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Texto original: “Trying is only emphasizing the thing we know already.”
Para o mestre Zen a corda do arco solta-se mesmo que nós não a soltemos. Do
ponto de vista físico é possível explicar que há um momento em que a tensão da corda
supera o atrito com os dedos levando a que ela se solte num momento totalmente
independente da vontade do arqueiro. Mas o mestre Zen não está preocupado com as
leis da física, mas com o controlo da vontade, a capacidade de inibir o impulso para
agir em vez de esperar que as coisas aconteçam.
Curiosamente o papel duma intenção consciente na execução dum movimento
foi posto em causa pelas experiências de B. Libet (1981)5 que aparentemente provam
que uma acção motora se inicia com acontecimentos neurológicos que ocorrem antes
da nossa consciência da decisão de fazer um movimento. Apesar de sentirmos que a
nossa decisão consciente é que iniciou o movimento, é possível detectar actividade
cerebral de preparação para o processo motor (o chamado potencial de prontidão) 350
milissegundos antes da tomada de consciência dessa decisão. A consciência chega
atrasada em relação à entidade que a inicia.
Na altura em que a consciência nos “é entregue” para um determinado objecto,
os respectivos mecanismos do nosso cérebro têm estado a trabalhar há uma
eternidade, medida na perspectiva temporal duma molécula... Estamos sempre
atrasados para a consciência, mas como todos nós sofremos do mesmo atraso,
ninguém repara (Damásio, 1999: 154).
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Morris et al, 2005 e Nideffer, 1985.
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A última frase foi traduzida a partir da edição inglesa (Herrigel, 1953: 47): “You think that what you
do not do yourself does not happen”. A tradução da edição portuguesa (Herrigel, 1997: 37) - ”O senhor
está convencido de que nada do que não fizer, acontecerá” - não me parece suficientemente clara.
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Sobre esta questão ver Jeannerod (1994).
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Texto original: “Il y a des concerts où j'analyse trop, où je suis guidé par la tête - je veux faire ci, je
veux faire ça… Et je n'aime pas ça du tout. A mon sens, la meilleure interprétation est celle où on
donne l’impression de ne rien faire, d'être derrière la musique, de simplement jouer les notes. Mais
pour arriver à ce stade, il faut avoir beaucoup de recherches… Cela arrive peut-être deux fois dans
l'année, et ce sont des moments où on ‘est joué’. C'est comme dans le zen. On le sent bien au travers
de l'article ‘es’ en allemand: ‘Es spielt aus mir’: ‘cela joue de moi’, mais sans la volonté. Et c'est une
apprentissage très, très long, on est toujours livré au hasard.”
A experiência de Henry
Uma experiência realizada por Henry (1953) mostrou que podemos reagir a
alterações de que não nos apercebemos. Nessa experiência os sujeitos, de olhos
vendados, tinham de regular a força com que empurravam um puxador cuja posição
era alterada por um dispositivo mecânico ao qual estava ligado. O puxador podia
mover-se imprevisivelmente para trás ou para a frente, mas era possível ao sujeito
manter o puxador imóvel, modulando a força que lhe aplicava.
Com o objectivo de determinar o limiar das diferenças de pressão detectáveis
pela percepção do sujeito, o estudo testou três condições diferentes. Na primeira era
pedido ao sujeito que variasse a posição do puxador de molde a manter uma pressão
constante contra o puxador. Quando o dispositivo aumentasse a força que o puxador
fazia contra a mão era pedido ao sujeito para diminuir a resistência oferecida pela
mão, permitindo que o puxador se movesse. Na segunda condição o sujeito deveria
Outro exemplo relevante para esta exposição são certas reacções posturais
preparatórias. Bouisset e Zattara (1981) observaram movimentos antecipatórios nos
membros inferiores e no tronco antes do início de movimentos voluntários. Estes
movimentos contribuem para a organização dinâmica do equilíbrio e servem para
reduzir a perturbação do movimento subsequente, e seriam específicos do movimento
intencional (Aruin, 2002). Se de facto é este o caso, então estes ajustamentos
posturais devem ser pré-programados. Imaginemos que em resposta a um dado sinal
temos de elevar um braço à frente do corpo. O tempo de reacção necessário para
iniciar o movimento é de cerca 200 milissegundos. Mas se estivermos equilibrados
com o mínimo de tensão necessária, um movimento do braço para a frente resulta
num deslocamento do centro de gravidade que provocaria uma queda para a frente,
caso não houvesse uma compensação durante a elevação do braço. O papel dos fusos
musculares na manutenção do equilíbrio nestas situações, provocando uma contracção
reflexa dos músculos alongados pelo desequilíbrio seria um dos mecanismos para a
reposição do equilíbrio. No entanto, vários estudos (Belenk’ii et al 1967; Cordo &
Nashner, 1982) registaram a actividade electromiográfica dos músculos das pernas
assim como dos principais responsáveis pela elevação do braço e mostraram que há
acções antecipatórias. Depois do sinal dado ao sujeito para levantar um braço, os
primeiros sinais de actividade muscular ocorreram nos músculos da parte de trás da
perna do lado oposto do corpo cerca de 60 milissegundos antes de ser detectada
qualquer actividade nos músculos do ombro (Magill, 2001: 108). Isso mostra que a
actividade nos músculos da perna não pode ter sido provocada pelo reflexo miotático
resultante do desequilíbrio provocado pelo movimento do braço que ainda não tinha
sido iniciado. Esta actividade na perna é resultado da descarga corolária,7 também
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A descarga corolária é fruto da experiência e permite aos centros sensoriais do cérebro antecipar as
consequências das ações produzidas pelo sujeito, por exemplo, para sabermos se é o olho que se move
num mundo estável ou se é o mundo que se move perante um olho estacionário. Os seus efeitos podem
ser comprovados com uma pequena experiência. Se movermos o globo ocular com um dedo, sem
envolver os músculos dos olhos temos a percepção de que o nosso campo visual salta. Em
contrapartida, se fizermos um movimento intencional dos olhos ou da cabeça, apesar de a posição da
imagem dos objetos na retina se mover, a nossa percepção não é de que os objetos se estejam a mover.
