente, impossível de ser apreeendida
pelo intelecto, não surge jamais através de uma ponderação racional, por ficar reduzida ao
âmbito da consciência, mas apenas pela graça divina, isto é, a natureza8 . Neste relação,
destaca-se a importância da psique que, por ser o ponto de encontro das representações
possíveis, nos permite reunir subjetivamente o que Jung chamou de “etiquetagens” de
procedência material ou espiritual e, devido à substância metafísica própria da psique, como
tal, toma parte da mesma trancendentalidade dos reinos da matéria e do espírito. Não há
8
Entretanto Jung acrescenta: “... A interpretação racionalista da autoridade interior como sendo “forças naturais”
ou como instintos satisfaz a inteligência moderna, mas tem o grande inconveniente de que a decisão,
aparentemente vitoriosa do instinto, ofenda a auto-consciência; por esta razão facilmente nos persuadimos de
que a coisa só foi resolvida por uma decisão racional da vontade. O homem civilizado tem tanto medo do
“crimen laesae maiestatis humanae” [crime de lesa majestade humana] que, sempre que possível, retoca
posteriormente os fatos da maneira descrita, para dissimular a sensação de uma derrota moral sofrida. Seu
orgulho consiste, evidentemente, em acreditar na própria autonomia e na onipotência de seu querer, e, em
desprezar aqueles que são logrados pela simples natureza” (JUNG, 1988, p. 24, § 48).
188
duvida que na investigação simbólica do Opus, a alquimia aponta a solução para um quarto
elemento de natureza feminina-terrestre e, atrás dela, toda a psique arcaica e todo o mundo
arquetípico entram em contato direto com a consciência, impregnando-a de influências
arcaicas; portanto esta instância procede de uma tradição que se estende muito mais
profundamente tanto do ponto de vista histórico como psicológico:
Como se sabe, qualquer conteúdo que transcenda a consciência, segundo o qual não há
uma possibilidade de apercepção gera um símbolo paradoxal. O inconsciente luta em
significar um conteúdo inconsciente para o qual nao há entendimento no plano da
consciência. Sendo assim, “são justamente as antinomias impressionantes da simbólica do
Espírito que provam existir uma complexio oppositorum (uma união dos contrários) no
Espírito Santo” (Idem, 1999 [A], p. 74, § 277). Com a intervenção do Espírito na vida dos
homens, estes são inseridos no processo divino e, consequentemente, também no princípio da
individuação. Entretanto, sob a ótica do mediador Mercurius, nota-se que, como a Tríndade,
“também a tríade alquímica é uma quaternidade disfarçada; provém isso da duplicidade da
figura central: Mercúrius de uma parte se divide em metade masculina e em outra feminina”
189
(Idem, 1997, p.178, § 229). Sobre isso, Jung expõe o seguinte esquema em Mysterium
Coniunctionis9 :
Embora Mercurius seja considerado trinus et uno (trino e uno) em muitos textos, isto
empede que ele tenha uma participação intensa na quaternidade da lapis, com a qual
se identifica essencialmente. Ele exemplifica pois o estranho dilema reprsentado pelo
problema do três e do quatro. Trata-se do conhecido e enigmático Axioma de Maria
Profetisa (Ibidem, p. 219,§ 272).
É importante ressaltar que estas são representações coletivas que desde os primórdios
permitiram a ligação entre o consciente e o inconsciente. A evolução dessas grandezas
simbólicas corresponde a um processo de diferenciação da consciência humana, que como
fatores autônomos (árquétipos) são resultado da intervenção de um dinamismo de caráter
transcedental. Os alquimistas sabiam que a Arte era, em parte natural e, em parte divina.
Neste ponto estava toda a dificuldade. Os antigos também sabiam que uma virgem conceberia
9
Jung acrescenta sobre a duplicidade da figura central:'“... e de outra parte ele é também o dragão venenoso e o
lapis celeste. Está perfeitamente claro que aqui o dragão é análogo ao demônio e o lapis a Cristo, de acordo com
a concepção cristã de que o demônio é o adversário de Cristo. Acresce que não é apenas o dragão que se
identifica com o demônio, mas também o aspecto negativo do sulphur, ou o sulphur comburens, como Glauber
diz do sulphur: ‘O verdadeiro e preto demônio do inferno, que não pode ser vencido por nenhum outro
elemento, a não ser pelo sal’. Em correspondência com isso o sal é uma “substância ‘luminosa’ e semelhante ao
lapis (...)” (Idem, 1997, p. 178, §229). Confira o esquema proposto em JUNG, C. G. Mysterium Coniunctionis.
Rio de Janeiro: Ed. Vozes,1997, p. 179, § 230-231.
190
e daria luz a à si própria. Nisso está incluído toda a compreensão do Opus, cujo o símbolo da
famosa serpente ouroboros desenhada no manuscrito alquímico de Cleópatra do 1° século
D.C. encontrou sua maior expressão. O segredo reside, Jung conclui, “no fato de que só tem
vida aquilo que por sua vez pode suprimir-se a si mesmo” (Idem, 1991 [A], p. 82, § 93).
10
DOURLEY, John. Tillich, Jung e a Situação Religiosa Atual. Trad. de Jaci Maraschin. (s.d.) Acesso em:
http://www.metodista.br/correlatio/num_01/a_dourle.htm.
11
Loc. cit.
192
12
Análogo ao primeiro estágio, isto é, ao ego identificado ao Si-mesmo, na alquimia o caos da prima materia,
reflete um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, por ocasião da nigredo.
13
De modo análogo, o segundo estágio, ou seja, o ego alienado do Si-mesmo, corresponderia ao estado de
superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos
animais do inconsciente por ocasião da albedo, alcançando uma Unio mentalis. Neste estágio, o indivíduo,
havendo saído da unidade inconsciente, indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade.
