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002 - 13 - Limites e Contestações Da Igreja
002 - 13 - Limites e Contestações Da Igreja
DA DOMINAÇÃO DA IGREJA vos pela sua concomitância, indicam o ressurgimento da questão herética pouco
depois do ano mil. Em 1022, uma dezena de clérigos da catedral de Orleans é
acusada de negar a eficácia dos sacramentos e queimada por ordem do rei da
Afirmar que a Igreja é a instituição dominante da sociedade feudal não quer
França. Em 1205, uma comunidade de laicos, obrigada a comparecer diante
OO dizer que ela não se defronte com nenhuma contestação, nem que seu poder
do Sínodo de Arras, parece tratada com clemência pelo bispo e convencida a aban-
Zi ct. seja ilimitado. Ao contrário, além das tensões internas que a animam, a institui- donar suas críticas contra as práticas da Igreja. Por volta de 1028, no castelo de
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eclesial afronta, em sua obra de dominação, hostilidades silenciosas e Monteforte, no Piemonte, um grupo de homens e de mulheres que optaram por
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o (N4 liões abertas. Convém, então, analisar conjuntamente o exercício sempre mais uma forma de vida comunitária, casta e penitente, é interrogado pelo arcebispo
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C> O amplo de sua dominação e as resistências com as quais ela se depara. Percebe- de Milão e, depois, condenado à fogueira sob a instigação dos aristocratas da
i«d'a cv=ci. • -se que toda ordem tem necessidade de contestações e de desordens para melhor cidade. A esses primeiros sintomas de contestação da instituição eclesial suce-
ai o impor sua legitimidade (a ponto de forjá-las se não as encontra à sua altura). de um tempo de latência em matéria de heresia. Isso se dá, sem dúvida, porque,
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a partir de meados do século xí, a Igreja é absorvida pelo processo de reforma e
1""tai Nesse sentido, não é surpreendente que o processo de reforma da instituição
eclesial e de reforço da coesão da sociedade cristã, nos séculos Xi e mi, seja consegue integrar uma parte notável das ofensivas de evangelismo, em benefí-
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o3 O acompanhado de um ressurgimento das contestações, especialmente heréticas, cio de sua luta contra a fração conservadora do clero. De resto, ela não hesita
"c e de urna intensificação das formas de exclusão. "Ordenar e excluir" — segun- em caracterizar como heréticos os simoníacos, os nicolaftas e todos aqueles que
w'* • • do a expressão de Dominique logna-Prat são as duas faces indissociáveis de
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se opõem a ela (o papado afirma sem rodeios que "aquele que não reconhece as
m urna mesma ciinÍlmica. decisões da Sé Apostólica deve ser tido por herege").
03 4.1). "Ci
Nos anos 1120 40, o ressurgimento herético e a reação da Igreja tomam for-
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ele etimologias negativas, das quais a principal se refere ao gato — cattus animal 1184 (decretai Ad abo-tendam), é sobretudo Inocência tu quem elabora os
associado ao bestiário diabólico). As primeiras menções a essa here sia datam dos instrumentos jurídicos indispensáveis a uma política repressiva vigorosa. Em 1199
anos 1140: o socorro de são Bernardo é requerido em Colônia, em 1143, e, depois, ele assimila a heresia a um crime de lesa-majestade (divina), o que implica o mais
na região de Toulouse, em 1145. Ao longo da segunda meta de do século xii, a Igreja extremo rigor em sua perseguição e seu castigo. Durante o seu pontificado, o
organiza sua resposta, nas três regiões em que a here sia parece mais desenvolvida: o Concílio de Latrão tv precisa o arsenal repressivo contra os hereges, que devem ser
Languedoc, a Itália do Norte e a Renânia. Na verdade, nossos conhecimentos sobre os excomungados, assim corno todos aqueles que os protegem ou têm relações com
cátaros são bastante hipotéticos e os trabalhos impulsionados por Monique Zerner eles. Por fim, Gregório tx organiza os tribunais da Inquisição, cujo nome deriva do
incitam à mais extrema prudência. Atribui-se aos heréticos o esboço de urna procedimento inquisitório que põem em prática. Como já se viu, a queixa de urna
organização estruturada; fala-se — mas a verdade do fato é discutida — de uma vítima não é mais necessária, nesse momento, para abrir um processo, e o juiz pode
reunião cátara em São Félix de Caraman, em 1167, por ocasião da visita de um decidir por si próprio lançar urna diligência, baseado em um rumor ou uma suspeita.