Da mesma forma dificilmente fazemos cócegas a nós próprios porque quando nos tocamos, o nosso
cérebro inibe a activação de certos neurónios do córtex temporal que são importantes para a sensação
tátil (Berthoz, 2000; Rywerant, 2008).
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“Wineglass effect” (Schmidt & Lee, 2005: 157).
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Este reacção, que também pode ser inibida é significativa para compreendermos como a tensão criada
pelo escorregar da flauta entre os dedos se pode ir acumulando inconscientemente. A utilização dum
varão para testar o limiar da pressão entre os dedos a partir da qual aquele começa a deslizar será
descrita no capítulo dez.
A Teoria do Esquema
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Fazer diferentes desenhos com um lápis imaginário fixado em variados pontos do corpo é um
exercício sugerido por Bond (2007: 197) num volume sobre questões posturais e exploração do
movimento corporal. Essa prática, segundo a autora e a minha experiência, permite libertar-nos de
formas habituais de movimento restaurando a fluidez e elasticidade dos tecidos. De acordo com a teoria
do esquema estaríamos perante a execução de programas motores similares com uma seleção de grupos
musculares diferentes, que embora a princípio sejam eventualmente feitos com dificuldade ou
desajeitadamente, não dependem da elaboração dum novo programa motor. Austin (1976) numa tese
centrada nas semelhanças entre a aprendizagem do malabarismo e a programação de computadores, na
perspectiva da cibernética, afirma que a capacidade de vermos que o programa motor necessário para
uma tarefa é igual ou semelhante a um já existente é uma poderosa ajuda na aprendizagem de
habilidades físicas. Nesse tipo de situações é mais fácil aproveitar ou alterar ligeiramente o programa
pré-existente do que construir um novo. No fundo é uma forma de aprendizagem por analogia: Austin
dá o exemplo do serviço de ténis, que pode ser descrito como “atirar a raquete mas sem a largar”
(throw your racket away... but hold on”) reduzindo-o à execução de um programa já existente, com
uma pequena alteração. Este tipo de pedagogia é também seguido com sábia psicologia pelo mestre de
karaté do filme “Karaté Kid” (2005) que ensina a um jovem os movimentos da arte marcial através de
tarefas domésticas: polir o carro ou pintar uma vedação requerem os mesmos programas motores que
os movimentos defensivos, os quais perante o risco de sermos atacados podem não ser recrutados com
a mesma celeridade ou precisão.
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Podemos dizer que na fase cognitiva estamos conscientes da nossa incompetência, na fase
associativa estamos conscientes da nossa competência e na fase autónoma estamos inconscientes da
nossa competência.
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O uso de tampões nos ouvidos permitiu uma audição interna da ressonância do som, inibindo uma
eliminação de ruídos de sopro que muitas vezes era feita conscientemente com prejuízo para a
amplitude e projeção do som (capítulo nove); dedilhar uma passagem sem emitir som, obriga a uma
consciência acrescida do movimento dos dedos, favorecendo a memoria cinestésica; a dessincronização
da pressão de sopro com a dedilhação de passagens no registo agudo, ou a eliminação do movimento
do polegar na flauta de bisel criam um resultado sonoro inesperadamente diferente, obrigando a uma
atenção acrescida ao movimento dos dedos. Dessa forma tornam-se claras ao executante as alterações
de tensão provocadas pelas dificuldades de emissão ou associadas a movimentos complexos dos dedos
(capítulo doze).
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Em 1922, Bernstein foi chamado a dirigir o Laboratório de Biomecânica do Instituto Central do
Trabalho. Este Instituto foi organizado por A. Gastev, um idealista revolucionário entusiasmado com a
ideia de reorganizar o trabalho físico, tornando-o mais excitante e produtivo e menos monótono e
cansativo. Foi nesta atmosfera exaltante que Bernstein começou a estudar o mais simples elemento do
movimento dum trabalhador manual: bater com um martelo num cinzel. Este estudo provocou uma
primeira desilusão na euforia reinante. A impaciência de Gastev exigia resultados imediatos que
pudessem ser traduzidos em recomendações para os operários sobre a melhor forma de dirigir o
martelo. Mas Bernstein observou que cada vez que o martelo acertava no cinzel, a sua trajetória era
ligeiramente diferente. Isto significava que o cérebro precisava de enviar comandos musculares
diferentes de cada vez, dependendo duma complexidade de factores. Assim, o trabalhador devia
desenvolver a capacidade de encontrar um solução motora ideal em cada momento, em vez de aprender
um conjunto de comandos corretamente optimizados (Feigenberg & Latash, 1996: 255). Numa
perspectiva da Teoria dos Sistemas Dinâmicos, uma parte das correções da trajetória do martelo não
estarão dependentes de comandos cerebrais, mas das propriedades elásticas dos músculos e inerciais do
martelo. Dessa forma uma tentativa consciente de controlar prematuramente certos erros de trajetória
será menos eficaz do que permitir que o movimento do martelo evolua no campo gravítico intervindo
apenas esporadicamente.