14
Análogo ao Mercúrio filosofal e à Quintessência de Dorneus, que, respectivamente, restaura a unidade da
substancia ou promove o Unus Mundus a partir da união da unio mentalis com o corpo; o terceiro elemento
comum entre o Pai e o Filho, o Espírito Santo, enquanto representação coletiva, originado por conteudos
arquetípicos, significa uma eliminação da dualidade no estágio do Filho e um retorno ao Pai. Sobre possível
argumento do ponto de vista teológico, de que o espírito de Deus já estava presente parirando sobre as águas na
gênese, e portanto não corresponderia ao papel de terceiro mediador, é necessário afirmar que, do ponto de vista
da alquimia este fato retrata o estado caótico da matéria, como se observa na citação de Eirenaeus Philaletha em
seu tratado A entrada aberta ao palácio fechado do rei, no quinto capítulo intitulado “ O chaos dos sábios”:
193
Essa discussão em torno do mais sagrado dos símbolos cristãos, isto é, o dogma da
Trindade, como objeto de investigação psicológica também remete à Paul Tillich. Tillich se
aprofundou no significado dos símbolos cristãos que se tornaram cada vez mais problemáticos
dentro do contexto cultural deste tempo. Segundo Tillich, as oposições da humanidade
solucionam-se por meio da participação na Trindade. Há um paralelo para o pensamento
junguiano na fórmula apresentada por Tillich para a recuperação do eu essencial primordial
expresso no dinamismo da vida trinitária. Sobre este aspecto considera Dourley:
“Que o filho dos filósofos, unânimes em concluir que esta obra deve ser comparada à criação do Universo. Pois
no princípio, Deus criou o céu e a terra, e a terra era vazia e deserta, e as trevas cobriam o abismo, e o espírito de
Deus era levado sobre as superfícies das águas” PHILALETHA, Eirenaeus. A entrada aberta ao palácio fechado
do rei. (s.d.). Acesso em: http://www.templodetoth.hpg.ig.com.br/alquimia.htm.
15
Jung, na carta dirigida à Victor White, acrescenta sobre esta fase do conflito: “ ... quanto mais estiver
envolvida nesta guerra e nestas tentativas de paz, ajudada pela anima, tanto mais começará a olhar pra frente,
para além do éon cristão, para a unidade do Espírito Santo. Ele é o estado pneumático que o criador alcança
através da fase da encarnação. Ele é a experiência de todo indivíduo que sofreu a completa abolição de seu ego
através da oposição absoluta (...)” (JUNG, 2002 [B], p. 305).
16
Dourley analisa a interpretação psicológica da Trindade, do ponto de vista Junguiano e, considera: “Em seu
ensaio sobre a Trindade Jung elogia o símbolo e a sabedoria de sua história conciliar ao descrever o movimento
básico da psique entre o inconsciente, que é o mundo do Pai, o consciente, o do Filho, Logos ou razão
discernente, e o Espírito, poder do eu que une o Pai e o Filho, o inconsciente com o consciente. Sem esses três
elementos a psique ficaria patologizada com o ego imerso no inconsciente ou separado dele” Loc. cit.
194
Desta forma, Tillich considera que a teologia que admite a dinâmica vital no indivíduo
como necessário elemento em sua expressão pessoal deve saber que ela tem aceitado a vida
dentro da ambigüidade divina-demoníaca e isto é triunfo da Presença Espiritual18 . A Presença
espiritual (uma racionalização da doutrina teológica do Espírito Santo) seria, neste sentido,
para Tillich, a fórmula para a recuperação do eu essencial primordial expresso no dinamismo
da vida trinitária. Sendo assim, a Presença Espiritual, segundo Tillich, “é, então, o primeiro
símbolo que expressa a vida-sem-ambigüidade” (TILLICH, 2000, p. 467). Sobre este aspecto,
conclui Dourley:
... A vida, para Tillich, significa a experiência de opostos em tensão que se dirigem
para a resolução. Em páginas inspiradas em Jacob Bohème, Tillich demonstra a
intuição natural humana de Deus combinada com o poder escuro e tremendo do
primeiro momento da vida divina com a luz do segundo para se resolver no terceiro,
que é o Espírito. Segundo Tillich, o Ser é vivo, e o movimento da consciência
existencial na direção de seu fundamento para a recuperação do eu essencial é, ao
mesmo tempo, o movimento, embora fragmentado, na direção da resolução dos
principais conflitos da vida que Deus já providenciou desde a eternidade. Esse
movimento dirige-se sempre para o fundamento de cada pessoa onde o poder da
Trindade, aí presente, age na vida existencial para a sua integração.19
Neste ponto, Jung e Tillich, assim, compartilham versões semelhantes da exp eriência
ligadas à integração dos opostos no ser individual. A primeira dessas afinidades é o uso que
fazem do antigo princípio da unio oppositorum. Sobre este aspecto, Dourley considera que os
dois pensadores entendem o princípio da união dos opostos em seu sentido mais profundo e
abrangente que é a da união da consciência com sua origem ou matriz20 . Para Tillich, segundo
17
Loc. cit.
18
Tillich acrescenta: “... Aquele que tenta evitar o aspecto demoníaco do sagrado perde igualmente o aspecto
divino e lucra apenas uma segurança enganadora entre eles. A imagem da perfeição é o homem que, no campo
de batalha entre o divino e o demoníaco, vence o demo níaco, embora fragmentária e prolepticamente (isto é, em
antecipação). Essa é a experiênciaem que a imagem da perfeição sob o impacto da Presença Espiritual
transcende o ideal humanista de perfeição” (TILLICH, 2000, p. 568).
19
Loc. cit.