emissário oriental de nome Nicetas (ou Niquinta), e durante a qual teria se procedido E, uma vez que não há mais queixosos para justificar a diligência, a obtenção de
à organização de dioceses e à ordenação de bispos. Quanto às crenças dos cátaros, é urna confissão do acusado torna-se indispensável, se necessário pela tortura, tida
particularmente difícil extraí-las das diatribes dos clérigos, que interpretam os como um meio legítimo para fazer aparecer a verdade. É pre ciso ressaltar, .ainda,
movimentos contemporâneos projetando sobre eles as categorias e as descrições das que então a Inquisição não é mais que um tribunal assu-
heresias fornecidas por santo Agostinho (Uwe Brunn). Não se sabe muito bem se é per -
tinente distinguir no seio do catarismo, como se tem o costume de fazer, um
dualismo radical e uru dualismo moderado. O primeiro professaria a existência de
duas divindades, um Deus do bem, que criou unicamente os anjos e as almas, e
uni Deus do mal, ao qual se imputa a criação do mundo material e dos corpos. De tal
cosmogênese, decorre que estes últimos são inteiramente maléfi cos e não podem ser
objeto de nenhuma redenção. A Encarnação de Crista é, então, impensável (Deus não
pode se encarnar, pois isso seria entregar-se ao mal), e a salvação pode ser atingida
somente pela alma (de onde a negação da ressurreição dos corpos), através de urna
rejeição de todo contato com a matéria e ao termo de um ciclo de reencarnações
mido por um bispo ou confiado a frades mendicantes, dotado de meios limita dos e somente pelo "catarismo radical", consistiria de uma negação da doutri na
que funciona, nas ações anti-heréticas levadas a cabo até o início do sécu lo xiv, com fundamental defendida pela Igreja (mito da Gênese, Encarnação de Crista, ressurreição
relativa moderação. Trata-se, sobretudo, de obter uma confissão e uma retratação, final dos corpos). Mas ele teve, realmente, adeptos no Ocidente? Temos alguns
que permite ao acusado ser reintegrado à comunidade eclesial após a satisfação de motivos para pensar que essa perspectiva foi exagerada sob o efeito da lógica do
uma penitência; é somente em caso de obstinação ou de recidiva que ele é entregue amálgama polêmico e de um olhar clerical convencido de encontrar a verdade e a
ao braço secular para ser castigado. Está-se ainda longe da Inquisição dos Reis coerência de todas as heresias em Agostinho. Seja corno for, é sem dúvida o
Católicos, transformada em um órgão da monarquia, e daquela da época moderna, evangelismo radicalizado até a crítica dos sacramentos e o anticlericarismo levado até
engajada em um processo de exterminação maciça de feiticeiros e feiticeiras. A Idade a recusa da mediação sacerdotal que constituem o pivô das atitudes dissidentes e o
Média apenas lançou as bases de um princípio repressivo do qual o Renascimento e os perigo maior contra o qual a Igreja teve de reagir, atribuindo a seus adversários, se
Tempos Modernos se encarregarão de tirar todas as consequências. necessário, as concepções mais aptas a desqualificá-los.
A ofensiva militar contra os cátaros é igualmente uma iniciativa de Inocên cia In. Não haveria nenhum sentido em se perguntar, como quer um velho tema
Após diversas manobras infrutíferas, o assassinato de Pedro de Castelnau, legado historiográfico, se as heresias constituem um fenômeno "social" ou um fato
pontifício, provoca o apelo à cruzada contra os albígenses. Os nobres do norte do "religioso". Seria igualmente absurdo negar que se trata de um fenômeno social sob o
reino que responderam a ele formam fileiras sob as ordens de um deles, Simão de pretexto de que o catarismo se expandiu, finalmente, em todos os meios (mas, ao
Montfort, e a cruzada começa em 1209 com o saque de Béziers (talvez 20 mil mortos, menos em sua fase crítica, ele é sobretudo característico de uma parte das elites
uma carnificina em meio à qual o legado do papa teria pronunciado esta frase, cuja urbanas, aristocráticas e mercantis). É necessário, com efeito, lem brar que a Igreja
autenticidade é discutida: "Matai-os todos, Deus reconhecerá os seus"). Os castelos é, na Idade Média, a própria forma de organização social e a instituição que a domina.
