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Blog da Psicologia da Educação | Emilia Ferreiro - O ato de ler evolui

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Emilia Ferreiro - O ato de ler evolui

Entrevista com Emilia Ferreiro


Fonte: http://revistaescola.abril.com.br/edicoes/0143/aberto/mt_246953.shtml

Para a psicolingüista argentina, o que se espera de um leitor muda com o tempo. Na era da internet,
seletividade e rapidez são características essenciais

Nos anos 70, ela revolucionou a alfabetização ao explicar como as crianças aprendem. Passou a
defender a utilização de textos variados, em substituição às cartilhas. Após a polêmica inicial, suas
teses se tornaram referência internacional. A fama não a desviou, no entanto, da preocupação em
desvendar o processo de aquisição da leitura e da escrita. Aos 64 anos, Emilia Ferreiro agora avalia
a interferência das inovações trazidas pela internet. "Todo profissional deve querer saber sempre
mais", ensina. "Se não há inquietude, repetimos coisas que podem estar ultrapassadas." Em abril, a
psicolingüista argentina (que vive no México) passou pelo Brasil e concedeu a seguinte entrevista a
NOVA ESCOLA.

NOVA ESCOLA> No livro Cultura Escrita e Educação, a senhora afirma que adora
pesquisar e descobrir que entendeu algo que a intrigava. O que a deixa intrigada
atualmente?

Emilia Ferreiro< Continuo tentando compreender melhor o funcionamento dos sistemas e das
tecnologias de escrita. Indagações surgem a respeito dos modos de comunicação e estilos que estão
sendo criados. Um exemplo é o chat, que parece um intercâmbio informal, cara a cara, só que por
texto. Outro é o e-mail, que não é uma carta em papel nem um telegrama. Essas novas formas de
diálogo possuem propriedades que não conhecemos. São temas a ser pesquisados, assim como a
interface entre a aquisição da escrita com letras e com números...

NE> Como isso se dá?

Emilia< As duas são ensinadas simultaneamente porque a escola e o ambiente pedem. Já


conhecemos bastante o sistema de aquisição da leitura com letras e a maneira de escrever números
em situações vinculadas a representações de quantidade. Quero averiguar como se descobre
quando usar um ou outro. Quando escrevo casa, leio casa e posso traduzir para house, se souber
inglês. No entanto, se escrevo 5, posso ler cinco ou five. Nesse caso não está escrito o nome do
número mas o sentido que ele passa. E esse sentido pode ser passado em qualquer língua. Não
posso redigir a palavra casa com números, mas a palavra cinco posso escrever também com um
algarismo. É interessante ver como crianças muito pequenas, de 4 ou 5 anos, lidam com isso.

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NE> O professor deve tentar desvendar problemas em seu dia-a-dia?

Emilia< Não. O ofício do pesquisador e o do professor são distintos. Digo isso porque exerço os dois.
Quando estou ensinando, minha atitude sobre os problemas é diferente da que tenho quando estou
pesquisando. É importante ensinar os alunos a pesquisar, mas isso é parte de meu trabalho de
professora.

NE> Mas não é também papel do docente buscar novos conhecimentos?

Emilia< Com certeza. Só que isso é diferente de pesquisar. Querer saber sempre mais deve ser
próprio de qualquer profissional. Um médico também tem de se atualizar e não se contentar com o
que aprendeu na universidade. Se não há uma certa inquietude em continuar descobrindo coisas
novas terminamos repetindo as antigas — e o que era válido há vinte anos não continua
necessariamente bom hoje.

NE> O significado de saber ler e escrever também muda com o tempo?

Emilia< Usamos esses mesmos verbos na Grécia clássica, na Idade Média, na revolução industrial
ou na era da internet. Por isso, temos a impressão de que designam a mesma coisa. O real
significado, no entanto, vem se modificando. Ambos têm a ver com marcas visuais, mas o que se
espera do leitor é determinado socialmente, numa certa época ou cultura. Na Antigüidade clássica
não se esperava o mesmo que no século XVIII, nem o que se espera agora.

NE> O que determina a eficiência de um leitor na era da internet?