20
Além desta união mais geral de opostos, Dourley acrescenta: “...os dois pensadores entendem a reunificação
da consciência com sua fonte para unir, mesmo se de forma ambígua, as divisões ou fragmentos da própria
consciência existencial. Tillich elabora essa unidade da fragmentação existencial por meu de seu entendimento
trinitário de Deus. A Trindade para ele representa a unidade suprema dos opostos em cuja vida as dimensões de
poder, profundidade ou abismo da vida se unem com sua expressão no Logos por meio do Espírito. À medida
que essa vida existencial participa em seu fundamento trinitário, ela frui, embora parcialmente, a unidade de
opostos que a vida divina possui desde a eternidade.(...). Ao reunir tais opostos por meio do Espírito que induz
maior participação na Trindade, Tillich entende que a teleologia do Espírito divino leva o espírito humano a se
unir nos níveis da moral, da cultura e da religião” Loc. cit.
195
o autor, “tal união se dá entre a humanidade existencial e sua realidade essencial no seu
fundamento divino. Para Jung, é a união entre o mundo consciente do ego e sua fonte nas
profundezas do psiquismo”21 .
Voltando ao símbolo central do Cristianismo, a Trindade, para Jung, significa a
essência de um processo que se desenvolve em três etapas que podem ser consideradas como
um processo secular de tomada de consciência. No conceito cristão da Trindade encontramos
a interpenetração mediante o qual o Pai aparece no filho, o Filho no Pai, o Espírito Santo no
Pai e no Filho, ou estes dois naquele, em sua qualidade de Paráclito, pois nesta perspectiva,
“as Três Pessoas divinas são personificações das três fases de um acontecimento psíquico
regular e instintivo” (JUNG,1999 [A], p. 82, § 287 ). O motivo do símbolismo trinitário na
trindade cristã é apenas um exemplo disso. Jung também descreve trindades babilônicas e
egípcias. Sobre este aspecto, Edinger também assegura uma tendência na humanidade no
sentido de conceber a divindade como tendo natureza trinitária e, ao analisar estas imagens
trinitárias, acrescenta:
... Ela pode muito bem provir de uma “revelação”, isto é, de uma reflexão
inconsciente, fruto de uma atividade autônoma do inconsciente, ou melhor, do Si-
mesmo, cujos símbolos, como vimos, não podem ser separados das imagens de Deus.
É por isso que a interpretação religiosa insistirá na revelação divina desta hipótese,
contra a qual a psicologia nada pode objetar, embora se atendo firmemente à sua
natureza inteligível; pois afinal de contas a Trindade é o resultado de um paulatino e
assíduo trabalho do espírito, ainda que predeterminado pelo arquétipo intemporal
(JUNG, 1999 [A], p. 48, §237).
Neste sentido, Jung atribui à Trindade a forma mais completa do respectivo arquétipo,
ou seja, a manifestação gradativa de um arquétipo, no decurso do tempo, “que organizou as
representações antropomórficas de Pai, Filho, Vida, Pessoas distintas, numa figura arquetípica
numinosa, ou seja, a “Santíssima Trindade” (Ibidem, p. 39, § 224). Em outras palavras, a
tríade é o desdobramento do uno, e, segundo Jung, “sua transformação num conjunto
cognoscível” (Ibidem, p. 8, § 180). Embora a presença desse conceito seja fruto de uma
reflexão humana, tal reflexão não constitui necessariamente um ato consciente, mas sim
“como um processo coletivo que se prolonga ao longo de séculos, isto é, um processo de
diferenciação da consciência que se estende por milênios” (Ibidem, p. 68, § 268). Sendo
assim, com relação ao arquétipo da trindade, este parece estar ligado à um esquema
ordenador, pois quando lidamos com “eventos temporais ou ligados ao desenvolvimento,
parece haver uma tendência arraigada de carácter arquetípico, a organizar eventos em termos
de um ritmo ternário” (EDINGER, 2000, p. 247). Neste sentido, os símbolos trinitários
22
Jung acrescenta: “Se as representações da Trindade nada mais fossem do que sutilezas da razão humana, talvez
não valesse a pena mostrar todas as conexões sob uma luz psicológica. Mas sempre defendi o ponto de vista de
que essas representações pertencem à categoria da revelação. (...) A revelatio, é em primeira instância, uma das
descobertas da alma humana, a ‘manifestação’ em primeiro lugar de um modus psicológico que como se sabe,
além disto, nada nos diz acerca do que ela poderia ser” (Idem, 1999 [B], p. 78, § 127).
197
...os símbolos trinitários são dialéticos; eles refletem a dialética da vida, a saber, o
movimento de separação e reunião. (...) Se significa a descrição de um processo real,
não é paradoxal ou irracional de nenhuma maneira, mas é uma descrição precisa de
todos os processos da vida. E na doutrina trinitária é aplicado à vida divina em
termos simbólicos (TILLICH, 2000, p. 602).
23
A quaternidade é, segundo Jung, “o pressuposto lógico de todo e qualquer julgamento de totalidade” (Idem,
1999 [A], p. 55, §246). Este fato parece estar ligado também ao quatérnio espaço-tempo, que segundo Jung, “é a
condição e a possibilidade arquetípica do conhecimento físico em geral” (Idem, 1988, p. 241, §398). aion). Em
ambos os casos, o quarto fator, “representa algo de incomensuravelmente diverso, o qual entretanto, é necessário
para determiná-los, um em relação ao outro” (Idem, 1988, p. 240, §397).