controlados pelos cátaros ou que os protegiam são destruídos até o último, Atacar a Igreja e solapar os fundamentos de sua posição, como fazem as correntes
Montségur, que cai em 1229. O Tratado de Paris celebra então o esmagamento dos heréticas, é uma questão que não é nem social nem religiosa, porque ela é
heréticos e consagra o domínio da autoridade real sobre o Sudoeste da França. A indissociavelmente social e religiosa. Atingindo sua intensidade máxima
heresia se apaga, mesmo se ela se mantém, sob formas parcialmente atenuadas, nas
aproximadamente entre 1140 e 1250, o fenômeno dito herético — a um só tempo,
regiões montanhosas, tais como os Pireneus, onde o bispo de Pamiers, Jacques
dissidência real e construção dos clérigos — pode ser tido por uma consequência da
Fournier, a desembosca ainda na aldeia de Montaillou, no início do século xiv
reformulação da instituição eclesial e da sociedade feudal ao longo do século anterior.
(Emmanuel Le Roy Ladurie). As heresias cátara e valdense, cujos perigos a Igreja
As temáticas evangélicas estavam presentes no próprio seio do projeto reformador e
— e o rei da França — tinham provavelmente interesse em amplificar, e cujos
o papado não hesitou em dirigir o povo Contra a fração julgada corrompida do clero,
adeptos jamais foram muito numerosos (raramente mais que 5% da população das
contribuindo, sem dúvida, para excitar o anticlericarismo popular. Sobretudo, a
cidades do Languedoc), deixaram, então, de ser uma preocupação séria.
reforma conduziu a uma reafirmação da autoridade sagrada e dos privilégios dos
No geral pode-se, com algum artifício, distinguir diferentes fases nas mani festações
clérigos, a uma subordinação crescente dos laicos, postos à margem dos negócios da
heréticas. De início, elas são uma expressão do evangelismo dos lai cas, desejosos de
Igreja e tornados os objetas passivos de uma eficácia sacramental inteiramente mani -
um retorno à simplicidade e à pobreza das origens do cristia nismo, o que é apenas
pulada pelos sacerdotes. O anticlericarismo laico só podia encontrar-se exacerbado,
uma maneira mais ou menos forte de criticar o que a instituição eclesial se tornou,
sob suas formas decretadas heréticas ou somente rebeldes, como no caso
principalmente na sequência das transformações dos séculos xi e xii. Mas o
evangelismo, de resto presente nas temáticas dos reformadores gregorianos,
desemboca facilmente, se ele se radicaliza um pouco, em um questionamento da
mediação clerical. Chega-se, assim, à crítica dos sacramentos (ou, mais exatamente,
de uma concepção que liga sua eficácia aos gestos realizados pelo sacerdote e não à
participação dos fiéis), das práticas litúrgicas relativamente recentes (a liturgia dos
mortos) e dos lugares e objetas nos quais se encarna a instituição (igrejas, cemitérios,
imagens e cruzes). O aguilhão parcialmente assimilável do evangelismo torna-se, então,
uma crítica frontal, e é todo o edifício construído pelo clero que é, desse modo, posto
em causa — tanto sua pretensão a ser o mediador obrigatório para a salvação como suas
intervenções estratégicas na organização social. Enfim, uma terceira fase, ilus trada
de Arnaldo de Brescia que, pregando contra o clero e suas riquezas, levanta as massas podiam lhes estar associados. Ainda em 1002, o Corrector do bispo Buchard de Worms
romanas contra o papa e os cardeais em 1145. Assim, as dissidências qualificadas de estabelece um quadro de numerosas práticas condenáveis: rituais de proteção, culto dos
heréticas aparecem como formas de resistência laica em face da acentuação do astros, crença nos lobisomens, rituais de fecundidade etc. Mas a continuidade com o
poder sacerdotal e da posição incessantemente mais dominadora da instituição paganismo já parecia cada vez mais duvidosa, e é, doravante, na relação com a realidade
eclesial. cristã contemporânea que convém interpretar tais práticas. E se o século mi pôde ser
considerado um momento privilegiado de interação, permitindo que numerosas
concepções folclóricas aflorassem, inclusive nos textos clericais, o estabelecimento,
As "superstições" e a cultura folclórica durante o século XIII, de novos instrumentos, como a confissão e a Inquisição, relança a
perseguição às "superstições", fazendo com que os clérigos, especialmente os fra des
Os clérigos não devem apenas afrontar a contestação aberta dos hereges. As práti cas de mendicantes, entrevejam a amplitude da tarefa que lhes cabe.
