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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Artes e Comunicação Social


Departamento de Estudos Culturais e Mídia
Graduação em Estudos de Mídia
Disciplina: Antropologia da Comunicação Móvel
Professora: Carla Barros
Estudantes: Matheus Alonso e Matheus de Carvalho

A partir das leituras da disciplina e debates em sala, discorra sobre questões que
você tenha achado importantes na área de estudos de antropologia da comunicação
móvel (na resposta, utilizar outros textos além do escolhido para realização do seu
seminário). Entre essas questões, uma deve tratar da importância da etnografia
dentro dessa área de pesquisa.

Um ponto interessante a se observar no que diz respeito à antropologia da


comunicação móvel é a relação entre o que costumamos chamar de relações sociais on-
line e relações sociais off-line. No senso comum, é normal que façamos diferenciações
estanques entre estas formas de interação, mas os estudos da área nos permitem ver como
isso ocorre de maneira mais complexa.
O estudo de Daniel Miller e outros autores chamado “Como o mundo mudou as
mídias sociais” (2019) ajuda a contextualizar melhor esta questão. Segundo os autores,
nos primórdios da internet, era comum tratarmos do espaço “virtual” como um mundo a
parte, que não guardava grande relação com o mundo “real” fora da rede de
computadores. Além disso, esse mundo “virtual” possibilitava a interação com estranhos
de forma anônima, o que possibilitava a construção de alteregos nas redes.
Os autores apontam que, contudo, no contexto contemporâneo, as questões que se
colocam sobre a sociabilidade na internet são totalmente diferentes. Há uma série de
tensões que envolvem o direito à privacidade, o excesso de trabalho, entre outros temas.
Dessa forma, a dicotomia online e off-line não faria mais sentido, tendo em vista a
ubiquidade da internet na vida de inúmeras pessoas, sobretudo nos grandes centros
urbanos – mas também em áreas mais afastadas deles. Um exemplo que pode nos ajudar
a entender melhor este fato é que há cerca de 15 anos atrás (2006) uma expressão
comumente utilizada por quem tinha acesso à web era “entrar na internet”. Hoje esta
expressão praticamente desapareceu do vocabulário popular pelo simples fato de que
grande parte das pessoas estão conectadas o tempo inteiro.
Portanto, os estudos antropológicos que levem em consideração como as pessoas
relacionam com as tecnologias da comunicação devem levar em conta tanto as interações
que ocorrem nos espaços físicos quanto as que ocorrem nas redes. O estudo de Miller e
Slater (2004) sobre os cybercafés em Trinidad é inovador nesse sentido pois, a partir do
trabalho de campo etnográfico, os autores perceberam como as diferentes esferas online
e off-line se misturavam e se articulavam a praticas comunicacionais e relações sociais
que já existiam antes da invenção de novas tecnologias.
A propósito, este é um ponto importante quando falamos das novas tecnologias
da comunicação. A tendência, ao olharmos para a importância delas para as relações
sociais, é de que achemos que elas tem um efeito direto nas relações sociais, e não o
contrário. Na perspectiva antropológica, são os seres humanos que determinam os usos
dos aparatos tecnológicos e não o oposto. Desta forma, as questões que se apresentam no
mundo on-line também guardam relação com os valores, as práticas e as formas de pensar
que se expressam também fora das redes.
Uma forma muito corriqueira de se encarar a relação entre sociedade e as novas
tecnologias de comunicação é a que afirma que os celulares, tablets, smartphones e
computadores tornaram as pessoas mais reclusas e antissociais. Contudo, como nos
lembram Marcel Mauss e Émile Durkheim, “não podemos prejulgar resultados de
observações que não forem feitas” (2000, p. 186). Nesse sentido, a etnografia (ou a
netnografia, se estivermos falando de observações de espaços on-line) tem uma valia
fundamental no que diz respeito ao entendimento que podemos ter sobre a importância
das mídias sociais nas relações humanas.
Outro ponto interessante de discussão diz respeito à relação entre as tecnologias
de comunicação e o consumo. Ao contrário do que muitas vezes é difundido no senso
comum, os estudos sobre antropologia do consumo nos ajudam a entender a relação entre
mídia e consumo de uma maneira mais ampla e não apenas como representação de uma
cultura da futilidade.
Nesse sentido, o estudo de Sandra Silva (2007) sobre o uso de aparelhos celulares
nas culturas urbanas tem grande contribuição para a desconstrução de certos preconceitos.
Nas palavras da autora, “Os consumidores, embora sempre sujeitos a determinados
padrões de consumo e convenções sociais pré-estabelecidos, têm a capacidade de
manipular os bens simbólicos dentro de regras e códigos culturais elaborados por eles
mesmos.”. (SILVA, 2007, p. 3). Nesse sentido, a posse de um celular, além de servir
como indicativo de pertencimento a um estilo de vida moderno também carrega consigo
diversos aspectos afetivos. Diversos relatos de interlocutores da autora também indicam
que é possível pensar que as novas tecnologias tem servido, na verdade para aproximar e
não para afastar as pessoas.
Outro estudo interessante para pensar a relação entre tecnologia da comunicação
e consumo é o de Tauana Jeffman (2014). Em pesquisa sobre os booktubers,
comentaristas de livros de literatura na plataforma Youtube, a autora discute como a
plataforma potencializou o consumo de livros literários, sobretudo entre jovens. Além de
apontar que o consumo naquele caso não está atrelado à mera posse de bens materiais, o
trabalho da autora também levanta questões sobre a autoridade intelectual para tratar de
certos temas, uma temática bastante pertinente e cada vez mais em voga atualmente, em
um contexto permeado pelas críticas ao elitismo acadêmico, por um lado, e pelo
negacionismo obscurantista, por outro.
Dessa forma, verificamos que antropologia da comunicação móvel não tem sido
uma apenas uma área relevante para guiar pesquisas contemporâneas. Ela também
oferece-nos um olhar diferenciado para as nossas práticas cotidianas e como elas não são
nem naturais e tampouco determinadas por um aparato tecnológico.