24
A associação do diabo com a terra provêm do fato de que este como anjo “caiu do céu a modo de um
relampago” e se tornou senhor deste mundo. A matéria é a verdadeiramente a morada do Diabo, que tem o seu
inferno e o fogo de sua fornalha no interior da terra .Especialmente, Gerardus Dorneus “acha que o demônio, por
ocasião da queda dos anjos, ‘in quaternariam et elementariam regionem decidet’ (foi precipitado na região da
quaternidade e dos elementos)” ( DORNEUS, p. 65, § 104 In: JUNG, 1999[B]).Na alquimia, não se mencionava
abertamente o princípio do mal, “mas este parecia no carácter venenoso da prima materia, assim como em outras
alusões” (JUNG, 1999 [B], p. 68,§107). Além disso, a prima materia é saturnina, e “o maleficus Saturnus é a
morada do diabo, ou ainda ela á a coisa mais desprezível e abjeta”(Idem, 2003, p. 171, § 209). Já a associação
do demônio ao feminino provêm do número binário, que é o secreto parentesco entre o diabo e a mulher. Fato
198
Além disso, Jung observa que, por um lado, a declaração da Assunção de Maria como
dogma aponta para a realização do hierógamos no pleroma, isto é, realiza a união no céu com
seu corpo originário e, isto ocorre, para a glória eterna. Por outro lado, o nascimento do
Salvador se dá no homem, no decurso do tempo; sendo assim, Jung conclui que a união
nupcial constitui a etapa preliminar da encarnação, isto é, do nascimento daquele Salvador
este que Dorneus descobre com grande astúcia: Dorneus observa que na tarde do segundo dia da criação, depois
de haver separado as águas superiores das inferiores, Deus não disse que “era bom”, tal como nos outros dias. E
isto, “precisamente porque no segundo dia Deus criou o Binárius, que é a origem do Mal”. (JUNG, 1999 [A], p.
61, § 256). Segundo Jung, Dorneus é o primeiro a mostrar a discrepância que há entre a trindade e a
quaternidade, entre Deus, enquanto espírito, e a natureza empedocliana, cortando, com isso, o fio vital da
projeção alquimista. Jung assegura que para este autor, a emancipação da dualidade deu origem à desorientação,
à separação e às desavenças. Do binário surgiu ‘sua prole quaternária’. Como a dualidade é feminina, significa
Eva, enquanto que a tríade corresponde a Adão. Por isso o diabo tentou Eva em primeiro lugar. Sendo assim,
Dorneus oferece uma descrição minuciosa da operação simbólica mediante a qual o demônio criou a “serpente
dupla” (dualidade) de quatro chifres (quaternidade):“Ele (o diabo), cheio de astúcia, sabia com efeito que Adão
fora assinalado com a marca do um; por isso não o assediou em primeiro lugar, pois não tinha a certeza de que
poderia conseguir algo. Mas sabia também que Eva tinha sido separada de seu marido, à semelhança do número
binário que se separa da unidade do número três. Por isso, apoiado numa certa semelhança do número dois com
o número um ... decidiu atacar a mulher. Efetivamente, todos os números pares são femininos e sua base é o
número dois, correspondendo Eva a este primeiro número (par)” DORNEUS, Gerardus. De Tenebris contra
Naturam et Vita Brevi; In: TheatrumChemicum, 1602, I, p. 527. Apud: JUNG, C.G. Psicologia e religião. Rio
de Janeiro: Ed. Vozes, 1999 [B], p. 65, §104, nota 48. Neste sentido, assim como o Diabo se caracteriza pela sua
oposição e, pelo fato de querer sempre o contrário, do mesmo modo que a desobediência caracteriza o pecado
original, foi principalmente pelo pecado original e pela sedução da mulher que a morte entrou no mundo. Jung
acrescenta: “O inconsciente do homem também é feminino e personificado pela anima. Esta última representa
sempre a ‘função inferior’ e por isso constitui não raro um caráter moral duvidoso; às vezes representa o proprio
mal. Geralmente é a quarta pessoa (...). É o ventre materno, escuro e temido, e enquanto tal, de natureza
ambivalente” (JUNg, 1991 [A], p. 162, § 192).
25
Loc. cit.
26
Loc. cit.
199
que por sua vez, se refere ao futuro nascimento do menino divino27 que, “em virtude da
tendência divina a encarnar-se, escolherá o homem empírico para nele se realizar. Este
acontecimento metafísico é conhecido como processo de individuação” (JUNG, 2001, p. 110,
§755). Sobre este aspecto, ao comentar que a Trindade se transforma em quaternidade, com o
acréscimo de uma quarta pessoa, a saber, a Rainha, Jung assegura que a quaternidade e o
círculo, de um lado, e o ritmo ternário, de outro, se interpenetram de um modo que um se acha
contido no outro. Desta maneira, portanto a quaternidade “aparece como conditio sine qua
non do nascimento de Deus e portanto da vida interna da trindade, em geral” (JUNG, 1999
[B], p. 77, § 125). Sobre este aspecto concorda Edinger, pois o quatro, ou a totalidade
psíquica, deve ser realizado, segundo o autor pela sua “submissão ao processo ternário de
realização no tempo. Devemos nos submeter à dolorosa dialética do processo de
desenvolvimento. A quaternidade deve ser complementada pela trindade" (EDINGER, 2000,
p. 256). Neste sentido, como a individuação, na realidade, jamais está verdadeiramente
completa, “cada estágio temporário de completude ou totalidade deve ser submetido, uma vez
mais, à dialética da trindade, para que a vida continue” (Ibidem, p. 259). Sobre este aspecto,
Tillich, analisa o motivo do símbolismo trinitário e, assegura, que o simbolismo trinitário é
dialético pela persistência do número “três” nas fórmulas devocionais e, no pensamento
teológico:
Esses fatos mostram que não é o número “três” que é decisivo no pensamento
trinitário mas a unidade numa multiplicidade de automanifestações divinas. Se