numerosos fiéis, que a Igreja não expele para fora dos quadros dá ortodoxia, fornecem Um exemplo, que se tornou paradigmático pelo estudo de Jean-Claâde Schmitt,
igualmente algumas preocupações. É necessário, quando elas são julga das é aquele de Guineforte, o santo cão de caça cujo culto é descoberto pelo
inconvenientes ou desviantes, eliminá-las, como a gramínea que pode estragar o cereal. dominicano Estevão de Bourbon, não longe de Lyon, onde ele oficia como pregador e
É uma tarefa certamente muito mais complexa que a aniquilação dos focos heréticos inquisidor. Segundo a lenda que Estevão recolhe junto aos habitan tes do lugar, o cão
relativamente circunscritos. No mais, uma vez que a vitória foi assegurada nas heresias, ela teria sido injustamente morto pelo seu dono logo após ter aca bado de salvar um recém-
mantém os clérigos ocupados por um tempo maior, em particular os inquisidores. Corno nascido dos ataques de uma serpente, sendo, depois, enterrado com remorsos, até se
qualificar essas práticas e crenças? A noção de "religião popular" foi objeto de diversas tornar objeto de veneração sob o nome de Guineforte (por um processo complexo
críticas; e seria mais satisfatório evocar uma "cultura folclórica", mesmo se ela não de assimilação com um mártir romano do século ui). O culto deste santo
constituía um conjunto coerente e autônomo e sabendo que essa expressão engloba verdadeiramente muito especial consiste em expor as crianças fracas ou doentes
práticas diversas relativas ao mundo camponês e à aristocracia, aos meios urbanos, mas perto de sua tumba, situada na floresta. Reputados serem changelins — criaturas que
também à parte menos instruída do baix.o clero (Michel Lauwers). De fato, o que dá à o diabo deixa após ter se apoderado das verdadeiras crianças`' —, eles são expostos
"cultura folclórica" urna unidade suscetível de justificar esta noção é a distância que a sós entre velas e oferendas, sendo depois mergulhados no riacho gelado. Ao termo
separa da cultura clerical (ainda que se trate menos de unia confrontação dual do que de desse rito de seleção, os que resistiram são reintegrados à comunidade, segura de ter
múltiplas interações complexas entre realidades múltiplas). Talvez fosse melhor, então, obtido, graças ao santo cão, a cura e o fim do malefício diabólico. Horrorizado pela
conceber a cultura folclórica corno um polo dominado (o que não quer dizer, prática dessas "mães infanticidas", o dominicano procede à destruição da tumba e do
necessariamente, passivo ou desprovido de criatividade) no campo das representações sítio ritual, exorta os fiéis a abandonarem tal superstição e inflige penas moderadas,
sociais, no seio do qual a cultura clerical ocupa uma posição tão hegemônica que corno a confiscação dos bens de certos adeptos do culto, o que não impedirá que
pretende ocupá-lo ou controlá-lo inteiramente. Assim, para delimitar as práticas e as ele seja ainda atestado, sob formas atenuadas, no início do século xx. Entretanto, o
crenças aqui evocadas, não é sem pertinência, como propôs Jean-Claude Schmitt, conjunto bastante coerente do rito e do mito descobertos por Estevão de Bourbon
recorrer ao termo pelo qual os clérigos medievais as designavam: "superstições". Para a não remonta absolutamente a uma religiosidade imemorial,
Igreja, este termo é, ao mesmo tempo, uma explicação dos fenômenos que convém
expurgar (são sobrevivências do paganismo, segundo o próprio sentido do latim 22. Daí a designação desses seres fabulosos ser formada a partir do verbo changer: "trocar, mudar,
superstitio) e uma condenação (são inspiradas pelo diabo). Retomar esta palavra, dotada substituir". (N. T.)-,
de uma pesada carga depreciativa, não deveria significar que se adira ao ponto de vista
da Igreja. Sua vantagem, para nós, é de lembrar que as práticas e as crenças evocadas aqui
não são dissociáveis do olhar reprovador que a Igreja lança sobre elas e que esta, em seu
empreendimento de dominação, batalha sempre na frente das sobrevivências e dos erros
que pretende fazer recuar.
