Você está na página 1de 201

Todos sabemos que o humor é importante, certo?

Muitos

humor na mídia
chegam mesmo a dizer que determinado povo é inteligente
se é capaz de rir de si mesmo. A importância do riso pode ser
dimensionada pelos norte-americanos, que pagam absurdamente
mais a seus atores de séries de comédia de tv do que para aqueles
de dramas, mesmo que estes sejam consagrados e queridinhos do
grande público. Por exemplo, paga-se 1,225 milhão de dólares por
capítulo da série cômica Two and a half Men para o protagonista
Martin Sheen, enquanto Hugh Laurie, o badalado ator que interpreta
o personagem que dá nome ao drama House, recebe cerca de 450
mil dólares por episódio. Nota importante: a duração do capítulo
de comédias é de meia hora e a de dramas, uma hora.
Falamos de tv, de comédia, de drama, de Martin Sheen e do
inglês Hugh Laurie que, além de ser um conceituado ator, também
é guitarrista – e seria errado achar que em House não há humor, ele
existe sim, só que na forma de nonsense, como poderia explicar o
pensador Gilles Deleuze no seu tão bem-sucedido e importante
livro Lógica do Sentido. Ou seja, mesmo numa série dramática
cáustica, como a do médico que trata seus assistentes de forma
quase aterrorizante, uma “cócega” mental se dá quase a cada novo
diálogo. Bem diferente do riso escrachado e altamente elaborado
de Two and a half Men, cômico do começo ao fim.
Nesta altura deste texto o leitor “já” sabe que o tema do
presente dossiê é o humor, mais especificamente “Humor na
Mídia”. Apresento já minhas desculpas por utilizar exemplos norte-
americanos televisivos para ilustrar o alcance da presente seção,
mas o fiz tão somente para o leitor avaliar o quão importante é o
humor, não apenas para um veículo de comunicação poderoso,
como a tv, mas dentro da nossa própria vida. Nosso dossiê cobre
tanto o humor veiculado pelos jornais, como aquele feito na tv,
no rádio, na internet. Ele conta ainda com artigos internacionais
confeccionados especialmente para este número. Que saibamos, é
a primeira vez que uma revista universitária de cultura se debruça
sobre este tema.
Não poderíamos deixar de agradecer de público a Waldomiro
Vergueiro, da ECA-USP, que tanto se empenhou na organização
desta nossa alentada seção. Sem ele, este número não seria possível.
Francisco Costa
waldomiro vergueiro da sátira gráfica, analisando seus compo-

nentes básicos e visando uma aplicação

internacional.

Também exclusivamente sobre

humor gráfico tratam os dois artigos se-

guintes, ambos com enfoques temporais. O

da pesquisadora argentina Mara Burkhart

centra-se no humor gráfico apresentado

nos jornais argentinos do século XX e

apresenta um panorama da produção nesse

país, enquanto o de Waldomiro Vergueiro

enfoca três artistas que considera essen-

ciais para a formação e caracterização

do humor gráfico no Brasil, que atuaram,

sta coletânea de textos sobre respectivamente, na segunda metade do

Humor na Mídia busca dis- século XIX, e primeira e segunda metades

cutir e aprofundar os vários do século XX.

aspectos que o humor pode Já o artigo de Paulo Ramos faz a

assumir quando veiculado relação entre um tipo específico de humor

pelos meios de comunicação de massa. gráfico, a tira em quadrinhos, e as piadas,

Propositadamente, tenta abranger todas as estas últimas em geral orais. Baseando-se

formas de mídias, desde as mais tradicio- nos estudos dos gêneros, seu artigo identi-

nais, impressas, até as mais recentes, como fica várias similaridades entre o humor das

a internet. Em todas elas, o humor é uma tiras e as piadas, ajudando a firmar o co-

presença constante, obrigatória mesmo, nhecimento na área. Contribuição similar

que adquire características próprias de- é trazida por Gêisa Fernandes D’Oliveira,

pendendo da mídia em que surge. que em seu artigo enfoca o humor de dois

Por suas características mais am- quadrinistas brasileiros, Laerte Coutinho

plas, abre o volume o artigo de Manuel e Maurício de Sousa, relacionando traços

Barrero, professor da Universidad de de brasilidade em cada um deles. A autora,

Waldomiro Sevilla, que se debruça sobre os reflexos no entanto, afasta-se dos estudos de gênero
Vergueiro do humor gráfico no século XXI e busca e mergulha na teoria bakhtiniana como
é professor titular
da ECA-USP. traçar um modelo de compreensão geral fundamentação de seu texto.

8 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 6-9, dezembro/fevereiro 2010-2011


Com Theophilo Augusto Pinto A coletânea encerra-se com dois

amplia-se a visão da mídia na coletânea, artigos que poderiam ser conceituados

na medida em que nos afastamos do como provocativos. O de Octavio Ara-

humor gráfico e entramos no humor ra- gão, sobre o humor na internet, por seu

diofônico, área sobre a qual o autor tem caráter inovador e ambicioso, buscando

dedicado seus esforços de pesquisa nos caracterizar uma produção humorística

últimos anos. No artigo, ele dedica-se a ainda cercada por imprecisões e ques-

um recorte temporal específico, a época tionamentos. E o de Gêisa Fernandes

do pós-guerra, que considera essencial D’Oliveira e Waldomiro Vergueiro,

para a constituição do rádio como “o mais único texto a quatro mãos do volume,

importante veículo de comunicação de por ousar analisar o trabalho do grupo

massa no Brasil”. humorístico Os Trapalhões, caracteriza-

O artigo de Talvani Lange enve- do por um humor que hoje, em tempos

reda para a discussão sobre as formas de de correção política, encontraria talvez

humor na publicidade, centrando-se na muitas dificuldades para ser aceito.

publicidade impressa, fundamentada em O balanço dos dez textos que esco-

pesquisa bibliográfico-documental e entre- lhemos para constituir o presente número

vistas. Destaca-se, em seu texto, a análise da Revista USP deixa-nos satisfeitos por

aprofundada de publicidade veiculada atingir a diversidade proposta, oferecendo

pela revista Veja, em 1994, que é utilizada aos leitores da revista um amplo panorama

como exemplo dos desdobramentos que o sobre como o humor surge e se desen-

humor apresenta quando aplicado ao am- volve nas diversas produções midiáticas.

biente publicitário. Já Chantal Herskovic Por outro lado, não podemos deixar de

vai buscar num tipo de humor televisivo, salientar que eles representam apenas a

o dos desenhos animados, a sua temática ponta de um grande iceberg. Muito mais

principal. Com base em sua pesquisa de ainda resta a ser discutido, aprofundado,

mestrado, seu artigo enfoca as inovações proposto no que tange às relações entre

trazidas pelo seriado norte-americano Os humor e mídia. Vamos esperar, então,

Simpsons, a mais longa série de animação que estes textos possam representar um

produzida na história da televisão mundial, desafio para que outros mais sejam de-

identificando, no seu objetivo de crítica e senvolvidos sobre a mesma temática. O

sátira da sociedade ocidental, as razões de avanço do conhecimento certamente vai

seu continuado sucesso. nos agradecer por isso.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 6-9, dezembro/fevereiro 2010-2011 9


manuel barrero
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

manuel barrero
é professor da
Universidade de
Sevilla, diretor da
revista eletrônica
Tebeosfera e autor de,
entre outros, La Risa
Periodística: Humor y
Sátira, de la Prensa a
Internet (Universidad
de Valencia).
RESUMO

A tradição satírica foi se consolidando até a atualidade como uma expressão


ligada à caricatura sociopolítica fundamentalmente, mas pode ser compre-
endida como um meio de comunicação devido à sua estrutura e linguagem
específica no âmbito no qual se desenvolve, pela qualidade de seu discurso e
pela vinculação que suas mensagens estabelecem com o receptor. No presente
ensaio, formula-se um modelo de compreensão geral da sátira gráfica com
uma análise de seus componentes, aplicado a vários exemplos de transcen-
dência internacional.

Palavras-chave: sátira, vinheta, cartum, transgressão, compleição, modelo


narratológico.

ABSTRACT

Up to the present the tradition of satire has been establishing itself as an ex-
pression fundamentally linked to socio-political caricatures. However, it can
be seen as a medium due to its structure, its language specific to the context
in which it takes place, the quality of its discourse, and the empathy it breeds
in the receptor. In this essay we devise a model for a general understanding of
the graphic satire – by analyzing its components – and apply it to numerous
examples of international transcendence.

Keywords: satire, vignette, cartoon, transgression, complexion, narratological


model.
PROPOSTAS METODOLÓGICAS

presença do grotesco em nossa história é tão antiga

como a cultura iconográfica humana. O exagero

de elementos com o fim de produzir comicidade

já aparece em pinturas troglodíticas e se mantém

ao longo dos séculos em artes de cerâmica, em

baixos-relevos e altos-relevos, na arte sacra, em esculturas e

pinturas, na sátira gráfica, na história em quadrinhos, na foto-

grafia, no cinema e nos espaços da hipermídia. Não há planos

humanos de execução artesanal ou artística que não tenham sido

exagerados para gerar comicidade, o que é uma das constantes

do humor entendido como objeto dos estudos culturais.

A aproximação ao humorístico se fez a partir de disciplinas

muito diferentes, através dos estudos artísticos, da estética, da

psicanálise, da análise literária, também utilizando uma análise

de conteúdo ideológico exclusivamente no segmento gráfico.

Com relação ao humor gráfico, devemos ser conscientes de

que se trata de construções comunicativas nas quais intervêm

simultaneamente uma criação conceitual ou verbal e uma gráfica 1 “Vinheta” é um termo que
procede, etimologicamente,
ou desenhada, o que não significa o mesmo caso, por exemplo, de vignette, a imagem inseri-
da entre parágrafos de um
do riso analisado a partir de uma proposição fisiológica, nem de livro. Com o tempo, foi assi-
milada a qualquer ilustração
incluída dentro de um texto
diferentes tipos de humor que o ser humano manifesta em seu e, no fim das contas, assim
se denominam as imagens
comportamento. de humor gráfico e cada
uma das que fazem parte
da sequência de quadros
No presente ensaio propõe-se, primeiramente, a necessidade de um quadrinho. Entende-
remos aqui a vinheta como
de dividir o humor em parcelas, entendido este no sentido pano- unidade estrutural com uma
mensagem lexipitográfica,
servida ou não com textos e
râmico, para assim diferenciar o humorismo literário da sátira podendo conter várias ima-
gens ao mesmo tempo, não
desenhada, e poder tratar o humor gráfico separadamente. E meramente como contorno
aglutinador de imagens.
No Brasil, o termo para
entenderemos a partir de agora como obras de humor gráfico ou descrever essa estrutura
é quadrinho e no resto da
vinhetas1, aquelas “obras desenhadas e impressas para sua difusão América Latina, cuadritos.
em múltiplas cópias que contêm elementos expressão substantivamente diferentes dos
verboicônicos fixos e articulados linguisti- de outros meios.
camente entre si com o propósito de emitir Para compreender a conformação da vi-
um relato humorístico autônomo”. A im- nheta humorística é imprescindível separar
pressão e a difusão são condição necessária a cultura gráfica da iconográfica, e precisar
para admitir a existência desse meio (que o aparecimento da sátira gráfica entre os
não do modelo expressivo). Os elementos séculos XV a XVII, na qual se combinam
verbais sempre existem em uma construção imagens e textos com um fim determinado.
desse tipo, embora possam estar elididos; os Essa nova linguagem, com componente
icônicos são condição necessária. Usamos verboicônico e diferenciado da literatura
o conceito de relato de Genette, ou seja: exatamente por essa razão, formula-se como
um enunciado que implica um universo uma mensagem comunicativa possível de se
narrativo no qual intervêm pelo menos um analisar com as ferramentas da semiologia.
narrador, que relata uma ação, e um perso- Para estabelecer a condição como meio
nagem, através do qual se compreendem de comunicação de uma vinheta podemos
os fatos, embora ambos possam coincidir diferenciar conteúdo e expressão em cada
(Genette, 1989, pp. 75-90). Com autonomia uma das mensagens desse tipo, seguindo
queremos significar que não se trata de obras teorias linguísticas de Hjemslev (1971, pp.
condicionadas a uma construção linguística 118 e segs.), revisadas para o caso da história
anexa (um texto, outra ilustração) e que em quadrinhos de Jiménez Varea (2007, pp.
poderiam emitir mensagem similar, uma 287-93). Finalmente, para compreender
vez transferidas a outro suporte, inclusive seu funcionamento, nós nos remeteremos
outro meio. aos “componentes” previamente sistema-
Devemos, a seguir, diferenciar clara- tizados por Steimberg (2001, pp. 99-118)3
mente construções como a piada gráfica e as ou Álvarez Junco (2009, pp. 287-93)4, que
histórias em quadrinhos, que se encontram se ajustam a um modelo narratológico: a
em ambos os extremos do que habitual- concreção do objeto humorístico, a incon-
mente se entende por cartoon2. A piada gruência sobre o que trata, e a complei-
2 Em inglês, o termo cartoon
gráfica é uma construção lexipictográfica ção na interpretação final da mensagem.
se aplica a toda construção
desenhada na qual se plasma na mensagem que depende do texto, sendo Com concreção nos referimos ao efeito
um fato humorístico, trate-se a imagem complementar mas não neces- de concretizar, ou seja, à “encenação” da
de uma gag cômica ou uma
sequência de imagens des- sária para completá-lo. Nós consideramos mensagem em qualquer âmbito, e não só
tinadas ao entretenimento que a definição de vinheta exposta pode em um contexto sociopolítico, ao qual se
ligeiro ou infantil. Sua am-
plitude terminológica é tal se estender à de “história em quadrinhos” costuma aludir com “contextualização” (às
que vai desde as lâminas com transformando “um relato humorístico” em vezes com “tematização”). A concreção faz
uma imagem do século XVIII
até os desenhos animados “uma narração”, seja do gênero que for, e parte da “história” que a vinheta comunica,
do século XXI. acrescentando a condição de justaposição sempre ligada a um contexto determinado.
3 Desde teorias prévias de de imagens. Dessa maneira, o conceito A incongruência se modula dentro do
Freud, Witz ou Kris, entre “historinha” (etimologicamente, “história “discurso” da vinheta e costuma ser trans-
outros, ajustando-as a um
modelo semiológico de curta”) englobaria as obras de humor gráfico gressora. Preferimos usar incongruência a
compreensão da imagem que superam a mera descrição (as caricatu- transgressão porque muitas obras satíricas
humorística em três planos:
quebra de isotopias no ras ou as ilustrações humorísticas com um quebram ou violam preceitos ou normas
cômico; desvio em direção texto elementar no rodapé, por exemplo) e estabelecidos (desde o gráfico até o político)
a um terceiro para com-
partilhar a inibição na piada;
compreenderia desde as proto-historinhas mas muitas outras vinhetas não. A incon-
tematização do sujeito com (construções de uma vinheta com enuncia- gruência nos permite ampliar o espectro a
sua criação humorística. do narrativo, ou com várias vinhetas, uma qualquer construção desprovida de lógica
4 Nessa obra, o autor esta- vez superados os pressupostos meramente ou de sentido, e essa subversão do sentido,
belece que a “configuração”
do humor gráfico se funda- descritivos das aves ou aleluias) até as his- ou “quebra de isotopias”, é comum a todas
menta em três aspectos: a tórias em quadrinhos atuais de toda índole, as obras humorísticas (o que concorda com
incorreção contextualizada,
a transgressão significativa e
sejam mudas ou não, sempre e quando os postulados de Luigi Pirandello (2002, pp.
a cumplicidade. comuniquem um relato com conteúdo e 95-130): “o cômico é exatamente advertir o

14 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011


contrário”. Por último, a compleição é um tropos ou metassememas e os metalogismos
termo que significa “efeito de completar” ou figuras de pensamento. Essa proposta
e o usamos em seu sentido etimológico se aplica à parte gráfica da construção
tal e como o fez Gombrich para explicar humorística, não ao texto da vinheta que
a apreensão de imagens figurativas (no se articula simultaneamente na geração da
âmbito perceptivo que não cognitivo; ver mensagem, motivo pelo qual o fluxo entre
Gombrich, 1979, citado em Aumont, 1997, ambas as semióticas não ficou descrito. Nós
p. 69). A compleição em nosso modelo acreditamos que acaba sendo de utilidade
está em função da cumplicidade que se conhecer os tropos que podem intervir na
espera do receptor e da intuição deste para produção do humorismo gráfico (metáfora,
compreender a vinheta, embora ainda não metonímia, sinédoque, hipérbole, meiosis,
estejam explicados os processos perceptivos ironia, alegoria, perífrase, eufemismo) ao
através dos quais se capta certeiramente a mesmo tempo que outros procedimentos,
mensagem de uma vinheta. como os jogos verboicônicos descritos
pelo Grupo μ: as interpenetrações (relações
de copresença onde o significante possui
traços de dois ou vários tipos diferentes
DO GROTESCO AO SATÍRICO para produzir concomitância expressiva),
as brincadeiras com a perspectiva, as pro-
Em sua função lúdica, com maior ou postas dicotômicas, as figuras de repetição,
menor aparência grotesca, o humor esbo- as antíteses, a reticência, imagem animista,
çado ou pintado já aparecia na arte sacra etc. (cf. Gómez Calderón, 2004, pp. 125-32).
medieval de forma dispersa, e depois se Atendendo à pragmática, Llera Ruiz
tornaria popular através de estampas, pas- (2003, pp. 165-322) descreveu várias moda-
quins ou panfletos e na imprensa satírica, lidades: o jogo visual, o humor absurdo ou
de espetáculos, de viagens ou informativa surrealista, o humor poético, o humor negro,
em geral. Durante os séculos XVIII e XIX, a vinheta testemunho, o costumbrismo, a
a sátira gráfica, como parcela do humoris- sátira (sociológico-moral) e o humor político.
mo gráfico, experimentou um grande auge Uma classificação mais ampla de Meléndez
devido à crispação política reinante na Malavé (2004, pp. 171-81) coincidia com a
Europa, cujos cidadãos burgueses encon- anterior por categorizar as vinhetas tomando
traram naquelas publicações uma arma de o signo pictográfico como extensão do léxico
singular efeito sobre as classes governantes, e também por definir os tipos de humor em
as endinheiradas e as eclesiásticas. função da “intencionalidade do autor”. Nós
A pesquisa sobre as características da consideramos que a imagem é permeável a
linguagem da vinheta foi, de forma geral, outras aproximações que levem em conside-
abordada com ferramentas distanciadas da ração qualidades pictográficas e não léxicas,
ortodoxia científica. Na Espanha, nem os mas o que nos interessa é poder traçar uma
historiógrafos nem os próprios humoristas análise do conjunto verboicônico. Para isso
se preocuparam com a taxonomia do humor não é adequado separar modalidades de
gráfico. Ivan Tubau, em sua obra de 1973 humor dependentes da intencionalidade do
De Tono a Perich: El Chiste Gráfico en La autor já que poderíamos cair no subjetivis-
Prensa Española del Posguerra (Fundaci- mo. Seria mais correto discriminar entre as
ón Juan March/Guadarrama)5, formulou “respostas aparentes exigidas pelo recurso
uma simples escala à qual não se soma- humorístico”, em que a interpretação do
ram elementos até recentemente. Outros leitor-espectador6 fica condicionada à ob- 5 Reeditado e ampliado em El
Humor Gráfico en la Prensa
autores trabalharam sobre uma descrição jetividade que o pesquisador aplicar. Ou del Franquismo (Barcelona,
sistemática dos recursos para o humor seja, os tipos de vinheta dependerão da Mitre, 1987).

desde uma aproximação literária, lançando substância de conteúdo e da expressão de 6 Falamos de um leitor-espec-
tador porque o consumidor
mão das figuras propostas pelo Grupo μ ambos os elementos integrantes, os verbais de vinhetas lê ao mesmo
de Jacques Dubois (1993, pp. 231-61): os e os icônicos. tempo em que vê.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011 15


Sobre a base das tipologias e tendo Uma vez detalhados os elementos que
presentes só três modalidades de resposta permitem articular a linguagem da vinheta,
do leitor-espectador de uma vinheta, surge interessa-nos estudar essa estrutura como
a seguinte tipologia guia que resgatamos de meio narrativo, como meio enunciador de
nosso trabalho de 2007 (cf. Barrero, 2007, relatos. Está claro que uma descrição pode
pp. 30 e segs.): ser transmitida com uma só imagem, pois

MODALIDADE TIPO EIXO TROPOS METALOGISMOS

– Caricatura Jogo estético (Etopeia) Animismo


Resposta festiva – Humor abstrato Jogo visual Hipérbole
– Humor branco Gag / piada (Ironia) Iteração
Metonímia
– Humor poético Fig. poéticas (Eufemismo) Interpenetração
– Humor surrealista Absurdo Metáfora (aderente,
Resposta
– Humor Homenagem (Pastiche) fundente, ou
especulativa
testemunhal Adversidade Sinédoque construtiva)
– Humor negro Alegoria
(Paródia) Isotopias
– Sátira moral Costumbrismo
Outras figuras projetadas
– Sátira social Usos e modas
retóricas
Resposta crítica – Sátira política Ideologias
Meta-humorismo
– piada politizada Atos/fatos
– piada política políticos

Na tabela, as diferentes modalidades basta uma composição gráfica para refletir


não são necessariamente excludentes entre o condicionamento de um fato, mas nem
si. Entenderemos que o tipo de resposta uma caricatura nem uma imagem de uma
categorizada é a que mais habitualmente situação humorística por si sós configuram
se produz entre os tipos de vinhetas des- um universo diegético. Para obter uma
critas. Os eixos tampouco são rígidos, só narração exige-se o concurso de trama
representam o conceito mais utilizado como mais argumento e a formulação dos níveis
base para produzir cada tipo de humor. Os enuncivo e enunciativo, o que implica um
tropos foram dispostos em uma coluna sem efeito previsto por parte do emissor sobre os
divisórias porque fluem entre todos os tipos receptores do relato. Genette (1989, p. 241)
de vinhetas, dependendo das figuras que o insistia em precisar claramente o ponto de
autor utilizar em cada momento. O mesmo vista do personagem que orienta a perspec-
vale para os metalogismos, embora se dis- tiva narrativa e diferenciá-lo do narrador, o
ponham, como os tropos, em uma ordem que ele distinguia como modo e voz. Essa
ascendente de complexidade em relação voz servia para ele sustentar a teoria da fo-
com os diferentes tipos de humor que exi- calização, que diz respeito à relação entre o
gem uma maior implicação de símbolos, ponto de vista do personagem e a identidade
ideias ou associações para compreender a que o narrador adota. Em sua revisão dessa
mensagem humorística. teoria, Genette (1998, p. 45) se preocupou

16 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011


finalmente em localizar “onde está o foco “o velho”, em Wittenberg e por ordem
da percepção”, para ampliar o espectro da dos reformadores Martim Lutero e Phillip
focalização às mensagens audiovisuais7. A Melanchthon por volta de 1523. Tratava-
localização desse foco é capital para dis- -se de folhas impressas de um só lado, das
cernir quando uma estrutura verboicônica quais destacou Der Papstesel zu Rom (ou
tem narratividade, salvo naqueles casos “O Papa-asno de Roma”), que mostrava
nos quais a obra é puramente descritiva um ser recortado contra duas construções
ou abstrata e não permite vislumbrar em entre as quais fluía um rio. Possuía cabeça
seu conteúdo personagens nem narradores. de burro sobre corpo escamoso, seios de
Com os aspectos descritos anteriormen- mulher à mostra, um braço de elefante, uma
te, concreção, incongruência e compleição, garra em um pé e uma peçonha no outro;
podemos determinar se em uma vinheta também uma cauda que parecia culminar
existe história (definida em um contexto em uma cabeça de dragão. Pode-se consi-
ou sobre um “texto” já conhecido), e se derar que essa vinheta já articula um relato,
existe discurso (surge da incongruência com posto que combina o humor abstrato com a
relação a uma circunstância ou situação co- sátira moral sobre a base do absurdo com
nhecidas), organizando-se este sobre a base foco sobre um personagem central, o que é
da interpretação/compleição da estrutura uma etopeia animista que adquiria sentido
por parte do leitor. Comprovaremos estas ao acompanhar-se das construções de fundo
colocações com exemplos. além de um texto esclarecedor (Figura 1).
Nessa imagem, encontram-se os com-
ponentes básicos da sátira gráfica descritos:
a concreção, por remeter a certas proprieda-
CONCREÇÃO NA SÁTIRA des e figuras conhecidas; a incongruência,
7 Não há estudos de peso
sobre os mecanismos de
pela nudez e monstruosidade associadas percepção que operem
ante a contemplação de uma
Toda imagem humorística é gerada a uma instância moral; e a compleição, vinheta, e menos ainda sobre
condicionada ao contexto no qual vai se dado que estava dirigida a um público a cognição derivada deles.
difundir, ao suporte no qual se publica e
à tecnologia de que se serve. Daí ser im-
portante conhecer também os materiais, as
possibilidades e as técnicas de produção
Reprodução

dos humoristas gráficos. Por exemplo, a


caricatura alcançou grande sofisticação ao
longo dos séculos através de um processo
de supressão de matizes e graduações nos
traços desenhados. Daí que aparecesse
primeiro nos estudos anatômicos e como
divertimento de pintores (citou-se com
frequência o caso dos irmãos Carraci), mas
não adquiriu desenvolvimento suficiente até
que não se estandartizassem os trabalhos de
gravuras e imprensa que permitiram fazer
cópias corretas de imagens desse tipo.
Muitos estudiosos citam como primeiro
exemplo de sátira as gravuras dirigidas con-
tra o Papa de Roma, das quais houve antece-
dentes desde 1500 ou antes, se bem que em
sua maioria foram gravuras dependentes de
outro suporte ou de outro relato (cf. Payer,
2004-05). Levaremos em consideração as
produzidas na gráfica de Lucas Cranach, Figura 1

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011 17


presumidamente carregado de antipatias século XVI, o alcance do Papstesel era cur-
para com a repressora Igreja daquela to, não mais além do término da cidade na
época, receptores que “completavam” a qual se imprimiu (ou se copiou), e pode-se
mensagem ao relacionar o endríago com deduzir que, por essa razão, usou-se uma
a construção do fundo. figura monstruosa fácil de identificar por
O mais destacável de Papstesel é o uma população concreta. Mas a inclusão
aspecto da contextualização. Segundo Lu- da construção do fundo e da insígnia vati-
dueña (2005, p. 8), a horrível figura pôde se cana ampliou seu alcance a outras pessoas,
inspirar em um nascimento monstruoso que inclusive de outros países, apesar de não
se produziu às margens do Tiber por volta de conhecerem o nascimento monstruoso.
1495. Mas essa circunstância, ocorrida trinta A caricatura do profeta Maomé com
anos antes, dificilmente poderia ser levada uma bomba como turbante é outro caso
em conta, sobretudo à vista da construção paradigmático de caricatura provida de
coroada pelo escudo vaticano do fundo, narratividade (embora nunca assim anali-
que lembrava o castelo de Sant’Angelo, de sada) e ligada forçosamente a um “alcan-
Roma, no qual foi trancado – e envenenado ce”. A comumente denominada “crise da
– o papa João XIV em fins do século X. A caricatura de Maomé” surgiu depois da
gravura de Cranach parece remeter à torre publicação de uma dúzia de imagens no
na qual foi morto um pontífice por ordem jornal dinamarquês Jyllands-Posten, de 30
do antipapista Bonifácio VII e, portanto, de setembro de 2005. O editor da seção de
reconstrói uma história e convida a sua cultura onde apareceram queria contribuir
reminiscência por parte do leitor instruído com o debate sobre a autocensura que al-
que, por sua vez, relaciona-o com a figura guns artistas dinamarqueses se impunham
central e com o título da obra. por medo a represálias por parte de grupos
Nós nos apercebemos que a concreção islâmicos radicados na Dinamarca. Uma das
não só requer um contexto, como também imagens mostrava um carrancudo Maomé
implica uns limites em sua atuação, isto é, com um turbante transformado em bomba,
que define um “alcance” do efeito satírico com a mecha acesa. Outras imagens repre-
da obra. Esse alcance pode ser espacial, sentavam o profeta como um ser agressivo,
8 Encontra-se disponível,
traduzido para o inglês, dependente do suporte e da distribuição da repressor das mulheres e até aparentemente
quase por completo, em: obra, temporal, em função dos meios pelos demoníaco. Demonstrou-se (cf. Sifaoui,
http://en.wikipedia.org/wiki/
Akkari-Laban (consultado
quais se transmite, e temático, em relação 2006; Favret-Saada, 2007; Barrero, 2008)
em 26/7/2010). com o tratamento que se aplica a ele. No que os distúrbios ocorridos durante os meses
seguintes em países do Islã, em virtude da
difusão massiva dessas vinhetas fora da
Reprodução

Dinamarca, foram orquestrados por vários


muçulmanos fundamentalistas como parte
de uma campanha propagandística que usou
como eixo um informe apresentado no Egito
(o chamado Akkari-Laban dossier)8.
As vinhetas dinamarquesas estavam
direcionadas para criticar o temor existente
em desenhar a efígie de Maomé no contexto
laico e democrático de Copenhague. Isso
fica evidente se se analisam os conteúdos e
mensagens das vinhetas do Jyllands-Posten,
algo que durante o desenvolvimento da
crise não foi abordado por jornalistas ou
comunicólogos. Aplicando nossa tipologia,
a vinheta assinada por KW (Kurt Westerga-
Figura 2 ard) consistia em uma alegoria satírica de

18 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011


tipo moral, e também ideológica, embora
inofensiva para um ocidental, habitual leitor
INCONGRUÊNCIA HUMORÍSTICA
dessa seção do jornal (Figura 2).
É necessário insistir em que essa imagem A transgressão costuma ser habitual nas
não se situou em um contexto de opinião vinhetas satíricas. As que nós analisamos
editorialista; apareceu em um suplemento anteriormente mostravam incongruências
cultural e não houve mais remessas de com relação aos paradigmas religiosos:
imagens do mesmo tipo nem antes nem assemelhar o Sumo Pontífice a um mons-
depois. Tirada de seu contexto (de seu tro diabólico, assimilar o profeta Maomé
jornal), circulando em separado ou com com a agressão terrorista. Outras vinhetas
outros “textos” acrescentados (avaliações de transgridem normas sociais ou políticas
suas qualidades gráficas ou comunicativas, preestabelecidas. Abordaremos a questão
opiniões tingidas de ideologia, análises em com duas vinhetas “infratoras” que incidem
outros contextos), foi assimilada a uma sobre tabus: o respeito a uma instituição
intencionalidade tendenciosa por certos inviolável por tradição (a sátira dirigida
agentes interessados em potencializar a contra a Coroa espanhola no caso do se-
agressividade dos estados árabes contra a questro da revista El Jueves) e a defesa
Dinamarca. A crispação aflorou realmente de valores adquiridos recentemente (uma
depois de reproduzir as imagens do Jyllands- vinheta presumivelmente racista publicada
-Posten tergiversando a interpretação de seu no jornal New York Post).
alcance satírico. Se no jornal de origem a A revista satírica El Jueves, nascida
caricatura ficava ligada à denúncia da au- em 1977 e ainda em curso, é uma das que
tocensura, separada dele se tornou muito mais satirizaram a família real espanhola, a
mais ofensiva para qualquer muçulmano. instituição mais protegida pela Constituição
Em seu contexto original, e com o al- espanhola, inclusive em aspectos domésti-
cance previsto (a população dinamarquesa), cos e íntimos (para uma panorâmica sobre
a vinheta é interpretada como “pode-se essas sátiras cf.: Barrero, 2010, pp. 115-42),
desenhar Maomé inclusive fazendo uso embora nunca tenha havido uma reação da
da sátira, e o medo das represálias fica Casa Real contra a revista por esses conteú­
demonstrado ao identificar a caricatura do dos. Mas o no 1.573, do dia 18 de julho de
profeta com a violência que se exercita em 2007, foi denunciado e apreendido devido
seu nome”. Mas tirada de seu contexto e ao fato de que em sua capa aparecia uma
de seu alcance, entram em jogo os tropos sátira alusiva à promessa do governo de
sinédoque (o árabe enfadado personifica bonificar com 2.500 euros a quem tivesse
todo o Islã fundamentalista) e alegoria (a um novo filho. Manel Fontdevila exempli-
inscrição na bomba significa que o ter- ficou essa ironia com o casal de espanhóis
rorismo tem raízes na religião integrista a priori menos necessitados de receber esse
muçulmana), e surge automaticamente prêmio, os príncipes de Astúrias, que na
uma interpenetração metonímica: Maomé época estavam procurando um descendente
= terrorismo. Eis aqui a grande importância homem. O desenhista Guillermo se encar-
do alcance satírico: no âmbito globalizado regou de concretizar a ideia. Na imagem,
a vinheta se desnaturaliza se forem usadas apareciam as caricaturas de Dom Felipe e
chaves de compreensão só acessíveis para Dona Letizia praticando o que parece ser
certo grupo cultural. Os que se violentaram uma cópula, com ela dando-lhe as costas,
com aquela imagem, como um muçulmano enquanto ele diz em voz alta: “Você per-
iletrado (ou qualquer ocidental, como ficou cebe se você ficar grávida? Isso vai ser a
demonstrado), não interpretaram os tropos coisa mais parecida com trabalhar que eu
metáfora ou alegoria porque se detiveram fiz na minha vida”. No interior da revista
na hipérbole, na ridicularização exagerada, não apareciam os membros da Casa Real
sem carga irônica e sem capacidade para o em nenhuma outra vinheta nem quadrinho.
eufemismo. Em 13 de novembro do mesmo ano, os

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011 19


Reprodução
co” dos autores da sátira. Quase nenhum
jornalista analisou a vinheta daquela capa
como uma estrutura narrativa com uma
mensagem concreta referente a uma questão
econômica, quase todos se preocuparam
com a representação de corpos nus e sua
participação em um ato libidinoso. Essa
separação de imagem e mensagem também
ficou evidente na intensidade das críticas
dirigidas sempre ao desenhista e nunca ao
roteirista da gag.
A sátira tinha um alcance determinado
entre um público definido, o dos leitores do
semanário, acostumado a ver os monarcas
caricaturizados em situações bufonescas
e até lascivas. Mas essa distância não foi
modificada. O que aconteceu foi uma rein-
terpretação da mensagem com uma nova
transgressão, um novo contexto de análise
e um inexistente dolo dos autores, tudo
isso tendo como base o ataque à Coroa.
Consequentemente, a obra modificou seu
discurso, adotando uma “vigência” nova10.
É inclusive provável que a raiva obtivesse
maior reforço ao ser difundida, não sem
tendenciosidade, através de um programa
televisivo em faixa de audiência máxima,
habitualmente detrator dos privilégios da
Monarquia. Desse modo, ao comprovar a
Figura 3 vigência de um discurso satírico (o dirigi-
do contra a “classe” monárquica) que se
autores daquela capa foram condenados a acreditava anulado, a vinheta serviu para
dez meses de multa (3.000 euros cada um) refletir sobre a distribuição de poderes e
por um delito de injúrias à Coroa (Figura 3). os direitos adquiridos.
A imagem julgada combina caricatura Um caso que também deixa ver a im-
com sátira política mediante os tropos portância do fator vigência na sátira foi o
9 Foi a segunda publicação sa-
hipérbole e sinédoque na parte gráfica, da reprovação pública de Sean Delonas,
tírica apreendida na Espanha
desde que a democracia foi que em conjunção com a parte textual por sua vinheta do dia 18 de fevereiro de
aprovada, em 1977. Vinte articulam uma isotopia projetada para a 2009 no New York Post. Nesse dia, Delonas
e um anos antes, também
por ofensas presumidas à medida governamental. Cabe destacar que, ironizou sobre o caso de um chipanzé fora
Monarquia, foi apreendido antes de ser anunciada, a vinheta mudou de controle que havia atacado e desfigurado
um número da revista satí-
rica El Cocodrilo. de contexto e aumentou seu alcance ao ser uma mulher em Stamford, no dia 16 de fe-
mostrada na televisão em um programa de vereiro; a polícia abateu o símio com vários
10 É o que Álvarez Junco
(2009, p. 128) entende por grande audiência (¡Aqui Hay Tomate!), e disparos. O humorista sugeria que, ao ter
distanciação, em seu estudo que depois da apreensão multiplicou ainda matado o macaco, “outro” teria que escre-
sobre a transgressão no
humor gráfico:“[…] a trans- mais esse alcance através da Internet, em ver a próxima stimulus bill, em alusão ao
gressão cômica pretende milhares de mensagens de repulsa pela pacote de medidas de estímulo econômico
produzir um distanciação
momentânea (para) des- medida antidemocrática9. aprovado no Congresso dos EUA em 2009
tacar as duvidosas uniões As opiniões emitidas nos dias seguintes com o fim de reduzir o déficit nacional. A
conceituais (ou) advertir
sobre uma linha equivocada
à apreensão mostraram repulsa tanto pela vinheta, na qual o autor usou como per-
de pensamento”. apreensão como pelo “mau gosto estéti- sonagem focalizado um dos policiais, era

20 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011


simplesmente humor testemunhal, embora O relevante dessa polêmica está no
sobre um tema político, no qual entravam fato de que ao romper o alcance da sátira
em jogo a metáfora e a metonímia com um (sua concreção a um assunto preciso, o do
metalogismo de interpenetração (Figura 4). ataque furibundo do símio), sua vigência se
A vinheta não foi criticada por refletir manteve em outro âmbito de transgressão,
os métodos expeditivos da polícia, nem por associado à aversão “nacional” americana
mostrar violência contra os animais, nem sobre um passado vergonhoso. Por essa
sequer por gozar das medidas do governo. razão, mudou o sentido da incongruência
Foi criticada por ser racista, dado que su- da vinheta, que de outro modo não teria
geria que quem havia redigido o plano de sido entendida como uma mensagem se-
estímulo econômico, Barack Obama em gregacionista direta.
última instância, era como um chimpanzé.
Tanto o autor da vinheta como os editores
do jornal rechaçaram essa interpretação,
mas, quando a imagem foi difundida pela COMPLEIÇÃO DA VINHETA
Internet, havia ultrapassado seu alcance
(nacional) mantendo sua vigência em um Do ponto de vista psicanalítico, o hu-
âmbito novo, onde a transgressão já não era mor se propôs como um mecanismo de
sobre o ocorrido em Stamford, mas sobre a economia energética (ou um sistema para
segregação racial, cujo rechaço foi um dos vencer a coerção) que leva, imanente, um
grandes avanços da política social do país. aviso da inocuidade da mensagem emitida.
Como bem destacou Romero Herrera (2009, Isso se consegue com o uso de imagens de
p. 96), a vinheta perdeu seu sentido concreto baixa iconicidade, mediante o reforço da
ao situá-la em um âmbito interestatal e, ao cumplicidade com o leitor-espectador, e
ser interpretada como um discurso racista com uma constante abstração do trágico
contra o presidente dos EUA, a vigência da tendente a eliminar a dor.
obra se limitou àquele pressuposto trans- Não é necessário estender-se sobre a
gressor, independentemente de que seus redução de elementos iconográficos nas
autores ou editores tivessem explicado sua vinhetas para sintetizar e sofisticar sua
verdadeira intenção. mensagem. Tampouco propõe discussão

Figura 4
Reprodução

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011 21


o rechaço à morte como tema de fundo no internet, mostrava Hitler na cama com Anne
humor, em qualquer de suas manifestações, Frank, aparentemente depois de ter mantido
algo sobre o que se abundou11. Aqui a di- relações sexuais. Hitler lhe diz: “Anote isto
ficuldade estava em determinar o grau de no seu diário, Anne!” (Figura 5).
cumplicidade que o autor poderá obter do A imagem é uma caricatura surrealis-
leitor-espectador, que depende da orienta- ta com sátira moral em que o absurdo é
11 O humor, em sentido lato, ção que lhe confiram e do contexto ao qual o eixo e joga com o tropo pastiche, que
postula um universo die- a dirija. Atualmente, o problema se agudiza tanto pode propender ao meta-humorismo
gético no qual não há dor
nem morte, o que ocorre porque as novas tecnologias e os espaços como à isotopia com interpenetração. Ob-
também com outras mo- virtuais permitem difundir toda obra em viamente, estamos diante de um caso de
dalidades narrativas ema-
nadas do cômico, como um contexto global, e isso significa que contextualização vaga, porque ambos os
a história em quadrinhos a concreção pode se perder rapidamente personagens estão mortos e não coincidiram
desde seu nascimento e
se não se afiança que a transgressão pode em vida. O que, sim, se concretiza é que
durante grande parte de seu
desenvolvimento ao longo modificar seu alcance e sua vigência e que, se alude ao nazismo, com a inconfundível
do século XX. Segundo finalmente, a cumplicidade que se deseja do caricatura de Hitler (que tem uma cruz
sintetizou recentemente
Álvarez Junco (2009, 128 receptor se volte contra o autor. suástica tatuada no peito), e ao judaísmo
e segs.), o humor parece Encontramos um caso de compleição submetido (e humilhado, se extrairmos da
oferecer uma abstração
do trágico na experiência oblíqua em uma vinheta mostrada em vinheta que Anne Frank foi violentada). A
humana, o que gera uma fevereiro de 2006, ligada a um concurso transgressão é óbvia, depositada sobretudo
empatia com o sofrimento
que nos proporciona prazer. sobre o tema do Holocausto com o qual na gozação que Hitler faz de um diário que
se pretendia reagir contra os autores das depois seria um dos documentos mais lidos
12 Esse particular é descrito
no blog The Better Part of “caricaturas de Maomé”. O jornal convo- sobre as atrocidades do Holocausto. Mas a
Valour (on line, consulta- cador, o iraniano Hamashahri, apresentou interpretação da vinheta não foi a mesma
do em 26/7/2010): http://
thebetterpartofvalour.wor- alguns primeiros desenhos sobre o tema no Irã e em Israel, ou na Alemanha ou na
dpress.com/2006/02/14/ entre os quais se encontravam várias obras Austrália. A compleição de um australiano
more-cartoons/, e no de
MergeRight (on line, con- do australiano Michael Leunig, nas quais pode transformá-la em uma piada macabra,
sultado na mesma data): compara o genocídio judeu com a situação mas um alemão a entenderá como um debo-
http://mergeright.blogspot.
com/2006/02/leunig-gets-
política entre Israel e a Palestina. Uma das che de mau gosto que beira o delitivo; em
-virgin-for-anti-semitic.html. imagens de Leunig, muito difundida na Israel podem se sentir muito gravemente
ofendidos, enquanto no Irã poderia causar
alvoroço.
Figura 5 O surpreendente do caso da vinheta de
Leunig é que, na realidade, não participou
nesse concurso iraniano, mas que o editor
do jornal recolheu uma imagem de arquivo
à qual teve acesso, que lhe pareceu oportuno
aproveitar no seio da controvérsia12. Além
disso, a obra original nunca foi admitida em
um concurso nem publicada pelo jornal e,
sim, foi mostrada em um site belga dotando-
-a de uma nova vigência. O que não parecia
complexo porque ambos os personagens, já
mortos, continuavam vigentes na memória
coletiva.
O uso de personagens mortos não deve
ser entendido como uma mofa cruel. Esse
tipo de representação não é feito no humor
gráfico para denegrir a memória dos fale-
cidos, mas como remédio contra a dor e
Reprodução

como rechaço da própria morte através de


reelaborações simbólicas. Aqui, os redivi-

22 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011


vos Hitler e Anne Frank foram utilizados
como uma abstração da tragédia e com o
fim de buscar a empatia do leitor-espectador,
em um tipo de exercício de “exultação”, de
celebração. É lógico pensar que possa ser
interpretada de outro modo, mas também
deve admitir-se a ausência de culpa por
parte do autor com respeito às acusações
que sofreu de negar o Holocausto.
Também alusiva à morte foi outra vi-
nheta recente, que acaba sendo complexa
de entender senão em seu contexto, em

Reprodução
seu âmbito transgressor, com seu alcance
e sua vigência. Referimo-nos à vinheta de
Vauro Senesi mostrada publicamente em 9
de abril de 2009 em um programa da cadeia
televisiva RAI. Nela se vê umas casas em sonalidades ligados ao poder conservador Figura 6
ruínas e um homem com uma pá diante de (em 1994, por uma caricatura publicada em
uns caixões que, com gesto compungido, Il Venerdi di Repubblica; em 1997, por uma
completa a frase “Aumento delle cubature” imagem “anticatólica” publicada no jornal
(“aumento da lotação”) com o triste comen- Il Manifesto), o leitor compreenderá que o
tário “Dei cimiteri!” (“dos cemitérios!”) relato dessa vinheta centra-se em lamentar
(Figura 6). terrivelmente, a julgar pela expressão do
A imagem, seguindo nosso modelo coveiro (em quem se focaliza a narração),
tipológico, combina o humor negro com o lutuoso acontecimento sísmico, ao mesmo
sátira politizada, usando a adversidade com tempo em que se comenta obliquamente a
ironia para elaborar uma interpenetração política “catastrófica” de Berlusconi.
cujo foco é um personagem anônimo. Vauro, Nessa imagem, a compleição que o
colaborador habitual do popular programa leitor alheio à RAI efetua é equivocada
de televisão AnnoZero, foi admoestado se desconhece o âmbito satírico no qual
e despedido provisoriamente pela forma se movia o programa AnnoZero. Dessa
como essa vinheta tratava o terremoto que forma, a transgressão assalta o leitor que
ocorrera no dia 6 de abril na localidade de desconhece a postura ideológica do autor
L’Aquilla e que causou a morte de mais de frente ao governo, e é possível interpretar
300 pessoas. O diretor-geral da RAI, Mauro a composição como um ataque destinado à
Mais, avaliou que a imagem era ofensiva já memória dos sinistrados. Nada mais longe
que ia contra os sentimentos de compaixão da intencionalidade do autor, mas tirar a
pelos falecidos. vinheta fora do contexto emissor, a RAI,
A vinheta de Mauro, realmente, estava transforma-a automaticamente em uma
voltada a satirizar a polêmica em virtude gozação dirigida aos prejudicados, porque a
do chamado Plano Casa do governo con- figura do coveiro, na realidade incorporada
servador de Silvio Berlusconi, mediante o para o que chamamos de exultação, pode se
qual pretendia aumentar a superfície das transformar, aos olhos de outro público, no
moradias do país para impulsionar a cons- eixo de uma troça ao ultrapassar os limites
trução de moradias. espaciais, temporais ou temáticos para os
A contextualização da obra se faz ne- quais a sátira estava concebida.
cessária posto que, sabendo que Vauro é A vinheta de Vauro multiplicou seu al-
um autor mordaz ligado a uma ideologia cance nas televisões italianas e na Internet e,
comunista (membro do Comitato Centrale em consonância, intensificou sua gravidade
Del Partito dei Comunisti Italiani), que já satírica. Em parte, essa gravidade surgiu de
havia tido embates com membros ou per- uma compleição que carregava de culpa o

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011 23


autor da sátira. Tanto os escombros como humorismo gráfico mais descritivas – ou
os caixões e a figura do coveiro descrevem- argumentativas – que narrativas. Aplicando
-nos um panorama de mortandade no qual a análise do discurso sobre a vinheta satí-
não se desenham cadáveres, embora, sim, rica podemos isolar três componentes: a
seus vestígios. O universo diegético des- concreção, a incongruência e a compleição,
crito por Vauro não implica os falecidos que são características de todas as obras
necessariamente, mas insere a ideia da desse tipo pois servem para contextualizar a
morte para construir uma sátira sobre uma composição humorística em lugar, tempo e
medida que afetava a vida dos italianos. modo; em segundo lugar, permitem estimar
Naturalmente, pode-se arguir que Vauro foi a qualidade da transgressão do enunciado
deselegante e que pecou pelo mau gosto, e, finalmente, levam-nos a compreender o
mas a intencionalidade primeira não era rir conjunto do percebido dentro do âmbito
das vítimas do terremoto. de intenções que o autor se havia proposto
no início.
Depois de revisar vários exemplos de
caricaturas aparentemente não narrativas e
CONCLUSÕES vinhetas satíricas de grande difusão e muito
controvertidas, cada uma em seu âmbito e
O estudo do humor gráfico, uma vez se- em seu momento, nós pudemos estabelecer
parado do resto do humorismo, conduz-nos outras propriedades das vinhetas: o alcance,
a analisar a sátira gráfica como um meio, que alude à sua integridade dentro de limites
determinando seu conteúdo e sua expressão espaciais, fundamentalmente, a vigência,
mediante a semiologia, com uma tipologia que marca sua efetividade diacrônica, e a
sistematizada que ordena seus tropos, eixos exultação, em referência ao universo dia-
e metalogismos. Podemos identificar a gético construído pelos humoristas no qual
vinheta como estrutura narrativa (ou seja, todo dolo ou culpa se encontram mascarados
como enunciado no qual o autor constrói com o fim de representar uma realidade na
um personagem focalizado que conduz um qual não cabem a dor nem a morte. O que é
relato), o que a diferencia da caricatura e a essência de todo humorismo: um modelo
da piada gráfica, expressões básicas do de regozijo para celebrar a vida.

bibliografia

ÁLVAREZ JUNCO, Manuel. El Diseño de lo Incorrecto: la Configuración del Humor Gráfico. Buenos
Aires, Icrj Diseño, 2009.
AUMONT, Jacques. El Ojo Interminable. Barcelona, Paidós, 1997.
BARRERO, M. “Sátira, Intromisión y Transgresión. El Humor como Atentado Gráfico”, in Morfología
del Humor II. Fabricantes. Jornadas de Estudio y Análisis del Humor Desde la Antropología, la
Psicología, la Filosofía y la Cotidianidad. Sevilla, ACCSN/Padilla Libros, 2007 (texto completo em:
http://www.scribd.com/doc/16482791/Morfologia-Del-Humor-II).
________. “La Controversia de las Viñetas de Mahoma. Géneros, Alcance y Propaganda en la Sátira
Gráfica”, in Mundaiz, 75. Universidad de Deusto, 2008.
________. “Sátira Contra la Monarquía Hoy. Lo Representado Contra lo Narrado”, in E. Bordería Or-
tiz, F.-A. Martínez Gallego y J. L. Gómez Mompart. La Risa Periodística. Valencia, Tirant lo Blanch/
Universidad de Valencia, 2010.

24 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011


FAVRET-SAADA, J. Comment Produire Une Crise Mondiale: Avec Douze Petits Dessins. Paris, Les Prairies
Ordinariez, 2007.
GARCÍA VILLOSLADA, R. Martín Lutero. En Lucha Contra Roma, vol. II. Madrid, Católica, 1973.
GENETTE, Gérard. Nuevo Discurso del Relato. Madrid, Cátedra, 1998.
________. Figuras III. Barcelona, Lumen, 1989.
GOMBRICH, E. H. The Sense of Order. A Study in the Psychology of Decorative Art. Oxford, Phaidon
Press, 1979.
GÓMEZ CALDERÓN, Bernardo J. “Para una Retórica de la Viñeta”, in Teodoro León Gross (dir.). 11M.
Las Viñetas en la Prensa. Málaga, Diputación de Málaga, 2004.
GRUPO μ. Tratado del Signo Visual. Madrid, Cátedra, 1993.
HJELMSLEV, Louis. Prolegómenos a Una Teoría del Lenguaje. Madrid, Gredos, 1971.
JIMÉNEZ VAREA, Jesús. “Teatro, Cómics y Shakespeare: Macbeth en Viñetas”, in Comunicación.
Revista Internacional de Comunicación Audiovisual, Publicidad y Estudios Culturales, 5. Univer-
sidad de Sevilla, 2007 (disponível em: http://www.tebeosfera.com/ documentos/textos/tea-
tro_comics_y_shakespeare:_macbeth_en_vinetas.html).
LUDUEÑA, F. J. “Marsilio Ficino y Martín Lutero Entre Ley y Mesianismo: Algunos Rasgos de la Mo-
dernidad como Teología Secularizada”, in Tiempos Modernos, 12, 2005 (disponível em: http://
www.tiemposmodernos.org/include/getdoc.php?id=444article=108mode=pdf).
LLERA RUIZ, José Antonio. El Humor Verbal y Visual de La Codorniz. Madrid, CSIC, Anexos de Revista
de Literatura, 58, 2003.
MELÉNDEZ MALAVÉ, Natalia. “Clasificación Genérica de un Género Inclasificable: del Humor Puro
al Humor Crítico en las Viñetas del 11-M”, in Teodoro León Gross (dir.). 11M. Las Viñetas en la
Prensa. Diputación de Málaga, 2004.
PAYER, Alois (coord.). Antiklerikale Karikaturen und Satiren XVII: Reformation und Gegenreformation,
2004-05 (disponível em: http://www.payer.de/religionskritik/ karikaturen17.htm).
PIRANDELLO, Luigi. “Esencia, Caracteres y Materia del Humorismo”, in Cuadernos de Información y
Comunicación de la Universidad Complutense de Madrid, 7, 2002.
ROMERO HERRERA, M. J. ¿Dónde Están los Límites del Humor Gráfico? Deontología y Derecho del
Humor Gráfico en la Prensa Española Contemporánea. Granada, Fundación Campus Esco-Esna,
2002.
SIFAOUI, M. L’Affaire des Caricatures de Mahomet. Paris, Éditions Prive, 2006.
STEIMBERG, Oscar. “Sobre Algunos Temas y Problemas del Humor Gráfico”, in Signo y seña, 1, 2001.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 10-25, dezembro/fevereiro 2010-2011 25


Mara Burkart
Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro

mara burkart
é professora de
História Social
Latino-Americana
da Faculdade de
Ciências Sociais da
Universidade de
Buenos Aires.
RESUMO

O artigo oferece uma incursão pelas principais publicações de humor


gráfico argentinas no século XX, demonstrando uma prolífica história e
®
tradição humorística. De Caras y Caretas a HUM , passando por Rico Tipo
e Tía Vicenta, entre outras, presta-se atenção ao surgimento destas e a seu
futuro levando-se em conta os contextos sociopolíticos, particularmente a
alternância entre regimes democráticos e autoritários.

Palavras-chave: imprensa, humor gráfico, Argentina.

ABSTRACT

This article offers a foray into the leading Argentine graphic humor publications
of the 20th century; and reveals a prolific history and humor tradition. From
®
Caras y Caretas to HUM , Rico Tipo and Tía Vicenta, among others, a close
look is taken at when they came out and at their future; taking into account
their socio-political milieu, particularly in regard to the alternation between
democratic and authoritarian regimes.

Keywords: press, graphic humor, Argentina.


m 1898 surgiu a revista Caras y Caretas, produzindo

um ponto de inflexão entre um século e outro com

relação ao tipo de jornalismo gráfico que se fazia

até então. Caras y Caretas foi a primeira revista

moderna, dirigida a um público massivo. Um século

depois, em 1999, deixava de ser editada a revista HUM® (Humor

Registrado), depois de 21 anos no mercado. Com ela se pôs fim

a um tipo de publicação de humor gráfico que teve suas raízes

naquela Caras y Caretas. Entre ambas as experiências editoriais,

há muitas outras, e é o objetivo deste artigo analisar a história

da imprensa argentina de humor gráfico no século XX. Serão

estudadas as revistas1 mais representativas de cada época, aquelas

que inovaram e conquistaram com sucesso o público leitor, e sua

relação com seu contexto político, social e cultural. O errático

caminho da política argentina entre a democracia e o autoritarismo

e seu impacto no campo cultural e social encontra-se represen-

tado nas caricaturas, nos cartoons, nas tiras cômicas e nas notas

humorísticas de cada época, não só marcando o futuro de cada

uma das publicações e de seus realizadores como também con-

tribuindo para modificar aquela realidade que pareciam refletir.

A IMPRENSA MODERNA E A IRRUPÇÃO DAS


MASSAS: CARAS Y CARETAS

No início do século XX, a sociedade argentina assistiu a um

processo de complexificação social com a irrupção das classes

médias e da classe operária urbana. O campo jornalístico também

se viu imerso em um processo de modernização – associado


1 Será deixado de lado o
aos avanços mecânicos introduzidos na impressão por sistemas humor gráfico publicado em
jornais e em revistas não es-
tipográficos – e de aquisição de seu atributo de autonomia rela- pecificamente humorísticos.
tiva2 (Saítta, 2000). Periódicos, jornalistas e politizados, ao mesmo tempo em que,
e intelectuais se afastaram das práticas esteticamente, foi-se abandonando o estilo
militantes e das tendências partidárias, realista de Daumier e passou-se a outro mais
livrando-se de caudilhos ou partidos que esquemático e menos carregado, tributário
os sustentavam ou apadrinhavam, para se dos desenhistas norte-americanos. Em
transformar em politicamente independen- Caras y Caretas, desenvolveu-se a nova
tes e passar a depender do mercado no que estética junto com um humor baseado na
se refere à parte econômica. Os periódicos observação dos costumes de uma sociedade
se consolidaram como lugares privilegiados em rápida expansão. Essa inovação coexis-
onde se revelava a vida política do país, já tia com “o humor e a caricatura de corte
não circunscrita às estreitas esferas do poder. político, como se nessa zona os magazines
Além disso, os públicos se massificaram. não tivessem superado a velha casca do jor-
Em 1898, irrompeu a primeira revista nalismo como divulgador quase exclusivo
de massas, Caras y Caretas, criada por da política e dos fatos parlamentares…”
Eustaquio Pellicer3, na qual participaram (Rivera, 1985, p.107).
caricaturistas políticos já consagrados como A sátira política de Caras y Caretas não
José María Cao, Manuel Mayol e José Sixto era mantida a partir de uma militância e de
Alvarez, mais conhecido como Fray Mo- uma concepção combativa do humor polí-
cho, entre outros desenhistas de alto nível. tico. Esse tipo de postura havia sido aban-
Caras y Caretas foi a primeira revista de donado pela imprensa gráfica. As críticas
interesse geral, moderna, e produziu ino- políticas, matizadas pela heterogeneidade
vações em termos gráficos, humorísticos e icônica e textual do resto da publicação,
temáticos com a particularidade de manter não tinham repercussões diretas sobre esta
um notável equilíbrio entre texto e imagem, ou seus colaboradores. Todos os políticos
caricaturas e fotografias, notas humorísticas e personagens públicos de relevância eram
e colaborações literárias, de atualidade e do- satirizados, criticados, desmascarados ou
cumentais, e publicidade e entretenimento. elogiados nos desenhos humorísticos da
A equilibrada heterogeneidade da revista se revista. Essa característica editorial se
complementava com sua diversidade temá- manteve, indistintamente, tanto durante o
tica: arte, literatura, política, vida social e período oligárquico como no democrático,
costumes, moda, informação e atualidade. inaugurado em 1916, e durante o golpe
Eduardo Romano (2004, p. 18) reconhece de Estado de 1930 e na posterior “década
em Caras y Caretas a inauguração de infame”. Em 1938, com escassas vendas,
publicações jornalísticas como “hipertex- chegou ao fim sua primeira etapa.
tos polifônicos”. Por sua vez, o formato
também era novidade, mais manuseável
do que os periódicos satíricos El Mosquito
e Don Quijote, do século XIX: umas vinte O COSTUMBRISMO E O SELO
páginas de 26,5 x 18 centímetros, com
capa e contracapa em um papel de melhor NORTE-AMERICANO: PATORUZÚ
qualidade e em cores. Além disso, oferecia
uma proposta de leitura ágil e divertida ao Em 1936, surgiu a revista Patoruzú,
percorrer as notas curtas com conteúdos de Dante Quinterno, que difundiu no país
2 Em termos do conceito de
amenos dos principais acontecimentos na- o sistema norte-americano de syndicates
campo, de Pierre Bourdieu
(2003). cionais e internacionais e ao abandonar o visando a alcançar a produção massiva de
3 Em 1903, Pellicer saiu de discurso crítico com aspirações intelectuais. histórias em quadrinhos de aventuras e de
Caras y Caretas e fundou a Todas essas inovações a transformaram em um humor costumbrista e familiar. Patoruzú
publicação de humor gráfico
P.T.B. Esta última, junto com modelo para outras revistas. era o nome do protagonista de uma tirinha
a Fray Mocho, encontrava- Desde fins do século XIX, o jornalismo independente que já fazia cinco anos que era
-se na mesma linha gráfica
e humorística de Caras y
e o humor gráfico argentino começaram a publicada no jornal Crítica. Era um índio,
Caretas. incursionar em temas menos conflitivos terra-tenente, patriota, caridoso, moralmen-

30 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011


te perfeito e celibatário que expressava um o presidente Ramón Castillo (1940-43) por
“humor lisinho, redondo e simples […], fino querer voltar às práticas fraudulentas que
observador do que ocorre, sem mais puas do seu antecessor, Roberto Ortiz5, havia tentado
que as mínimas não tributáveis” (Sasturain, desterrar. Dessa postura, viu com expec-
1995, p. 19). A Editora Dante Quinterno tativa o golpe de Estado de 1943, posição
lançou outras publicações vinculadas a sua compartilhada por boa parte da sociedade.
máxima estrela: em 1945 aparece Patoru- A década de 40 foi outro ponto de infle-
cito, em 1956, Las Andanzas de Patoruzú, xão na história política argentina. A demo-
Correrías de Patorucito (1958) e Locuras cratização de 1912 ainda excluía os setores
de Isidoro (1968). A fórmula costumbrista, populares ao não ser acompanhada por uma
familiar e apolítica fez sucesso ao longo de mudança no modelo de acumulação. Isso
várias décadas do século XX, resistente às se consumou nos anos 40 com o modelo
mudanças políticas e sociais. de “industrialização por substituição de
importações” e a entrada na cena política
e econômica nacional dos trabalhadores
industriais urbanos. Estes encontraram em
O REFORMISMO POPULISTA: Juan Domingo Perón, que a partir do Estado
respondia a suas necessidades e reclamações
CASCABEL E RICO TIPO históricas, seu líder político. Em 1946, com
seu triunfo nas eleições, dava-se início ao
Em 1941, o publicista Jorge Piacentini4 regime populista, que marcaria a fogo a
lançou ao mercado Cascabel, revista que história argentina.
caricaturizou e satirizou o fim da “década Baseado na ideia de justiça social e
infame” (1930-43), o golpe de Estado de harmonia de classes, o peronismo levou
1943 e os primeiros anos do peronismo no adiante uma distribuição mais equitativa da
que se refere à política interna argentina, e riqueza. Assim, a tensão entre liberdade e
a Segunda Guerra Mundial no que se refere igualdade dos regimes políticos modernos se
ao plano internacional. Quanto a esta última, resolveu, nessa ocasião, a favor da segunda.
Cascabel se posicionou a favor dos aliados, A liberdade de expressão e de imprensa se
e como tinha convênios com publicações viu prejudicada pela estratégia peronista
estrangeiras, reproduzia caricaturas das baseada no controle, na suspensão e fecha-
principais figuras da política internacional, mento de jornais e revistas contrários à linha
como Hitler, Mussolini, De Gaulle, Chur- oficial. No entanto, nesses anos, os traba-
chill e Roosevelt. lhadores da imprensa viram regulamentada
Cascabel significou o retorno do humor sua atividade a partir da sanção do Estatuto
político em formato de publicação semanal do Jornalista Profissional. O Estado também
em um contexto dilacerado pelo vazio de se fez presente com a criação de escritórios
poder na Argentina e a contenda bélica no estatais de imprensa, como a Subsecretaria
âmbito mundial. A revista recuperou o tipo de Informações, que acabaram instituindo
de escritos e desenhos satíricos, combati- como única informação possível aquela
vos e desafiantes ao estilo dos periódicos vertida oficialmente e instaurando e fomen-
satíricos do século XIX mas adaptados às tando jornais e revistas adeptos ao regime.
possibilidades técnicas e gráficas do sécu- Entre elas estiveram duas publicações de 4 Posteriormente, a revista
lo XX. Cascabel teve um formato que se humor político oficialista: P.T.B. e Pica ficará a cargo de seus co-
laboradores, Emilio Villalba
aproximava do tabloide, umas quarenta pá- Pica (Gené, 2008). Welsh e AlejandroVerbitsky.
ginas, poucas seções fixas e capas coloridas Cascabel assumiu uma postura oposta 5 Ramón Castillo sucedeu
com a originalidade de uma piada que se ao peronismo. Seus caricaturistas de- na presidência a Roberto
Or tiz depois de sua re-
iniciava na capa e terminava na contracapa. nunciavam a experiência peronista como núncia por doença. Castillo
“Cascatorial”, junto com a seção “Página da nazifascista ao insistir na manipulação das representava os setores mais
conservadores da aliança
Antipolítica”, funcionava como editorial em massas por parte de Perón. Da mesma forma, eleitoral que levou ambos
que cabia a reflexão política. Ali, criticou-se os humoristas representaram de maneira ao governo.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011 31


ambígua as classes populares dando lugar vam uma cintura de vespa, amplos quadris
a complexos objetos culturais: alguns as e impactante busto. Essas mulheres ideais
exaltavam e outros as retratavam de maneira e sensuais desenhadas, mais do que para
pejorativa. Essas posturas contrapostas em fazer rir, para seduzir o leitor masculino
uma mesma publicação circulavam em impuseram um modelo de mulher – físico
um contexto no qual, ao mesmo tempo em e de roupa feminina – que, por inalcançá-
que as classes populares eram interpeladas vel que fosse, as mulheres se resignaram a
politicamente, tinham sua imagem difun- tentar alcançar.
dida de forma pejorativa, associando-se o Essas moças eram acompanhadas por
peronismo com a brutalidade, a ignorância, rapazes que, nos anos 50, também ultra-
o vulgar e com o “cheiro de graxa”. passaram as páginas da revista e eram
Com o governo de Perón e o apare- conhecidos nas ruas portenhas como “di-
cimento de Rico Tipo, revista de humor vitos” e “petiteros”. Ambos se distinguiam
costumbrista, Cascabel perdeu leitores e pelo modo de vestir – ridicularizado nos
colaboradores, o que a levou a fazer algu- desenhos – e pelo que em cada caso repre-
mas mudanças. Embora tenha baixado seu sentavam. Os petiteros iam ao Petit Café,
preço, aprofundado sua politização e seu lugar de distinção frequentado por jovens
antiperonismo, não conseguiu reconquistar de classe média cujo desejo era alcançar o
a classe média antiperonista. modelo das classes abastadas e diferenciar-
Em 16 de novembro de 1944, Rico -se dos tangueiros do bairro, os divitos. Do
Tipo ganhou as ruas. A nova publicação mesmo modo que as chicas, o que começava
humorística era de Guillermo Divito, um sendo humor transformou-se em modelo de
ex-colaborador de Patoruzú, que estava distinção a alcançar.
acompanhado por Eduardo Almira como No interior da revista sobressaíam as
chefe de redação e por Oski, César Bruto, tiras cômicas protagonizadas por perso-
Mazzone, Fantasio, Seguí, Toño Gallo, nagens arquetípicos do mundo da cidade
Ianiro, Chamico, Taboada, Bavio Esquiú, que exibiam uma única conduta, rígida,
Billy Kerosene e, a partir de 1951, Calé, universal e reconhecível, fazendo com que
entre outros colaboradores. Rico Tipo ra- suas histórias se baseassem na repetição.
pidamente conseguiu deslocar Cascabel e Estes conformavam uma “excelentíssima
a familiar Patoruzú do centro do campo da galeria de personagens unilaterais, regidos e
imprensa de humor gráfico. Em pouco tem- definidos por uma característica invariável
po, Rico Tipo subiu aos 300 mil exemplares que deve necessariamente se manifestar
de venda semanal, conquistando os jovens e em cada ato de presença” (Sasturain,
os adultos menos preconceituosos com um 1995, p. 233). Lino Palacio criou Avivato
humor que, para a época, constituía uma (personagem que encarnava a esperteza
abertura audaz em razão de certo desenfado criolla), Tarrino (a sorte) e Don Fulgencio
que, naquele momento, era malvisto em (a infância infinita); Oski criou Amarroto
muitos lares. Rico Tipo foi um semanário (representação do pão-duro); Mazzone,
que se caracterizou por “tiras fixas que Afanancio (o ladrão), Batilio (o alcaguete),
traziam um humor simples e direto, mas ao Piantadino (o fugidio), Fiaquini (o que só
mesmo tempo agressivo e sem preconceito” queria dormir); Jorge Palacio criou Chicato;
(Rivera, 1985, p. 116). Além disso, o que Ferro, Cara de Ángel e Bólido (lentidão), de
atraiu massivamente os leitores foi sua he- Ianiro, Purapinta (o bonitão) e Marmolín
terogeneidade e a modernização do humor (uma estátua que ganhava vida); e Divito,
costumbrista que saiu de suas páginas. Falluteli, Fúlmine, Bómbolo, Pochita Mor-
Em Rico Tipo sobressaíram, na capa e no foni e o Dr. Merengue.
interior da revista, as “chicas” esculturais de Se esses personagens de Rico Tipo eram
Divito. As mulheres foram desenhadas por universais, já que careciam de referências
Divito com o estilo que remete ao desenho temporais, na revista também ficaram
de moda, mas com umas curvas que marca- registrados os costumes portenhos dos