perguntarmos porque, apesar dessa abertura a números diferentes, prevaleceu o
número “três”, parece muito provável que o três corresponde à dialética intrínseca da
vida experienciada e, portanto, é o mais adequado para simbolizar a Vida Divina. A
Vida foi descrita como sendo o processo de saída de si e o retorno a si mesma. O
27
A união nupcial consumada no tálamo celeste exprime o hierógamos que, por sua vez, constitui a etapa
preliminar da encarnação, isto é, segundo Jung, “do nascimento daquele Salvador que desde a antiguidade
clássica era considerado como um ‘filius solis et lunae, filius sapientiae’, correspondente a Cristo. Ora se o
desejo de que a Mãe de Deus fosse glorificada estava presente no coração do povo, é indício de que esta
tendência, em suas últimas consequências, exprime o anseio profundo de que nasça o Salvador, um
pacificador,(…). Embora Ele tenha nascido no pleroma, antes de todos os tempos, o seu nascimento só pode
realizar-se no tempo, quando percebido, conhecido e proclamado (declaratur) pelo homem” (JUNG, p. 105). A
divindade de Jesus, rejeitada por três concílios, o mais importante dos quais foi o de Antióquia (269), foi, em
325, proclamada pelo de Nicéia, nestes termos:"A Igreja de Deus, católica e apostólica, anatematiza os que
dizem que houve um tempo em que o Filho não existia, ou que não existia antes de haver sido gerado." Paul
Tillich, em seu trabalho Teologia Sistemática, aponta para uma Unidade inquebrantável entre Jesus e Deus: “A
história do nascimento virginal faz remontar essa unidade até o próprio início e mesmo além dele, até seus
antecessores. O símbolo de sua pré-existência dá a dimensão eterna, e a doutrina do Logos que se tornou
realidade histórica (carne), aponta para para aquilo que foi chamado “Encarnação”. Era necessária a cristologia
encarnacional para explicar a cristologia adocionista” (TILLICH, 2000, p. 359). Sendo assim, o Logos não
desapareceu quando Jesus de Nazaré nasceu. A encarnação do Logos, conclui Tillich, “não é metamorfose mas
sua manifestação total numa vida pessoal” (Ibidem, p. 359).
200
número “três” está implícito nessa descrição, como já o sabiam os filósofos dialéticos
(TILLICH, 2000, p. 608).
28
Loc. cit.
201
29
Loc. cit.
30
Loc. cit.
202
e da volta dessa mesma fonte31 . Quando o ego adentra novamente o útero (ovo) cósmico, do
inconsciente da Grande Mãe e se dirige a um momento de unidade com a fonte primal da
totalidade; esse momento parece promover essa dupla integração na psique daqueles que
submergem nessa reentrada e retornam à consciência; ou seja, promove a integração dos
componentes complexos do indivíduo em direção a uma personalidade mais unificada e
portanto, revitalizada e, ao mesmo tempo, correlaciona essa personalidade com a totalidade a
partir da qual esse indivíduo emergiu. Esse processo, do ponto de vista psicológico, está bem
descrito na obra alquímica, principalmente nos três graus da Coniunctio de Dorneus.
Resumidamente no primeiro grau, tem-se a unio mentalis, que corresponde a união
(conjunção) do espírito mais a alma. O segundo grau consiste em reunir a unio mentallis com
o corpo. Finalmente no terceiro grau da Coniunctio, ocorre a conjunção completa, a saber, a
união com o unus mundus (mundo uno). Sendo assim, pelo processo de extração da alma do
corpo e do seu retorno à este, atinge-se o estado de consciência que os alquimistas descreviam
como unus mundus. Jung interpreta o termo para descrever um estado natural, porém
avançado de maturação psicológica, num idioma com profundas implicações religiosas. Essa
maturação psicológica e maturidade religiosa vêm de encontro não ao além da vida mas
inserida nela como objetivo da psique e da vida enquanto no corpo físico. Do ponto de vista
psicológico, esta terceira etapa da Coniunctio, segundo Jung:
... pode tratar-se, primeiro de mera “unio mentalis” (união mental) intrapsíquica do
intelecto e da razão com o Eros, que representa o sentimento. Uma operação interna
dessa espécie sem dúvida não significa pouco, por representar um grande progresso
tanto do conhecimento como do amadurecimento pessoal, mas sua realidade é apenas
potencial e se torna verdadeiramente real somente depois de sua união com o mundo
físico dos corpos (JUNG, 1990, p. 219- 220, §329).
Chegamos assim, ao final das considerações sobre o conceito de Unus Mundus, como
ápice do processo alquímico e, suas contribuições para o estudo do religioso no campo
simbólico, à luz da Psicologia Profunda de Carl Gustav Jung.
31
Esse lado do pensamento de Jung pode levantar sérios problemas teológicos sobre a auto-suficiência do divino
e atribui um papel à atividade humana no processo de salvação em alguma tensão considerável com doutrinas
tradicionais sobre a gratuidade salvação e a prioridade de Deus por todo o processo de salvação.
203
VI -- CONCLUSÃO
da alma” do caos da prima materia. Esta idéia provém das concepções mágico-pagãs, a
respeito de uma alma divina ou da anima mundi (alma do mundo), que estava inerente à
physis (natureza) ou nela aprisionada. Neste sentido, é compreensível que Jung tenha indicado
a relação do primeiro grau da conjunção de Dorneus, a unio mentalis, a qual ocorre a
"separação da alma do corpo" com o primeiro processo geral da alquimia, a nigredo, como se
pode observar no trecho abaixo:
...A inconsciência original, ainda meio animal, era conhecida ao adepto como nigredo
(negrura), caos, massa confusa e como um entrelaçamento difícil de desfazer entre a
alma e o corpo, com o qual ele forma uma unidade sombria (unio naturalis).