Emilia< O trabalho na internet exige rapidez na leitura e muita seletividade, porque não se pode ler
tudo o que está na tela. E a capacidade de selecionar não é algo que, há alguns anos, fosse uma
exigência importante na formação do leitor. No contexto escolar, não tinha lugar preponderante
mesmo. Na rede mundial de computadores, as páginas estão cheias de coisas que não têm relação
com o que procuro e existe a possibilidade de um texto me conduzir a outros por meio de um click.
Além disso, quando tenho um livro em mãos e o abro em qualquer página, sei claramente se é o
começo, o meio ou o fim. Quando abro uma página na internet nem sempre tenho noção de onde
estou.

NE> Mas os jovens têm facilidade para se adaptar a essas mudanças...

Emilia< Eles aprenderam a usar a internet sozinhos e rapidamente, sem instrução escolar nem

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paraescolar. Eles conhecem essa tecnologia melhor que os adultos — os alunos sabem mais do que
seus mestres. Essa é uma situação de grande potencial educativo, porque o professor pode dizer:
"Sobre isso eu não sei nada. Você me ensina?" A possibilidade de uma relação educativa realmente
dialógica é fantástica. Mas o docente não está acostumado a fazer isso e, num primeiro momento,
fica com muito medo de não poder ensinar. Em casa, ele recorre aos filhos. No espaço público, na
escola, ele tem mais dificuldades.

NE> Além da questão tecnológica, existe a da língua. A senhora acha que quem não
souber inglês será um analfabeto nesta era da internet?

Emilia< É preciso aprender o inglês, sem dúvida, mas não só esse idioma. Nestes tempos de
globalização, vemos ao mesmo tempo um movimento de homogeneização (de um lado) e grupos
que manifestam um desejo de manter a própria identidade (de outro). As duas coisas estão
funcionando simultaneamente. No início da internet tínhamos a impressão de que ela seria uma das
tantas maneiras de converter o inglês na única língua de comunicação. Hoje a situação mudou
bastante. Há cada vez mais uma diversidade de idiomas na rede. Temos duas direções a seguir:
consultar somente sites na nossa língua ou tomar consciência de que a rede nos dá acesso, por
exemplo, a jornais escritos em países distintos — e procurar entendê-los.

NE> Voltando à alfabetização, o livro Psicogênese da Língua Escrita foi lançado no Brasil
em 1985 e causou uma revolução. Como a senhora avalia a repercussão da teoria ali
contida?

Emilia< As mudanças educativas são lentas. É muito fácil transformar uma escola pequena,
privada, que tenha desejo de evolução. Mas num sistema educativo municipal ou estadual é mais
difícil. Tendo em conta a complexidade da realidade brasileira e levando em consideração que a
difusão da teoria não foi similar em todas as regiões, eu diria que já aconteceram muitas coisas por
aqui.

NE> Quais as mais significativas?

Emilia< No Brasil havia uma espécie de obsessão em montar turmas homogêneas. Tenho a
impressão de que esse não é mais um problema. E se isso realmente aconteceu, é um grande
avanço. A homogeneidade é um mito que nunca se alcança. Eu posso aplicar uma prova, dizer que
vinte estudantes são iguaizinhos e colocá-los todos juntos para trabalhar. Daqui a uma semana eles
não serão mais iguais, porque os ritmos de desenvolvimento são muito variados. Uma coisa são os
ritmos individuais, outra, as etapas de desenvolvimento.

NE> Com relação às etapas de desenvolvimento, você crê que sua importância já foi
assimilada?

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Emilia< Num primeiro momento, houve apenas a troca de rótulos. Os fracos passaram a ser
chamados de pré-silábicos. Os que estavam no meio do processo eram os silábicos e os que eram
fortes foram classificados como alfabéticos. Alguns anos depois ficou mais claro que os rótulos novos
permitiam ver de outra maneira o progresso das crianças, mostravam que elas estavam
aprendendo. É desesperador estar diante de um aluno e dizer "ele não sabe", "ele ainda não sabe".
Quando se pode visualizar as mudanças como um progresso na aprendizagem, tudo muda. Primeiro
porque o esforço de aprender é reconhecido; segundo porque há a satisfação de ver avanços onde
antes não se enxergava nada.