O cristianismo foi confrontado a paganismos bem reais ao longo da evangelização
do Ocidente, estendida tardiamente para suas margens orientais e nórdicas. Praticada
em larga escala, a destruição dos templos e lugares de culto pagãos certamente não fez
desaparecer em um dia práticas como a veneração das árvores sagradas e os ritos que
e é provável que ele tenha se constituído no decorrer do século xii, em conformidade significado sem partir da tensão estabelecida entre o Carnaval e a Quaresma (da qual
com as necessidades das comunidades rurais, então em formação. a Igreja reforça progressivamente a importância, especial mente estabelecendo, a
Um outro conjunto importante testemunha a preocupação camponesa com a partir do século ix, quarenta dias de jejum contínuo antes da Páscoa). O próprio
fertilidade e a suficiência de alimentos. O teólogo Guilherme de Auvergnc menciona nome dado ao Carnaval (derivado, sem dúvida, de "carne vale" ou "carne levare")
a crença em um espírito feminino, denominado Senhora Abundia, que "traz a define-o como o tempo antes da Quaresma, durante o qual ainda é lícito comer
abundância às casas que ela visita", desde que seja aí bem acolhida e que tenham carne. Mais amplamente, ele é um tempo de transgressão autorizada e de liberação
sido dispostos para ela alimentos e bebidas suficientes. Um pouco mais tarde, por dos impulsos antes da retenção penitenciai da Quaresma: ele só tem legitimidade
volta de 1275, o Romance da Rosa de João de Meung ataca aqueles que dizem ser porque precede a ela e exalta, por contraste, sua significação. É nesse quadro que a
levados em um voo noturno com Senhora Abundia, enquanto outros testemunhos oposição paganismo/cristianismo pode se integrar à análise do Carnaval: não porque
associam crenças comparáveis à atividade de espíritos denominados "Boas Coisas". este seria efetivamente uma reminiscência das saturnais ou das lupercais pagãs, mas
Expressão de uma mesma preocupação, o ritual nupcial que consiste em jogar grãos de na medida em que ele explora figuras ou imagens associadas ao paganismo para pôr em
trigo sobre os esposos gritando "Abundância! Abundância!" é descrito e condenado cena esse momento de inversão de valores e de liberação de forças diabólicas, sobre
por Jacques de Vitry. Pode-se, então, perceber, através de uma série de testemunhos as quais o cristianismo finalmente triunfa. Os . transbordamentos festivos, e nota-
pontuais, a existência de um conjunto de crenças e de rituais destinados a captar a damente os prazeres da gula e da luxúria, são, assim, destinados a preparar e a reforçar
benevolência de forças positivas a fim de assegurar a boa marcha da vida camponesa a vitória ulterior da penitência e da ordem cristãs. Enfim, o Carnaval possui um outro
e, sobretudo, a fertilidade e a renovação anual dos produtos da terra. São aspecto essencial ligado ao calendário: festa de primavera, ele corresponde ao
igualmente rituais de fertilidade, bastante bem estruturados, que os registros da momento da saída do urso, após sua longa hibernação, e marca o fim do inverno nas
Inquisição permitem ver no Frioul do século xvi (Carlo Ginzburg). Aos benandanti, concepções camponesas. As forças da fertilidade devem, então, acordar para se pôr
homens investidos de poderes excepcionais de tipo xamanístico, são reputadas viagens em ação, e o Carnaval, pelo seu transbc)rdamento de energias sexuais e festivas, é uma
espirituais ao outro mundo, em momentos precisos do ciclo agrário. Lá, lutam contra maneira de chamar essas forças vitais a exercerem o seu papel fecundador. Além
os espíritos hostis e assistem ao desfile das almas dos mortos, cujas for ças devem ser disso, as máscaras, que têm u m papel cen tral no Carnaval — assim como no
captadas a fim de assegurar à comunidade dos vivos as benesses e a fertilidade de charivari (figura 22, na p. 232 ) , são certamente urna materialização dos espíritos
–
que ela tem necessidade. Sob uma forma ou outra, é provável que os rituais dos mortos, dotados do poder de influenciar positiva ou negativamente o curso das
camponeses de fertilidade tenham tido grande importância nas zonas rurais do potências natura -is, e que convém acolher a fim de assegurar sua ação benevolente.
Ocidente feudal, em particular no momento dos solstícios, pon tos capitais do ciclo O Carnaval integra, então, urna preocupação com a fertilidade e os ciclos naturais,
solar (calendas de janeiro e São João). Sem dúvida, também não cessaram de se 'que interessa particularmente aos aldeãos, mas também o conjunto das populaç.íões,
transformar, de se deslocar e de se recompor, especialmen te em função da inclusive urbanas, de um mundo estreitamente ligado aos ritmos da produção agrária.
reorganização senhorial e comunitária dos campos e sob o efeito da pressão da Igreja. Aceito esse momento de inversão generalizada dos valores, o carnaval dura apenas
Dispondo de instrumentos de controle mais eficazes, esta consegue, a partir do século um tempo, limitado e bem circunscrito, antes que seja restabelecido o curso normal
xllt, persegui-los metodicamente, lançando-os cada vez mais no domínio das das coisas, sob a forma acentuada das privações da Çuaresma. Ele é, então, uma
superstições e logo começando a demonizá-los. escapatória, que permite integrar as forças da desordem na orga nização e na
estabilização da ordem social. Pode-se dizer o mesmo;, da Festa dos Loucos, que,
embora recupere alguns aspectos dos ritos das calendas de janeiro,
As margens e a subversão integrada dos valores
O poderio da instituição eclesial é tal que ela parece, na maior parte do tempo,
capaz de controlar a zona fronteiriça onde se entrechocam a ordem normal das
coisas e as desordens da subversão, ou mesmo de integrá-la ao funcionamento
regular da sociedade. O Carnaval é o exemplo mais claro disso. Mais do que uma
repetição das festas pagãs, pode-se ver nele uma "inovação da cidade medieval",
principalmente a partir do século xll (Jean-Claude Schmitt). Com efeito, ele
permanece totalmente integrado ao ciclo do ano cristão, e é impossí vel captar seu
é uma criação do século xll urbano. Trata-se bastante explicitamente de uma festa
dos cônegos que, submetidos todo o ano à autoridade de seu bispo, proce dem então a
um ritual de paródia. Eles elegem um falso bispo — por vezes, um asno — que é
conduzido à igreja, até o altar; onde é pronunciado um sermão gro tesco seguido de uma
paródia de missa, em um registro frequentemente sexual e escatológico. Não sem
algumas tensões, este ritual é então admitido por numerosos clérigos como uma
tradição normal, a tal ponto que as despesas que ele gera podem aparecer nas contas
da catedral. Ainda aqui, o ritual de inversão é aceito, pois, limitado no tempo, permite
liberar tensões sociais particularmente vivas (como é muito frequente o caso entre ❑
bispo e os cônegos), a fim de melhor assegurar, ao longo do ano, o bom exercício da
autoridade. É, então, difícil seguir inteiramente as célebres análises de Mikhaïl Bakhtin,
que defendia a existência de uma cultura popular (ou carnavalesca) autônoma e
totalmente oposta àquela, oficial, dos clérigos: uma cultura da festa, do prazer e do riso,
que confere um papel central ao corpo e, em particular, ao "baixo corpo" (quer dizer; à
dimensão sexual e escatológica), que inverte os valores clericais, rebaixando o espiritual
ao plano corporal e insistindo na terra como força de fecundidade e de fertilidade. A
autonomia que Mikhaïl Bakhtin atribuía a essas concepções foi severamente criticada,
especialmente por Aaron Gourevitch, e parece indispensável enfatizar não somente a
inter-relação entre as diferentes expressões sacio-culturais mencionadas, mas, sobretudo,
o caráter dominante da Igreja. Ao mesmo tempo que integra elementos estrangeiros aos
valores clericais, o Carnaval e a Festa dos Loucos concorrem, finalmente, ao
reconhecimento e à imposição destes. Se eles são aceitos pela Igreja, é no quadro de
uma dialética cuidadosamente controlada da ordem e da desordem, da liberação das
energias potencialmente subversivas e de seu enquadramento social.
As surpreendentes representações que se desenvolvem nas bordas dos
manuscritos com iluminuras, ou em certos locais marginais das igrejas, pude ram ser
objeto de urna análise comparada, bem realizada por Michael Camille. Nas margens
dos livros de horas que se multiplicam entre os séculos Xl11 e XV, em particular para o
uso da elite laica, aparecem cenas que contrastam vigoro samente com a sacralidade
das preces que se podem ler na mesma página e com as cenas piedosas que as
22. Danças c máscaras do charivari, c. 1318 (Romance de Fauvel, Bibliothèque Nationale de France, Paris, ais.
fr. 146, fl. 34). ilustram. Assim, à imagem de uma missa cele brada por um bispo, no centro da
O ritual do charivari se desenvolve no início do século xlii, apesar da firme oposição da Igreja. Através de dan ças em página, corresponde, na margem. a de um cavaleiro em combate; alhures, as preces
que se misturam gozações e algazarra, a comunidade urbana ou aldeã manifesta sua oposição a um casamento que lesa litúrgicas coabitam com uma cena de sedução que se prolonga impudicamente na
seus interesses ou afronta suas tradições (casamento de uma viúva ou de um vitivo, casamen to de um homem idoso
com urna mulher jovem, ausência de festividades públicas etc.). A miniatura mostra as posturas agitadas dos dançadores intimidade de um quarto de dormir (figura 23, na p. 234). Por vezes, as margens se
(que podem chegar até a desnudar os seus traseiros); ela permite escutar a gritaria do charivari (tambores, sinos,
címbalos, pratos e outros instrumentos de cozinha). Vários personagens têm máscaras de animais ou figuras com
dão o direito de parodiar a história santa: três macacos levando frutos fazem eco à
caretas (quando não se trata de unia fantasia completa do corpo). Assim como durante o Carnaval, é provável que as imagem principal, mostrando a adoração dos Reis Magos; alhures, uma religiosa
máscaras do charivari estejam ligadas aos espíritos dos mor-
tos: também eles protestam contra um Casamento que transgride os costumes (talvez seja este o caso, parti cularmente, aleitando um maca-
do cônjuge defunto).
23. Termo de origem russa (cuja tradução literal é "destruir inteiramente") que indica um movi mento
popular de violência contra os judeus. (N. T)
gam este "papa judeu", como se a conversão de seu bisavô não tivesse sido sufi ciente
para apagar a mancha de suas origens. Logo são atribuídos aos judeus traços físicos
específicos, feiura e nariz recurvado, que as imagens não deixam de representar (figura
Episcopi, retomado ainda no Decreto de Graciano, considera que aqueles que se
entregam à evocação dos espíritos maléficos são os ludibriados por ilusões pro vocadas
pelo diabo, e que a crença no voo noturno nada mais é que uma fanta sia que o
Maligno incute nos sonhos, em cuja realidade os indivíduos creem erroneamente
quando acordam. Mágicos e "feiticeiros" são, então, vítimas a quem convém
ajudar para que abandonem suas falsas crenças, mais do que perigosos servidores
de Satã que seria preciso eliminar. Depois, a atitude da Igreja começa a mudar, no
contexto da luta contra as heresias, no século xn, e sobretudo no século mi.
Multiplicam-se, então, as narrativas que dernonizam os hereges e que serão, mais
tarde, aplicadas aos feiticeiros. Os clérigos começam a afirmar que o diabo preside
às reuniões dos hereges e até mesmo que estes consideram Lúcifer o verdadeiro
deus, injustamente expulso do céu (bula Vox in rama de. Gregário Ix de 1233). ,
ritual das crianças e do canibalismo nas reuniões de feiticeiros (a obra contribui .. ras fases, as perseguições visam quase igualmente a homens e mulheres).
240 jérôme Baschet
para assentar uma visão claramente feminina da feitiçaria, enquanto, nas primei- Desloca-se, então, da queixa de malefício para a acusação de pacto e de adora -
ção do diabo. Doravante, o estereótipo da feitiçaria é corrente: atribuí-se, a feiti ceiros e vais e discriminados, tais como os leprosos e os homossexuais. É por isso que, reunindo
feiticeiras, a prática do voo noturno para participar de reuniões secretas (que são o conjunto desses fenômenos e reparando neles o efeito de uma lógica única, Robert
nomeadas "sinagogas", até que o termo sabá venha a se impor, utilizado pela primeira Moore pôde ressaltar a "formação de uma sociedade de persecução" na Europa a partir
vez por Petrus Mamor, por volta de 1490); nelas, eles adoram Satã, presente sob a dos séculos xt a mi. Por vezes, também se apresentou esse processo como um aumento
forma de um bode do qual é preciso beijar o ânus, entregam-se a orgias e da intolerância, mas é preciso assinalar que o par tolerância/intolerância, do qual, é
queimam crianças das quais eles consomem as cinzas (figura 24, na p. 241). A verdade, temos dificuldade de escapar, é uma armadilha. Com efeito, mesmo em sua
interpretação tradicional do &nona Episcopi é, então, completamente aniquilada. fase menos repressiva, a Idade Média não poderia dar lugar a uma verdadeira
Assim, segundo o Martelo das feiticeiras, dos dominicanos Jabobus Sprenger e tolerância, entendida como aceitação das diferenças e pleno reconhecimento da
Henricus Insistor (1486), verdadeira suma na matéria de feitiçaria que a imprensa alteridade. No melhor dos casos, ela pode "tolerar" o outro, no sentido em que ela
transforma em best-seller, o voo noturno e todos os atos imun dos do sabá não têm suporta sua presença, sob a condição de que sua submissão seja clara e, mais
nada de ilusão: são realidades que exprimem o verdadeiro poder do diabo e que, frequentemente, para poder se vangloriar de ter triunfado sobre o mal que ele
então, exigem os mais severos castigos. representa. Entretanto, é preciso marcar a diferença entre uma situação inicial, que se
A evolução no decorrer da Idade Média é clara. Certa de estar sendo per seguida degrada pouco a pouco, e os picos de fúria repressiva e de obsessão de pureza
por uma seita de cúmplices de Satã, a Igreja tende, finalmente, a crer na realidade atingidos durante a época moderna: se se compara, é tentador evocar urna relativa
do que ela, antes, considerava vã ilusão diabólica. Ela forja, então, o "conceito tolerância da Idade Média. Mas os séculos medievais devem este traço ao fato de que
cumulativo de feitiçaria" (Brian Levack), através de um amálgama entre práticas eles não foram até o limite à lógica que os anima, de que eles ainda não
mágicas e divinatórias, tais como o malefício, "superstições" cobrindo, sem dúvida, esquadrinharam totalmente o campo das realidades a serem excluídas e dão provas,
ritos xamanísticos de fertilidade, acusações anteriormen te aplicadas aos hereges e, por consequência, de uma certa maleabilidade, notadamente por sua capacidade de
enfim, o fantasma do sabá como ritual de adoração do diabo. Diante de uma ameaça assumir situações em que o bem e o mal, embora separados, estejam em contato um
tão absoluta, todas as autoridades da cristan dade são convidadas a reagir com vigor e com o outro. A presença conjunta e separada do espiritual e do material (ou de outros
a luta contra a feitiçaria dá lugar, em breve, a uma competição de zelo repressivo, a pares de oposição) permanece aceitável e mesmo utilmente explorável durante a Idade
"uma escalada de ortodoxia" entre a Igreja, as monarquias e Os poderes locais (Jean- Média, enquanto a época moderna preferirá proceder a urna dissociação ainda mais
Patrice Boudet). E se a Idade Média apenas começa a dar corpo a essa obsessão, radical e se preocupará em preservar, com um zelo infalível, a absoluta pureza dos
enviando para a morte algumas centenas de feiticeiros, tudo já está estabelecido valores e dos lugares positivos.
para a perseguição em grande escala que a "modernidade" dos séculos xvi e xvii Mas o essencial é, sem dúvida, associar a formação da sociedade de persecução à
exibirá (40 mil vítimas, de acordo com as estimativas mais moderadas). dominação incessantemente mais marcada da instituição eclesial. O fato de que
os processos analisados começam a se manifestar no momento da reforma gregoriana
da Igreja e das primeiras cruzadas autoriza a estabelecer urna ligação entre
Em direção à sociedade de persecução institucionalização e exclusão. A estruturação da cristandade, pen sada corno uma
comunidade homogênea sob a direção de uma instituição eclesial reforçada, produz,
No geral, em todos os domínios evocados, a atitude da Igreja se faz cada vez mais com efeito, um duplo movimento, de integração para os fiéis ajustados e de exclusão
excludente e repressiva. Isso foi constatado em relação aos hereges, às "superstições" e para os não cristãos e os desviastes (Dominique Iogna-Prat). A constituição ocidental
às formas integradas de expressão dos valores de oposição, aos judeus e, mais tarde, da sociedade de persecução é, então, um fenômeno cuja origem é possível situar nos
aos feiticeiros, e seria possível dizer o mesmo de outros grupos margi- séculos xi e XII e que se amplia regularmente do século mi ao século xv, e mesmo além.
A institucionalização cria a exclusão, e é a própria Igreja que molda os inimigos sobre
os quais ela se dá por tarefa triunfar. Por consequência, deveria ser possível medir o
poderio da instituição eclesial (ou, ao menos, o seu desejo de poderio e seus
esforços para