Justamente dessas cadeias queria ele libertá-la pela separatio (separação) e
estabelecer uma posição contrária , de natureza psíquico-anímica, isto é uma
compreensão consciente e conforme à razão, que se apresentava como superior às
influências do corpo. Mas tal compreensão, (...), somente é possível quando se pode
retirar as projeções enganosas, que encobrem como um véu a realidade das coisas.
(Ibidem, p. 243, § 356).
O alquimista se propõe a criar um ser volátil (ou aéreo, espiritual), no entanto inicia a
obra no caos da prima materia, refletindo um entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e
o corpo. Na fase alquímica nigredo, a dissolução e mortificação do corpo, pelo processo da
“extração da alma”, denota, do ponto de vista psicológico do Opus, que a consciência,
desembaraça-se desta fusão com a natureza, isto é, dos afluxos do inconsciente. Mantendo-se
em um campo factível, que é o da investigação simbólica destes processos alquímicos, nota-se
que, embora o primeiro grau da Coniunctio do alquimista Dorneus não apresente equivalência
com a simbólica envolvida no contexto da nigredo, em seus aspectos psíquicos, estabelece
sim equivalência com tudo aquilo que culmina, produz ou almeja produzir a respectiva fase
“negra”: segundo a tese, uma unio mentalis, ou seja, um estado de superação em relação os
afluxos do corpo e da matéria e, em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos
animais do inconsciente1 . Acrescenta-se à esta questão, a constatação feita pela presente
dissertação, de o motivo da renovação do rei na alquimia ocorrer em paralelo com as
transformações tanto nos simbolos teriomórficos como na mutabilidade do símbolo da lua.
Sendo assim, quanto mais se realiza o processo alquímico de “extração da alma”, tanto mais
os símbolos teriomórficos progridem da esfera dos instintos (corpo), representado pelos
animais ligados à terra, para a esfera do espírito, isto é, aproximam-se dos símbolismo
1
Edinger acrescenta: “So the unio mentalis brings about a state where the ego is separated from the
unconscious, and able to take an objective and critical atitude toward affects and desirousness – the spirit and
soul are joined together and separated from the body” [Então a unio mentalis traz aproximadamente um estado
onde o ego está separado do inconsciente, e capaz de ter uma atitude crítica e objetiva com os afetos e desejos --
o espírito e a alma estão juntos unidos e separados do corpo] (EDINGER, 1995, p. 281).
205
teriomórficos das aves; respectivamente, com relação à simbólica Sol- Lua, acrescenta-se
também a constatação feita pela presente dissertação de que, quanto mais se afasta da
inconsciência original no negrume da lua nova, na mesma proporção é importantíssimo o
plenilúnio (lua cheia), como aquele estado de completa oposição ao Sol, que transcende a
afetividade e o aspecto instintivo do corpo (Lua).
O processo simbólico alquímico de “separação da alma do corpo” é bastante
conhecido na psicologia, que usa o mesmo procedimento ao tornar objetivo os afetos e
instintos e ao confrontar à consciencia com eles. Erich Neumann, discípulo e colaborador de
C. G. Jung, aborda este processo, caracteristico do desenvolvimento individual da primeira
metade da vida, em seu livro História da origem da consciência, ao descrever a ruptura do
estado uroborico inicial, no qual a consciência, alem de desembaraçar-se da sua fusão com a
natureza, ao mesmo tempo, constela a sua independência da natureza como independência do
corpo. O ser contido na uroboros significa que a consciência se encontra à mercê dos
instintos, impulsos sensações e reações advindos do mundo do corpo. Sendo assim, a
"separação da alma do corpo" descrita na unio mentalis de Dorneus e concomitantemente no
estágio da nigredo, na concepção junguiana:
... tem em vista subtrair o espírito e a afetividade (Gemüt) ao influxo das emoções e
com isso estabelecer uma positio (posicionamento) espiritual superior à esfera
turbulenta do corpo, o que conduz primeiro a uma dissociação da personalidade e a
uma violenta correspondente do homem meramente natural. (Ibidem, p. 225, §335).
2
Jung acrescenta: “No plano psicológico, equivaleria a considerar a conscientização dos conteúdos inconscientes
e eventualmente a exploração teórica como meta do trabalho. Em ambos os casos, estaríamos impondo ao
conceito de espírito a definição de que o mesmo tem a ver com o pensar ou o intuir (JUNG, 1999[C], p. 143, §
486).
3
Embora a expressão “rasguem os livros” apresente-se como uma tomada de decisão da consciência, o mesmo
não poderá ser afirmado com relação ao conjunto de imagens que se apresentam na sucessão das fases
206
Sobre este aspecto psicológico da expressão alquímica, Jung conclui que os alquimistas
perceberam o perigo de a realização estagnar no âmbito de uma determinada função da
consciência4 :
alquímicas, visto que estas tratam-se naturalmente, de projeções psíquicas, sendo, portanto, necessariamente
identificações inconscientes. Isto decorre do fato de os alquimistas desde sempre procuraram fora de si encontrar
aquela substancia do arcano e, somente no século XVI passou a aludir a um efeito interno com uma clareza de
que já não se podia duvidar. Sendo assim, como a diferenciação psicológica inexistia na época da alquimia com
relação à expressão “rasguem os livros”, Jung acrescenta que, “não é de se estranhar que encontremos apenas
ligeiras alusões nos tratados a considerações deste tipo que acabo de fazer. Contudo, tais alusões existem,
conforme podemos ver” (JUNG, 1999[C], p. 144, §490).