NE> Ainda hoje chegam cartas à redação de NOVA ESCOLA perguntando qual a idade
ideal para iniciar a alfabetização...

Emilia< Constatei que, atuando de forma inteligente, pode-se alfabetizar aos 5 anos, aos 6 ou aos
7. É preciso oferecer oportunidade para os menores. Alguns vão aprender muito, outros nem tanto. A
idéia de que eu, adulto, determino a idade com que alguém vai aprender a escrever é parte da
onipotência do sistema escolar que decide em que dia e a que horas algo vai começar. Isso não
existe. As crianças têm o mau costume de não pedir permissão para começar a aprender.

NE> O que um alfabetizador não pode deixar de fazer em classe?

Emilia< Ler em voz alta. Especialmente se as turmas forem pobres, vindas de lugares em que há
poucas pessoas letradas. Essa poderá ser a primeira vez que ela passa por uma experiência assim. O
texto, no entanto, tem de ser bom e lido com convencimento. Esse aluno de 6 ou 7 anos vai
presenciar um ato quase mágico. Vai escutar um idioma conhecido e ao mesmo tempo
desconhecido, porque a língua, quando escrita, é diferente. Essa maneira de trabalhar é muito
melhor do que usar as cartilhas e as famílias silábicas.

NE> As cartilhas, aliás, já não são usadas como antigamente.

Emilia< Certa vez um editor brasileiro me acusou de estar arruinando o negócio de cartilhas, e
parece que ele tinha razão. Se tenho mesmo relação com a queda na produção desses livros, estou
muito orgulhosa. Eles eram de péssima qualidade, horríveis, assustadores. Eram pura bobagem.
Apesar disso, há vinte anos parecia um sacrilégio, no Brasil, dizer que a família silábica não era a
melhor maneira de trabalhar. Tenho a impressão de que isso mudou e de que esse é um caminho
sem volta. Para ensinar a ler e escrever é necessário utilizar diferentes materiais. Um livro só não
basta. É preciso utilizar livro, revista, jornal, calendário, agenda, caderno, um conjunto de superfícies
sobre as quais se escreve. A maneira como um jornal é redigido não é a mesma que se encontra
num livro de Geografia ou História.

NE> Como deve agir o professor em áreas rurais, onde o contato com a língua escrita é
muito menor?

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Emilia< Ele não pode desperdiçar nem um minuto do tempo em que sua turma está na escola,
porque cada minuto é muito precioso. Terminado o período da aula, o contato com a escrita quase
desaparece, sobretudo se for numa região em que não haja maquinários sofisticados, que exigem a
leitura de manuais, ou onde materiais impressos praticamente não existam.

NE> Como a senhora avalia a alfabetização na América Latina?

Emilia< A América Latina está conseguindo levar praticamente todas as crianças para a escola, mas
nem todas continuam estudando nem aprendem algo que justifique sua permanência ali.

NE> Ou seja, ainda há o risco de o continente continuar formando analfabetos funcionais.

Emilia> Esse problema ocorre no mundo inteiro, ainda que com nomes diferentes. Na França, por
exemplo, há uma distinção entre o iletrado e o analfabeto. Este não teve uma escolaridade
suficientemente prolongada. O primeiro teve essa oportunidade, mas não pratica nem a leitura nem
a escrita. Então, poucos anos mais tarde, lê com dificuldade e evita escrever. Países que já
resolveram o problema da escolaridade obrigatória têm iletrados; os que não possibilitaram à
população a escolaridade básica têm analfabetos.

NE> O Brasil encontrou o caminho para combater esse problema?

Emilia> No Brasil, aparentemente, está em curso uma mudança sensível em relação à


escolarização. Muito mais crianças e jovens em idade escolar estão nas salas de aula. Esse é o
primeiro passo. Agora, vem o mais importante: desafio da qualidade, da aprendizagem. Não basta
ocupar todas as carteiras. É preciso ensinar.

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