2 – Discorra sobre alguns aspectos do papel do celular na comunicação


contemporânea, tendo como base as leituras da disciplina e debates em sala. Na sua
resposta, utilize pelo menos dois exemplos do exercício de celular (ver em anexo)
feito pela turma, para ilustrar a resposta. (vale 3,5 pontos)

Como fora discutido e explorado durante as aulas, o celular se tornou uma


extensão de seu usuário graças ao avanço da tecnologia e da acessibilidade, que permite
com que cada vez mais, classes menos providas de acúmulo financeiro tenham
dispositivos móveis e, portanto, também participem desse fenômeno que é a presença do
celular não como uma oportunidade de criar uma nova personalidade e sim como uma
oportunidade de levar e estender sua personalidade para diversos locais com apenas
alguns toques.
Desde que o celular adentrou na vida do cidadão comum de tal maneira, se tornou
ainda mais perceptível o seu papel como veículo de comunicação quase que obrigatório,
visto que diversos elementos da “vida offline” passaram a ter construção e/ou atribuição
ao celular, em um destes tantos entrelaçamentos entre o que classificamos como virtual e
real provido de uma binaridade que hoje em dia não é mais possível cravar.
O celular passou a ser, como disse Sandra Rúbia da Silva (2007), “um artefato-
símbolo da contemporaneidade” (p. 2), e seus estudos antropológicos se tornaram mais
do que necessários por conta desse uso de tal artefato como propagador de vontades,
desejos e sentimentos. O celular tem um papel de comunicação espelhado no
comportamento da sociedade. Ele não intermedia apenas ligações, vozes ou mensagens.
Ele intermedia medo, desconfiança, afirmação de poder, entre outros sentimentos
inerentes ao ser humano.
Não à toa temos diversos produtos midiáticos que trazem o celular como
protagonista. Em algumas aulas do semestre nós pudemos tecer algumas ideias e
questionamentos através de exemplos trazidos por alguns alunos. Entre diversos
exemplos, destacamos aqueles que buscaram destacar o papel do celular dentro de um
relacionamento amoroso. Antes de citá-los, gostaria de destacar que a incidência de
produtos midiáticos (principalmente canções) relacionados à relacionamento pode ser
considerada fruto da apropriação do celular como um agente responsável pela
demonstração de sentimentos presente dentro de uma relação.
No estudo etnográfico de Sandra Rúbia da Silva (2010) realizado em um grupo
popular dentro de uma favela de Santa Catarina, pudemos observar, segundo relatos de
alguns moradores, vivências de um relacionamento amoroso em que o celular cumpriu
um papel não só de comunicação mas como também de expressão de sentimentos. Em
um determinado caso, o namorado acusou a namorada de estar traindo-o simplesmente
pelo fato de ela ter adquirido um novo celular. Já em outro caso, o marido exigia que a
esposa o ligasse todos os dias para informá-lo onde ela está, com qual motorista pegou
ônibus e quando volta pra casa, obviamente explicitando o comportamento ciumento e