4
Jung neste ponto de sua obra chega a estabelecer uma sequência de 4 etapas de realização das funções da
consciência durante o opus alchymicum: sendo a sensação (entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o
corpo), seguido pelo pensamento na segunda etapa; seguido da função em oposição mais forte ao pensamento,
ou seja, o sentimento, e terminando na antecipação da lapis, ou seja, na atividade imaginativa da quarta função,
“a intuição, ou pressentimento, sem a qual nenhuma realização é completa” (JUNG, 1999[C], p. 145, § 492).
Como o processo de individuação é um processo cíclico, esta sequência de realização dessas funções também o
seria. Além disso, como é do conhecimento junguiano, sabe-se que a anima, assim como o animus, apresentam
quatro estágios de desenvolvimento. Levanta-se aqui uma hipótese se estes estágios de desenvolvimento da
anima-animus também não obedecem esta sequência de 4 etapas de realização das funções da consciência
apontadas por Jung. Com relação à anima: o primeiro é uma simples personificação do relacionamento
puramente instintivo e biológico (sensação). O estágio seguinte personifica um nível romântico e estético, uma
tentativa para diferenciar ( pensamento) o lado feminino da natureza masculina na relação com a mulher
(exterior) e em relação ao seu próprio mundo interior, passando a distinguir tanto os seus sentimentos quanto a
sua conduta para com as mulheres. No terceiro estágio, o eros é elevado à grandeza da devoção espiritual
(sentimento).O quarto estágio é simbolizado pela Sapiência, a sabedoria que transcende (intuição) até mesmo a
pureza e a santidade, “fazendo descortinar novos horizontes e perspectivas (VON- FRANZ, 1964, p. 185). Por
outro lado, a personificação dos quatro estágios do animus aparecem associados primeiro à uma simples
personificação do relacionamento puramente instintivo e biológico (sensação), ligado apenas à força física. Na
psicologia feminina, como o consciente da mulher é caracterizado mais pela vinculação ao Eros, o carácter
diferenciador e cognitivo do Logos, via de regra, aparece menos desenvolvido do que o primeiro. Sendo assim, o
segundo estágio, personifica o homem romântico (sentimento) e, como o pensamento é geralmente a função
menos diferenciada que o sentimento, aparece por isso, apenas no terceiro estágio, tornando-se o “verbo”, na
figura de um professor ou clérigo (pensamento). Finalmente a quarta manifestação é a personificação do sábio
guia que leva à verdade espiritual (intuição), relacionando “a mente feminina com a evolução espiritual da sua
época, tornando-a assim mais receptiva a novas idéias criadoras do que o homem. É por esse motivo que
antigamente, em muitos países, cabia às mulheres a tarefa de adivinhar o futuro ou a vontade dos deuses” (VON-
FRANZ, 1964, p.194).
207
alcançou uma unio mentalis, apresenta o risco de que uma redução à consciência separe-o da
experiência imediata com a base inconsciente. Mais uma vez, mantendo-se em um campo
factível, que é o da investigação simbólica destes processos alquímicos, acrescenta-se a
constatação de que nesta etapa da Obra, a alquimia volta-se para a matéria, isto é, segundo
Dorneus, o chamado corpus (corpo), onde está projetado o inconsciente, que dá a luz à si
mesmo. Sendo assim, um fato digno de nota, diz respeito à importância que a alquimia dá
para a volta e a fixação no corpo; fato este que a presente dissertação buscou abordar nas
citações apresentadas no decorrer do capítulo referente à albedo, onde as repetidas extrações
do espírito mercurial, demonstraram ter como objetivo, a fixação da parte volátil-espiritual da
matéria em um corpo apropriado Na alquimia, no que diz respeito à fixação e permanência da
alma- espírito ao fina l da sublimação, no somaton, (a terra ou o corpo), demostra que nesta
etapa do Opus, há uma exaltação do ctônico, do institual, do feminino, isto é, em um
discussão psicológica, do inconsciente. Esse enredamento nos conteúdos inconscientes
provocados pelo efeito numinoso destes, ocorre com a finalidade expressa de integrar à
consciência os enunciados do inconsciente por causa de seu conteúdo compensativo e, assim,
realizar esse sentido da totalidade. Os conteúdos personificados do inconsciente uma vez
reconhecidos pela consciência provocam uma mudança psíquica, visto que estes não poderão
voltar a ser inconscientes. A aquisição do conflito nesta fase pode ser considerada uma
vantagem especial, pois sem ele não existe união, nem nascimento. Como foi visto, pelo
processo alquímico da Circulatio, a obra alquímica se aproxima da operação da união dos
opostos (Coniunctio). Neste ponto, nota-se que símbolos teriomórficos voltam à aparecer, mas
formados por dualidades, (como a águia e o sapo, ou ainda, duas aves e de dois dragões,
sendo sempre um desses animais alado e, o outro, desprovido de asas), indicando assim, a
ultima e mais forte oposição entre o espírito e corpo. Além disso, os símbolos também
aparecem na maneira de efetuar esta importante operação sob um conjunto de dualidades
ligados ao masculino e ao feminino, como branco e vermelho, esposo e esposa, rei e rainha
(no Rosarium Philosophorum também por imperador e imperatriz), homem vermelho e
mulher branca, leão macho e leão femea, etc. Do ponto de vista psicológico do opus, a idéia
clássica da circulatio, da repetição do processo ainda e sempre num outro nível, é a idéia
clássica de circum-ambulação do Si- mesmo. Esta aproximação chega até que se atingir a mais
completa oposição. Isso acarreta o confronto com o inconsciente e a tentativa de estabelecer
uma síntese dos opostos.