32 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011


anos 50 a partir da incorporação de Calé, tretanto, desde meados dos anos 50, Rico
pseudônimo de Alejandro del Prado. Sua Tipo havia perdido protagonismo. Como
seção “Buenos Aires de Camiseta” inovou seus personagens estáticos e invariáveis,
no costumbrismo. Como destaca De Santis a revista se mantinha sempre igual, sem
(1994, p. 162), “seu costumbrismo está inovações mesmo quando o mundo ao seu
apoiado na procura expressiva que o leva a redor assistia a um acelerado processo de
ensaiar diferentes tipos de piadas para cons- mudança.
truir, como se armasse um quebra-cabeça,
a figura completa de um baile, uma partida
de futebol, casamentos, comunhões, ou a
estreia das calças compridas”. Se Divito ENTRE A MODERNIZAÇÃO E A
representava os modelos ideais femininos
e masculinos e, inclusive, antecipava as PROSCRIÇÃO DO PERONISMO:
modas, Calé representava o real, as vozes
das ruas portenhas, a Buenos Aires caseira TÍA VICENTA
que não estava no ritmo da moda e, sim,
que era imutável. As piadas de Calé repre- Em 1957, abria-se novamente o caminho
sentavam as classes médias e populares para um governo “democrático”6 e aparecia
que circulavam pela cidade de ônibus ou Tía Vicenta, de Landrú, pseudônimo de Juan
bondes, não em carros; que se divertiam Carlos Columbres, uma revista inovadora,
em bilhares, bailes de clubes e terrenos com um novo tipo de humor sem precon-
baldios; não em cafés. ceito, que rapidamente foi um sucesso de
Além da grande supremacia do humor vendas. Tía Vicenta foi um exponente do
gráfico, em Rico Tipo também houve lu- início da revolução cultural que explodiu na
gar para o humor escrito. Entre as seções década de 60 e que envolveu transformações
escritas se destacaram as de Conrado Nalé nas atividades artísticas e intelectuais e no
Roxlo (Chamico), que parodiava os mais comportamento e nos costumes, especial-
difundidos autores da literatura nacional; mente, das classes médias. A inovação no
as de Carlos Warnes, que, sob o pseudô- humor gráfico foi produzida por Tía Vicenta,
nimo de César Bruto, escrevia com erros com Landrú e Oski, no desdobrar de um
gramaticais e ortográficos; e as de Miguel humor que esteticamente parecia ingênuo,
Babio Esquiú, que, assinando como Juan e até infantil, tributário de Saúl Steimberg
Mondiola, levava a linguagem oral da rua e, depois, por Quino (Joaquín Lavado) com
para o texto escrito. Mafalda, publicada a partir de 1964, inicial-
Nas páginas de Rico Tipo não houve mente no jornal Primera Plana, depois no
lugar para o humor político. Entretanto, El Mundo e na revista Siete Días.
isso não implicou que não tenha tido in- Tía Vicenta, autoproclamada “A revista
convenientes com o governo peronista. A do novo humor” e inspirada na espanhola
revista como tal só teve um problema com La Codorniz, oferecia grande diversidade
o governo quando foi privada de papel por de matérias, piadas e artigos baseados na
ordem do secretário de Imprensa. Depois espontaneidade, no disparate e na falta de
de várias negociações, Divito conseguiu solenidade, quer se tratasse de políticas ou
papel em troca de incluir em cada número dos hábitos sociais (Russo & Colombres,
uma página dedicada a Evita, que não podia 1993, p. 23). A revista era semanal e se
ser humorística. Outras duas situações que caracterizou pela ausência de seções fixas e
apresentaram problemas com o governo um critério de “redação aberta” em que nin-
envolveram duas colaborações de Rico guém era dono das seções. Com Tía Vicenta
Tipo, mas a título pessoal. reaparecia o humor político, embora seu
Rico Tipo fechou em 1972, anos depois diretor tenha tido uma grande capacidade
6 As aspas se devem ao fato
da morte, em um acidente automobilístico, de se acomodar às mudanças de governo, de que entre 1955 e 1973 o
de seu dono e principal figura, Divito. En- fossem estes democráticos ou ditatoriais, e peronismo esteve proscrito.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011 33


quando essa estratégia fracassou foi o fim contribuiu para a reativação da “revolução
da revista. Landrú explicava essa adaptação cultural” que a ditadura militar (1966-73)
pelo tipo de humor que fazia, “nem a favor havia tentado frear e realinhar em sentido
nem contra, faço piadas sobre, reconhecen- conservador e católico. A censura começava
do sempre os lados críticos como uma con- a relaxar e corriam ares de inovação para
dição indispensável de sua eficácia” (Russo o campo jornalístico e do humor gráfico.
& Colombres, 1993, p. 20). Junto ao humor Neste último, irrompia, em agosto de 1971,
político também havia um desdobramento na província de Córdoba, Hortensia, “La
do humor costumbrista, no qual ficavam Papa”, de Alberto Cognini, e em novembro
expressas as diferentes classes sociais e de 1972, em Buenos Aires, Satiricón, de
suas estratégias de diferenciação social. Oskar e Carlos Blotta junto com Andrés
A capacidade adaptativa de Landrú e Cascioli e Pedro Ferrantelli. Com ambas as
seus vínculos com os círculos de poder não publicações e a nacionalização da página
foram suficientes para evitar advertências e de humor gráfico levada a cabo pelo jornal
a censura. O presidente Frondizi (1958-62) Clarín em março de 1973 (Levin, 2009),
fez chegar a Landrú um “convite” para que irrompeu e se consolidou uma nova geração
deixasse de desenhá-lo com um nariz tão de humoristas gráficos que impôs um novo
comprido; o presidente de facto, general estilo gráfico e temático.
Onganía (1966-70), que era caricaturizado Hortensia, “La Papa” foi uma publica-
como uma morsa, não duvidou em ordenar, ção quinzenal que apareceu no mercado ao
em 1966, que Tía Vicenta devia ser “fechada preço de $ 1, promovendo-se com a frase
por falta de respeito para com a autoridade “Estou aqui para dizer o que me der na
e a investidura hierárquica” (Avellaneda, telha, ou não?”. Tinha um formato similar
1986). A revista Confirmado – dirigida por ao de Tía Vicenta, tabloide (27 x 35 cm),
Jacobo Timerman –, que nunca defendeu o umas 24 páginas com a capa e a contracapa
presidente democrático Illia (1963-66) dos com duas cores e as páginas internas em
caricaturistas que o representavam como branco e preto.
uma tartaruga, justificou o fechamento de Desde seu início, Hortensia se encarre-
Tía Vicenta alegando que “a autoridade gou de reivindicar a tradição humorística
presidencial não podia ser objeto de gozação da província mediterrânea. No entanto,
sistemática com o pretexto da liberdade de rapidamente seu sucesso ultrapassou as
imprensa” (in Ulanovsky, 1977, p. 175). Isso fronteiras provinciais e em, 1973, chegou
deixava em evidência que Tía Vicenta não a Buenos Aires e outras cidades do país.
era o único caso de imprensa acomodatícia. Hortensia chegou a editar tiragens supe-
O único jornal que lamentou e condenou a riores aos 100 mil exemplares e, embora
medida foi o jornal da comunidade inglesa, Cognini tenha falecido em 1983, a revista
The Buenos Aires Herald, que sustentou: continuou saindo até 1989.
“Não haverá lugar para os partidos políti- Hortensia se caracterizou por inovar no
cos, mas deve haver lugar para o humor” humor costumbrista. Foi “uma explosão de
(in Ulanovsky, 1977). humor regional, costumbrista, que conflui,
nesse momento, com toda uma tendência
de pensamento valorizadora das formas da
cultura popular e da oralidade” (Sasturain,
OS CONTURBADOS ANOS 1970: 1995, pp. 33-4). Rivera (1985, p. 132)
reconhece à revista de Cognini uma “cepa
HORTENSIA E SATIRICÓN popular e picaresca”. Nessa linha estava a
seção “Negrazón & Chaveta (Dos amigos
A década de 70 na Argentina foi marcada de la sexta)”, na qual Cognini levava ao
7 Rodas de música e poesia pela politização do campo cultural e a vio- papel diálogos populares e humor oral. A
que ocorrem, em geral, na
parte de trás ou porão dos
lência política. Depois do Cordobazo, em revista era um prolongamento das típicas
cafés e bares; tertúlia (N.T.). 1969, o processo da transição democrática peñas7 cordobesas já que em suas páginas o

34 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011


leitor encontrava tudo o que ali se escutava de Satirikón, uma revista satírica russa do
e inventava naquelas longas madrugadas de início do século XX, dirigida pelo escritor e
rodas de violão e álcool. Também sobressaí­ humorista Arkadi Avérchenko (1881-1925).
ram as histórias em quadrinhos de Fonta- Essa revista de ideologia liberal e seu diretor
narrosa, “Boogie, el Aceitoso” e a paródia foram perseguidos pela polícia dos czares
gauchesca “Inodoro Pereyra, el Renegau!”, e pela polícia bolchevique.
e as colaborações de Crist, Peiró, Ian, Ortiz, Se em termos políticos Satiricón era
Cuel, Juan Parrotti, Gonio Ferrari, Miguel devedora da russa homônima, no que diz
Bravo, entre outros. respeito ao estilo gráfico e jornalístico tinha
O humor político não esteve ausente dívidas com a revista norte-americana Na-
nem tampouco as referências a situações tional Lampoom e a alemã Pardon, embora
e momentos políticos significativos para também, no que diz respeito às suas notas
a sociedade argentina desse tempo. Entre- adultas, com Penthouse e Playboy. Assim,
tanto, não se apelou à caricatura política. propunha uma mistura inovadora e atrati-
A política aparecia representada em piadas va de humor satírico, com forte erotismo,
gráficas nas quais não havia personifica- informação e reflexões críticas. O caráter
ções. Hortensia privilegiava o popular e diferenciado de Satiricón foi ser uma revista
sua produção combinava o artesanal e o sem limites, irreverente, libertando-se de
profissional; por outro lado, Satiricón se tabus e do “politicamente correto” assim
centrou no sofisticado e moderno, e era como também combinar humor gráfico com
totalmente profissional. notas jornalísticas escritas com ironia mas
Satiricón apareceu em novembro de não por isso menos sérias. Um público leitor
1972 em Buenos Aires. Era uma nova pu- jovem, misto e majoritariamente de classe
blicação de humor gráfico idealizada pelos média aceitou e aderiu, incentivado pela
jovens publicistas Oskar e Carlos Blotta8, proposta modernizante da revista embora
Pedro Ferrantelli e Andrés Cascioli. O nome também por seu rechaço – em nome da
do novo mensário prestava tributo tanto liberdade, mais do que da democracia – à
a O Satyricon, de Petrônio, obra clássica ditadura militar encabeçada pelo general
de humor antigo, como à versão cinema- Lanusse e seu olhar satírico de Perón, que
tográfica realizada pelo italiano Federico retornava ao país e à presidência da nação
Fellini, em cartaz naquela época em Buenos depois de dezoito anos. Com a ascensão de
Aires. Entretanto, também era tributário Perón e a maior politização da sociedade, seu
diretor, em um gesto de autocensura, reduziu
o humor político, sendo a crítica e a sátira
cultural as que mantiveram o efeito coesivo.
Satiricón contou com a colaboração de
um grande número de humoristas – Caloi,
Fontanarrosa, Crist, Izquierdo Brown,
Landrú, Carlos Trillo, César Bruto e Oski,
Garaycochea, Durañona, Bróccoli, Napo-
león, Rafael Martínez, Grondona White,
Viuti, Sanz, Limura, Sanzol, entre outros
– e jornalistas – Dante Panzeri, Mario Mac-
tas, Carlos Ulanovsky, Jorge Guinzburg,
Carlos abrevaya, Alejandro Dolina, Alicia
Gallotti, etc.
Sua aposta editorial teve resultado
positivo em seus dois primeiros anos e 8 Filhos de Oskar Blotta,
se traduziu em um constante aumento de humorista gráfico que co-
laborou com Patoruzú e
vendas, até alcançar um máximo de 250 outras publicações de hu-
mil exemplares em abril de 1974. O êxito mor gráfico.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011 35


comercial não impediu a censura, primeiro embolorada pelo terrorismo de Estado e as
da municipalidade da cidade de Buenos políticas castrenses. Lentamente, a revista
Aires e em seguida – depois da morte de foi crescendo, passou de mensal a quinzenal
Perón em julho de 1974 e da posse de sua (abril de 1979), incrementou a quantidade
viúva como presidente da nação – do Poder de páginas publicadas por número, aumen-
Executivo nacional. O decreto presidencial tou sua tiragem9, apareceram anunciantes,
866/74 proibiu sua circulação por considerá- incrementou-se o staff e os colaboradores da
-la imoral. revista, e sua editora, Ediciones de la Urraca,
Depois de uma batalha judicial que lançou ao mercado publicações-satélites
terminou a favor de Oskar Blotta, em 13 de a ela, como Humi, Hurra, SuperHUM®,
junho de 1975 interrompeu-se o fechamento Mutantia, HUM® & Juegos, El Péndulo.
de Satiricón. Em dezembro desse mesmo Esse crescimento de HUM® foi acom-
ano, voltou a aparecer nas bancas mas essa panhado do fortalecimento de suas posturas
segunda etapa não encontrou o eco massivo críticas e opositoras, o que não só derivou
do período inicial. Igualmente, seu fim não em um processo de transformação de uma
se deveu a suas poucas vendas e sim ao revista de humor gráfico a uma revista políti-
advento de um novo golpe de Estado que ca, sem abandonar o primeiro sentido, como
não deixou margem alguma para continuar também fez que se adquirisse e consolidasse
com a linha traçada pelos editores. Em uma nova posição de maior centralidade no
março de 1976 saiu o último número, com campo cultural. Isso se deveu à incorporação
uma capa de Andrés Cascioli intitulada “O de analistas econômicos, políticos e cultu-
Demônio nos Governa”, em alusão a Isabel rais. Decididamente, aproximaram-se de
Perón. Depois do golpe de estado de 24 de HUM® vozes críticas à situação cultural,
março desse mesmo ano, os capitães Corti e econômica e política imposta pelos militares
Carpintero censuraram e fecharam a revista. e civis que apoiavam o projeto castrense e
que não encontravam outros espaços para
se expressar. Ao nuclear a grande parte da
oposição cultural, a revista, sem ser alheia à
DITADURA E DEMOCRACIA: censura, às perseguições e às intimidações,
contribuiu para criar novos horizontes de
HUM sentido, novas condições de possibilidade
para identidades e subjetividades que se atre-
Em 1978, certas fendas começaram a veram a rir, gozar e refletir sobre a situação
aparecer na couraça imposta pela ditadura imperante sob a ditadura militar. A revista
institucional das Forças Armadas, instau- reabriu o espaço público de debate cultural,
rada depois do golpe de Estado de março social e político fechado pelos militares.
de 1976. Também em 1978 se celebrou no Cascioli era acompanhado por Tomás
país o Campeonato Mundial de Futebol. Em Sanz, Aquiles Fabregat, Mona Moncalvillo,
meio à euforia mundialista surgiu a revista Enrique Vázquez, Alejandro Dolina, Jorge
HUM®, uma publicação de humor gráfico Sábato, Luis Gregorich, Gloria Guerrero,
de Andrés Cascioli, que marcou uma que- Carlos Abrevaya, Hugo Paredero, Juan
bra na monotonia cotidiana dos meios de Sasturain, etc. e os humoristas Alfredo
comunicação massivos. Se o acontecimento Grondona White, Sergio Izquierdo Brown,
esportivo gerou um consenso mais ativo e Meiji, Ceo, Langer, Rep, Sanzol, Lawry,
generalizado do que as Forças Armadas Fontanarrosa, Crist, Peiró, Ortiz, Ian, Carlos
9 Segundo o Instituto Ve- gozaram durante o golpe de Estado, tam- Nine, Fati, Viuti, Cilencio, Patricia Breccia e
rificador de Circulações bém gerou a possibilidade de começar a os quadrinistas Trillo e Altuna, entre outros.
(IVC), em 1981 HUM®
vendeu 1.471.367 exem- desarticular a hegemonia militar. Uma vez levada a cabo a transição à
plares (embora não haja Embora HUM® não tenha inovado no democracia, a revista ficou muito vinculada
dados para o mês de abril);
tipo de imprensa de humor gráfico e político, ao presidente Raúl Alfonsín e ao Partido
em 1982, 1.931.240 e, em
1983, 2.578.301. a partir dali aportou ar fresco a uma cultura Radical e sem seu principal inimigo, os

36 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011


militares. O fim da censura também permi- os governos peronistas de Carlos Menem
tiu a multiplicação de produtos culturais e (1989-99). As figuras vinculadas ao mene-
jornalísticos que contribuíram para tirar-lhe mismo apresentaram sucessivas demandas
leitores. A revista entrou em um período de judiciais que acabaram com a revista e com
decadência que não pôde reverter durante a Ediciones de la Urraca, em 1999.

BIBLIOGRAFIA

BRAVO TEDÍN, Miguel. Hortensia y Córdoba. Córdoba, Ediciones del Molino, 2001.
BURKART, Mara. HUM®: el Surgimiento de un Espacio Crítico Bajo la Dictadura Militar (1978-1979). Tese
de mestrado. IDAES-Universidad Nacional de San Martín, 2008.
DE SANTIS, Pablo. Rico Tipo y las Chicas de Divito. Buenos Aires, Espasa Calpe, 1994.
GENÉ, Marcela. “Risas, Sonrisas y Carcajadas en Tiempos de Perón. Pasando Revista al Humor Políti-
co”, in Claudia Soria, Paola Cortés-Rocca y Edgardo Dieleke (comp.). Políticas del Sentimiento. El
Peronismo y la Construcción de la Argentina Moderna. Buenos Aires, Edhasa, 2008.
LEVÍN, Florencia. La Realidad al Cuadrado. Representaciones sobre lo Político en el Humor Gráfico del
Diario Clarín (1973-1983). Tese de doutorado. Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de
Buenos Aires, 2009.
PALACIO, Jorge. Crónica del Humor Político en Argentina. Editorial Sudamericana, 1993.
PÁRAMOS, Ricardo. “Satiricón (por ser usted $4)”, in Historia de Revistas Argentinas. Tomo IV. Buenos
Aires, AAER, 2005 (http://www.leare vistas.com/historia_de_las_revistas3.asp).
RIVERA, Jorge. “Historia del Humor Gráfico Argentino”, in A. Ford; J. Rivera; E. Romano. Medios de
Comunicación y Cultura Popular. Buenos Aires, Legasa, 1985.
ROGERS, Geraldine. Caras y Caretas. Cultura, Política y Espectáculo en los Inicios del Siglo XX Argenti-
no. La Plata, Edupl, 2008.
ROMANO, Eduardo. “Inserción de “Juan Mondionla”, en la época Inicial de Rico Tipo” in Aníbal Ford,
Jorge Rivera y Eduardo Romano. Medios de Comunicación y Cultura Popular. Buenos Aires,
Legasa, 1985.
________. Revolución en la Lectura. El Discurso Periodístico – Literario de las Primeras Revistas Ilustra-
das Rioplatenses. Buenos Aires, Catálogos – El Calafate Editores, 2004.
RUSSO, Edgardo y COLOMBRES, Juan Carlos. Landrú x Landrú. Buenos Aires, El Ateneo, 1993.
SAÍTTA, Sylvia. “El Periodismo Popular en los Años Veinte”, in Ricardo Falcón. Democracia, Conflicto
Social y Renovación de Ideas (1916-1930). Tomo VI de la Colección Nueva Historia Argentina.
Buenos Aires, Sudamericana, 2000.
SASTURAIN, Juan. El Domicilio de la Aventura. Buenos Aires, Colihue, 1995.
SZIR, Sandra. “Entre el Arte y la Cultura Masiva. Las Ilustraciones de la Ficción Literaria en Caras y
Caretas (1898-1908)”, in Laura Malosetti Costa y Marcela Gené (comps.). Impresiones Porteñas.
Imágenes y Palabra en la Historia Cultural de Buenos Aires. Buenos Aires, Edhasa, 2009.
TRILLO, Carlos y BRÓCOLI, Alberto. El Humor Gráfico. Buenos Aires, Centro Editor de América Latina,
1971.
ULANOVSKY, Carlos. Paren las Rotativas. Historia de los Grandes Diarios, Revistas y Periodistas Argenti-
nos. Buenos Aires, Espasa, 1997.
VÁZQUEZ LUCIO, Oscar. Historia del Humor Gráfico y Escrito en la Argentina. Tomo 1 – 1801/1939 y
Tomo 2 -1940/1985. Buenos Aires, Eudeba, 1985.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 26-37, dezembro/fevereiro 2010-2011 37


waldomiro vergueiro

Waldomiro
Vergueiro
é professor titular
da ECA-USP.
RESUMO

A imprensa escrita só chegou ao Brasil com a transferência da família real


portuguesa para o país, em 1808. A partir dessa época, a presença do humor
gráfico nas publicações brasileiras foi uma constante, não só por atender às
necessidades de um povo iletrado, mas também em função do trabalho de
grandes artistas gráficos. Três deles, Ângelo Agostini, J. Carlos e Henfil, podem
ser vistos como modelares na formação do humor gráfico brasileiro. Os três
são analisados neste artigo, que busca discutir a influência de cada um deles
na formação de um tipo de humor gráfico que reflete as características da
cultura brasileira.

Palavras-chave: imprensa, história do Brasil, humor gráfico.

ABSTRACT

The printing press did not arrive in Brazil before the transfer of the Portuguese
Royal Family to the country in 1808. From that time on, graphic humor has been
steadily present in Brazilian publications, not only for catering to the needs of an
illiterate population but also because of the work of some distinguished graphic
artists. Three of them, Ângelo Agostini, J. Carlos and Henfil, can be regarded as
exemplary in shaping the Brazilian graphic humor. They are analyzed in this
article, which seeks to discuss their individual influence in shaping a type of
graphic humor mirroring features of the Brazilian culture.

Keywords: press, history of Brazil, graphic humor.


INTRODUÇÃO

imprensa esteve proibida no Brasil até a transfe-

rência da família real portuguesa para o país, em

1808, fugindo das tropas napoleônicas. Ela vinha

acompanhada, nos catorze navios que a trouxe-

ram, por várias centenas de funcionários públicos,

criados, assessores e pessoas ligadas à corte portuguesa. Com

a criação da Imprensa Régia, em maio de 1808, pelo príncipe

regente D. João, depois D. João VI, essa proibição foi formal-

mente suspensa, abrindo-se o país aos benefícios da palavra

impressa (Sodré, 2004).

Antes desse evento, registram-se tentativas de instalar tipo-

grafias no Brasil entre 1630 e 1655, na época da invasão fla-

menga, no estado de Pernambuco. No entanto, não há registros

contundentes de seu êxito nem vestígios do material veiculado.

Com a liberação da imprensa no Brasil, aos poucos uma for-

ma de humorismo gráfico muito peculiar ao país começou a ser

gestada, exercendo grande influência na política e nos costumes

nacionais. O impacto da produção gráfica pode ser parcialmente

explicado pelos índices de analfabetismo do país e pela pouca

tradição de leitura do brasileiro, e também pela contribuição dos

próprios artistas gráficos, que desenvolveram um tipo de humor

que muito cedo calou fundo entre os leitores. Este artigo busca

analisar a obra de três desses autores, considerados modelares

para a criação de um tipo de humor gráfico que atendeu plena-

mente às aspirações dos leitores brasileiros.


ro, o jornal ilustrado Lanterna Mágica, que
O INÍCIO DO HUMOR GRÁFICO NO durou apenas onze números. Considerada
a primeira revista de caricaturas do país,
BRASIL pode-se dizer que essa publicação ajudou
a consolidar a relação imprensa e humor
Pode-se dizer que o trabalho dos primei- no Brasil, trabalhando pioneiramente com
ros artistas gráficos na imprensa brasileira vários tipos de narrativas gráficas, dentro
ocorreu inicialmente nos anos 1830, no das possibilidades da litogravura.
Nordeste brasileiro. Dois jornais da cidade A primeira revista de humor gráfico
de Recife destacaram-se nesse aspecto: O a ter regularidade de publicação e atingir
Carcundão, de 1831, e O Carapuceiro, de grande longevidade no país foi a Semana
1832, publicações marcantes no campo do Illustrada, do alemão Heinrich Fleiuss,
humor gráfico brasileiro. modelo para as publicações humorísticas
Lailson de Holanda Cavalcanti (2005, p. brasileiras no século XIX. Iniciada em
21) defende que “la primera manifestación dezembro de 1860, a Semana Illustrada foi
de humor gráfico impreso en Brasil es de publicada até 1876. Nela circulou o primeiro
autor desconocido, dado que la situación personagem fixo da charge brasileira, o
política no permitía asumir públicamente Dr. Semana, criação do próprio Fleiuss,
la autoría de un dibujo crítico con respecto que com ele buscava satirizar o cotidiano
a las autoridades y al sistema dominante”. político da então capital do Império. Com
Publicada no jornal O Carcundão (El Joro- essa publicação, o humor gráfico passou
bado), em 25 de abril de 1831, a participar da realidade política e social
brasileira como antes nunca havia feito.
“[…] es una alegoría sólo comprensible Pela Semana passaram desenhistas como
para los contemporáneos, puesto que H. Aranha, Flumen Junius, pseudônimo
no representa específicamente a nadie y de Ernesto Augusto de Souza e Silva Rio,
por este motivo no puede ser clasificada Pinheiro Guimarães, A. Seelinger, Francisco
exactamente como una caricatura ya que Aurélio de Figueiredo e Melo, e escritores
no intenta retratar un personaje político como Machado de Assis, Quintino Bocaiú-
específico, sino una situación. En el dibujo, va, Joaquim Nabuco e Bernardo Guimarães.
un ser mezcla de hombre y asno intenta sos- Fleiuss tinha um bom relacionamento
tener una columna que se derrumba sobre com a família real, contando com sua pro-
él. Una leyenda dice: ‘Apressemo-nos, o teção e até certa tolerância em relação aos
tempo é breve, a existencia do Trono y Altar gracejos que veiculava em seu periódico. No
acha-se ameaçada por esses anarquistas entanto, embora em um primeiro momento
niveladores’” (Cavalcanti, 2005, p. 21). o tenha beneficiado, ao final seu relaciona-
mento com as autoridades imperiais teve
Já o historiador Herman Lima (1963) vê consequências que lhe foram desfavoráveis:
a cidade do Rio de Janeiro como o berço de
publicação da primeira caricatura no país, “Fleiuss cria uma tipografia que Pedro II
tornando-se, posteriormente, o ambiente transforma em Imperial Instituto Artístico,
privilegiado de desenvolvimento do humor inaugurando assim essas relações promís-
gráfico no Brasil. O autor credita a honra de cuas, às vezes ambíguas, em todo caso
ter feito essa primeira caricatura a Manoel sempre perigosas, entre intelectuais e o
Araújo Porto-Alegre, que em 1937 publicou poder público. O curioso é que seu ofício – o
no Jornal do Commercio, litografada por traço como sátira política – se caracteriza,
Victor Lareé, uma folha solta intitulada A essencialmente, pela permanente crítica e
Campainha e o Cujo. sistemática oposição a todo poder consti-
Escritor, poeta, jornalista e professor tuído. Essas relações de amizade e apoio à
da Academia de Belas-Artes, Porto-Alegre Monarquia, de resto, custarão caro ao ale-
fundou, em 1844, na cidade do Rio de Janei- mão, que será alvo, por todo esse período,

42 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011


de ácidas críticas dos demais chargistas, maior parte de sua vida ativa. Considerado
sobretudo do principal deles, o italiano o mais importante artista gráfico a atuar no
Ângelo Agostini” (Teixeira, 2001, p. 6). Brasil no século XIX, Agostini iniciou sua
carreira na cidade de São Paulo, na revista
Apesar de poupar a família imperial, a Diabo Coxo, em 1864, da qual foi o prin-
Semana Illustrada incorporou-se na defesa cipal ilustrador. Com oito páginas (quatro
de temas candentes ao período, especial- de texto e quatro de caricaturas) e formato
mente o da libertação dos escravos. Assim, de 18 x 26 cm, a publicação durou até o
último dia de 1865. Surgiu pela iniciativa
“[…] a crise do regime escravista se conver- dos jornalistas Luis Gonzaga Pinto da Gama
teria em um pano de fundo da publicação ao e Sizenando Barreto Nabuco de Araújo e
longo de toda sua existência. Ainda que se teve duas séries anuais, cada uma com doze
tratasse de uma revista de variedades, que números (Cagnin, 2005).
abordaria semanalmente os mais diversos Com o encerramento do Diabo Coxo,
temas e assuntos, era assim no bojo da ten- Agostini, ainda em São Paulo, passou a
tativa letrada de lidar com a escravidão e colaborar em outra publicação marcante do
suas conseqüências que se colocava a nova período, O Cabrião, bastante semelhante ao
publicação” (Souza, 2007, p. 6). primeiro em termos de matérias, ilustrações
e pontos de vista. Defendendo uma ideo-
A concorrência aumentou significa- logia liberal, o semanário teve 51 números
tivamente, trazendo muitos títulos que publicados, “cumprindo inteiramente o
exerciam com muito mais propriedade que seu programa, informando, comemorando
o periódico criado pelo imigrante alemão, com patriotismo os feitos dos nossos sol-
por meio do humor gráfico, uma crítica per- dados na Guerra do Paraguai, divulgando
manente e sistemática ao poder constituído. a cultura, criticando, divertindo, mas sem
Outros artistas gráficos mais mordazes e resvalar jamais para a mentira, a injúria
críticos vieram, assim, a tirar o destaque ou a difamação” (Santos, 2000, p. xlv). O
de Fleiuss. As quatro últimas décadas do jornal ilustrado encerrou sua carreira em
século XIX foram especialmente bem setembro de 1867, premido por dívidas. Sua
servidas de periódicos ilustrados no Brasil, popularidade, no entanto, o transformou em
com destaque para O Arlequim, Ba-taclan, modelo para seus contemporâneos, e levou,
Semana Illustrada, O Mosquito, O Besouro, posteriormente, ao lançamento de várias
Vida Fluminense, Mequetrefe, A Comédia publicações humorísticas que também
Social, O Fígaro, Mefistófeles, O Binóculo, adotaram o nome Cabrião, tanto na cidade
O Mefisto, Brasil Ilustrado, O Tagarela, A de São Paulo como em outros estados ou
Avenida, João Minhoca, A Bruxa e Dom províncias do país.
Quixote (Teixeira, 2001, p. 3). Em 1867 Agostini transferiu-se para a
cidade do Rio de Janeiro, onde permaneceu
praticamente até sua morte. Ali, trabalhou
inicialmente na revista O Arlequim e depois
ÂNGELO AGOSTINI: UM ITALIANO na oficina litográfica de Heaton e Rensburg.
Finalmente, em janeiro de 1868, criou a
NOS TRÓPICOS revista A Vida Fluminense, em sociedade
com seu padrasto Antonio Pedro Marques
O nome de Ângelo Agostini não pode de Almeida e com o jornalista Augusto de
ser esquecido quando se selecionam os mais Castro. Além de um dos proprietários, foi
altos expoentes do humorismo gráfico no também o principal desenhista da publica-
Brasil. No entanto, ele não era brasileiro de ção, nela atuando de forma decisiva.
nascimento. Piemontês de Vercelli, nascido A Vida Fluminense buscou a inovação
em 1843, chegou ao Brasil em 1860, prati- desde seus primeiros números. Tinha doze
camente ainda adolescente, e aqui viveu a páginas, ao invés das tradicionais oito da

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011 43


Semana Illustrada. Também trazia na capa a se posicionar de forma contundente a fa-
“um maciço bloco de informações textuais vor da abolição dos escravos. Ele também
nas quais estampava os preços de assinatura, deixa muito mais explícita sua ligação com
do exemplar avulso, o seu endereço e um o Partido Liberal.
texto fixo que anunciava: ‘folha joco-séria Agostini foi o grande precursor das
publica revistas, caricaturas, retratos, mo- narrativas gráficas sequenciais no Brasil,
das, vistas, musicais etc., etc.’” (Augusto, e sua arte pode ser comparada, às vezes
2009). Mas essas inovações não duram com vantagem, à de outros que, como
muito. Antes mesmo de terminar o ano de ele, viveram no século XIX. Apesar de
1868, a revista voltou atrás e adotou o mo- Agostini não fazer uso dos balões, seus
delo comum a suas contemporâneas. Razões quadrinhos demonstravam um domínio
econômicas e mercadológicas parecem ter soberbo da técnica de contar graficamente
estado por trás de tais mudanças. uma história. Entre 1868 e 1871, “ele cria
A Vida Fluminense tentava agradar uma gama variada desse tipo de narrativa
a todos os públicos, o que impedia que que vai desde as que apenas agrupam de-
Agostini mantivesse o mesmo nível de senhos para mostrar os diversos aspectos
contundência e destrutividade que adotara de um tema até histórias fictícias, passando
no Cabrião. Assim, a tônica da revista, por fatos reais documentados através de
durante um bom tempo, foi o patriotismo imagens” (Augusto, 2009, p. 10). Não é
exacerbado nas ilustrações e retratos dos de surpreender, inclusive, que estudiosos
combatentes da Guerra do Paraguai, a brasileiros dos quadrinhos, como Moacy
narração de fatos do cotidiano (crimes, Cirne (1990) e Álvaro de Moya (1996),
espetáculos teatrais, atividades das casas considerem sua obra gráfica As Aventuras
de espetáculos, etc.), explorando um humor de Nhô Quim, ou Impressões de uma Via-
que divertia os leitores, mas não chegava gem à Corte, publicada no jornal A Vida
a ofender seus valores religiosos ou os Fluminense desde 1869, a primeira história
hábitos socialmente aprovados na capital em quadrinhos feita no Brasil.
do Império. Isso garantiu à revista um bom A atuação de Agostini na revista O
número de assinantes. Isso não impediu, Mosquito é a de um artista maduro, que
no entanto, que Agostini exacerbasse tem clara sua função social e se entrega
nessa publicação o máximo de seu talento totalmente a sua profissão. Isso vai ficar
artístico, expresso na produção de retratos, ainda mais evidente se considerarmos tudo
caricaturas, mapas, anúncios publicitários o que produziu posteriormente durante
e narrativas visuais. mais de trinta anos. Ele foi considerado um
Posição política, mesmo, a publicação modelo para todos aqueles que o seguiram,
só tomaria em relação à escravidão. Após marcando definitivamente a história da
o término da Guerra do Paraguai, Agostini narrativa gráfica brasileira.
encabeçou uma entusiasmada campanha em Em 1876, Ângelo Agostini fundou a
favor das diversas leis que visavam dar um Revista Illustrada, que publicaria durante
basta ao processo escravocrata – como a Lei 22 anos, até 1898. Por opção de seu criador,
do Ventre Livre, aprovada em setembro de a publicação buscou se manter independente
1871, que dele mereceu várias ilustrações. e livre na produção de textos e ilustrações,
Em 1872 Agostini se afastou de A Vida contrastando com a postura de seus con-
Fluminense e assumiu a direção artística correntes. Dessa forma, Agostini buscava
do jornal caricato e satírico O Mosquito. se manter independente do comércio e
Em seu lugar ficou o desenhista Candido poder dirigir suas críticas para onde bem
Aragonêz de Faria, que originalmente havia entendesse, exercitando um jornalismo não
fundado a publicação para a qual Agostini se subordinado a interesses externos. Assim,
transferia. Com essa mudança, a carreira do ele se sentiu à vontade para acompanhar de
artista italiano tem uma guinada, retornando perto uma fase crítica da história brasileira,
suas raízes na imprensa paulista e passando o final do Segundo Império e o começo

44 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011


da República, colocando-se, inclusive, de número da revista, além da capa – a imagem
maneira crítica em relação a esta última. do presidente Afonso Pena –, trazia mais seis
A Revista foi uma acirrada defensora da trabalhos assinados por ele. E isso ainda é
abolição da escravatura no país e em mui- pouco, quando comparado à capa e a trinta
tos momentos demonstrou clara aversão à desenhos que elaborou para o exemplar
religião, entendendo-a como sinônimo de da revista publicado no carnaval de 1915
atraso e paralisação social. Essa indepen- (Loredano, 2002, p. 56).
dência permitiu-lhe manter, em relação aos Diretor e mais ilustre colaborador da re-
republicanos, uma posição de “crítica logo vista Careta, J. Carlos consagrou-se como
após a Abolição” (Lopes, 2010, p. 284), ao um dos mais elegantes e inteligentes artis-
contrário de outros periódicos da época. tas gráficos do século, sendo considerado
Em 1895, Agostini fundou outra pu- por muitos como um sucessor natural de
blicação, a revista Don Quixote, à qual se Ângelo Agostini (Fonseca, 1999, p. 230).
dedicaria nos dez anos seguintes, além de Com um traço perfeito e uma capacidade
uma breve passagem pelo jornal Gazeta expressiva que são, até hoje, objeto de
de Notícias, em 1904. No ano seguinte, estudo de pesquisadores, artistas gráficos e
participou da criação da revista infantil O plásticos, J. Carlos permanece como o traço
Tico-Tico, das Organizações O Malho – para distintivo do humor gráfico brasileiro na
a qual já estava contribuindo havia algum primeira metade do século XX. Ao iniciar
tempo –, elaborando o logotipo do primeiro sua colaboração na revista Careta, ele já
número e se responsabilizando por várias contava com seis anos de experiência na
seções, numa atuação que persistiu até seu área de ilustração, tendo começado pro-
falecimento, em 1910. fissionalmente nas páginas do semanário
ilustrado O Tagarela, em 1902. Nascido
em 1854, tinha apenas dezoito anos à
época em que enviou uma contribuição
J. CARLOS: A ELEGÂNCIA DO voluntária à revista, que foi efetivamente
publicada, mas com a ressalva de que
TRAÇO havia sido produzida por um desenhista
ainda principiante (Cotrim, 1985, p. 22).
Na primeira década do século XX cir- Depois disso, sua carreira deslanchou,
cularam no Rio de Janeiro várias revistas constituindo, na realidade, o resultado de
humorísticas adultas. Entre essas revistas,
duas se destacavam: O Malho, criada pelo “[…] uma feliz coincidência de uma idade
caricaturista e cenógrafo pernambucano em que a crônica visual tinha que ser feita
Crispin do Amaral, em setembro de 1902, de à mão, com um artista que dispunha de
propriedade do jornalista Luiz Bartolomeu talento, facilidade e tenacidade em doses
e do senador Antonio Azeredo; e Careta, pouco encontradiças. Tudo isto combinado
de propriedade do jornalista e empresário à longevidade artística que lhe possibilitou
Jorge Schmidt, iniciada em junho de 1908 a confecção de um gigantesco painel que
para fazer concorrência à primeira. A Careta cobre a República Velha e o Estado Novo,
era, na realidade, inspirada na publicação duas guerras mundiais, o entreguerras,
argentina Caras y Caretas, fundada em a guerra espanhola e, depois, o início da
1898, da qual, além da redução do título, Guerra Fria, tudo o que aconteceu em meio
aproveita também o design das capas, em século com a planta do Rio de Janeiro, a
geral destacando uma grande charge ou substituição da regata pelo futebol na paixão
cartum. No caso da publicação brasileira, nacional, as transformações das modas no
o autor privilegiado das capas era José Car- vestuário e no mobiliário, nos costumes, e
los de Brito e Cunha, que já a essa época o advento dos edifícios, do automóvel, da
havia assumido o pseudônimo com o qual cozinha a gás, do cinema e da televisão etc.,
se tornou famoso, J. Carlos. Já o primeiro etc.” (Loredano, 2002, p. 12).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011 45


Além dos títulos mencionados acima, J. A melhor palavra para descrever o
Carlos ocupou as páginas de praticamente humor de J. Carlos é elegância. Sua ironia
todas as revistas publicadas no Rio de é fina, mesmo quando enfoca as situações
Janeiro em sua época: Século XX, Leitura mais críticas, mais vergonhosas – caso das
Para Todos, Eu Sei Tudo, Revista da Se- charges que elaborou sobre a Segunda Guer-
mana, Ilustração Brasileira, O Tico-Tico, ra Mundial e daquelas que fez em função
Fon-Fon, A Avenida, O Filhote da Careta, da Guerra Civil Espanhola. Em momento
Juquinha, D. Quixote, A Cigarra, A Vida algum chega a perder a leveza, a cair na
Moderna, Revista Nacional, O Cruzeiro, vulgaridade, a perder de vista a dimensão
Cinearte, A Noite, Lanterna, A Nação, A humana dos fatos, consciente de que “os
Hora, Beira-Mar, e outras que não vale a soldados, fossem amigos ou inimigos,
pena mencionar no contexto de uma obra eram apenas bucha de canhão a serviço de
imensa, que poucos artistas conseguiram generais e estadistas não raro desumanos”
atingir. Inicialmente inspirado pelo traço (Dapieve & Loredano, 2000, p. 19). É
de Ângelo Agostini e com nítida influência como se tivesse um controle interno que
de publicações francesas contemporâneas, lhe dizia até onde podia ir, de certa forma
o artista havia desenvolvido o seu trabalho antevendo a frase celebrizada por Ernesto
ao longo dos anos, passando a adotar uma Che Guevara: “hay que endurecer, pero sin
linha mais fina na reprodução dos tipos da perder la ternura jamás”.
época. Elegante, aliás, é o termo que mais Vista em seu conjunto, a obra de J.
constantemente se aplica ao seu traço tão Carlos representa a passagem para a maio-
peculiar. ridade do humor gráfico brasileiro. Depois
J. Carlos permaneceu à frente da Careta dele, outra realidade se vislumbrava para
até 1922, quando se afastou para assumir a aqueles que no país ousavam se dedicar à
direção artística das Organizações O Malho, caricatura. Isso é descrito de forma perfeita
ficando responsável por vários títulos. De- por Cássio Loredano, com cujas palavras
sempenhou essa atividade até 1930. Depois pode ser encerrada esta seção:
disso, colaborou para muitas publicações
diferentes, retornando à Careta em 1935 “J. Carlos pegou a caricatura brasileira
e ali permanecendo até três dias antes de literalmente na idade da pedra. Quarenta
sua morte, a 2 de outubro de 1950, depois e oito anos depois, tinha posto o país no
de um acidente vascular cerebral. Esteve mapa, nesta matéria. Começou quando o
sempre à frente de seu tempo, de certa forma mundo era todo efervescência, uma usina
desvendando o futuro com suas charges, por entusiasmada inventando propostas para
meio das quais é possível verificar como ele o futuro humano. Quando terminou, tinha
anteviu o final da política do café-com-leite, assistido às maiores tragédias da história da
a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Humanidade. Com sua garra e seu talento
final dos países comunistas. Com um traço incomum, tinha reunido em sua pessoa
sintético, criou diversos tipos que se torna- o caricaturista, o chargista, o ilustrador,
ram modelares no mundo gráfico do país. o publicitário e, englobando tudo isto, o
Os mais famosos deles são, sem dúvida, a humorista e o cronista. E assistiu ao nas-
melindrosa e o almofadinha, um par perfeito cimento das especializações. Apanhou a
que representa como ninguém a volubilida- caricatura caipira dos corpinhos e cabeções
de da burguesia carioca na primeira metade ‘fotográficos’, a figura isolada como uma
do século XX, estabelecendo uma “crônica chaminé de casebre no campo – e construiu
visual do seu tempo, um testemunho gráfico o novo cenário, a cidade, e colocou nele o
de hábitos, costumes e comportamentos” Homem, na multidão, na ebulição da vida
(Fonseca, 1999, p. 231). O artista partici- moderna. E quando acaba, o mundo está
pou plenamente da transformação do país doente. O humorismo vai se tornar cerebral
e “seus modelos chegaram a influenciar até e sardônico, e adeus inocência de J. Carlos”
a moda” (Silva, 2009). (Loredano, 2002, pp. 14-5).

46 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011


bastante atuantes no país, especialmente
HENFIL: A FEROCIDADE DO a Juventude Estudantil Católica (JEC),
Henfil desenvolveu uma consciência social
HUMOR muito forte, que o guiou em toda a sua
vida profissional. Com aptidão precoce ao
Com a morte de J. Carlos, no início dos desenho de humor, começou a trabalhar aos
anos 1950, começava a morrer a época mais dezesseis anos na revista Alterosa, sob a
refinada da caricatura brasileira. Alguns direção do escritor Roberto Drummond,
meses depois do falecimento do artista, inicialmente como revisor e depois como
retornava ao governo o presidente Getúlio cartunista. Nessa revista, sob pressão de
Vargas, numa temporada rápida de apenas Drummond, criou seus primeiros e talvez
três anos e meio, que terminou em tragédia. mais conhecidos personagens, os Fradi-
Iniciava-se, assim, um período de crises nhos, dois personagens “ingenuamente
institucionais, que culminariam no golpe anticlericais e de temperamentos opostos:
militar de 31 de março de 1964, gerador de Cumprido, tolerante, carola e certinho;
um ambiente no qual já não havia espaço Baixinho, impaciente, provocador e um
para a elegância do traço. Eram tempos de tanto sádico” (Moraes, 1997, p. 62). Os dois
medo, em que a voz da crítica, por mais personagens foram, com o tempo, aprimo-
dissimulada, corria o risco de ser rotulada rados, cada um levando ao extremo suas
de subversiva. Ousar era preciso. características definidoras, a marca de seu
Muitos artistas se ergueram acima do criador, denotando uma alma sedenta por
medo nesse período, mas poucos conse- explorar as situações maliciosas e sádicas
guiram se alçar tão alto quanto o mineiro que faziam parte do cotidiano brasileiro,
Henrique de Souza Filho, o Henfil. Mestre mas ao mesmo tempo espalhando uma
incontestável do humor gráfico brasileiro, mensagem de solidariedade em relação
seu desenho personaliza, ainda hoje, toda a às minorias e aos desprivilegiados da
resistência contra os desmandos da ditadura sociedade.
militar, fazendo eco a sua própria vida e A revista Alterosa encerrou suas ativi-
suas convicções pessoais. Para ele, desenhar dades no final de 1964. Depois de um mês
era se colocar politicamente em relação desempregado, Henfil transferiu-se para o
ao mundo. Muito mais do que Agostini e segundo caderno do jornal Diário de Minas,
J. Carlos, Henfil, além do humor gráfico, onde fazia tiras diárias. Ali, foi obrigado a
enveredou também pelas histórias em qua- refinar o traço, aprender a desenhar depressa,
drinhos, construindo uma obra de grande reduzir a sofisticação e concluir os cartuns
apelo social. Nesse sentido, ele respondeu com poucos movimentos da mão. Deu tão
plenamente às exigências de seu tempo. certo, que ele ganhou o Troféu Cid Rebelo
Resistir era preciso. Horta como melhor cartunista de 1965, o
Nascido na região metropolitana de Belo que lhe possibilitou lançar o seu primeiro
Horizonte, em 1944, Henriquinho, como livro, Hiroshima, Meu Humor, em meados
era chamado carinhosamente em sua casa, de 1966.
foi um garoto difícil, com uma trajetória Henfil trabalhou posteriormente para
escolar bastante irregular, à qual se somava muitas publicações (Jornal do Brasil, Jornal
o problema crônico da hemofilia, doença dos Sports, O Dia, O Sol, A Notícia, Isto
genética hereditária que leva ao descontrole É, O Globo, Última Hora, O Estado de S.
dos sangramentos e comprometimento da Paulo, entre outros), transformando-se em
coagulação sanguínea. Ele compartilhava um baluarte na área de humor gráfico, não
essa complicação de saúde com dois de seus apenas por sua luta contra a ditadura militar,
irmãos, Herbert José (Betinho) e Francisco mas também por sua defesa intransigente
Mário. dos quadrinhos nacionais. Sua atuação no
Tendo se envolvido na juventude semanário O Pasquim, do Rio de Janeiro, no
em movimentos sociais católicos então qual estreou já no segundo número, ao lado

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011 47


de autores como Ziraldo, Millôr, Jaguar, não havia como separar sua arte de sua
Tarso de Castro, entre outros, colocou- vivência. Por pensar assim, chegou a
-o na berlinda do que melhor se fazia no desistir de publicar seus desenhos fora do
período. Ele se “encaixava feito luva na Brasil e jamais enveredou pela vinculação
concepção do jornal” (Henfil, 2008, p. 16). de seus personagens a qualquer tipo de
Os personagens por ele criados se tornaram publicidade ou produto comercial. Seu
extremamente populares junto ao público trabalho artístico, principalmente nos
leitor, composto principalmente por jovens Fradinhos, vocalizava “a revolta contra
da classe média. Também chegou a ter uma a censura e a repressão promovidas pelo
revista própria, a Fradim, que durou trinta regime militar, que teve em Henfil um de
números, de 1973 a 1980 (Seixas, 1996). seus mais extremados opositores” (Lago,
Além dos Fradinhos, outros personagens 2001, p. 180). Ele foi o artista certo para
de sua lavra foram a Graúna, uma ave na- o momento certo.
tiva; o bode Orelana, que comia livros de
autores proibidos pela ditadura; Zeferino,
típico habitante do Nordeste brasileiro;
Ubaldo, o Paranoico, que personificava a A ATUALIDADE DO HUMOR
classe média temerosa dos rumos da aber-
tura política; Urubu, torcedor-símbolo do GRÁFICO BRASILEIRO
Clube de Regatas Flamengo; Orelhão, típico
representante dos trabalhadores da indústria A decisão de fugir de um relato tradicio-
brasileira, e vários outros. nal do humor gráfico no Brasil representou
O tipo de humor produzido por Henfil abrir mão de fazer referência a dezenas
recebeu muitas denominações. Márcio de autores importantes, que deram uma
Malta (2008) o define como subversivo no inestimável contribuição ao desenvolvi-
próprio título da obra que escreveu como mento dessa área artística no Brasil. Mas
homenagem ao autor mineiro. Mas isso é isso seria repetir uma narrativa já realizada
pouco. Também é pouco afirmar que seu anteriormente e que a brevidade necessária
humor era crítico, irreverente, que possuía a um artigo de periódico certamente faria
um estilo caligráfico, como dizia Jaguar incompleta. Nos três autores aqui enfoca-
(apud Moraes, 1997); ou que era muito ofen- dos pensamos identificar linhas básicas da
sivo para os leitores conservadores norte- constituição do nosso humor gráfico, que
-americanos (Cavalcanti, 2005, p. 190), e buscou sempre atender, pela contribuição
que por isso estes rejeitaram a tentativa de não apenas desses artistas mas também
distribuição dos Fradinhos pelo Universal de grande parte de seus contemporâneos,
Press Syndicate. Seu humor baseia-se na às características de nossa cultura e do
reversão de expectativas, como ele mesmo momento histórico que viveram. Nesse
afirma ao responder a carta de um leitor na sentido, Agostini, J. Carlos e Henfil são
revista Fradim: modelares de um tipo de humor gráfico
que tem a cara do Brasil e que continua
“Reynaldo, a linguagem do humor não tem a ser exercido por dezenas de artistas do
nenhuma obrigação com o certo e o errado. país, com criatividade e qualidade exem-
O reto e o torto. O sério e o palhaço. Ela plares, de forma alguma inferiores ao que
subverte a lógica. Ela usa o absurdo. O é produzido em outros países. Verdadeiros
primário no humor é justamente reverter as guerrilheiros do humor, esses artistas grá-
expectativas. Presta atenção. É na reversão ficos brasileiros, seguindo o exemplo dos
da expectativa, no susto, que o humor se aqui analisados, retratam diariamente a
realiza” (apud Seixas, 1996, p. 57). visão do país real, aquela que será herda-
da pelos futuros brasileiros, e não aquela
Para Henfil, seu trabalho humorístico imagem açucarada de uma terra benfazeja
se confundia com sua práxis política, e abençoada por Deus.

48 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011


BIBLIOGRAFIA

AUGUSTO, José Carlos. “A Vida Fluminense: ‘Folha Joco-séria-illustrada’” (1868-1875), in 21o Con-
gresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba, 2009. Curitiba, Intercom, 2009. 15p.
(disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2009/resumos/R4-1235-1.pdf.
Acesso em: 2/set./2010).
CAGNIN, Antonio Luiz. “Foi o Diabo!”, in Diabo Coxo: São Paulo, 1864-1865. Edição fac-similar. São
Paulo, Edusp, 2005, pp. 9-19.
CAVALCANTI, Lailson de Holanda. Historia del Humor Gráfico en el Brasil. Lleida, Editorial Milenio, 2005.
CIRNE, Moacy. História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros. Rio de Janeiro, Funarte, 1990.
COTRIM, Álvaro. J. Carlos: Época, Vida, Obra. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
DAPIEVE, Arthur; LOREDANO, Cássio. J. Carlos Contra a Guerra: as Grandes Tragédias do Século XX na
Visão de um Caricaturista Brasileiro. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2000.
FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a Imagem Gráfica do Humor. Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1999.
LIMA, Herman. História da Caricatura no Brasil. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1963.
LOPES, Aristeu Elisandro Machado. A República e Seus Símbolos: a Imprensa Ilustrada e o Ideário Republica-
no. Rio de Janeiro, 1868-1903. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. Tese
de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/ha ndle/10183/23233. Acesso em: 19/out./2010).
LOREDANO, Cássio. O Bonde e a Linha: um Perfil de J. Carlos. São Paulo, Capivara, 2002.
MALTA, Márcio. Henfil: o Humor Subversivo. São Paulo, Expressão Popular, 2008.
MORAES, Dênis. O Rebelde do Traço: a Vida de Henfil. 2a ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1997.
MOYA, Álvaro de. História da História em Quadrinhos. São Paulo, Brasiliense, 1996.
SANTOS, Délio Freire dos. “Primórdios da Imprensa Caricata Paulistana: O Cabrião”, in Cabrião:
Semanário Humorístico Editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antonio Manoel dos
Reis, 1866-1867. 2a ed. São Paulo, Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2000, pp. xi-xlv.
SEIXAS, Rozeny. Morte e Vida Zeferino: Henfil e Humor na Revista Fradim. Rio de Janeiro, Oficina do
Autor, 1996.
SILVA, Daniela Cardoso da. “Humor e Ensino: J. Carlos e a Caricatura no Ensino de História”, in Revis-
ta Brasileira de História & Ciências Sociais, ano 1, n. 1, jul./2009, pp. 1-11 (disponível em: http://
www. rbhcs.com/index_arquivos/Artigo.Humor%20e%20ensino%20J.%20Carlos%20e%20
a%20caricatura%20no%20Ensino%20de%20Hist%C3%B3ria.pdf. Acesso em: 21/out./2010).
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4a ed. Rio de Janeiro, Mauad, 2004.
SOUZA, Karen Fernanda Rodrigues de. As Cores do Traço: Paternalismo, Raça e Identidade Nacional
na Semana Illustrada (1860-1876). Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2007. Dis-
sertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Humanas da Universidade Estadual de Campinas (disponível em: http://cutter.unicamp.
br/document/?code=vtls000408516&fd=y. Acesso em: 1o/ set./2010).
TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. “O Traço como Texto: a História da Charge no Rio de Janeiro
de 1860 a 1930”, in Coleção Papéis Avulsos, n. 38. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 2001
(disponível em: http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/o-z/FCRB_LuizGuilhe
rmeSodreTeixeira_A_historia_da_charge.pdf. Acesso em: 30/ago./2010).
VÁRIOS AUTORES. Henfil: Filho do Brasil. São Paulo, Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado
de São Paulo, 2008, pp. 17-8.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 38-49, dezembro/fevereiro 2010-2011 49


paulo ramos

paulo ramos
é jornalista e
pesquisador do
Núcleo de Pesquisas
de Histórias
em Quadrinhos
da ECA-USP.
RESUMO

Costuma-se dizer no circuito de produção e de circulação das tiras cômicas


que estas seriam piadas narradas em quadrinhos. Estas linhas investigam a
premissa e revelam que, de fato, há um conjunto de pontos comuns entre
os dois gêneros do humor, em particular no processo de construção textual
do efeito cômico.

Palavras-chave: tiras cômicas, piadas, gêneros, humor, sentido.

ABSTRACT

On the circuit of production and distribution of comic strips it is usually said that
they are jokes narrated in comic-strip form. This research examines that assump-
tion; and shows that the two humor genres in fact have some points in common,
especially as regards textual strategies aimed at achieving comic effects.

Keywords: comic strips, jokes, genres, humor, meaning.


A PERCEPÇÃO

u estava desconfortável antes de ver o especial,

preocupado com o que iriam fazer com meu per­

sonagem, mas me aliviei ao ver. Gostei bastante

do resultado, é bastante fiel às piadas das minhas

tiras.” A frase é do desenhista brasileiro Adão

Iturrusgarai, criador das tiras de Aline, publicadas desde a década

de 1990 no jornal Folha de S. Paulo. O depoimento dele, dado ao

jornalista Renato Félix, foi publicado em 1o de outubro de 2009 e

fazia referência à estreia de uma versão televisiva da personagem

dos quadrinhos, conhecida por ser obcecada por sexo. O autor

diz ter gostado do que viu na tela, principalmente pelo fato de a

adaptação ter sido fiel às piadas gráficas criadas por ele.

O interesse na afirmação de Iturrusgarai não está na adapta­

ção em si ou no grau de fidelidade dela, mas na percepção que o

desenhista tem de que suas tiras contenham piadas. Um exemplo,

extraído do blog do autor:

Nos dois primeiros quadrinhos, cria-se a expectativa de que

Aline irá usar o computador para “fazer um bom uso da rede”,

de modo a ganhar dinheiro com a Internet. O inusitado é ela se

apropriar do recurso virtual para reforçar sua gana por sexo, como

revela a cena final. A personagem escreve na tela do computador

uma espécie de anúncio, intitulado “Aline saradinha”: “Disposta a

realizar todas as suas fantasias. Faço massagem tailandesa…”. O

efeito de humor é construído por meio desse desfecho inesperado.


Figura 1
Tira da
personagem

Reprodução
Aline, de Adão
Iturrusgarai

A leitura de que as tiras contenham uma Quem publica também tende a orientar os
piada é compartilhada por outros autores de leitores de que as coletâneas de tiras estabe­
quadrinhos. Fernando Gonsales, criador das lecem diálogo com a piada. A editora lançou
tiras de Níquel Náusea, também publicadas mais de uma coleção que trazia a palavra
pela Folha de S. Paulo, explicita tal leitura piada no título, reunindo tiras de diferentes
em entrevista concedida para a Internet personagens, nacionais e estrangeiros (figu­
(Faggion, 2010). Ele respondia à questão de ras 2 e 3). A pessoa que compra uma obra
se os seus personagens, a maioria animais, dessas tende a ser orientada de que aquele
reagiam como bichos ou como humanos. produto traz piadas feitas na forma de tiras.
“Acho legal mesclar as coisas. Vai depen­ Nota-se que o processo de circulação
der da piada. Antes eu nunca colocava um das tiras – produção, publicação e leitura
animal dirigindo um carro, por exemplo. – trabalha com a percepção de que elas são
Mas agora eu faço isso de vez em quando, semelhantes a uma piada. Pelo menos as tiras
se achar que a tira vai ficar legal.” Percebe-se de cunho humorístico, também chamadas
no depoimento de Gonsales que a huma­ de tiras cômicas. O diálogo entre os dois
nização dos personagens de suas histórias gêneros, aparentemente consensual, foi
dependeria da piada. investigado em estudo feito por nós em
Uma vez mais, evidencia-se que os 2007 e retomado de forma mais sucinta em
autores das tiras trabalham com a premissa 2009. A pesquisa se ancorou no campo dos
de que suas criações conteriam uma piada. estudos textuais da linguística e procurou
Salões e concursos de humor também cos­ analisar os dois gêneros, tanto no processo
tumam orientar os inscritos na categoria de produção como de construção do sentido.
“tiras” a fazerem os desenhos com cunho As conclusões pautam a exposição deste
cômico. É o caso do que faz o Salão de artigo, feita a seguir.
Humor de Paraguaçu Paulista, que define o
termo como “humor gráfico em sequência
curta de quadrinhos semelhantes às publi­
cadas em jornais” (2010). O Concurso de OS GÊNEROS
Tiras Humorísticas, que teve sua segunda
edição em 2010, dá a seguinte síntese aos Um primeiro cuidado no tocante ao
interessados em se inscrever: estudo dos gêneros é perceber que eles são
construídos no processo sociointerativo, e
“[…] história em quadrinhos curta, con­ não modelos prontos, normativos. Para bem
tada em um ou mais quadros sequenciais, entender as piadas e as tiras cômicas – estas
que provoque humor ou riso por meio serão usadas também com o sinônimo tiras
da ironia ou comicidade. Pode ter con­ – é preciso observar quais são suas marcas
teúdo cartunístico (chiste intemporal) ou de produção e de circulação. Tal critério
assemelhar-se à charge (inspirada em fato metodológico se ancora na premissa de que
político da atualidade), ter personagem ambas, tiras e piadas, configuram gêneros
fixo ou conteúdo aleatório, traço realista autônomos, entendidos aqui na definição de
ou caricatural”. Bakhtin (2000), como “tipos relativamente

54 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 50-59, dezembro/fevereiro 2010-2011


estáveis de enunciados” usados numa situa­ ser visto na capa das coletâneas de tiras
ção sociocomunicativa e construídos por publicadas pela Editora Abril e mostradas
meio dela. Nas palavras do pesquisador abaixo. Se a empresa que publica a obra
russo, se “[…] não existissem os gêneros intitula o conteúdo – ou rotula, na acepção
do discurso e se não os dominássemos, de Maingueneau – como sendo piadas, o
se tivéssemos de criá-los pela primeira outro extremo do processo interacional, o
vez no processo da fala, se tivéssemos de leitor, é influenciado pelo termo e tende a
construir cada um de nossos enunciados, a interpretá-lo como tal. Estabelece-se um
comunicação verbal seria quase impossível” contrato comunicativo nesse sentido.
(Bakhtin, 2000, p. 302). O fato de os autores, a outra parte da
O modelo bakhtiniano parte do princípio interação sociocomunicativa, também en­
de que o locus de produção, ancorado histo­ xergarem as tiras como piadas só reforça
ricamente, deve ser observado no momento a interpretação de que, no processo de
de cristalização dos gêneros. É uma inter­ circulação do gênero, trabalha-se com a
pretação compartilhada por Maingueneau premissa de que as tiras sejam sinônimas
(2002, 2006), autor para quem a finalidade, ou então um híbrido de piadas e quadrinhos.
o lugar, o momento, o suporte material e o As marcas textuais dos dois gêneros irão
estabelecimento de parceiros pertinentes à reforçar essa leitura.
interação, que levaria a um contrato entre
autor/falante e leitor/ouvinte, interfeririam
no modo de produção comunicativo.
O linguista francês também postula que, AS PIADAS
em determinados casos, o rótulo usado para
o gênero pode interferir na interação, influen­ Existem diferentes entradas teóricas
ciando em sua recepção. “Quando se atribui para se observar os textos de humor. No
esse ou aquele rótulo a uma obra, indica-se tocante às piadas, Raskin (1985) possui
como se pretende que o texto seja recebido, um dos trabalhos mais conhecidos. O pes­
instaura-se – de maneira não negociada – um quisador desenvolveu um modelo próprio
quadro para a atividade discursiva desse para investigar as piadas, que batizou de
texto” (Maingueneau, 2006, pp. 238-9). semantic script theory of humor. Para ele,
Um caso desses gêneros autorais, como o as pessoas possuiriam uma competência
autor define as situações de rotulação, pode humorística, que permitiria a percepção de
um modo de comunicação non-bona-fide
(não confiável) sobreposto a outro, bona-
-fide (confiável), que ficaria em segundo
plano no processamento das informações. O
texto humorístico – entre os quais figuram as
piadas – teria de obedecer a duas premissas
para ser compreendido: 1) ser compatível
Figuras 2 e 3
Capas das
coletâneas de
tiras As Piadas
de Bolso do
Mickey
e As Melhores
Piadas do
Reprodução

Pinduca, ambos
da Editora Abril

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 50-59, dezembro/fevereiro 2010-2011 55


com dois scripts diferentes; 2) os dois scripts elementos de outras áreas, como a linguística
textuais precisam ser opostos. textual, as teorias da narrativa e a pragmá­
Os scripts são lidos como sequências tica. A piada passou, então, a envolver seis
de ações percebidas em uma determinada conhecimentos por parte de quem a lê/ouve:
situação estereotipada. A piada conduziria
o ouvinte/leitor a um script para, depois, 1) linguagem;
revelar outro. Essa mudança, provocada por 2) estratégia narrativa;
um gatilho presente num dado trecho-chave 3) situação;
(punch line, no original de Raskin), levaria 4) oposição de scripts;
ao efeito de humor. A piada apresentaria, 5) mecanismo lógico (evidencia como os
então, uma sequência própria: dois scripts ocorrem na piada);
6) alvo (conhecimentos referentes aos en­
1) troca de modo bona-fide pelo non-bona- volvidos pela piada, caso das loiras ou dos
-fide; portugueses, vistos culturalmente no Brasil
2) intencionalidade de ser uma piada; como pessoas de pouca inteligência).
3) apresentação dois scripts compatíveis
com o texto; Para Raskin e Attardo, haveria uma
4) uma relação de oposição entre os dois relação hierárquica entre os seis itens. A
scripts; linguagem seria algo mais determinado
5) um gatilho, explícito ou não, que permita no processo de produção da piada, ao con­
a oposição dos scripts. trário dos scripts, que teriam como marca
justamente o teor não determinado. Os
Para esclarecer melhor o modelo teórico, autores põem os dois elementos em cam­
vejamos a piada a seguir: pos extremos, a linguagem de um lado, os
scripts do outro. Os demais itens ficariam
“Uma mãe estava preocupada porque o filho numa posição intermediária, sendo mais ou
passava o dia inteiro mexendo no compu­ menos relevantes conforme as necessidades
tador. Ela decidiu, então, levar o garoto à de produção de sentido acionadas pelo texto.
Igreja para que ele conversasse com um Se tomarmos o mesmo exemplo de piada
padre. Chegando lá, a mãe explica a situação analisado anteriormente, a ambiguidade,
e o sacerdote pergunta ao menino: que revela o script camuflado, seria o
— Meu jovem, você segue Deus? ponto de maior relevância no processo de
E o menino responde: construção do humor.
— Não sei… qual o e-mail dele?”. Gil (1991) tem leitura semelhante à de
Raskin e Attardo. A autora defende que
Seguindo o raciocínio de Raskin, a piada a piada se desenvolve no que chamou de
reuniria dois scripts opostos, o da consulta modo jocoso de comunicação, que pode
religiosa e o do processo de interação no ser lido como o modo non-bona-fide. O
meio virtual. A troca de um script pelo outro humor surgiria da passagem do aspecto
se dá na penúltima linha (trecho-chave), sério para outro, fantasioso. “Caso a visão
por meio da ambiguidade do verbo “se­ de mundo do leitor/ouvinte não lhe permita
guir” (buscar Deus/acompanhar Deus na recuperar o significado pretendido, o texto
Internet). A percepção das duas leituras é não terá sentido para ele. Não o surpreende.
revelada na frase final, com a pergunta “qual Portanto, ele não ri. Não entende a piada”
o e-mail dele?”. O desfecho inesperado (Gil, 1991, pp. 146-7).
provocaria o humor. Apesar dos pontos comuns, a pesqui­
Num segundo momento teórico, Raskin, sadora brasileira desenvolve um modelo
em parceria com Attardo (1991), revisou e próprio de análise das piadas, que teriam
ampliou o modelo, criando a general theory um antecedente e um consequente. O an­
of verbal humor (teoria geral do humor tecedente apresentaria os personagens, a
verbal). O novo molde teórico incorporava história e sinalizaria para um determinado

56 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 50-59, dezembro/fevereiro 2010-2011


tópico. O consequente traria a conclusão da sobre o assunto (Ramos, 2007), investiga­
narrativa, inesperada, inferida pelo leitor. A mos um grupo de produções nacionais do
surpresa final seria a característica da piada e gênero e percebemos essas características,
o que levaria ao efeito de humor. A mudança que ajudam a compreender também o
dos dois momentos seria provocada por um conceito de tira cômica com o qual se está
elemento mediador (na piada anterior, o trabalhando:
elemento seria o verbo “segue”).
A pesquisadora vê nas piadas um texto • formato fixo, com uma ou duas colunas,
que utiliza elementos da narrativa e dos tendencialmente horizontal (em revistas
recursos dialogais. Além disso, apresenta­ em quadrinhos e livros, pode aparecer
riam tendência de serem curtas, muito por também na vertical);
conta do conhecimento prévio que se tem • tendência de uso de poucos quadrinhos,
do gênero e da dificuldade de se manter dada a limitação do formato;
por muito tempo a tensão da narrativa de • tendência de uso de imagens desenhadas
humor. Raskin e Attardo reforçam outro (há casos de fotografias, embora mais
elemento: a presença de personagens fixos raros);
ou não, geralmente estereotipados, forma • em jornais, é frequente aparecerem o
de facilitar a interpretação do leitor/ouvinte. título e o nome do autor na parte de cima
da tira; em coletâneas, essas informações
costumam aparecer na capa da obra;
• personagens fixos ou não;
AS TIRAS CÔMICAS • predomínio de sequência narrativa, com
uso de diálogos;
Observar os locais de circulação das • narrativa pode ter continuidade temática
tiras – jornais, revistas, livros, blogs – re­ em outras tiras;
vela diferentes aspectos com relação às • tema abordado é sobre humor;
tiras. Primeiro: nem todas são de humor. • tendência de desfecho inesperado.
Segundo, consequência do anterior: há
diferentes gêneros de tiras. Existem as que Observando (parte) dessas característi­
contam uma narrativa de ação com um cas em exemplos.
capítulo por dia (tiras seriadas), as que se Há na tira um antes e um depois, ele­
enquadram no modelo que Adão Iturrus­ mentos mínimos que levam à condução
garai e Fernando Gonsales expuseram em da narrativa. A história é construída por
depoimentos reproduzidos no início deste meio das ações de três personagens: um
artigo (tiras cômicas), as que mesclam as casal e o cãozinho. Este subia mancando
duas características (tiras cômicas seriadas) uma longa escadaria. As frases do homem,
e as que se pautam pela liberdade temática “Um cãozinho mancando! Vamos levar
e de criação. para o veterinário!”, sugerem ao leitor
A maioria delas, no entanto, procura que se trata de um animal ferido e que ele
seguir o padrão das tiras cômicas. No estudo precisaria de atendimento especializado.

Figura 4
Tira da série
Níquel Náusea,
Reprodução

de Fernando
Gonsales

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 50-59, dezembro/fevereiro 2010-2011 57


No quadrinho seguinte, o mesmo homem com chapéu de cancageiro, menino bem­
carrega o bicho nos braços, ante o protesto -intencionado e trabalhador, e Marieta,
deste: “Nunca consigo subir a escada de menina apaixonada pela leitura. O garoto
joelho para pagar a minha promessa!”. A apresentado na cena final é Zé Pequeno,
situação inesperada, a de ser uma promessa, dono de um falar regional e que evita o
e não uma enfermidade, é que levaria ao trabalho sempre que pode. Por ter a pre­
efeito de humor. guiça como característica, seria de esperar
Por conta do formato, a narrativa é que fosse visto pelos demais como o que
condensada em apenas dois quadrinhos. “trabalha menos”.
Os personagens, no caso, não fixos, foram
criados especificamente para a tira, estra­
tégia comum às tiras da série. Apesar de o
nome Níquel Náusea fazer referência ao AS SEMELHANÇAS
personagem-título, um camundongo de
esgoto, o animal tem aparecido em menos Há diferenças entre as piadas e as tiras
da metade das histórias das coletâneas cômicas. Estas são produzidas num formato
publicadas na forma de livro, fonte da tira fixo, por exigência do mercado, e se ancoram
citada (Gonsales, 2010, p. 24). em códigos distintos: o verbal escrito e o
O outro exemplo, ao contrário, trabalha visual. As tiras também tendem a explicitar
com um grupo de personagens fixos, a Tur- ao leitor quem são os autores da narrativa,
ma do Xaxado, criação do baiano Antônio algo que não ocorre nas piadas orais, que,
Cedraz (2005). nesse aspecto, assemelham-se às lendas
O humor da tira se baseia numa terceira ou relatos orais contados de pai para filho,
resposta, inesperada, ante à pergunta sobre se geração após geração. É algo que se constrói
o homem ou a mulher trabalhariam mais. O socialmente sem a exigência da autoria.
balão de fala do quadrinho final, “Podemos Mas, se formos colocar semelhanças e
não saber quem trabalha mais, mas quem diferenças numa balança, o peso será maior
trabalha menos…”, sugere que o menino no lado das semelhanças. Há mais carac­
mostrado no canto esquerdo da cena aprecie terísticas comuns que pontos divergentes.
pouco a atividade de trabalhar. O fato de Algumas delas:
alguém ter como característica trabalhar me­
nos, informação que deveria ser inferida pelo • ambos apresentam texto tendencialmente
leitor, é o que traria comicidade à história. curto;
Não seria essencial o leitor saber quem • trabalham com situações e temas ligados
são os quatro personagens para compreender ao humor;
a tira. Mas, se tivesse conhecimentos prévios • apresentam desfecho inesperado;
deles, acrescentaria mais informações no • inferência do efeito de humor provocado;
desfecho narrativo e faria um volume menor • tendência ao uso de diálogos;
de inferências. Os três meninos mostrados • tendência a ter o humor focalizado em
no quadrinho inicial são Arturzinho, garoto atitudes (verbais ou gestuais) centradas
rico, avarento e exibido da região, Xaxado, nos personagens;

Figura 5
Tira da série
Turma do
Reprodução

Xaxado, de
Antônio Cedraz

58 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 50-59, dezembro/fevereiro 2010-2011


• presença de personagens fixos ou não Por terem características tão próximas,
(os fixos exigem do leitor conhecimento justifica-se a impressão social, compartilha­
compartilhado); da por autores, editoras e leitores, de que
• tendência a apresentar atitudes e per­ as tiras cômicas sejam vistas como piadas.
sonagens estereotipados, de modo a Produção sui generis, a tira engloba ele­
facilitar a compreensão das caracterís­ mentos do próprio gênero, que se apropria
ticas situacionais e de composição dos dos recursos da linguagem dos quadrinhos,
personagens; assim como dialoga diretamente com outro
• necessidade de acionamento de conhe­ gênero, a piada, criando no leitor a expec­
cimentos compartilhados e de mundo tativa de que traga um texto de humor, com
de diversas ordens para a produção do desfecho inesperado. É como se fosse uma
sentido. piada feita em quadrinhos.

BIBLIOGRAFIA

AS MELHORES PIADAS do Pinduca. São Paulo, Abril, agosto de 1976 (Coleção Diversões Juvenis).
AS PIADAS DE BOLSO do Mickey. São Paulo, Abril, outubro de 1988, n. 4.
ATTARDO, Salvatore & RASKIN, Victor. “Script Theory Revis(it)ed: Joke Similatiry and Joke Represen-
tation Model”, in Humor – Internacional Journal of Humor Research. vol. 4-3/4. Berlin/New York,
Moutonde Gruyter, 1991, , pp. 293-347.
BAKHTIN, Mikhail. “Os Gêneros do Discurso”, in Estética da Criação Verbal. 3a ed. São Paulo, Martins
Fontes, 2000, pp. 277-326.
CEDRAZ, Antônio. A Turma do Xaxado: Brasileiros Como Você. João Pessoa, Marca de Fantasia, 2005.
________. Xaxado (disponível em: http://www.xaxado.com.br/index.html; acesso em 4/out./2010).
CONCURSO DE TIRAS HUMORÍSTICAS, in Marca de Fantasia (disponível em: http://www.marcade-
fantasia.com/nasparadas/gag-2010/gag-2010-regula mento.htm; acesso em 4/out./2010).
FAGGION, Renata. “Fernando Gonsales e Seu Humor Animal”, in Canina Blog (disponível em: http://
caninablog.wordpress.com/2010/05/13/fernando-gonsales-e-seu-humor-animal/; acesso em
3/out./2010).
FÉLIX, Renato. “Adão Iturrusgarai, Criador de Aline”, in Boulevard do Crepúsculo (disponível em:
http://renatofelix.wordpress.com/2009/10/01/ entrevista-adao-iturrusgarai-criador-de-
-aline/; acesso em 3/out./2010).
GIL, Célia Maria Carcagnolo. A Linguagem da Surpresa: uma Proposta para o Estudo da Piada. Tese de
doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas. São Paulo, FFLCH-USP, 1991.
GONSALES, Fernando. Níquel Náusea: a Vaca Foi Pro Brejo Atrás do Carro na Frente dos Bois. São
Paulo, Devir, 2010, p. 24.
ITURRUSGARAI, Adão. “O Blog de Aline”, in O Mundo Maravilhoso de Adão Iturrusgarai (dispo-
nível em http://adao-tiras.blog.uol.com.br/arch2009-09-20_2009-09-26.html#2009_09-
26_12_48_24-7399276-28; acesso em 4/out./2010).
MAINGUENEAU, Dominique. Análises de Textos de Comunicação. São Paulo, Cortez, 2002.
________. O Discurso Literário. São Paulo, Contexto, 2006.
RAMOS, Paulo. Tiras Cômicas e Piadas: Duas Leituras, Um Efeito de Humor. Tese de doutorado em
Letras. São Paulo, FFLCH-USP, 2007.
________. A Leitura dos Quadrinhos. São Paulo, Contexto, 2009.
RASKIN, Victor. Semantic Mechanisms of Humor. Holland, D. Reidel Publishing Company, 1985.
SALÃO DE HUMOR DE PARAGUAÇU PAULISTA (disponível em: http://www.salaodehumordepara-
guacu.com.br/regulamento.asp; acesso em 4/out./2010).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 50-59, dezembro/fevereiro 2010-2011 59


gêisa fernandes d‘oliveira

gêisa fernandes
d‘oliveira
é doutora em
Comunicação
pela Escola de
Comunicações e
Artes da USP.
RESUMO

Os quadrinhos brasileiros sempre se pautaram por um diálogo com o humor.


Embora marcante, esse elemento não resultará em apenas um tipo de identi-
dade. A partir das obras de Mauricio de Sousa e Laerte, o artigo propõe uma
discussão a respeito dos desdobramentos do uso do humor e seu papel em
dois diferentes projetos identitários.

Palavras-chave: quadrinhos, humor, identidade, Mauricio de Sousa, Laerte.

ABSTRACT

Brazilian comics have always been oriented toward humor which, albeit remarka-
ble, has not forged just one identity. By exploring the works of cartoonists Mauricio
de Sousa and Laerte, this article seeks to discuss the developments of the use of
humor, and its role in shaping two different identity projects.

Keywords: comics, humor, identity, Mauricio de Sousa, Laerte.


OS QUADRINHOS BRASILEIROS E SUA
RELAÇÃO COM O HUMOR: ENTRE A PEDAGOGIA
E O ENTRETENIMENTO

s quadrinhos brasileiros estão fortemente

ligados, em sua gênese, ao humor e à sátira.

No final do século XIX, os jornais ilus-

trados, contendo basicamente desenhos e

caricaturas acompanhados de legendas ou de

pequenos textos, gozavam de grande apreço junto ao público.

Veículos de divulgação de ideias vanguardistas, esse tipo de pu-

blicação encontrava no humorismo não só um meio de expressão,

como também um refúgio.

Agindo como um salvo-conduto, o caráter humorístico

permitia aos periódicos fazer da família real um alvo certo de

críticas e, mesmo assim, sobretudo a partir de 1850, experimentar

uma liberdade maior que aquela reservada à imprensa oficial.

Publicações como O Malho, O Mosquito, O Besouro ou a famosa

Revista Illustrada, de Angelo Agostini (que chegou a se manter

exclusivamente com as assinaturas), tornaram-se literatura obri-

gatória nos círculos letrados e desempenharam importante papel

na difusão de um modelo de imprensa que associa a crítica social

ao bom humor (Schwarcz, 2003, p. 416).

O humor presente na ilustração brasileira é, portanto, primo-

-irmão da sátira política. Assumindo um ponto de vista crítico em

relação ao que é representado, ele possui livre acesso ao território

de embate das relações sociais de geração e reprodução de co-

nhecimento sem, no entanto, prender-se a ele. Como resultado,

consegue driblar mais facilmente convenções e categorizações

no interior do corpo social.


Figura 1 falante e discurso enunciado, criando um
Reprodução de página de O Tico-Tico, 1905 distanciamento.
Ao servir de mediação entre o observa-
dor e o fato observado, a imagem humo-
rística não pretende ser cópia fiel daquilo
que busca representar, afastando-se dos
ditames da coerência. Como resultado, o
interlocutor é forçado a adotar sempre dois
pontos de vista simultaneamente (Freud,
1988, p. 139). No caso das histórias em
quadrinhos brasileiras o duplo efeito pre-
tendido no leitor transita entre a pedagogia
e o entretenimento.
A proposta pedagógica foi primeira-
mente delineada em 1905, na revista O
Tico-Tico, publicação que também ambi-
cionava a formação do leitor do futuro, mas
que não era propriamente uma revista em
quadrinhos, mas sim com quadrinhos, entre
outras seções (Vergueiro, 2005).
A partir de 1934 foi a vez dos laços entre
quadrinhos e entretenimento se estreitarem
definitivamente para o público brasileiro,
com o sucesso dos suplementos distribuí-
dos nos jornais, ideia importada dos EUA
pelo jornalista Adolfo Aizen para o jornal
A Nação (Silva Junior, 2004).
Dez anos mais tarde, a proposta pedagógi-
ca destacou-se novamente com a divulgação
de uma pesquisa promovida pelo Instituto
Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep).
Reprodução

Os resultados, baseados em uma enquete


feita com crianças das séries primárias,
sugeriam que a leitura de quadrinhos seria
responsável por desvios de comportamento,
Sem a preocupação de ser “cópia fiel da como a incapacidade de separar ficção e rea-
realidade” ou de “ensinar”, o humor pode lidade (Silva Junior, 2004, p. 212), além de
flanar por todos os assuntos, estabelecer induzir à preguiça intelectual dos estudantes,
todo tipo de conexão, desconstruir qualquer afastando-os dos livros1.
opinião. Atua como um elemento da relação Em 1954, de acordo com o exemplo
entre a ordem social e a liberdade criativa norte-americano, foi criada uma comissão
individual, mas pode tanto ser politicamente para promover a autocensura das histó-
subversor quanto reprodutor de valores rias: cada editor brasileiro deveria adotar
estabelecidos pelo senso comum. um código de ética. Seguidor da linha de
Sigmund Freud (1988) relacionou o valorização do nacional, Adolfo Aizen
1 A esse respeito ver artigo
de Gonçalo Silva Júnior na humor ao inconsciente. Valendo-se do propôs que as histórias fossem situadas
Revista Pesquisa Fapesp, exemplo dos chistes, estabeleceu ligações espacialmente. Lugares indeterminados
número 161, julho de 2009
(disponível em: http://www. entre o efeito cômico e diversos mecanismos deveriam ser trocados por ambientes e
revistapesquisa.fapesp. de produção de prazer. Discurso no qual a paisagens brasileiras. Em 1961 foi a vez
br/?art=3908&bd=1&pg=
lógica não precisa ser respeitada, locus do das grandes editoras criarem seus códigos
1≶ último acesso em
1o/9/2010). inesperado, o humor distorce a relação entre moralizadores.

64 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011


Na primeira semana de outubro de 1964, declarando preferências e até mesmo
a emenda do deputado federal carioca Eu- rebatizando personagens (Vergueiro &
rico de Oliveira proibindo a impressão de D’Oliveira, 2009, p. 13). Na edição de nú-
revistas cujo conteúdo fizesse alusão a sexo, mero 4 (novembro de 2008), por exemplo,
violência e terror foi votada. “Quando fosse foi mostrado o desfecho do amor nunca
posta em prática, a medida transportaria confirmado entre Cebolinha (agora Cebola)
para o poder público praticamente todos os e Mônica. O “evento” virou notícia em
dispositivos de controle e veto do código sites, jornais e revistas em todo o país e a
de ética dos quadrinhos adotados três anos tiragem ultrapassou os 400 mil exemplares
antes” (Silva Junior, 2004, p. 379). (Ramone, 2008).
Era o início de um novo momento para Vale notar que a linha jovem foi saudada
o país e o quadrinho nacional reagiu aos como uma ruptura, um produto totalmente
acontecimentos. Com humor. novo dos Estúdios Mauricio de Sousa, me-
recendo um site exclusivo. Porém, mesmo
que representando um novo segmento de
mercado, a própria ideia de uma “turma”
O CURIOSO PERSONAGEM DE que se sucede a uma “turminha” aponta
para uma continuidade narrativa e o que se
MAURICIO DE SOUSA percebe, no produto final, está mais próxi-
mo da modernização, da adaptação de um
O novo cenário político alterou a fei- modelo preexistente do que da sua negação.
ção do mercado editorial de quadrinhos,
interrompendo, mas também projetando
carreiras. Nesse segundo caso, destaca-se Figura 2
o nome de Mauricio de Sousa, lançado em Turma da Mônica Jovem, em estilo
1959. A boa aceitação dos personagens que
mangá, de Mauricio de Sousa
viriam a formar a Turma da Mônica resultou
na formação de uma equipe e na adoção
de um formato empresarial extremamente

Reprodução
produtivo, baseado no desenho de estúdio,
que envolve a perda da autoria em prol da
assinatura, da “grife”.
Mauricio de Sousa continua sendo o
responsável por inovações no cenário de
quadrinhos brasileiro, como o projeto intitu-
lado Turma da Mônica Jovem, retratando os
célebres personagens em sua adolescência.
A proposta é fisgar o leitor fidelizado pela
“turminha”, tornando-se uma alternativa
aos cultuados quadrinhos japoneses.
A Turma da Mônica Jovem uniu o apelo
“exótico” do mangá ao conhecimento ad-
quirido das características dos personagens.
Boa parte do atrativo das histórias vem
justamente do jogo de correspondências
entre as peculiaridades infantis de cada um
(força da Mônica, gula da Magali, sujeira
do Cascão) e suas “novas identidades”.
O público passa a ser tratado como
mais um membro da equipe, interferindo
diretamente por meio de sites e blogs,

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011 65


Figura 3
Detalhe de história criada no Departamento de Projetos Especiais
dos Estúdios Mauricio de Sousa, em parceria com a Secretaria Nacional
Antidrogas

Texto integral disponível em: http://www.monica.com.br/institut/drogas (último acesso: 1o/10/2010)

A trajetória de Mauricio de Sousa não só gramas nas áreas de saúde, educação, meio
ilustra a transformação de um desenhista em ambiente e cultura”2.
empresário, como também diz muito a res- Apesar da aparente linearidade de
peito da relação dos quadrinhos brasileiros sua carreira, no final dos anos 1960, o
com o binômio pedagogia/entretenimento. desenhista lançou no Jornal da Tarde um
Sua obra, um sucesso comercial, apesar personagem que fazia uso do humor de
de ter no humor um de seus principais forma contrária ao seu padrão. Explorando
ingredientes, possui fortes vínculos com o humor negro e não a costumeira linha
estratégias de ação voltadas à educação. afetuosa, Nico Demo não se encaixava
Há cerca de dez anos seus personagens na galeria de Mauricio de Sousa. Criado
são usados para a confecção de material a pedido do diretor, Mino Carta, em 1966,
2 Fonte: site do Instituto Cul-
tural Mauricio de Sousa de campanhas educativas do governo. O misto de gozador e azarado, a acidez de
(dis­ponível em: http://www. objetivo, segundo a equipe, é “levar a filo- suas piadas e a ambiguidade de seu caráter
monica.com.br/institut/
fwelcome.htm; último aces-
sofia e a força de comunicação da ‘Turma foram responsáveis pela pronta rejeição
so em 22/9/2010). da Mônica’ para desenvolvimento de pro- ao personagem.

Figura 4
Nico Demo, 1968

Fonte: Sousa, 2003, p. 81

66 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011


Figura 5
Cena muda: Nico Demo, 1975

Fonte: Sousa, 2003, p. 75

Rejeitado pela crítica e incompreendido curta, o personagem oferece a possibilidade


pelo público, o personagem não durou mui- de compreensão de aspectos das décadas de
to. Após a recusa de Mauricio em atender 1960 e 1970 por um viés muito particular.
aos pedidos da redação para que a perso- Num momento histórico marcado por
nalidade de Nico Demo fosse suavizada, o comprometimentos ideológicos e cercea-
menino loiro (com um penteado que lembra mento de liberdades (pessoais, políticas, de
um par de chifres) passou a ser publicado imprensa), o humor das tiras do Nico Demo
pela Folha da Tarde. Também não obteve gerou incômodo ao fazer graça com milita-
sucesso no novo jornal. res e pacifistas. O personagem encarnava um
Os leitores escreviam cartas reclamando desprendimento desconcertante, que seria
e, mais uma vez, foram exigidas modifi- consolidado na imprensa brasileira com O
cações. Diante de uma nova recusa por Pasquim, o emblemático jornal publicado
parte do desenhista, Nico Demo foi cortado entre 1969-91.
definitivamente, ganhando fama de maldito Porém, mesmo compartilhando o humor
(Sousa, 2000). Contudo, apesar de sua vida ácido, uma diferença fundamental separava

Figura 6
O anti-herói e sua estratégia de sobrevivência. Nico Demo, 1975

Fonte: Sousa, 2003, p. 69

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011 67


O Pasquim de Nico Demo: enquanto o USP, em 1972, considerada um clássico
primeiro era o herdeiro de uma tradição de dos quadrinhos underground no Brasil. A
crítica política consolidada desde o Império, publicação contou com a colaboração de
o segundo representava uma ruptura em nomes que se tornaram referência no humor
relação ao trabalho até então apresentado gráfico do país, como os irmãos Paulo e
por Mauricio. Chico Caruso, Angeli, entre outros.
Segundo o autor, Nico Demo “veio an- A aparência do Deus de Laerte, apesar
tes do tempo” (Sousa, 2000, p. 52). Numa de se valer de recursos clássicos (homem,
época anterior à segmentação jornalística velho, branco, de longas barbas, com um
advinda com a Internet, o personagem não triângulo de luz sobre a cabeça), insere-os
conseguiu encontrar seu público, processo num contexto ao mesmo tempo brasileiro
que hoje certamente ocorreria com mais e universal.
rapidez. Porém, se o Nico Demo adiantou-se Transportado para os quadrinhos, o
em termos de distribuição, suas tiras trazem simpático Deus assume a posição de mero
claros sinais de seu tempo, a começar pelo observador, limitando-se a acompanhar o
fato de ser “muda”. exercício da possibilidade de escolha prati-
A fala, deslocada dos balões para carta- cado por suas criaturas. Por curiosidade, ou
zes e tabuletas, cala o discurso direto dos atendendo a pedidos de oração, por vezes
personagens e se torna representação dentro interfere discretamente em seus caminhos
da representação. Nesse sentido, a tira se de ação, sendo muitas vezes ele mesmo
coloca como uma alegoria da situação vi- surpreendido pelos acontecimentos.
venciada pelo leitor brasileiro do período. O humor vem dos inesperados desdobra-
Nico Demo foi um marco na carreira de mentos da liberdade confiada às criaturas.
seu autor, na medida em que o fez retornar Munidas do livre-arbítrio, podem modificar
definitivamente a seu projeto anterior, de funções atribuídas pelo criador e desempe-
uso do humor com fins educativos. A ex- nhar novos papéis, além dos previstos no
periência evidenciou a opção por acomodar plano divino.
sua potencialidade criativa de modo a evitar Na maioria das histórias, Deus se limita
o conflito com seu modelo empresarial de a cuidar de seus afazeres, interagindo com
produção e distribuição de tiras. Somente em anjos, demônios e outras divindades. Na se-
2003 foi publicada uma reunião de histórias quência destacada, após diversas tentativas
do Nico Demo. Vale registrar que essa foi a frustradas, finalmente consegue brincar o
mais ousada incursão de Mauricio de Sousa carnaval brasileiro.
no campo da crítica política. A tira fornece, em primeiro plano, uma
visão de Brasil que se fia (e se orgulha) de
sua vivência de carnaval diferenciada, so-
bretudo por não ser um evento circunscrito a
LAERTE E AS RECONFIGURAÇÕES uma data oficial ou a uma região específica,
mas que se quer nacional e permanente.
DA BRASILIDADE A situação de desconforto de Deus
funciona como metáfora para um país cuja
Enquanto Nico Demo fornecia um retra- história está pautada por tentativas de rein-
to do humor possível nos anos de chumbo, venção. Por meios diversos, o país procura
o desenhista Laerte Coutinho capturou sua se afastar de seu passado colonial e escra-
feição fin-de-siècle na série Deus publicada vista rumo a uma configuração que dê conta
na década de 1990, no jornal Folha de S. de abarcar as peculiaridades dos grupos
Paulo, aos domingos. Posteriormente, as étnicos presentes em sua formação. A folia
histórias foram reunidas em três livros, pela carnavalesca seria, portanto, o cadinho onde
Editora Olho d’Água. as diferenças se fundem, especialmente no
Laerte fez parte do grupo responsável campo dos contrastes socioeconômicos,
pelo lançamento da Revista Balão, na formando o amálgama Brasil.

68 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011


Figura 7
Deus no carnaval

Fonte: Coutinho, 2002b, p. 25

Durante o carnaval, a equação entre diver- Tradição inventada, autenticamente vi-


sidades locais e identidade nacional alcança vida e propagandeada, o carnaval representa
o ponto mais próximo de um equilíbrio, com o momento em que a função dos mediadores
a valorização de práticas regionais (ritmos e sociais se torna mais evidente (Napolitano,
costumes locais), ainda que estas sejam vistas 2007). Grupos sociais usualmente separados
mais como o exótico, o “outro” do “carnaval por critérios econômicos ou geográficos se
nacional”, cuja mais perfeita tradução, em encontram, seja nas celebrações espontâ­
termos de projeção internacional, caberia ao neas de rua ou em desfiles organizados. Com
samba, notadamente na sua vertente carioca. a trégua das regras cotidianas (o trabalho é
As práticas descentralizadas, norteadas interrompido, a rotina das cidades alterada),
por um discurso polifônico e dialógico, a negociação das diferenças assume outras
como defende Bakhtin (1988), garantem, formas, que não as usualmente experimen-
desse modo, seu reconhecimento e preser- tadas, e é essa conformação singular que o
vação, ao mesmo tempo em que se cria desenhista explora.
uma “commodity cultural” de alto valor Trata-se não só da construção de uma
no mercado internacional, cujo apelo, em identidade por meio dos quadrinhos, mas
grande parte, se deve ao clima de liberdade também do tratamento de um tema a partir
de costumes (principalmente sexuais) que dessa visão, pois é preciso estar integrado
permeia a festividade. a esse imaginário já existente em torno do

Figura 8
Milagre adaptado ao cenário nacional

Fonte: Coutinho, 2002b, p. 42

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011 69


carnaval brasileiro para que, a partir dele, a mesmo assim os dois primeiros quadros
situação cômica seja decodificada. Deve-se alcançam um efeito cômico, pela quebra
entendê-lo como um locus imaterial social do tempo lógico.
de forte carga simbólica que pode prescindir A tira, no entanto, apresenta um leque
da presença de Deus. mais variado de significados ativado por
Identidade nacional que precede a nação meio de informações que extrapolam os
(Hobsbawm, 1998, p.19), a brasilidade é o limites do desenho. O fato de que o paciente,
grande tema da tira, a macroquestão dentro mesmo depois de chegar de cadeira de rodas
da qual se estabelece a piada, herdeira de e sair andando, ainda reclame do médico,
máximas como “Deus é brasileiro”. O co- porque ele não mediu sua pressão, nem lhe
mentário, dito em tom que mistura pilhéria prescreveu remédios está relacionado a uma
e orgulho, fia-se na compreensão de que visão específica, culturalmente construída,
para nós as regras são um pouco diferentes a respeito da clínica.
e estão adaptadas ao “jeitinho brasileiro”. A prática médica como um conjunto
A mesma brasilidade é ativada quando de ações preestabelecidas sustenta a piada
Deus assume o comando num posto de final. Além da vestimenta (na função de
saúde. Além do aviso de “Não temos mé- médico, a caracterização de Deus ganha
dico”, a carência do lugar é representada acessórios, como estetoscópio e fotóforo),
por meio de um vetor temporal: enquanto é preciso reconhecer como típicos também
troca o aviso por “Temos médico” (infor- os procedimentos de pedidos de exames e
mação dada na interação com o leitor, pois prescrição de medicamentos.
a segunda palavra ainda está sendo escrita), O humor aparece, portanto, incorporado
uma longa fila já se formou e o primeiro à crítica a esse tipo frequente de reclamação:
paciente já reclama da demora. Até esse a de que um bom médico deve agir “como
ponto, o quadrinho lida com um humor se espera” de um bom médico, falando num
generalista, internacional. jargão próprio da profissão e seguindo um
Mesmo que não se identifique a comu- código específico de posturas. Na medida
nidade com uma favela (a falta de alinha- em que a consulta transcorre de uma ma-
mento das casas e a perspectiva do desenho neira diversa do esperado, ou seja, quando
da fila sugerem um desnível no terreno) e o modelo é alterado, o profissional cai em
que a dificuldade de acesso a serviços de desconfiança, mesmo que “opere milagres”.
saúde seja ignorada, ou seja, ainda que A cura, o objetivo final, não é o mais
os elementos regionais sejam ignorados, importante, mas sim o cumprimento de um

Figura 9
Hierarquia celestial, cenário brasileiro

Fonte: Coutinho, 2002b, p. 43

70 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011


protocolo preestabelecido, um conjunto de Produzida a partir de um posicionamento
regras burocráticas que pouco ou nada tem em relação a uma colonização mestiça,
a ver com a saúde do paciente. filtrado pelos diversos processos históricos
Em outra tira, o Dr. Deus pede para que vivenciados, a brasilidade se firma como
um enfermeiro, representado por um anjo, referência criada pelos brasileiros. Em ou-
controle o fluxo de pacientes. A ordem é tras palavras: é agindo “como brasileiros”
passada adiante, dessa vez direcionada que a brasilidade é criada, reconhecida e
à recepção. No terceiro quadro ficamos reafirmada.
sabendo a causa de tantas pessoas: o Diabo- O agir se justifica e se alimenta, crista-
-recepcionista anuncia a presença do médico lizando posturas, normatizando condutas
num alto-falante. que passam a ser encaradas como esponta-
O tipo de conhecimento extradiegético neamente vinculadas ao povo brasileiro (o
exigido do leitor se refere ao campo da “brasileiro bem-humorado”, tão apreciado
tradição cristã e sua intrincada rede hie- pelos estrangeiros). Essa ligação, por sua
rárquica. A compreensão é facilitada por vez, aglutina valores identitários sob o man-
meio de um paralelo com a hierarquia de to da nação. Com o solo fértil preparado, a
um hospital, na qual o médico (Deus) se brasilidade pode germinar sem estar ligada
sobrepõe ao enfermeiro (anjo) que, por sua a um projeto pedagógico anterior a ela.
vez, ocupa uma função mais especializada O processo de construção cultural é
que os funcionários da recepção (anjo de- simultaneamente exercício de poder e de
caído, demônio). criação de sentidos. O apelo da série de
Porém, não é essa comparação a respon- Laerte passa por sua capacidade de desalojar
sável pelo humor, ela é apenas um ponto uma determinada estética de seu contexto
de partida. O efeito de riso provocado original, para reinseri-la numa disposição
pela tira vem de outras duas fontes: 1) diversa, capaz de gerar novos significados.
o Diabo é identificado na tradição cristã O efeito cômico, surgindo do rompi-
como a encarnação do mal, ou seja, uma mento em relação ao esperado, se distancia
figura da qual não deve ser esperada ne- do parâmetro previamente conhecido e
nhuma boa ação; 2) nesse caso o Diabo ativado pelo leitor, que precisa construir
faz rir, não por sua esperteza ou por um um novo sentido.
ardil, mas justamente por estar dizendo A contemporaneidade exige que esse
a verdade. O “engraçado” é saber que a processo não seja linear, nem almeje a um
realidade do sistema de saúde pública em fim isolado. O movimento da construção
países como o Brasil é tão precária que, de saberes não é uma marcha cadenciada,
ao ser representada, assume ares de uma que poria em risco a frágil ponte das iden-
estripulia sobrenatural. tidades, mas sim uma dança fluida, líquida,
Ao falar de si, o brasileiro se posiciona inacabada, em estado de alerta e afirmação.
tanto em relação a um coletivo, construído
simbolicamente a partir de características
específicas dos grupos étnicos e culturais
que formaram o país, quanto a um imagi- CONCLUSÕES
nário de equalização de conflitos, tomando
o país por uma gigantesca caldeira onde A representação é tanto mediadora quanto
diferenças se fundem. multiplicadora de significados, reforçando
A brasilidade, vista por esse ponto de ou excluindo informações. Dentro dela, a
vista, assemelha-se a uma colcha na qual identidade deve ser entendida não só como
os retalhos identitários, de tão pequenos e construção individual, mas também como
bem cosidos, conseguem se disfarçar em experiência coletiva, processo de conquista.
padrões, que trazem as marcas de suas con- Recortando e reagrupando a ordem das
formações originais, mas também revelam coisas, a representação forma diferentes tra-
novas estampas. mas de sentido, nas quais estão expostos os

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011 71


conflitos e as negociações que caracterizam da indisciplina, estabelece novos signi-
os processos históricos. ficados aos mecanismos normatizadores
O humor entra como um elemento na do corpo social. A representação humo-
constituição da identidade, conferindo uma rística exige a negociação entre o objeto
maneira própria de reinventar o mundo na e seu trato que assegura a preservação
representação e por meio dela. Circula entre do referencial, que não pode desaparecer
os agentes sociais de uma sociedade plural, totalmente na crítica, senão deixará de
conferindo ao produto final um frescor ser engraçado.
que equivale a um selo de “censura livre”, Dessa forma, a representação humorista
tornando-o aparentemente “apropriado” faz despertar o inesperado no óbvio. A
para todos os públicos. mensagem modifica e altera seu referen-
Sendo um humor tão próximo da ma- cial. A representação completa seu curso,
lícia, do deboche, da crítica e, portanto, apontando para o porvir.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail. Questões de Literatura e de Estética. A Teoria do Romance. São Paulo, Hucitec,
1988.
COUTINHO, Laerte. Deus Segundo Laerte. São Paulo, Olho D’Água, 2002a.
________. Deus 2: a Graça Continua. São Paulo, Olho D’Água, 2002b.
________. Deus 3: a Missão. São Paulo, Olho D’Água, 2003.
FREUD, S. “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, in Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. 8. Rio de Janeiro, Imago, 1988.
HOBSBAWM, E. J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998.
NAPOLITANO, Marcos. A Síncope das Ideias: a Questão da Tradição na Música Popular Brasileira. São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
RAMONE, Marcus. “Turma da Mônica Jovem # 4 Ultrapassa Tiragem de 400 Mil Exemplares”.
Universo HQ. 8/12/2008 (texto integral disponível em: http://www.universohq.com/
quadrinhos/2008/n08122008_07.cfm; acessado em 1o/10/2010).
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos. 2a edição. São
Paulo, Companhia das Letras, 2003.
SILVA JUNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis: a Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura
aos Quadrinhos. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.
SOUSA, Mauricio de. Navegando nas Letras. 2 vols. São Paulo, Globo, 2000.
________. As Melhores Tiras do Nico Demo. São Paulo, Globo, 2003.
VERGUEIRO, Waldomiro. “O Tico-Tico Completa 100 anos”, in Omelete: Entretenimento Levado a
Sério, 11/10/2005 (texto disponível em: http://omelete.com.br/quadrinhos/io-tico-ticoi-
completa-100-anos).
VERGUEIRO, Waldomiro; D’OLIVEIRA, Gêisa Fernandes. De Discursos Não Competentes a
Saberes Dominantes: Reflexões sobre as Histórias em Quadrinhos no Cenário Brasileiro. Texto
apresentado ao Grupo de Trabalho Mídia e Entretenimento, do XVIII Encontro da Compós, na
PUC-MG, Belo Horizonte, junho de 2009.

72 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011


REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 60-73, dezembro/fevereiro 2010-2011 73
theophilo augusto pinto

theophilo
augusto pinto
é doutorando do
Departamento de
História Social da
FFLCH-USP.
RESUMO

Nos primeiros quinze anos do rádio comercial no Brasil aparece o que chamamos
de a invenção da audiência radiofônica. Como consequência, alguns debates
entraram em pauta sobre a melhor maneira de se criar forma e conteúdo para
ele. Propomos uma reflexão, por meio de alguns programas humorísticos do
período, sobre como as representações do que seria “próprio” para o rádio
foram testadas, respeitadas e, às vezes, transgredidas, concentrando-nos num
episódio de 1947 envolvendo a marcha carnavalesca “Eu Quero É Rosetar”.

Palavras-chave: humor, rádio, programas humorísticos, linguagem radiofônica.

ABSTRACT

The first fifteen years of commercial radio broadcasting in Brazil saw what we
call the invention of the radio audience. As a result, some debates were carried
out concerning the best way to create its form and content. By analyzing some
comedy shows of that time, we advance some thoughts on how the representa-
tions of what was considered “appropriate” to the radio were tested, respected;
and sometimes breached. We will focus on a 1947 episode involving the Carnival
march “Eu quero é rosetar”.

Keywords: humor, radio, comedy shows, radio language.


O PROGRAMA HUMORÍSTICO COMO OBJETO
HISTORIOGRÁFICO

humor radiofônico das décadas de 1940 e 1950

ainda precisa ser mais estudado. De nosso conhe-

cimento, o único programa desse gênero um pouco

mais explorado em livro é o PRK-30, produzido

por Lauro Borges e Castro Barbosa e transmitido

entre 1944 e 1964 (Perdigão, 2003). Outros programas normal-

mente aparecem em poucas páginas de trabalhos mais gerais

sobre o rádio, em geral, ao se referirem ao humor radiofônico1.

O que se perde com isso? Certamente, uma oportunidade de

compreender melhor a própria sociedade brasileira, pois “tudo

que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca [e

o que transmite por meio do rádio] pode e deve informar sobre

ele” (Bloch, 2002, p. 79). A pretensão deste texto é mostrar,

utilizando-se do programa humorístico como objeto historiográ-

fico privilegiado, um ponto na evolução do debate sobre como

deve ser a linguagem transmitida pelo rádio. O rádio testou

os limites daquilo que Mário de Andrade (1972, p. 210) disse

dela, ou seja, uma linguagem “particular, complexa, multifária,

mixordiosa”. Em primeiro lugar, queremos situar esse problema

dentro do debate do período.

A CONSTRUÇÃO DO RÁDIO, DA AUDIÊNCIA E DE


SUA LINGUAGEM

Considera-se que o início da estruturação comercial do rádio

no Brasil se deu por conta do decreto 21.111, de 1o de março de 1 Ver, entre outros: Goldfeder,
1980;Aguiar, 2007; Ferrareto,
1932, que permitiu a ocupação de 10% do tempo da transmissão 2001.
pela publicidade (Ferrareto, 2001, p. 102). como o jornal, mostrando a sensibilidade
Isso abriu a possibilidade para que a produção dos produtores em explorar esse novo meio
de programas radiofônicos contasse com de modo mais eficiente. Dentre outros,
uma verba assegurada, vinda da propaganda criaram-se termos para a assinatura, o tes-
comercial que os patrocinaria. No entanto, temunhal e, posteriormente, o spot (Silva,
esse espaço nem sempre foi visto com muito 1999, pp. 28-31). Esses nomes mostram
entusiasmo pelos anunciantes e houve, inclu- que o veículo começou a criar categorias
sive, quem se lembrasse do esforço para se para a publicidade distintas do que foram
convencer um patrocinador daqueles tempos. até então os anúncios em meios impressos
Exemplificando, tome-se o depoimento de e também em relação ao que se ouvia em
1976 de Saint Clair Lopes, ex-diretor da outros momentos. Além das categorias
Rádio Nacional. Nele, falou da dificuldade em si, a linguagem radiofônica vai sendo
que havia na década de 1930, quando a moldada de modo a ser mais eficiente na
Rádio Educadora, onde trabalhava, tinha promoção de seus produtos.
um transmissor de relativa baixa potência e, O rádio se difundiu por todo o territó-
portanto, muito sujeito a interferências. Para rio nacional e, durante a Segunda Guerra
conseguir patrocínio, essa interferência era Mundial, praticamente dobrou sua base
um grande empecilho, pois o patrocinador instalada3. Isso não passou despercebido
também era um ouvinte incomodado com a pelo Estado Novo, que criou o Departa-
má recepção. Diz ele, em entrevista: mento de Imprensa e Propaganda (DIP) e,
desde 1939, tentou controlar a mensagem
“De vez em quando o [patrocinador] Manuel radiofônica, na medida do possível. Além
Caramé chegava para mim dizendo [imitan- do rádio, imprensa, cinema e teatro foram
do o sotaque português] ‘eu não sei como vigiados com uma eficiência relativamente
eu mantenho este programa, porque é uma desigual (Goulart, 1990, p. 24). Se conse-
coisa terrível! […] Olha aqui, vocês têm guia intervir eficazmente no teatro de revista
lá, afinal de contas, uma estação de rádio (Velloso, 1998), no rádio essa eficácia pode
ou é um campo de bombardeio? Aquilo só ser mais questionável:
estoura, é só [faz um som imitando o ruído
do rádio], não se ouve nada!’ Era a estática “O DIP só conseguiu verba para apenas 19
da estaçãozinha de 100.000W [sic]. Mas, censores para o Rio de Janeiro, 12 deles
como saía o nome do dono do estabeleci- em tempo parcial. […] A popular estação
mento, ele pagava”2. comercial Rádio Mayrink Veiga, em com-
paração, empregava mais de 150 pessoas,
Passada essa fase inicial, o rádio foi se a maior parte em tempo integral, sem ter
firmando como o mais importante veículo de a pretensão de dirigir o desenvolvimento
comunicação de massa no Brasil, com suas cultural da nação” (McCann, 2004, p. 27).
novelas, programas musicais, jornalísticos
e humorísticos. É a chamada Era de Ouro Independentemente da eficiência, o que
2 Depoimento dado a Lou- do rádio. Vários autores que a narraram se pretende apreender dessas afirmações é
rival Marques para a co- veem na publicidade a grande alavanca que o que se dizia no rádio preocupava a
memoração dos quarenta
anos da Rádio Nacional, em que sustentou a maioria dos programas diversos setores. A rádio Mayrink Veiga,
1976. (Note-se que esse radiofônicos de então. Por exemplo, foi por citada acima, ainda era a mais forte emissora
depoimento tem elementos
para além do meramente
conta da publicidade que um dos primeiros na cidade do Rio de Janeiro, mas aos poucos
verbal, pois quem fala muda e mais duradouros programas, o Programa deixou esse posto para a emergente Rádio
o tom da voz e cria ruídos
do Casé, se manteve, colocando inclusive Nacional, pertencente às empresas incorpo-
com a boca para pontuar
aquilo que fala.) anúncios musicais como o jingle para a radas ao patrimônio da União desde 1939,
3 Durante o Estado Novo, os Padaria Bragança, considerado o primeiro coincidentemente o mesmo ano da criação
receptores no Brasil subiram do gênero no Brasil (Casé, 1995, pp. 48- do DIP. Toda essa movimentação estava
de 357.921, em 1939, para
659.762, em 1942 (Goulart,
9). Anúncios sonoros sofreram alterações articulada à construção de uma identidade
1990, pp. 19-20). em relação a outros meios de comunicação nacional que poderia ser grandemente re-

78 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011


forçada pelo uso do rádio (Canclini, 2008, quase ofensiva, com que o speaker se diri-
p. 129). Para isso, o veículo precisava ser ge a pessoas que não conhece” (Andrade,
mais bem conhecido por aqueles que o 1972, p. 208).
produziam, e várias questões foram feitas Outra questão importante nesse debate
em diversos países para melhor conhecer tratou da regulamentação da publicidade.
o seu poder. Por um lado, reconheceu-se Para muitos, essa exagerava no tempo de
que ele podia alcançar um sem-número de exposição de seus produtos ou na maneira
pessoas num raio de centenas e até milhares demasiadamente assertiva com que trans-
de quilômetros com diversos tipos de men- mitia suas mensagens. Para muitos, as
sagens – políticas, publicitárias, musicais, vozes dos locutores lendo anúncios eram
etc. Por outro, não se sabia exatamente como excessivamente autoritárias: “Não são
o destinatário dessa mensagem iria reagir convites amáveis ou conselhos jeitosos, são
a elas. Nos anos 30, um debate importante ordens arrogantes e intimações agressivas
foi a elevação ou rebaixamento do gosto de de um ultimatum […] o speaker de rádio é
quem ouvia rádio (em questões tais como: um pequenino Mussolini, um Hitlerzinho
iriam os ouvintes abandonar o jornal e os reclamista”, diz o texto da revista Publici-
livros? Ou, alternativamente, passariam a dade e Negócios de 1940 (apud Gontijo,
ser admiradores de óperas e palestras?). 1996, p. 43). Mário de Andrade, por sua
Paul Lazarfeld, Frank Stanton e Hadley vez, disse ser a linguagem radiofônica um
Cantril, entre outros, começaram a fazer in- instrumento de convencer mais do que
vestigações sobre essas questões nos EUA4. de educar, fazendo-o de maneira rápida,
Na Argentina, o afã pela uniformização da pois “tem de ser curta não por interesses
fala radiofônica se mostrou pelo menos econômicos apenas, mas psicológicos, de
desde 1934, data da publicação do Folleto fadiga, de audição desprovida dos elementos
de Instrucciones, que “legislou sobre como plásticos da oratória, etc.” (Andrade, 1972,
deveria ser a publicidade, moderou o uso p. 209). Uma escuta cansada, desatenta,
dos comerciais cantados, limitou a repetição muito próxima da “escuta reduzida”, termo
de marcas e circunscreveu a 100 […] pala- cunhado por Adorno (1998) em 1938.
vras possíveis para se usar num anúncio” Para elevar os padrões da locução radio-
(Ulanovsky et al., 2004, p. 88) fônica, uma produtora publicitária fez uma
Não se pretende mostrar uma relação espécie de “manual de instruções” em áudio
direta entre esses eventos, e sim sugerir para os locutores do Repórter Esso, que
que havia uma espécie de clima favorável endossava essa posição: “Está provado que
ao debate sobre a linguagem radiofônica o estilo vulgar da leitura de anúncios pelo
e à invenção da audiência, ou seja, “uma rádio desmoralizou o chamado texto avulso.
construção em que correlacionaram uma O ouvinte recebe-o com indiferença e não
nação de ouvintes individuais em um toma conhecimento dele”5. Sendo o mais
grupo relativamente monolítico que, de importante programa jornalístico do rádio
algum modo, sabia o que queria do rádio” da época, o Repórter Esso tinha inclusive
(Douglas, 2004, p. 131). No Brasil, Mário diretrizes bastante precisas sobre como a
de Andrade (1972) escreveu sobre isso em voz do locutor deveria ser empregada. Vale
4 Sobre Paul Lazarfeld, ver:
1940 no Diário de Notícias. Usou como a pena a longa citação: Merton & Lazarsfeld, 2002.
mote um questionário feito para o público Sobre Cantril e Allport, ver:
Douglas, 2004. É interes-
argentino, que perguntava se convinha o “[locução com ritmo normal] Um locutor sante notar que Theodor
uso da gíria, das linguagens familiar e re- do Repórter Esso não pode ser um papagaio Adorno, ao ir para os EUA,
gional por parte dos locutores ou speakers, ou máquina de repetição. Tem que ser um trabalhou na mesma insti-
tuição que Lazarfeld e dali
como eram chamados então lá e cá. Mário intérprete das notícias que lê. A voz é um vieram vários textos seus
de Andrade usa como exemplo brasileiro dom maravilhoso que deve ser aproveitado sobre o que ele chamará
depois de indústria cultural.
o rádio carioca, dizendo que o tratamento em toda a sua extensão. Equivale à cor em
5 Gravação com instruções
dado ao ouvinte é feito usando o “você”, suas fortes, fracas, moderadas, excessivas da UPI gravadas por Heron
ou o “amigo ouvinte”, uma “familiaridade ou impressionantes tonalidades. O som Domingues.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011 79


presta-se admiravelmente a ser trabalha- “sérias”. Nesse sentido, a escuta atenta das
do. Comparemos esse quadro sonoro de gravações dos programas radiofônicos traz
5 minutos que é o Repórter Esso com o uma série de significações para além do
quadro pictórico de uma batalha. [ritmo da texto em si. Isso serviu, por exemplo, para
voz é mais acelerado e marcado] A visão ultrapassar certos limites impostos pelos
geral é impressionante. Tanques avançam manuais ou convenções predeterminadas
uns contra os outros, e despejam cargas que o próprio meio impunha. Veja-se um
explosivas enquanto a infantaria, armada exemplo tirado do radioteatro. Embora
de bazucas e lança-chamas, agachada corre não se evitasse falar sobre o adultério nas
em direção aos postos avançados. O céu novelas, evitava-se a palavra “amante”.
tem nuanças avermelhadas. Aviões riscam Floriano Faissal, antigo diretor do setor
o espaço e outros destroçam-se no ar. As “Rádio Teatro”, disse, em 1976:
cores desses elementos são fortes e realistas.
[ritmo da voz fica mais relaxado e lento] “Tinha coisas que eu não deixava dizer no
Mas… à esquerda, na paisagem, pode ser microfone. Por exemplo, ‘Aquela mulher
deslumbrado um bosque pacífico de cores é sua amante’, eu não deixava dizer. Não
suaves, e que contrasta com a violência da dizia! ‘A amante’, no termo aplicado, como
cena. [volta ao ritmo normal] O som da sua agressão, no termo pejorativo, eu não dei-
voz, ao descrever o rugir da batalha, deve xava dizer. Eu dizia ‘amante’ no lírico, num
ser forte e tão violento quanto os fragores do poema, os amantes, e tal e coisa, etc. num
combate. Mas se você se detiver na descrição poema. Mas ‘aquela mulher é sua amante’,
do bosque, não poderá esquivar-se a suavizar ‘você tem uma amante’, eu não dizia nunca.
as vibrações da sua voz” (Domingues, s.d.). Isso porque as crianças estavam ouvindo
o rádio. […] ‘Você tem uma ligação com
A locução radiofônica, portanto, era essa mulher’, você não entendeu que essa
extremamente valorizada, como mostra o mulher é sua amante? É! É a mesma coisa,
trecho acima, e ultrapassava o simples limite e não vai dizer… já imaginou? Porque é
do verbal. A velocidade com que se fala e o uma coisa terrível! Então, nós tínhamos
tom da voz são ferramentas importantes na um cuidado extraordinário com o linguajar,
transmissão de uma afirmação. Além disso, porque não constrói nada o palavrão [sic].
há outros elementos: o uso de músicas e/ Não tem verdade”6.
ou sons de fundo (chamado BG pelo meio
radiofônico) pode ajudar a criar um todo Note-se que o que estava sendo “cuida-
significativo mais complexo que a simples do” não era a aparição ou não da questão do
mensagem verbal, isto é, uma mensagem adultério em si, mas como ele era chamado,
poética, situada num espaço artificialmente pois tal “palavrão” iria adentrar milhares
composto, diferente do espaço da escrita de lares Brasil afora. Não obstante, eram
e ultrapassando o simples limite do oral. frequentes histórias com esses elementos
Assim sendo, a locução radiofônica está em novelas e em peças curtas, como nos
num espaço intermediário entre o escrito e programas Atire a Primeira Pedra e Que
o oral puros. Paul Zumthor (2000, pp. 16-7), o Céu me Condene.
um dos que perceberam essas questões, fala
desses extremos oral/escrito mostrando que
“importa defini-los bem claramente” e que
“a maior parte dos fatos se situa ao longo de O HUMORISMO, A LOCUÇÃO
uma escala que leva de um termo extremo a
6 Depoimento dado a Louri-
val Marques para a come-
um outro”. Isso é importante para mostrar MIXORDIOSA E A POLÍTICA
moração dos quarenta anos que a mensagem humorística, para ficarmos
da Rádio Nacional. Para uma dentro de nosso tema, valeu-se de encontros Resumindo o cenário acima, a agenda do
análise desses depoimentos
ligados à memória de seus e desencontros de diversos recursos para rádio no Brasil continha questões diversas
depoentes, ver: Pinto, 2006. além do oral e das normas radiofônicas como a da identidade nacional, o cuidado e

80 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011


a valorização da locução e a condenação de Pode até a mula mancar
algumas palavras ainda que se vislumbrasse que eu vou a pé pra lá”.
as ideias por trás delas. Os programas humo-
rísticos parecem ter se servido justamente Musicalmente, a gravação se assemelha
(mas não exclusivamente) desses elementos a muitas outras de seu tempo. A letra, por
para tensioná-los, distendê-los, invertê-los, sua vez, tem uma mensagem simples: cita
mas sem sair desse confinamento ideal onde três bairros do Rio de Janeiro, Irajá, Rocha e
os debates parecem querer conduzir o rádio. Jacarepaguá, onde um homem se dispõe a ir
Um programa como o PRK-30, produzido encontrar-se com sua cabrocha. Para mostrar
por Lauro Borges, foi descrito como tendo sua disposição, afirma que irá mesmo se “a
um “trabalho de demolição dos processos mula mancar”, ou seja, mesmo que haja
vulgares de que ainda se lança mão em nosso dificuldades, pois o que ele quer “é rosetar”.
meio para fazer broadcasting: a terrível con- O problema, para muitos, parecia estar no
fusão de anúncios, o entusiasmo mercenário duplo sentido que a palavra “rosetar” con-
na adjetivação dos produtos, […] Lauro o tinha. “Rosetar” pode significar usar as es-
faz sem apelar para a grosseria, sem perder poras, o que parece ser coerente com a ideia
a sua dignidade de homem educado”7. Lauro de estar montado em uma mula (ainda que
Borges parecia estar atento a essa agenda, esta manque). Contudo, a palavra também
ficando seu programa conhecido como pode ser interpretada como um eufemismo
dono de um humor que não era “vulgar”. para o ato sexual e, pela reação de público
No entanto, outros programas de grande e crítica, essa dubiedade chamou a atenção
sucesso tocaram em pontos potencialmente para a música e, uma vez gravada e lançada,
sensíveis da sociedade daquele tempo no provocou grande reação. O público passou
que se referia à política. Para isso, faz-se a cantá-la muito e o meio radiofônico se
necessário a apresentação de uma marcha colocou contra a sua divulgação. O disco,
carnavalesca do carnaval de 1947. aparentemente, foi recolhido8. Mas – isso
é importante – o meio radiofônico não
deixou de usá-la, especialmente pelo viés
humorístico.
AS CRÔNICAS DA MULA MANCA Em 1946, nos teatros do Rio, encenaram-
-se, com maior ou menor duração, algumas
Em 1946, Jorge Veiga, o caricaturista do revistas cujo início do nome era “Eu Quero
samba, gravou um disco de 78 RPM que É…” e que ficaram associadas a certos acon-
continha a marcha “Eu Quero É Rosetar”, tecimentos pouco felizes daqueles tempos em
de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira. que Getúlio Vargas havia saído do poder e o
Na introdução, depois de uma melodia general Dutra ainda não havia conseguido
harmonizada para metais, ouvia-se uma estabilizar-se nele. A primeira foi Eu Quero É
percussão imitando o trote de um cavalo Movimento, durando apenas duas semanas e
– ou uma mula, para ficarmos dentro do coincidindo com um quebra-quebra movido
tema. Logo em seguida, Jorge Veiga canta por populares insatisfeitos com a alta do
a seguinte letra: custo de vida no Rio de Janeiro e que Dutra
7 Matéria publicada em O
não conteve a tempo. Se a peça nada tinha Globo em 21/10/1044, apud
“Por um carinho seu, minha cabrocha a ver com a alta de preços, pelo menos deve Perdigão, 2003, p. 64.
Eu vou a pé a Irajá ter servido de inspiração para outra, criada 8 Num programa de 1956,
Que me importa que a mula manque na virada para 1947, Eu Quero É Confusão, chamado O Horário dos
Cartazes, Jorge Veiga disse
Eu quero é rosetar também de pouca duração (Paiva, 1991, pp. que seu maior sucesso foi
522-8). No entanto, em janeiro de 1947, “Rosetar, porque o disco
não saiu e abrangeu o Brasil
Faço qualquer negócio aparece a revista Eu Quero É Rosetar, que inteiro”. A apresentadora do
com você, cabrocha continha a marcha de mesmo nome. A revista programa, a cantora Marle-
ne, confirma, dizendo que,
tanto faz ser lá no Rocha logo acabou. A música, por outro lado, foi em seu tempo de crooner,
Ou Jacarepaguá “a marcha mais cantada e mais furiosamente ela tinha de cantar a música.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011 81


executada […], de sentido dúbio e por isso
mesmo preferida pelo povo” (Efegê, 1985,
p. 327).
Do ponto de vista político, essa música
apareceu em meio às eleições de janeiro
de 1947 e antes do chamado “Carnaval da
Paz”. Para as eleições, o Partido Comunista
Brasileiro buscava eleger os candidatos da
chamada Chapa Popular. No carnaval, esta-
beleceu intensas relações com o “mundo do
samba” (Guimarães, 2009). Naquele ano, o
Partido teve grande participação na organi-
zação dos preparativos da festa por meio do
seu jornal Tribuna Popular. Além disso, em
19 de janeiro daquele ano, houve eleições
para governadores, deputados estaduais,
prefeitos e vereadores. O sucesso da música
foi parodiado pelo Partido, cujo título ficou
Eu Quero É Votar, com a autoria da letra
convenientemente atribuída ao povo:

“Por um comício teu, querido Prestes


Eu vou até o Irajá
Que importa que a intriga aumente
Eu quero é te escutar

Enfrentou qualquer perigo


Mas eu quero é te escutar
Seja na Praia do Russel ou em Jacarepaguá
Podem os reacionários
Querer nos atrapalhar
A vitória é de Prestes e da Chapa Popular
Que importa que a intriga aumente
O que eu quero é votar” (apud Guimarães,
2009, p. 167).

Não se sabe o quanto o governo tenha


desgostado da letra, mas é sabido que o
Partido voltaria à ilegalidade pouco depois,
e a Tribuna Popular seria empastelada.
A música, por sua vez, tornou-se alvo
de críticas e paradigma de referência a
composições sem inspiração em alguns
programas radiofônicos. Em um programa
de variedades chamado Rádio Almanaque
Kolynos (1947) desse ano, Paulo Gracindo,
seu locutor, refere-se tangencialmente a ela,
dizendo: “Quem é que perde tempo hoje
em compor melodia tão delicada e bonita?
Ninguém! Hoje em dia todo mundo quer é
rosetar!”. A indisposição para com a música

82 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011


havia sido grande mesmo antes do carnaval quem quiser, pode aprender
daquele ano. Aurélio de Andrade, lendo [‘Eu Quero É Rosetar’]
outro script radiofônico para o programa Quem for atrás de mim vai se danar
Aquarelas do Mundo, diz: sem ser jiló sou de amargar (2x)
que me importa se a mula manque, eu quero
“Outra coisa que tem contribuído para o des- [é rosetar (2x)
prestígio do carnaval carioca é a brutalidade, [não identificada]
é a licenciosidade das canções chamadas Benedito, caiu Minas Gerais, comeu,
carnavalescas, como esta, por exemplo, [comeu, comeu demais
que tantas discussões tem suscitado: [Nuno Xô, Benedito, tá sorto
Roland canta ‘Eu Quero É Rosetar’]. E comeste mais que os gafanhoto.
a culpa cabe única e exclusivamente aos [‘Pirata da Perna de Pau’]
compositores profissionais e às fábricas de O Prestes é o pirata da perna de pau
gravação de discos de incluírem em seus do olho de vidro da cara de mau (2x)
repertórios de carnaval músicas com dou- Sua galera tem comunistas em profusão
ble sens tão diretos. Entretanto, o povo, os gente que espera uma boa colocação
bons carnavalescos, repudiam tais melodias mas um dia fecharam o partido,
e consagram definitivamente aquelas que esses mesmos comunistas virão gritando
pelo seu ritmo de fundo verdadeiramente [do alto da popa
carnavalesco lhes tocam as cordas sensíveis ‘Opa, não sou comunista, não!’
do espírito como esta magnífica marchinha [‘Coitadinho do Papai’]
de João de Barro, um compositor da Velha Nós queremos saber o que é que o velho
Guarda [Nuno Roland canta ‘Pirata da Perna [faz (2x)
de Pau’]”9. já faz mais de um ano e o país disso não sai”
(Alvarenga e Ranchinho, 1947).
De um lado, a associação à política.
De outro, a censura por parte do meio Ao se ouvir a gravação, notam-se os
radiofônico. O humorismo se apropriou aplausos ao fim, sugerindo grande aprova-
de músicas como essa em várias ocasiões, ção por parte do público. Um dos motivos,
aproveitando-se daquilo que é comum a certamente, era o domínio do repertório
todos “pelo deslocamento, pela inversão ou tanto musical quanto político e a cumplici-
pela transposição […] dos espaços públicos dade entre artistas e ouvintes na crítica aos
através do imaginário privado como dos personagens e situações referidos. Note-se
espaços privados através do imaginário que o humor da dupla não parece ter favori-
público” (Saliba, 2002, p. 97). Voltemos tismos em relação à política de seu tempo.
aos programas. Do ex-ditador Getúlio Vargas ao comunista
Alvarenga e Ranchinho, também Prestes, passando por Benedito Valadares,
chamados de “Os Milionários do Riso”, mostraram personagens políticos “sérios”
estrearam um programa semanal seu na numa história divertida, isto é, “a paródia
Rádio Nacional do Rio de Janeiro logo após estapafúrdia visava transmutar o agônico
o carnaval de 1947. O programa da dupla no pitoresco” (Saliba, 2002, p. 290).
era um híbrido entre musical e humorístico Alvarenga e Ranchinho, no entanto,
(como vários outros desse período, aliás). pouco mudaram sua forma de apresentação
Duas semanas após a estreia, cantaram ali musical para se valer dessa marcha como
uma paródia dessa e de outras músicas, mote para o humorismo, mas esse não é o
cujos títulos estão indicados entre colchetes: caso de outros humoristas. José Vasconcelos
também fez referências impertinentes a ela
“[‘Prenda Minha’] como no caso de dar uma notícia ao estilo
Vou-me embora, vou-me embora pra São dos noticiários da época, começando pela
Borja, tenho muito o que fazer (2x) localização do macarrônico nome da cidade 9 A q u a r e l a s d o M u n d o ,
vou cantando esta marchinha, minha gente, de “Mula Manca”: 31/1/1947.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011 83


“Mula Manca: os pombos desta cidade de botina e não limpa ‘as’ orelha com
reunidos em praça pública só vivem a colherinha de chá, sou candidato do PMM,
dizer agora: ‘Eu quero é arrulhar’ [risa- o Partido da Mula Manca. Vocês nem
das]. Rodelinhas ao Molho Pardo: Foi conhece quem é o Zé da Ilha: o marrom-
terminada nesta cidade a nova película -glacê das cabrocha, o amigo do peito dos
portuguesa intitulada: Que importa que amigo do morro. O PMM é o meu partido
a mula não manque? Se ela não mancar, porque é o partido de todos aqueles que
manco eu!”10. não se importam que a dita cuja ande
dando mancadas por aí. O morro, meu
Na gravação, Vasconcelos se vale de amigos, é o lugar onde muita gente ignora
algumas diretrizes e convenções feitas pelo a necessidade que passamos. Os nossos
Repórter Esso: localiza a origem da notícia. cachorros, coitados, não têm nem poste.
Faz a locução de modo apressado, como Isso é uma miséria! [risadas] Precisamos
se mostrasse algo emergencial. Ao citar os elevar o morro à categoria de ‘vivo’. Mor-
personagens, no caso os pombos e os portu- ro, não, vivo, sim. Não podemos admitir
gueses, usa a voz caricata. Assim como no que o morro tenha que ser toda a vida
caso do termo proibido “amante”, não cita esta subida. Transformaremos o morro em
o título da marcha original e nem a canta. uma descida! E o samba, meus amigos,
Toda essa locução “séria” em desacordo o que que há com o samba? Mangueira,
com as notícias absurdas, somadas à men- onde é que está teus tamborim, imagina!
ção indireta da marcha, acaba provocando Nós precisamo curtivar o samba, a maior
o riso pelo “solavanco mental”11; de novo, riqueza que nós temos pra exportar para o
valendo-se da cumplicidade do ouvinte, estrangeiro. Lá está nossa grande Carmen
que compartilha dos símbolos ali expostos. Miranda dando provas de que o samba é
Silvino Neto, produtor do programa a nossa arma. Lá está ela mexendo com
Hotel de Pimpinela, onde ele representava as cadeira enquanto eles ficam mexendo
os diversos personagens com vozes diferen- com os sofá, o que é que há? [risadas]
tes – atributo comum dos humoristas desde (Anastácio) Mas escuta uma coisa: mas o
pelo menos Cornélio Pires nos anos 20 –, que é que ele quer com esse discurso, hein?
criou para o programa de 16 de janeiro de (Pimpinela) Ora, ora, ora, que pergunta!
1947 o “hóspede” Zé da Ilha, candidato Imagina, se ele não importa que a mula
do PMM – Partido da Mula Manca. Numa manca, o que é que ele quer?”12.
conversa entre Pimpinela, dona do hotel, e
Seu Anastácio, um hóspede, ela pega um Se a fala transcrita em texto parece en-
manuscrito do político e lê. A performance graçada, há uma boa parte da performance
do humorista, lendo o texto em forma de que não pode ser capturada e compõe
discurso, faz relembrar um pouco o estilo intrinsecamente a ação humorística radio-
retórico de Getúlio Vargas, sonoridade fônica. Seu efeito ocorre, naturalmente,
bastante conhecida dos ouvintes daquele pelo que é ouvido, e não apenas lido.
momento, e traz uma série de afirmações Note-se que, nesse caso, todas as vozes
surreais que tornam a mensagem engraçada. são feitas por um único humorista, que vai
A transcrição, portanto, ainda está longe de mudando inflexões, gírias e tessituras para
10 Caricaturas, 1946. ser fiel à mensagem original, mas foi feita conseguir o efeito desejado. Geralmente
uma tentativa de aproximá-la, sem poluir chamada de “voz caricata”, o locutor se
11 O termo “solavanco men-
tal” é utilizado por Elias com marcações “[sic]” ao longo do texto; vale de timbres contrastantes com a voz
Saliba (2002, p. 98) para note-se também que os “erros” gramaticais normal (sua própria ou a de outra pessoa).
explicar a “passagem de um
sistema de referência para são parte integrante da personalidade dos Sonoramente, isso parece funcionar como
outro – sistemas coerentes personagens. uma espécie de “máscara”, causando o
em si mesmos mas mutua-
mente incompatíveis”. estranhamento de quem ouve, canalizado
12 H o t e l d e P i m p i n e l a ,
“(Pimpinela) Concidadões e concida- – espera-se – para o cômico. Assim, um
16/1/1947. deias: eu, o Zé da Ilha, que não dorme sotaque estrangeiro, um falsete ou um

84 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011


tom de discurso, naquele timbre, levarão
o ouvinte a imaginar um personagem
mais do que o locutor em si. É possível
que as deficiências da linguagem impli-
cassem também deficiências cognitivas
(Douglas, 2004, p. 108) sugerindo que os
personagens não fossem tão inteligentes
assim. Associar tudo isso a uma situação
política, como no caso do discurso de
“Zé da Ilha apud Pimpinela”, com todos
os absurdos, contradições e bobagens, é
criar um circuito (ou, melhor, um curto-
-circuito) na comunidade imaginada que
é o público radiofônico brasileiro. Este
recebe simultaneamente e em tempo real
críticas, piadas, paródias e tantos outros
recursos que esses comediantes criam com
o repertório de seu cotidiano, frequente-
mente tensionando o que o próprio meio
radiofônico pensou como sendo a “língua
radiofônica” ideal. O subproduto dessas
críticas, infelizmente, fez mal à saúde de
seus criadores, em algumas situações13.
Silvino Neto fez mais ainda com esse
tema. Mostrou Pimpinela, apaixonada
por um rapaz “gostosão”, se fantasiar de
“mula manca” para chamar-lhe a atenção.
Criou também uma mulher, zangada com o
marido, que o xingava de “parente da mula
manca” para desqualificá-lo. Manteve os
mesmos personagens, mas mudando o nome
do programa para Teatro Pulgueiro, disse
que esse é “o teatro que não se importa que
a mula manque”. Ali, fez uma imitação de
Getúlio Vargas e Hugo Borghi, inimigos
políticos, em forma de desafio musical,
em que Getúlio termina cantando a infame
marcha.
Apenas para constar: nem o inatacável
PRK-30 deixou de tirar proveito da mar-
cha. Promoveu o concurso “Onde Otelo
Trigueiro passou o carnaval?”, distribuindo
prêmios aos que acertassem uma das três
alternativas a seguir: a) na Áustria, apre-
13 Por exemplo, sátiras musicais
ciando as pirâmides do Engilto (sic); ou b) a políticos causaram, em
nos Alpes, a terra do cinema, assistindo às épocas diferentes, a prisão
de Freire Júnior, por Artur
corridas de Palermo; ou c) Brás de Pina, Bernardes, e Alvarenga e
caçando pernilongos. O segundo prêmio Ranchinho, por Getúlio Var-
gas, entre outros (Tinhorão,
era “Uma mula ex-manca, que mancou no 1978, pp. 74-6; Nepomuce-
carnaval, mas que já está completamente no, 1999, pp. 289).
restabelecida!”14. 14 PRK-30, 21/2/1947.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011 85


a ideia de uma mula manca associada à
O LEGADO DA MULA MANCA política e ao humor é “trazer para a praça”
(Bakhtin, 1984, p. 154), ou melhor, trazer
Aparentemente, a reação à marcha “Eu para o território não oficial do cotidiano
Quero É Rosetar” foi bastante intensa, tanto popular elementos da política e da própria
nos programas humorísticos quanto fora linguagem radiofônica. Lembrando nova-
deles. É irresistível pensar que há pouco mente de Mário de Andrade, pode-se dizer
tempo outro quadrúpede, a “Eguinha Po- que, talvez depois dessa movimentação em
cotó”, ocupou um espaço relativamente direção ao “mixordioso”, espera-se que o
grande nos meios de comunicação, agluti- vulgar possa se regenerar em algo de um
nando detratores e, claro, humoristas. Por nível mais alto. Afinal, se a música “Eu
trás dessa ideia veio, por exemplo, um livro Quero É Rosetar” apontou para o vulgar,
citando as “reflexões sobre a mediocridade deve ser lembrado que, em última análise,
que assola o Brasil”15, uma espécie de eco o personagem busca a felicidade e o bem-
da produção de Sérgio Porto e seu Febea­ -estar, isto é, o mesmo objetivo do discurso
pá – Festival de Besteiras que Assola o “oficial”. O humor pareceu valer-se da
País. Chama a atenção o fato desses dois cumplicidade do ouvinte tanto no que se
momentos escolherem quadrúpedes para refere ao conhecimento desse conteúdo
símbolos de “licenciosidade” (lá) e de como aos personagens atingidos pelos
“mediocridade” (aqui). Difícil entender o “respingos” desse humor. Voltando a Marc
porquê dessa escolha, mas Bakhtin (1984, Bloch, vê-se que o programa humorístico
p. 78) nos dá uma pista: “O asno é um dos enquanto documento tem seu vocabulário:
mais antigos e duradouros símbolos do “precioso, sem dúvida, entre todos; mas,
estrato material corporal mais baixo, que como todos os testemunhos, imperfeito;
15 Subtítulo do livro Brasileiros simultaneamente degrada e regenera”. portanto, sujeito à crítica”. É preciso,
Pocotó (Pires, 2004). Portanto, sugerimos que trazer para o rádio portanto, conhecer melhor esse objeto.

BIBLIOGRAFIA

ADORNO, T. W. “On the Fetish-Character in Music and the Regression of Listening”, in A. Arato &
E. Gebhardt (eds.). The Essential Frankfurt School Reader. New York, Continuum, 1998 [1938],
pp. 270-99.
ADORNO, T. W.; & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos Trad. G. A.
Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985 [1947].
AGUIAR, R. C. Almanaque da Rádio Nacional. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2007
ANDRADE, M. “A Língua Radiofônica”, in O Empalhador de Passarinho. 3a ed. São Paulo, Martins/
INL, 1972 [1940], pp. 205-10.
BAKHTIN, M. M. Rabelais and His World. Trad. H. Iswolsky. Bloomington, Indiana University Press,
1984 [1936].
BLOCH, M. Apologia da História ou O Ofício de Historiador. Trad. A. Telles. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 2002 [1949].
CANCLINI, N. G. Consumidores e Cidadãos: Conflitos Multiculturais da Globalização. Trad. M. S. Dias.
7a ed. Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 2008.
CASÉ, R. Programa Casé – O Rádio Começou Aqui. Rio de Janeiro, Mauad, 1995.
DOMINGUES, H. A História do Repórter Esso [cassete]. Rio de Janeiro, Collectors, s.d.
DOUGLAS, S. J. Listening In – Radio and the American Imagination. Minneapolis, Minnesotta Press, 2004.
EFEGÊ, J. O Carnaval Carioca Através da Música (vol. 2). Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1985 [1978].

86 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011


FERRARETO, L. A. Rádio – O Veículo, a História e a Técnica. 2a ed. Porto Alegre, Sagra Luzzatto, 2001.
GOLDFEDER, M. Por Trás das Ondas da Rádio Nacional (Coleção Estudos Brasileiros, vol. 47). Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1980.
GONTIJO, S. A Voz do Povo – o Ibope no Brasil. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996
GOULART, S. Sob a Verdade Oficial: Ideologia, Propaganda e Censura no Estado Novo. São Paulo,
Marco Zero, 1990.
GUIMARÃES, V. L. O PCB Cai no Samba: os Comunistas e a Cultura Popular 1945-1950. Rio de Janei-
ro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2009.
MCCANN, B. Hello, Hello Brazil – Popular Music in the Making of Modern Brazil. Durham, Duke
University Press, 2004.
MERTON, R. K. & LAZARSFELD, P. F. “Comunicação de Massa, Gosto Popular e a Organização da
Ação Social”, in Teoria da Cultura de Massa. 6a ed. São Paulo, Paz e Terra, 2002 [1948], pp.
109-31.
NEPOMUCENO, R. Música Caipira – da Roça ao Rodeio (Coleção Todos os Cantos). São Paulo,
Editora 34, 1999.
PAIVA, S. C. Viva o Rebolado! Vida e Morte do Teatro de Revista Brasileiro. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1991
PERDIGÃO, P. No Ar: PRK-30! O mais Famoso Programa de Humor da Era do Rádio. Rio de Janeiro,
Casa da Palavra, 2003.
PINTO, T. A. “Rádio, Música e Memória: Reflexões sobre a Música Popular Brasileira, o Auge da Rá-
dio Nacional e a Construção de suas Narrativas na Década de 1970”, in Anais. VII Congresso
IASPM-AL, 2006. Havana. Casa de las Américas, 2006, p. 43.
PIRES, L. Brasileiros Pocotó: Reflexões sobre a Mediocridade que Assola o Brasil. São Paulo, Panda
Books, 2004.
SALIBA, E. T. Raízes do Riso – a Representação Humorística na História Brasileira: da Belle Époque aos
Primeiros Tempos do Rádio. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
SILVA, J. L. D. O. A. D. Rádio: Oralidade Mediatizada – o Spot e os Elementos da Linguagem Radio-
fônica. São Paulo, Annablume, 1999.
TINHORÃO, J. R. Música Popular – do Gramofone ao Rádio e TV (Coleção Ensaios, vol. 69). São
Paulo, Ática, 1978.
ULANOVSKY, C.; MERKIN, M.; PANNO, J. J. & TIJMAN, G. Días de Rádio (1920-1959) (vol. 1). Buenos
Aires, Emecé, 2004.
VELLOSO, M. Mário Lago: Boemia e Política. 2a ed. Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas,
1998 [1997].
ZUMTHOR, P. Performance, Recepção, Leitura. Trad. J. P. Ferreira & S. Fenerich. São Paulo, Educ,
2000 [1990].

Gravações de programas de rádio do Acervo Collectors

AER204 – PRK-30 no 1
AER227 – Hotel de Pimpinela no 1
AER243 – Rádio Almanaque Kolynos no1
AER283 – Alvarenga e Ranchinho no 2
AER360 – O horário dos cartazes
AER400 – Depoimento de Saint Clair Lopes b
AER330 – A história do Repórter Esso
AER399 – Depoimento de Floriano Faissal no 2
AER579 – Aquarelas do Mundo no 13

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2010-2011 87


talvani lange

TALVANI LANGE
é doutor em Ciências
da Comunicação
pela ECA-USP.
RESUMO

Baseado em pesquisa bibliográfico-documental e entrevista, este texto


apresenta uma reflexão teórica e aplicada sobre as relações do humor na
publicidade com o jornalismo impresso. A intertextualidade é fator pre-
ponderante da análise nessa relação. Para tanto, uma publicidade impressa
na revista Veja de fevereiro de 1994 é tomada como um exemplo para os
desdobramentos neste artigo.

Palavras-chave: humor, publicidade, jornalismo impresso, discurso.

ABSTRACT

Based upon documentary library research and on interviews, this text presents
a theoretical reflection applied to humor in advertising and its relations to the
printing press. Intertextuality is a paramount factor in analyzing those relations.
To carry out that analysis and to theoretically develop this article, a print ad of
Veja magazine of February 1994 edition is taken as an example.

Keywords: humor, advertising, printing press, discourse.


“Humor é um meio de obter prazer apesar
dos afetos dolorosos que interferem com
ele; atua como um substitutivo para a
geração desses afetos, coloca-se no lugar
deles” (Freud, 1977, p. 257).

screver e efetuar análise sobre o humor é uma

tarefa contraditória e sem graça, pois, ao racioci-

narmos sobre ele, o gracejo inerente a uma piada

ou anedota é minimizado pelo ímpeto da despesa

psíquica na associação sígnica de ideias. O riso

freudiano, por exemplo, tem a característica de apresentar a

economia da despesa do raciocínio, como elemento intrínseco

para sua configuração no indivíduo. É também operado sob

os movimentos de deslocamento e condensação – semelhante

à formação dos sonhos. Deslocamento porque a significação

entre o objeto referente é modificada com novas associações

de repertórios pertencentes a outras esferas de produção de

sentido desconsideradas no conteúdo manifesto. Nesse refe-

rencial psicanalítico, o riso tem, portanto, seu acesso a um

conteúdo latente, deslocado de sua forma/expressão primária.

É condensado devido ao caráter econômico, com força centrí-

peta de aglutinação de repertórios ocultos e manifestos. Estas

operações – deslocamento e condensação – proporcionariam

prazer na decodificação de uma mensagem, sob a economia


da despesa do raciocínio e do afeto junto Num estágio posterior, há a configuração
a uma dada situação passível da experi- da compaixão efetuada por nós em relação
ência humana. à pessoa vítima do embaraçamento. A partir
Freud (1977) cita, em seu estudo sobre daí, de acordo com as reações emocionais
os chistes, o comentário de um condenado da vítima, é que pode ser verificado junto
à morte, em uma segunda-feira – à véspera ao receptor as diferentes intensidades de
de sua execução –, de que esta era uma humor e do cômico na receptividade sígnica
ótima maneira de começar a semana. O do acontecimento. Quanto mais a reação
exemplo é citado para ilustrar a procura for inusitada e inesperada, constatando
do prazer humorístico por meio de uma certa despreocupação da vítima para com
economia de afetos, desviando a possi- o ocorrido, mais será enfatizado o aspecto
bilidade de sofrimento. Com isso, o ego humorístico no processo decodificatório.
seria enaltecido afirmando o “triunfo do Há uma economia na despesa de afeto no
narcisismo” acompanhado da “invulne- espectador. A compaixão não será mais
rabilidade do ego”. O ouvinte/receptor necessária porque a vítima não está se
de um enunciado como esse teria um importando com a situação desagradável
prazer cômico configurado no riso, es- vivenciada.
tabelecendo também uma economia de Para Freud vários afetos, além da com-
compaixão. Ao estabelecermos a empatia paixão, podem ser alvos desse princípio
decodificatória do enunciado, nota-se que econômico, dentre os quais destaca a raiva,
a possível compaixão junto à pessoa alvo a dor, a ternura, etc. Todos esses aspectos
de um suposto sofrimento não é necessá- de economia – os chistes com a inibição
ria. Isso porque a vítima não demonstra, da despesa psíquica, o cômico relacionado
verbalmente, a preocupação com o afeto. com a ideação, imaginação (expectativa)
Dessa maneira o grau empático do pra- e o humor com a economia da despesa do
zer cômico é acentuado mediante essa sentimento – têm por objetivo causar uma
economia da despesa do afeto, pois “a certa euforia de espírito e reavivamento no
economia da compaixão é uma das mais sujeito. A euforia que Freud (1977, p. 265)
frequentes fontes do prazer humorístico” aborda é aquela remetida a
(Freud, 1977, p. 259).
Ao analisarmos alguns anúncios pu- “[…] um estado de ânimo comum em nossa
blicitários, poderíamos considerar que o época de vida quando costumávamos ope-
aparecimento da economia da compaixão é rar nosso trabalho psíquico em geral com
notório em muitas criações que objetivam pequena despesa de energia – o estado de
o cômico. Um anúncio, ao representar difi- ânimo de nossa infância, quando ignoráva-
culdades diárias com as quais os indivíduos mos o cômico, éramos incapazes de chistes
se deparam, está também proporcionando e não necessitávamos do humor para nos
empatia com o consumidor-receptor. A sentir felizes em nossas vidas”.
publicidade pode demonstrar um possível
embaraçamento comum em muitas situa­ Para Freud, o prazer conseguido no
ções a que todos estamos submetidos, humor, nos chistes aconteceria por meio
como por exemplo: a) andar com o zíper das relações psíquicas entre o superego e a
aberto em uma solenidade festiva; b) o ato intervenção do ID (com acessos a conteúdos
falho de dizer “parabéns” ao parente de um e expressões inconscientes).
falecido; c) ser molhado na calçada por Vivemos em uma sociedade que, além
um carro quando ele passa por uma poça da busca do espetáculo, enaltece o entre-
d’água, etc. Na decodificação, quando tenimento nos mais variados veículos de
o receptor observa ou “lê” a narrativa, comunicação. A busca pelo prazer é, as-
ocorre certo nível de identificação, pois sim, um dos sustentáculos que movem os
todas as pessoas estão sujeitas a situação espectadores e leitores das mensagens mi-
semelhante. diáticas. Por mais que acadêmicos puristas

92 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011


tentem demarcar território quanto a campos de compra e venda de espaços/tempos
específicos nas ciências da comunicação, midiáticos ou podem tentar simplesmente
parece-nos que o sentido dessa separação se impor a vontade ideológica e partidária
tornou desconexo. As relações de mercado, dos editores ou de seus manipuladores.
de trocas simbólicas e de favores dissol- Nessas formas de veiculação, o humor é
vem qualquer tentativa de discernimento ingrediente recorrente, como fabulação
entre jornalismo e publicidade. Confiar nas retórica a fim de interesses latentes. O
sonhadas imparcialidades e objetividades humor pode, assim, potencializar o fetiche
do fazer jornalístico ficou alvo de ironia da mercadoria publicitária ou “jornalística”
e humor para os analistas dos discursos ao condicionar a economia da despesa de
midiáticos na sociedade do capitalismo raciocínio ou de afeto em suas mensagens.
tardio deste início de novo século, milênio. Reside aí a arma perversa desse entrete-
Títulos, subtítulos e fotografias são ex- nimento decodificatório, pois algumas
pressos em meios impressos, convocando indagações sobre seu uso são pressupos-
os leitores ao partidarismo da opinião, tamente economizadas. Ou seja, por que
que anula a diferença e o contraditório sua utilização? Para qual finalidade? Para
à ideologia dominante dos que regem os quem é destinada? Qual o efeito de sentido
bastidores dos veículos de comunicação. proposto? Essas perguntas são ocultadas
Um enunciado chistoso sobre o universo da do processo, como um feitiço de gás ine-
política(gem), exercida por representantes briante que camufla e refrata as condições
de partidos, pode apresentar conotações de produção do discurso. Muitos atores que
de duplo sentido ou nonsense, podendo faziam parte da enunciação estão omissos
ser usado como forma de agendamento na materialidade do discurso político ou
das discussões do(s) público(s) leitor(es). comercial-humorístico. Considerando
Não raro, as corporações pegam carona que todo enunciado midiático possui um
nessas picardias, na tentativa de oferecer caráter ideológico que lhe é singular, as
memorização de marca, de empatia na chamadas e as disposições dos conteúdos
decodificação prazerosa de um anúncio verbo-imagéticos são, portanto, intrinse-
que se mistura com o evento “jornalístico”. camente parciais no jornalismo e, muitas
As faces do risível e do humor na vezes, com indícios de comprometimento
mídia podem ser percebidas de diferentes com anunciantes e formadores de opinião
formas. O leitor se depara com títulos em um grupo social ou comunidade.
em jornais que despertam a atenção pela
sua perspicácia na tentativa de prender a
atenção de forma humorística, associando
muitas vezes conteúdos verbais com o uso O PODER DA CALCINHA NO
de fotografias e/ou caricaturas chistosas.
Esses enunciados produzem um efeito JORNALISMO E A MARCA
veridictório para a correspondência aos
fatos que estão em jogo na atividade jor- PUBLICITÁRIA “LÍLIAN. SE EU
nalística. Longe da audição democrática,
o jornalismo está preso às formações FOSSE VOCÊ, USAVA VALISÈRE” 1

ideológicas, de posicionamento político


1 Título de anúncio veiculado
atrelado às ações e relações de poder que Um exemplo memorável dessa relação
na revista Veja de 23 de
lhe são inerentes na hierarquia com que os foi uma campanha publicitária em mídia fevereiro de 1994 (edição no
cargos burocráticos são operados nas orga- impressa criada pela agência DM9 no 1.328, ano 27, no 3). Dispo-
nível em: http://acervoveja.
nizações midiáticas. Daí sua aproximação carnaval do ano de 1994 para a marca de digitalpages.com.br/home.
com a propaganda comercial. O agenda- lingeries (calcinhas) Valisère. aspx. Acessado em 12 de
julho de 2010.
mento temático proposto pelos editores Na mesma edição2 em que o anúncio foi
2 Revista Veja de 23 de fe-
é entrecortado por interesses variados. veiculado a capa da revista estampava uma vereiro de 1994 (edição no
Podem estar correlacionados à indústria foto colorida em plano contra-plongée (de 1.328, ano 27, no 3).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011 93


e contém o seguinte: “O X DA QUESTÃO”.
O posicionamento da letra “x” é mesclado
com a representação simbólica do “alvo” ou
de algum “erro” cometido. O “x” é destacado
pelo seu tamanho proporcionalmente maior
do que a fonte do título e também porque
está na cor vermelha, diferente do texto
verbal em amarelo. Além disso, o “x” no
enunciado se sobrepõe à imagem, ao ícone
feminino – a genitália da modelo Lílian
Ramos, na fotografia. Abaixo do título, há
o seguinte subtítulo em fonte de cor bran-
ca (vazada) sobre o fundo de cor azul: “A
Folia de Itamar no Carnaval”. O conteúdo
verbal no anúncio é também percebido em
três linhas de texto ao lado direito da foto
do ex-presidente, denotando em letras pe-
quenas (na cor branca sobre fundo escuro)
o seguinte: “O presidente e Lílian Ramos
no Sambódromo”.
Se recuperarmos a foto original e alguns
elementos de sua enunciação, notaremos o
depoimento do fotógrafo Marcelo Carnaval,
de O Globo, declarando que ficou mundial-
mente famoso pelo ângulo obtido naquele
momento, pois,

“No carnaval de 94, fui designado para


Fonte: revista Veja de 23 de fevereiro de 1994, edição no 1.328, ano 27, no 3 (disponível em: http:// acompanhar o presidente no Sambódro-
acervoveja.digitalpages.com.br/home.aspx; acessado em 12 de julho de 2010).
mo. Eu preferiria ter acompanhado uma
escola de samba, mas não tinha jeito.
baixo para cima), com o então presidente Eram cinco fotógrafos, de veículos dife-
da República Itamar Franco ao lado da rentes, seguindo o Itamar, mas ninguém
modelo Lílian Ramos. No camarote ela conseguiu fazer esse ângulo. Talvez esta
foi flagrada usando apenas uma camiseta seja minha foto mais conhecida, pois ela
florida. Ela estava sem vestimentas infe- rodou o mundo”3.
riores. Sua genitália era exposta às lentes
dos fotógrafos para, posteriormente, ser Embora não haja condições materiais
conhecida do público que tivesse acesso explícitas para efetuar o comprometimen-
àquele ícone feminino. O presidente usava to econômico da cobertura (considerada
camisa manga longa na cor azul-marinho e “jornalística”) do evento pitoresco com a
calça branca. Seu semblante era de alegria. indústria publicitária, algumas questões
Seus braços estavam para baixo, com as intertextuais entre a capa da revista, a
mãos segurando um objeto arredondado de “reportagem” e a publicidade impressa
cor bege na altura de sua cintura. A modelo junto às primeiras páginas são de inte-
acenava sua mão direita para o alto. Seu ressante análise.
semblante era de vibração e garra, pois O anúncio apresenta a fotografia co-
3 Relato disponível em: demonstrava estar ovacionando, com gritos lorida em primeiro plano de uma cintura
http://www.abi.org.br/pa- de torcida no camarote do sambódromo. O feminina de pele clara, usando calcinha de
ginaindividual.asp?id= 368.
Acessado em 14 de julho
título, em caixa alta, da matéria de capa da cor branca em formato de “asa-delta” com
de 2010. revista ocupa a sua horizontalidade inferior flores bordadas, entrecortadas por textu-

94 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011


ras diferenciadas, com alguns pequenos causal entre uma possível “encomenda”
orifícios decorativos. Um título em fonte publicitária junto ao jornalismo impresso,
serifada na cor preta perpassa sua vertica- sabe-se que tal relação é bastante estreita
lidade, contendo o seguinte: “Lílian. Se nos dias atuais. Não raro o departamento
eu fosse você, usava Valisère”. No canto comercial de veículos de comunicação
inferior esquerdo está a logomarca do “facilita” determinadas coberturas de
anunciante – um brasão com três formas eventos, de acordo com os pacotes de
arredondadas, semelhante a um trevo de anúncios comprados a médio e longo
cor magenta, com o texto verbal Valisère prazo. O planejamento de campanha e de
na cor branca (vazada) em seu interior. mídia efetuado pelas agências para seus
Abaixo desse símbolo, mais uma vez o anunciantes pode exercer certa influência
título verbal do anúncio é reforçado em junto à política editorial de veículos de
letras menores do que o logotipo descrito. comunicação de massa. Nesse contexto
Ao lado direito, em fonte itálica (ainda são testemunhadas negociações ofere-
menor) na cor preta sob o fundo branco, cidas pelo departamento comercial do
há o texto verbal: “Lycra Sensations”. veículo, com o intuito de oferecer uma
No canto superior direito, verifica-se, quantidade “x” de anúncios, que incluem
como praxe de identificação de agências, a vantagem em obter uma reportagem
a criação assinada pela DM9. sobre determinada marca ou agregar uma
Torna-se intrigante constatar que o narrativa jornalística que possibilite a
anúncio é veiculado na mesma edição intertextualidade com a memorização do
que contém a capa descrita. Nesse viés produto/serviço.
cabe o questionamento sobre o fluxo de No caso da indústria de lingeries
influência na escolha dos assuntos de capa Valisère, a associação do anúncio criado
da revista. Embora seja difícil fazer o nexo pela agência DM9 com a capa é evidente.
Reside aí a aproximação do “jornalismo
propagandístico” com a publicidade e seus
espaços comprados na mídia. Há de se
considerar que os critérios de noticiabi-
lidade são “atravessados” por interesses
comerciais diversos. Os valores-notícia
estão também imbuídos das trocas info-
mercáticas que conduzem as atividades
nos media. “gatekeeper” e “newsmaking”
são termos explorados por teóricos do
jornalismo (Wolf, 2002) para designar as
arbitrariedades dos “porteiros” editores
ao decidir o que deve e o que não deve
entrar para publicação. Com isso há, de
certa forma, uma fabricação de notícias
e, consequentemente, um agendamento
temático (agenda setting) proposto pela
mídia, (con)formada por/com essas rela-
ções de poder.
Outro aspecto interessante de análise
é que tal episódio ocorreu no período do
carnaval. O próprio evento também pode
ser concebido como linguagem. O pensa-
dor da cultura e da linguagem M. Bakhtin
Fonte: revista Veja de 23 de fevereiro de 1994: edição no 1.328,
ano 27, no 3 (disponível em: http://acervoveja.digitalpages.com.
(1999), em seu estudo sobre o riso, a paródia
br/home.aspx; acessado em 12 de julho de 2010). e a estética grotesca nas obras do médico

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011 95


escritor francês do Renascimento F. Rabe- conceito de carnaval: um “continuísta” e
lais, já enfatizava a linguagem do carnaval outro “circunstancialista”. Do ponto de
como oriunda de séculos anteriores, em que vista estrutural, a análise bakhtiniana da
a experimentação do cômico e do risível linguagem do carnaval em Rabelais pode
era o elemento de excelência na cultura ser considerada “continuísta”, com certa
popular. No Renascimento, entretanto, tal herança metafísica, de séculos anteriores.
cultura tinha maior destaque com as paródias Já a perspectiva circunstancialista é aquela
bíblicas, de inversão de conceitos e valores próxima da abordagem do antropólogo
relacionadas à hierarquia rígida da nobreza brasileiro Roberto Da Matta (1983), o qual
e do poder eclesiástico. No carnaval o rei descreve o carnaval como evento festivo cir-
se tornava bufão e o bufão era consagrado cunstancial, como parte integrante do statu
rei. As tradições da igreja eram subvertidas quo dominante. Embora certas inversões
frequentemente com a valorização do baixo- de valores sejam observadas no período, a
-material e corporal. Estaria na alteração da ordem é restabelecida após o evento, com os
forma/expressão o elemento desencadeador mesmos protagonistas e manipuladores das
de um novo conteúdo subversivo, que abriria estruturas políticas de poder na sociedade.
as portas do risível. O poder político era alvo O critério para delimitar se o episódio
de pilhéria no rito festivo do carnaval. O (presidente ao lado da modelo sem calcinha
caráter público do evento era outro aspecto no Sambódromo) pode se configurar como
de destaque. A praça pública era o lugar por valor-notícia é, intrinsecamente, questioná-
excelência das manifestações do humor vel devido à própria natureza do evento.
coletivo, onde não haveria atores principais Se o fato ocorresse em um ritual de cunho
ou secundários. Todos seriam participantes oficial, do mundo “sério” e burocrático
na alegria contagiante do riso. Sebe (1986) do meio político, talvez o assunto, então,
diferencia dois tipos de concepção para o causasse maior rumor. Desse modo, o que

Fonte: 3o Anuário de Criação do Clube de Criação de São Paulo, 1978 (disponível em: http://ccsp.com.br/anuarios/pop_pecas.
php?id=165, acessado em 17 de julho de 2010).

96 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011


interessa na análise desse discurso inter- este recorte possibilitou conferir alguns
textual não é o fato em si, mas as relações diálogos entre os sentidos implícitos nos
de tempo, espaço, seus atores e os recursos anúncios e as teorias da comunicação e da
expressivos utilizados para a produção dos psicanálise até aqui discutidas. O anúncio
efeitos de sentido na mídia. A narrativa é que Lamas indica integra o 3o Anuário
considerada não somente no plano infra- do Clube de Criação de São Paulo5. Em
textual, com os componentes materiais formato de página dupla de revista e em
visíveis das peças impressas, mas também monocromia (preto e branco), o texto
no plano intertextual, com as conotações verbal é composto pelo famoso título em
das mensagens conjugadas à análise dos fonte itálica e serifada na parte superior
pressupostos e condições implícitas para a esquerda da página – “Se eu fosse você,
produção desses textos midiáticos. só usava Valisère” – seguido por uma
Ao considerar as condições de produ- linha, abaixo e à direita, de referência ao
ção do discurso, certa recuperação histó- autor da frase: “Clodovil Hernandez”. Na
rica é efetuada. A audição de outras vozes parte inferior da página, segue um texto
constitutivas do discurso é possibilitada. de cunho testemunhal do estilista, apre-
Nesse sentido, ressaltamos a importân- sentando novos modelos de sutiãs para
cia de ouvir algum profissional da área o público feminino. O slogan do título é
de psicologia, uma vez que utilizamos também reforçado no texto testemunhal.
referenciais freudianos. Em entrevista4 Quanto ao caráter não verbal e icônico do
concedida ao enriquecimento qualitativo anúncio, a fotografia do estilista Clodovil
deste artigo, a psicóloga Selma Lamas, (vestindo terno de cor escura) mostra seu
do Hospital de Clínicas da Universidade olhar para a câmera em “plano americano”
Federal do Paraná, apresentou uma obser- com uma de suas mãos ao queixo. A foto
vação perspicaz da campanha, oferecendo ocupa a centralidade da página esquerda
uma interpretação atualizada dos chistes do anúncio de página dupla e confere
nesse discurso midiático – a percepção uma conotação aproximativa com o pos-
do detalhe, da falta, é apresentada por ela sível leitor da publicidade. Isso porque
na lacuna do texto verbal. Apontou, por a cumplicidade é conotada por meio do
exemplo, a campanha anterior, de 1978, em plano fotográfico que direciona o olhar
que o slogan da Valisère era semelhante. do fotografado à visão dos públicos con-
A única diferença verbal estava na palavra sumidores do anúncio. Na parte direita
“só”. Ou seja: “Lílian, se eu fosse você, só da página, quatro fotografias compõem
usava Valisère”. a quase totalidade da página. Duas mo-
Selma Lamas aponta: delos acima e duas abaixo apresentam
(vestidas e com os braços para cima) os
“[…] a palavra ‘só’ fica faltando, assim sutiãs citados no texto verbal. No canto
como a calcinha da Lílian. Logicamente, a inferior direito, o brasão e símbolo da
palavra ‘só’ só poderia ser usada se Lílian marca Valisère é caracterizado como
estivesse usando alguma calcinha. Então, a assinatura da peça.
falta do ‘só’ torna mais engraçado ainda o Ao considerarmos esse anúncio primário
uso deslocado, ou faltante do slogan. Além e a percepção do detalhe, notaremos que
do mais, o uso original da peça publici- o deslocamento não ocorre somente no 4 Entrevista concedida por
tária tinha como protagonista o Clodovil verbal, no “só”, ocorre também no objeto/
e-mail no dia 17 de julho
de 2010.
Hernandez, o que por si só era engraçado, ícone sutiã para a calcinha. As relações
5 Editado desde 1976, é
considerando-se a orientação sexual dele de tempo e de espaço no anúncio sofrem considerado uma referência
(ainda não havia o politicamente correto)”. modificações que conferem novos sentidos nacional e internacional da
“criatividade” profissional da
proporcionados pelo deslocamento dos área publicitária. O anúncio,
Longe de esgotarmos as possibilidades signos. Há um “rebaixamento” material e acessado em 17/7/2010,
está disponível em: http://
interpretativas ou, até mesmo, históricas corporal ao compararmos tal cronotopos ccsp.com.br/anuarios/pop
sobre a marca/produto lingerie Valisère, (tempo e espaço). Nessas condições dia- _pecas. php?id=165

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011 97


logadas com os referenciais bakhtinianos anúncio tornou-se alienado e perverso, pois
sobre a linguagem, encontram-se simila- economizou, de certa forma, as significações
ridades com as significações do riso e da ideológicas da esfera pública e política que
carnavalização nas obras de Rabelais, pois assolavam o país.
esse rebaixamento é próprio das expressões
utilizadas na literatura rabelaisiana em
Gargântua e Pantagruel.
No entanto, na análise dessa publi-
CONSIDERAÇÕES
cidade impressa, o rebaixamento ocorre
considerando a cultura oficial de tampar as
(IN)CONCLUSIVAS
“partes baixas”, reforçando as repressões
para o convívio em civilização. A sugestão Aprisionar ou fundamentar todas as sig-
no uso da calcinha seria, assim, um ato nificações do humor na mídia é uma tarefa
civilizado – em sintonia com o superego. impossível e (in)conclusa. Isso porque no
A maioria das religiões (cristianismo e humor há uma dança de signos que confere
islamismo, como exemplos majoritários) a relativização dos elementos eufóricos e
sempre conferiu uma conotação negativa disfóricos na sintaxe da conjugação dos
e/ou disfórica no trato dado às genitálias códigos culturais que habitam as convivên-
humanas. Nesse ponto, a psicóloga Lamas cias dos diversos públicos que decodificam
também destaca: tais mensagens. O discurso publicitário
não está presente apenas na materialidade
“Nos dois casos, então, há referência dos anúncios. Ele sempre está dialogando
à sexualidade/sexo. Fato que remete com outros textos, em tempos e espaços
imediatamente ao corpo, historicamente diferenciados.
considerado sujo, impuro, vil, inferior, A publicidade comercial difundida nos
desprezível, chulo… portanto, proibido meios de comunicação pode ser conside-
de aparecer, pois sua aparição é perigosa. rada parcial por natureza. Em sua fabu-
Essa referência remete a uma depreciação lação retórica ela apresenta um produto
do trágico, de personagens grandiosos e ou serviço a possíveis consumidores que
heroicos, ou seja, a aparição do desprezível podem simpatizar com os usos, benefícios
é tão significativa que há um decaimento e/ou diferenciais das mercadorias anun-
para a comédia”. ciadas no ambiente de marketing no qual
o jornalismo também está inserido. Nesse
Tal comentário é significativo na viés, as atividades de troca, de compra de
medida em que consideramos também a espaço e tempo na mídia são celebradas
enunciação e as condições ideológicas em como contrato entre publicidade e jornalis-
que a publicidade dialoga com o “evento mo. Nas variadas edições dos manuais de
jornalístico”. Na época em que houve a redação jornalística (como os dos jornais
veiculação da capa da revista, o país es- Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo),
tava, recentemente, se recompondo e se princípios norteadores devem, no plano
reestruturando dos escândalos políticos e ideal, guiar a atuação do profissional junto
de corrupção generalizada que levaram o à notícia e à reportagem. A ética profissio-
ex-presidente Fernando Collor de Melo ao nal é apregoada para tentar estabelecer a
impeachment. O então vice, Itamar Franco, objetividade, a clareza e a imparcialidade
despontou como sucessor imediato para a na cobertura de um fato/acontecimento.
governança da nação. Havia uma esperança Princípios que, por si sós, polemizam a
de renovação e mudança nos rumos da polí- atividade, principalmente sob a condição
tica nacional. A noticiabilidade da picardia ideomercática que acomete as indústrias
no sambódromo desloca a discussão do midiáticas.
plano público político para a esfera privada O uso do humor, do gracejo, de cari-
da vida do presidente. O riso convocado no caturas e chistes na atividade jornalística

98 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011


se assemelharia, portanto, à linguagem da de um afeto questionável nos receptores/
propaganda e da publicidade. O viés ideo- decodificadores das mensagens midiáticas.
lógico na mensagem seria economizado e Nesse âmbito, longe de oferecermos uma
mesclado ao entretenimento do risível. Es- resposta, a pergunta novamente é lançada:
sas condições favorecem o desenvolvimento qual seria o sentido desse riso?

BIBLIOGRAFiA

BAKHTIN, M. Rabelais and his World. Trad. Hélène Iswolsky. Indiana University press, Bloomington,
1984.
________. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o Contexto de Rabelais. Trad. Yara
Frateschi Vieira. São Paulo/Brasília, Hucitec/Universidade de Brasília. 1999.
________. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São
Paulo, Hucitec, 1999.
________. O Freudismo. Trad. P. Bezerra. São Paulo, Perspectiva, 2001.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo, Ática, 2000.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
FREUD, Sigmund. “Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente”, in Obras Psicológicas Completas.
Vol. VIII. Rio de Janeiro, Imago, 1977.
MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2000.
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
________. Cultura e Psicanálise. Trad. Wolfgang Leo Maar et al. São Paulo, Paz e Terra, 2001.
SEBE, José Carlos. Carnaval, Carnavais. São Paulo, Ática, 1986.
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. 7a ed. Lisboa, Presença, 2002.

•••

Acervo digital – Revista Veja: http://acervoveja.digitalpages.com.br/ home.aspx. Acessado em


julho de 2010.
Anuários do Clube de Criação de São Paulo disponíveis em http://ccsp.com.br/anuarios. Acessados
em julho de 2010.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 88-99, dezembro/fevereiro 2010-2011 99


chantal herskovic

CHANTAL
HERSKOVIC
é mestre em Artes
pela Universidade
Federal de Minas
Gerais.
RESUMO

Este estudo analisa a série animada Os Simpsons como um programa televi-


sivo de apelo crítico, que mostra uma visão irônica e satírica da sociedade
contemporânea, apresentando seu formato de desenho animado seriado
de comédia de situações para uma audiência juvenil e adulta. A série foi
escolhida como objeto de estudo por ser um marco na história da televi-
são, tornando-se a série de comédia há mais tempo no horário nobre e que
provocou a volta do desenho animado para esse horário tendo como foco
uma audiência mais madura. Analisando a série, é possível apontar que os
intertextos, as sátiras e as críticas à sociedade, assim como uma autocrítica
em relação à própria série, ou à mídia em que é veiculada, tornaram-se uma
de suas características principais.

Palavras-chave: televisão, seriado, mídia, desenho animado, sátira, paródia.

ABSTRACT

This study analyzes The Simpsons animated series – a sitcom in cartoon for-
mat appealing to both adult and juvenile audiences – as a television program
featuring criticisms which lampoon contemporary society. The Simpsons show
was chosen as the object of our study because it is a milestone in the history
of television for being the longest running primetime comedy series; and also
because it has spurred the primetime comeback of cartoons more oriented
to an adult audience. When analyzing the series, we can see that some of its
main characteristics are the meta-texts, satires and critiques to society, as well
as a self-criticism towards the series itself or towards the medium in which it is
transmitted.

Keywords: television, series, media, cartoon, satire, parody.


série Os Simpsons inaugurou uma nova etapa para o

seriado televisivo, na forma de um seriado animado

de comédia de situações, tendo como foco uma

audiência juvenil e adulta. Apesar de essa forma já

ter sido utilizada anteriormente em Os Flintstones,

o programa Os Simpsons inova em seu conteúdo. Criada por

Matt Groening e exibida pela emissora Fox, a série, em 2010,

completou 21 anos no horário nobre, tendo abordado diversos

temas. Conhecida por ser subversiva, ao contrário de outras que a

precederam, a série Os Simpsons vai além do humor espirituoso

e apresenta uma crítica e sátira da sociedade ocidental.

Esse desenho animado feito para um público norte-americano

acabou tendo um alcance global e, apesar de seu conteúdo con-

tundente e de seus produtores terem se inspirado numa tira em

quadrinhos alternativa, o programa atingiu as massas populares

e se tornou um ícone da cultura popular e da cultura da mídia.

A série é capaz de estabelecer pontos de vista, críticas ao

comportamento e sátiras da sociedade, através do desenvolvi-

mento de uma complexa estrutura narrativa. Ela é capaz de citar

a si mesma, sua própria indústria de entretenimento e a fórmula

das comédias de situações, utilizando diversos recursos, como a

paródia, a sátira, a intertextualidade e a metalinguagem.

Os personagens principais são os cincos integrantes da família

Simpson: Homer, o pai, Marge, a mãe, e os filhos Bart, Lisa e

Maggie, que moram em uma pequena cidade norte-americana

chamada Springfield. A cidade possui todas as características

de uma metrópole, e ao longo dos anos foi crescendo e se de-

senvolvendo, assim como o elenco da série e seus personagens.

A série Os Simpsons já criticou o capitalismo, o ultraindividua­

lismo e satirizou a sociedade contemporânea, ao mesmo tempo


que poderia ser qualquer cidade, a série
Imagem de surpreende ao satirizar aspectos sociais,
20 anos da políticos, sexuais e estéticos da cultura
ocidental contemporânea. Aborda assun-
série. Abaixo,
tos cotidianos e até mesmo sequestro por
a família alienígenas, partindo da cultura ocidental
Simpson: à crítica ao preconceito em suas diversas
Homer, Bart, formas, da pop art à arte conceitual. O
programa passa por diversos gêneros de

Reprodução
Maggie, Lisa e
ação e aventura, até suspense e drama.
Marge É um desenho animado apresentado sob
os mais diversos pontos de vista, enredos
em que fez apontamentos sobre aspectos e ideologias. Nunca houve nada similar
dessa mesma sociedade, como um sinal de na programação televisiva ocidental e na
alerta sobre o rumo que ela está tomando história da animação e dos seriados, tanto
e como seus indivíduos estão se afastando animados como em live-action1. O progra-
do conceito de cidadania e perdendo suas ma Os Simpsons é inovador em seu formato
identidades culturais. de desenho animado, em sua abordagem
Através de roteiros bem desenvolvidos, de assuntos diversos, da crítica social,
1 Live-action é o termo utiliza-
do para programas ou filmes a série consegue atingir diversas camadas sátiras e paródias, no desenvolvimento
feitos com atores reais. sociais e faixas etárias, e também diferentes e aprofundamento de seus personagens
2 O que resultou em produ- audiências, trazendo à superfície temas e dilemas e em seu elenco crescente, o
ções acadêmicas e publica-
ções, como, por exemplo,
como corrupção política e violência urba- que chama a atenção do olhar acadêmico
a abordagem crítica sobre na, ao mesmo tempo em que aborda assun- e o torna objeto de pesquisa em diversos
filosofia no livro Os Simpsons
tos como homossexualidade, os sistemas campos de estudo2.
e a Filosofia, de Aeon J. Sko-
ble, MarkT. Conard eWilliam dos planos de saúde públicos e privados e o Enquanto pai e filho (Homer e Bart)
Irwin, que tem como objeti- sistema de ensino deficitário. Além de fazer são individualistas, preocupados consigo
vo difundir o estudo dessa
área para leitores em geral uma leitura mais crítica da vida em família, mesmos, Marge, a mãe, é a mediadora da
e estudantes de graduação. com seus conflitos emocionais e desaven- família e, em algumas outras situações que
Esse é um exemplo de como
a riqueza de argumentos da ças, em Os Simpsons nenhum personagem envolvem a comunidade, a filha Lisa repre-
série pode resultar em des- é perfeito, e uma grande parte vive como senta uma alternativa para uma sociedade
dobramentos de pesquisas
sob o olhar sério da análise
indivíduos autocentrados e alienados dos que se encontra à beira da estagnação po-
crítica. acontecimentos a sua volta. Centrada no lítica, econômica e cultural, através da luta
núcleo familiar e nas pessoas da cidade, por seus princípios e observações.
Em Os Simpsons, é possível perceber as
mudanças pelas quais a sociedade contem-
porânea está passando, e como um seriado
com uma estrutura de reiteração consegue,
através da sátira e da paródia, revelar um
retrato dessa sociedade e de seus anseios.
A série faz referências e alusões ao
cinema e à literatura, e tem na apropriação
uma ferramenta para se desenvolver um
roteiro com conteúdo crítico e espirituoso,
mostrando a convivência em família e em
grupos de indivíduos que formam a socie-
dade e comunidade de Springfield. A cidade
de Os Simpsons pode ser interpretada como
toda e qualquer cidade da cultura ocidental.
Reprodução

Este estudo tem como objetivo revelar,


com olhar crítico no seriado animado Os

104 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011


Simpsons, o uso da sátira e da paródia
de modo a provocar humor, assim como
apontar críticas, não apenas à sociedade
que o assiste e consome, como também
à própria mídia da qual faz parte e à qual
está sempre a fazer referências. Ele foi es-
colhido como objeto deste estudo devido a
sua longevidade como programa televisivo,
tendo alcançado, em 2010, sua vigésima
segunda temporada, o que o confirma como
o programa de comédia no horário nobre há
mais tempo no ar na história da televisão.

Reprodução

DESENHOS ANIMADOS, MÍDIA,


ENTRETENIMENTO no Brasil é conhecido como Laboratório Homer Simpson
Submarino. Existe, no final do século XX e
em Londres
A série de televisão Os Simpsons é um início do século XXI, uma grande aceitação
do público adulto por desenhos animados,
com a rainha
fenômeno de mídia, sendo responsável por
um novo formato de animações direcionadas pois a geração jovem adulta das décadas de da Inglaterra,
para o público juvenil e adulto. Criada por 1990 e 2000 já assistia a desenhos animados a escritora
Matt Groening, a série é inspirada nas tiras quando criança. Joanne Rowling,
em quadrinhos Life in Hell, e foi ao ar em A sociedade ocidental contemporânea
o primeiro-
vinhetas no The Tracey Ullman Show em desenvolveu uma cultura do entretenimen-
1987 e em 1989 ganhou seu próprio progra- to – seja através de programas esportivos ministro Tony
ma no horário nobre. O autor desenvolveu na televisão, do cinema, dos programas de Blair e o ator sir
a ideia da família Simpson pouco antes de comédias e dos seriados policiais, há uma Ian McKellen
sua entrevista com os executivos da Fox, preocupação constante de estar se divertindo
pois havia elaborado inicialmente uma ou assistindo a algo.
animação com os personagens de sua tira Com o crescimento das ofertas de ser- Os Simpsons
em quadrinhos alternativa. viços em relação à TV a cabo e Internet, a
em 1987, no The
A série Os Simpsons foi um dos progra- difusão de programas de entretenimento é
mas de maior sucesso nos anos 1990, o que cada vez maior. Nos EUA, muitas emis- Tracey Ullman
gerou a busca por novos programas como soras já disponibilizam, de forma gratuita Show
Futurama, também de Matt Groening, Rei
do Pedaço, American Dad, Família da Pe-
sada, South Park, dentre outros. Programas
de animação com conteúdo nada infantil
como American Dad e Família da Pesada
possuem muitas conotações políticas e sáti-
ras à sociedade. A própria série Os Simpsons
também chegou a fazer vários apontamentos
políticos, e o próprio ex-presidente George
H. W. Bush aparece no seriado, assim como
o primeiro-ministro britânico Tony Blair. O
canal Cartoon Network, também apostando
nas animações para adultos, elaborou um
Reprodução

espaço em sua programação para esse tipo


de material, chamado de Adult Swim, que

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011 105


Paródia da capa
do álbum
Nevermind
do Nirvana
utilizada na

Reprodução
capa da revista
Rolling Stone

na Internet, seus seriados, que podem ser anúncios satíricos espalhados pelos am-
acessados para exibição online. Em sites bientes que os personagens frequentam e
de compartilhamento de arquivos, a maior a Internet, em que Homer Simpson uma
parte desses seriados é disponibilizada vez chegou a criar um site polêmico sobre
ilegalmente para download. É uma busca a vida de certos habitantes de Springfield
por entretenimento de forma legal e ilegal e em que Marge ficou viciada em um jogo
por parte dos espectadores. de fantasia com avatares.
A influência da televisão na sociedade é Os personagens da série estão inseridos
um tema frequente na série. Os Simpsons, na cultura da mídia e de forma satírica mos-
em suas sátiras e paródias, está sempre se tram a importância dada pela sociedade aos
autocitando no programa e citando a televi- programas de televisão. Por exemplo, em
são e o impacto da mídia na sociedade oci- certo episódio o reality show John e Kate
dental. Assim sendo, há outros programas + 8 foi parodiado quando os personagens
de televisão dentro da série e suas próprias Apu e Manjula viraram pais de oito bebês.
celebridades. Um exemplo é a abertura do Em outra ocasião, Homer Simpson estreia
seriado, que mostra uma sequência em que um programa de bate-papo com seus colegas
os personagens se dirigem para casa no final Lenny e Carl. E ainda em outro episódio,
do dia e de suas atividades para sentarem Lisa e Bart participam de um programa
no sofá da sala e assistirem à televisão. Em jornalístico infantil. A série está sempre
muitas ocasiões, a televisão é mostrada apontando como a questão de aparecer na TV
como o centro das atenções dos persona- torna uma pessoa uma celebridade, mesmo
gens Homer e Bart. Além da televisão, as que passageira. E, muitas vezes, o que leva
outras formas de mídia estão presentes no o personagem a um programa televisivo e a
programa: o rádio, a estação KBBL, da uma breve fama são ideias sem fundamen-
qual Bart Simpson ganha um elefante em to, banais e grosseiras ou sensacionalistas.
certa ocasião, as animações de Comichão e Quando Homer é convidado para o programa
Coçadinha, que estão presentes na televisão, especial da Nasa, é devido a sua aparente
no cinema e em merchandise, os diversos proximidade com uma visão estereotipada

106 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011


do homem “ordinário”, retratado pela série
de forma infantilizada e rude.
O programa possui também suas cele-
bridades, que estão sempre em destaque nos
episódios, como personalidades do cinema
e da televisão e da política de Springfield,
como Kent Brockman, o âncora do Canal 6,

Reprodução
Krusty, o palhaço, Sideshow Mel, o ajudante
de Krusty, Sideshow Bob, o antigo ajudante
de Krusty, que tentou incriminá-lo e assas-
sinar Bart Simpson, Mr. Teeny, o macaco Apesar de todo o sucesso e das visitas de Uma paródia da
treinado de Krusty, que trabalha também celebridades ao programa, os primeiros epi-
logomarca da
como seu motorista, o prefeito Quimby, sódios eram focados no cotidiano familiar,
sempre envolvido em algum ato ilícito, no dia a dia dos personagens e nas relações
rede Starbucks
Loureen Lumpkin, a cantora de country familiares. Depois de alguns episódios é que com o palhaço
music lançada por Homer Simpson, o ator as críticas e referências feitas à sociedade, Krusty e
Troy McLure e o dono da usina nuclear, à política e aos acontecimentos atuais se um selo de
Montgomery Burns, que tem grande influ- tornaram mais frequentes, despertando até
aprovação
ência local em diversos sentidos. mesmo situações polêmicas, como foi o
A série brinca igualmente com a questão caso do episódio “Feitiço de Lisa” (“Blame Krusty: “Não
das celebridades instantâneas. Em mais de it on Lisa”), que se passa na cidade do Rio é apenas
uma ocasião, Bart Simpson está ao lado de de Janeiro. bom! É bom o
Krusty e dentro do estúdio de televisão do
suficiente!”
Canal 6. Ele chega a conquistar o emprego
de ajudante de Krusty depois de conseguir O CONTEÚDO EM OS
um pão doce para o palhaço, roubando-o
de Kent Brockman. Porém, Bart é chamado SIMPSONS: UM REFLEXO DA
para fazer parte do elenco para uma das pia-
das de Krusty e, por acidente, derruba todo CONTEMPORANEIDADE A série dentro
o cenário. Ele declara: “Eu não fiz isso!”,
quando todos o tinham visto e a imagem Ao contrário das séries dos anos 1950,
da série:
chegou a ser registrada no programa ao vivo que ressaltavam um determinado tipo de Comichão e
revelando que ele havia derrubado tudo. valores e a família nuclear bem-comportada Coçadinha
Com essa frase, Bart fica famoso, gerando
uma febre do garoto “eu não fiz isso” em
toda a cidade de Springfield.
Além das celebridades de Springfield,
a série recebe também, por convite, outras
personalidades, como Alec Baldwin, Sting,
Tom Jones, membros da banda Rolling
Stones, o astronauta Buzz Audrin, Paul
McCartney e sua esposa Linda, e muitos
outros que andaram pelas ruas da série. Nos
anos 1990, década em que o programa Os
Simpsons consolidou seu lugar como série
de sucesso no horário nobre, Springfield
era o lugar para se estar do jet set interna-
cional. Porém, são os produtores da série
que decidem quem poderá visitar a família
Reprodução

Simpson, cabendo à produção da série fazer


o convite aos escolhidos.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011 107


Abaixo, Homer – o casal com filhos –, com a revolução política, nos anos 1990 há um desgaste
cultural dos anos 1960 e 1970 (Hobsbawm, desses ideais. Tendo início na década de
Simpson com
2000, p. 316), esse processo se reverteu. 1980, segundo Douglas Kellner, esse pe-
os membros Surgiram séries com pais divorciados, mães ríodo passou por diversas crises sociais e
da banda The solteiras e com críticas sociais. A televisão econômicas, que se refletiram em produções
Rolling Stones deu lugar a comédias de situações3, com cinematográficas e outras manifestações da
famílias que não se encaixavam no conceito cultura popular:
de “nuclear”. Isso foi uma consequência da
revolução cultural que estava em andamen- “Os anos 1980 constituíram um período
to. Nos anos 1980, década em que surgiu a sem precedentes de conflitos de classe, com
série Os Simpsons, a sociedade já refletia movimentação maciça da riqueza de setores
em suas manifestações artísticas e na mídia de classe média e classe trabalhadora para
um descontentamento de descrédito pelo as classes altas, bem como um período de
sistema e pelos indivíduos: medo do desemprego, de descer na escala
social e de crise para as classes trabalhado-
“O drama das tradições e valores desmoro- ras. Enquanto, nos anos 1970, assistiu-se a
nados não estava tanto nas desvantagens de uma onda de filmes populares sobre a classe
não ter serviços sociais e pessoais outrora trabalhadora […], nos filmes da década de
oferecidos pela família e pela comunidade. 1980 tal característica raramente esteve
[…] Estava na desintegração dos velhos presente, e o foco recaiu mais nas famílias
sistemas de valores e costumes, e das con- e nos indivíduos pertencentes às classes
3 Além desse formato de venções que controlavam o comportamento média e alta” (Kellner, 2001, pp. 164-5).
sitcom, surgiu o magicom,
um seriado com situações humano” (Hobsbawm, 2000, p. 334).
“mágicas” ou fantasiosas A juventude, que foi a responsável
numa tentativa de chamar a
audiência para um cotidiano
Enquanto nos anos 1960 e 1970 havia pelas mudanças das décadas anteriores, na
inusitado. um clima de contestação e conscientização contemporaneidade, se encontra alienada,
“despolitizada” e concentrada no individua­
lismo, porém, numa identidade cultural
fragmentada. O anteriormente conhecido
como ultraliberalismo da década de 1960
passa por uma transformação, e o indivíduo
nos anos 1990, que faz parte da sociedade,
já não possui conhecimento do passado
nem do presente. Ele não possui mais uma
política de identidade, mas uma ligação
com vários grupos sociais simultaneamente,
sem realmente haver uma conexão mais
profunda entre eles. O jovem está ligado a
uma sociedade de consumo e a produtos e
empresas. Ele geralmente não possui uma
visão crítica da sociedade, e apenas aceita
o que lhe é imposto.
Esse modelo de indivíduo, que no mundo
contemporâneo e globalizado faz parte de
uma cultura jovem global, passa a ser não
apenas representado, mas criticado pela
mídia pela qual é influenciado, como em
seriados como Beavis e Butt-head, que
representa dois jovens alienados do mundo
Reprodução

que os rodeia e voltados apenas para a sa-


tisfação de seus desejos. Douglas Kellner,

108 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011


em um estudo a respeito da série Beavis e tações artísticos contemporâneos, como
Butt-head, descreve a juventude dos anos as séries de televisão. É a exploração da
1990 como: intertextualidade, da intermidialidade e da
metalinguagem, em diferentes graus, um dos
“Essa geração provavelmente foi concebida aspectos da chamada “pós-modernidade”.
e desmamada em meio a imagens e sons des- Essas manifestações incluem não apenas
sa cultura, socializada pelos úberes vítreos a alta cultura, mas também as conhecidas
da televisão, que serviu de chupeta, babá e “subculturas”, “cultura de massa” e “cultura
professora a uma geração de pais para quem da mídia”4. Os desenhos animados não são
a cultura da mídia, especialmente a televi- exceção. Segundo Paul Wells, eles tiveram
siva, constituiu um pano de fundo natural sua forma e manifestação influenciadas pelo
e parte integrante da vida diária. O desenho discurso pós-modernista:
retrata a dissolução de um indivíduo racional
e, talvez, o fim do Iluminismo na cultura “As noções de avant-gard do pós-moder-
da mídia de nossos dias […]. Destituídos nismo nos EUA, durante os anos 1960 e
de cultura, discernimento ou racionalidade nos anos seguintes, promoveram um foco
e sem valores éticos ou políticos […]” útil sobre a breve discussão dos aspectos
(Kellner, 2001, p. 190). cômicos do moderno na animação, um
‘pós-modernismo’ intrínseco quanto à
É nessa época que surge a série Os Simp- forma, mesmo sem as raízes modernistas.
sons. Ao contrário de Beavis e Butt-head, a A avant-gard determina o pós-moderno,
série possui forte conteúdo crítico em seus como esboçado abaixo:
episódios, fazendo críticas e sátiras não – futuro orientado, imaginação temporal
apenas à sociedade e a seu comportamento, inovadora;
mas a uma cultura ocidental dominante. É – ataque iconoclástico à instituição, orga-
nesse panorama que um seriado com perfil nização e ideologia da arte;
subversivo, porém de uma subversão oposta – otimismo tecnológico, beirando às vezes
à da série da MTV, passa a se destacar e se a euforia; e a
torna um sucesso mundial. Tendo como – promoção da ‘cultura popular’ como um
público-alvo uma geração juvenil e adulta, desafio à alta arte. 4 “[…] a cultura da mídia se
inspira nas inquietações
alcança um público numa faixa etária de 18- […] A animação, desde seus primórdios, de seu público e, por sua
34 anos e 25-54 anos (Stabile & Harrison, tem priorizado a ‘imaginação temporal’, vez, se torna parte de um
circuito cultural, com efei-
2003, p. 83), que cresceu assistindo a dese- predominando o modo cômico, e uma tos distintivos. Seus textos
nhos animados, e com um grande repertório forma libertadora de expressão frente à expressam experiências
de seriados televisivos, consequentemente institucionalização dos principais meios de
sociais, transcodificando-as
por intermédio de formas
já familiarizados com o formato de seriado comunicação do cinema live-action. […] O televisivas, cinematográficas
e suas estratégias narrativas. desenho animado fez muito para sustentar ou musicais. O público então
se apropria dos textos e uti-
Conhecimento suficiente que permitiu o modo anárquico que recusa o discurso liza os mais ressonantes para
aos roteiristas da série animada e a seus ortodoxo, e se abre para múltiplas estru- expressar o que sente em
termos de estilo, aparência
produtores a utilização e criação de um turas através da formulação da ‘gag’. Não e identidade. A cultura da
amplo referencial intertextual e intermi- meramente ela define, promove e abraça a mídia oferece recursos para
a criação de significados,
dial, como a citação de outras produções ‘cultura popular’, mas também subestima prazer e identidade, mas
cinematográficas e televisivas, assim como a alta arte enquanto se apropria de muitos também modela e conforma
alusões à literatura e a musicais da Broad­ de seus elementos gráficos e qualidades
certas identidades e põe em
circulação um material cuja
way. Devido ao sucesso do programa e sua estéticas”5 (Wells, 1998, pp. 184-5). adoção poderá enquadrar
longevidade, começaram a surgir, a partir os diversos públicos em
determinadas posturas (por
da oitava temporada, autocitações e críticas Como o autor acima coloca, é típico exemplo, o Rambo macho,
a sua própria realização, criando, em seus do período “pós-modernista” o ataque a a Madonna sexy, os slackers
insatisfeitos, os violentos
episódios, metatextos. instituições, tal como a série Os Simpsons Beavis e Butt-Head, etc.)”
O uso dessas formas de linguagem é uma faz em relação ao sistema de governo norte- (Kellner, 2001, p. 200).
das características dos trabalhos e manifes- -americano, ao sistema de saúde público e 5 Tradução feita pela autora.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011 109


privado e às grandes corporações, como seja através de paródias, sátiras, ironias
as companhias telefônicas e a indústria de ou de um humor debochado e subversivo.
energia nuclear, além das artes. Porém, com Como Sam Simon (apud Korke, 1997), em
os rápidos avanços tecnológicos já não há uma entrevista, afirmou:
exatamente um otimismo, como ocorria
em produções anteriores à série, e sim um “Eu não quero ser mal-entendido. Eu acho
olhar crítico a respeito da globalização – que nós temos episódios ‘temáticos’, e
consequência desse avanço –, e uma certa fico feliz de perceber que o programa
frustração em relação à rapidez com que atrai interesses suficientes por pessoas que
equipamentos eletrônicos e digitais se querem analisá-lo. Por tudo que eu sei,
tornaram obsoletos ou ao alto custo para a eles podem estar mais corretos em suas
aquisição dessa tecnologia. conclusões do que as pessoas que o escre-
Vindos dos anos 1970, os roteiristas e vem e dirigem. Eu tenho muito orgulho
produtores de Os Simpsons fazem parte de termos temas de controvérsia, mas na
de uma geração com consciência política, televisão norte-americana, quando você
visão crítica da sociedade e contestadora faz um episódio com um ponto de vista,
dos valores e do sistema político, e são, na normalmente ele se torna um daqueles
maioria, graduados em universidades de episódios muito ‘especiais’ e você deixa
reconhecimento internacional6 (Alberti, de ser engraçado por uma semana para
2004, p. 169), o que leva a série a ter fazer uma afirmação”.
roteiros bem desenvolvidos e inteligen-
tes, diversas referências intertextuais, e Os roteiros são continuamente trabalha-
crítica social através da sátira, da paródia dos, e passam por diversas fases durante o
e do pastiche. processo de criação, pois é a parte essencial
Em uma entrevista concedida à Simp- da série. O cuidado com as ideias e as afir-
sons Illustrated, Matt Groening justificou mações e a forma como são apresentadas
o uso das referências na série da seguinte através do humor é que chamam a atenção
forma: sobre essa série e seus personagens.

“Não sou apenas eu. Muitos roteiristas talen- Inicialmente, buscava-se um tom emo-
tosos trabalham no programa, metade deles cional nos personagens e nos conflitos. Os
vem de Harvard. E você sabe que, quando argumentos se referiam a situações reais
você estuda semiótica através do espelho e cotidianas dentro da sociedade atual.
(Through the Looking Glass) ou assiste a No decorrer dos anos, a série passou a
todos os episódios de Jornada nas Estrelas, fazer diversas relações a outros textos, e
você precisa fazer isso valer a pena, então durante as primeiras temporadas começou
você joga muitas referências em qualquer a fazer pequenas citações intertextuais;
coisa que vá fazer depois na vida”7. porém, com a popularidade do programa
e a aceitação do público devido a tais
Uma equipe de roteiristas com um citações, elas passaram a ser cada vez
amplo inventário imagético e referencial mais frequentes.
teórico a respeito da mídia e da sociedade A intertextualidade e a apropriação de
cria episódios que fazem um retrato de uma elementos de outras obras com o objetivo de
cultura local com alcance global, apesar satirizar, parodiar, ironizar ou homenagear
das inúmeras referências, permitindo que determinados autores, gêneros e estilos
6 O que justifica as diversas tanto um espectador ingênuo quanto um passaram a ser recorrentes na série. Citações
referências a universidades
como Harvard, Yale e Prin- espectador crítico aprecie os episódios. que começaram como um jogo intelectual
ceton, feitas através dos É através do formato de cartoon sit­ entre os roteiristas e conhecedores de
episódios da série animada,
também conhecida por ser com que os roteiristas podem trabalhar e literatura, cinema e televisão tornaram-se
liberal. aprofundar pontos de vista, apontar temas elementos essenciais ao programa e aos
7 Tradução feita pela autora. controversos e fazer críticas à sociedade, seus sucessores e criou-se uma relação de

110 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011


referências e apontamentos críticos e sátiras. de seu sucesso de audiência, ganhou 25
O que anteriormente eram pequenas piadas prêmios Emmy, 26 Annies e muitos outros
tornou-se uma das características principais e ainda recebeu uma estrela na calçada da
da série, apresentando a possibilidade de fama em Los Angeles. E ainda é exibida
estabelecer uma espécie de cumplicidade em mais de 90 países e traduzida em 45
com o espectador capaz de captar as re- idiomas, tornando-se um fenômeno global.
ferências mais sutis e específicas de certo A série causou polêmica e controvér-
grupo de interesse. sias em seu surgimento, no programa de
Após o surgimento de Os Simpsons, Tracey Ullman e o faz até hoje, inovando
como visto anteriormente, muitas outras na narrativa e no visual da animação, e
produções de desenhos animados para levando para um cartum temas adultos e
um público juvenil e adulto surgiram e contemporâneos. Ao longo de sua exibição
adicionaram o uso da intertextualidade e na televisão, a série Os Simpsons abordou
da sátira. Talvez essa tendência se deva à temas controversos, fez críticas à sociedade
contemporaneidade em utilizar referências a e à cultura ocidental, e foi capaz de fazer
outros textos e sátiras à sociedade, ou pode referências a si própria e ao seu modo de
ser devida ao sucesso que tal prática obteve produção. Ela incorporou, do cinema, re-
em Os Simpsons. De uma forma ou de outra, cursos de montagem e composição, e dos
a série criada por Matt Groening é um marco seriados, sua estrutura narrativa, fazendo do
na história da televisão e na história dos cartoon sitcom, um novo gênero na história
seriados de animação e de comédia. Além da televisão.

BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. 3a ed. São Paulo, Perspectiva, 2002.


CARTWRIGHT, Nancy. My Life as a 10-Year-Old Boy. London, Bloomsbury, 2000.
GIMPLE, Scott M. (ed.). The Simpsons Forever: A Complete Guide to Our Favorite Family… Continued.
New York, Harper Perennial, 1999.
GROENING, Matt. The Huge Book of Hell. New York, Penguin, 1997.
HERSKOVIC, Chantal. Chegando em Springfield: um Estudo Crítico sobre a Série “Os Simpsons”. Dis-
sertação de mestrado em Artes Visuais. Belo Horizonte, Escola de Belas-Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais, 2005.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o Breve Século XX – 1914-1991. 2a ed. São Paulo, Companhia das
Letras, 2000.
HUTCHEON, Linda. Uma Teoria da Paródia. Rio de Janeiro, Edições 70, 1985.
KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia. Bauru, Edusc, 2001.
KORKE, Dan. The Simpsons as Quality Television. 1997 (disponível em: http://www.snpp.com/other/
papers/dk.paper.html; acesso em: 7/mar./2004).
MCCANN, Jesse L. (ed.). The Simpsons Beyond Forever: a Complete Guide to Our Favorite Family… Still
Continued. New York, Harper Perennial, 2002.
PAULINO, Graça; WALTY, Ivete; CURY, Maria Zilda. Intertextualidades: Teoria e Prática. Belo Horizonte,
Lê, 1995.
RICHMOND, Ray; COFFMAN, Antonia (eds.). The Simpsons: a Complete Guide to Our Favorite Family.
New York, Harper Perennial, 1997.
STABILE, Carol; HARRISON, Mark (orgs.). Prime Time Animation; Television Animation and American
Culture. New York, Routledge, 2003.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezembro/fevereiro 2010-2011 111


octavio carvalho aragão

octavio
carvalho
aragão
é professor adjunto
da Escola de
Comunicação da
Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
RESUMO

Da semântica do termo cartum à adequação às mídias eletrônicas, este artigo


versa a respeito das especificidades formais e temáticas, políticas e sociais do
humor gráfico brasileiro. Tomando por base as teorias de Violette Morin e Scott
McCloud, localiza os pontos em que os diversos tipos de disjunção originam
o humor. Há também ênfase na definição do público-alvo do humor gráfico
e sua relação com os veículos editoriais.

Palavras-chave: cartum, charge, caricatura, humor gráfico, narrativa.

ABSTRACT

From the semantics of the Brazilian neologism cartum [from the English word
cartoon] to its adapting to the electronic media, this article addresses its singu-
larities as regards form and social and political themes of the Brazilian graphic
humor. Based on the theories by Violette Morin and Scott McCloud – that trace the
relations between text and images – this article pinpoints where each disjunction
breeds humor. It also emphasizes how the target audience is defined and how it
relates to the publishing vehicles.

Keywords: cartoon, political cartoon, caricature, graphic humor, narrative.


INTRODUÇÃO

origem do termo cartum em língua portuguesa

merece uma explicação pormenorizada. Segundo

Camilo Riani, “é importante destacar que a

utilização do termo cartum como categoria de

humor gráfico/caricatura é essencialmente

brasileira, uma vez que essa palavra, nas demais línguas, não é

entendida no sentido que aqui trataremos” (Riani, 2002).

Em termos narrativos, pode-se dizer que o cartum está

situado entre a charge e a história em quadrinhos, apropriando-

-se de elementos de ambos. Pode ser confundido com a charge

por tratar, na maioria das vezes, de situações de cunho social,

mas por outro lado o cartum não tem comprometimento com um

fato ou celebridades, podendo manter o potencial de fruição por

muito tempo depois de ter sido publicado.

Das histórias em quadrinhos herda elementos sígnicos, tais

como balões de fala em lugar da tradicional legenda e a possibi-

lidade da decupagem da narrativa em várias cenas separadas e

inseridas em requadros, uma narrativa sequencial. Na maioria das

vezes, porém, seu significado pode ser depreendido apenas por

intermédio da ilustração, sem o auxílio de códigos linguísticos.

Violette Morin (1970) propõe um tipo de fórmula para a

estrutura de construção do humor cartunesco (ou humor gráfico)

e explica por que a força humorística residiria mais na parte

ilustrativa que no texto.

Sua definição para humor gráfico é clara: trata-se de dese-

nhos, ancorados ou não por textos, que questionam as medidas

do mundo, recusam a aparência das coisas e rompem com a

fotogenia, virando pelo avesso as representações.


Os desenhos poderiam ser comparados taposição entre texto e imagem.
aos jogos de palavras das anedotas que Essa linha pode ser subdividida em
rompem com o sentido inicial de uma aproximadamente quatro subgrupos:
proposição, produzindo uma ou mais possi-
bilidades de interpretação. Os gatilhos que a) texto serve à imagem (dominância de
proporcionam tais rupturas são chamados imagem);
pela autora de “disjunções”. São elas as b) texto e imagem são complementares
reais motivadoras do processo que resul- (interdependência texto/imagem);
taria no riso. c) sequências complementares de desenhos
Essas rupturas provocariam uma justa- e texto (cartum sequenciado);
posição ou sucessão de elementos sêmicos d) imagem apoia o texto (dominância de
originalmente incompatíveis, e a percepção texto).
e a racionalização de tais “impossibilida-
des” seriam a raiz do cômico. Ou seja, o É interessante cruzar esse sistema de
humor nasce da justaposição ou sucessão Morin com aquele desenvolvido por Scott
de elementos incompatíveis que explodem McCloud no livro Understanding Comics,
uma unidade narrativa. no qual estabelece sete tipos de inter-relação
De acordo com a autora, o riso no car- texto/imagem: dominância de texto, do-
tum dependeria da capacidade narrativa do minância de imagem, dupla dominância,
ilustrador, assim como na anedota verbal o sistema aditivo, paralelismo, montagem e
papel de guia fica sob a responsabilidade de interdependência (McCloud, 1998).
quem conta a história. Porém, é necessário McCloud estipula uma lista de inter-
perceber que não seria o estilo do traço que -relações mais complexa e detalhada que
provocaria o riso, mas a ação dos mecanis- Morin, incluindo categorias que não têm
mos disjuntivos. paralelos na primeira lista, como dupla
dominância, em que texto e imagem são
redundantes; sistema aditivo, no qual o
texto e a imagem amplificam o sentido um
BARTHES E OS TRÊS TIPOS DE do outro, criando novas interpretações;
paralelismo, em que texto e imagem não
MENSAGEM têm qualquer conexão imediata, criando
uma leitura surrealista ou próxima do da-
A autora cita Roland Barthes (1982) ao daísmo; e montagem, que apresenta textos
enumerar os três tipos de mensagem – li- caracterizados como ilustrações.
teral, simbólica e linguística – e encaixa a Todos esses expedientes são utilizados
interpretação e a confecção bem-sucedida em larga escala pelo cartum contemporâneo
do humor gráfico nessas três subdivisões. e comprovam a riqueza comunicacional
A mensagem, assim, poderia ser resu- do gênero.
mida à relação desenho/texto, sendo que o
humor nasceria de uma ruptura na sequência
narrativa. Em primeiro lugar, no topo da
pirâmide, viria o cartum em que a imagem FUNÇÕES NARRATIVAS
se sustenta sem o auxílio de texto, com a
ruptura inserida apenas no desenho. Os te- As articulações disjuntivas postuladas
mas de tais obras, segundo Violette Morin, por Violette Morin, por sua vez, possuem
versariam principalmente sobre hábitos três sistemas de análise:
sociais, atualidades ou fatos científicos.
Já naquelas em que o texto é impres- a) bloqueio de articulação;
cindível, a temática giraria em torno de b) recorrência de articulação;
psicologia, política e sociologia. Nesses c) consequência de articulação por inversão
casos, as disjunções ocorreriam numa jus- antinômica dos signos.

116 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 112-121, dezembro/fevereiro 2010-2011


A autora estabelece fórmulas para cada duplo sentido da palavra “preparado”, na
um dos sistemas propostos, que podem ser charge de Jaguar – imagem 4).
mais bem compreendidos pelos infográficos
em anexo (imagens 1 e 2).
A inversão acontece de tal maneira que
o senso de disjunção se opõe contradito- QUEM É O PÚBLICO DO HUMOR
riamente ao senso de consequência, mas
sem destruir por inteiro a lógica formal. GRÁFICO CARIOCA?
Assim, o processo disjuntivo provoca um
“reconstruir” da consequência. No início das publicações humorísticas
brasileiras, quando artistas como Angelo
Agostini, Henrique Fleuiss e Luigi Bor-
gomainerio publicavam protocharges e
TIPOS DE DISJUNÇÃO ilustrações críticas em tabloides como A
Revista Illustrada, A Semana Illustrada e
Física: onde há uma contraposição hábi- A Vida Fluminense, seu público-alvo era
to x necessidade. Existe a quebra da lógica a emergente burguesia que começava a
ou uma adaptação do inevitável; prosperar à sombra da aristocracia imperial.
Mental: surge um bloqueio no anda- Porém, como atestou Joaquim Nabuco
mento de uma situação, graças a uma (Lima, 1963), que teria apelidado A Re-
contraposição ativa/passiva; vista Illustrada, de Agostini, de “a Bíblia
Físico-mental: estabelece-se uma con- da Abolição aos que não sabem ler”, as
traposição de inevitabilidade física x previ- publicações, depois de cumprirem a mis-
sibilidade psicológica (como na charge de são de informar e divertir as classes mais
Chico Caruso, “Dia da Virada” – imagem abastadas, eram jogadas fora e caíam nas
3) ou se institui um novo sentido por meio mãos dos escravos que, apesar de iletrados,
de mudança de contexto (a utilização do acabavam rindo dos desenhos engraçados,

Imagens 1 e 2
Tabelas: função e inversão antinômica

Funções

De normalidade De consequência Disjuntiva

“Uma mulher …diz a seu marido: E o marido responde: – E eu


olhando o oceano… – Diante do mar, sempre preferia que, diante de mim,
pensarei em ti. tu pensasses no mar.

Inversão antinômica

em mim
no mar
Pensar mim/mar
diante de mim
do mar

Arquivo pessoal do autor.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 112-121, dezembro/fevereiro 2010-2011 117


Imagem 3 dos rostos deformados, das situações cô-
micas, mesmo sem reconhecer as eventuais
Charge:
personalidades citadas ali.
“Dia da Virada” O teórico brasileiro Moacy Cirne acre-
dita que revistas infantis como O Tico-Tico,
onde vários chargistas e cartunistas brasi-
leiros começaram suas carreiras, possam
ter sido uma grande influência no que diz
respeito às escolhas profissionais de seus
leitores num processo de combate ao anal-
fabetismo no país (Cirne, 1990), mas não
existem efetivamente provas que confirmem
essa suposição. Por outro lado, não há dú-
vidas de que as charges e cartuns ocupam
um espaço privilegiado no imaginário
brasileiro, já que, inseridos nos principais
veículos jornalísticos, seja em mídia im-
pressa ou audiovisual, há sempre uma área
dedicada a esse tipo de expressão gráfica,
geralmente com destaque. Chico Caruso,
em entrevista cedida a nós, afirmou que o
Fonte: C. Caruso, O Globo, 28 de outubro de 2002

casamento jornalismo/charge é inevitável,


mas ainda assim anseia por mais espaço.

“Onde tiver jornal, tem de ter charge. Como


a televisão é uma coisa cada vez mais
onipresente, então eu acho natural que a
charge vá para a televisão também. Agora
a gente tem de fazer ela avançar tanto em
termos tecnológicos, quanto em termos de
tempo também, nós temos de conquistar

Imagem 4
Charge
Fonte: Jaguar, O Dia, 28 de outubro de 2002

118 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 112-121, dezembro/fevereiro 2010-2011


mais espaço, porque aquilo acabou sen- suspenso do mesmo jornal em 97, graças
do, como a charge na primeira página do a uma charge que ironizava uma cerimônia
Globo, meio um nicho, um gueto, que fica da marinha – e isso 21 anos depois do fim
ali, entra, e tem ali aquele negócio, vinte do governo militar. Uma vez dentro de O
segundos. Eu gosto quando você começa Dia, onde foi contratado depois de uma
a poder imaginar um jornal só de charges passagem rápida pelo Jornal do Brasil e
com um textinho escrito… e eu acho que um breve retorno a O Globo, as sanções
o jornal na TV podia ser isso, sei lá, só foram de outra natureza: apesar de ter carta
imagem, animação, meia hora de animação branca para criticar qualquer político que
e cinco minutos para o speaker falar o que bem entendesse, Aroeira foi desencorajado
ele quiser” (Caruso, 2007). a publicar uma charge retratando a apresen-
tadora infantil Xuxa Meneghel, pois isso
Os principais jornais do Rio de Janeiro, poderia fechar portas aos demais jornalistas
O Globo, Jornal do Brasil, O Dia e Extra, da casa. Ou seja, O Dia não se importaria
sempre reservaram um espaço na primeira em publicar críticas aos políticos, mas
página, o local mais nobre do jornal, para as estrelas de TV – terreno liberado para
a charge diária de seus artistas – Chico ironias e caricaturas em O Globo – eram
Caruso, em O Globo, Ique, no Jornal do superprotegidas ali (Aroeira, 2007).
Brasil, Aroeira, em O Dia, e Leonardo, no Isso porque, segundo a visão do jornal
Extra – onde, lado a lado com as manchetes, em questão a respeito de como pensa seu
fotografias e demais textos, é considerada “leitor ideal”, matérias relativas a televisão
pelos produtores dos jornais como tendo e cultura de massa importariam mais que
a mesma força atrativa que todo o resto. qualquer notícia de cunho político e, como
Eventualmente, disputas são travadas entres “a credibilidade de um veículo vai depender
as diversas publicações para chamar para seu do espaço que ele proporciona ao seu públi-
staff o chargista de um concorrente visando co-alvo” (Lutz, 2005), O Dia não poderia
atrair o público fiel a determinado artista, correr o risco de perder as boas-graças da
como foi o caso de Chico Caruso, que, em apresentadora por causa de uma charge que
1982, trocou uma carreira no Jornal do poderia potencialmente ofendê-la.
Brasil para publicar na primeira página de Logo, há uma generalização e uma par-
O Globo (Lan e Caruso, 2005), ou Aroeira, ticularização simultânea no que diz respeito
que inicialmente era suplente de Caruso no ao público do humor gráfico se não no Brasil,
mesmo jornal e que foi para O Dia, em 1997, ao menos no Rio de Janeiro. Considera-se
assumir um posto de chargista na primeira que há uma demanda por charge ou cartuns
página daquela publicação. nas primeiras páginas dos jornais, mas que
Levando em consideração que os os assuntos tratados ali devem obedecer
públicos-alvo dos jornais O Dia e O Globo a uma linha editorial que não conflitue
não são os mesmos, podemos concluir num com interesses comerciais ou até mesmo
primeiro momento que, independente da políticos internos aos próprios periódicos.
classe social à qual o jornal se dirige, todos Isso acontece porque, segundo Nelson
partem do princípio de que seu público Werneck Sodré (1999), desde o fim da
aprecia as charges a ponto de querer vê-las Primeira Guerra Mundial, os jornais dei-
na primeira página. xaram de ser artesanais e passaram a ser
Há restrições editoriais, porém. Por constituídos como “empresas nitidamente
exemplo, apesar das afirmações de Caruso estruturadas em moldes capitalistas”.
de que “os jornais evoluíram tanto tecni-
camente como politicamente”, “até hoje “No fundo, entretanto, estavam as contradi-
eu não acredito que estou no Globo, pois ções da sociedade brasileira, traduzindo-se
ele melhorou muito” e “a independência é em forma compatível com a época. Essas
fundamental para a vendagem” (Caruso, contradições envolviam a ascensão burgue-
2007), nada impediu que Aroeira fosse sa em processo, trazendo a primeiro plano

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 112-121, dezembro/fevereiro 2010-2011 119


sua vanguarda, a pequena burguesia urba- rua expõe o trabalho dos chargistas a um
na, que assumia função política eminente. público que não necessariamente compra o
Acontece que nessa camada social estava jornal todos os dias e, a partir da década de
a maioria do público da imprensa: esse pú- 1990, com o advento das charges eletrônicas
blico influía nos jornais e era influenciado veiculadas primeiro pela Internet e, depois,
pelos jornais; e essa relação, na época, não animadas, pela televisão, em horário nobre,
era perturbada pelas forças econômicas que, entre as 19h e 23h, ocorre uma ampliação
mais adiante, tanto pesariam na orientação do público fruidor.
dos periódicos; a venda avulsa pesava, por Em 2003, por exemplo, tivemos dois
outro lado, e muito, na vida deles, mais do chargistas sendo exibidos todas as noites
que a publicidade: um grande jornal era, dentro de telejornais de ampla visibilidade:
quase sempre, aquele que tinha tiragem Maurício Ricardo, que começou sua carreira
grande” (Sodré, 1999). com o site charges.uol.com.br, apresentava
seu trabalho no programa TVFama, da
Hoje, em termos comerciais, considera- Rede TV, e Chico Caruso, na Rede Globo,
-se que um grande jornal é o que tem me- inicialmente dentro do Jornal Nacional, o
lhores anunciantes. Logo, o cuidado em campeão de audiência do horário, e depois
não ofender possíveis patrocinadores é tão no Jornal da Globo. Caruso, apesar de várias
grande que eventualmente pode influir no mudanças no formato de sua charge eletrôni-
conteúdo do material publicado. Isso inclui ca, continua até hoje e começa a estabelecer
as charges. uma tradição dentro da programação da
Ainda assim, a preocupação dos jornais emissora. Maurício Ricardo, por sua vez,
com a charge nas primeiras páginas é tão acabou sendo contratado pela mesma Rede
grande que um dos tópicos preferidos das Globo para assumir as animações – todas
enquetes realizadas por O Globo diz respeito com uma ou mais caricaturas – referentes
ao entendimento das charges. Além disso, o ao programa Big Brother Brasil, um fenô-
hábito de se pendurar as primeiras páginas meno de audiência, nas versões de 2004 e
dos jornais do lado de fora das bancas de 2005, entre outros contratos diversos que
abrangem sempre um enfoque humorístico
por meio de cartuns animados de aspectos
sociopolíticos (imagens 5 e 6).
Imagens 5 e 6 Caruso (2007) chega a profetizar que “o
futuro da charge será a animação. Não sei
Frames de charges animadas
se através da Internet ou do próprio papel
do jornal, o que seria ideal” e, a continuar
pelo caminho que ele mesmo está des-
bravando, parece que está correto, apesar
de, se seguirmos uma análise estrutural
precisa, o que se vê na Internet ou na TV
não é necessariamente charge, mas cartum
animado, porque a força da charge reside no
entendimento imediato, na possibilidade de
se compreender a gag humorística, o duplo
sentido, no momento em que o olho repousa
sobre o desenho associado ao texto.
Na charge impressa, o mecanismo disjun-
tivo responsável pelo surgimento do humor
reside na interdependência texto/imagem,
Fonte: M. Ricardo e C. Caruso. Em http://www.vidoemo.com/yvideo.
enquanto, por uma questão de mídia, onde está
php?i=Qmd3cnlCcWuRpTF9hamc&bbb-charge-maurcio-ricardo-bbb9-ana-to-s-big-brother-
-brasil-9-videos-engraados e http://mais.uol.com.br/view/fl5f1xo1ar t6/chico-caruso--jogo-rapido- ancorada a um determinado tempo de proje-
-com-lula-sobre-corrupcao-040268E4815307?types=A& ção, a charge animada, adaptada à televisão,

120 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 112-121, dezembro/fevereiro 2010-2011


precisa recorrer a um timing diferenciado, Mas mesmo essa pequena deficiência
apelando para um mecanismo disjuntivo onde de adaptação não desmente a previsão de
são necessárias sequências complementares Caruso, que, com o acesso à televisão, é o
de texto e desenho, mais comuns ao cartum, único chargista que, com certeza, é exibido
como vimos anteriormente (Morin, 1970). diariamente em todo território nacional. No
Com isso, muitas vezes o humor que funciona que depender da visibilidade, na amplitude
na charge impressa se perde em sua versão de públicos possíveis, que hoje está situado
animada, que se vê obrigada a estender uma entre as classes C e B, o futuro da charge
gag além de sua funcionabilidade, apenas para ou do cartum editorial reside nos meios de
suprir uma necessidade temporal midiática. cultura de massa eletrônicos.

BIBLIOGRAFIA

AROEIRA. “Entrevista”, in O. Aragão. A Reconstrução Gráfica de um Candidato: Como os Chargistas


Perceberam a Mudança de Imagem de Luis Inácio Lula da Silva. Tese defendida no Programa de
Pós-graduação em Artes Visuais. UFRJ, 2007.
BARTHES, R. O Óbvio e o Obtuso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
CARUSO, C. “Entrevista”, in Aragão, O. A Reconstrução Gráfica de um Candidato: Como os Chargistas
Perceberam a Mudança de Imagem de Luis Inácio Lula da Silva. Tese defendida no Programa de
Pós-graduação em Artes Visuais. UFRJ, 2007.
CIRNE, M. História e Crítica dos Quadrinhos Brasileiros. Rio de Janeiro, Funarte/Europa, 1990.
LAN e CARUSO, C. “Os Traços da Sociedade”. Em: http://www.comunitaitaliana.com.br/Entrevistas/
Caruso.htm. Acessado em 24 de junho de 2005.
LIMA. H. História da Caricatura no Brasil, 3o volume. Rio de Janeiro, José Olympio, 1963.
LUTZ, N. “Uma Arte para Poucos”. Em: http://www.canal daimprensa.com.br/nostalgia/dset/nostal-
gia2.htm. Acessado em 24 de junho de 2005.
McCLOUD, S. Understanding Comics. Kitchen Sink Press, USA, 1998.
MORIN, V. “Le Dessin Humoristique”, in L’Analyse des Images. Revista Communications, no 15, França,
1970.
RIANI, C. Linguagem & Cartum… Tá Rindo do Quê? Um Mergulho nos Salões de Humor de Piracicaba.
Piracicaba, Editora Unimep, 2002.
SODRÉ, N. W. História da Imprensa no Brasil. Mauad, Rio de Janeiro, 1999.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 112-121, dezembro/fevereiro 2010-2011 121


Gêisa fernandes d'oliveira
waldomiro vergueiro

gêisa fernandes
d‘oliveira
é doutora em
Comunicação pela
ECA-USP.

Waldomiro
Vergueiro
é professor titular
da ECA-USP.
RESUMO

Programas de humor sempre ocuparam lugar de destaque na televisão


brasileira. A série Os Trapalhões representa um objeto de estudo de especial
interesse, não apenas por ser o programa humorístico de maior longevida-
de na história da televisão mundial, como, também, por cultuar um tipo
de humor de características próprias, inspirado por práticas circenses e
com antecedentes nas chanchadas do cinema brasileiro. O artigo discute
a produção humorística do grupo Os Trapalhões, destacando algumas
características do tipo de humor apresentado por ele. Enfoca-se o trabalho
do grupo à luz da teoria da carnavalização, de Bakhtin, e dos conceitos do
Movimento de Correção Política. Defende-se que a exploração da inversão
de expectativas pode estar no cerne do sucesso dos artistas, na medida em
que lhes possibilitou desencadear um processo catártico em seu público.

Palavras-chave: TV, humor, Os Trapalhões, carnavalização.

ABSTRACT

Comedy shows have always held a place of prominence on Brazilian television, as


is the case with the series Os Trapalhões. This show is an object of study of special
interest not only for being the longest running comedy show in the history of world
television, but also because it crafted a peculiar humor inspired by circus practices
and rooted in Brazilian chanchadas [burlesque comedy films]. This article discusses
the humor devised by Os Trapalhões comedy team, and highlights some of its
characteristics from the viewpoint of the carnivalization theory by Bakhtin and
concepts of the political correctness movement. It advances that their exploiting
of the reversal of expectations might be at the core of their success, insofar as it
allowed them to deliver a cathartic experience to their audience.

Keywords: TV, humor, Os Trapalhões, carnivalization.


INTRODUÇÃO

esde seu início, em 18 de setembro de 1950, quando

Assis Chateaubriand fundou o primeiro canal de

televisão do país (e também da América do Sul), a

TV Tupi, a televisão brasileira teve na exploração

do humor um de seus pontos distintivos. Pode-se

até afirmar que os programas de humor, em termos de popu-

laridade, talvez tenham ficado atrás apenas das telenovelas, o

verdadeiro fenômeno da produção televisiva nacional. Assim,

não é de admirar que, ainda hoje, um grande número de antigos

telespectadores lembre com nostalgia de programas, personagens,

bordões e tiradas humorísticas que lhes trouxeram muitos moti-

vos para divertimento e os fizeram rir das atribulações da vida.

Numerosos e talentosos humoristas povoaram a televisão

brasileira nesses sessenta anos de existência, deixando sua marca

no panorama artístico nacional. Um dos mais conhecidos deles,

Amacio Mazzaroppi, que depois atingiria grande sucesso no

cinema, esteve presente no primeiro programa televisionado no

país, TV na Taba, dirigido por Cassiano Gabus Mendes e apre-

sentado por Homero Silva. Muitos outros seguiriam. Em 1963,

Sônia Mamede deu vida a Ofélia, a pouco inteligente esposa de

Fernandinho (Lúcio Mauro), no programa Oh! Que Delícia de

Show!, na TV Globo, papel que interpretou por muitos anos. Tião

Macalé (Augusto Temóstocles da Silva Costa) consagrou as ex-

pressões “Nojento!” e “Ô, crioula difícil!” no programa Balança

Mas Não Cai!, também da TV Globo, a partir de 1968. Nesse

mesmo programa, Paulo Gracindo e Brandão Filho interpretavam

o hilariante quadro “Primo Rico, Primo Pobre”, reprisando o

sucesso que haviam obtido quando o estrelaram, na década de


1950, na rádio Nacional do Rio de Janeiro. O grupo alcançou enorme sucesso no
A Família Trapo, satiricamente construída a país e, juntos, os quatro humoristas realiza-
partir do filme A Noviça Rebelde (The Sound ram 23 filmes, sete deles presentes na lista
of Music, de 1965, dirigido por Robert Wise dos dez mais vistos na história do cinema
e protagonizado por Julie Andrews), foi a brasileiro. Em 1997, o grupo entrou para o
grande vedete da TV Record, em São Paulo, Guiness Book, o livro oficial dos recordes
durante a década de 1960, trazendo as hila- mundiais, como o programa humorístico de
riantes peripécias de uma confusa família de televisão que permaneceu por mais tempo
classe média alta, no centro da qual estavam no ar – trinta anos ininterruptos (Braune e
o casal Helena e Peppino Trapo (Renata Xavier, 2007).
Fronzi e Otelo Zeloni) e seus filhos Verinha O humor do programa Os Trapalhões se-
(Cidinha Campos) e Sócrates (Ricardo Corte guiu sempre uma fórmula bastante simples,
Real), cercados pelo mordomo Gordon (Jô semelhante a um espetáculo circense, mas
Soares) e o terrível irmão da dona da casa, também bebia das fontes das chanchadas
Carlos Bronco Dinossauro, eternizado pelo do cinema brasileiro, em que brilharam
brilhante comediante Ronald Golias. atores como Oscarito, Grande Otelo e Dercy
Um dos programas humorísticos de Gonçalves. Ele era composto por uma série
maior sucesso da televisão brasileira foi de esquetes, ou seja, de pequenas peças ou
aquele protagonizado pelo grupo conheci- cenas cômicas, geralmente com menos de
do como Os Trapalhões. Estreando na TV dez minutos de duração. Não havia qualquer
Excelsior, de São Paulo, em 1966, passou relação temática entre os esquetes. Um
depois para a TV Record (quando se cha- quadro passado no presente, relacionado
mou Os Insociáveis), para a TV Tupi, onde com uma situação atual, podia ser seguido
retomou a denominação original e onde por um enfocando uma situação no passado,
permaneceu até 1977, quando se transferiu ridicularizando um fato ou personagem his-
para a TV Globo. O programa durou cerca tórico, por exemplo. O único ponto comum
de trinta anos, encerrando-se apenas em entre os diversos quadros era a participação
1990. Explorava um tipo de humor muito dos membros do grupo, isolados ou como
peculiar, no qual imperavam o improviso um conjunto.
e a caracterização tipológica, o que o torna A caracterização de cada um dos com-
especialmente interessante para análise ponentes como elementos representativos
neste dossiê. de segmentos sociais talvez seja um dos
motivos pelos quais a simpatia granjeada
junto ao público tenha atingido tão altos
picos. Mais que isso, talvez: corporificavam
OS TRAPALHÕES: PRIMÓRDIOS, agentes sociais via de regra excluídos das
narrativas televisivas.
FORMAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO Didi é o migrante nordestino que vem
ao Sudeste em busca de sobrevivência e
As origens do grupo remontam a meados utiliza todos os artifícios possíveis para
da década e 1960, mas a formação que o isso, conseguindo muitas vezes, com sua
consagrou e se tornou definitiva remonta argúcia, reverter as situações difíceis em que
ao ano de 1977. Renato Aragão, o Didi, se vê envolvido. Dedé é o malandro carioca
Manfried (Dedé) Santana, Antonio Carlos que sobrevive de pequenos subterfúgios,
Bernardes Gomes, o Muçum, e Mauro enganando muitas vezes os próprios com-
Faccio Gonçalves, o Zacarias, estrearam panheiros na busca de lucros pessoais, mas
na TV Globo dirigidos por Wilton Franco. sem lhes trazer realmente grandes prejuízos.
O programa foi batizado com o nome do Muçum (ou Mussum) também é carioca,
quarteto, sendo exibido em horário nobre mas personifica a comunidade negra à qual
aos domingos, antes do Fantástico, a então pertence. Dentre os estereótipos que com-
coqueluche da grade. põem o personagem, destacam-se a ligação

126 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011


com a música popular e com a Escola de grante do quarteto que deveria passar por
Samba Estação Primeira de Mangueira, o alguma prova para conseguir um “prêmio”.
gosto pela cachaça e a maneira peculiar de Poucos quadros eram constantes no
se comunicar, repleta de gírias e expressões programa Os Trapalhões. A norma era a
próprias. Por fim, Zacarias, o último a se unir variedade temática, muito bem aceita pelo
ao grupo, personifica uma forma diferente público, conforme comprova o sucesso da
de comportamento, exibindo uma inocência produção. No entanto, existem algumas
infantil que contrasta com o jeito másculo exceções a essa regra. Uma delas está
de seus companheiros. relacionada aos quadros que ocorrem no
O quarteto transmitia aos telespecta- espaço fictício de um quartel do exército,
dores elementos com os quais podiam se posteriormente batizado como “Quartel
identificar facilmente, criando uma empatia Trapalhão”, nos quais há sempre a participa-
imediata entre o universo dos Trapalhões ção de todos os membros do quarteto, que,
e a realidade com a qual se defrontavam junto com artistas convidados, interpretam
diariamente. Por meio das hilárias situações o papel de soldados que devem cumprir as
que viviam, em geral com resultados favo- ordens de seus superiores.
ráveis para eles, possibilitavam um processo Esse aspecto é importante, pois se deve
catártico de realização coletiva. Essa carac- considerar que, nesse período, o país estava
terização dos membros individuais do grupo vivendo em uma ditadura militar que ca-
é mantida nas produções cinematográficas minhava para uma abertura política. Nesse
e na primeira versão quadrinizada feita a sentido, situar um quadro humorístico no
partir deles (Ramone, 2010). ambiente de caserna representa, já em si,
um desafio ao grupo dominante. E já não
se tratava mais, nesse momento, de tornar
os militares simpáticos aos olhos da po-
CARNAVALIZAÇÃO DO HUMOR pulação. Isso já havia sido feito antes, em
diversas oportunidades. Os atores Pietro
Segundo Marcos Napolitano (2007), o Mário (Capitão Furacão) e Wilson Vianna
carnaval, no Brasil, serviu de base de apoio (Capitão Asa), por exemplo, haviam “as-
para o estabelecimento de um gênero mu- sumido” postos da hierarquia militar para
sical (o samba), de um movimento cultural comandar programas infantis.
(o tropicalismo), entre outras manifestações Por outro lado, a ideia de ridicularizar o
sociais, e constitui um dos maiores celeiros exército já não era nova e nem privilégio da
das tradições construídas a respeito do país televisão quando Os Trapalhões a adotaram.
(Hobsbawm & Ranger, 2002). Nesse sen- O humorista Mário Alimare ficou conhecido
tido, os Trapalhões carnavalizam o humor na TV brasileira ao interpretar um soldado
da TV ao apostar numa fórmula simples, a bêbado no Quartelzinho Pé-com-Pano, na
partir da participação ativa dos integrantes TV Tupi, também um programa infantil, e
nos vários esquetes (Bakhtin, 2002, p. 122). as histórias em quadrinhos tinham diversas
Em geral sob o comando de Didi, eles produções satíricas relacionadas ao exérci-
compõem quadros nos quais a lógica social to, com destaque para O Recruta Zero, de
se inverte e a ordem vigente fica suspensa. Mort Walker. No caso de Os Trapalhões,
Não por acaso, nomes ligados à tropicália, eles apenas trouxeram o quadro para a TV
como Caetano Veloso e Gal Costa, gravaram Globo, pois já o haviam utilizado na TV
partipações especiais no programa. Tupi, quase que com o mesmo formato. Na
No mundo dos Trapalhões era possível Globo, no entanto, ocorre uma gradativa
ludibriar o rico usando a esperteza, assumir ampliação das situações de humor, com
uma identidade falsa – geralmente se fazen- a utilização de fantasias, caracterizações,
do passar por alguém com mais dinheiro –, disfarces e situações de duplo sentido.
criar ou desfazer um mal-entendido, sempre As dificuldades dos dois militares de
de maneira a privilegiar o “menor”, o inte- maior patente, o Sargento Pincel (inter-

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011 127


pretado pelo ator Roberto Guilherme) as gags são provocativas, zombam das
e o Coronel (vivido por Carlos Kurtz), diferenças, difamam os excluídos, ridicu-
passam aos poucos a ser mais complexas. larizam as minorias, embora eles mesmos,
Elas, com frequência, envolvem dois tipos os protagonistas, façam parte desses seg-
de situação: a comédia de enganos ou de mentos sociais. Hoje predominam outros
clara referência sexual. No primeiro caso comportamentos e esse tipo de humor teria
encontra-se um quadro em que o Coronel dificuldade para ser aceito.
ordena a Didi que o substitua na cama do O movimento do politicamente correto
casal enquanto ele vai jogar cartas com os ou de correção política parece ter se firmado
amigos, de forma a enganar sua esposa para em vários ambientes sociais. Isso atinge
que ela não perceba a sua ausência noturna. especialmente os meios de comunicação
No segundo, estão as diversas insinuações de massa, dos quais se espera, na maior
de homossexualidade dirigidas ao Sargento parte das vezes, posturas apropriadas ao
Pincel ou, em anos posteriores, a inclusão padrão vigente.
de um soldado homossexual no pelotão, A longevidade das práticas sociais não
interpretado por Jorge Lafond. tem nada de natural, sendo fruto de um
As cenas de quartel no programa Os processo histórico, político, submetido
Trapalhões ocorreram, quase que de forma aos aparatos de saber e às estratégias de
ininterrupta, nos treze anos de existência poder (Foucault, 1979). O futuro é um lo-
dessa produção televisiva. Ampliavam a cal incerto para a representação e condena
fórmula do desafio à autoridade, transfor- regularmente ao esquecimento boa parte
mando-a em total desrespeito ou descrédito delas. Que palavras e expressões escapam
a qualquer tipo de autoridade. Ao fazer à ceifa da linguagem e permanecem? E,
isso, inclusive repetindo sempre a mesma sobretudo: por que sobrevivem?
estrutura, reforçam o aspecto etnológico da O movimento de correção política é um
carnavalização defendido por Bakhtin, uma exemplo da inconstância da linguagem.
vez que a festa carnavalesca é apresentada Primeiramente restrito às universidades,
todos os anos, cada novo carnaval sendo como um código de conduta sugerido, a
bastante semelhante ao anterior. “correção política” eclodiu nos anos 1980
No programa televisivo do grupo Os e se expandiu posteriormente pela socie-
Trapalhões, especialmente no quadro dade na forma de um conjunto de regras
ambientado no quartel fictício, a ideia de de postura a serem aplicadas nos discursos
subverter a realidade, a tradição de inverter escritos e orais em relação ao tratamento
a ordem social estabelecida, básicas ao reservado a determinados atores ou grupos
conceito de carnavalização, são exercidas sociais (Queiroz, 2004).
em plenitude, ou seja, “a tendência para Embora não envolvendo uma legislação
virar o mundo de ponta-cabeça” (Gurevich, específica, o movimento foi sentido por
2000, p. 88). muitos como uma camisa de força, um
atentado à liberdade de falar e de se expres-
sar. Nesse sentido, o escritor João Ubaldo
Ribeiro (2005), em texto inflamado, coloca-
HUMOR VERSUS CORREÇÃO -se frontalmente contra as ideias propostas
pelo movimento, devido à publicação de
POLÍTICA uma cartilha denominada “Politicamente
Correto”, então recém-publicada pela Se-
O humor dos Trapalhões reflete e inter- cretaria Especial dos Direitos Humanos:
fere na realidade de seu tempo, nas formas
de ver o mundo e nas representações domi- “Não podemos aceitar esse delírio totalitá-
nantes. Visualmente ele é vigoroso, quase rio, autoritário, preconceituoso (ele, sim),
violento, além de fortemente influenciado asnático, deletério e potencialmente destru-
pela performance circense. Verbalmente, tivo – e, o que é pior, custeado com o nosso

128 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011


dinheiro. Que está acontecendo neste país?
Aonde vamos, nesse passo? Quanto tempo
falta para que os burocratas desocupados que
incham a máquina governamental regulem
nossa conduta sexual doméstica ou nosso
uso de instalações sanitárias?
[…]
Não sei mais o que dizer sobre esse descala-
bro, esse escândalo, essa vergonha, esse sinal
de atraso monstruoso, que de agora em diante
não deverei mais poder chamar de palhaça-
da, para não insultar os palhaços. Até onde
vamos regredir? É preciso que reajamos, é
indispensável que os homens responsáveis
por tal despautério sejam dispensados do
serviço público, porque lá estão para cometer
atentados à liberdade e arbitrariedades desse
tipo. É indispensável que assumamos nosso
papel de cidadãos detentores da soberania
que, pelo menos nominalmente, é entre nós
a soberania popular”.

Apesar das críticas sofridas, o movimento


chamou a atenção da opinião pública para
diversos elementos de abuso na fala cor-
rente, os quais, apesar de numerosos e
implantados na prática social, permane-
ciam obscurecidos pela naturalidade da
repetição. Ao afetar a maneira como as
pessoas se reportavam umas às outras, o
politicamente correto conseguiu alterar
a feição do discurso oral e verbal no que
diz respeito a questões espinhosas do trato
social, criando algo parecido com uma
jurisprudência discursiva.
Tome-se o racismo, por exemplo: a mi-
litância negra constitui um dos movimentos
de construção de identidade de resistência
mais desenvolvidos das sociedades con-
temporâneas e soube usar o politicamente
correto como seu aliado (Castells, 2008).
Estabeleceu parâmetros de tratamento,
consolidou o uso do termo afrodescendente
e baniu expressões racistas do vocabulário
oficial.
Ao lançar mão da ênfase na procedência
africana, o termo afrodescendente tentou
retirar o peso da cor na construção histórica
do racismo, mas não foi capaz de encobrir o
princípio do racismo, a exclusão pela raça,
independente de sua origem geográfica.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011 129


Tratar por afrodescendente um adolescen- palavras por expressões menos óbvias (mas
te negro de uma grande cidade brasileira, nem por isso menos agressivas), como “bicho
cuja família nunca tenha ido muito além bão” para se referir a mulheres bonitas, “rapaz
dos limites do bairro, não soa como uma alegre”, numa alusão ao termo “gay”, como
descrição muito precisa. sinônimo de homossexual, ou nos diversos
Apesar de pouco preparado para as nuan- apelidos “carinhosos” que trocavam entre
ces regionais, esse tipo de controle fez com si (“cabeça chata”, para Didi; “perua”, para
que o uso de expressões como “trabalhar Dedé; “azulão”, para Muçum, e “pouca-
como um negro”, “ser a negra de alguém”, -sombra”, para Zacarias, entre outros).
para citarmos expressões antigas da língua O exemplo mais bem-acabado da in-
portuguesa, caísse em desuso. Há que se correção política do grupo ocorre na carac-
notar a importância de tais medidas para terização de Muçum, que se apropriou de
todo o processo que precedeu a aprovação uma série de clichês depreciativos sobre o
de leis como a criminalização do racismo. negro brasileiro em geral (a iletralidade, o
Ainda que sua existência se configure como desleixo no vestir, o alcoolismo) e mesclou-
uma tentativa, em certos aspectos muito -os a distintivos particulares do carioca em
bem-sucedida, de dar novos contornos aos particular (morador de favela, sambista).
sujeitos sociais aos quais se dirige, como Caracterizado como um malandro do
qualquer movimento social, o politicamente morro, mesmo quando no início de um
correto está sujeito a excessos que devem quadro aparecia empregado (sempre em
ser divulgados e combatidos. tarefas de baixo grau de qualificação), no
As ações do politicamente correto decorrer da cena geralmente seu esforço
baseiam-se no reconhecimento discursivo se dava no sentido de escapar ao trabalho.
para coibir uma prática social. Ao desarti- Nesse sentido, a caracterização reforça o
cular as construções discursivas (verbais, imaginário nacional, uma vez que o vadio
visuais, sonoras) racistas, a correção política e a Lei da Vadiagem constituem uma das
cessa de nutrir a corrente de associação peculiaridades do racismo no Brasil, pois
entre a condição negra e a submissão ou sua aplicação antecede o delito. Baseada
a escravidão. apenas numa suposição, estabelece os pa-
Dentre as várias positividades (Fou- râmetros para uma conduta social aceitável,
cault, 1987) geradas pelo politicamente ligada à acumulação de bens de consumo. A
correto, destaca-se o seu antagonista, o postura oposta é condenável por representar
politicamente incorreto, um movimento uma ameaça a esses valores, na medida em
tão diversificado quanto anárquico, cuja que representa a adoção, mais ou menos
única regra era a oposição ao modo contido voluntária, de um modo de vida contrário
típico do politicamente correto. O caráter aos interesses do assalariamento.
imprevisível do humor esbarra na busca pela Carvalho (2006), aponta a passagem da
previsibilidade do movimento, na anulação mão de obra negra e escrava para a cate-
do risco, na neutralização dos discursos e goria de trabalhador livre (e pobre) como
os derruba a todos de um só golpe. elemento vital para o êxito do capitalismo
O deslocamento de sentido de expres- industrial no país, criando um contingente
sões recorrentes do vocabulário politica- de mão de obra necessário às novas relações
mente correto causa estranheza. O que num de produção. Para controlar o excedente,
contexto (o das lutas sociais) é construção de a “vadiagem” torna-se contravenção, e
sujeitos, em outro (o do humor) soa absurdo, aqueles que não se encaixam na ética de
falso, rebuscado, desproposital. E levanta trabalho em consolidação são postos à
a dúvida a respeito dos possíveis excessos margem, excluídos, encarcerados. Assim,
do politicamente correto em outros campos, criminalizar a vadiagem foi equivalente
além do humor. a qualificar a pobreza e a marginalidade
Especialmente, o vocabulário dos Tra- como defeitos, má-formação individual e
palhões incluía também a substituição de não social. Ser pobre passou a ser ligado à

130 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011


falta de vontade de trabalhar e, como tal, Muçum funcionavam também como uma
criminalizado. Assim, como a maioria da ação afirmativa, a qual se completava pelo
população de baixa renda é formada por ufanismo em relação a sua origem pobre,
negros e mestiços, as características físicas no Morro da Mangueira.
continuaram a influenciar nas relações so- Prova do sucesso do personagem,
cioeconômicas republicanas e a diferenciar passados quinze anos desde a morte do hu-
padrões estéticos e comportamentais aceitos morista, em 1994 (que apressou a iminente
ou não na sociedade brasileira. Muçum dissolução do grupo, já desfalcado de Mauro
incorpora, portanto, o tipo preguiçoso e Gonçalves, o Zacarias, falecido quatro anos
beberrão, sempre a um passo da contraven- antes), a identidade de resistência ligada a
ção, que habita a literatura brasileira desde Muçum foi resgatada numa montagem, sem
o século XIX (Candido, 1970). autoria definida, recentemente veiculada
Os bordões do personagem e todas as na Internet.
piadas sobre a cachaça – no linguajar de Na esteira da iconografia que surge em
Muçum, “mé” –, por exemplo, exploravam torno do presidente dos Estados Unidos
os defeitos e “fraquezas” da raça. Dentre da América, Barack Obama, empossa-
seus clássicos destaca-se “quero morrer do em 2009, a imagem (Figura 1) traz
pretis (sic) se eu estiver mentindo”, usado Muçum sorrindo, de terno e gravata, em
especialmente quando Muçum estava con- estilo pop-art. Abaixo, a legenda, uma só
tando uma mentira. A frase, dita por um palavra escrita em maiúsculas: “Obamis”
negro, desloca a associação racista (“morrer De maneira semelhante ao cachimbo de
preto” seria o equivalente a uma punição) Magritte (Foucault, 2002), acontece um
para o plano do nonsense, esvaziando reconhecimento pela negação. Sabemos
seu sentido. Mote cômico, os “erros” de que a imagem não corresponde à legenda,
mas ao mesmo tempo algo nessa legenda
nos devolve à imagem.
Figura 1 Vestido de maneira formal e represen-
O “nosso” Obama tado com as cores do partido Democrata
norte-americano, ainda assim é possível,
para um grande número de pessoas (o
verbete “Obamis” contabiliza 12.900
resultados quando se utiliza a ferramenta
de busca Google, na Internet, conforme
busca realizada em 22 de outubro de 2010),
reconhecer imediatamente o indefectível
final estilizado que Muçum adicionava
aleatoriamente à sua fala.
O deslize em relação à norma culta do
português torna-se uma marca de brasilida-
de, abafando mesmo a incorreção política
camuflada em culto pop de um tipo de ico-
nografia que remete ao estereótipo racista de
que todos os negros (ou asiáticos, ou índios)
se parecem e são, portanto, iguais. Mas,
se qualquer negro serve para representar
Obama, o tipo ideal, a paródia “Obamis”, o
“nosso” Obama, o brasileiro, só possui um
referencial. A singularidade do comediante
permite que sua identificação com o leitor
Reprodução

se dê mesmo que o signo verbal indique


outro caminho.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011 131


dimento, por parte de seus redatores e dos
CONCLUSÃO próprios artistas que compunham o grupo,
das características do público e dos elementos
O humor sempre teve um papel de des- que podiam cativá-lo. Ao se colocar como
taque na composição da programação da representantes de segmentos menos valori-
televisão brasileira. Nesse ambiente, o grupo zados, carnavalizar as relações hierárquicas
de comediantes conhecido como Os Trapa- e brincar com a própria situação de exclusão,
lhões ocupou um lugar especial. Ao trazer eles proporcionaram – ou desencadearam –,
um humor de caráter popular que explorava a cada programa apresentado, uma reação
tipos comuns, ele possibilitou a empatia dos catártica ainda não suficientemente dimen-
espectadores com as situações retratadas. Seu sionada pelos estudiosos da comunicação de
sucesso provavelmente está ligado ao enten- massa no Brasil. Eis o desafio.

BIBLIOGRAFIA

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense-Universitária, 2002.


BRAUNE, Bia; XAVIER, Ricardo. Almanaque da TV. Rio de Janeiro, Ediouro, 2007.
CANDIDO, Antonio. “Dialética da Malandragem (Caracterização das Memórias de um Sargento de
Milícias)”, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. n. 8. São Paulo, 1970, pp. 67-89.
CARVALHO, Marina V. Vadiagem e Criminalização: a Formação da Marginalidade Social do Rio de
Janeiro de 1888 a 1902. XII Encontro Regional de História, 12. Niterói, Associação Nacional de
História, 2006 (disponível em: http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/ conferen-
cias/Marina%20Vieira%20de%20Carvalho.pdf; acesso em 19/out./2010).
CASTELLS, Manuel. “A Sociedade em Rede”, in Manuel Castells. A Era da Informação: Economia,
Sociedade e Cultura. v. 1. São Paulo, Paz e Terra, 2005.
________. “O Poder da Identidade”, in Manuel Castells. A Era da Informação: Economia, Sociedade e
Cultura. v. 2. São Paulo, Paz e Terra, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
________. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987.
________. Isto Não É um Cachimbo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.
GUREVICH, Aaron. “Bakhtin e Sua Teoria do Carnaval”, in Jan Bremmer; Herman Roodenburg (orgs.).
Uma História Cultural do Humor. Rio de Janeiro, Record, 2000, pp. 83-92.
HOBSBAWM, E. J.; RANGER, T. A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.
NAPOLITANO, Marcos. A Síncope das Ideias: a Questão da Tradição na Música Popular Brasileira. São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.
QUEIROZ, Antônio Carlos. Politicamente Correto e Direitos Humanos. Brasília, SEDH, 2004.
RIBEIRO, João Ubaldo. “Politicamente Correto. Linguagem e Delírio Autoritário”. Artigo publicado
em 3/5/2005. Observatório da Imprensa (disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.
br/artigos. asp?cod=327IPB004).
RAMONE, Marcus. “Os Trapalhões na Bloch Editores: a História de um Clássico dos Quadrinhos”, in
Universo HQ [site]. Publicado em 29 jul. 2009 (disponível em: http://www.universohq.com/qua-
drinhos/2009/trapalhoes.cfm; acesso em 19/out./2010).

132 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 122-132, dezembro/fevereiro 2010-2011


roberto romano

roberto romano
é professor do
Departamento de
Filosofia do Instituto
de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp
e autor de, entre
outros, O Caldeirão de
Medeia (Perspectiva).
em demasia. É preciso aprender a julgar os
textos para não lhes dar consideração maior
do que a merecida. Os estadistas, pessoas
prudentes, não costumam escrever pois as
lguns pensadores como Paul Virillo suas linhas poderiam ser examinadas com
definem a vida contemporânea muito rigor pelos pósteros. Se escrevem,
com o signo da velocidade. tentam ser exímios na arte das letras. É assim
Outros a determinam pelo vín- que Sócrates enquadra o invento chamado
culo entre a ordem particular escrita. Esta seria ideada pelo deus Teuth
e pública com o espetáculo. que, por sua vez, a comunicara ao faraó
O fato é que as duas vias se Thamus, soberano de Tebas. O rei não se
encontram quando refleti- entusiasma com o feito e diz temer que a
mos sobre o barulho que escrita, em vez de tornar as pessoas sábias
nos enlouquece a cada as prejudique, fazendo-as crer que pensam
instante. Estradas e o que enxergam nas letras. E temos o mais
ruas insuportá- conhecido símile entre artes e texto, lugar
veis ao ouvido, divertimentos que fariam comum da Grécia clássica, entre palavras
o alarido das bacantes parecer murmúrio, redigidas e as artes:
cultos religiosos efetuados aos berros, tanto
em igrejas ortodoxas quanto nas reformadas, “Os produtos da escrita são como os da
tom de voz humana mais próximo aos urros pintura. Interroguem os quadros; eles
das selvas. Não apenas a nossa cultura se responderão por majestoso silêncio. In-
pauta pela espacialização: o sentido do terroguem os livros; eles sempre darão a
tempo, a escuta, se perde a cada átimo numa mesma resposta. Vocês podem acreditar, ao
ciranda infinda. Em tal cacofonia, o sentido escutá-los, que eles são muito sábios. Mas,
lógico das palavras se dissolve com rapidez uma vez escrito, um discurso gira por todos
inédita e percebemos o quanto o discurso, os lados, nas mãos dos que o compreen-
em todos os âmbitos, se banaliza e decai dem como daqueles para os quais eles não
nas formas da propaganda e da histeria. foram escritos. Ele nem sabe a quem falar
Não existem mais comícios políticos, são ou diante de quem calar. Desprezado ou
poucas as procissões religiosas, mas o ri- atacado injustamente, ele sempre precisa de
tual satânico da incomunicação anuncia o um pai que o socorra; pois ele não resiste
reinado de máquinas inteligentes e usuários nem ajuda a si mesmo”.
“humanos” a cada hora menos atilados. As
mônadas, dizia Leibniz, não têm portas O poeta, o prosador, todos corrigem o
nem janelas. No mesmo ímpeto em que que escrevem. Mas todos eles precisam da
nos fechamos numa jaula definida como palavra interior, e devem cultivá-la com
tecnosfera, perdemos a capacidade de falar enorme atenção para merecer o nome de
e de ouvir. As linhas que seguem pretendem filósofo, o amante da sabedoria.
ser uma pequena meditação sobre tal lado Saltemos os milênios que nos separam de
de nossa existência, em pleno século XXI. Sócrates e consultemos Camille Mauclair,
A poesia contemporânea exprime o silêncio o amigo de Mallarmé: “O credo do artista
numa espécie de paranoia da palavra escri- moderno é o silêncio”. Também Octavio
ta, desconfiança renovada em indefinidos Paz: “A atividade poética nasce do desespero
modos desde Platão. Sabemos a crítica do diante da impotência da palavra e culmina
faraó Thamus ao deus Teuth, o fabricante no reconhecimento da onipotência do si-
das letras. Sócrates, no Fedro (pp. 274-61), lêncio”. O mundo moderno, ainda segundo
recorda que em tempos pretéritos muitos sá- Paz, é presa do “discurso do afásico”. Com
bios escreveram sobre a retórica, incluindo o esfacelamento da teologia e do sistema
Por motivos editoriais, as notas
a refinada Safo. No entender de Sócrates, newtoniano do universo, a escrita que
se encontram no final do texto. um de seus interlocutores, Lísias, escreve deles falava também se desintegra, sendo

136 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011


que hoje a função profissional do escritor do silêncio, o equívoco. A filosofia, desde
é a de ser “jardineiro de epitáfios”. Esses seus primórdios, tenta arrancar o equívoco
testemunhos foram recolhidos por Diana da linguagem comum e dos enunciados
C. Niebylski (1993) num bonito livro (se científicos. No “Plano de Universidade para
é possível, com tais confissões, escrever e o governo da Rússia”, Diderot imagina a
publicar…) intitulado O Poema no Fio da geometria como “a melhor e a mais simples
Palavra: os Limites da Linguagem e o Uso de todas as lógicas, a mais própria para
do Silêncio na Poesia de Mallarmé, Rilke fornecer inflexibilidade ao juízo e à razão”.
e Vallejo. Na verdade, tal desagregação da Os equívocos da língua seriam reparados
escrita própria à racionalidade mecânica pelas matemáticas: “[…] se nossos dicio-
que ruma para o silêncio teve forte impulso nários fossem tão bem feitos ou, o que é o
no romantismo e, mesmo, nas Luzes no mesmo, se as palavras usuais fossem tão
século XVIII1. bem definidas quanto as palavras ‘ângulos’
Ao se referir às superstições verbais e ‘quadrados’, sobrariam poucos erros e
(o desejo de manter o próprio nome em disputas entre os homens. É a esse ponto de
segredo, por exemplo), autores que publi- perfeição que todo trabalho sobre a língua
caram nos inícios do século XX afirmam deve tender”. O pensador logo percebeu que
que o mesmo século “sofre de uma forma o seu alvo, como o de Platão, Aristóteles
ainda mais penosa do que qualquer época ou dos filósofos medievais e modernos, era
anterior” naquele ponto. inatingível. Mas a tarefa de sanar a língua
escrita e falada continua hoje, em setores
“Devido ao desenvolvimento dos métodos como a filosofia e a lógica, em escritores
de comunicação e à criação de muitos como Carnap, Quine, Wittgenstein e outros.
sistemas simbólicos especiais, a forma da Ainda agora, no entanto, em especial no
enfermidade se alterou consideravelmen- plano da ética e da política, segue válida a
te; e, além da peculiar sobrevivência da advertência diderotiana:
apologética religiosa, toma agora formas
ainda mais insidiosas que no passado. As “[…] é do idioma de um povo que preci-
influências que favorecem sua ampla di- samos nos ocupar, quando queremos dele
fusão se definem na tediosa complexidade fazer um povo justo, razoável, sensato. Isto
do aparato simbólico disponível hoje; a é tão importante que, se o senhor refletir um
posse, entre os jornalistas e letrados, de momento sobre a rapidez incompreensível
imenso vocabulário semitécnico, sua falta da conversa, o senhor conceberá que os
de oportunidade ou vontade de buscar o uso homens não profeririam vinte frases num
adequado; o êxito de pensadores analíticos dia, se eles se impusessem a necessidade de
em campos limítrofes aos das matemáticas, ver distintamente em cada palavra por eles
tornando ainda mais pronunciado o divórcio dita qual é a ideia ou a coleção de ideias
entre símbolo e realidade e mais atrativa a que a ela se apegam” (apud Romano, 1989).
tendência à hipóstase; a extensão de um
conhecimento das formas mais toscas da Em Ser e Tempo (§ 37) Heidegger analisa
convenção simbólica (os três R ingleses, a fala equivocada (Die Zweideutigkeit) não
ler, escrever, aritmética) combinado com apenas entre cientistas e público, mas na
um alargamento do abismo entre o público própria “comunidade acadêmica”. O saber,
e o pensamento científico de sua época; e na era de sua divulgação máxima, tornou-
finalmente, a exploração, com fins políti- -se dificilmente distinto das suas várias
cos e comerciais, da imprensa, mediante expressões vulgares. Com a imprensa “tudo
a disseminação e reiteração dos clichês” assume a aparência de ter sido o verdadeiro
(Ogden & Richards, s.d., p. 54)2. captado, colhido, expresso, mas no fundo,
nada o foi”. Num mundo onde a informação
Com esse comentário, somos condu- se acelera ao máximo, a parolagem dogmá-
zidos a outro limite da escrita, da fala e tica de intelectuais e jornalistas é a norma:

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011 137


“Cada um não apenas conhece e discute o quelas pessoas só a boca opera, enquanto
que se passou e o que está vindo, mas cada o ouvido permanece trancado.
um sabe também falar sobre o que deveria A palavra tem como serventia trazer
ocorrer, sobre o que ainda não ocorreu, mas credibilidade. Se ocorre a inflação de palavra
deveria ‘evidentemente’ ser feito. Cada um ela perde força. O perigo maior é quando à
sempre farejou e pressentiu de antemão o garrulice somam-se outras doenças como
que os demais farejaram e pressentiram. o uso do vinho. “O que está no coração do
Este modo de seguir pelos traços e pelo sóbrio está na língua do ébrio”. Dos locais
ouvir-dizer […] é insidioso o bastante para a serem temidos quando um governo possui
que o equívoco faça entrever ao existente tagarelas a seu préstimo, a barbearia é a
possibilidades que, ao mesmo tempo, ele mais ameaçadora. O rei Arquelau respondeu
abafa no germe”. assim ao barbeiro gárrulo que lhe perguntou
como desejava cortar o cabelo: “Em silên-
Na sociedade da informação os termos cio!”. Marius dominava a região de Atenas
científicos e acadêmicos circulam de modo mas um bando de velhotes, conversando no
imediato (Heidegger, 1967, pp. 173 e segs.). barbeiro, deu a entender aos espiões que um
Heidegger, como boa parte dos filó- setor da cidade estava desguarnecido. Sylla,
sofos contemporâneos, se nutre de Platão sabedor do ponto fraco, ataca à noite e quase
e seguidores, embora faça parecer que arrasa a cidade, a qual ficou cheia de cadáve-
os combate. Citarei dois textos dos mais res a ponto de um riacho de sangue invadir
influentes na formação da ética ocidental, o Cerâmico. Quando ocorreu a conspiração
do helenismo aos nossos dias. São tratados para assassinar Nero, um inconfidente, ao
complementares de Plutarco, um sobre a ver passar certo prisioneiro rumo à cela,
fala em excesso e imprudente e outro so- cochichou para o infeliz que ele deveria
bre a curiosidade. No primeiro3 o médico tudo fazer para resistir um dia a mais, pois
e filósofo propõe remédios para a cura do então estaria libertado. O condenado achou
equívoco e da garrulice. Trata-se de uma de bom aviso contar o que ouviu para Nero.
tarefa quase impossível, pois o tratamento O resto é conhecido. Conselho de Plutarco:
supõe o uso do remédio (pharmakon) que,
no adoecido de palavrório, perde validade. “Se deixas escapar o segredo para depositá-
De fato, o que fala em demasia gastou o -lo em outra pessoa, recorres à discrição
poder do logos. Para a sua cura é essencial alheia, mas renuncias à tua. Se ele se parece
o mesmo logos. Como fazê-lo ouvir a razão contigo, tua perda é justa; se melhor do que
(na língua grega, logos e razão identificam- tu, salvas-te contra toda lógica ao encontrar,
-se) se ele fala e não ouve, não arrazoa antes para teu bem, um outro mais seguro do que
de jogar palavras ao vento? Tal é o primeiro a tua pessoa, ‘mas o amigo é um outro eu!’6.
sintoma, diz Plutarco, do nosso adoecido: Sim, mas ele também possui um amigo, a
“[…] a língua mole torna-se impotência do quem confidenciará… e que confiará em
ouvido”. Mas é pior: a surdez do falador é outro… […] a palavra que permanece na
deliberada, o que o faz criticar a natureza que primeira pessoa é segredo de verdade, mas
lhe deu apenas uma língua e dois ouvidos4. desde que passou para uma segunda adquire
Na parolagem sem freios o remédio a ser o estatuto de rumor público”.
usado é o próprio veneno: trata-se do logos,
ele mesmo doente. Se as demais insanidades O texto de Plutarco traz muitos exem-
podem ser curadas pela palavra ou podem plos unidos aos boatos políticos que hoje,
ser entendidas5, nesse caso a situação é na política dominada pela fala inglesa, é
“embaraçosa”, como traduz Amyot, ao ler tarefa dos spin doctors7. O Senado romano
o paradoxo inicial do texto plutarquiano. manteve reuniões secretas e a mulher de um
O logos adoecido, fluxo instável, não tem senador exigia de seu marido informações
solidez alguma. No acometido de logorreia sobre os encontros. O político finge anuir e
ele é menos remédio e mais veneno. Na- diz-lhe o “segredo”: tratava-se de uma ave

138 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011


com lança e capacete dourado, que surgira do segredo na publicidade. No mundo em
na cidade. O rumor seguiu até o fórum, antes que reina o “se”, todos os indivíduos estão
do homem que o inventou. Para punir sua sujeitos à discrição alheia. O que em Plu-
mulher, ao chegar em casa ele fingiu que a tarco era doença de alguns, em nossos dias
coisa era séria e, pela inconfidência, seria tornou-se pandemia. Mas o alheio, hoje, não
exilado. “Que desejas partilhar comigo?”. A possui determinação certa, pode ser alguém
resposta do poeta Filipides ao rei Lisímaco e ninguém ao mesmo tempo. Quando o in-
é a correta: “Tudo, menos teus segredos”. divíduo fala algo, ou faz, afirma de imediato
Enfim, a “cura” do palavrório, segundo a culpa como advinda “dos outros”. Trata-se
Plutarco, não pode ser conseguida de modo de um truque bem conhecido pois a fórmula
violento, mas criando-se outros hábitos. O “os outros” recolhe também quem fala ou
autor insiste nesse ponto, essencialmente faz. “Os outros” surgem na imprensa, no
ético: o falador deve ser treinado para ficar ônibus, nos passeios, nas reuniões sociais, e
em silêncio, prestar atenção ao dito (treinar neles todos são dissolvidos, o ego incluído.
o ouvido) e fugir das conversas gratas aos Trata-se de uma indiferença ou indistinção
faladores. Se militar, ele deve ser afastado generalizada na qual pouco importa o que
das narrativas heroicas e assim por diante. eu ou você fala, porque ambos “falamos” o
Diríamos que os pescadores devem ser que “se fala” e “como se” fala. O discurso
impedidos de se imiscuir em histórias de perde sabor individual. Mesmo no “escân-
pescaria… Isso porque se entram no fluxo dalo” não ocorre falha entre o público e o
discursivo predileto podem falar mais privado: ambos são diversificações do indis-
do que o necessário para engrandecer e tinto modo de agir e julgar preestabelecido,
embelezar o relato, o que dirige a língua o “se” (fala-se, diz-se, ouviu-se dizer que,
ao exagero sem o freio do pensamento. etc.). Julgamos escandaloso o que “se” (o
Basófias são fonte segura de segredos que público) julga escandaloso.
se escoam. Um conselho: quando não se Heidegger, como indiquei, identifica
puder deixar de vez as ondas palavrosas, na mídia a grande força de pasteurização
tente-se passar da oralidade à escrita. A ou esmigalhamento dos indivíduos e da
literatura, embora ainda possa exercer a linguagem. Na mídia nada é secreto porque
indiscrição (certo filósofo foi chamado nela inexiste o contato efetivo com o que
de “pena que berra” em Atenas), pode ser é, mas apenas com a média das percepções
mais controlada pelo autor. Outra cura: e da linguagem sobre eventos e seres. A
fazer o linguarudo frequentar pessoas dele mediania não desce fundo nas coisas e
diferentes, deixando o círculo dos seus palavras, ela inscreve-se num horizonte
iguais. O respeito de opiniões ponderadas medíocre que “facilita” a compreensão de
lhe fornecerá o hábito de calar. todos. Desse modo, a mídia não admite
Além da cura ética (mudança da postura, exceções, ela é democrática e igualitária.
héxis), Plutarco recomenda reflexão e vi- Assim, ela não autoriza a surpresa diante
gilância antes de falar. Diante da possível de novos conhecimentos. Se aparece algo
enunciação, perguntar sempre: “Qual o assim, ela sempre tenta “mostrar” que o
propósito? É urgente? Que se ganha ao falar? saber alegado é antigo. Na mídia não existe
O que se perde?”. A via régia foi aberta por reconhecimento do que foi conquistado em
Simonides, o poeta: nos arrependemos com muito tempo e pesquisa. A novidade é a sua
frequência do que falamos, mas nunca do regra, o instantâneo, o seu procedimento, o
que silenciamos8. O treino tudo pode do- público é seu alvo e pressuposição. Com a
minar. Muitos pensadores modernos, para mediania, “todo segredo perde a força e o
falar do segredo e da necessária disciplina mistério. A preocupação da média evidencia
que ele exige, usam Plutarco mas esquecem uma nova tendência do existente (Dasein),
de indicar a fonte. É o que se passa com e nós a chamaremos nivelamento de todas
Heidegger. Em sua análise da comunicação as possibilidades de ser”. Esse nivelamento
moderna o filósofo sublinha a perda radical constitui a essência da “opinião pública”. O

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011 139


referido público, como o freguês no mer- Tal forma de compreender é dogmática e
cado, sempre está com a razão e “decide” dispensa todas as distinções entre a fala e
a correta interpretação de tudo: aplausos os objetos. Ela é a verdade em andamento.
mais ou menos longos decidem a verdade, A garrulice não dissimula, não se esconde
a beleza, a maestria técnica dos candidatos em nenhum segredo porque ela mesma já é
nos programas de auditório. O mesmo dissimuladora. Quando um linguarudo fala
ocorre nas pesquisas de opinião pública que ele esconde sem saber ou desejar o que deve-
decidem quais são os melhores aspirantes ria ser dito, joga um véu de sons acima dos
ao governo do Estado. O que é o “público” entes que deveriam ser pensados. Quando
no qual imperam os hábitos encobertos pela fala o tagarela, ele impede toda discussão
forma do “se”? posterior. “Tudo está dito.” E nada deve ser
O “se” é a impessoalidade coletiva que perguntado. Desaparece o segredo no mais
“descarrega” os indivíduos de si mesmos, banal, na opinião pública11.
deixando-os sem qualquer responsabilidade No De Garrulitate Plutarco afirma que
ou culpa. Eles “fazem” ou “fizeram” o que a doença próxima, gêmea do falatório, é
“se” faz. Desse modo, nada é sério para os a curiosidade12. O tratado em que o mo-
indivíduos, nada é grave, tudo é frívolo. Eles ralista analisa o tema possui acentuado
jamais têm culpa e tudo é objeto de risadas, sentido político entre os gregos. Como
comentários, falatórios, fofocas. A covardia indica Jean Dumortier (Plutarque, 1975,
penetra o comportamento mediano obe- pp. 261 e segs.), tradutor e intérprete de
diente ao “se”. Nada, ali, que não pudesse Plutarco citado há pouco, a prática da
encontrar em Rousseau uma descrição cor- polupragmonsune13 reside na tendência a
tante9. Quanto mais o “se” parece manifesto se imiscuir indiscretamente nos assuntos
em toda parte, mais ele é imperceptível e alheios, sejam eles privados ou públicos. Os
dissimulado. E agora entramos na parte de atenienses criaram um termo para designar
Ser e Tempo que retoma sem citar o texto de o sujeito que especula o que não lhe diz
Plutarco indicado acima, o De Garrulitate. respeito: sicofanta (na origem, com bas-
O § 35 escrito por Heidegger tem a mesma tante probabilidade, sicofanta era o delator
estrutura e andamento igual ao do tratado dos que roubavam figos, nas comédias de
plutarquiano. Indiquei, ao passar por aquele Aristófanes os delatores e os sicofantas são
texto, que o primeiro ponto nele inscrito é ridicularizados). O emprego de alcaguetes
a dificuldade de curar o palavrório, visto marca os tiranos. Na República, quando Pla-
que a doença está inserida no instrumento tão traça a pintura sinistra do tirano, entra a
da cura, o logos que deve ser ouvido pelo imagem dos mercenários que, caso sua terra
enfermo. Este não escuta porque tem toda a possua cidadãos prudentes e sábios, dela
sua alma voltada para a língua. Heidegger, saem para servir em cidade estranha “como
no início de seu parágrafo, distingue entre ladrões, furadores de muralhas, cortadores
escutar e ouvir. de bolsas, afanadores de roupas, pilhadores
Ouvir e compreender agarram-se ao que de templos, praticantes de tráfico escuso;
se diz, enquanto se diz. Não ocorre preocu- por vezes, caso sejam capazes de falar,
pação imediata com o objeto, com o que se tornam-se sicofantas, falsas testemunhas,
diz. Quando alguém fala sem prestar atenção agentes da corrupção”14. Tais pessoas são
ao falado, apenas transmite e repete a fala. usadas pelo tirano para dominar os cidadãos
Quanto mais pessoas ouvem um discurso livres. Possui importância estratégica a
mais ele toma caráter autoritário, “isto é atividade do sicofanta, delator a soldo do
assim porque assim se diz”. A parolagem tirano. Mas para delatar é preciso seguir o
chega ao máximo quando se rompe todo segredo onde ele se encontra.
elo entre a palavra e o objeto que ela de- A diatribe de Heidegger contra o pala-
veria colher. E a parolagem oral ou escrita vrório (Gerede) tem origem em Platão, por
é nutrida por leituras maquinais. Temos a mais que o pensador germânico se coloque
compreensão média, repetitiva, pública10. em sentido contrário ao autor dos Diálogos.

140 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011


No que tange ao palavrório da massa, da oposto: lamentos chamados “trenos”. Os pe-
imprensa e dos universitários modernos, ans eram uma espécie distinta, outra ligada
combatido por Heidegger, a origem da ao nascimento de Dionisos seria o ditirambo,
crítica também se localiza em Platão, na etc. Reguladas as coisas, não era permitido
República e nas Leis. No caso das Leis, a abusar de uma das formas, transpondo-a
base do processo contra o falatório situa-se para outras. O poder de julgar sobre elas e
na crítica endereçada aos poetas, quando julgar com conhecimento de causa e punir
estes últimos abalam a medida prudencial os transgressores não pertencia às vaias
a que deveriam se submeter, ameaçando a ou aplausos, mas era decidido por homens
vida pública. sábios que tudo ouviriam em silêncio e,
A justa medida, diz Platão, é essencial com a varinha nas mãos, estabeleceriam a
na ordem política e nas relações do corpo ordem e advertiriam crianças e professores.
(alimentos) ou técnicas (nos navios, não se Esta a ordem aceita pelos cidadãos, sem
pode usar mais velas do que o preciso). Na que eles tivessem a audácia de recorrer à
alma não podem ser usufruídos direitos ex- gritaria para opinar.
cessivos. Sem justa medida tudo se inverte. Os poetas foram os primeiros a corroer
Ali a abundância de carnes que leva à doença, as leis da música. Eles são dotados para
aqui a ilimitação (hybris) que gera a injusti- a poesia mas nada conhecem da Musa
ça (adikia). A alma dos jovens não suporta enquanto fonte de legitimidade e fé públi-
o peso do poder, logo é infectada da mais ca, misturam as formas e levam tudo a se
grave doença, a desrazão (anóia). Contra tais confundir, pretendem mentirosamente, em
excessos cabe ao legislador prudente, graças sua desrazão involuntária, que na música
à justa medida, tomar precauções. não existe lugar para a retidão e que, além
E chega o instante dos pesos e contra- do prazer que se encontra no seu gozo, não
pesos do poder. Em Esparta, em vez do rei existe meio correto de decisão, melhor ou
único, existia uma dupla de reis reduzindo pior. Eles inculcam na massa o hábito de
o poder à justa medida. Além disso, o voto infringir as leis e a audácia de se acreditar
de 28 anciãos que possuem, nos assuntos capaz de decidir. Resultado: antes, o público
mais graves, poder igual ao dos reis. Há um não falava no teatro (era ἄφωνος), depois,
terceiro salvador com o poder dos Eforos, começou a falar como se entendesse o que
algo que se aproxima do sorteio. O governo é belo na música, ou não, surge então uma
de Esparta combina poderes, o que leva à “teatrocracia” (θεατροκρατία) depravada
salvação coletiva. Juramentos não contro- que substitui o poder dos melhores juízes.
lam a alma de um jovem candidato à tirania. Se apenas em música, e em música apenas,
Importa limitar a medida dos poderes, fundir surgisse uma democracia composta por
num só os três poderes. indivíduos de uma cultura liberal, não ocor-
No mundo conhecido, adianta Platão, reria algo tão desastroso. Mas na verdade é
existe de um lado o poder autocrático dos pela música que se iniciou, entre nós, com
persas e o temperado de Esparta. É preciso a crença na sabedoria de todo mundo para
sempre o tempero, o acorde correto. Tal julgar, a atitude subversiva. Nenhum medo
teoria do poder tem como pressuposto uma os retinha pois se acreditavam sábios, e
visão do universo e da sociedade como har- essa ausência de medo gerou a impudência,
monia. Na ordem política deve ser mantida audácia de não temer a opinião de quem
a ordem antiga sob o domínio das antigas vale mais do que nós. Eis a impudência
leis. Nela, o povo não tinha soberania nos detestável, efeito de uma liberdade cuja
assuntos mas era escravo voluntário das leis. arrogância é levada ao excesso.
Quais leis seriam as referidas? As rela- Embora seja possível recolher nos textos
tivas à música. Na época antiga a música platônicos elementos para nos aproximar
era dividida segundo espécies e formas do silêncio (a Carta Sétima é decisiva na
próprias. As preces aos deuses eram cantos, condenação da escrita e da fala excessivas),
hinos. Depois havia uma espécie de canto também é permitido ler os Diálogos como

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011 141


prelúdio do mundo em que são votados Mas o outro, além da mulher, pode ser o
ao silêncio involuntário todos os que se judeu e o homossexual. Em sua meditação
encontram no terreno da alteridade, os que sobre a alteridade na literatura moderna e
não entram no campo do supostamente romântica, Hans Mayer, ao falar do segun-
normal. Platão propõe um papel ativo para do sexo e seus marginalizados, se refere
as mulheres, à diferença de outros filósofos às femmes fatales do romantismo, todas
como Aristóteles15. Shoshana Felman (1978, “inatingíveis, infantis, fatais, impossíveis
pp. 138 e segs.), em certa altura de seu livro de serem afetadas pela palavra e pela razão
intitulado A Loucura e a Coisa Literária, masculina”. E adiante: “[…]só se pode
começa um capítulo importante (“As discutir a femme fatale como se ‘discute’
Mulheres e a Loucura: História Literária e bruxaria”. Em relação ao homossexualismo
Ideologia”) com uma epígrafe assustadora: a estrutura de marginalização se retoma com
“O silêncio dá às mulheres as suas graças matizes tão sombrios quanto no caso da
próprias”. Trata-se de uma passagem de mulher. E quanto aos judeus, algo próximo
Sófocles na peça Ajax. E Felman (1978, se apresenta. Não irei analisar o livro de
p. 141) aponta o truque muito comum dos Mayer, rico quando se trata de perceber as
que falam sempre “em nome de”16. Ela se armadilhas supostamente libertárias dos que
refere ao “gesto opressivo da representação se erigem em “salvadores” da alteridade,
pelo qual, na história do logos, o homem mas que de fato instituem dominações mais
ocidental reduziu, precisamente, o outro (a sutis dos que as anteriores, mantendo a capa
mulher) a objeto silencioso e subordinado”. de silêncio sobre os que não entram na senda
Felman analisa um conto de Balzac cha- do normal, comum, correto (Mayer, 1989).
mado “Adeus”. Dois caçadores se perdem Tomemos a exigência platônica de
na floresta e perguntam a duas mulheres silêncio dos não especialistas em filosofia
onde estavam. Uma delas é surda e muda e ou música (para Platão, as duas ordens se
a outra, louca afásica. As duas mergulham confundem). Poderíamos nos espantar se
no silêncio. A única palavra que a triste no século XVIII, na Inglaterra e França, o
afásica repete é “adeus”. Um dos homens, teatro fosse destinado ao consumo da elite
diante da palavra, desmaia pois reconhece a nobre ou econômica. Os lugares são caros.
companheira que o seguira na viagem para Mas existe espaço para os “negativamente
a Rússia durante as guerras napoleônicas. privilegiados” (o termo é de Max Weber)
Quando a situação se tornou insuportável ele como em Paris, na plateia, os lugares em
a colocou numa jangada e dela se despediu pé para os da classe média, estudantes e
com um adeus. O sujeito tenta curar o antigo intelectuais. Em 1781 a Comédie-Française
amor. O tratamento começa com pequenos se instala em novo edifício e a plateia é
grãos de açúcar dados à senhora, uma espé- provida de assentos. Com a nova disposição
cie de amestramento. O alvo era fazer com do mobiliário, aumenta o silêncio no teatro.
que ela o reconhecesse. Ele resolve montar Como diz um comentador, “não existem
uma cena, exatamente a última que ocorreu mais gritos vindos do fundo da sala, nem
entre eles na Rússia, com direito ao rio, à gente que comia em pé, assistindo às peças.
jangada, ao adeus. E no palco erguido ele O silêncio do público parecia diminuir o
pergunta se ela o reconhece. O falocentrismo prazer de assistir a uma representação. Essa
é mais do que evidente. Ela não é, ele é e reação nos permite adivinhar o sentido da
deve ser reconhecido. Ele fala, ela mergulha participação do público”. Na Inglaterra, os
ainda mais no silêncio da morte. “Não me nobres tinham assento no palco. Eles faziam
reconheces? Sou eu, teu Filipe!”. Filipe não o que bem quisessem naquele espaço: grita-
articula a questão “quem é ela?” mas sim vam para seus amigos, misturados aos atores.
“quem sou eu”. A resposta joga o silêncio Havia uma troca de conivências, não apenas
sobre ela. A coisa piora quando ele afirma entre atores e nobres, como entre atores e
ansioso: “Tu és a minha Stefânia”, ou seja, público geral. Este, por sua vez, mantinha
uma propriedade perdida de Filipe… o autocontrole. “Era objetivo e muito crítico

142 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011


em relação aos atores e atrizes que o faziam Em Ser e Tempo, não por acaso, antes
chorar. O público queria interferir diretamen- de entrar no domínio do falatório, Hei­
te com o ator; e o fazia graças a um sistema degger examina o olhar. Como sempre,
de ‘pontos’ e um sistema chamado settling seu empréstimo não confessado a Platão e
(literalmente, regulação de contas)”. Voltan- a Plutarco faz o leitor não perceber que se
do a Paris, ainda no século XVIII. Numa das trata, no caso do olhar, do velho tema da
Cartas Persas o herói de Montesquieu vai vista maldosa que busca ver o que se passa
à Comédie-Française e ali “não distingue na casa alheia, ignorando a própria. Em
os atores na cena e os espectadores na sala. Plutarco, os olhos reúnem duas formas de
Todo mundo se exibe, assume poses, se atenção: a pesquisa (zetesis) e a curiosidade,
diverte. A distração, a tolerância cínica, o a chamada “polupragmosine”. Enquanto o
prazer partilhado em companhia dos outros, zetetés, o investigador, usa os olhos para
tais são alguns dos sentimentos contidos na captar o permanente e atinge um conheci-
concepção comum do homem ator”17. mento dificilmente comunicável, o curioso
No século XIX as mutações do espaço atarefado recolhe informações sobre tudo
social e das artes permitem o desdobramento e todos, sobremodo das coisas e atos sem
dos indivíduos entre atores e não atores. relevância para o Bem. Ao redor da mesma
imagem, vemos se produzir, na crítica do
“Quando a personalidade irrompe no domí- conhecimento e da moral, duas atitudes di-
nio público, a identidade do homem público ferentes. A mente curiosa, afirma Plutarco, é
se desdobra. Certa minoria de indivíduos como a Lâmia mitológica. “Quando dormia
continua a se exprimir ativamente, perpetu- em sua casa, ela depositava os olhos num
ando a tradição de homem ator instaurada vaso. Saindo, Lâmia os colocava em seu
no Antigo Regime. No meio do século XIX, rosto e podia ver”. Todos os homens, quando
essa minoria é constituída de atores profis- não se dedicam à pesquisa e à virtude, são
sionais. Mas, paralelamente, se forma uma Lâmias: “[…] cada um de nós… pratica a
nova espécie de espectador. Esse espectador indiscrição maldosa com o olho, esquecen-
não participa da vida pública, mas se abriga do as próprias faltas e taras por ignorância
para melhor observá-la. Pouco seguro de (agnóia), porque não tem o meio de vê-las
seus próprios sentimentos […] este homem, e de esclarecê-las” (De Curiositate, 2).
à diferença do homem do Antigo Regime, A pesquisa leva ao descobrimento de
tem sua realização pública não mais em tudo, trazendo para os olhos as formas
seu ser social, mas em sua personalidade. permanentes das coisas. Enquanto isso,
Se ele se mantém disciplinado e sobretudo
silencioso em público, ele viverá coisas que “curiosidade é a paixão de conhecer o
não pode viver por si mesmo”. escondido e o dissimulado. Mas ninguém
esconde o bem que possui. Às vezes nos atri-
O espectador, indivíduo isolado, ao se buímos um bem que não temos. O curioso,
tornar passivo, espera sentir mais. “Olhar em seu desejo de saber o que vai mal entre
a vida que passa em silêncio, eis o que os demais, é tomado pela maldade, irmã
significa para este indivíduo a ‘liberdade’”. da inveja e da calúnia. Porque a inveja é a
Então, “observadores silenciosos frequen- tristeza causada pelo contentamento alheio
tam o espaço público […] as necessidades e a maldade é alegria pela sua infelicidade.
projetadas sobre o ator se transmutam, Ambas nascem de uma cruel paixão, a
os espectadores se fazem voyeurs. Eles ruindade” (De Curiositate, 6).
se isolam uns aos outros e se liberam por
uma espécie de fantasia ou sonho desperto, Plutarco tem cura para a curiosidade: a
olhando a vida que passa na rua. Temos própria pesquisa. Quem se acostumou ao
aqui, em germe, o paradoxo moderno do mal curioso deve curá-lo de modo homeo-
isolamento no interior da visibilidade” pático. O tratamento consiste em “transferir
(Sennett, 1979, pp. 152 e segs.). a curiosidade, transformando-a em gosto da

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011 143


alma por assuntos honestos e agradáveis: falta de segredo. Estamos dispostos a tolerar
seja curioso do que se passa no céu e na terra, muitas coisas, desde que elas sejam impostas
nos ares e no mar, os segredos da natureza, com violência e em segredo”.
pois esta não se enraivece quando eles são
roubados…” (De Curiositate, 5)18. Essas frases tremendas de Elias Canetti
Finalmente recordo o imenso autoritaris- são precedidas de outras, não menos temí-
mo de todos os projetos que desejam impor veis no capítulo intitulado “O Segredo” de
silêncio aos que escapam ao controle da Massa e Poder: “Uma das características do
boa norma. Poderia falar sobre a censura, o poder é a distribuição desigual do calar das
segredo, molas da razão de Estado moderna, intenções. O poderoso cala, mas não permite
sempre com o fito de fornecer aos governan- que os demais se calem. Ele mesmo deve
tes maior força física, impostos, leis contra ser o mais reservado de todos. Ninguém
os governados. Carl Schmitt, jurista próximo pode conhecer suas convicções nem suas
de Heidegger, chama a burguesia de “classe intenções”. E adiante, ao falar dos tiranos
discutidora”19 retirando esse epíteto de Juan antigos e modernos, diz Canetti (1986, pp.
Donoso Cortés, autor do Discurso sobre a 326 e segs.) que
Ditadura. Tal diatribe inspirou o fascismo, o
nazismo e todas as ditaduras que infernizaram “[…] o poder do silêncio sempre é altamente
o século XX na América do Sul. apreciado. Significa que se é capaz de resistir
aos incontáveis motivos externos que nos
“Uma boa parte do prestígio de que gozam induzem a falar […] o silêncio pressupõe
as ditaduras deve-se ao fato de lhes ser um conhecimento exato daquilo que não se
concedida a força concentrada do segredo, diz. Como na prática não se emudece para
que nas democracias se reparte e se dilui sempre, faz-se uma opção entre o que se
entre muitos. Com sarcasmo diz-se que nas pode dizer e o que não se diz. Silencia-se o
democracias tudo se dilui em palavrório. que melhor se conhece. É algo mais preciso
Todos falam demais, todos se intrometem e também mais precioso […] o silêncio isola,
em tudo, nada acontece que não se saiba quem cala está mais solitário do que os que
previamente. Tem-se a impressão de que a falam. Assim, atribui-se a ele o poder da
queixa se origina da falta de decisão, quando singularidade. Ele é o guardião do tesouro
na verdade a decepção tem sua origem na e o tesouro está dentro dele”.

NOTAS

1 Um trabalho sugestivo, ainda em nossos dias, é o de M. H. Abrams (1971). Em meu livro, Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot (Romano,
1997), analiso o campo em questão. Antes dele, no livro Conservadorismo Romântico (Romano, 1997) e em Corpo e Cristal, Mar Romântico
(Romano, 1985), examino o plano mais amplo em que o problema da fala e da imagem se instala. Quanto à ordem do discurso teológico e
da imagem, a discuto em Brasil, Igreja Contra Estado (Romano, 1979). Autores como Alcir Lenharo (1986) ampliaram as minhas observações
em sentido histórico, aplicado à produção cultural brasileira.
2 O trecho citado encontra-se no capítulo cujo título é “O Poder das Palavras”.
3 Peri adoleskias (De garrulitate). Uso aqui a edição das Moralia da Loeb Classical Library, volume VI, trad.W. C. Helmbold (Cambridge, Harvard
University Press, 1970), pp. 396 e segs.
4 Brincando com termos de medicina, Plutarco diz que o nome da doença do falador é asingesia, ou seja, impossibilidade de manter silêncio.
O outro lado da mesma doença seria a anekoía, inabilidade para escutar. Resulta numa doença, também nomeada por Plutarco, a diarréousi,
diarreia da língua. Nota de Helmbold.
5 Sobre o tema, a bibliografia é imensa. Não pretendo discutir tais pontos que exigem competência e cautelas próprias. Uma análise cuidadosa
encontra-se nos textos de Pedro Lain Entralgo. Refiro-me especialmente ao seu livro: La Relación Médico-enfermo. Historia y Teoria (Entralgo,
1983), “[…] o silêncio é como o húmus em que germinam e assumem sentido as palavras pronunciadas, quando estas são algo mais do que
simples algaravia gárrula, quando a fala, Rede diria Heidegger, não se transformou em Gerede (palavrório)” (Entralgo, 1983, p. 313). Outro
escrito do mesmo autor trata desse problema: La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica (Entralgo, 1987). Particular proveito para
nosso tema fornecem as páginas l54 e segs. “[…] para Platão, o agente catártico que a ‘doença da alma’ requer é a palavra idônea e eficaz.
Impondo evidências ou infundindo persuasões, a expressão verbal de quem saiba ao mesmo tempo ser professor e médico – ‘psicagogo’,
diria Platão – é capaz de reordenar as almas que sofrem de ametria e reintegrá-las em seu verdadeiro ser” (Entralgo, 1987, pp. 154-5).
Para a imagem, cf. Louis P. (1945): “Le Discours”. Também Taillardat (1965), “Le Flot des Paroles” e “Le Bavardage”.

144 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011


6 Plutarco cita Aristóteles que, na Ética a Nicômaco (Livro IX, 1166 a31, 1170 b7), afirma: “O homem bom experimenta vários sentimentos
para consigo mesmo e porque ele sente para com o seu amigo do mesmo modo que sente por si mesmo (porque um amigo é um outro
eu), a amizade também é pensado como consistindo em um ou outro desses sentimentos, e julga-se a posse deles como um teste de um
amigo”. Uso a edição da Loeb Classical Library (Aristotle, 1990, p. 535).
7 Entre muitos escritos sobre o assunto, cf. Alan Partington (2002).
8 Desse enunciado, uma tradução bem fundamentada encontra-se no Tractatus Logico-Philosophicus de Lugwig Wittgenstein: “Wovon man
nicht sprechen kann, daruber muß man schweigen”. Na tradução de C. K. Ogden: “Whereof one cannot speak, thereof one must be silent”.
Cf. no seguinte site: http://www.kfs.org/~jonathan/witt/tlph.html. Para uma análise interessante, cf. Sandra Laugier: “Le Secret et la Voix du
Langage Ordinaire”, in Modernités, Dossier Dire le Secret (2002). Também no seguinte endereço eletrônico: http://formes-symboliques.org/
article.php3?id_article=154#nh62. Cf. também, em outros parâmetros, Emmanuel Rouillé, “Le Secret et l’Alétheia Grecque”, Le Portique,
Recherches 2 – Cahier 2 2004, endereço eletrônico: http://leportique.revues.org/document465.html.
9 “Aujourd’hui […] il règne dans nos mœurs une vile et trompeuse uniformité, et tous les esprits semblent avoir été jetés dans un même moule:
sans cesse la politesse exige, la bienséance ordonne: sans cesse on suit des usages, jamais son propre génie. On n’ose plus paraître ce qu’on
est ; et dans cette contrainte perpétuelle, les hommes qui forment ce troupeau qu’on appelle société, placés dans les mêmes circonstances,
feront tous les mêmes choses si des motifs plus puissants ne les en détournent. […] Les soupçons, les ombrages, les craintes, la froideur, la
réserve, la haine, la trahison se cacheront sans cesse sous ce voile uniforme et perfide de politesse, sous cette urbanité si vantée que nous
devons aux lumières de notre siècle. On ne profanera plus par des jurements le nom du maître de l’univers, mais on l’insultera par des blas-
phèmes, sans que nos oreilles scrupuleuses en soient offensées. On ne vantera pas son propre mérite, mais on rabaissera celui d’autrui. On
n’outragera point grossièrement son ennemi, mais on le calomniera avec adresse. Les haines nationales s’éteindront, mais ce sera avec l’amour
de la patrie. A l’ignorance méprisée, on substituera un dangereux pyrrhonisme. Il y aura des excès proscrits, des vices déshonorés, mais d’autres
seront décorés du nom de vertus ; il faudra ou les avoir ou les affecter.” Rousseau: no texto premiado pela Academie de Dijon (1750): Si le
rétablissement des sciences et des arts a contribué à épurer les mœurs. E na Carta a d’Alembert: “Si nos habitudes naissent de nos propres
sentiments dans la retraite, elles naissent de l ‘opinion d’auttrui dans la société. Quando on ne vit pas en soi, mais dans les autres, ce sont leurs
jugements qui réglent tout, rien ne parait bon ni désirable aux particuliers que ce que le public a jugé tel, et le seul bonheur que la plupart des
hommes connaissant est d’etre estimés heureux”. Pleiade, V. V (Paris, Gallimard, 1995), páginas 61-62. No Discurso sobre a Desigualdade:
“le sauvage vit en lui-même; l’homme sociable toujours hors de lui ne fait vivre que dans l’opinion des autres, et c’est, pour ainsi dire, de leur
seul jugement qu’il tire le sentiment de sa propre existence”. Comentário: o homem social se esvazia nas múltiplas opiniões. Cf. P. Burgelin
(2005). Também, A. Hartle (1983).
10 Exemplo excelente dessa parolagem é indicado por Thomas Hobbes: “Na maioria das pessoas […] o costume tem um poder tão
grande que se a mente sugere uma palavra inicial apenas, o resto delas segue-se pelo hábito e não são mais seguidas pela mente. É
o que ocorre entre os mendigos quando rezam seu paternoster. Eles unem tais palavras e de tal modo, como aprenderam com suas
babás, companhias ou seus professores, e não têm imagens ou concepções na mente para responder às palavras que enunciam. Como
aprenderam, ensinam a posteridade. Se levarmos em contra os enganos do sentido e como os nomes foram inconstantemente deter-
minados, o quanto estão submetidos ao equívoco e o quanto se diversificam pela paixão (raramente dois homens concordam sobre o
chamado bem e mal, o que é liberalidade, prodigalidade, valor ou temeridade) e o quanto os homens são sujeitos ao paralogismo ou
falácia no raciocínio, posso concluir de certa maneira dizendo que é impossível retificar tantos erros de um só homem, como devem
proceder daquelas causas, sem começar de novo dos verdadeiros fundamentos iniciais de todo conhecimento, os sentidos; e, em vez
de livros, ler ordenamente as nossas próprias concepções; nesse sentido eu entendo o nosce teipsum” (The Elements of Law, 1, 5. “Of
Names, Reasoning, and Discourse of the Tongue”. Electronic Text Center, University of Virginia Library – http://etext.lib.virginia.edu/
toc/modeng/ public/Hob2Ele.html).
11 De Platão até hoje, a opinião (doxa) deve ser combatida pela ciência. Em Hegel, a opinião pública (Die öffentliche Meinung) ao mesmo
tempo carrega elementos verdadeiros e incertos, produtos da raciocinação sem profundidade (o famoso Räsonieren, forma inferior da
Razão). Uma pessoa ponderada não leva a sério a opinião pública, pois a própria opinião pública engana a si mesma. É preciso apreciá-
-la, pensa Hegel, mas também desprezá-la. Para que algo verdadeiro ou grande seja feito, é preciso que o sujeito tenha independência
(Unabhängigkeit) diante dela. Ligada à opinião pública, a imprensa é o lugar do limitado, contingente, com infinita diversidade de conteúdo
e modos de falar. O modo científico rompe com as alusões, as palavras postas pela metade. Ele exige uma expressão sem equívoco (cf.
Hegel, 1975, pp. 318 e segs.). Estamos a um passo da noção de ideologia e de opinião pública enquanto falsa consciência (cf. J. Habermas,
1984, p. 149). E também Norberto Bobbio (1996), que compara nesse livro as teorias da ideologia em Marx e Pareto.
12 “À garrulice se apega um mal que não lhe é inferior, a curiosidade (periergia): deseja-se saber muito, para muito falar. São especialmente
histórias de segredo e de coisas escondidas, das quais se deseja encontrar os traços enfiando as fuças em todas as direções […]. Diz-se
que as enguias do mar e as víperas morrem ao dar a luz aos seus filhotes; assim, os segredos, ao escapar, arruinam e destroem os que não
os guardam” (cf. Plutarque, 1975, p. 242).
13 Além de Jean Dumortier, cf. Adkins (1976, pp. 301-27).
14 “[…] hoia kleptousi toichôruchousi, ballantiotomousi, lôpodutousin, hierosulousin, andrapodizontai: esti d’ hote sukophantousin, ean dunatoi ôsi legein,
kai pseudomarturousi kai dôrodokousin” (República, IX, 575 b). Uso o texto do site Perseus. “Por exemplo, roubam, arrombam as muralhas,
surrupiam as bolsas, assaltam os passantes, fazem captura e tráfico de escravos e, às vezes, quando possuem o dom da palavra, tornam-se
sicofantas, falsas testemunhas e se deixam subornar” (Platão, 2006, p. 345). E também a tradução francesa de Leon Robin, Oeuvres Complètes
de Platon (Paris, Gallimard, 1953, p. 1.180).
15 Analiso esse ponto em “A Mulher e a Des-razão Ocidental” (Romano, 1985),
16 Em Brasil, Igreja contra Estado, me levanto contra os “libertários” eclesiásticos ou leigos que se proclamam “a voz dos que não têm voz”.
Caracterizo tal atitude como ventriloquismo, interessado no poder que, hipócrita, sequer confessa tal alvo. Como diz Elias Canetti, “nunca
vi um só homem deblaterando contra o poder, sem o creto desejo de possuí-lo”.
17 Todos esses pontos são extraídos de Sennett (1979).
18 Utilizo a edição Belles Lettres: De la Curiosité, traduzido por Dumortier (Plutarque, 1975, pp 266 e segs.). Na Encyclopédie, o verbete
“Curiosité” é quase todo extraído de Plutarco pelo Chevalier de Jaucourt: “A curiosidade inquieta de saber o que os demais pensam de
nós, é o efeito de um amor próprio desordenado. O imperador Adriano, que nutria ternamente esta paixão, deve ter sido um mortal

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011 145


muito infeliz. Se tivéssemos um espelho mágico que nos revelasse a toda hora as ideias dos outros sobre nós seria bom quebrá-lo sem
usá-lo. (Este enunciado repete Francis Bacon, RR). A curiosidade de algumas pessoas que sob pretexto de amizade informam-se com avidez
sobre nossos assuntos, projetos, sentimentos, e segundo o poeta: Scire volunt secreta domûs, atque inde timeri… é um vício vergonhoso. […]
Mas prefiro me fixar na curiosidade digna do homem e a mais digna de todas é o desejo de aumentar os conhecimentos, seja para elevar
o espírito rumo às mais altas verdades, seja para torná-lo útil aos concidadãos”.
19 Cf. Antonio Bento, “Culto Público do Privado e Segredo no Estado de Direito Liberal”, Universidade da Beira Interior (na Internet).

BIBLIOGRAFIA

ABRAMS, M. H. The Mirror and the Lamp, Romantic Theory and the Critical Tradition. Oxford, Universi-
ty Press, 1971.
ADIKNS, W. H. “Polupragmosune and ‘Minding One’s Own Business’: A Study, Greek Social and Politi-
cal Values”, in Classical Philology, 71, 1976.
ARISTOTLE. Nicomachean Ethics, Volume XIX. Ed. H. Rackham, London, Harvard University Press,
1990.
BOBBIO, Norberto. Saggi Sulla Scienza Politica in Italia. Torino, Laterza, 2 ed., 1996.
BURGELIN, P. La Philosophie del ‘Existence de J.-J. Rousseau. Paris, Vrin, 2005.
CANETTI, Elias. Massa e Poder. Brasilia, Ed. Universidade de Brasília, 1986.
ENTRALGO, P. L. La Relación Médico-enfermo. Historia y Teoria. Madrid, Alianza, 1983, especialmente
nas páginas 40, 88, e 313 segs.
_______. La Curación por la Palabra en La Antiguedad Clásica. Barcelona, Editorial Anthropos, 1987.
FELMAN, Shoshana. La Folie et la Chose Littéraire. Paris, Seuil, 1978.
HABERMAS, J. Mudança Estrutural da Ordem Pública. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro Ed., 1984.
HARTLE, A.: The Modern self in Rousseau’s ‘Confessions’. A Reply to St. Augustine. Indiana, University of
notre Dame Ed., 1983.
HEGEL. Principes de la Philosophie du Droit. Trad. Robert Derathé. Paris, Vrin,1975.
HEIDEGGER. Sein und Zeit. Tubingen, Max Niemeyer Verlag, 1967.
LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. Campinas, Papirus, 1986.
LOUIS, P. Les Métaphores de Platon. Rennes, Impriméries Réunies, 1945.
MAYER, Hans. Os Marginalizados. Rio de Janeiro, Guanabara, 1989.
NIEBYLSKI, Diana. C. The Poem on the Edge of the Word: the Limits of Language and the Uses of Silence
in the Poetry of Mallarmé, Rilke and Vallejo (Peter Lang Ed., 1993).
OGDEN, C. K. e RICHARDS, I. A. El Significado del Significado, una Investigacion Acerca de la Influencia
del Lenguaje sobre el Pensamiento y de la Ciencia Simbolica. Buenos Aires, Ed. Paidos, s/d.
PARTINGTON, Alan. The Linguistics of Political Argument. The Spin Doctor and the Wolf-Pack at the
White House (New York, Routledge, 2002).
PLATÃO. A República. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva, 2006.
PLUTARQUE. “De Garrulitate”, in Oeuvres Morales, TomeVII-1. Trad. Jean Dumortier. Paris, Les Belles
Lettres, 1975.
ROMANO, Roberto. Brasil, Igreja Contra Estado. São Paulo, Kayrós, 1979.
________. Corpo e Cristal, Mar Romântico. Rio de Janeiro, Guanabara, 1985.
________. Lux in Tenebris. Campinas, Ed. Unicamp/Cortez, 1985.
________. Conservadorismo Romântico. São Paulo, Ed. Unesp, 2a ed., 1997.
________. Silêncio e Ruído, a Sátira em Denis Diderot. Campinas, Ed. Unicamp, 1997.
SENNETT, Richard. Les Tyrannies de l’Intimité. Paris, Seuil, 1979.
TAILLARDAT, J. Les Images d’Aristophane. Paris, Le Belles Lettres, 1965.

146 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 134-146, dezembro/fevereiro 2010-2011


milton torres

MILTON TORRES
é diplomata e doutor
em História pela USP.
ao tempo de Dom João V, pela inclusão
dos cacauais do Madeira e da courama do
Piauí. Tal progresso é, pois, extensivo. O
longo reinado do Fidelíssimo mantinha,
sobre a colônia, visão estritamente fiscal.
Nenhum investimento oneroso de parte
da Coroa. O rei reinava com as ordens; o
regular, pela sua formação, uma espécie de
militar da inteligência no espaço transatlân-
tico; enlaçavam-nos as relações estritas do
padroado. Amiúde, os prelados das ordens
comunicam-se com o soberano ou com o
Conselho Ultramarino. No caso particular
da Amazônia Ocidental, tocou aos carme-
litas de Belém a consolidação do espaço
ocupado no Rio Negro e no Solimões. E
contava o rei com os seus índios mansos,
droguismo do vale eufemismo para os índios frecheiros a
a­ma­zônico nos sé- serviço do estamento, que deslocava para
culos XVII e XVIII funções punitivas, por vezes do distante
e a plantation ma- Ceará às plagas úmidas do Amazonas.
ranhense do arroz e O Fidelíssimo vela pela coleção dos tri-
do algodão de finais butos, mas não articula planos de integração
do século XVIII a – antes até de fechamento de rios e de certas
meados do XIX nun- vias de acesso, temeroso do descaminho do
ca geraram rendas comparáveis às dos ouro. A sua administração é burocrática e
grandes dias da agro­indústria açucareira miúda, ainda que assaz eficiente na políti-
de Pernambuco e do Recôncavo Baiano, ca externa, em particular na ocupação ou
já muito elevadas na década de 1580. Nem consolidação de espaços coloniais, tal foi o
o tabaco nortenho se nivelou, em qualquer caso da bacia do Solimões, iniciada ao fim
tempo, ao de Cachoeira da Bahia no reinado do governo de seu pai. Mesma e maliciosa
de Dom João V. Nem aquelas especiarias política no caso da negociação do tratado
do sertão, às da Ásia tropical; a identidade de Madri, feita sobre o vicioso “mapa das
do nome vulgar de certas drogas, tal como Cortes”, habilmente impingido ao fraco e
o cravo das terras nortenhas, extraído da desinformado Fernando VI de Espanha, e no
casca, representa planta diversa, de muito qual a Vila Boa de Goiás era posta dentro do
menor valor de mercado que o cravo das meridiano de Tordesilhas, e Cuiabá, muito
Molucas, este florífero. Também a canela, menos a ocidente do que a carta afigurava.
ademais de produzida em outras partes do Tais eram, em realidade, os expedientes da
Brasil, era o espécime de casca espessa, diplomacia da época.
diverso e muito menos procurado que o de Revelam os despachos – Dom Pedro II e
casca fina, do Ceilão – Ceilão e Molucas Dom João V – certa diferenciação. De um a
cedo ocupados pelos flamengos. Assim, a outro dos monarcas, restringe-se o diálogo
renda dos produtos florestais do Norte (onde com as câmaras, enquanto aumentam os des-
incluo genericamente o Maranhão, hoje pachos aos governadores-gerais, ouvidores
parte do Meio-Norte, quando, em realidade, e autoridades fazendárias, representantes
o Maranhão é muito mais Norte, e o seu par, imediatos da Coroa. Mais minucioso e
o Piauí, é muito mais Nordeste) permanecia mais autoritário, Dom João V favorece,
incomensuravelmente aquém das áreas em princípio, as funções burocráticas. O
monocultoras do Brasil no século XVII. Há seu espírito minucioso e contabilista mais
progressos a registrar na economia nortenha sopesa os gastos que o investimento pro-

148 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011


dutivo. E é maciça a correspondência com logrou suprir o Maranhão de mão de obra
os religiosos, a quem manda ou admoesta, agrícola; inicia-se a plantation do arroz e do
no melhor estilo regalista. A administração algodão. Supressos os jesuítas e cerceadas
joanina, mais que qualquer outra, usa os as demais ordens, passa o Grão-Pará a ser
regulares como funcionários de inteligência; regido pelo Diretório, minuciosa legislação
Carvalho e Melo laiciza-a, no governo se- comprometida com os princípios antagônicos
guinte. A função simbólica dessas posturas da liberdade do ameríndio e a compulsão
está refletida na própria arquitetura lisboeta, deste ao trabalho segundo o modelo con-
a Baixada Pombalina rígida, uniforme, tal cebido pelo Estado Iluminado. O Diretório
soldados perfilados, as igrejas integradas não podia prescindir da mão-de-obra do
no todo, quase indistintas... indígena, que pretendeu aportuguesar pelo
Os despachos autoritários (entre eles os uso compulsório da língua portuguesa e por
que exaltam, de um modo ou outro, a figura demais métodos de aculturação. Também
de Dom João V como rei absoluto) podem os núcleos urbanos passaram a monotona-
esconder fraquezas. A maior parte da infor- mente repetir os nomes dos de Portugal. O
mação era movida por cartas e consultas iluminismo pombalino é eminentemente
dos governadores, ouvidores, provedores, etnocêntrico, espesso ao entendimento de
clero secular e, principalmente, regular, ou certas realidades locais. Os deslocamentos
particulares, na velha tradição portuguesa de grupos indígenas na região, inspirados
de que todos podem falar ao rei. Grande na memória, de fins dos Seiscentos, da pena
número dos papéis coloniais provinha das do ouvidor Rosa Pimentel, foram causa
partes e era elevado ao monarca em forma do perecimento de número ponderável de
de consulta. A visão da realidade de con- indivíduos. E não reteve, do texto de Rosa
junto pode formar-se e transformar-se nesse Pimentel, aquela formulação flexível, típica
processo miúdo de consultas e despachos. dos juízos colhidos da experiência, pois
Editos da Coroa podem esvaziar-se no Pimentel associa o potencial de aprovei-
contato menos auspicioso com interesses tamento do índio ao convívio deste com o
imediatos da realidade colonial. Era comum mameluco, já passos adiante no processo
que a autoridade administrativa tanto maxi- dito civilizatório. O mameluco, dotado de
mizasse questões de seu interesse, quanto certas funções de chefia, a comunicar-se
minimizasse outras. E as ordens religiosas com o branco. Rosa Pimentel prevê des-
lograram, por muito tempo e infinitos e sutis locamentos do ameríndio e do mameluco
recursos, eximir-se dos tributos da circu- para postos de fronteira e foz de rios, mas
lação de bens ou da coleção de heranças. não parece em tal proposta sugerir o uso
Assim, entre o poder efetivo e a aparência da mão pesada de que se valeu o marquês.
do poder, há clivagens por vezes profundas. São, pois, do ministro de Dom José, os
O soberano também pode, de modo incon- deslocamentos manu militari, com a sabida
fesso, pactuar uma relação discursiva com perda de vidas.
os seus representantes coloniais, ou com os As fontes da informação administrativa
súditos, em que o propósito maior não seja de Carvalho e Melo foram muitas – as cartas
mais que a mantença ou o incremento da amazônicas do seu irmão e capitão-general,
imagem de rei e senhor absoluto; a matéria Mendonça Furtado, e Paulo da Silva Nunes,
de fato sendo, no caso, menos relevante. que produziu a mais longa e fundamentada
Tocará a Carvalho e Melo, a despeito de crítica à atuação das ordens religiosas no Es-
todos os seus equívocos, a primeira política tado. Mas a laboriosa redação do Diretório
abrangente a ser adotada no Estado. não evitou – e talvez não pudesse mesmo
O estabelecimento da companhia pomba- evitar – a gestão das caixas de poupança
lina de comércio para o Norte – Companhia estabelecidas em favor do índio, nas mãos
Geral do Grão-Pará e Maranhão –, logrado de uma sociedade branca, rapace e habitua­
através da maximização sem precedentes da a já século e meio de escravização do
de privilégios, e associado ao trato negreiro, mesmo ameríndio. Os êxitos do marquês

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011 149


registram-se afinal no aumento da produção econômico, afirmando-se sobre o Grande
econômica das duas capitanias do Norte e Rio e seus afluentes, aconselhou Dom João
no incremento do tráfego marítimo, o qual V em 1737 a, discretamente, ordenar ao novo
logrou, dentro da melhor teoria mercantilista governador que se instalasse em Belém).
da época, expandir o comércio negreiro, Ali se fixará o governo-geral. Atendia essa
carreado por navios nacionais. O Diretório medida à atração que o negócio das drogas
votado à falência em pouco mais ou menos do sertão exercia sobre governadores, go-
vinte anos de má operacionalidade; perdura vernados e religiosos. O êxito – competitivo
a questão indígena. – da canoagem dos moradores e aquela dos
O retrato mais vivo que se colhe do es- religiosos erigiu em Belém a morada dos
tilo administrativo do marquês está decerto droguistas exitosos e as opulentas igrejas
refletido na carta que dirigiu ao sobrinho, das ordens, a que eram adjuntos os amplos
Melo e Póvoas, designado governador da armazéns de negócios. Tal arquitetura, do-
capitania do Maranhão: o rei é “puro e per- cumento e símbolo da atividade comercial
feito”, e não o deve desmentir “a cópia”, na dos regulares. Nas proximidades, as casas
pessoa dos seus prepostos. “Nos generais senhoriais dos droguistas leigos – naquela
substitui El-Rei seu alto poder, fazendo duas contiguidade nem sempre cômoda dos dois
imagens suas: esta lembrança fará V. Exa. grupos que disputavam a mesma mercância.
exemplar de predicados virtuosos, para que O fastígio da plantation do arroz no
não vejam os seus súditos a sombra da cópia Golfão maranhense e os algodoais de
desmentir as luzes do original, que é puro Alcântara, engrossados, ademais, do tra-
e perfeito [...]”. Assim, o vínculo da função to escravista, maiormente em mãos dos
administrativa é absoluto entre o rei e seus moradores, determinaram, em São Luís,
prepostos (leia-se, diante do omisso Dom arquitetura de cunho civil e laico: o sobrado,
José, o próprio Pombal), nada e ninguém mais com dependências, nos diferentes andares,
a interpor-se na relação assim estabelecida. para o comércio, a família do proprietário,
Não admira, pois, a supressão dos jesuítas e o alojamento dos compradores vindos do
a coerção imposta às demais ordens, mesmo Golfão, aquele outro espaço fluvial, mais
fossem elas ilibadas de qualquer compro- modesto que o amazônico, mas dotado de
metimento econômico. Só os religiosos pluviosidade e de terras agrícolas aptas a
seculares, afinados ao governo, cabem na abrigar a plantation do arroz, quando a
proposta pombalina. É de notar, aliás, que companhia de comércio pombalina trouxe
a mesma postura político-administrativa a abundante mão-de-obra africana. Para os
migra ao Brasil independente: o padre Feijó, lados de Alcântara, os grandes algodoais que
durante o período regencial, manterá estrito absorvia a tecelagem, de início britânica
e restritivo rigor sobre as ordens. e sequente à Industrial Revolution. Essa
O número dos papéis de Estado relati- mesma economia negreira prosseguirá pelo
vos ao Estado setentrional, em não sendo século XIX, sofrendo finalmente os percal-
pequeno, é menor que o dos documentos ços dos agentes econômicos locais, que não
sulistas. E relativamente poucos os estudos souberam ou não puderam acompanhar as
regionais no período colonial. As próprias mudanças registradas no império a partir
capitulações das histórias do Brasil inci- da segunda metade do mesmo século. As
dem numa imprecisão quando, ao tratarem igrejas das ordens religiosas em São Luís
do período, agregam ao fim uns poucos são desapontadoramente mais pobres e
capítulos, senão um só, sobre o estado acanhadas: a equação da riqueza civil e da
do Maranhão e Grão-Pará, tal fosse um religiosa, diferenciada nas duas capitanias
addendum ao já dito do Estado do Brasil. – retrata-o a paisagem urbana numa cidade
Mais exato seria, de início, intitular: Amé- e na outra.
rica Colonial Portuguesa, estado do Brasil, O ecossistema da hileia não teria,
estado do Maranhão e Grão-Pará (e estado contudo, sido o móbil do desenho lindeiro
do Grão-Pará e Maranhão, quando o eixo do estado do Maranhão e Grão-Pará, por-

150 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011


quanto o Piauí, com o seu ecossistema tão
diferenciado, foi logo acrescido ao estado,
como, por algum tempo, o Ceará. O sistema
de ventos da costa norte, que dificultava a
navegação com o Brasil, e o atraso de um
século entre a colonização sulista e norte-
nha respondem melhormente pela divisão.
Assim, o século I do estado do Maranhão
correspondeu ao II do Brasil. E isso implica
consequências substanciais. Os homens de
Pernambuco que ganharam o Norte levavam
consigo a tradição autoritária do engenho.
Mas o êxito açucareiro será ali medíocre.
Os poucos estabelecimentos de plantio
e moagem não resistiram, no quadro da
fragilidade geral da economia nortenha, à
crise do fim dos Seiscentos. A despeito das
medidas protetoras adotadas pela Coroa,
desmantelaram-se pela venda das peças
metálicas da moagem, dos escravos, dos
bois (não eram, de regra, engenhos corren-
tes e moentes, quanto muitos daqueles em
Pernambuco). João de Moura, autor de que
trato pormenorizadamente em Manuscritos
do Grande-Norte (ainda no prelo), examina
com agudeza a economia e a sociedade da
área. Prioriza a cultura à coleta. E provê
informações substanciais sobre o cultivo
tanto dos tabacos fortes quanto dos suaves,
e os usos específicos de uns e de outros,
enfatizando, assim, a vertente mercado-
lógica do produto; seria mesmo provável
que tivesse ciência das particularidades
do consumo diferenciado dos tabacos no
promissor mercado britânico. Discorre,
igualmente, sobre a comercialização do
açúcar nortenho, que, mais perecível por
deficiência do refino, sofre deterioração
maior pela detença no transporte transatlân-
tico. No Maranhão, as pequenas quantidades
produzidas, insuficientes para assegurar o
frete imediato, ainda mais se alteram na
dilação. Um dos pontos fortes do ensaio é,
pois, a habilidade de relacionar produção,
beneficiamento e transporte. Diversas, pois,
das condições da extensa e capitalizada
produção do estado do Brasil, apta a as-
segurar melhor refinação, fluxo regular do
transporte, subsistência da maior parte do
equipamento fabril dos engenhos e retenção
da escravaria, ou de parte significativa da

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011 151


mesma, durante a alongada crise de preços da Amazônia corresponde, no estado do Bra-
das décadas finais do século XVII. A mesma sil, ao avanço terrestre do bandeirismo, cada
crise atingia o tabaco, razão por que talvez qual com características próprias, aquela por
tenha ocorrido a João de Moura o projeto canoagem, este a pé ou a cavalo, belicosos
da diversificação daquele mesmo bem; o ambos. Moura fornece, para o ecúmeno
Brasil, até então, produtor menos afeito amazônico, expressiva página sobre a não
ao apuro da qualidade, no consumo pouco conformação do indígena ao sistema – a
exigente que, desse item de escambo, faziam morte, a fuga, a menor operosidade.
os sobas de África. Vale medir a assom- A identidade taxonômica que pretende
brosa queda de preços, acentuada a partir estabelecer entre o cravo asiático e o ame-
da década de 1660. A arroba do açúcar na ricano é errônea, e a explicação que oferece
praça de Lisboa em 1650 valia 3.800 réis, – para um comentador dos seus talentos – é
3.600 em 1659, 2.400 em 1668, 1.400 a pueril, ademais de indicativa da ignorância
1.500 em 1688. Paralelamente, o arrátel generalizada do próprio estamento portu-
do tabaco, que se vendia em 1650 a 260 guês, à época, sobre os cultivos asiáticos.
réis, baixou em 1668 para 200 réis, e vinte A longa permanência lusitana nas praças
anos depois não excedia o valor irrisório do Oriente, matéria de que trato com mais
de 70 réis. Superprodução sem dúvida, mas vagar em O Maranhão e o Piauí no Espaço
recessão do mercado igualmente. A riqueza Colonial, não fora bastante para assegurar o
das metrópoles, ademais de outras causas, conhecimento pleno do cultivo das espécies
era afetada pelo aviltamento de preços dos utilitárias. Ingleses, flamengos e franceses
produtos coloniais que maciçamente pro- tinham superior informação e superiores
duziam com o braço escravo adquirido em meios de aclimar aquelas mesmas espécies,
África e dali transportado para as colônias tal, por exemplo, o êxito dos últimos na
americanas; a crise a comprimir também o adaptação da noz-moscada em La Gabrielle,
mercado escravagista. o jardim botânico experimental da Guiana.
O excesso de ênfase que Moura põe na Mesmo o arguto e experimentado Padre
semelhança do clima do Maranhão com o Vieira pretende, a não ser pela conscien-
da Ásia costeira e insular, produtora das te hiperbolização de um dos seus tantos
especiarias, impede-o de perceber as carac- projetos políticos, que o bem-sucedido
terísticas sociais que, na Ásia, permitiam transplante das essências orientais no Bra-
o êxito, não só da cultura mas também do sil determinaria ipso facto a liquidação de
beneficiamento do produto. As sociedades Holanda! Em qualquer hipótese, estaria a
do Oriente (a despeito da fragmentação assertiva a ignorar, talvez propositadamente,
política entre régulos diversos e de diversa a formidável articulação comercial e bélica
confissão, nessas áreas produtoras da espe- da frota holandesa, atuante do Extremo
ciaria) exibiam qualidades de disciplina e Oriente às Antilhas, a ponto de, mais das
trabalho de positivo e imediato reflexo na vezes, oferecer fretes mais baratos que os
economicidade da especiaria oferecida ao dos armadores britânicos – aquele tempo já
comércio. Afligiam a Amazônia (também o da reversão das marinharias lusa e espa-
por comparação às Antilhas, cujos produtos nhola, e da, ora expansiva, ora regressiva,
passavam a contar mais demanda que os navegação francesa, por fim inibida pela
da Ásia) a falta de capital, a generalizada derrota do país na Guerra dos Sete Anos.
carência dos meios técnicos, o espírito A apreciação de João de Moura respec-
gaspillleur da própria cultura local, mar- tivamente à sociedade local, como à alta
cada, desde o início, pela expansividade administração do Estado nortenho, é disfó-
geográfica; a mesma pobreza fazia com que, rica, ainda que indigite os governadores e os
cada ano, mais e mais adentrasse a coleta e demais círculos da administração de forma
o apresamento da mão de obra ameríndia assaz discreta. E o índio é percebido como
através das tantas entradas ilegais. A rápida vítima da desenfreada ambição do branco.
e extensiva ocupação do interior potâmico A percepção social do autor é, pois, exata,

152 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011


sem a autocomplacência de tantos outros luta pela independência nas capitanias do
relatos e memórias da época. Norte; e ninguém talvez melhor que Gaio-
E notáveis aqueles parágrafos que so a insinua, extensivamente às mulheres,
tratam do financiamento das viagens da sendo o autor de algum modo feminista. O
coleta, tantas vezes rateado entre diferen- estatuto mais ou menos generalizado das
tes investidores, fenômeno esse indicativo dívidas não saldadas ou que se não podem
da pobreza generalizada de segmentos provar está na base de sem número de
expressivos da população leiga em face da conflitos (também no estado do Brasil) e
operacionalidade, mais bem ordenada, dos na raiz do banditismo a soldo.
conventuais-droguistas. O padre, ademais Pode-se, pois, entender que, nas suas di-
da disciplina que lhe traz a própria formação, versas causas e graus, há toda uma economia
oferecia ao indígena um mundo coordenado e uma cultura do endividamento. E completa
de trabalho e de pasto espiritual, como a esse quadro de carências a falta crônica de
prédica, o batismo, a festa dos santos; o moeda pelos séculos XVII e XVIII, o que
indígena bem catequizado (nem todos o mostram vários indicadores, entre os quais
foram) era um indivíduo integrado e pro- a aceitação da moeda proveniente do Brasil
vavelmente mais produtivo que o escravo por valores de escambo majorados. Isto é,
do colono, este não mais que um escravo para uma mesma quantidade de moeda,
deculturado. E examina o autor o processo davam-se em troca, no estado do Maranhão
corrente da venda fiada de bens às pessoas e Grão-Pará, mais bens do que se dariam no
de certo cabedal que, no ano seguinte, estado meridional. O raciocínio é todavia
ou ainda ulteriormente, possam saldar o relativizado pelo fato de que os bens aceitos
compromisso – o preço majorado, dos em troca (salvo talvez os rolos de algo-
produtos que se vendem ou escambam, para dão) não são necessariamente os mesmos
cobrir o risco e a mora de um tal processo correntes no Brasil. A falta de moeda é, ao
cíclico e retroalimentado de tal modus de mesmo tempo, índice e agravante do atraso
comercialização. O endividamento, como regional. E para isso contribuía a coerciva
corretamente o põe o ensaio, acaba por ser e retrógrada visão metropolitana, de fun-
fator de incentivo às entradas, tantas delas damento mercantilista, sobre a circulação
ilegais ou facilitadas pela autoridade coni- no espaço colonial.
vente. O endividamento é traço marcante Conto futuramente examinar, com apoio
dessa economia e persistirá por épocas documental, a microestrutura subjacente à
futuras, mesmo de maior afluência e fora canoagem da coleta. Muitos são os casos
da órbita da coleta. Joaquim José Sabino, em que o financiamento é dividido e sub-
de que trato pormenorizadamente em O dividido entre várias mãos e por diferentes
Maranhão e o Piauí no Espaço Colonial, quantitativos, a indicar, assim, um retorno
e, principalmente, Gaioso (Compêndio social diferenciado; ou, noutras palavras,
Histórico-Político dos Princípios da La- a existência de diferentes patamares eco-
voura do Maranhão, 1818) trazem, ainda nômicos na sociedade livre. Mas convém
aos finais do período colonial, expressivas antecipar que esses estratos da população
páginas sobre o endividamento privado. não têm, na Amazônia, o relevo dos planta-
Indigita-o Raimundo Gaioso, ao examinar dores da cana cativa no Nordeste brasileiro,
as facilidades creditícias que ofereciam os ou dos arrendatários de tratos de terra em
mercadores de escravos africanos aos seus outras partes do Brasil, tal se registra nas
clientes nos latifundia do algodão e do terras de tabaco de Cachoeira da Bahia.
arroz. Aqueles comerciantes, nas cidades É mesmo provável que Moura estivesse
da costa, são os “portugueses”, estes os a pensar naqueles tratos menores de terra
“brasileiros”. E, ao agravar-se o confronto, arrendada ao comentar o uso de estrume no
nos finais do século XVIII e princípios do Brasil, condição impraticável no Pará do
XIX, constituirá a diferença, assim sentida século XVII, anterior às fazendas de gado
pelos naturais, uma das causas profundas da dos jesuítas e de outras ordens em Marajó

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011 153


ou no Baixo-Amazonas (essas mesmas fa- índia. A farinha era o pão do homem do
zendas foram em parte desmanteladas pela Norte, em pronto aculturado a certas formas
radical e precipitada política do marquês de do comer indígena. Lento o seu fabrico – a
Pombal, de vez que, passados vinte anos, farinha grossa, a fina, a goma. O jesuíta
Belém passou a sofrer crises de abasteci- João Daniel, da enxovia onde o confinou
mento de carne verde). Pombal, escreveu o longo e interessantís-
Ponto alto da percepção econômica do simo Tesouro Descoberto no Máximo Rio
autor são as vertentes tecnológicas que das Amazonas, misto de fantasia barroca
sistematicamente traz à luz. Por isso, pouco pretérita ao cientificismo iluminista que se
importa sejam os espécimes vegetais nativos estabelecerá em Portugal com os oratorianos
ou exóticos, estes “tão naturais como os de formação pessoal ou de forte leitura cal-
outros” (pressuposta a bem-sucedida adap- cada na renovação italiana. O Tesouro, em
tação). Ou quando estabelece que o êxito termos mais expressivos que explicativos,
dos cultivos depende, afinal, da “boa forma retoma o tópico, já aflorado por João de
em se ordenar”, ou seja, a racionalização da Moura, de que a Amazônia padece da sua
produção. Não se deve, todavia, buscar em própria economia extensiva. Fá-lo o jesuíta
João de Moura o rigor conceptual que há nos termos particularizados da feitura da
de caracterizar a época, ainda futura de farinha, que toma grande tempo, e indigita
um século, de Adam Smith e no contex- o seu consumo. Mas o que subjaz a esse
to da notável teorização econômica dos ponto é a percepção – correta – do desajuste
ingleses, desde Lord Gresham, ministro entre a operacionalidade do sistema eco-
de Elizabet I, Thomas Mun, Misselden, nômico em prática à vista de uma possível
ou Gerard Malynes, decerto estimulados optimização dos fatores da produção. A
pelo campo de observações que a ágil ocupação demasiada da mão-de-obra no
economia do Mar do Norte oferecia aos preparo da farinha é icônica de mal maior:
povos confinantes. E não mais rigorosos as longuíssimas viagens da coleta e o valor
que Moura eram os coevos alvitristas relativamente baixo do mesmo produto
portugueses e espanhóis. O seu discurso carreado até Belém, ademais da longa
é dialogal e em grande parte descritivo, detença para que pudesse ser embarcado e
ornado de referências à Antiguidade, tal da eventual retenção do produto nos portos
era de uso à época – os juízos autorais vão, metropolitanos de destino, até que se sal-
assim, surgindo dessa espécie de conversa- dassem os fretes, nem sempre plenamente
ção polida que o próprio eixo dialogal vai pagos à partida. O jesuíta não percebeu a
proporcionando. Tal, à época, um dos modos matéria na sua globalidade, mas apontou-a
correntes de tratar a matéria, derivado do expressivamente. O cacau, item de maior
processo da oposição de argumentos a gosto valor no mercado internacional, tinha o
da neoescolástica, mas adoçado no universo seu plantio retardado na área bragantina.
das letras seculares. E sempre há algum O governador distribuía datas a pessoas de
propósito de magnificatio do discurso, ou seu favor para o cultivo. Formalizava-se o
de qualquer outro recurso expressivo que processo da mercê pela ratificação régia.
edulcorasse o tão seco diálogo argumental A verbalização do documento expedido à
da tradição escolástica e da neoescolástica; Metrópole era, às vezes, ostensivamente
um desses recursos era a transformação re- paternalista, até o reinado de Dom Pedro II:
tórica do silogismo em entimema, ademais dizia-se que o postulante era velho agricultor
dos tantos símiles e das guindadas metáforas sem terra própria, pai de tantos ou quantos
que abundavam no barroco. filhos (sempre um elevado número) com
Como já foi lembrado, a canoagem da o auxílio dos quais prepararia a terra para
especiaria era praticada pelo braço indí- plantio dos cacaueiros, etc. Muitas vezes,
gena. Não havia coleta sem colaboração porém, o agraciado, por falta de capital, ou
deste, não havia farinha, a farinha-de-pau, pela força do hábito, em lugar do cultivo,
na designação da época, sem o trabalho da persistia na coleta, inspirado na expectativa

154 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011


de lucros a que nem sempre correspondia a da justiça no sertão. Mas o tópico é sutil:
natureza aleatória da expedição. A expec- entre o apanhar e o não apanhar o fugitivo,
tativa é um dos traços daquela cultura da embrenhado na selva bruta, persiste o pro-
coleta, em que o fruto independe do esforço pósito oficial de preservar a imagem do rei
sistemático da agricultura. A virtualidade (ou do seu preposto) como fautor da justiça,
marca psicologicamente todo o sistema, o que se pretende absoluta. Desde a formação
indivíduo introjeta o aleatório, que pressu- do Estado nacional, mesmo de antes, a
põe positivo... figura do rei está associada à de promotor
Sob Dom João V, o mesmo discurso da justiça. Dom João V foi extremamente
administrativo se torna impessoal – traço do sensível a isso: ainda que a justiça não se
crescente absolutismo, em que o monarca consume, há a presunção de que o será. É
judiciosamente se afasta das formas parti- a ficção de que o preceito exarado no De
cularizadas e demóticas da correspondência. Manu Regia alcance, sempre, todo o espaço
Revistas as relações econômico-sociais do Reino. Ainda, na transição do século
no espaço, cuida-se, nesta parte final, da XVIII ao XIX, Sabino endossa a mesma
justiça do rei como ali entendida e na forma ficção de que o rei tudo vê e alcança dentro
como logra realizar-se. O presente trabalho, do espaço nacional.
como se terá percebido, é de índole temática, O termo “sertão brabo” – ícone do espaço
não necessariamente cronológica. imenso e de dificultosa apreensão – está
Trata-se, aqui, da natureza como in- presente em vários documentos e enfeixa
terferente nos comportamentos sociais, um sem número de situações. Há casos
seja a floresta úmida, seja o sertão seco do ocorrentes nos calvos de vegetação, ou
Piauí. Fujo obviamente ao determinismo “rasos”, aquelas terras de longa estiagem,
que alguns têm visto na pujança excessiva pedregosas ao derredor e espinhentas,
da floresta equatorial, a apequenar o ho- onde o meio ampara formas especiais de
mem. Mas endosso o termo interferência resistência à mão real, como o de uma
do meio, em particular naqueles tempos homicida que habitava o sertão do Piauí.
primitivos da condição colonial de índole Os lugares ermos são o locus apartado, de
mercantilista, pretéritos à ideia operativa e formas de vida estranhas ao espaço oficial.
crítica de nação. E ao sertão brabo torna o índio que fugiu
Tudo levava à aventura do espaço, ao cativeiro, ou o branco que se acouta da
quanto não há espaço intransponível – física autoridade, passado a viver, em muitos
ou juridicamente. Recorde-se, entre tantos casos, da autossubsistência.
outros casos, a ação movida por particular O espaço ermo pode ser modelizador
contra o ouvidor Francisco Galvão de das formas sociais de resistência à ação do
Afonseca, ao tempo de Dom João V. Os Estado. Há o branco que se interna na floresta
negócios do magistrado, alegava-se, su- úmida ou no sertão seco e alcantilado, e há
biam o Amazonas, o Solimões, os afluentes o “gentio de corso”, aquele que, da brenha
superiores deste, os contrafortes andinos (outros são nômades), resiste de mão armada
e chegavam a Quito, ou, pelos baixios ao invasor que lhe subtrai o espaço original.
da costa, alcançavam Caiena, para onde Mas o índio não escrevia per se: faz por ele
iam escravos indígenas e de onde vinham o missionário, o morador, o ouvidor e o
bens de consumo, luxos para a amante do capitão-mor. Obviamente, com as distorções
ouvidor, peças metálicas para os engenhos de quem escreve. Assim, todos interpretam
do marido dela... O esforço no sentido de o ameríndio a seu talante. Releem-no o rei
obstaculizar as relações intercoloniais, que e o Conselho Ultramarino. E são essas,
a melhor doutrina mercantilista pregava, obviamente, as fontes que se empilham nos
nunca funcionou plenamente, e por razões arquivos metropolitanos; a história far-se-á
óbvias. Vezes há em que a relação custo- pela dedução – quase perversa – que cumpre
-benefício está a relativizar o interesse do operar da mesma documentação, toda ela
governo. Tal pode ser o caso dos foragidos etnocêntrica e interessada.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 147-155, dezembro/fevereiro 2010-2011 155


josé de Paula ramos jr.

JOSÉ DE PAULA
RAMOS JR.
é professor do
Departamento de
Jornalismo
e Editoração da
ECA-USP.
enganado 2” (Freyre, 1975, p. 24). Mas
não foi a decepção com o protestantismo
que dissipou o sonho de ser missionário.
Os estudos e a vida acadêmica abriram
perspectivas novas e fascinantes, que
levaram o jovem a descobrir sua vocação
de escritor.

DEFINIÇÃO DE ROTA
erminados os estudos secun- Em Baylor, o estudante brasileiro cha-
dários no Colégio Americano mou a atenção do professor de literatura
Gilreath, de Recife (PE), aos inglesa e comparada A. J. Armstrong, respei-
dezessete anos de idade, Gilberto tado internacionalmente como especialista
Freyre (1900-87) embarca para na poesia de Robert Browning. No curso de
os Estados Unidos da Améri- Armstrong, o aluno descobre no ensaio o
ca, onde permanece de 1918 a gênero em que poderia se realizar. Gilberto
1922. Primeiro em Waco, Texas, Freyre já se decidira pelo conhecimento do
cursa a Universidade de Baylor, bachare- homem e da sociedade como seu objeto
lando-se em Artes, com especialização em geral de estudo, mas sentia que a abordagem
Ciências Políticas e Sociais; depois, realiza científica, embora valiosa, seria insuficiente
estudos pós-graduados na Universidade de para o esclarecimento de inúmeras questões.
Colúmbia (Nova York), onde obtém o grau Insatisfeito com as limitações das ciências
de mestre com a dissertação Social Life in sociais, da história, da antropologia e de
Brazil in the Middle of the 19th Century. outras especialidades, Gilberto Freyre viu na
Viaja, então, para a Europa e frequenta aulas liberdade metodológica do ensaio o melhor
e conferências em Oxford e na Sorbonne. meio para realizar o trabalho de compreen-
Em 1923, volta ao Recife. são daquele objeto, embora naquela quadra
Quando partiu para o estrangeiro, o ainda ainda não soubesse qual, especificamente,
menino sonhava tornar-se missionário entre seria esse. Com certeza, haveria de ser algo
os índios do Brasil após a conclusão dos ligado ao Brasil.
estudos universitários. Tal disposição de O que ficou definido no período de
espírito decorria da influência protestante Baylor foi a decisão de tornar-se escritor,
recebida no colégio americano, de orien- interessado na investigação do homem e da
tação batista, e da profunda impressão que sociedade brasileira, por meio do ensaio,
lhe causaram as ideias de Tolstoi para um gênero sem o qual “estaríamos muito po-
cristianismo renovado e vivo, anticlerical, bres com relação a problemas básicos do
fundado na fraternidade, que ligaria “os Homem e da Sociedade que a ciência dos
homens acima de classes e raças; e fazendo Comte, dos Spencer e dos Tylor não parece
que a gente mais instruída vá ao povo e lhe capaz de esclarecer só por caminhos e por
leve a sua luz”1 (Freyre, 1975, p. 11). métodos científicos”3 (Freyre, 1975, p. 27).
1 Nota datada de Recife, 1916.
O contato direto com a sociedade norte- Por meio do ensaio, poderia mover-se
2 Nota datada de Nova York,
1918. -americana o fez reavaliar logo a opinião livremente entre as diversas ciências. Além
sobre o cristianismo evangélico, que, disso, aos olhos do atento leitor de Carlyle –
3 Nota de Waco, 1918.
ingenuamente, chegou a julgar antibur- que, para conhecer o homem, inspirava-
4 “[…] a scientific interest and
a poetic on alike inspire us in guês. “Eu via no Cristianismo evangélico -se igualmente no interesse científico e
this matter [conhecimento um Cristianismo que seria um bem para na consideração poética da matéria4 –, o
do homem pelo homem]”
(apud Freyre, 1975, p. 27. o Brasil por ser antiburguês e não por ser gênero ainda possuía outra grande virtude:
Nota de Waco, 1918). anticatólico. Vejo que estava um tanto permitia a articulação do discurso científico

158 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


não só com outras formas de conhecimento do sujeito e de preservação da autonomia
– por exemplo, a experiência sensível e e liberdade dos objetos, talvez seja o ponto
a estéti­ca –, mas, também, com a própria de contato entre esses diferentes escritores
escrita artística, cujo melhor exemplo que marcaram Gilberto Freyre. Uns mais,
Gilberto Freyre encontrara no ensaísmo outros menos. Pater foi dos mais marcantes,
de Walter Pater, muito estudado no curso mas, como veremos adiante, Gilberto Freyre
de Armstrong. faria restrições ao excessivo preciosismo
do mestre inglês. Vejamos antes outras
influências decisivas na formação do autor
de Casa-grande & Senzala.
UM MODELO
Walter Horatio Pater (1839-94), profes-
sor de Oxford, especialista em arte e história ENCONTRO COM O IMAGISMO
do Renascimento, foi célebre pelo estilo
refinado. O ensaísmo de Pater busca, sobre- Apresentada por Armstrong, em Baylor,
tudo, compreender os efeitos suscitados na Freyre conheceu pessoalmente Amy Lowell
recepção da pintura, da escultura ou da obra (1874-1925), poeta e crítica literária, líder
literária. Em seu trabalho, há o esforço de do movimento chamado imagismo, que, na
olhar os objetos como se fossem vistos pela década de 1910, renovou a poesia inglesa
primeira vez. Por meio de suas impressões e norte-americana.
pessoais, tenta fisgar a gênese das sensações Em 1912, Ezra Pound, H. D. (Hilda
e emoções estéticas, que procura traduzir Doolittle) e Richard Aldington formularam
numa linguagem frequentemente indistinta o programa poético do imagismo, nome
da própria criação artística. tomado a um precursor do movimento,
O jovem Gilberto Freyre admirava em Thomas Ernest Hulme (1883-1917), que
Pater o modo como este se apropriava de preconizava uma poesia de imagens claras
seu objeto de estudo, sem transformá-lo em e bem definidas5. O imagismo descende
matéria inerte, preservando sua liberdade da combinação de propostas artísticas de
e autonomia, para capturá-lo em pleno origem inglesa, pré-rafaelistas, com suges-
movimento, como se a inteligência se tões do simbolismo decadentista da Europa
agarrasse a ele para depois revelá-lo como continental, particularmente o francês, a que
realidade viva. se aditavam procedimentos mais ou menos
O estilo elegante e as ideias de Pater, de- generalizados das correntes vanguardistas
correntes de uma vida devotada às sensações que revolucionavam a literatura e a arte do
estéticas refinadas, influíram na literatura início do século XX.
inglesa das últimas décadas do século XIX, O principal veículo de divulgação do
particularmente na obra do irlandês Oscar grupo, que congregava poetas ingleses e
Wilde e de seu conterrâneo William Butler norte-americanos, era a importante revista
Yeats, em sua fase inicial, marcada pelo Poetry, a Magazine of Verse, fundada em
pré-rafaelismo tardio, também chamado Chicago por Harriet Monroe, em 1913.
decadentismo ou esteticismo, de que Pater foi Nessa revista, Pound (1976, pp. 12-3)
mentor. Há algo de Pater, ainda, no imagismo publicou (março, 1913) o texto “A Few
de Ezra Pound e Amy Lowell, que, ao lado Don’ts”, que contém os fundamentos do
dos escritores antes mencionados, não por imagismo: valorização da imagem, en-
acaso, eram lidos por Gilberto Freyre, em tendida como um “complexo intelectual e
Baylor, com profundo interesse. emocional” que elide os “limites de espaço
A herança do pré-rafaelismo, no que ela e tempo”, e cumprimento da “exigência de 5 O texto de Hulme, em que
tem de rejeição ao convencionalismo clás- tratamento direto [do objeto], economia de o termo Imagist é empre-
gado pela primeira vez, foi
sico, de busca de ideias e imagens novas a palavras, e sequência da frase musical”. Em publicado em 1912 no livro
expressar, de valorização do olhar pessoal outros termos, plasticidade sincrônica e Ripostes, de Pound.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 159


sincrética, em que sentimento e pensamento depois de 1917, data da última antologia
se encontram na imagem exata, precisa; editada por ela, cada membro do grupo
máxima concisão – influência da arte e seguiu seu próprio caminho, frequente-
da literatura chinesa e japonesa –; amplo mente distanciado das propostas imagistas
domínio técnico da sonoridade verbal, de originais. Mesmo Amy Lowell, tão ciosa
modo que o ritmo, a melodia e o que se pode das conquistas de seu movimento, andou
chamar harmonia dos versos não desviem contrariando o princípio de concentração,
a atenção do significado das palavras. Em que o manifesto de Aldington (apud Torre,
1914, Pound publicou Des Imagistes, a 1972, v. III, p. 214) considerava “a verda-
primeira antologia do movimento. Pouco deira essência da poesia”, em poemas até
depois disso, abandonou os imagistas para anteriores à dispersão do grupo, como “The
envolver-se na criação do vorticismo. Bombardment” e “Spring Day”, ambos de
A liderança do grupo passou, então, Men, Women and Ghosts (1916). Todavia,
a Amy Lowell, que foi responsável pela apesar dos desvios da ortodoxia, Lowell é
edição da segunda antologia: Some Ima- considerada das mais fiéis mantenedoras do
gist Poets (1915). O volume contém um legado imagista. Sua poesia expressa uma
manifesto redigido por Richard Aldington, individualidade personalíssima, que se reve-
que reafirma os postulados de Pound para la na participação sensível e inteligente do
a arte poética do imagismo quanto ao uso eu lírico no mundo circundante imaginado:
da palavra exata e concisa, à pesquisa da subjetividade e objetividade entrelaçadas
sonoridade expressiva e à clareza e precisão para transfigurar o mundo poeticamente, em
de imagem, que “deve refletir com exatidão imagens nítidas e precisas, que procuram
o particular, e não generalidades vagas” surpreender a suposta essência das coisas,
(Aldington apud Torre, 1972, v. III, p. 214). das paisagens, das situações cotidianas, dos
Destacando o “princípio de liberdade” próprios sentimentos e das ideias.
que orientava a nova poesia anglo-ameri- De família rica, tradicional e ilustre de
cana, Aldington (apud Torre, 1972, v. III, Boston, Amy Lowell estava no auge de
p. 214) apresentava o verso livre como a seu prestígio intelectual e artístico quando
forma mais adequada para a expressão da Gilberto Freyre a conheceu. Convidada
“individualidade do poeta”, e defendia a por Armstrong, ela foi conferencista na
“liberdade absoluta em relação à escolha Universidade de Baylor no ano de 1920. Na
do tema”, com destaque para a valorização abertura de uma exposição, Lowell (apud
poética de temas colhidos na vida moder- Freyre, 1975, p. 41) elogiou um artigo sobre
na, mas cujas imagens apresentassem não a sua poesia, que Armstrong acabara de lhe
a mera exterioridade das coisas, mas a mostrar. Destacando a inteligência do autor,
substância de sua modernidade. Com essa assinalava que ele tivera “olhos para ver e
crítica implícita ao futurismo, o manifesto ouvidos para aprender [sic] as sutilezas de
queria marcar a singularidade do imagismo, música e de cor da poesia Imagista”. O autor
cuja postulada “liberdade total” de forma era o estudante brasileiro. Após a conferên-
e conteúdo permitia o uso de versos e cia, Armstrong apresentou o jovem crítico
temas tradicionais, sem o que seria difícil a miss Lowell, que repetiu o elogio feito ao
entender a presença de T. S. Eliot entre os artigo e o convidou a visitá-la em Boston.
colaboradores do grupo. A grande impressão causada por Amy
Amy Lowell havia programado a dis- Lowell certamente acentuou o interesse
solução do grupo imagista para depois da de Gilberto Freyre pela poesia imagista,
publicação de três antologias, sem contar que foi para ele um caminho suave para
a primeira, editada por Ezra Pound, sa- o mundo vertiginoso das vanguardas ar-
bendo que um movimento organizado de tísticas de que se impregnou a seu modo.
poetas não poderia mesmo durar muito, Suave porque empático. Na poesia imagista,
tal como se dava com os vários ismos das especialmente a de Amy Lowell, Gilberto
vanguardas artísticas europeias. De fato, encontrou uma plasticidade riquíssima,

160 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


qualidade que sempre o fascinou, desde as da exploração dos senhores em toda parte.
aulas de desenho tomadas na infância, em Escravo da roda do trabalho (“Slave of the
Recife, com o inglês Mr. Williams; nela, wheel of labor”), o camponês é transforma-
descobriu o verso livre, que já conhecia do pelos dominadores (“masters, lords and
de Whitman e dos simbolistas franceses, rulers in all lands”) em animal (“a brother
como expressão poética mais adequada ao to the ox?”), uma coisa monstruosa, dis-
ritmo da vida moderna. Com o imagismo, torcida e de alma extinta (“This monstrous
aprendeu a apreciar a abordagem direta das thing distorted and soul-quencht”), que,
coisas, que já observara nos pré-rafaelistas após séculos de silêncio e de passividade,
e no esteticismo de Walter Pater, e a pro- estaria prestes a se rebelar:
curar a palavra exata para traduzi-las, sem
exclusão da linguagem coloquial e de suas “O masters, lords and rulers in all lands,
potencialidades expressivas, de que Amy How will the future reckon with this Man?
Lowell tão bem se valeu em poemas como How answer his brute question in that hour
“The Grocery” (Men, Women and Ghosts). When whirlwinds of rebellion shake all
Essas qualidades, dentre outras, seriam [shores?
incorporadas de modo conspícuo ao estilo How will it be with kingdoms and with
do escritor pernambucano em formação. [kings –
Em Baylor, Gilberto Freyre conheceu With those who shaped him to the thing
também Harriet Monroe (1860-1936), [he is –
cujo trabalho de editora da revista Poetry When this dumb Terror shall rise to judge
impulsionou a modernização da literatura [the world,
anglo-norte-americana, especialmente da After the silence of the centuries?”
nova poesia representada pelo imagismo. (in Aiken, 1944, pp. 207-8).
Nesse aspecto, ela pode ser apontada como
uma referência importante para a formação O sentido social da poesia de Markham
de Gilberto Freyre como escritor e, espe- é o que mais chamou a atenção de Gilberto
cialmente, como futuro editor do Livro do Freyre, que atribuiu a isso e não à qualidade
Nordeste. literária a fama do autor:
O prestígio de Armstrong conseguia
atrair à universidade provinciana vários “É evidente que sua celebridade vem menos
poetas e escritores destacados, que merece- de sua arte poética, que não é das mais altas,
ram a atenção especial de Gilberto Freyre que o sentido social de sua poesia. Um sen-
e o marcaram. Não seria ocioso mencionar tido trabalhista. Trabalhista, note-se bem; e
alguns que o próprio Gilberto registrou em não socialista. Pois isso de socialismo aqui
Tempo Morto e Outros Tempos. é seita: ideia de muito poucos. Enquanto o
trabalhismo ou laborismo, não: empolga
muita gente”6 (Freyre, 1975, pp. 38-9).

O CAMPONÊS E OS MARINHEIROS Apesar da avaliação estética negativa,


algo do famoso poema de Markham deve
Edwin Markham (1852-1940) gozou de ter calado fundo em Gilberto Freyre; pro-
enorme popularidade nos Estados Unidos, vavelmente o topos da feiura do camponês,
com um poema de conteúdo social, “The símbolo das classes sociais inferiorizadas,
Man with the Hoe”, publicado no ano de que se apresenta no texto não como um fato
1899 pelo jornal San Francisco Examiner. natural, mas decorrente de séculos de explo-
Reproduzido e comentado por periódicos de ração. É o que nos parece se o associamos
quase todo o país, o poema deu fama nacio- à experiência marcante de Gilberto Freyre
nal ao autor. Trata-se de uma composição numa rua do bairro de Brooklin, Nova York,
em que o embrutecimento físico e espiritual em 1921, quando foi surpreendido pela visão
do camponês é denunciado como resultante de alguns marinheiros de guerra do Brasil, 6 Nota de Waco, 1920.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 161


de péssima aparência. Tal encontro é men- admirável como dizia seus poemas. Mais do
cionado numa nota de seu diário (Freyre, que dizê-los, ele os modulava numa espécie
1975, p. 68) e, muitos anos depois, numa de canto, acompanhado de instrumentos
célebre passagem do prefácio à primeira musicais, explorando ao máximo o ritmo
edição de Casa-grande & Senzala: e os demais elementos sonoros dos versos.
A parte mais apreciada da produção
“Vi uma vez, depois de mais de três anos poética de Lindsay, nos Estados Unidos, é
maciços de ausência do Brasil, um bando de exatamente aquela constituída por temas de
marinheiros nacionais – mulatos e cafuzos fontes regionais, mas que traduzem valores
– descendo não me lembro se do São Paulo e causas nacionais. Aliás, esse caráter da
ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. poesia de Lindsay – que de certo modo
Deram-me a impressão de caricaturas de recupera o americanismo de Emerson e de
homens. E veio-me à lembrança a frase de Walt Whitman – foi também o que mais
um livro de viajante americano que acabara contribuiu para despertar a admiração de
de ler sobre o Brasil: the fearfully mongrel Gilberto Freyre (1975, p. 99), sobretudo
aspect of most of the population” (Freyre, pelo que contém de assimilação da “grande
1961, p. XXXI). força espiritual representada pelos negros”.
É bem verdade que essa assimilação é
A feiura do camponês de Markham controversa e foi questionada por muitos
ecoa na imagem dos marinheiros nacio- como racista, acusação que o poeta recha-
nais. Como é sabido, para Gilberto Freyre çava, argumentando, por exemplo, com Joel
o aspecto medonho daqueles brasileiros Spingarn, dirigente de importante organiza-
mestiços também não se explicaria por ção do movimento negro norte-americano
suposta razão natural, mas por fatores his- pelos direitos civis:
tóricos complexos. O poema de Markham
reduz os fatores deformantes a uma vaga “Minhas [obras] ‘Congo’ e ‘Booker T. Wa-
exploração reificadora; Gilberto Freyre os shington Trilogy’ foram ambas condenadas
esmiuçaria vivamente em seu grande ensaio pelas pessoas de cor por razões que não
7 Car ta de Lindsay a Joel sobre a “formação da sociedade agrária, sou capaz de penetrar. Tanto quanto posso
Spingarn, presidente do
conselho de diretores da escravocrata e híbrida” brasileira. perceber, elas não se deram ao incômodo
NAACP (National Associa- de lê-las diretamente. A terceira parte de
tion for the Advancement of
‘The Congo’ é certamente tão esperançosa
Colored People); publicada
em The Crisis (janeiro de quanto qualquer ser humano se atreveria a
1917): “Editorial: A Letter
and an Answer”. O tex-
ASSIMILAÇÃO AFRO-AMERICANA ser em consideração a qualquer raça, e ‘John
to original da citação que Brown’ não é seguramente um poema des-
traduzimos é o seguinte: Vachel Lindsay (1879-1931) causou tituído de solidariedade; e ‘King Solomon
“My ‘Congo’ and ‘Booker
T. Washington Trilogy’ have profunda impressão em Gilberto Freyre, and the Queen of Sheba’ é profecia de uma
both been denounced by the como registra em seu diário. Em 1920, utopia de cor. Contudo, [o periódico] ‘The
Colored people for reasons
that I cannot fathom. As far quando se conheceram, o poeta norte- Crisis’, recentemente, deu-se ao incômodo
as I can see, they have not -americano estava no auge de sua fama, que de me esfolar”7.
taken the trouble to read them
through. The third section of
se iniciara com a publicação de seu mais
‘The Congo’ is certainly as célebre poema (“General William Booth Em resposta a Lindsay, Spingarn as-
hopeful as any human being
Enters Into Heaven”) no quarto número da severou:
dare to be in regard to any
race, and the ‘John Brown’ is revista Poetry, em 1913.
certainly not an unsympathe- O melhor de Lindsay está nos poemas “Nenhum homem de cor duvida de suas boas
tic poem; and ‘King Solomon
and the Queen of Sheba’ inspirados em ritmos populares, especial- intenções, mas muitos deles questionam o
is a prophesy of a colored mente os afro-americanos, colhidos por ele seu entendimento sobre as expectativas que
Utopia.Yet The Crisis took the
trouble to skin me not long em suas inúmeras perambulações pelo país. eles têm. Você olha em torno de si e vê um
ago” (disponível em: www. O poeta se apresentava em recitais por onde mundo negro cheio de uma beleza estranha,
english.illinois.edu/maps/
poets/g_l/lindsay/congo.
passava, em troca de comida e abrigo. Suas diferente daquela do mundo branco; eles
htm; acesso em 7/9/2010). performances ficaram célebres pelo modo olham em torno deles e veem outros homens,

162 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


com exatamente os mesmos sentimentos apontadas entre as concepções e resultados
e desejos, que se recusam a reconhecer a de cada um nessa matéria. Certamente, com
semelhança. Você anseia pela utopia de cor Casa-grande & Senzala, Gilberto chegaria
separada e diferente da ansiada pelo homem a uma compreensão muito mais rica do
branco; eles só têm um desejo irresistível, problema, e, embora sua obra contenha
que é o de compartilhar uma civilização passagens controversas, que poderiam ser
comum, na qual todas as distinções de raça interpretadas também como manifestação
fossem obscurecidas (ou esquecidas) pela de um racismo involuntário, ele não incorre
comum aspiração e pelos trabalhos comuns. no equívoco de Lindsay, apontado na carta
Sua poesia é maravilhosamente bela, e os de Joel Spingarn, de ver o negro como re-
poemas sobre homens e mulheres negros presentante de uma humanidade diferente
não são menos belos que os demais. Como da do branco. Para Gilberto Freyre (1961, v.
podemos deixar de agradecer por toda essa II, p. 438), inspirado em Joaquim Nabuco,
beleza? Mas de algum modo nós sentimos (e “sempre que consideramos a influência do
eu disse ‘nós’ porque nisso eu compartilho negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a
os sentimentos da raça de cor), de algum ação do escravo, e não a do negro per se, que
modo nós sentimos que você não escreve apreciamos. […] Parece às vezes influência
sobre a humanidade de cor como você es- de raça o que é influência pura e simples do
creve sobre a humanidade branca”8. escravo: do sistema social da escravidão”.
E o que se lê nessa passagem do clássico,
O intuito dessas citações um tanto lon- publicado em 1933, já se insinuava no tempo
gas é o de estabelecer uma conexão entre em que Gilberto Freyre e Vachel Lindsay
Vachel Lindsay e Gilberto Freyre quanto foram amigos, em comentários sobre o
8 Carta de Joel Spingarn a
à assimilação da contribuição negra para mestiço brasileiro, tecidos nessa época em Lindsay, The Crisis, janeiro
a formação da sociedade e da cultura no seu diário (Freyre, 1975, p. 68). de 1917. No original: “No
colored man doubts your good
Novo Mundo. Não estamos interessados, Mas não se pode esquecer, quanto à intentions, but many of them
aqui, na análise minuciosa das semelhanças valorização do negro, que o poeta precedeu, doubt your understanding of
their hopes. You look about
e das profundas diferenças que poderiam ser cronologicamente, o ensaísta. O carisma you and see a black world full
de Lindsay, sua figura de poeta visioná- of a strange beauty different
from that of the white world;
rio americano, pioneiro na assimilação, they look about them and
embora problemática, de ritmos, figuras see other men with exactly
e valores culturais dos negros ao contex-
the same feelings and desires
who refuse to recognize the
to da cultura nacional norte-americana, resemblance.You look forward
certamente influiu na formação do ensa- to a colored Utopia sepa-
rate and different from the
ísta pernambucano, que dedicaria grande hope of the white man; they
parte de seu futuro trabalho ao resgate have only one overwhelming
desire, and that is to share
da riquíssima contribuição do escravo in a common civilization in
africano na constituição da sociedade e which all distinctions of race
are blurred (or forgotten)
da cultura brasileira. by common aspiration and
common labors. /Your poetry
is wonderfully beautiful, and
the poems on black men and
women are no less beautiful
PRESENÇA DE YEATS than the rest. How can we
fail to be grateful for all this
beauty? But somehow we
“Ter ouvido William Butler Yeats e feel (and I say ‘we’ because
in this I share the feelings of
conversado com ele foi para mim uma the colored race), somehow
experiência como eu, como estudante, não we feel that you do not write
about colored humanity as
poderia ter maior. Ficará este meu encontro you write about white huma-
com o irlandês genial como um dos grandes nity” (disponível em: www.
english.illinois.edu/maps/
momentos de minha vida” (Freyre, 1975, poets/g_l/lindsay/congo.
p. 40). htm; acesso em 7/9/2010).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 163


O professor Armstrong, novamente, foi o modo como Yeats pronunciara sua
proporcionara à Universidade de Baylor um conferência, que se tornou modelo para ele:
momento raro. Quando lá esteve, em 1920,
Yeats (1865-1939) era, como mais tarde “Yeats é a negação do orador, mas a afir-
diria T. S. Eliot (apud Carpeaux, 1964, v. VI, mação do conferencista que valoriza as
p. 2.961), “o maior poeta de língua inglesa palavras com uma arte de quem dominasse
deste século”. Sua glória seria celebrada sons e sentidos ao mesmo tempo. Nunca
com o prêmio Nobel de literatura três anos vi conferência igual. É assim que pretendo
após sua passagem pelo interior do Texas. ser lecturer. E não – nunca! – um didata
A presença de Yeats evocava sua obra, doutoral. Ou um orador” (Freyre, 1975,
que, partindo de um romantismo nostálgico p. 40).
das lendas celtas, passara pelo esteticis-
mo da poesia inglesa da década de 1890, Da conversa que teve com o artista, ficou
orientada pela pregação de Walter Pater também a lembrança da curiosidade sobre
e herdeira do pré-rafaelismo, assimilara possíveis sobrevivências celtas no Brasil
o simbolismo francês e chegara a uma e no folclore religioso da América Latina
forma poética que, nas palavras da crítica (Freyre, 1975, p. 40), isto é, a do grande
Louise Bogan, “nos impressiona com seu poeta cuja universalidade se erguia com
distanciamento e sutil modernidade”9. O base em suas raízes locais.
vocábulo inglês “detachment”, que tra-
duzimos por “distanciamento”, talvez se
expresse melhor pela ideia de separação
(fr. “détacher”: desligar, separar). De fato, RAÇA E CULTURA
o substrato folclórico irlandês e as influ-
ências literárias ou esotéricas, entre outros Embora a maior parte dos cursos segui-
elementos diversos, são incorporados à sua dos em Baylor fosse de caráter científico
poesia de modo único. Seus ritmos, símbo- (geologia, biologia, psicologia, sociologia,
los e imagens trazem a marca de uma per- economia, ciência política e jurídica), nessa
sonalidade poética forte e original, sempre fase, o que mais marcou o desenvolvimento
inquieta, sempre em movimento. Agora, no intelectual de Gilberto Freyre foi a literatu-
que diz respeito ao encontro de Yeats com a ra, certamente por influência do professor
modernidade, é importante lembrar o papel Armstrong.
desempenhado por Ezra Pound. Segundo o Agora, é importante assinalar que esse
testemunho de William C. Williams (apud grande interesse e mesmo paixão do jovem
Campos, 1983, p. 19), “Pound passou uma Gilberto pelo estético, que fez dele um dos
descompostura em Yea­ts por algumas de grandes estilistas da língua portuguesa,
suas inversões e outros arcaísmos de estilo não significava uma vocação estritamente
e, incrivelmente, Yeats entregou todas as artística. Gilberto Freyre não se refere em
produções que tinha no momento para que seu diário, tal como foi publicado em Tempo
Pound as corrigisse. Isso não é imaginação Morto e Outros Tempos, a qualquer desejo
mas fato, Yeats aprendeu tremendamente de tornar-se poeta, prosador de ficção ou
com as críticas de Pound”. As lições de crítico literário naqueles anos de formação,
Pound agiram sobre Yeats, que depurou embora não desprezasse eventuais incursões
9 “[…] impresses us with seu estilo até alcançar a clareza de imagem nessas atividades. Havia sim o intuito de
his detachment and sub- e a concisão expressiva características da praticar uma escrita de qualidade literária,
tle modernity”. Do ensaio
“William Butler Yeats”, ori- última fase de sua poesia. mas à qual se sobrepunha a preocupação
ginalmente publicado em Quando Yeats chegava a esse último com problemas de natureza social.
The Atlantic Monthly, maio de
1938 (disponível em: www. estágio de sua obra, Gilberto Freyre o Após graduar-se em Baylor, seguindo a
theatlantic.com/magazine/ conheceu e teve uma longa conversa com orientação de Armstrong e de Oliveira Lima,
archive/1969/12/william-
-butler-yeats/4672/; acesso
ele, ensejada por Armstrong. O que ficou Gilberto Freyre mudou-se para Nova York,
em 7/9/2010). desse encontro na memória do brasileiro para estudar na Universidade Colúmbia

164 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


como bolsista de pós-graduação. revelou o negro e o mulato no seu justo
No espaço cosmopolita de Colúmbia, valor – separados dos traços de raça os
Gilberto completaria sua formação acadê- efeitos do ambiente ou da experiência cul-
mica. Lá, frequentou cursos ministrados tural. Aprendi a considerar fundamental a
por professores ilustres como Franz Boas diferença entre raça e cultura; a discriminar
(1858-1942), alemão que se tornou um dos entre os efeitos de relações puramente
maiores antropólogos dos Estados Unidos, genéticas e os de influências sociais, de
especialista em culturas primitivas de índios herança cultural e de meio. Neste critério
norte-americanos, entusiasta da pesquisa de de diferenciação fundamental entre raça e
campo; Franklin Henry Giddings (1855- cultura assenta todo o plano deste ensaio”
1931), um dos pioneiros da sociologia sis- (Freyre, 1961, pp. XXXI-XXXII).
temática nos Estados Unidos, que preparava
a sua obra mais importante (Studies in the
Theory of Human Society, 1922) quando
Gilberto Freyre foi seu aluno; o eminente O CRITÉRIO REGIONAL
economista norte-americano Edwin Robert
Anderson Seligman (1861-1939), autor de A grande diversidade cultural de Co-
The Economic Interpretation of History lúmbia, representada por gente dos quatro
(1902), “considerada obra clássica […] cantos do mundo, levou Gilberto Freyre
que fixa a importância da contribuição de a refletir detidamente sobre o significado
Marx para as ciências sociais sem se tornar de ser brasileiro. Frequentando o Instituto
passivamente apologético” (Freyre, 1975, das Espanhas e o Círculo Francês da Uni-
p. 44); e, entre mais alguns intelectuais versidade, apura-se nele a “consciência
notáveis, o afamado filósofo, psicólogo de pertencer, como brasileiro, ao mundo
e educador norte-americano John Dewey hispânico” (Freyre, 1975, p. 47) e, por
(1859-1952). extensão, ao universo latino.
Todavia, entre tantas figuras ilustres, Frédéric Mistral (1830-1914) e Charles
Franz Boas mereceu o maior reconhe- Maurras (1868-1952) destacam-se entre os
cimento de Gilberto Freyre. A célebre autores lidos nessa época. Gilberto Freyre
distinção entre raça e cultura, enfatizada encontrou neles a inspiração do critério
pelo professor alemão, foi decisiva para o com que haveria de estudar a formação da
desenvolvimento das ideias que levaram sociedade brasileira.
a Casa-grande & Senzala. Vale lembrar a Em Tempo Morto e Outros Tempos,
homenagem prestada a ele no prefácio da não há registro das obras de Mistral lidas
primeira edição dessa obra: naqueles dias de convívio com os novos
amigos do Círculo Francês, onde, certa-
“O Professor Franz Boas é a figura de mestre mente, o poeta provençal, ganhador do
de que me ficou até hoje maior impressão. Nobel de literatura, em 1905, gozaria de
Conheci-o nos meus primeiros dias em enorme prestígio. É possível que entre elas
Colúmbia. Creio que nenhum estudante estivesse o volume de memórias de Mistral,
russo, dos românticos, do século XIX, Moun Espelido (Mes Origines, 1906), não
preocupou-se mais intensamente pelos só por ser uma de suas obras mais famosas,
destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil mas, também, pelo especial interesse de
na fase em que conheci Boas. Era como se Gilberto Freyre por narrativas biográficas,
tudo dependesse de mim e dos de minha desde a leitura que fizera, quando aluno de
geração; da nossa maneira de resolver ques- Armstrong, de um ensaio de Thomas Carlyle
tões seculares. E dos problemas brasileiros, (1795-1881), que lhe sugeriu a ideia de que
nenhum que me inquietasse tanto como o “em essência, a História, a Antropologia e,
da miscigenação. […] paradoxalmente, a própria Sociologia, não
Foi o estudo de Antropologia sob a orien- é senão a reunião de inúmeras biografias”
tação do Professor Boas que primeiro me (Freyre, 1975, p. 27).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 165


É certo, porém, que o brasileiro de Minhas origens, minha família, minha Mãe,
Pernambuco familiarizou-se com a vida de meu Pai, minha cidade, minha terra, me
Mistral, dedicada à sua Provença. A luta do reclamam pelo que há, em mim, de outras
movimento Félibrige, fundado por Mistral, raízes, que, não sendo as intelectuais, pa-
em 1854, para promover a reabilitação da recem ser raízes ainda mais fortes. O que
langue d’oc e a valorização da natureza, me fez querer reintegrar-me no Brasil não
dos caracteres, dos costumes e dos valores é um senso puritano de dever mas uma ne-
regionais, encontrou em Gilberto Freyre cessidade de ser, ou desejar ser, autêntico,
um espírito receptivo. E o mesmo se pode na minha condição de homem; e temo que,
dizer em relação ao trabalho do discípulo fora do Brasil, eu me sentisse postiço ou
e conterrâneo de Mistral, Charles Maurras, artificial […]” (Freyre, 1975, p. 97).
que Gilberto conheceria pessoalmente em
Paris, em 1922. Em Paris, frequentou os cafés dos
Sob a influência desses autores, bem félibistes, que o acolheram com simpatia,
como do nacionalismo de Yeats, Gilberto e conviveu com discípulos de Maurras.
Freyre (1975, p. 49) passa a se orientar Reforça-se em Gilberto Freyre a ideia
pelo “critério regional” em seu estudo dos regionalista, defendida por esses grupos:
problemas sociais brasileiros, cujo primeiro
esforço de síntese se realizou na dissertação “Saio de Paris sob a grande impressão do
de mestrado já mencionada. movimento Maurras-Daudet, menos no
sentido de restaurar-se a Monarquia na
França que no de descentralizar-se a vida,
ou a cultura, francesa, além de libertar-se a
EUROPA, FRANÇA E RECIFE administração das províncias ou das regiões
do jugo parisiense. Importa essa descentra-
Como dissemos, terminados os estudos lização numa nova dignidade para a vida
nos Estados Unidos, Gilberto Freyre embar- provinciana, hoje degradada pelo excessivo
cou para a Europa, onde passaria parte de culto de Paris. Barrès já o mostrara em pági-
1922 e do ano seguinte. Viajou por alguns nas que fixam bem o drama do desenraizado.
países, especialmente por cidades da Ale- E Mistral foi, todo ele, pela sua vida e pela
manha (Munique e Berlim), onde descobriu sua obra, a exaltação precisamente disto: da
o expressionismo nas artes plásticas e no identificação do homem com suas raízes
teatro. Na maior parte de sua permanência regionais (Freyre, 1975, p. 118).
na Europa, Gilberto esteve sediado na In-
glaterra e na França. Mais exatamente, em É importante, também, lembrar que em
Oxford e em Paris, onde assistiu a aulas e Paris, em 1922, Gilberto Freyre conheceu
conferências nas respectivas universidades. o pintor Vicente do Rego Monteiro, que o
Em Oxford, Gilberto Freyre recebeu um apresentou a Tarsila do Amaral, a Victor
convite do professor espanhol Francisco de Brecheret e a Oswald de Andrade. Por meio
Arteaga, que lá lecionava, para tornar-se seu desses artistas, “em fase de assimilarem
assistente. Mas já era sólida a deliberação de vanguardismos europeus para os transfe-
voltar ao Brasil e desenvolver seu trabalho rirem ao Brasil” (Freyre, 1975, p. 125),
em sua terra: Gilberto teve as primeiras notícias sobre o
movimento modernista brasileiro.
“Se nasci brasileiro, e dentro do Brasil, em Após cinco anos de ausência, em 1923,
Pernambuco, não será dentro das fronteiras Gilberto Freyre estava de volta. Começaria
do Brasil e dos limites de Pernambuco, e o período de readaptação ao Brasil, na sua
seguindo as imposições de minhas origens, Recife, no seu Pernambuco. Foi quando
que devo viver? Este é o meu ideal para começou a se apropriar do conhecimento
um indivíduo de minha formação não só profundo de sua região, reunindo documen-
intelectual como, até certo ponto, pessoal. tos dos engenhos – “cartas, inventários,

166 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


testamentos. Documentos menos públicos e os limites das ciências isoladas e estanques
mais íntimos” (Freyre, 1975, p. 135) –, vas- por meio da combinação de suas variadas
culhando a precária Biblioteca Pública do perspectivas e métodos. Essa disposição
Recife, fotografando e registrando a cultura seria formulada em uma nota de seu diário,
local: tipos de mestiços, janelas mouriscas, datada de 1928, quando mais se acentuava
fachadas de igrejas e sobrados, receitas de nele a busca de um caminho original para
culinária típica, manifestações folclóricas, o estudo da sociedade brasileira:
superstições e crenças populares; enfim,
tudo que revelasse o cotidiano social. “O que imagino é desenvolver […] nova
Aplicando o que aprendera com “o velho técnica ou nova combinação de métodos
Boas”, o jovem Gilberto Freyre realizou – o antropológico baseado no psicológico,
extensa pesquisa de campo por bairros o histórico-social alongado no sociológico
e subúrbios do Recife e pelo interior, na para a captação e a revelação de um social
Zona da Mata. Não descuidava, porém, do total. Se conseguir isto terei realizado faça-
estudo teórico dos mestres de sociologia e nha semelhante à de Santos Dumont. Serei
antropologia (Durkheim, Giddings, Boas). outro brasileiro inventor de nova técnica de
O objetivo principal dos múltiplos esfor- domínio do homem sobre o problema que
ços do jovem Freyre, nesse tempo, era o de continua fechado aos homens de ciência: o
empreender um estudo da “vida de menino da análise e sobretudo revelação do social,
no Brasil […] através de vários tempos e em por métodos que alcançam o assunto em sua
várias regiões” (Freyre, 1975, pp. 136-7), totalidade indivisível de vida e tempo. Vida
projeto acalentado desde os tempos de Co- que vem sendo dividida, retalhada e mutilada,
lúmbia. Ambicionava abordar o problema por metodologistas como que assassinos.
sob nova perspectiva, valorizando o ponto Anatômicos” (Freyre, 1975, p. 222).
de vista do menino em vez do adulto. O
estudo haveria de seguir orientação histó- Observa-se, ao lado da consciência
rica, sociológica e antropológica lastreada da originalidade e do valor de sua “nova
em documentação abundante, mas, por técnica”, a recusa daquela metodologia
sugestão da leitura da obra de Proust, na científica que, desde seus estudos univer-
qual identificava um modelo de análise da sitários em Baylor, considerava incapaz de
história íntima que ele pensava aplicar em compreender a vida em sua totalidade. A
seu trabalho, não haveria de desprezar as ciência deveria derrubar as cercas delimi-
reminiscências de sua própria infância na tadoras do saber especializado, buscando
construção da psicologia do menino: “Suas a integração de múltiplas disciplinas. Mas
[de Proust] análises são líricas e clínicas ao não apenas isso.
mesmo tempo: poéticas e científicas. Dessa Para compreender verdadeiramente, a
contradição resulta ser ele o historiador ciência deveria preservar o livre dinamismo
ideal do que há de mais íntimo no passado de seu objeto, e não imobilizá-lo numa coisa
de um povo” (Freyre, 1975, p. 137). Como morta. Essa exigência já fora formulada
se sabe, esse projeto não foi realizado por desde os tempos de Paris (1922):
ele, mas, de certa forma, por seu grande
amigo e discípulo José Lins do Rego, com “Os homens de cujo idioma se deriva a
o romance Menino de Engenho (1932). nossa palavra ‘compreender’ – os gregos –
entendiam ser função da compreensão uma
atitude igualmente pessoal e de iniciativa,
quase um esforço como o de apanhar um
MISCIGENAÇÃO DE MÉTODOS menino, ou um adolescente, ligeiro passa-
rinho, não de surpresa, o pássaro incauta-
A inquietação intelectual de Gilberto mente parado, mas em pleno voo: voando.
Freyre o levava a buscar uma nova forma de ‘Compreender’, no seu melhor sentido, seria
estudar o fenômeno social, que ultrapassasse apanhar a inteligência os assuntos vivos, em

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 167


movimento, em pleno voo, agrestes, rebel- definição do ensaio como gênero eleito. Em
des, não querendo de modo algum perder a 1922, quando estava em Oxford, a univer-
liberdade […]”(Freyre, 1975, p. 119). sidade de Walter Pater, a lição do mestre
foi frequentemente exercitada: “Noto,
Na mesma nota, Gilberto Freyre cita voltando-me para o meu íntimo, que eu
alguns brasileiros ilustres que buscaram também, dentro dos meus limites, às vezes
compreender o Brasil (José Bonifácio, Tei- ando ou caminho, dominado pelo mesmo
xeira de Freitas, José de Alencar, Machado afã [de Pater]: o de depurar de defeitos
de Assis, Joaquim Nabuco, Euclides da frases que mentalmente construo antes de
Cunha), mas, pelo modo poético com que escrevê-las” (Freyre, 1975, p. 111).
apresenta sua noção de “compreender”, o Porém, na mesma nota de seu diário,
exemplo maior que teria em mente talvez o discípulo levanta a restrição a que nos
fosse o de Walter Pater, em cuja obra, céle- referimos acima: “Creio que de Pater – de
bre como escrita artística, Gilberto Freyre seu estilo – se pode paradoxalmente dizer
reconhecia aquele tipo de aventura pessoal que, obra-prima como é, se apresenta um
e original da inteligência. tanto prejudicado pelo próprio excesso de
suas qualidades: o apuro na perfeição”.
Esse comentário crítico, em que a ideia de
pureza e perfeição estilística é vista como
FUNÇÃO ESTÉTICA um “excesso”, enseja a percepção de que
deveria construir um estilo próprio de
Não bastava a Gilberto Freyre a invenção acordo com sua índole sempre propensa à
da técnica de “combinação de métodos” miscigenação:
científicos. Para ele, a verdadeira compre-
ensão resultaria da aplicação da perspectiva “No que começa a ser em mim, não sei se
das ciências combinadas, “alongada” pela um estilo, se apenas um modo pessoal de
sensibilidade, pela impressão pessoal e pela escrever, a tendência é para uma combinação
percepção estética, que revelasse o objeto das duas influências [sensual e intelectual].
de estudo em sua liberdade e vitalidade. Uso palavras que denominarei intuitivas
O jovem Gilberto entendia que tal re- sem repelir as lógicas. As cotidianas sem
velação só seria possível se a linguagem repudiar as raras. As populares sem defor-
abstrata da ciência também se misturasse à mar as eruditas. As sensíveis sem repelir de
linguagem quente da vida, cheia de suges- todo as abstratas” (Freyre, 1975, p. 111).
tões sensuais, que evocasse o objeto com
a força de presentificação que só a arte é Outra nota de seu diário, de 1925, mostra
capaz de produzir. Ambicionando trazer que Gilberto Freyre se sentia bem próximo
à vida tempos já mortos, Gilberto Freyre de se afirmar como inventor de uma “forma
segue o exemplo de Pater e se esforça na nova em língua portuguesa”, cujo estilo,
criação de um estilo sempre atento à função tradicional e novo a um só tempo, já ia
estética da linguagem, que Roman Jakob- reunindo seguidores:
son chamou de função poética, entendida
como bem mais que um simples ornato, “Que escritor pode haver sem forma? Sem
nunca como recurso de oratória vã, mas plástica? Sem ritmo? Eu vou chegando a
um poderoso elemento de expressão, capaz uma forma nova em língua portuguesa, que
de traduzir concretamente as abstrações é diferente das antigas, sem deixar de ter o
da ciência. ritmo tradicional das prosas portuguesas;
A admiração de Gilberto Freyre pela que exprime uma personalidade ao mesmo
obra de Pater sempre foi intensa. Como tempo moderna e castiça até na pontuação;
tentamos demonstrar, no tempo de Baylor, e que a exprime de modo contagioso. Daí as
ela foi decisiva para a descoberta da vocação imitações. Hei de criar um estilo” (Freyre,
de escritor do jovem Gilberto e para a sua 1975, p. 176).

168 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


jornal. O volume é um documentário his-
O FÉLIBRIGE GILBERTIANO tórico, econômico, antropológico e cultural
do Nordeste, orientado segundo o critério
Desde que voltara da Europa, animado regional estabelecido pelo organizador aos
pelo espírito do Félibrige de Mistral, Gil- colaboradores. Esse livro recolhe e divulga
berto Freyre se esforçava na articulação de os primeiros trabalhos do movimento, que
um movimento semelhante, que abrisse uma ganharia corpo no ano seguinte com a rea-
nova perspectiva não só para as ciências, lização, em Recife, do Primeiro Congresso
a cultura e as artes, mas até mesmo para a Brasileiro de Regionalismo.
organização econômica e política do Brasil. Na sessão de abertura do congresso,
Seguindo o exemplo de Mistral, o jovem Gilberto Freyre teria lido o seu Manifes-
Gilberto formou um grupo ao seu redor, to Regionalista. Aqui, não nos interessa
disposto a trabalhar a favor do resgate e a polêmica quanto à inautenticidade do
valorização das coisas regionais. Em 1924, Manifesto, publicado pela primeira vez em
ao lado de Carlos Lyra Filho, Júlio Bello, 1952. É possível que ele tenha sido escrito,
Odilon Nestor, Pedro Paranhos e outros, tal como foi publicado, após a realização
fundava o Centro Regionalista do Nordes- do congresso, talvez mesmo após muitos
te, que foi o primeiro núcleo do Félibrige anos. Assim também são suspeitas algumas
gilbertiano. notas publicadas em Tempo Morto e Outros
No ano de 1925, trabalhando no Diário Tempos, como, por exemplo, uma datada de
de Pernambuco, Freyre publica o Livro do 1923 (Freyre, 1975, p. 132), que se refere
Nordeste, comemorativo do centenário do ao poema “Noturno de Belo Horizonte”,
de Mário de Andrade, composto em 1924 e
publicado em livro (Clã do Jabuti) em 1927.
Todavia, se Gilberto Freyre não leu ao
Congresso Regionalista o texto do Mani-
festo, tal como foi publicado 26 anos após
sua realização, é provável que seu pronun-
ciamento contivesse os mesmos valores,
interesses e programa de ação cultural,
preconizados no Livro do Nordeste, que,
segundo a observação precisa de Antônio
Dimas (1996), “pode perfeitamente infor-
mar sobre as pretensões em voga naqueles
anos” em que Gilberto Freyre articulava
o seu Félibrige nordestino. Assim, o Ma-
nifesto pode ser lido ao menos como um
texto retrospectivo, indispensável para se
entender o movimento regionalista nordes-
tino em geral e, em particular, a evolução
do pensamento e da militância do escritor
Gilberto Freyre, a caminho de sua primeira
grande obra.
Lido nessa perspectiva, o Manifesto
informa que o movimento se articulava
em torno dos conceitos de região e tradi-
ção. Segundo a sua proposta, tratava-se de
promover a reorganização nacional, dando-
-se, “antes de tudo, atenção ao corpo do
Brasil”, uma vez que, “de regiões é que o
Brasil, sociologicamente, é feito, desde os

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 169


seus primeiros dias. Regiões naturais a que expressava uma “substância mais histórica
se sobrepuseram regiões sociais” (Freyre, que geográfica e certamente mais social do
1996, p. 50). que política” (Freyre, 1996, p. 48). Assim,
Ressaltando o caráter não separatista o movimento liderado por Freyre se contra-
do movimento, sobrepunha a realidade das punha a outro movimento preocupado com
regiões interdependentes à arbitrária divisão o sentido e a direção da cultura nacional: o
política do país em estados, como critério modernismo, inicialmente mais interessado
que deveria orientar a administração do na renovação estética. Como assinala João
Brasil, evitando sua balcanização. Alexandre Barbosa:
Regionalmente, também, é que a cultura
brasileira deveria ser estudada, reabilitando “Exatamente por não ser o literário uma
valores que seriam como antídotos à des- ‘prioridade absoluta’, como está magnifi-
caracterização trazida pelo progresso, este camente pensado e dito no texto de Antônio
entendido como transposição mecânica e Dimas (1996), e por serem os conceitos de
inautêntica da “novidade estrangeira” ou do região e tradição os elementos articuladores
que “o Rio ou São Paulo consagram como essenciais de uma relação mais intensa entre
elegante e como moderno” (Freyre, 1996, Estética e História, é que a complemen-
p. 51 – grifos do autor). taridade [dos dois movimentos], também
Gilberto Freyre ansiava pelo desenvol- pensada e dita por Dimas, se fazia mais
vimento do regionalismo por todo o país, interessante: ao modernismo de São Paulo
de modo a construir a “verdadeira organi- se acrescentava um sentido da História,
zação nacional” com base num “critério ainda que puxasse, de certa maneira, para
de inter-relação”, que ampliasse o local o lado conservador e mesmo reacionário,
em regional e articulasse o regional “com sem o qual aquele modernismo corria o ris-
o que é geral e difusamente brasileiro ou co de esvaziar-se, enquanto movimento de
vagamente americano” (Freyre, 1996, pp. cultura, em mais um ismo estético-literário
49-50). Procurava, assim, resguardar o (Barbosa, 2000).
caráter universal da proposta, na medida
em que possam ser universais as noções de Precisamente, como Antônio Dimas
caráter brasileiro, americano ou latino. De observou, a história era o alicerce do
sua parte, buscaria reabilitar o Nordeste, movimento regionalista. João Alexandre
região que considerava, no Brasil, inexce- assinala a perspectiva regressiva de história,
dível “em riqueza de tradições ilustres e em inerente ao félibrige nordestino de Gilberto
nitidez de caráter” (Freyre, 1996, p. 52). O Freyre, que, no Manifesto Regionalista,
renascimento de sua região, achatada pelo declara a inspiração inequivocamente con-
centralismo político e cultural do Rio e de servadora e mesmo reacionária da “ideia
São Paulo, seria a força contraposta à des- regionalista, animada na França pelo espí-
caracterização estrangeirada promovida por rito poético de Mistral e pela inteligência
essas capitais, uma vez que, historicamente, realista de Maurras” (Freyre, 1996, p. 58).
devia-se ao Nordeste a grande contribuição De fato, a formação intelectual de Gil-
“para dar à cultura ou à civilização brasilei- berto Freyre, de que procuramos apresentar
ra autenticidade e originalidade” (Freyre, um modesto recorte neste estudo, revela
1996, p. 52). uma quantidade notável de preferências e
Promover a reabilitação de valores e tra- influências aristocráticas, que contribuíram
dições enraizados no passado aristocrático decisivamente para definir o seu modo de
do Nordeste açucareiro, entendido como a ser e de pensar conservador. A dominante
matriz básica do caráter original brasileiro, aristocrática, porém, manifesta-se nele de
seria para Gilberto Freyre a forma de recon- modo peculiar, mostrando-se permeável à
ciliar o Brasil consigo mesmo. cultura popular: “[…] no Nordeste, quem se
O critério regional, postulado para um aproxima do povo desce a raízes e a fontes
novo entendimento do Brasil, manifestava e de vida, de cultura e de arte regionais. Quem

170 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011


se chega ao povo está entre mestres e se experimental de combinação de múltiplos
mostra aprendiz, por mais bacharel em artes métodos científicos com a função estética
que seja ou por mais doutor em medicina” da linguagem, entendida como uma forma
(Freyre, 1996, p. 71). de conhecimento capaz de dar concretude
A trajetória intelectual percorrida nos às abstrações científicas.
Estados Unidos, na Europa e no Recife, A obra do ensaísta pernambucano
entre 1918 e 1930, pode ser bem rastreada trouxe uma contribuição inestimável para
em quatro documentos que a sintetizam: a renovação da cultura nacional, dentro da
a dissertação de mestrado apresentada perspectiva conservadora, como o próprio
em Colúmbia (Social Life in Brazil in the autor gostava de definir, e até mesmo
Middle of the 19th Century), o Livro do reacionária, como é impossível deixar de
Nordeste, o Manifesto Regionalista e as constatar. Mas o Félibrige gilbertiano ul-
memórias contidas em Tempo Morto e trapassa o seu caráter regressivo quando o
Outros Tempos (resguardado o mencionado avaliamos na relação de complementaridade
caráter problemático dos dois últimos). Já que mantém com o modernismo. Conforme
se manifestam neles as múltiplas influências o ensinamento de Antônio Dimas (1996),
literárias, científicas, ideológicas e culturais o regionalismo, ao evidenciar o sentido de
assimiladas nos anos de formação, e que história que lhe servia de alicerce, apontava
seriam refundidas com espantosa origina- às vertentes progressistas do modernismo o
lidade em Casa-grande & Senzala, obra que lhes faltava para não cair na esterilidade
em que Gilberto Freyre realiza o desejo de de um movimento puramente estético, “sem
tornar-se escritor dotado de estilo pessoal a substância ou a tensão que somente as
e a ambição de inaugurar uma forma nova relações entre Estética e História podem
de pensar a história, por meio da técnica oferecer” (Barbosa, 2000).

BIBLIOGRAFIA

AIKEN, Conrad (org.). A Comprehensive Anthology of American Poetry. New York, Random House,
1944.
BARBOSA, João Alexandre. “O Pensamento Literário de Gilberto Freyre”, in Cult. ano III, número 32.
São Paulo, Lemos, mar./2000.
CAMPOS, Augusto de. “Ezra Pound: Nec Spe Nec Metu”, in E. Pound, Poesia. São Paulo/Brasília, Huci-
tec/Ed. Universidade de Brasília, 1983.
CARPEAUX, O. M. História da Literatura Ocidental. Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1964.
DIMAS, A. “Prefácio”, in Gilberto Freyre. Manifesto Regionalista. Recife, Massangana, 1996.
FREYRE, G. Casa-Grande & Senzala. 10a ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1961.
________. Tempo Morto e Outros Tempos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1975.
________. Manifesto Regionalista. 7a ed. Recife, Massangana, 1996.
POUND, E. “Algumas Proibições”, in A Arte da Poesia. São Paulo, Cultrix; Edusp, 1976.
TORRE, Guillermo de. História das Literaturas de Vanguarda. Porto, Editorial Presença, 1972.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 156-171, dezembro/fevereiro 2010-2011 171


evaldo piolli

evaldo piolli
é sociólogo e
professor da
Universidade
Federal dos Vales
do Jequitinhonha e
Mucuri (MG).
trabalho tornou-se, em nossos dias, uma categoria
central nas relações entre os indivíduos e a socie-
dade, ou seja, um elemento-chave na constituição
da identidade social, assumindo significações que
vão além da simples venda da força de trabalho
por salário. O plano de vida idealizado, a visibi-
lidade, o reconhecimento social, a inserção em
grupos, o acesso a direitos sociais e ao consumo
envolvem o sentido de autorrealização dos sujeitos. Porém, é diante
do real do trabalho1 que o plano idealizado pelo indivíduo pode
encontrar, ou não, condições de canalização.
Desse modo, não se pode descartar, como essencial para a cons-
trução da identidade, as influências da organização do trabalho.
No processo do desenvolvimento e expansão do capitalismo, a
exploração visível vai sendo sucedida pela interiorização das restrições
(coerções). Isso se dá com a emergência das classes médias, a canali-
zação e a institucionalização dos conflitos, a linguagem normalizada e
unificada da “boa administração” (Pagès et al., 1987). Tais fenômenos
não significaram o desaparecimento das contradições, nem mesmo
sua atenuação, mas, antes, a modificação do sistema de controle da
sociedade e das empresas capitalistas, sua extensão a novas zonas,
em face das mudanças do sistema produtivo e das condições da luta.
Marcuse (1981) deu grande contribuição à abordagem sociológica
do trabalho ao apropriar-se, de forma crítica, das categorias psicana-
líticas. Ele utiliza a categoria freudiana do princípio da realidade para
elucidar o processo repressivo e a submissão humana na sociedade
industrial avançada. A maior repressão estaria relacionada às pulsões
do trabalho alienado, o qual criou a base material da civilização.
Tal trabalho dificilmente conflui com as inclinações e necessida-
des individuais, tendo sido imposto ao homem como algo penoso e
desagradável, o que permanece nos dias de hoje.
No entanto, para Marcuse (1981), é o princípio de desempenho
que, para além do princípio de realidade, surge como um tipo de
repressão sobre as pulsões que molda os homens e produz a confor-
mação desses de acordo com o aparato técnico, econômico e político
da dominação. A organização do trabalho na sociedade industrial
produz a imposição de todos os requisitos de repressão necessários 1 O conceito de “real do
trabalho” será explicado
à convivência social no sentido amplo. mais adiante.
A colonização do mundo da vida (ra- O que facilitou esse processo foi a troca
zão comunicativa) pelo mundo sistêmico de um sistema inconsciente do tipo paternal
(razão instrumental) promove alterações por um sistema tipo maternal. A organização
na atribuição do sentido, perturbações e surge associada a uma imagem inconsciente
patologias (Habermas, 1989). O trabalho, feminina, dentro da qual se perde o medo do
pois, é uma importante expressão disso. pai, ao mesmo tempo em que se manifesta,
Sua centralidade, como principal fonte de no trabalhador, o medo de perder o amor
reconhecimento, gera a dependência dos maternal. Tal regressão inconsciente, na
indivíduos, os quais, sem esse reconheci- busca do reconhecimento, fica nítida nas
mento podem até mesmo sucumbir. políticas de recursos humanos e gestão de
As organizações medeiam, de forma pessoas (Pagès et al., 1987)
constante, as contradições dos grupos so- A ideologia da organização é bem
ciais internos e externos que delas partici- mais aceita quanto mais se inscreve nas
pam. Os dirigentes, por sua vez, se tornam práticas econômicas. A mobilidade social
sujeitos necessários e estratégicos à repro- e a progressão na carreira são atreladas,
dução e à perpetuação dessas contradições, principalmente, às políticas de recursos
sendo, de fato, seus agentes mediadores humanos, pois facilitam a adesão ideoló-
contingentes, pois a própria capacidade gica e psicológica que reforça o poder da
de encobrir, ocultar, faz parte de sua ação empresa e demais organizações modernas.
mediadora. A eficácia das mediações resi- Essas práticas facilitam a interiorização,
de na capacidade de antecipar conflitos, o pelos indivíduos, das normas dos valores.
que é uma característica das organizações As contradições vivenciadas pelos
hipermodernas. trabalhadores ficam, portanto, latentes e
As organizações desenvolvem a do- inconscientes. Elas são transformadas e
2 Sobre a subjetividade hu-
minação psicológica (manipulação do absorvidas na política contraditória da
mana no trabalho, Lukács
diz que “a contradição que inconsciente) sobre os seus trabalhadores. organização que individualiza os conflitos
aqui se manifesta entre a Elas modelam a fundo as estruturas de perso- coletivos. O indivíduo isola-se dos demais
subjectividade e a objecti-
vidade dos sistemas formais nalidade, pois se tornam máquinas de prazer trabalhadores interiorizando ou mesmo
modernos e racionalistas, o e de angústias, oferta e retirada do amor. A introjetando as restrições, as coerções e
emaranhado e os equívocos
contidos nos seus conceitos organização torna-se o lugar privilegiado da os estímulos, transformados em angústia
de sujeito e objecto, a identificação, da projeção e da introjeção. e prazer.
incompatibilidade entre a
sua essência de sistemas por
É com ela que os trabalhadores mantêm A idealização do eu e as projeções nar-
‘nós’‘produzidos’ e a sua ne- relações infantis de submissão e revolta. císicas são canalizadas para o âmbito do
cessidade fatalista estranha
Trata-se, pois, de uma alienação explo- trabalho dentro das organizações. A busca
ao homem e dele afastada
são apenas a formulação rada pela organização do trabalho, pelo jogo do reconhecimento e proteção é canalizada
lógica e metodológica do da motivação e do desejo. Uma alienação para o trabalho e forja um novo sentido, um
estado da sociedade mo-
derna: porque, por um no sentido psiquiátrico, também, de subs- sentido alienado da vida.
lado, os homens quebram, tituição da vontade própria do sujeito pela De acordo com Lukács (1989)2, o traba-
dissolvem e abandonam
cada vez mais as ligações do objeto. Uma alienação, portanto, que lho, sob tais condições, é objetivado, criado
simplesmente ‘naturais’, passa pelas ideologias defensivas, de modo e organizado por outras pessoas e nele há
irracionais ‘efectivas’, mas,
por outro lado e simultane-
que o trabalhador acaba por confundir com sujeição e alienação humana. Para que ele
amente, levantam em redor seus desejos a injunção organizacional que funcione plenamente é preciso que seja
de si, nesta realidade criada
substitui o arbítrio. Vencido pela vontade aceito como parte da natureza das coisas
por eles próprios e ‘pro-
duzida’ por eles ‘próprios’, contida na organização do trabalho, ele e não como produto da ação histórica dos
uma espécie de segunda acaba por usar todos os seus esforços para homens.
natureza cujo desenrolar
se lhes opõe com a mesma tolerar esse enxerto contra sua natureza, ao O mundo burguês do trabalho e da
impiedosa conformidade às invés de fazer triunfar sua vontade. “Insta- economia passará a ser um espaço privile-
leis que outrora os tornavam
forças naturais irracionais lado o circuito, é a fadiga que assegura sua giado onde o indivíduo exercerá um certo
(mais precisamente:relações perenidade, espécie de chave, necessária domínio, um certo poder, como o de criar
sociais que lhes apareciam
sob essa forma)” (Lukács,
para fechar o cadeado do círculo vicioso” objetos, bens e riquezas. Sem efetivamente
1989, p. 145). (Dejours, 1999, p. 137). exercer um controle sobre sua vida, o que

174 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011


resta ao indivíduo é a ilusão da vida através pelas angústias, tanto pela falta do trabalho,
do trabalho ordenado. como pela convivência com a instabilidade.
A organização do trabalho, pois, produz Como dissemos, os ajustes e as estratégias
o sujeito trabalhador envolvido em práticas de identidade, tanto as objetivas como as
discursivas e saberes que desenvolvem a au- subjetivas, podem exigir um esforço muito
toconsciência e o conhecimento dos sujeitos grande.
no trabalho. Ou seja, o sujeito no trabalho Concordamos, pois, com Habermas
é produzido pelos modos de investigação, (1989) quando admite, em nosso contexto,
pelas práticas divisórias, pelos modos de a centralidade do trabalho como categoria
classificação aplicados pelos outros e pelo legítima, nos processos de identificação
que esses sujeitos, particularmente, aplicam profissional e na vida social. Não se trata,
sobre eles mesmos. contudo, de ressaltar o trabalho como a
Os papéis como categorias legítimas são única forma de identificação pessoal, mas
vivenciados intensamente pelos indivíduos. de destacar sua importância na constituição
O trabalho vai impondo permanentemente da imagem de si e na identificação pelos
transformações identitárias para acompa- outros, uma vez que está carregado de um
nhar as modificações no mercado de trabalho conteúdo simbólico. Isso quer dizer que a
e na estrutura do emprego. A formação é trajetória profissional, ainda que em muitos
um dos elementos que expressa muito bem casos seja pautada por fins pragmáticos,
essa relação, pois intervém nas dinâmicas também está impregnada pelo elemento
identitárias por muito tempo e para além da simbólico que inclui, por parte do indivíduo,
formação escolar, ao longo dos processos uma projeção de uma identidade possível.
de socialização secundária. A entrada de um indivíduo em deter-
A saída do sistema escolar e o enfrenta- minado ramo é resultado de estratégias
mento do mercado de trabalho constituem identitárias empreendidas para atender
um momento essencial da construção de às expectativas de uma identidade para
uma identidade. As escolhas feitas por meio outro (conferida) e uma identidade para
das orientações escolares, ou ainda forçadas, si (construída). Nesse caso, a formação
permitem uma antecipação do status social passa a constituir-se em elemento essencial
dos sujeitos, no futuro. Podemos dizer que, na trajetória profissional, pois permite ao
desde o aparelho escolar, as orientações indivíduo antecipar uma identidade profis-
profissionais a um tipo de especialização sional e uma trajetória no mundo do traba-
constituem-se como algo significativo na lho. Então, quando analisamos a relação
construção da identidade virtual. homem e organização do trabalho estamos
Trata-se, pois, de um esforço para a tratando não somente de questões de ordem
construção da identidade que Sennett (1999) técnica, mas da identidade construída ao
denominou de narrativa da carreira, ou seja, longo da trajetória pessoal que contempla
sua expectativa de autorrealização, a vida expectativas, sonhos e desejos pessoais de
que se gostaria de ter, o que se é e, ao mesmo autorrealização, o que hoje denominamos
tempo, o que se gostaria de ser. de projeto de vida.
É por isso que a confrontação com a O significado simbólico em torno do
incerteza afeta a construção da identidade trabalho alia a história passada, o presente
na medida em que, num contexto econômico e a projeção de vida futura dos sujeitos na
e sob determinadas condições históricas, sociedade. A privação do trabalho, pelo
aprofunda-se o desemprego, bem como se desemprego, em momentos de crise, com-
modificam os esquemas organizacionais e a prova a hipótese, uma vez que essa situação
base tecnológica nas empresas (organização desencadeia o sofrimento e um golpe na
do trabalho), na administração pública e no autoestima. Da mesma forma que o fato de
setor de serviços. A identidade dos sujei- ser reconhecido no trabalho e de estabelecer
tos – a projeção de vida futura fundada no relações, ainda que conflituosas, tem efeitos
trabalho – pode ser profundamente abalada na construção da identidade.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011 175


Cabe ressaltar, de acordo com a teoria nica são sempre secundárias, pois estão
sociológica, que a identidade é construída mediatizadas pelas relações hierárquicas,
socialmente e envolve contextos históricos “relações de solidariedade, relações de
e simbólicos. As identidades pessoais não subordinação, relações de formação, rela-
se restringem, portanto, a designações ções de reconhecimento, relações de luta e
singulares de si, mas são construções relações conflituais” (Dejours, 1994, p. 138)
sociais partilhadas intersubjetivamente, Enfim, no trabalho são os elementos
principalmente no campo social, ou mesmo simbólicos que estão em movimento.
na vida profissional. Elas são construções Contudo, o descompasso entre o que se
que surgem acompanhadas por processos de deseja e o que está instituído, entre as
racionalização nos quais dois elementos se potencialidades do trabalhador e as pos-
integram: de um lado, a trajetória subjetiva sibilidades objetivas de desenvolvê-las ou
(história pessoal) e, de outro, o contexto utilizá-las, é gerador de tensões, conflitos e
da ação determinado pela situação, em um sofrimento psíquico. O bloqueio da energia
espaço dado e culturalmente marcado. profissional ou seu subemprego, em função
Uma parte significativa da nossa iden- da rigidez ou mesmo das imposições da
tidade é determinada pelo olhar do outro organização do trabalho, é fonte do sofri-
nos processos interativos, principalmente mento psíquico ou mesmo do adoecimento
pelo reconhecimento que somos capazes do trabalhador. A autoimagem idealizada,
de provocar nos outros. À medida que o narcisística, tende a ser substituída pela
trabalho assume, cada vez mais, a centrali- identidade deteriorada (Goffmann, 1975).
dade na vida do indivíduo, o pertencimento Frente a tal situação é que os trabalhadores
a um grupo, no qual possa demonstrar sua desenvolvem suas estratégias defensivas.
capacidade de criação e realização, torna- Tais estratégias, quando estereotipadas,
-se crucial. configuram-se como patogênicas. Quando
Partilhamos da ideia de que a identidade não divorciadas da dimensão desejante,
do indivíduo é construída na interação com configuram-se como forças políticas de
a organização do trabalho. O indivíduo, resistência e de potencial transformador
por outro lado, também é construtor da da gestão e da organização do trabalho de
organização do trabalho na medida em caráter patogênico.
que reinterpreta, transforma, perverte, Torna-se fundamental antecipar, so-
aceita os papéis precedentes e socialmente mado ao que foi descrito acima, que as
legitimados no âmbito dessa organização. transformações produtivas e a nova base
Portanto, o trabalho não pode ser reduzido, organizacional e tecnológica do trabalho
nas abordagens sociológicas, a uma mera somadas ao declínio do poder regulatório
troca econômica (tempo contra salário), ou do Estado, no que se refere à proteção
a uma simples dimensão estatutária relacio- social, afetam sobremaneira os processos
nada a questões de autoridade, ou seja, por de autoidentificação e de reconhecimento.
questões exteriores à subjetividade.
O mundo objetivo do emprego e o
mundo subjetivo do reconhecimento da
existência do indivíduo não estão separa- O ARRANJO SOCIAL
dos. A singularidade interior e individual
pode encontrar ou não uma significação no PÓS-FORDISTA E A CONSTRUÇÃO
mundo do trabalho. Portanto, a interação do
sujeito com o trabalho não se dá de um modo DA IDENTIDADE
estritamente técnico, físico ou cognitivo.
Na abordagem da psicopatologia do As transformações produtivas têm
trabalho, as relações com as pressões téc- ocorrido de forma muito mais intensa à
nicas aparecem envolvidas num contexto medida que se acentuam a competitividade
intersubjetivo. As questões de ordem téc- e a concorrência no âmbito da economia

176 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011


global. Os novos arranjos produtivos vêm máquinas automatizadas (toyotismo). Esse
requisitando, permanentemente, novos novo modelo, principalmente para as ope-
atributos de qualificação aos trabalhadores. rações que ocupam o centro das atividades
Todas essas novas práticas e o seu ideário produtivas, visa à superação do taylorismo
ganharam impulso no Brasil a partir do anos pela introdução de relativa recomposição
1990. Conforme veremos, tal configuração das funções de concepção, alterando o siste-
provoca sentimentos de insegurança e de ma de qualificações no qual a mecanização
instabilidade que produzem efeitos sig- taylorista é muito pouco absorvida.
nificativos na autoestima e no sentido de São essas as situações de trabalho que
autorrealização. vêm provocando o aumento do desemprego
Na produção ocorre a flexibilização e da instabilidade, impactando significati-
dos processos de trabalho, bem como a vamente na identidade dos trabalhadores,
redução dos níveis hierárquicos, o trabalho no sentido e no significado que atribuem
em equipe, a adaptabilidade do trabalhador ao trabalho e às suas possibilidades de
e a eliminação da demarcação de tarefas. projetar o futuro.
Diferentemente do fordismo, a ênfase das Diferentemente da relação prevista no
estratégias empresariais requisita a corres- esquema taylorista, a empresa inserida num
ponsabilidade do trabalhador no processo ambiente concorrencial em escala global ne-
produtivo. Há maior flexibilidade – com cessita da receptividade e do envolvimento
constantes inovações – dos produtos e do indivíduo. Os novos arranjos em termos
dos padrões de consumo. Tal flexibilidade de organização do trabalho, criados para o
envolve a implantação de processos de funcionamento das empresas, demandam
terceirização, de subcontratação por parte trabalhadores aptos a participar, a mobilizar
das grandes indústrias, que incentivam a saberes, técnicas e competências, e com
formação de pequenos negócios (estruturas capacidade de iniciativa e de adaptação às
antigas de produção, familiares e artesanais) mudanças permanentes. Trata-se de uma
e de descentralização da produção. nova relação que exige o envolvimento
Os novos métodos de organização e subjetivo do trabalhador. A pressão no tra-
gestão do trabalho combinam a elevação da balho não fica mais vinculada à execução
produtividade e a intensificação do trabalho. de tarefas parcializadas, mas aos objetivos
Essa produtividade será conquistada com a e finalidades das empresas. Nesse processo,
adoção da automação do processo de tra- o indivíduo ganha mais visibilidade.
balho e da gestão informatizada dos fluxos
produtivos, o que altera significativamente, “É sobre a base da individualização que as
como já abordado anteriormente, a organi- operações destinadas à introjeção, pelos
zação e a divisão do trabalho. As empresas assalariados, da cultura, da one best way ges-
procuram sempre ajustar sua capacidade tionária, dos interesses da empresa poderão
produtiva a uma demanda variável em se constituir. Os dispositivos de formação,
volume e composição do consumo e é isso comunicação, as práticas participativas,
que designamos por flexibilidade. Como inteiramente consagradas à transmissão
decorrência, estrutura-se uma organização de valores, de mensagens (como os CCQs
flexível do trabalho, na qual o trabalhador – Círculos de Controle da Qualidade, os
precisa desenvolver uma capacidade de grupos de expressão, as mobilizações em
ocupar diferentes postos laborais. A exi- torno do projeto da empresa ou de certifi-
gência de flexibilidade conjuga-se com a cação da qualidade) são destinados a obter
de fluidez para requerer uma mão de obra a adesão dos trabalhadores numa base
polivalente, qualificada, bem formada, pessoal” (Linhart, 2000, p. 30).
operando em equipes.
A especialização, marca fundamental A individualização está relacionada
da organização fordista, é substituída por aos esquemas de gestão de pessoas que
uma relação equipe polivalente/sistema de particularizam o salário pelo cumprimento

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011 177


de objetivos e metas da organização. O dos custos e a elevação da produtividade.
método consiste na avaliação constante das A dominação da empresa moderna vai se
performances dos indivíduos e dos grupos. estabelecendo, assim, pela progressiva
Sobre tais desempenhos são destacadas substituição de um sistema de ordens por
as demandas que nortearão a elaboração um consistente sistema de regras e normas
de programas de formação continuada de interiorizadas. Trata-se de um mecanismo
trabalhadores. sofisticado de controle e poder que en-
A maior visibilidade do trabalhador globa um sistema de valores que devem
fica por conta da autonomia relacionada à ser utilizados pelos indivíduos, dentro
gestão por projetos conduzida por equipes das organizações. As estruturas mentais
de trabalho. Isso permite a implantação dos trabalhadores tornam-se ajustadas à
de esquemas gerenciais que promovem organização.
a redução das estruturas hierárquicas nas Foucault (1990) analisa a transição dos
organizações. Os indivíduos, situados em processos sociais punitivos à normatização,
equipes, assumem a responsabilidade pelos e é com base nisso que Pagès (1987, p. 49) irá
resultados previstos conforme os objetivos afirmar que a passagem da gestão por meio
organizacionais. de ordens para a gestão por regulamentos “é
O restabelecimento das funções de con- uma característica fundamental das novas
cepção no trabalho vem sendo introduzido formas de poder. Passamos assim da obe-
ao mesmo tempo em que são atribuídas diência a um chefe à adesão a uma lógica”.
maiores responsabilidades aos trabalhado- De acordo com Pagès (1987), quanto mais
res, no cumprimento de metas e objetivos inatingíveis forem os princípios, maior será
organizacionais. Trata-se de um processo no a “autonomia”, ou seja, maior a responsa-
qual a autonomia delegada ao trabalhador e bilidade do indivíduo no trabalho. O que o
suas equipes tem significado uma máxima autor chama de autonomia controlada é um
responsabilidade. processo que exige do trabalhador maior
Ao trabalhar por objetivos, o trabalhador sujeição e dedicação com vistas aos obje-
assume riscos e, ao assumi-los, comprome- tivos, metas e princípios preestabelecidos,
te-se mais com a organização. A autonomia e no qual quem não se sujeita é visto com
integra um jogo que faz o trabalhador desconfiança. A adesão aos objetivos é o
interiorizar as normas e sentir-se perma- ponto-chave das relações de trabalho:
nentemente controlado. Nas novas situações
de trabalho, o indivíduo é colocado diante “A contradição entre liberdade e submissão
de contradições, tensões e solicitações e, aparece quando o indivíduo percebe que está
no coração do processo de modernização submetido a um jogo. Estar submetido ao
das organizações, exposto a um sofrimento jogo provoca temor não só de perda, mas
ainda mais profundo (Linhart, 2000). de perder-se, perdição esta que é a cons-
A dominação da organização, exercida ciência angustiada da alienação. Então a
pela interiorização de valores, fica então única maneira de tentar remediar a eclosão
favorecida não só pelas novas estratégias de desta contradição é reconhecê-la afirmando
gestão de pessoas, mas também por gerar a cinicamente: ‘em uma sociedade capitalista
instabilidade e a insegurança nos trabalha- é preciso ser capitalista’. O sonho é voltar
dores. São exemplos disso as contradições suas próprias regras contra a organização
entre o discurso da qualidade e o da eficácia capitalista” (Pagès, 1987, p. 59).
na prestação de serviços como objetivo
organizacional diante das condições reais, Trata-se de um jogo feito com base na
muitas vezes precárias, que o trabalhador evolução da carreira dos indivíduos. No
tem para sua efetivação. entanto, inserido nele, o indivíduo pode vir,
Esses fatores, somados aos esquemas às vezes, a se tornar a própria vítima. Na
de remuneração particularizados por metas busca de autorrealização e reconhecimento,
e objetivos, contribuem para a redução todos jogam e têm consciência do jogo. A

178 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011


linguagem legitima o sistema de regras, Em suma, essa nova conformação do
constituindo o sistema de representações. trabalho passa a afetar outras dimensões
A apologia desse “novo ser no trabalho” da vida e a aumentar o sofrimento do indi-
faz-se por meio de uma farta literatura pro- víduo, em razão do esforço de adaptação
duzida na área da administração de empresas permanente às novas situações e a sua maior
para a gestão de pessoas. Esse ideário vem visibilidade pelo comprometimento com
sendo partilhado por executivos e institui- os resultados e objetivos organizacionais.
ções educativas, órgãos governamentais que Somamos a isso as formas de autonomia
atuam no campo educativo e nas políticas controlada que pressupõem esquemas de
de emprego. Não podemos excluir dessa avaliação e de remuneração individuali-
lista as entidades sindicais de trabalha- zados.
dores que atuam no campo da formação É importante que se diga que essa situa­
profissional. São disseminadores, ainda, os ção de exposição do trabalhador cria um
cursos de MBA, de administração e gestão “campo fértil” para o que Dejours (2001)
de negócios, treinamentos no âmbito das denominou de ideologia defensiva do rea-
próprias empresas, entre outros. A prática lismo econômico, na qual todos os meios
discursiva e seus principais enunciados podem ser adotados em prol do resultado,
também envolvem a grande mídia e um da economia e dos objetivos da organização.
amplo mercado da literatura de autoajuda. Abre-se espaço para a violência e para a in-
O conteúdo, via de regra, relaciona-se à diferença, ou para aquilo que o pesquisador
adaptabilidade do homem novo ao mundo francês chamou de “banalização do mal”,
produtivo, flexível e volátil. onde sobrevivem os mais competentes e
As mudanças permanentes nas bases competitivos. Outro efeito disso é que tal
tecnológica e organizacional do trabalho são competitividade entre os pares dificulta o
uma característica comum às organizações diálogo, a intercompreensão, afetando a
orientadas pelo modelo de desenvolvi- possibilidade de criação de um ambiente fa-
mento pós-fordista. Elas produzem efeitos vorável ao reconhecimento e ao julgamento
significativos no plano de vida pessoal, na dos esforços empreendidos pelos sujeitos,
imagem de si construída a partir do trabalho. o que é vital ao processo de construção da
Corresponde a isso o fato de que a exigên- identidade.
cia de novos atributos, de competências e
habilidades vem sendo feita, em muitos
casos, sob condições que não permitem o
desempenho esperado. PSICODINÂMICA DO TRABALHO:
Sennett (1999) aponta como o novo
capitalismo afeta o caráter pessoal dos indi- SOFRIMENTO, RECONHECIMENTO
víduos, fundamentalmente por não oferecer
condições para a construção de uma nar- E IDENTIDADE
rativa da carreira e, consequentemente, da
vida. Ao utilizar como recurso metodológico A abordagem da psicodinâmica do tra-
a história de vida, ele demonstra como um balho amplia a compreensão do sujeito no
trabalhador fordista (Enrico – pai), mesmo trabalho para além das questões técnicas ou
tendo um trabalho burocratizado e rotineiro, dos problemas de autoridade e de gestão.
conseguia constituir uma trajetória pessoal Ela situa esses sujeitos como envolvidos
disciplinada no que se refere ao uso do tempo num contexto intersubjetivo. Parte do
e, assim, estabelecer expectativas de longo pressuposto de que o indivíduo, na condi-
prazo. Ao contrário, no atual contexto, um ção de trabalhador, constrói a imagem de
trabalhador flexibilizado (Rico – filho) tem si e sua identidade de forma mediada pela
as relações de trabalho e as afinidades com organização do trabalho
os outros estabelecidas num ambiente de Essa construção implica, pois, não
incertezas e de mudanças contínuas. somente uma relação com o outro, mas

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011 179


também com um terceiro termo – o real. O ficação e dá um sentido à autorrealização,
reconhecimento não é direto, diz respeito à e, nesse caso, o sofrimento será criativo.
relação que o sujeito mantém com o real. O No entanto, se esse julgamento não for
acesso ao real nunca é imediato e depende favorável, o sofrimento será patogênico,
de um tipo de instrumentalização, no caso, contribuindo para a deterioração da iden-
o trabalho. tidade (Goffmann, 1975).
O reconhecimento da identidade torna- Dejours (1999), por outro lado, afirma
-se central nos processos de afirmação dos que o sofrimento é mais amplo, pois é
sujeitos. Trata-se do reconhecimento das herdeiro do sofrimento dos pais e, portanto,
estratégias, do esforço pessoal empreendi- anterior ao trabalho. Ele é o elemento que
do, da contribuição do sujeito à organização impulsiona os indivíduos ao mundo em
do trabalho. busca de autorrealização, de alívio e quie-
No entanto, todo trabalho real está inscri- tude. Essa busca assume a forma específica
to, inexoravelmente, na distância irredutível de uma luta pela conquista da identidade
entre a organização prescrita e a organização no campo social. Entretanto, o sujeito não
real do trabalho, sendo impossível para o constrói sua própria identidade somente a
trabalhador, em situações comuns, obedecer partir de si mesmo. Ele necessita do olhar,
estritamente aos objetivos, às prescrições do julgamento do outro, e isso demanda o
e instruções. Em certa medida, essas pres- pleno engajamento dos sujeitos no mundo
crições começam na formação e continuam intersubjetivo.
nos inúmeros cursos de aperfeiçoamento. A superação da angústia fica na depen-
O real do trabalho, por outro lado, é o dência do julgamento do outro. O indiví-
que se impõe nas situações cotidianas diante duo tem a expectativa de um retorno pela
das condições oferecidas na organização contribuição que ele oferece à organização
do trabalho, e é composto pelas relações do trabalho. Essa retribuição ultrapassa o
organizacionais e pelos procedimentos da plano salarial e das premiações pela pro-
atividade que irá desenvolver. Esses ele- dutividade para adentrar o campo moral
mentos emergem como uma resistência ao do reconhecimento o qual vem sob a forma
plano idealizado e desejado pelo sujeito. do julgamento que o outro faz do trabalho.
O real do trabalho, portanto, vai de- São dois tipos de julgamento destacados
mandar do sujeito um esforço para resistir por Dejours (1999): o julgamento de utili-
a essas situações que vão se apresentando a dade e o julgamento considerado de beleza.
ele. Diante das pressões organizacionais, o O julgamento de utilidade, que é
trabalhador se vê diante do dilema de trans- essencial e tem que ser enfrentado pelo
gredir para trabalhar ou ficar paralisado. O trabalhador, está relacionado à utilidade
reconhecimento, enfim, passa pela aceitação socioeconômica e técnica do trabalho. Ele
das transgressões que o indivíduo realiza é, como destaca Dejours (1999), formulado
para poder executar bem uma tarefa para pelos superiores hierárquicos e, casual-
a qual mobiliza sua capacidade de criar, mente, pelos clientes, ou seja, ocorre no
sua inteligência, trapaças e quebra-galhos. sentido vertical. O julgamento considerado
Nas situações de trabalho, o indivíduo rea­ de beleza é feito pelo coletivo do trabalho,
liza ajustes, toma decisões, mobiliza sua ou seja, no sentido horizontal. É emitido
subjetividade. As atitudes que transgridem pela equipe de trabalho ou pela comuni-
são elaboradas de forma consciente, mas o dade da qual o indivíduo participa, sendo
indivíduo não tem a certeza da justeza da fundamental para a construção da identidade
solução adotada (Heloani & Ushida, 2007). do trabalhador. Trata-se de um julgamento
O não reconhecimento da contribuição bastante severo que dá ao trabalhador um
e do esforço do indivíduo causa o seu so- sentido de pertencimento e de contribuição
frimento e afeta a construção da identidade à obra comum. Com ele, o sujeito tem o re-
social e pode levar ao adoecimento mental conhecimento de todas as suas habilidades e
ou somático. O reconhecimento leva à edi- qualidades pelo coletivo de trabalho, o que

180 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011


o faz sentir-se um igual aos demais. Esse do indivíduo. Mas, se esse julgamento for
reconhecimento de conformidade é o que desfavorável, “este não poderá usufruir
permite o reconhecimento das diferenças, o reconhecimento e no limite poderá ser
da originalidade do trabalho pelos pares. estigmatizado, no sentido que Goffmann
A psicodinâmica do reconhecimento de- (1975) empresta ao termo”.
sempenha um papel fundamental no destino O trabalho vai impondo permanente-
do sofrimento dos trabalhadores e na pos- mente transformações identitárias para
sibilidade de transformar o sofrimento em acompanhar as modificações na organização
prazer. É do reconhecimento que depende, do trabalho e na estrutura do emprego. A
na verdade, o sentido do sofrimento. Quando formação é um dos elementos que expressa
a qualidade do trabalho e os esforços são muito bem essa relação, pois intervém nas
reconhecidos, as angústias, as dúvidas, as dinâmicas identitárias por muito tempo
decepções, os desânimos adquirem sentido. e para além da formação escolar. Ela se
O reconhecimento é central na atribuição do estende ao longo dos processos de socia-
sentido de pertencimento, na relação com o lização secundária. Isso acontece porque
grupo, e na autorrealização do trabalhador. as mudanças contínuas na organização do
Nessa relação com a realidade do traba- trabalho exigem esforços permanentes de
lho, ao longo de sua trajetória profissional, adaptação dos sujeitos. Essa é uma carac-
uma identidade deteriorada (Goffmann, terística fundamental da organização do
1975) pode repercutir, como afirma Dejours trabalho pós-fordista com seus esquemas
(2007), uma imagem de indignidade pelo de autonomia controlada, cujos processos
grau de objetivação imposta pela própria tendem a elevar a visibilidade do indiví-
organização e as condições de trabalho. A duo pelo seu comprometimento com os
convivência com a impossibilidade de ca- resultados e envolvimento subjetivo com
nalizar a energia profissional e de encontrar os objetivos organizacionais.
um sentido de autorrealização no trabalho A instabilidade dos processos de reco-
gera insatisfação e frustração que estão nhecimento no trabalho, portanto, é um fato
relacionadas aos elementos simbólicos do intrínseco à organização do trabalho e um
trabalho, ou seja, às expectativas e ao desejo. elemento gerador de insegurança e maior
A heteronomia dos processos e as condi- sofrimento ao trabalhador. Sob tais circuns-
ções de trabalho têm sido campo fértil para tâncias, o trabalhador tem a chance aumen-
o aprofundamento do sofrimento psíquico tada de ter um julgamento desfavorável e
e de sentimentos de desesperança em rela- de não poder usufruir do reconhecimento,
ção às possibilidades de transformação da conforme apontamos. Assim, estará sujeito
organização do trabalho. ao sofrimento patogênico, pois o que está
Dejours (1999) afirma que quando isso em jogo é a sua identidade, um elemento
ocorre há o fortalecimento da identidade fundamental no fortalecimento de sua saúde
do sujeito e o crescimento da maturação não apenas mental mas também física.

BIBLIOGRAFIA

ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho: Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho. 6a ed.
São Paulo, Boitempo, 2002.
BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A Construção Social da Realidade. Petrópolis, Vozes, 2004.
CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social. Petrópolis, Vozes, 1998.
CIAMPA, A. C. A Estória do Severino e a História da Severina. São Paulo, Brasiliense, 1990.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011 181


DEJOURS, Christophe. O Fator Humano. Rio de Janeiro, FGV, 1994.
________. Conferências Brasileiras: Identidade, Reconhecimento e Transgressão no Trabalho. São
Paulo, FGV/Fundar, 1999.
________. A Banalização da Injustiça Social. 4a ed. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2001.
________. A Loucura do Trabalho: Estudo de Psicopatologia do Trabalho. 5a ed. São Paulo, Cortez/
Oboré, 2007.
DUBAR, Claude. A Socialização: Construção das Identidades Sociais e Profissionais. São Paulo, Martins
Fontes, 2005.
ENRIQUEZ, Eugène. As Figuras do Poder. São Paulo, Via Letera, 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1990.
GOFFMANN, Erwing. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro,
Zahar, 1975.
HABERMAS, J. “Para Uso Pragmático, Ético e Moral da Razão Prática”, in Revista Estudos Avançados.
São Paulo, IEA- USP, 1989.
________. “Crítica de la Razón Funcionalista”, in Teoría de la Acción Comunicativa. Madrid, Tauros,
1987, vol. II.
HAVEY, David. A Condição Pós-Moderna. 9a ed. São Paulo, Loyola, 2000.
HELOANI, R.; FREITAS, Maria Ester; BARRETO, Margarida. Assédio Moral no Trabalho. São Paulo, Con-
gage Learning, 2008.
HELOANI, R.; USHIDA, S. “Psicodinâmica do Trabalho, Sociologia e Identidade”, in Matias e Abib
(orgs.). Sociedade em Transformação: Estudo das Relações entre Trabalho, Saúde e Subjetividade.
Londrina, Eduel, 2007, pp. 181-204.
HELOANI, R.; CAPITÃO, C. “Identidade como Grupo, o Grupo como Identidade”, in Revista Aletheia, n.
26. Canoas, ULB, 2007, pp. 50-61.
HELOANI, R.; PIOLLI, E. “A Falácia da Qualificação”, in Revista USP, n. 64. São Paulo, CCS-USP, 2005, pp.
201-11.
HELOANI, R. Gestão e Organização no Capitalismo Globalizado: História da Manipulação Psicológica
no Mundo do Trabalho. São Paulo, Atlas, 2003.
LINHART, Danièle. “O Indivíduo no Centro da Modernização das Empresas: um Reconhecimento
Esperado mas Perigoso”, in Trabalho & Educação (NETE), no 7, jul.-dez./2000, pp. 24-37.
LUKÁCS, G. História e Consciência de Classe: Estudos de Dialética Marxista. 2a ed. Rio de Janeiro/Porto,
Elfos/Publicações Escorpião, 1989.
MARCUSE, Herbert. Ideologia da Sociedader Industrial. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. 9a ed. São Paulo, Difel, 1985, vol. 1.
________. “Trabalho Alienado e Superação Positiva da Autoalienação Humana”, in Florestan Fer-
nandes (org.). Marx & Engels (Col. Grandes Cientistas Sociais, no 36). São Paulo, Ática, 1989, pp.
146-64.
MASLOW, A. Una Visión Humanista para la Empresa de Hoy. Barcelona, Paidós Ibérica, 2005.
MOTTA, Fernando P. Teoria Geral da Administração. São Paulo, Thomson, 2002.
PAGÈS, Max et al. O Poder nas Organizações. São Paulo, Atlas, 1987.
SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. Rio de Janeiro, 1999.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia. São Paulo, Ática, 1980.
WEBER, Max. Economia e Sociedade, vol. 1. 4a ed. São Paulo/Brasília, Imprensa Oficial/UnB, 2004.

182 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 172-182, dezembro/fevereiro 2010-2011


MARCELLO MOREIRA

MARCELLO MOREIRA
é professor de
Literatura Brasileira e
de História Literária
do Departamento de
Estudos Linguísticos
e Literários da
Universidade Estadual
do Sudoeste
da Bahia (UESB).
da composição e que o auditório teria de
reconhecer ao ouvir ou ler o poema para
apresentar-se como detentor das disposições
cognitivas e perceptuais que tornariam sua
apropriação legítima? Tem pertinência, ao
falar-se da recepção da poesia composta nos
séculos XVI e XVII, uma categoria do juízo
tal como “legitimidade” de apropriação?
As questões acima apresentadas não
bjetiva-se, aqui, são as únicas que devem nortear uma pes-
apresentar uma quisa sobre a poesia laudatória, mas se nos
análise de poe- apresentam como centrais para qualquer
ma composto na proposta de compreensão de vários gêneros
segunda metade ditos exornativos ao tempo de sua produção
do século XVII, e recepção primeiras, conquanto não possa-
de autoria de Ma- mos, em um artigo curto como o que ora se
nuel Botelho de escreve, responder a todas as questões acima
Oliveira, poeta que, em seu livro, Música levantadas. Em outros estudos já publicados
do Parnasso, impresso em 1705, mais es- sobre a poesia laudatória, tentamos respon-
pecificamente na dedicatória ao duque do der, mesmo que de forma precária, a algumas
Cadaval, Nuno Álvares Pereira de Melo, das questões postas acima, embora algumas
afirma ter sido o primeiro poeta brasileiro delas estejam até agora à espera de resposta.
a fazer imprimir os seus versos. O que a Condição inevitável de uma pesquisa que se
análise visa a demonstrar é como a poesia faz por partes e de forma sempre precária.
laudatória, mais especificamente o panegíri- Procuraremos tratar por ora do modo opina-
co, produz a figuração de caracteres agentes tivo de figuração dos caracteres agentes e de
por meio da aplicação ao discurso da noção como a elocução, no louvor, é constitutiva
de “verossimilhança”, que equivale àquela da figuração. Em um estudo breve como o
de “opinião”, tal como já definida por Gerard que se escreve, a argumentação apresenta
Genette, atualizando tipos e não sujeitos, evidente caráter indutivo, em que se poderia
conquanto se predique aqueles pela aposição supor o apagamento, por parte do pesquisa-
de nomes próprios. Referem-se outrossim dor, de toda a diversidade em prol de uma
alguns usos civis possíveis do panegírico homogeneidade – procedimental, derivada
ao tempo de sua produção. do regramento a que os poemas estavam
então sujeitos, é o que a crítica aqui toma
como pressuposto – que, contrariamente ao
que se afirma, não existiria nos poemas, mas
INTRODUÇÃO apenas no discurso acerca deles. Poder-se-ia
pensar que o acúmulo de dados, extraídos
Principiamos este estudo por um con- de novos testemunhos, poderia vir a minar
junto de questões que julgamos central para os resultados a que chegamos. Esperamos
uma melhor compreensão da poesia laudató- demonstrar, em trabalho mais alentado
ria: ela implica um gosto dessueto que, não que ora escrevemos sobre o louvor, que o
sendo o nosso, pode ser compreendido por procedimento indutivo por nós adotado não
uma pesquisa de cunho histórico? Quais são implica, por razões a serem demonstradas
as condições em que se produz esse gosto? ulteriormente, a falência de nossa proposta
E quais são as formas de apropriação dessa de análise, já que uma taxonomia de análise,
poesia ajuizadas legítimas por seu auditório como, por exemplo, “o louvor”, deriva de
coevo? A apropriação implicaria o conhe- uma classificação dos discursos por gêneros
cimento de um código, de preceitos que – judiciário, deliberativo, epidítico –, de prá-
teriam sido atualizados pelo poeta quando ticas de composição e de usos civis dos dis-

184 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011


cursos, compondo as espécies e subespécies dos quais o louvor deve ser produzido,
dentro de cada gênero e suas hibridações uma bastando invertê-los para que se produza
casuística riquíssima, prevista pelo próprio o vitupério:
sistema de convenções, e, o mais importante,
que apresenta “permanência no tempo” e “Nunc ad demonstrativum genus causae
“coerência no espaço” (De Certeau, 2002, transeamus. Quoniam haec causa dividitur
p. 87), não derivando a coerência da com- in laudem et vituperationem, quibus ex rebus
preensão de uma suposta unidade imposta laudem constituerimus, ex contrariis rebus
aos poemas pela interpretação, embora esta erit vituperatio conparata. Laus igitur potest
não seja neutra e implique por necessidade a esse rerum externarum, corporis, animi.
“demonstração” da unidade pressuposta. Rerum externarum sunt ea quae casu aut
fortuna secunda aut adversa accidere pos-
sunt: genus, educatio, divitiae, potestates,
gloriae, civitas, amicitiae, et quae huiusmodi
LOUVOR E REPRESENTAÇÃO DE sunt et quae his contraria. Corporis sunt ea
quae natura corpori adtribuit commoda aut
CARACTERES incommoda: velocitas, vires, dignitas, vale-
tudo, et quae contraria sunt. Animi sunt ea
Aristóteles, em sua Poética, ao prescre- quae consilio et cogitatione nostra constant:
ver os objetos da imitação, afirma que os prudentia, iustitia, fortitudo, modestia, et
imitadores “imitam homens que praticam quae contraria sunt. Erit igitur haec confir-
1 Para uma discussão sobre
alguma ação” (Aristóteles, 1986, p. 105), matio et confutatio nobis in huiusmodi causa” a atribuição do tratado, ver:
e os caracteres ditos, portanto, agentes, (Ad Herennium, 1989, pp. 172-4)2. Kennedy, 1987.

ou, como se costuma também denominá- 2 A tradução do fragmento


los – na medida em que seriam, sobretudo, Em esclarecedora passagem de A Retó- acima excertado é como
segue: “Passemos agora
característicos do drama –, drontes, são, rica, que complementa aquela da Poética às causas do gênero de-
por necessidade, “indivíduos de elevada respeitante à figuração de caracteres, ao monstrativo. Já que o epi-
dítico abarca o louvor e
ou de baixa índole (porque a variedade dos discorrer sobre o louvor, Aristóteles (1994, o vitupério, os lugares que
caracteres só se encontra nestas diferenças pp. 100-1) afirma que: fundam o louvor, ao serem
empregados de forma in-
[e, quanto ao caráter, todos os homens se versa, servir-nos-ão para a
distinguem pelo vício ou pela virtude])” “[…] como o louvor está baseado em ações, composição do vitupério.
O louvor pode basear-se
(Aristóteles, 1986, p. 105). É proporcionada e desde que o agir de acordo com um fim em coisas externas, em
à diferença de índole ou de caráter a figu- moral é característico de homens dignos, atributos físicos e em qua-
ração dos caracteres agentes, que se apre- é preciso que nos esforcemos por mostrar
lidades do ânimo. Às coisas
externas pertence o que
sentam didaticamente tripartidos, de acordo que um homem está agindo dessa manei- pode ocorrer por acaso
com Aristóteles, em “homens melhores, ra, movido por um fim moral, e é útil que ou for tuna, favorável ou
adversa, tal como linhagem,
piores ou iguais a nós” (Aristóteles, 1986, pareça que ele tenha agido desse modo em educação, riqueza, poder,
p. 105), procedimento de figuração também várias ocasiões”. glória, cidadania, amizades e
elementos análogos – assim
encontrado, segundo o Estagirita, entre os como, para o vitupério, seus
pintores, que adotariam, assim, como objeto As ações a serem selecionadas como opostos.Ao corpo pertence
o que a natureza lhe atribuiu
de imitação, aquilo que é matéria do poetar. exempla do agir do encomiado serão aque- em termos de qualidade ou
A figuração de caracteres é produzida pela las ajuizadas mais aptas a produzir sobre o de defeitos: velocidade, for-
atualização de lugares-comuns retóricos, auditório um efeito persuasivo concernente
ça, beleza, valor, assim como,
para o vitupério, os seus
estando eles codificados nas preceptivas à excelência daquele, de acordo com o que contrários. As qualidades
retóricas desde A Retórica, de Aristóteles o auditório e o poeta partilhem em termos do ânimo concernem àquilo
que depende do nosso juízo
(1994, pp. 91-105), podendo-se encontrá- dóxicos. Mas, embora o agir virtuoso seja e reflexão: prudência, justiça,
los definidos de forma análoga na Retórica aparentemente condição para o louvor, este fortaleza, temperança, assim
como os seus opostos,
para Alexandre1, de Anaxímenes, ou ainda não equivale exatamente àquele, pois, como o se nosso desejo é vitupe-
nos tratados de Cícero (1958) e de Quinti- diz o próprio Aristóteles, “o louvor é lingua- rar. Desse modo, em uma
causa demonstrativa, serão
liano (1959). Em seção do Ad Herennium, gem que produz a grandeza da virtude” (1994, constituídas nossa prova e
expõe-se de maneira escolar os loci a partir pp. 100-1). Não se pode dizer, contudo, que também a refutação”.

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011 185


haja uma autonomização da figuração do
objeto em relação ao objeto supostamente
figurado, pois os procedimentos de figuração
que implicam a exaggeratio, ou amplificação
retórica, na própria figuração são ajuizados
por aquele que os aplica proporcionados ao
objeto, componente dóxico da figuração.
Vivendo na e pela representação, como o
afirmou João Adolfo Hansen, as sociedades
de corte quinhentistas e seiscentistas teriam,
por uma retoricização do vivido3, promo-
vido a crescente indistinção da relação de
termos antinômicos, que, para nós, estão no
cerne da própria disciplina histórica – o real
e o discurso – e, dessa maneira, nas artes,
não haveria a introdução da “experiência
em uma outra prática”, a que para nós se-
ria propriamente escriturária? Assim, por
exemplo, Jules de Mesnardière, em seu La
Poétique, já definia a verossimilhança, sem
o dizer expressamente, como fundada no
seu elemento propriamente opinativo, o que
foi discutido por Gerard Genette (1969) em
um dos seus estudos reunidos no segundo
volume de Figures:

“Les reines doivent estre chastes, pudi-


ques, graves, magnifiques, tranquilles, &
genéreuses. Les moeurs d’un Gouverneur
d’Empire, & ses qualitez nécessaires, sont
l’extreme vigilance, la fermeté, la hardies-
se, l’addresse, la modération, la prudence
extraordinaire, l’exacte fidelité, la parfaite
conoissance de la Science Politique; bref
un utile meslange de probité & de lumiéres”
(Mesnardière, 1639, pp. 121-2)

Se a verossimilhança é opinativa, o que


impede de se transferir uma categoria como
o “verossímil” do âmbito das letras para
aquele das representações quotidianas cor-
tesãs – que, para ser verossímeis, enquanto
representações, demandariam também elas
a atualização do opinativo? E, veja-se,
esse opinativo tem de ser partilhado por
grupos suficientemente amplos para que a
“opinião”, apresentada por Jules de la Mes-
3 Ver, por exemplo, a subli- nardière, possa tornar-se uma prescrição que
mação da vida a partir da define o “verossímil” no campo da poesia e
transposição do sublime de
Longino para o vivido em: o “sublime” no campo dos costumes. Michel
Rapin, 1686. de Certeau (2002, p. 126) diz que “nenhum

186 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011


código é, como tal, mais fiel ao real senão mas para quem ainda está vivo, memoran-
a título do seu poder operatório, quer dizer, dum de quem ainda está aqui, ênfase, por
enquanto instrumento de uma operação da conseguinte, no merecimento de memória
sociedade sobre ela mesma”, mas, é de se imorredoura por parte do encomiado. En-
perguntar, para além dos “códigos” haveria quanto louvor de homens pertencentes a
um real a operar? linhagens, o panegírico é um bem de família,
A legibilidade da função, em que estão que dignifica os que o herdarão. Reunidos
implicados os procedimentos de figuração, e dispostos cronologicamente, são capital
faz-se parcialmente presente, por exemplo, acumulado por gerações de varões e capa-
no título ou didascálias dos próprios poemas, zes de prover uma linhagem da “história”
como se vê no daquele por nós selecionado de sua gênese, cuja origem, muita vez, em
para análise: “PANEGYRICO/AO/EX- tempo anterior ao século XVII, se perdia
CELLENTISSIMO SENHOR/MARQUEZ na bruma do maravilhoso, do feérico – di-
DE MARIALVA,/Conde de Cantanhede, no ferença pertinente, justamente por não se
tempo que governava as Armas/de Portugal” fundar nos nossos modos de racionalização
(Manuel Botelho de Oliveira). O paratexto e por escapar a formalizações científicas de
intitulador permite que se avalie a correlação qualquer natureza. Mas quando teria ocor-
de adequação entre a legenda e sua “reali- rido essa resistência ao “Eros da origem”,
zação” de acordo com as expectativas do como o denomina Michel de Certeau, essa
auditório, que reconhece os usos letrados ausência da encenação “da autoridade ne-
e civis do gênero em que o louvor se reali- cessária e perdida sob o aspecto do evento
za, “panegírico”, o que implica uma ativa que não ocorreu” (De Certeau, 2002, p. 99)?
participação dos interesses afetivos e éticos A memória panegirical institui o quadro
pelo objeto, vita, bios, interesses que a arte do heroísmo mavórcio, como se predicava
moderna visou a neutralizar. O panegírico, então a bravura guerreira, digna de um
nos Estados ibéricos, é uma certa “arte de deus bellator, e, em conjunto, panegíricos
viver”, em sua lógica ou telos católico e formam a unidade de um devir de que se
contrarreformista, que ele objetiva figurar aboliu o desvio, a não ser para uma maior
efetuando-a como ordo, tornando uma excelsitude, o que reforça sua função de
posição ocupada no espaço social uma po- continuação da reprodução da sociedade
sição “objetiva”, frente a outras posições, e, em seus quadros constituídos. A leitura
simultaneamente, eletiva, porque realizada dos panegíricos seria análoga àquela de
nesta arte da vida como voluntas ou vontade As Confissões em tempos idos, tal como
de ser e fazer, nobreza como nascimento e definida segundo Luiz Costa Lima, embo-
ao mesmo tempo como ação. Como forma ra restrita a membros da nobreza. O que
de figuração de caracteres multiplicada ao nela importa é ser repertório de exempla:
infinito pelo agenciamento das técnicas de “En Las Confesiones, el registro de los
reprodução manuscritas e impressas, visa acontecimientos de una vida privada se ve
à produção da ubiquidade e da eternidade como ejemplo, es decir, el destino privado
do caráter figurado que se associa a um lo puede seguir cualquiera que se habilite
nome próprio: marquês de Marialva. É, ao para redescubrir en sí el lenguaje infundido
mesmo tempo, prefiguração dos descen- por Dios en sus creaturas” (Costa Lima,
dentes, que, enquanto devedores do sangue, 2003). No panegírico, enquanto discurso
pertencentes a um genus, garantirão, por elogioso, todos os elementos coexistentes,
adesão antecipada e agenciada pelo mesmo pela narração, engendram por acúmulo e
louvor ao modelo que lhes é apresentado, a redundância relações de coerência “(uma
perpetuação da crença de que dignitas non rede de catáforas e de anáforas assegura
moritur. O panegírico, no caso do marquês incessantes remetimentos do texto a ele
de Marialva, duplica a vida pleonastica- mesmo, enquanto totalidade orientada)”
mente, porque é vida garantidora de vida (De Certeau, 2002, p. 103) e, assim como na
duradoura, porque agenciada pela poesia, história, há para nós o sabor de certa “ilusão

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011 187


realista” pelo recurso a nomes próprios, sentar os preceitos que deveriam regrar o
lugares e dêi­ticos. O panegírico enquadra- panegírico (Alcaçar, 1750), que partejam o
-se no que Paul Ricoeur, ao analisar o livro ethos extraindo-o do nascimento e o ilustram
de Edward Casey, denomina reminiscing, pelas particularizações de tempo.
ou seja, rememoração de acontecimentos, As espécies exornativas de discurso de-
de pessoas, a serem compartilhados como negam, como inartísticas, ou seja, não feitas
um fundo memorial que, pela ruminação de acordo com a arte, pois esta é, ao bem
intelectual e afetiva, dá origem a uma realizar-se, apagamento de procedimento,
memória propriamente meditativa: rastros a ideia bergsoniana de esquema dinâmico:
conservados e constantemente reanimados “Entendemos com isso que essa representa-
pela apropriação e por usos pragmáticos ção contém menos as próprias imagens do
e morais (Ricoeur, 2007, p. 56). Mas, ao que a indicação daquilo que é preciso fazer
tempo em que como pleonasmo duplica a para reconstituí-las” (Ricoeur, 2007, p. 47). O
“vida” dos que ainda estão aqui, o panegí- conjunto de feitos exemplares representados
rico enfatiza a precariedade do vivido e a no panegírico, enquanto memória, pressupõe
sensação de que o tempo passa (o panegírico aparentemente um vivido, passado, mas os
acentua a percepção – aisthesis – do tempo), exempla selecionados pelo poeta nada mais
o que, por seu turno, evidencia e positiva o fazem do que ilustrar um hábito, de que os
papel do poeta como produtor de memória. feitos brotam como flores oriundas de uma
Enquanto memória – res gestae – que, mais raiz. O caráter é hábito e este traz a marca
do que representada, é figurada, pois feitos do presente, dado importante quando nos
derivam de caracteres, e, por conseguinte, recordamos de que o encomiado, aquele
figurar os caracteres implica representar de quem se fala, ainda obra, no presente da
seus efeitos, como já o declarara Aristóteles recepção seiscentista, segundo o hábito de
em sua Poética, o panegírico é visada, mo- que nascem outros botões. O hábito, porque
delização de figuração e, por conseguinte, não explicita a marca da experiência inicial
seleção antecipada dos efeitos que devem (Ricoeur, 2007, p. 43), é condizente com a
atualizar o caráter figurado. Não parece ter expectativa de grupos aristocráticos, para
sentido, por conseguinte, no panegírico e em quem o hábito não é aquisição, não é acúmulo
outras espécies de discurso exornativo, ten- de experiência, mas derivação do caráter –
tar distinguir o de que se fala, os praeterita atualização da opinião, transformada em tó-
(o quê), de um “como?”, pois o noema, a pica, de que o rebento é primavera do tronco.
lembrança, está implicado no procedimento É essa crença que funda o aristocratismo de
de rememoração, noese (Ricoeur, 2007, p. grupos aristocratas dentro da própria nobreza,
41), retoricamente constituído. Nesse sen- que distinguem entre os mais e menos bem
tido, o panegírico não é uma comparação nascidos, de que derivam, nos manuais de ci-
recapitulativa, ou se pode dizer que é um vilidade, os alertas contra a hiperidentificação
retrato sem rosto, ou, melhor ainda, em um ansiosa ou contra a hipercorreção, simulacros
aparente jogo de palavras, uma persona que do hábito que acusam o parvenu. O parvenu
só pode adornar, pois que lhe cabem sobre age o tempo todo movido pela reflexividade,
o rosto algumas personae com exclusão é o que se crê, levado a ponderar cada ato,
de muitas outras. Produzido por um vo- cada gesto, marcados pela penosidade do
cabulário cujos elementos se restringem a esforço de recordação dos modos próprios.
virtudes e feitos exemplares, o panegírico João Adolfo Hansen, ao discorrer sobre o
é por necessidade tautológico, sobretudo que se entendia, nos séculos XVI e XVII,
quando referente a membros de uma mesma por vulgaridade, assevera que “a afetação
linhagem. Como disse Michel de Certeau, vulgar é, justamente, a hiperdeterminação
ao referir a conjunção da santidade e da do modelo cortesão. Ridícula pelo exagero,
nobreza, “o sangue é metáfora da graça” ela evidencia os limites da convenção da
(De Certeau, 2002, p. 273), truísmo de que discrição que pretende ser naturalmente
não se esquecerão os preceptistas, ao apre- fundada” (Hansen, 2006, p. 97).

188 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011


No panegírico, cabe importante papel
à pintura de lugares, à “fixação” de uma
situação, ou, melhor, de sua constituição
retórica pelo recurso à topografia, pois o
que foi teve lugar: o espaço é mais do que
aide-mémoire, é condição para que se mo-
numentalize a memória – a memória-feito
demanda o lócus, exige-o. No louvor, há uma
relação de proporcionalidade e adequação
entre o caráter agente e o lócus em que se
desdobra a ação, ambos constituídos por
aguda elocução, sendo o campo de batalha,
por exemplo, no texto de Manuel Botelho
de Oliveira, “Mar Vermelho” – em que se
desdobra a “Mavórcia História” –, campo
inundado de sangue inimigo derramado
pelas armas portuguesas, vestidos os rios
– “sanguinosas correntes” –, por recurso à
nova metáfora aguda, de cravo, o que re-
fere a morte ao fio da espada, urbanamente,
por paradoxal que isso nos pareça, como
a sega de uma flor, colhida por obrigação
ou dever político e em legítima defesa. A
personagem, a ação e o lugar em que esta se
realiza são figurados preferencialmente por
metáforas representantes – prosomaton –,
pois no-los põem diante dos olhos (Hansen,
2006, p. 94).
Enquanto figurações de caracteres vi-
santes ao louvor, o panegírico ao marquês
de Marialva põe em questão o estilo, no
sentido retórico, em que a matéria deve
ser tratada.
Sendo, por conseguinte, um procedi-
mento na e pela linguagem, como a elocu-
ção é elaborada com vistas à produção de
encômios, à figuração de caracteres?
O que cabe dizer sobre a elocução apro-
priada ao louvor é que se nos apresenta como
uma modulação da notação frente aos obje-
tos notados, modulação essa prevista pelo
código de figuração de caracteres, tal como
definido nas poéticas e nas retóricas, o que
leva a concluir que a disposição “estética”
do auditório quinhentista ou seiscentista não
pode ser compreendida como “capacidade de
considerar em si mesmas e por elas mesmas,
em sua forma e não em sua função” (Bordieu,
2008, p. 11), as obras ditas poéticas ou artís-
ticas, já que a própria noção de modulação da
notação se deve à necessidade de figuração

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011 189


hierarquizada de caracteres agentes em uma de arte demanda sempre “uma experiência
sociedade baseada em uma liberdade sujeita estética”, embora se possa experimentar
e ao mesmo tempo diferenciadamente pri- “esteticamente todo objeto, seja ele natural
vilegiada, o que implica a ideia de distinção ou feito pelo homem” (Panofsky, 1979, p.
dos caracteres notados sob modo retórico 30). Como já se perguntara Pierre Bourdieu
e poético, porque já distintos sob modo (2008, p. 32) ao ler a mesma passagem, se é
jurídico. Essa distinção, ao ser não apenas a experiência estética, se é o ponto de vista
mantida, mas também acentuada pela arte, estético que cria o objeto estético, como
que modeliza as diferenças, remete à noção diferenciar obras de arte de outros objetos
de valia e de uso da própria notação ao tempo ou seres que podem ser experienciados este-
de sua produção. Cabe aqui dizer que se essa ticamente? Erwin Panofsky tentará resolver
figuração se baseava, por um lado, em uma o impasse a que chegou ao asseverar que as
tradição de notação que se poderia chamar obras de arte, diferentemente dos seres da
de escolar, já que o estudo da poética e da natureza e de outros artefatos feitos pelo
retórica pertencia aos currículos do período homem4, são produzidas com a intenção de
pré e pós-tridentino, por outro, fazia referên- ser experienciadas esteticamente e se cons-
cia à sua própria história na medida em que tituiria uma infração não as experimentar
modelos eram continuamente apropriados dessa maneira, do mesmo modo que seria
e reciclados no ato de apropriação. Quando uma espécie de infração ler esteticamente
Aristóteles, em seu A Retórica, declara que um sinal de trânsito denegando-lhe seu valor
o louvor se produz por meio da atualização comunicacional e funcional (o vermelho do
de lugares-comuns, como idade ou sexo, semáforo tem a função de informar-me que
respeitante à figuração de caracteres, reme- pare – Parofsky, 1979, p. 31), e, desse modo,
te o juízo do auditório ao âmbito da ética “no interior da classe dos objetos trabalhados
de que está abolida qualquer ideia de uma que, por sua vez, são definidos por oposição
contemplação “desinteressada” das artes, o aos objetos naturais, a classe dos objetos de
que, por paradoxal que possa parecer para arte definir-se-ia pelo fato de que ela exige
um auditório letrado ledor de Kant, torna ser percebida segundo uma intenção mais
as artes e seu auditório, que lhes reconhece propriamente estética, ou seja, de preferência,
a importância dos usos civis, evidência de em sua forma e não em sua função” (Bordieu,
excelência moral. Não se pode dizer, por 2008, p. 32). Erwin Panofsky parece não
conseguinte, que as artes dos séculos XVI e reconhecer a “relativa” pertinência histórica
XVII operem um “expediente de estilização”, de sua tentativa de elucidação da relação
como o fizeram muitas artes modernas, em entre forma e função nas artes, ao dizer
que se exija da “forma” uma denegação da que “a esfera em que o campo dos objetos
“função” (Bordieu, 2008, p. 14), o que tor- práticos termina e o da arte começa depende
na inapropriado, para uma leitura histórica da intenção de seus criadores”, intenção essa
das artes dos séculos XVI e XVII, falar, que, no entanto, não pode ser absolutamente
em suma, como elementos autônomos, determinada por aqueles que se posicionam
tanto de “forma” quanto de “conteúdo”, diante dos objetos (Panofsky, 1979, p. 32).
ou de “forma” e de “função”, ou ainda de Caso não possa discernir a intenção implícita
4 Panofsky (1979, p. 31) afirma “forma” e de “utilidade”. Erwin Panofsky em um objeto, como posso saber se devo
que os artefatos produzidos
afirma que em Poussin encontramos um lhe responder esteticamente? Diante de uma
pelo homem e que não de-
mandam uma experiência dos primeiros exemplos (“la fin de l’art est carta belamente caligrafada, estou diante de
estética são subdivididos da la délectation”) da dissociação entre arte e um ato comunicacional ou diante de uma
seguinte maneira:“Os obje-
tos feitos pelo homem, que utilidade, conquanto a tradição preceptiva obra de arte que demanda uma experiência
não exigem a experiência sempre tenha enfatizado o ser útil do que estética? Erwin Panofsky (1979, p. 32) nos
estética, são comumente
chamados de ‘práticos’ e chamamos obras de arte (Panofsky, 1979, p. diz que o “gosto clássico exigia que as cartas
podem dividir-se em duas 30). No entanto, como o declara o próprio particulares […] fossem artísticas”, mas
categorias: veículos de co-
municação e ferramentas
Panofsky, sejam elas boas ou ruins, sirvam dizer que se exigia das cartas, no século
ou aparelhos”. ou não a uma finalidade prática, toda obra XVI, que fossem artísticas, não é declarar

190 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011


sub-repticiamente que deveriam não o ser, No poema de Manuel Botelho de Oli-
que eram antes de mais nada funcionais, veira, a grandiloquência elocutiva acaba por
simples atos comunicacionais, o que resul- obrigar o poeta, ao visar ao alcance de um
tava por fim “no que se poderia denominar público mais amplo, a desdobrar o discurso
falsa beleza” (Panofsky, 1979, p. 32) das em planos justapostos, em que à poesia se
cartas “caprichosamente” artísticas? Ars antepõe, na forma de escólios ou de paratex-
implica sempre usos civis e o gosto aqui tos, um seu sentido difícil demais, de outro
parece remeter a uma referência para nós modo, de ser constituído sem ajuda:
muito além de si mesmo, o que nos leva
mais uma vez a afirmar que a definição do “[à direita da estrofe]:
“julgamento estético”, segundo Kant, que Sua genealogia
preconiza a separação entre “o interesse dos Donde descendem os Menezes
sentidos”, por que se define o agradável, “o
interesse da Razão”, que define o Bom, e o [à esquerda, a estrofe, a ser lida de acordo
“desinteresse”, “única garantia da qualidade com o escólio, paratexto ou didascália,
propriamente estética da contemplação”, acima excertados]:
não se aplica à poética e às artes dos sécu- Vós Ramo illustre de hūa excelsa planta,
los XVI e XVII, que, em si, mais do que Que em fecunda virtude ennobrecida,
referir o decus, são por ele balizadas nos Entre os Troncos mais altos se levanta,
procedimentos de figuração, para além de Grande na estirpe, no valor crecida:
explicitar um componente de prazer sensual Tam nobre sempre, que em nobresa tanta,
constitutivo das artes, o delectare. Com agoa não, com sangue foy nacida,
A própria elocução, ao acumular ele- Da Infanta Heroyca; dando em tempos
mentos tropológicos e figurais, que exigem [muytos
do auditório procedimentos de reversão do De espadas folhas, de vittorias fruytos”
impróprio ao próprio, ajuda a estabelecer (Oliveira, 1705, p. 92).
uma propriedade de distribuição “desiguali-
tária” das obras, cuja clivagem encontra nos A eficácia poética da mensagem é cons-
discretos e nos vulgares5, categorias ideais tituída justamente pelo recurso a figuras,
do público, seus destinatários extremados, e, como a metáfora, em que se verifica a capa-
também, ao objetivá-los, o conspícuo da de- cidade do intelecto de estabelecer relações
sigualdade das capacidades interpretativas. analógicas entre conceitos por meio de pre-
No poema de Manuel Botelho de Oliveira, dicados imprevistos até então, o que redunda
composto em oitava rima, o panegírico na maravilha metafórica e na “novidade” da
emula a épica, e o poema principia pelo elocução. Essa capacidade de estabelecer
vocativo “Aquiles Lusitano”, o que reforça analogias entre conceitos aparentemente
a analogia entre a vita e a heroicidade – distantes, tanto do ponto de vista do faber
constituída sub specie poetica, por meio de quanto daquele de seu auditório, institui a
5 À ideia seiscentista de re­
uma comparação, procedimento próprio da clivagem entre discretos e vulgares, como cepção “vulgar” poder-se-ia
amplificação epidítica: o afirma João Adolfo Hansen (2006, p. 85): correlacionar a ideia con-
temporânea de espectador
naïf,assim definida por Pierre
“Agora, Aquilles Lusitano, agora, “Acreditava-se então que o espírito cai, lite- Bourdieu:“[…] como acon-
Se tanto concedeis se aspiro a tanto, ralmente, quando é posto em contato direto
tece com o pintor chamado
‘naïf’ que, estando fora do
Deponde hum pouco a lança vencedora, com a chateza da verdade nua, louvando-se campo e de suas tradições
Inclinay vossa fronte ao rude canto: as agudezas como dicção e ação próprias de específicas,permanece exte-
rior à história própria da arte
Se minha vea vossa fama adora, discretos, opostos a vulgares, convencional- considerada, assim também
Corta em Mavorcio, corra em sabio mente rústicos e sem engenho”. o acesso do espectador‘naïf’
a uma percepção específica
[espãto, de obras de arte sem sentido
Chea de gloria, de Hipocrene chea, O acúmulo de tropos e figuras, na elocu- só pode ocorrer por refe-
rência à história específica
No Mundo a fama no discurso a vea” ção, é balizado pela consuetudo própria do de uma tradição artística”
(Oliveira, 1705, p. 91). gênero literário em que a escrita se realiza, (Bourdieu, 2008, p. 11).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011 191


para além de se observar que a consuetudo, o recurso à vetustas diz respeito não apenas
no panegírico poético português do século à seleção de vocábulos (verba singula), mas
XVII, normalmente vincula a auctoritas também à sintaxe latinizante pelo uso recor-
de uma tradição elocutiva exornativa, rente da anástrofe, do hipérbato e da sínquise
mas também épica, que toma modelos de (verba conjuncta). O ornatus acumulado
realização como Camões e Corte Real, produz a clivagem no grupo dos leitores ou
como visto acima em Manuel Botelho de ouvintes, já que “a garantia pragmática da
Oliveira, ao emprego recorrente da vetustas, compreensibilidade da intenção concreta
que faz abundar nos poemas os latinismos do discurso” (Lausberg, 1993, p. 119), ou
e grecismos, ressaltando-se assim o valor perspicuitas, só pode ser assegurada caso
da matéria ao torná-la análoga, pelo recurso pensemos em um auditório aristocrático,
da elocução, àquela que se encontra em que considere como virtus elocutionis o
poemas mais antigos que tratam de feitos fechamento semântico do discurso, uma
e do louvor dos optimates. Para reforçar o sua certa obscuritas, destinada aos litterati
sabor “antigo” do panegírico, normalmente e/ou aos membros de cortes.

bibliografia

AD HERENNIUM. Cambridge, Harvard University Press, Loeb Classical Library, 1989.


ALCAÇAR, Bartholomeo. DAS ESPECIES/INVENÇAM, E DISPOSIÇAM/DAS ORAÇOENS,/QUE PERTEN-
CEM AO GENERO/EXORNATIVO. Lisboa, Manoel Coelho Amado, 1750.
ARISTÓTELES. Rhetorica ad Alexandrum. Cambridge, Harvard University Press, 1983.
________. Poética. Tradução, prefácio, introdução, comentário e apêndices de Eudoro de Sousa.
Lisboa, Instituto Nacional/Casa da Moeda, 1986.
________. Art of Rhetoric. Cambridge, Harvard University Press, 1994.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Crítica Social do Julgamento. São Paulo, Edusp/Zouk, 2008.
CICERO. De Oratore. With an English Translation by E. W. Sutton and H. Rackham. Cambridge, Har-
vard University Press, 1958.
COSTA LIMA, L. “La Función Social de la Historia: Como Pensarla?”, in Historia y Grafía, 21, 2003, pp.
19-53.
DE CERTEAU, M. A Escrita da História. São Paulo, Forense Universitária, 2002.
GENETTE, Gérard. “Vraisemblance et Motivation”, in Figures II. Paris, Seuil, 1969, pp. 71-99.
HANSEN, João Adolfo. “Agudezas Seiscentistas”, in Floema. Especial João Adolfo Hansen, 2A. Vitória
da Conquista, 2006, pp. 85-109.
KENNEDY, George A. Classical Rhetoric and its Christian and Secular Tradition from Ancient to Modern
Times. Chapel Hill, The University of North Carolina Press, 1987.
LAUSBERG, H. Elementos de Retórica Literária. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1993.
MESNARDIÈRE, Jules de. La Poétique. Paris, Antoine de Sommaville, 1639.
OLIVEIRA, Manuel Botelho de. Música do Parnasso. Lisboa, Miguel Manescal, 1705.
PANOFSKY, Erwin. “A História da Arte como uma Disciplina Humanística”, in Significado nas Artes
Visuais. 2a ed. São Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 19-46.
RAPIN, R. Du Grande ou du Sublime dans les Moeurs ou et dans les Différentes Conditions des Hommes:
avec Quelques Observations sur l’Éloquence des Bienséances. Paris, S. Mabre-Cramoisy, 1686.
RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas, Editora da Unicamp, 2007.
The Institutio Oratoria of Quintilian with an English Translation by H. E. Butler. Cambridge,
Harvard University Press, 1959, IV vols.

192 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 183-192, dezembro/fevereiro 2010-2011


Frans Leonard Schalkwijk

Traição. Um Jesuíta
a Serviço do Brasil
Holandês Processado
pela Inquisição, de
Ronaldo Vainfas, São
Paulo, Companhia
das Letras, 2008,
384 p.

FRANS LEONARD
SCHALKWIJK
é professor
aposentado na
Holanda, doutor em
Teologia e autor de,
entre outros, Igreja
e Estado no Brasil
Holandês (Cultura
Cristã).

Ronaldo Vainfas, professor titular do De-

partamento de História da Universidade

Federal Fluninense, é grande conhecedor

dos documentos da Inquisição Portugue-

sa. Num estilo muito agradável, o autor nos fornece

uma biografia de Manoel de Moraes. Baseada mormente

nos documentos nos arquivos da Inquisição na Torre do

Tombo, desenrola em quarenta capítulos breves a vida


desse jesuíta que, na época do Brasil holandês, traiu a

causa portuguesa católica, aderindo ao lado protestante

holandês o qual, depois de usufruir de vários benefí-


cios, abandonou novamente, e acabou caindo na teia

da Inquisição lusa. Assim, o livro se abre em Lisboa no

final do ano 1645 com Manoel na “Casa negra do Ros-

sio”, sede daquele tribunal. O ex-jesuíta, expulso da sua

ordem em 1636, e queimado in efigie em 1642, agora,

com cinquenta anos de idade, era obrigado a encarar os

inquisidores de perto.

Manoel de Moraes, homem alto, magro, escuro,

cabelos negros, era mameluco de São Paulo de Pirati-

ninga (capítulo 2). Nascido (1596?) como primogênito

do segundo casamento de Francisco Velho e de Ana de


Moraes, ele se criou naquela vila bandeirante onde o tupi

era quase a “língua geral”. O menino brincava e caçava

nas florestas, dormia em rede na sua tapera rústica, comia

formiga torrada e outras “iguarias de bugre”. Batizado

por um jesuíta e apadrinhado por um carmelita, Manoel

buscava também a companhia dos religiosos. Estudava

no externato dos inacianos, inimigos dos apresadores

dos índios. Acompahava as muitas festas consagradas à

Virgem Maria e a outros santos. Ingressou na Companhia

por volta dos quinze anos e foi enviado para o Colégio

da Bahia, vivendo às custas dos jesuítas e fazendo os

Exercícios Espirituais de Loyola (capítulo 3). Foi um

“autêntico processo civilizador à moda ocidental”. Apri-

morava seu latim e estudava filosofia e teologia moral,

mas não obteve grau de “licenciado” porque o Colégio não

possuía status universitário. Por volta de 1623 se tornou

jesuíta “professo de três votos” (pobreza, obediência e

castidade), podendo dizer missas e ouvir confissões. Não

fez ainda o quarto voto de obediência absoluta ao papa

mas, sem dúvida, queria ser um verdadeiro “soldado de

Cristo”, inclusive no combate à Reforma protestante.


Reconhecendo suas qualidades missionárias, inclusive
seu conhecimento da língua e dos costumes holandês (capítulo 12). No sul, o desertor
indígenas, o provincial da Companhia lhe Manoel foi lembrado como traidor da pátria
confiou o posto de superior de um aldeamen- e o “maior apóstata e herege da Igreja de
to indígena em Pernambuco (capítulo 4). A Deus” (capítulos 13 e 14).
aldeia São Miguel de Muçuí (sete léguas A partir dali, Manoel estava a serviço da
ao norte de Olinda) era composta de duas Companhia das Índias Ocidentais (a WIC) e
nações, tabajaras e potiguaras, os últimos de seu diretor Johannes de Laet, chegando
sob ordem de Felipe Camarão. à Holanda em junho de 1635. Manoel lhes
Sete anos depois, os holandeses invadi- deu muitas informações valiosas, inclusive
ram o Nordeste (1630, capítulo 5), e Ma- um plano para o governo dos índios, decerto
noel atendeu ao chamado do governador e esperando servir como chefe dos “brasilia-
apresentou-se com seu lugar-tenente Felipe nos” (como os holandeses chamavam os
Camarão e com 400 guerreiros armados de índígenas), o que não aconteceu. Manoel
arco e flecha, tornando-se um verdadeiro deve ter ficado desapontado e, por cima,
“capitão do gentio” (capítulo 6). Porém, ficou doente durante o frio inverno em
havia divisão entre os índios pois nem todos Amsterdã. Por sugestão médica foi trans-
optaram pelo lado luso depois de serem ferido para o pequeno porto de Harderwijk
maltratados durante um século (Pedro Poty, na província de Gélria. Ali se casou com
capítulo 7). O padre-capitão, por outro lado, Margarida van Dehait, com quem teve um
lutou bravamente contra os invasores mas, filho. Mas ela faleceu cedo e o filho ficou sob
infelizmente, tornou-se soberbo (capítulo os cuidados do avô materno (capítulo 15).
8). Orgulho antecede a queda. É que, no final Em Harderwijk, Manoel preparou um glos-
de 1634, a Paraíba foi tomada pelos holan- sário de 153 vocábulos tupi-latim, incluí­do
deses e, por causa das condições honrosas depois no último volume (por De Laet) da
da rendição, muitos, inclusive Manoel com História Naturalis Brasilae publicada em
seus índios, se entregaram (capítulo 9). E o Amsterdã (1648). Também elaborou um
padre até colaborou bem com o invasor ao texto que ficou conhecido como Historia
fornecer informações detalhadas sobre as Brasiliensis circulando somente em cópias
aldeias, ainda fazendo com que várias delas manuscritas (capítulo 17).
mudassem de lado. Ele mesmo foi enviado Em 1638, o viúvo se mudou para Ams-
para o Recife onde, conforme os denuncian- terdã (120 mil habitantes), compartilhando
tes, foi visto entre os holandeses com “traje pousada com vários portugueses, com
de gente militar”, de barba, sem tonsura, quem sem dúvida discutia sobre questões
metendo-se em farras soldadescas. Assistiu de religião. Em seguida foi transferido
também ao culto reformado e até tentou para Leiden onde, com apoio da WIC, se
convencer outros a se tornar protestantes. inscreveu na universidade, que lhe concedeu
Diante de tudo isso, o provincial jesuíta o grau de licenciado em Teologia (capítulo
expulsou-o da Companhia (1636). Mas nem 16). Foi também em Leiden que se casou
os holandeses confiavam completamente novamente com Adriana Smetz (duas filhas;
no jesuíta renegado, e Manoel foi manda- capítulo 18), entrosando-se cada vez mais
do para Amsterdã ainda em abril de 1635 no mundo calvinista (capítulo 19). Entre-
(capítulo 10). Se tivesse ficado no Brasil, tanto, nesse mesmo tempo, Manoel ia às
poderia ter alcançado o mesmo fim como o vezes para uma capela católica secreta em
traidor Calabar, que, depois de cair em mãos Amsterdã, a “igreja do Cordeiro Branco”.
portuguesas, foi garroteado e esquartejado Era uma situação paradoxal: calvinista pú-
(1635, capítulo 11). Havia aliás muitos blico, mas de fato criptocatólico (capítulo
“desertores e colaboradores”, como o futuro 20). E ainda travava ali discussões com
líder da revolta João Fernandes Vieira, que judeus portugueses, refugiados naquela
enriqueceu, ou como Frei Manoel Calado cidade (capítulo 21). Assim, do Brasil e
que procurava se tornar vigário-geral (ou da Holanda, várias denúncias chegaram
quiçá bispo) de Pernambuco sob domínio à mesa da inquisição portuguesa, de sorte

196 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 194-198, dezembro/fevereiro 2010-2011


que Manoel foi processado e queimado Depois da partida de João Maurício de
em estátua (boneco de palha e estopa com Nassau para a Holanda, a “paz nassoviana”
seu nome) na fogueira num auto de fé em estava terminando e a “guerra da liberdade
Lisboa (6/4/1642, capítulo 22)! divina” estorou em junho de 1645. Seu líder
Quando da Restauração da independên- João Fernandes Vieira mandou prender
cia de Portugal, Manoel apoiou-a publican- Manoel e outros de quem suspeitava de
do (no meio da “guerra dos panfletos”) seu simpatias pelos holandeses. Mas, de joelhos
próprio opúsculo sebastianista-joanista em e em lágrimas, Manoel pediu perdão prome-
defesa dela (Prognóstico, Leiden, 1641), tendo não sair da tropa. Vieira lhe perdoou,
apresentando-se na capa como lusitano inclusive a dívida com a WIC, e o nomeou
teólogo (capítulo 23). Também visitou capelão da tropa. Manoel, tendo cortado
várias vezes, em Haia, os embaixadores a barba e refeito a tonsura, se comportou
portugueses procurando apoio real a fim de com muita valentia na vitoriosa batalha
passar ileso para o lado luso, mas decerto de Tabocas (agosto de 1645, capítulo 30).
se percebeu o conflito que Manoel vivia, Agora, apesar do risco, Manoel pensava em
“dilacerado por dramas de consciência” apresentar-se à Inquisição para fazer as pa-
continuando seu jogo duplo (capítulo 24). zes completas com a igreja. Preparando-se
Procurou inclusive o perdão da traição he- para a viagem, foi preso e enviado à pátria,
rética: havia um encontro misterioso com porém, durante a travessia, livre nos seus
um “núncio papal” que, após confissão do movimentos (capítulo 31).
réu, teria passado uma certidão absolvitória, Depois da chegada a Lisboa (fevereiro
que depois teria sido roubada (capítulo 25). de 1646), foi encarcerado. A Inquisição sem-
Tudo indicava que Manoel queria voltar pre pedia a “cooperação” e assim Manoel
para sua origem. E, de fato, conseguiu um denunciou umas 22 pessoas (capítulo 32).
contrato com bom crédito da WIC para Durante os meses que seguiram, ele tentou
corte de pau-brasil e, abandonando esposa provar sua inocência, insistindo que sempre
e filhos, voltou ao Brasil holandês onde foi bom católico (capítulo 33). Mas seus
reinava ainda a “paz nassoviana” (1643, documentos abonatórios não convenceram
capítulo 26). os inquisidores (capítulo 34). Apesar disso
Em Pernambuco, Manoel se instalou ganhou dois advogados de defesa, que
em Aratangi. Adquiriu quatorze escravos ajudaram a organizar suas “contraditas”
angolanos (entre os quais cinco casais), (capítulo 35). Não ajudou muito, pois foi
quatro carros e bois (marcando-os com levado à sala de tortura, onde ia ser içado
“L”, licenciado), e começou o corte do pelos braços e despencado. Manoel viu o
pau-brasil, vendendo-o a judeus no Recife que ia sofrer e confessou. Mas não tudo.
e não à WIC, conforme o contrato (capítulo Somente sobre alguns anos (1637-41), re-
27). Uma vez encaminhado, Nhô Manuel lacionando seu contato com o calvinismo
deixou tudo na mão da feitora, a sua escrava no primeiro casamento. Ficaram satisfeitos
amante, Sinhá Beatriz, com carta de alforria (setembro de 1647, capítulo 36). Não foi
para depois da morte do seu senhor (capí- condenado à fogueira, mas a sair em auto
tulo 28). Como no Brasil holandês havia de fé e ao cárcere e hábito penitencial per-
muita tolerância religiosa, não foi difícil pétuos (cinco anos; sambenito com insígnias
para Manoel retornar às suas raízes. Levou de fogo), e à confiscação de bens. Não foi
seus escravos para doutrina e batismo numa condenado às galés, porque de fato não tinha
capela católica (embora uns já tivessem se casado “no rito tridentino”. Foi somente
recebido o batismo na igreja reformada). condenado o herege, não mencionando o
E ele mesmo ia para missa andando duas traidor. O auto de fé ocorreu com setenta
léguas a pé sempre com rosário no pescoço. penetenciados (15/12/1647), entre outros,
Seu regresso ao catolicismo era claro, até Isaac de Castro, queimado vivo aos 21 anos
assunto de conversa na reunião do sínodo de idade, causando protesto internacional
reformado de 1644 (capítulo 29). pois era súdito de Orange (capítulo 37).

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 194-198, dezembro/fevereiro 2010-2011 197


Em janeiro de 1648 pôde sair do cár- (p. 161). Da mesma forma não menciona
cere, sem hábito, e devolveram-lhe seus que a repressão de católicos na Holanda,
papéis (depois de se fazer cópias “para mormente jesuítas, era também porque facil-
sorte de futuros historiadores”). Agora, mente funcionavam como “quinta coluna”
Manoel era quase mendigo, doente, pas- compactuando com a Ibéria, como era o
sado de cinquenta anos (capítulo 38). Mas caso no Brasil holandês (p. 167).
ainda “valentão”, escrevendo um panfleto O autor emprega o vocábulo “calvinista”
(Resposta aos Holandeses) contra a ideia frequentemente, mas ele era pouco usado
de entregar Pernambuco à Holanda para por esses cristãos, que não se consideravam
alcançar a paz. Antônio Vieira retrucou, pertencentes a uma “seita calvinista” (como
em seu Papel Forte (capítulo 39). Não se Manoel tinha aprendido na Bahia), mas à
sabe para onde Manoel foi em seguida, mas “Igreja Cristã Reformada”. Falando sobre as
provavelmente faleceu em Lisboa não muito diferenças entre esses reformados (armianos
depois (1651?, capítulo 40). e gomaristas), o autor afirma que Gomarus
era “defensor da subordinação da Igreja
ao Estado” (p. 160); entretanto, essa era a
posição erastiana dos remonstrantes. Diz
O livro se lê como roman­ce ainda que Manoel “sabia que o calvinismo
histórico e, numa compo- reconhecia a Santíssima Trindade, apesar
sição dessa natureza, sem- de pregar que tudo dependia unicamente de
pre é preciso certa ima­- Deus” (p. 162), não ficando claro o uso do
ginação; entretanto, onde esses recheios “apesar”. E quem conhece Calvino sabe que
conjeturais ocorrem por se calarem as não “havia posto a Virgem abaixo” (p. 178),
fontes, sempre são bem contextualizados mas falava sobre suas imagens voluptuosas
e muito convincentes. De fato, Traição é daquela época (Inst. 1.11.7).
um estudo histórico equilibrado que pro- Finalmente, quanto ao registro de Ma-
cura – e creio com êxito – estabelecer uma noel no Album Studiosorum da Universi-
cronologia correta no meio de muitas infor- dade de Leiden, entendo a argumentação
mações confusas, até contraditórias de fatos do autor (p. 355, n. 4). Mas no Album a
e boatos, às vezes espalhados pelo próprio informação (21/7/1640: Emmanuel de
Manoel. Vainfas contextualiza o trajetório Moraes Lusitanus Licentiatus Theologiae.
acidentado de Manoel de uma maneira in- Ann 41) aparece no meio de outros inscritos
teressante, inclusive com informações sobre em vários cursos, como seu próprio filho
população, trânsito, salários, etc. (Franciscus Emanuel de Moraez), inscrito
Há pequenos enganos no texto, como no curso de filosofia no dia 20/5/1658 (p.
sobre Vossius, na verdade não “Voetius” 333). Constam os nomes de vários estu-
(p. 135). E parece que não ficou resolvida dantes, inscritos na teologia, que depois
a localização da aldeia de São Miguel de serviriam como pastores no Brasil. Assim,
Muçuí pois, pela descrição, pode estar ao em 1602, Ioannes Baers, de 21 anos, em
norte de Olinda ou bem mais para o sul 1638, Johannes Offeringa, de 22 anos, etc.
(Alagoas, pp. 39 e 223). Salvo engano, a lista parece ser, de fato, uma
A biografia está muito bem inserida no inscrição studiosorum, não promotorum. E,
contexto histórico, mormente da cultura agora, conhecendo melhor o Manoel, será
“material” e religiosa católica romana. Por que ele, com ou sem base formal, nunca
outro lado, em alguns casos, por omissão dos (entre o colégio da Bahia e a universidade
motivos atrás de uma ação, o leitor talvez de Leiden) teria usado o título de “licencia-
não entenda bem o contexto protestante do”, como informa Serafim Leite, falando
holandês. Assim, durante as desavenças decerto sobre o tempo antes da sua expulsão
arminianas, Oldenbarnevelt não foi decapi- da ordem SJ (1636, p. 25)?
tado por motivos religiosos como sugerido Decerto, o livro é a biografia definitiva
pelo texto mas, sim, por motivos políticos sobre esse senhor “camaleônico” (p. 80).

198 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 194-198, dezembro/fevereiro 2010-2011


tamis PARRON

O Altar & o Trono:


Dinâmica do Poder
em O Alienista,
de Ivan Teixeira,
São Paulo, Ateliê
Editorial, 2010, 432 p.

TAMIS PARRON
é mestre em História
Social pela FFLCH-
USP e organizador
de Cartas a Favor da
Escravidão (Hedra).
rário específico – O Uraguai, de Basílio
da Gama – com as práticas e os discursos
culturais do reinado de D. José I (1750-77).
uma crônica de 10 de Por trás da coerência metodológica, um fio
janeiro de 1884, Ma- temático ainda une Mecenato Pombalino e
chado de Assis contou a O Altar & o Trono, e eis que é o conflito
história de um camarista entre o Estado e a Igreja na longa duração
de D. João VI, o conde que marcou a passagem do Antigo Regime
de Parati, punido com para o mundo contemporâneo. Quem já
o uso de um hábito da conhece o primeiro estudo de Teixeira não
igreja católica por ser deixará de notar sua escolha por textos que
maçônico, e comentou: “De certo modo, preconizam a autonomia do Estado em face
foi uma antecipação do conflito que mais da igreja romana ou de suas instituições,
tarde levou dois bispos aos tribunais, com a como o fariam o poema épico de Gama e
diferença que aquilo que o Conde de Parati a novela de Machado. Mas não se trata de
só pôde fazer obrigado foi justamente o preferências. O Altar & o Trono parece,
que a maçonaria queria fazer por vontade antes, o ponto de chegada de uma trajetória
própria: – andar de hábito. Não penso nisto intelectual coerente, fundada em métodos
que me não lembre do nome que em geral e temas bem delimitados.
teve esse famoso conflito […]. Lembra-se
o leitor? Questão epíscopo-maçônica”1.
O trecho, que indicia a presença viva da
Questão Religiosa, ocorrida dez anos antes, POÉTICA CULTURAL E OS EIXOS
no espaço público do Segundo Reinado
nos anos 1880, reforça o argumento geral NARRATIVOS DE O ALIENISTA
de O Altar & o Trono, de Ivan Teixeira,
o mais recente estudo sobre O Alienista Segundo Ivan Teixeira, a narrativa sobre
(1881-82). Até agora, a narrativa vinha as experiências de Simão Bacamarte na
sendo entendida como encenação de uma pequena Itaguaí seria a encenação alegórica
crítica impiedosa à ciência quando dotada de uma disputa pelo poder, na qual estariam
do poder absoluto de conceituar as patolo- envolvidos o Estado e a Igreja, como dito
gias e realizar sua terapêutica. De hoje em acima, mas também a ciência e o binômio
diante, é provável que não seja lida senão política-povo. Em sua perspectiva teórica,
como alegoria da disputa mais ampla pelo sintetizada no primeiro capítulo do livro
poder, sobretudo entre o Estado e a Igreja, (“Teatro do Mundo & Pressupostos da
durante o processo de formação de uma Encenação”), tais categorias não devem
cidade. Uma alegoria motivada justamente ser apreendidas como absolutas nem trans-
pela Questão Religiosa. -históricas, pois adquirem sentido apenas
Apenas comprovada, a hipótese já daria em um quadro de referências culturalmente
ao livro merecidos títulos. Mas o autor ainda definido. Por “Povo” e seu correlato “rebe-
acresceu estudos que vão muito além da lei- lião popular”, por exemplo, não se imagina
tura intrínseca de O Alienista, relacionando o estouro libertário dos oprimidos contra a
a obra com diversas questões pungentes do estrutura social que os explora – primeiro
tempo e com a revista A Estação, na qual sentido que ocorre à mente do pesquisador
a novela foi publicada pela primeira vez e atual –, mas sim o significado de “rebelião
em que Machado de Assis atuou por quase popular” no horizonte de expectativas dos
duas décadas (1879-98). Procedeu, assim, agentes discursivos da época. Dir-se-ia
a uma análise cultural que dá continuidade o mesmo para Estado, Igreja e Ciência,
1 Machado de Assis, Obra à sua outra pesquisa de fôlego, Mecenato conceitos cujo conteúdo só um esforço
Completa, Rio de Janeiro,
José Aguilar, 1962, vol. III, p.
Pombalino e Poesia Neoclássica (Edusp, de arqueologia de textos a eles correlatos
427. 1999), em que relacionara um texto lite- poderia fixar. Nesse tipo de análise, a que

200 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011


o autor vem chamando de “poética cultu- convencendo-o, habilmente, de que o ob-
ral” em ensaios publicados desde 2003, as jeto da ciência devia recair sobre o próprio
obras literárias são componentes de uma sujeito do conhecimento. Colocado nesse
estrutura discursiva mais vasta e geradora círculo de giz, Bacamarte se interna na
de sentido, que o tempo rói à medida mesma Casa Verde para um cerrado exame de si
que o cânone, para preservá-las, vincula-as mesmo, mirrando, em estudos infindáveis,
a um télos ora nacional, ora modernista, ora até a morte. Ao final, o narrador anuncia
revolucionário, quando não tudo isso ao que, possivelmente ventilado pelo padre
mesmo tempo. Daí resulta que o cânone, Lopes, correu o boato entre os moradores
por respeitável que seja, não figura senão de que nunca houvera outro louco por ali
uma galeria fantasmagórica de ruínas dis- além do próprio médico. Conquanto apareça
cursivas, cuja compreensão adequada exige pouco na novela, o prelado seria, assim,
a restauração dos monumentos de que, em crucial na construção do desenlace e na
algum ponto do passado, fizeram parte. fixação de um conceito de loucura contra
Assim, nos capítulos VI (“O Altar & o o próprio Bacamarte.
Trono”), VII (“Racionalidade & Poder”) e Sem prestar a devida atenção no papel
VIII (“Desrazão & Poder”), que compõem do religioso, a fortuna crítica de O Alienista
o núcleo do livro, Ivan Teixeira relaciona o tem incorporado essa visão condenatória do
entrecho de O Alienista com três fenôme- cientista, ignorando que é um parti pris de
nos discursivos do repertório cultural do Lopes, também enredado nas disputas pelo
Segundo Reinado que o teriam motivado: a poder na cidade. Para o autor de O Altar &
dissidência em torno da soberania entre um o Trono, a voz narrativa não apenas repele
Estado constitucional e uma Igreja romana a ação do clérigo, mas simpatiza com a
internacionalista, nos termos da Questão posição de Bacamarte, que protagoniza a
Religiosa (1872-75); a consolidação da experiência radical de conferir teor ético
medicina psiquiátrica no Brasil a partir da aos critérios de loucura originalmente psí-
criação do Hospício de Pedro Segundo; e quicos. Essa experiência, feita em nome da
a ameaça à unidade territorial do país, tal razão moral, alçaria as reclusões do cientista
como fora experimentada durante a Regên- à condição de “atitudes regeneradoras em
cia (1831-40). A fim de aquilatar o peso tempos de domínio da desrazão generaliza-
desses fenômenos no processo de criação e da” (p. 238). Coerente com suas premissas
significação do texto literário, o autor perfez teóricas, Teixeira ligou tal organização do
uma análise de poética cultural do período, enredo – em que o polo negativo passa à
recobrando a rede de textos que delineou Igreja e o positivo, à racionalidade ética – à
os sentidos das referidas questões para os Questão Religiosa, assunto que inundou a
atores históricos do Segundo Reinado. consciência dos contemporâneos e chegou a
Conforme Teixeira, o núcleo narrativo ser qualificado como um dos vetores da que-
de O Alienista, aquele que conduz as ações da do Império na historiografia factualista da
até determinar seu desfecho, seria a relação primeira metade do século XX. Nas últimas
entre Simão Bacamarte e o padre Lopes. décadas, o problema andava esquecido dos
Como se sabe, o incansável médico superou modelos explicativos dos historiadores, que
a tudo e a todos para fundar o Hospício da refinaram seus instrumentos de análise de
Casa Verde, internar os monômanos da vila processos sociais. Mas nada impedia que
de Itaguaí e alhures, ampliar os critérios outra mirada teórica – como a da poética
de loucura até confinar quatro quintos da cultural – voltasse a dar-lhe importância,
população local, enfrentar a fúria do povo no campo dos estudos literários.
e dos vereadores, inverter os critérios A Questão Religiosa derivara da bula
iniciais de insânia e, finalmente, substituir Quanta Cura e de seu anexo Syllabus de
os alienados pelos que, até então, tinham Erros (1864), que o Papa Pio IX, engolfado
gozado a liberdade. Dos opositores, apenas nos conflitos da unificação italiana, editou
o padre Lopes lograria domar o cientista, para combater o processo de secularização

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011 201


progressiva a que o liberalismo vinha sub- de levantamento e análise documental, tais
metendo a economia, a política e a vida civil. discursos – visuais e verbais – pintam o
No limite, pregou a retomada do controle Estado como o polo da razão e das Luzes,
eclesiástico sobre esferas cada vez mais re- enquanto a intervenção eclesiástica como
guladas pelo Estado. Como, na Constituição o do obscurantismo e das trevas. Em 1875,
brasileira, a validade de tais textos pendia o governo concederia anistia aos bispos,
da aprovação do Executivo, a Quanta Cura motivando novo ciclo de charges alegóricas,
e o Syllabus, por motivos óbvios, foram nas quais a Igreja ressurgia como o domínio
recusados. Sem embargo, alguns bispos os irracional do poder sobre a racionalidade do
acataram, excomungando dos quadros da mundo contemporâneo. Para Ivan Teixeira, O
Igreja membros da maçonaria, o que levou Alienista, publicado em 1881-82, seria uma
o governo a prendê-los por desobediência variante literária do discurso das caricaturas
legal. O imbróglio suscitou uma série de antirromanas publicadas na imprensa brasi-
caricaturas na imprensa da Corte, como leira. Até mesmo a reviravolta dos episódios
a Revista Ilustrada e O Mosquito, e de – a prisão dos bispos (triunfo do Estado) e
artigos de Joaquim Saldanha Marinho no sua soltura (vitória da Igreja) – teria sido
Jornal do Commercio, depois recolhidos mimetizada na reclusão de Lopes (vitória
no livro A Egreja e o Estado (1874). Como do Estado, das Luzes) e na internação de
mostrou Teixeira num formidável esforço Bacamarte (triunfo da Igreja, da ignorância).
Reprodução

Desenho de
Ângelo Agostini
publicado
na Revista
Ilustrada, 1876

202 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011


Proposta assim, essa leitura teria seus de Janeiro, sua Historia, Monumentos,
limites. Afinal, as caricaturas plasmam a Homens Notaveis, Usos e Curiosidades
Igreja nas trevas, mas o padre Lopes é en- (Moreira de Azevedo, 1878) –, o autor traça
carcerado só quando Bacamarte – crente no uma série de paralelos entre os lugares-
princípio de que a doença é a exceção e a -comuns científicos ou históricos e o enredo
sanidade, a regra – define como alienáveis ficcional, como a descrição pormenorizada
os homens de boa conduta ética, casos ra- dos loucos, a lotação do hospício logo após
ríssimos e, portanto, desviantes da norma. sua abertura, a oposição obscurantista dos
Por outro lado, Bacamarte não partilha a habitantes, a proveniência local e nacional
pureza conceitual que as caricaturas dão dos alienados, o consórcio entre ciência e
à noção de Estado, pois, suposto atinja política na direção da cidade e assim por
a glória moral na prisão dos aéticos, seu diante. Mais uma vez, o fim não é “colar”
apego desinteressado à ciência também o o texto machadiano em tais discursos, mas
leva à inconstância, ao paradoxo, à frieza ver como o primeiro reorganiza os dados
desumanizadora e ao ridículo. Acerca da do segundo. Como diz o autor, a “ironia
primeira objeção, seria sempre possível cética da razão ficcional” faz a autoridade
notar que a presumida correção moral do científica, vetor da ordem, mudar-se em
prelado comprova apenas a sutileza de sua “origem da desordem”, mostrando como
dissimulação, que embrulha o mais atilado é convencional a loucura que a ciência
observador da cidade, como o é Bacamarte. pretendia naturalizar. Afinal, à medida que
Há uma resposta, contudo, de corte mais Bacamarte altera os princípios da insanidade
teórico para desfazer em conjunto as duas e ordena a reclusão involuntária dos alie-
ressalvas. Graças à mistura dos polos con- náveis, a fonte das atitudes regeneradoras
ceituais que a imprensa da Corte apartava torna-se, ela mesma, degenerada.
de modo maniqueísta (noção de Estado Na disputa pela direção da cidade, o
perfeito vs. noção de Igreja degenerada), último elemento de O Alienista seria o
O Alienista não se permite enquadrar como conceito de levante popular, protagonizado
alegoria integral de outros discursos sociais. pela rebelião dos canjicas. Para restaurar o
Segundo a análise de Ivan Teixeira, sua seu significado cultural, Teixeira analisou a
dimensão alegórica resulta parcial porque, Memória Histórica da Revolução da Pro-
na ficção, operam as lentes deformadoras víncia do Maranhão desde 1838 até 1840
da sátira menipeia – lentes que distorcem, (Gonçalves de Magalhães, 1848), donde
mas não cegam as proposições morais da extraiu a noção de inconsistência moral
novela. É uma colocação oposta à tradição e doutrinária das rebeliões, em oposição
crítica segundo a qual a sátira machadiana a um centro puro do poder, o imperador.
faz terra devastada das distinções morais. Em abono de sua própria hipótese, o autor
O segundo móvel da dinâmica de O poderia ter analisado o panfleto Ação,
Alienista seria o conceito de loucura, ponto Reação e Transação (1855), do jornalista,
bem frequentado pelos comentadores. A professor do Colégio Pedro II e deputado
novidade que Teixeira traz ao leitor está conservador Justiniano José da Rocha, dada
na reconstituição de um discurso histórico a sua importância para as narrativas pro-
sobre o Hospício de Pedro Segundo, que duzidas entre 1870 e 1900 no Brasil, entre
teria fornecido referências culturais para elas Um Estadista do Império (Joaquim
a composição da novela. Com base nos Nabuco, 1897-99). Nesse opúsculo, Rocha
textos analisados – “Reflexões Acerca do conceitua, com ares de teoria, as revoltas
Trânsito Livre dos Doidos pelas Ruas da eclodidas no Brasil, principalmente as do
Cidade do Rio de Janeiro” (José Francisco período regencial, tachando-as de “anár-
Sigaud, 1835), “Importância e Necessidade quicas” e centrífugas, isto é, ameaçadoras
da Criação de hum Manicômio ou Estabe- da unidade nacional, salva a tempo pelo
lecimento Especial para o Tratamento dos Segundo Reinado. Tal abordagem apenas
Alienados” (De-Simoni, 1839) e O Rio reforçaria a leitura de Teixeira, segundo a

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011 203


qual a ação dos canjicas, em O Alienista, da última abordagem – constituída por
reitera o ridículo e o infame da ação dos textos de críticos como Afonso Romano
populares na historiografia. Ao contrário de Sant’Anna, Abel Barros Baptista e João
dos casos anteriores, a sátira de Machado Adolfo Hansen –, O Altar & o Trono não
e os discursos extraliterários coincidem se reduz a ela, pois sugere que o repertório
mais nesse ponto, pois, no lugar da inversão cultural do tempo contribuía para a determi-
semântica, haveria só acréscimo de humor. nação do conteúdo da ficção de Machado.
Em suma, essas três linhas narrativas Em contrapartida, o diálogo com a
– sobre a Igreja, a ciência e a política – primeira abordagem parece mais direto
parecem figurar um exercício alternado de e, por isso, pode ser mais bem desenvol-
poder sobre o destino da cidade, em que vido. Visando as práticas discursivas que
não se elege nenhuma como desejável. Pelo encerram o texto de Machado, Teixeira
contrário, O Alienista seria um discurso procedeu a um estudo amplo das páginas
satírico sobre a falência da ética – ou sobre de A Estação – Jornal Ilustrado para a
a forma como os princípios morais são Família, em que foi publicado pela primeira
reduzidos ao valor de troca na economia vez O Alienista. Nesse veículo, dedicado
do poder. Enquanto os lugares-comuns à moda parisiense, aos faits divers e ao
institucionais unem Igreja e sinceridade, entretenimento literário, o mais radical e
ciência e verdade, política e honestidade, aparentemente menos ideológico escritor
a narrativa troca os últimos termos por brasileiro do século XIX trabalhou por
hipocrisia, convencionalismo e interesse dezenove anos consecutivos – fidelidade
particular. Nas palavras de Teixeira, pare- empresarial sem correspondência em seu
ce insinuar “que coerência e poder sejam currículo. Acontece que esse ofício vinha
categorias excludentes” (p. 317). sendo entendido, desde a leitura de Lúcia
Miguel Pereira na década de 1940, como
um expediente pragmático de necessidade
financeira. Forçado a publicar ali seus
UMA TERCEIRA VIA PARA OS textos, o autor compensaria esse motivo
rasteiro com uma estética sobranceira, que
ESTUDOS MACHADIANOS desprezava seus leitores imediatos. Segundo
Ivan Teixeira, porém, sua relação com o
Como se vê, O Altar & o Trono não periódico não seria pragmática, mas sim
se entronca em nenhuma das duas linhas programática.
teórico-metodológicas que têm ditado a Lendo os números da revista na Biblio-
agenda de pesquisa da ficção machadiana – e teca Guita e José Mindlin (São Paulo), no
que podem ser chamadas de “alegórica” e Arquivo Edgar Leuenroth (Campinas) e
“estruturalista”, embora esses termos não na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro),
as traduzam com perfeição. Essas linhas se Teixeira encontrou um perfil editorial
distinguem uma da outra na medida em que avançado para os padrões da época em
dão à ficção de Machado estatutos mutu- questões como papel social da mulher,
amente excludentes, definindo-a ou como escravidão negra, consumo, linguagem,
“caixa de ressonância” ou como “máquina práticas de higiene conforme a ciência,
retórica”. No primeiro caso, a força da prosa etc. Daí o autor identificou dois tipos de
machadiana derivaria de sua capacidade de relação de O Alienista com o periódico,
reapresentar, na organização do entrecho e um temático e direto, outro funcional e
no estilo da frase, a dinâmica de um quadro indireto. Por um lado, alguns daqueles
social superior; no segundo, de sua habilida- valores ocorreriam em tom normativo no
de para esvaziar discursos extraliterários e corpo da novela, como a prevenção contra
criar indeterminações corrosivas de sentido, o luxo excessivo ou contra a linguagem
cuja fixação dependeria do ato autônomo e hiperbólica, identificáveis no consumis-
extrínseco da leitura. Embora não discorde mo vaidoso de D. Evarista, esposa de

204 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011


Bacamarte, e na retórica seiscentista de Também é possível notar um diálogo
Martim Brito, orador de ocasião. Por ou- de Teixeira com Roberto Schwarz, ainda
tro, o estudioso teve o cuidado de pontuar que não esteja explicitado em O Altar &
que, se A Estação pode ser “interpretada o Trono. Como é sabido, Schwarz vem
como vitória de um conjunto conhecido propondo, há décadas, uma leitura de
de valores, O Alienista propõe uma alter- Machado que desenvolve o método da
nativa sarcástica contra a rigidez dessas “redução estrutural”, formalizado por An-
mesmas certezas” (p. 65), tal como se tonio Candido num conhecido estudo das
nota na exploração da incompatibilidade Memórias de um Sargento de Milícias. Esse
entre coerência e poder. Por radical que método, que supõe uma relação dialética
fosse, uma advertência moral dessa natu- entre expressão artística e processo social,
reza também cumpria a função editorial consiste em decifrar como princípios orde-
e social, partilhada por outros textos do nadores do mundo social são transpostos
periódico, de ilustrar e instruir o público, para o plano formal da obra literária. Em-
que a aceitava sem julgá-la hostil. Poder- bora unisse história e literatura, Candido
-se-ia dizer que, se para alguns críticos, jamais formulara um modelo explicativo
as leitoras de A Estação não entenderam daquela dinâmica histórica que sofreria a
Machado de Assis, O Altar & o Trono “transposição estética” – no limite, o autor
mostra que os mesmos críticos não en- identificava as linhas do enredo ficcional
tenderam as leitoras de A Estação. e as projetava para uma suposta dinâmica
Teixeira formulou ainda a hipótese, ali- social. Diante do desajuste, Schwarz tentou
ás bem fundamentada, de que o periódico calibrar os termos da equação adotando um
influiu na evolução da imagem artística de método sistemático de leitura da história do
Machado. Em textos anônimos, mas talvez Brasil – o proposto pelo Grupo do Capital,
do próprio punho do escritor, o veículo o núcleo original da informalmente chamada
ergueu aos poucos à condição de maior “Escola Sociológica de São Paulo”. Assim,
prosador brasileiro da época. No início da afiançava com segurança o intercurso entre
parceria, em 1880, um artigo lhe deu “um o social e o ficcional. Enquanto esse modelo
lugar bem alto, o imediato a Alencar” (p. de história vigorou (c. 1970 a c. 2000), a lei-
118); em 1884, outro já o colocava em pé de tura de Schwarz se impôs como verossímil.
igualdade com o criador de Iracema (p. 128). Basicamente, as premissas desse modelo
Dois anos depois, seu amigo Arthur Azevedo, de leitura da história diziam que havia uma
também colaborador do órgão, o içou ao divisão internacional do trabalho; que essa
posto de “figura mais saliente da literatura divisão separava o centro do capitalismo con-
brasileira contemporânea” (p. 130). Quando, temporâneo e as periferias, entre elas o Brasil;
em 1888, Machado recebeu a comenda da que o centro era o mundo do liberalismo, en-
“Ordem da Rosa”, o editor de A Estação, quanto a periferia brasileira, o da escravidão
Henrique Lombaerts, coroou a jornada negra; e que, por fim, tais mundos, embora
rumo à glória invertendo a hierarquia entre se influenciassem reciprocamente, eram
patrono e protegido, sem deixar de lado a incompatíveis do ponto de vista material,
autopropaganda, é claro: “Congratulamo-nos simbólico e ideológico. Por causa da incom-
com o Governo Imperial por esse ato, que o patibilidade entre liberalismo e escravidão,
honra ainda mais do que ao fino inexcedível as instituições e as ideias desenvolvidas na
prosador e poeta, cujo nome há tanto tempo Europa, quando adotadas no meio brasileiro,
enobrece o suplemento literário da Estação” resultavam postiças, mal-ajustadas ou, para
(p. 131). Nessa escalada, o brilhante destino usar a expressão célebre, “fora do lugar”.
histórico do nome Machado de Assis não A ficção de Machado seria eficaz porque,
pode ser apartado de seu ponto de partida, incorporando essa tensão estrutural no plano
por mais terra a terra que, à primeira vista, do enredo (Capitu encarnaria o Iluminismo,
sejam uma revista de moda e um punhado por exemplo) e do estilo (a “volubilidade”
de leitoras da Corte. dos narradores), acabava por torná-la visível

REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011 205


e ridícula ao juízo imperdoável da sátira. A de um novo tipo de modernidade no Brasil
leitura de Schwarz abalou-se, porém, quan- (essa, sim, entendida como um liberalismo
do ruiu o modelo interpretativo da história antiescravista), dividindo-se em dualidades
que lhe dava suporte, e a incompatibilidade facilmente baralháveis – monarquismo
entre liberalismo e escravidão passou a ser vs. republicanismo, cativeiro vs. abolição,
entendida não como intrínseca à história, latifúndio vs. democracia rural, voto cen-
mas como resultado de uma reformulação sitário vs. voto universal, catolicismo vs.
do conceito de liberalismo no final do século positivismo, centralização vs. federação,
XIX. Tornou-se, então, evidente a todos que Estado laico vs. Estado religioso, etc. Todos
o estudioso inserira no processo histórico eles – dos monarquistas aos republicanos –
brasileiro e no texto machadiano ideias contribuíram de certo modo para a derrocada
anacrônicas, formuladas por pesquisadores do Segundo Reinado, pois suas propostas
do século XX. A questão não seria se o minaram os compromissos históricos trava-
liberalismo estava “fora do lugar”, mas se dos entre o Estado e a sociedade brasileira na
sua noção de liberalismo não estava “fora primeira metade do século XIX. Como disse
do tempo”. um desolado Nabuco em Minha Formação
Como alternativa a essa agenda de pes- (1900), as “antigas gerações […] criaram
quisa, um estudo como O Altar & o Trono e fundaram o regime liberal que a nossa
recoloca o texto de Machado de Assis em deixou destruir…”2.
contato direto com outros discursos con- Visto em perspectiva ampla, O Alie-
temporâneos, afastando-o das correntes nista seria, portanto, apenas um entre os
intelectuais do século XX que tornaram vários textos compostos naquela quadra
incaracterístico seu conteúdo próprio. Mais que tornou a transformação do presente
do que isso, contribui também para loca- incontornável justamente porque era fac-
lizar Machado em um determinado lugar tível. Poucas vezes na história brasileira as
social do discurso que, longe de torná-lo à bandeiras políticas sacudiram tão próximas
frente de seu tempo, o integra num grupo do horizonte da utopia. Imantado pela
de letrados e políticos atuantes desde 1860 Questão Religiosa, O Alienista não era só
até o início da Primeira República. Nas uma advertência contra o ultramontanismo;
palavras de Teixeira, “O Alienista poderá alertava contra os abusos intrínsecos à
também ser entendido como intervenção de prática do poder, independentemente da
apoio à renovação institucional do país” em verdade que entusiasmava os agentes his-
favor “de princípios que facultariam ao país tóricos envolvidos na construção do porvir.
uma ordenação jurídica, social e econômica Longe de ser relativista ou indiferente, o
identificada com o que então se entendia por texto, portador de uma energia política
moderno e renovador” (pp. 226 e 235). De ainda desconhecida dos estudiosos, parece
fato, a Questão Religiosa, por exemplo, seria antes um corretivo ao entusiasmo. Nesse
fenômeno de uma grande crise que abalou o sentido, a expressão “dinâmica do poder”,
Império do Brasil desde os anos 1860. Por presente no subtítulo de O Altar & o Tro-
causa de uma série complexa de eventos, no em referência a O Alienista, pode ser
cujos efeitos no Brasil ainda precisam ser coextensiva às disputas mais amplas que
mais bem entendidos, como a Primavera marcaram o ocaso do Segundo Reinado e
dos Povos (1848), a subsequente reforma que devem ter motivado outras importantes
dos regimes representativos (de 1850 em obras de Machado. O que Ivan Teixeira
diante), a Guerra de Secessão nos EUA afirmou sobre a narrativa – “[…] é possível
(1861-65) e a Guerra do Paraguai (1864- imaginar que O Alienista talvez seja o texto
71), o governo imperial iniciou reformas mais densamente político de Machado de
que iam desde a escravidão negra até as Assis” (p. 24) – está correto por ora. Mas
eleições e a natureza do Poder Executivo. é uma verdade que pesquisas futuras, se
2 Joaquim Nabuco, Minha
Formação, Rio de Janeiro, H.
Assim, os letrados da última geração investirem em métodos semelhantes ao
Garnier, 1900, p. 301. imperial discutiram a fundo a construção seu, podem tornar superada.

206 REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 199-206, dezembro/fevereiro 2010-2011

Você também pode gostar