possessivo do cônjuge.
Tais exemplos se tornaram recorrentes e alguns artistas ao observar tal incidência
(e possivelmente também tendo vivência) passaram a criar canções nas quais o celular
desempenha esse papel de protagonismo já citado anteriormente. É aí que entram alguns
dos exemplos: A canção “Senha do Celular” da dupla sertaneja Henrique & Diego fala
sobre uma descoberta de traição através das mensagens trocadas no celular da parceira.
O celular é tão valioso que por vezes nosso comportamento é moldado diretamente pelo
o que estamos fazendo na tela do aparelho, e neste caso, o fato da parceira não se
desprender de seu celular em momento algum gerou uma desconfiança no parceiro, que,
ao invadir a privacidade da companheira, comprova que sua desconfiança estava certa.
Já na canção “Recairei” do grupo Barões da Pisadinha, o vocalista/eu-lírico se diz
“limpo” daquela que provavelmente é sua ex-namorada, e a grande “prova” de que ele
está superando tal relacionamento é ele olhar os stories do Instagram da antiga parceira e
não sentir saudades dela, além de não curtir nenhuma de suas fotos. Contudo, ele admite
que, caso ela mande uma mensagem a ele, ele recairá.
Podemos concluir que o celular adquiriu aspectos muito sentimentais dentro do
seu papel de comunicação, o que torna ainda mais importante os estudos antropológicos
conduzidos que pudemos discorrer em sala. Tais estudos oferecem uma visão
diferenciada sobre nosso cotidiano e como nós levamos o que já tínhamos dentro de
nossas mentes para o celular, e não o inverso. Fomos nós que atribuímos essa importância,
essa ressignificação para tal aparato móvel, que fora criado originalmente apenas para ser
um meio de comunicação, mas que assim como outros meios de comunicação, são
ressignificados dentro de uma sociedade contemporânea em constante mutação.

Referências

DURKHEIM, Emile; MAUSS, Marcel. Algumas formas primitivas de classificação. In:


RODRIGUES, José Albertino; FERNANDES, Florestan (org.). Durkheim: sociologia.
9. ed. São Paulo: Ática, 2000. Cap. 17. p. 183-203.

JEFFMAN, Tauana Mariana Weinberg. Literatura que cabe na tela: uma análise da
cultura participativa, consumo e conexões nos booktubers. In: ENCONTRO
NACIONAL DE ESTUDOS DO CONSUMO, 7., 2014, Rio de Janeiro. Anais [...] . Rio
de Janeiro: Puc-Rio, 2014. p. 1-20.

MILLER, Daniel et al. Como o mundo mudou as mídias sociais. Londres: UCL Press,
2019.

MILLER, Daniel; SLATER, Don. Etnografia on e off-line: cybercafés em


Trinidad. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 1, n. 21, p. 42-65, jun. 2004.

SILVA, Sandra Rúbia da. Eu não vivo sem celular: corporalidade e novas práticas nas
culturas urbanas. Intexto, Porto Alegre, v. 2, n. 17, p. 1-17, dez. 2007.

_____. Estar no tempo, estar no mundo: a vida social dos telefones celulares em um
grupo popular. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2010.

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