De modo igual, assim como os simbolos voltam a aparecer, mas formados por
dualidades, indicando a última e mais forte oposição entre o espírito e corpo; mais uma vez,
208
...O bálsamo, que ‘está acima da natureza’, deve encontrar-se também no corpo
humano, como pensa DORNEUS, e deve ser semelhante a uma substancia aérea. Ele
conserva e assegura a persistência das partes elementares dos corpos vivos e é o
melhor remédio não apenas para o corpo, mas também para o espírito. Ainda que ele
seja de natureza corpórea, contudo ele é essencialmente espiritual, por ser a união do
5
Edinger acrescenta: “So now we`re at level 2 on our way, and at this level the ego has achieved the acceptance
of the opposites and is able to endure tha paradox of the psyche`s two-sidedness” [Assim agora nós estamos no
nível 2 em nosso caminho, e neste nível o ego conseguiu a aceitação dos opostos e pode resistir ao paradoxo dos
dois lados da psique] (EDINGER, 1995, p.281). Análogo ao Mercúrio filosofal, a Quintessência de Dorneus,
restaura a unidade da substancia, no terceiro estágio. Edinger acrescenta: “ The event that takes place is the third
stage of the coniunctio, the called union with the unus mundus” [ O evento que ocorre é o terceiro estágio da
coniunctio, a chamada união com o unus mundus] (Ibidem, p. 281). Neste sentido, o processo é ternário: origem,
desenvolvimento do conflito, e reunião. Mas a imagem é quaternária, devido ao desdobramento na oposição.
209
6
De acordo com o esquema ternário de desenvolvimento psicológico de Edinger, o primeiro estágio, isto é, o
ego identificado ao Si-mesmo corresponderia na alquimia ao caos da prima materia, refletindo um
entrelaçamento difícil de desfazer entre a alma e o corpo, por ocasião da nigredo. O segundo estágio, ou seja, o
ego alienado do Si-mesmo, corresponderia ao estado de superação em relação os afluxos do corpo e da matéria e,
em uma discussão psicologica profunda, dos impulsos animais do inconsciente por ocasião da albedo,
alcançando uma Unio mentalis. Neste estágio, o indivíduo, havendo saído da unidade inconsciente,
indiferenciada, passará de lá para o mundo da dualidade. Finalmente o terceiro estágio, isto é, o ego unido de
novo ao Si-mesmo através do eixo ego-Si-mesmo, corresponde agora a integração desses conteúdos na vida real
do indivíduo; fato este que somente poderá ser vivenciado se o indivíduo for confrontado com uma união dos
opostos. Eis também porque a albedo e a rubedo, eram simbolizadas nos tratados alquímicos
concomintantemente juntas.
210
Minha opinião é que a Igreja deve repelir qualquer tentativa de se levar a sério tais
resultados. E é até mesmo possível que deva condenar qualquer tentativa de
aproximação em relação a essas experiências, pois não se pode permitir que a
natureza reúna aquilo que ela separou. Percebe-se claramente a voz da natureza em
todas as experiências vinculadas à quaternidade, e isto desperta a antiga suspeita
contra tudo aquilo que lembre o inconsciente, por mais remotamente que seja. O
estudo científico dos sonhos é a antiga oniromancia com novas roupagens e talvez
por isso seja tão condenável como as demais artes “ocultas”. Nos tratados alquimistas
encontramos paralelos próximos ao simbolismo dos sonhos, e estes são tão heréticos
quanto os primeiros. Parece que aí está uma das razões essenciais para se manter tais
conceitos em segredo, ocultando-os com metáforas protetoras (JUNG, 1999 [B], p.
66, § 105).
para um quarto elemento7 . Trata-se, neste sentido, “do aspecto de desenvo lvimento, temporal,
de realização. Embora o alvo seja quaternário, o processo de realização do alvo é ternário”
(Ibidem, p. 254). Edinger ao se aprofundar nesta questão, conclui que nesse caso o arquétipo
da quaternidade e o da trindade se refeririam a dois diferentes aspectos da psique:
A doutrina da Trindade não está encerrada. Ela não pode nem ser descartada nem
aceita em sua forma tradicional. Ela deve permanecer aberta para que cumpra sua
função original – expressar em símbolos abrangentes a auto-manifestação da Vida
Divina ao homem (TILLICH, 2000, p. 610).
7
Edinger acrescenta: “ Se pensarmos na trindade como reflexo de um desenvolvimento, um processo dinâmico,
o terceiro termo é a conclusão do processo. O terceiro estágio restaurou a unidade original do 1 num nível mais
elevado. Essa nova unidada só poderá ser perturbada pela emergência de uma nova oposição, que repetirá o ciclo
trinitário” (EDINGER, 2000, P. 248).
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É importante ressaltar que a sequência no tempo das fases do Opus é coisa bastante
incerta. Como foi visto anteriormente, no que diz respeito à seqüência dos estágios
alquímicos, a divisão do processo era inicialmente feita em 4 fases assinaladas caracterizadas
pelas cores originárias: o enegrecimento, o embraquecimento, o amarelamento, e o
enrubescimento. Porém, mais tarde, as cores foram reduzidas a três. Jung na citação abaixo,
analisa este fato; e suas considerações enriquecem ainda mais a tese da presente dissertação:
Por fim, embora a sequência no tempo das fases do Opus seja coisa bastante incerta,
deparamos com a mesma incerteza no processo de individuação, no qual só se pode
estabelecer um esquema típico da sequencia de fases, de modo genérico. Entretanto, a simples
possibilidade de ordenação destes simbolismos presentes nas três fases, dentre uma massa
caótica de simbolismos que a alquimia engloba e, o estabelecimento de analogias apropriadas,
como as propostas nesta tese com relação aos estágios da Coniunctio de Dorneus, embora não
represente o esquema geral do fenômeno, já se justifica, por mais que sua imperfeição possa
dar margem a desentendimentos.
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Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )