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O Copo de Cristal ou a Composição Tipográfica Deve

Ser Invisível

Beatrice Warde, 1932

Imagine que tem diante de si um jarro de vinho. Para essa experiência imaginária,
pode escolher o ano de colheita da sua preferência, desde que seja de um carmesim
intenso e profundo. À sua frente encontram-se dois copos. Um é de ouro maciço,
trabalhado com extrema delicadeza. O outro é de cristal, um vidro absolutamente
transparente e fino como uma bolha. Sirva-se e beba; dependendo do copo que escolher,
saberei se você é ou não um conhecedor de vinho. Se, por um outro motivo, o vinho não
lhe disser nada, desejará bebê-lo num recipiente que pode ter custado milhares de libras;
mas, se faz parte daquela tribo em vias de extinção, de amantes de vinho de colheitas de
excelente qualidade, escolherá o copo de cristal porque tudo nele foi calculado para
revelar, e não para esconder, o conteúdo mais belo que lhe está destinado.
Acompanhe-me nesta metáfora prolixa e aromática e descobrirá que quase todas
as virtudes do copo de vinho perfeito têm paralelo na tipografia. Existe a haste longa e
fina que evita que o bojo do copo fique marcado pelos dedos. Por quê? Porque nenhuma
mancha se pode interpor entre os seus olhos e o espírito pujante do líquido. As margens
das páginas dos livros não se destinam, igualmente, a evitar a necessidade de manusear
a mancha da página? Além disso, o vidro é incolor ou, no máximo, apenas levemente
colorido no bojo, porque o conhecedor julga o vinho, em parte, por sua cor e fica
impaciente com qualquer coisa que a altere. Milhares de maneirismos na tipografia são
tão descarados e arbitrários como servir vinho do Porto em copos de vidro vermelho ou
verde! Quando a base de um copo parece demasiado pequena para se segurar, não
importa o cuidado com que foi trabalhada, a pessoa fica nervosa, com medo que tombe.
Existem várias maneiras de compor linhas tipográficas que podem funcionar bastante
bem e que, no entanto, mantêm o leitor inconscientemente preocupado, com medo das
linhas “dobradas”, de ler três palavras como se fossem uma, e assim por diante.
Ora, o primeiro homem que escolheu o vidro em vez de cerâmica ou metal para
servir de recipiente para o seu vinho foi um “modernista”, no sentido em que passarei a
empregar esse termo. Isto é, a primeira pergunta que ele fez a respeito desse objeto
específico não foi “Que aparência o copo deve ter?”, mas “Qual é a sua função?”, e,
desse ponto de vista, toda a tipografia de qualidade é modernista.
O vinho é algo tão estranho e poderoso que em determinados lugares e épocas
ocupa o centro de rituais religiosos, enquanto noutros é combatido por uma figura
empunhando um machado de guerra. Só existe uma coisa no mundo capaz de afectar e
alterar a mente humana com a mesma intensidade: a manifestação coerente do
pensamento. Esse é o principal milagre do ser humano, exclusivo dele. Não existe
nenhuma “explicação” para o facto de que eu possa, arbitrariamente, produzir sons que
levarão um estranho a pensar o meu pensamento. É pura magia que eu consiga manter
uma conversa unilateral por meio de marcas pretas num papel com uma pessoa
desconhecida do outro lado do mundo. Conversar, fazer transmissões radiofónicas,
escrever e imprimir são, de maneira bastante literal, formas de transferência de
pensamento, e essa capacidade e essa avidez de transferir e receber os conteúdos da
mente é que são quase as únicas responsáveis pela civilização humana.
Se concorda com isso, concordará com a minha ideia principal, isto é, o que existe
de mais importante na impressão tipográfica é o facto de que ela transmite pensamentos,
ideias e imagens de uma mente para outras. Tal declaração é o que se pode chamar de
porta da frente do saber tipográfico. No seu interior existem centenas de salas, mas, a
menos que partamos do princípio de que a impressão tipográfica se destina a transmitir
ideias específicas e coerentes, é muito fácil darmo-nos conta de estar na casa errada.
Antes de nos questionarmos onde nos leva esta declaração, vejamos primeiro ao
que ela necessariamente não nos conduz. Se os livros são impressos para serem lidos,
devemos distinguir legibilidade daquilo que o oftalmologista chamaria visibilidade.
Uma página composta em corpo 14, negro, num tipo sem serifa é, de acordo com os
testes de laboratório, mais “visível” do que uma composta no tipo Baskerville, corpo 11.
Nesse sentido, um orador público torna-se mais “audível” quando grita. Mas uma boa
voz é aquela que é inaudível como voz. De novo o copo transparente! Não preciso de
vos dizer que, se começamos a ouvir as inflexões e o ritmo de uma voz que vem do
palco, acabamos adormecendo. Quando se ouve uma canção numa língua que não se
compreende, parte da nossa mente adormece, deixando as sensibilidades estéticas
desligadas o bastante, para que se satisfaçam, livres do controle racional. A Arte faz
isso; contudo, não é esse o propósito da impressão tipográfica. A tipografia, bem
utilizada, é invisível enquanto tipografia, exatamente da mesma forma que a voz
perfeita é um meio imperceptível para a transmissão de palavras e ideias.
Podemos então dizer que a impressão tipográfica pode ser encantadora por muitos
motivos, mas ela é importante, antes de mais nada, como meio para fazer algo. É por
isso que é desajustado designar qualquer obra impressa como obra de arte,
especialmente arte nobre: porque isso significaria dizer que o seu principal objetivo
seria a expressão da beleza pela beleza, como deleite para os sentidos. Hoje em dia,
podemos quase considerar a caligrafia como uma arte, pelo facto de que o seu principal
propósito económico e educacional deixou de existir; contudo, a impressão tipográfica
em inglês não pode ser classificada como arte até que a língua inglesa actual deixe de
transmitir ideias às gerações futuras, e até que a própria impressão passe o seu
testemunho utilitário a algo que lhe suceda, ainda inimaginável.
O labirinto das práticas processuais em tipográfica não tem fim, e esta ideia de
impressão enquanto veículo é, pelo menos na mente de todos os grandes tipógrafos com
quem tive o privilégio de conversar, a única pista que nos pode conduzir através do
labirinto. Por não possuirem esta humildade intelectual, tenho visto designers ansiosos
sairem-se terrivelmente mal e cometer mais erros ridículos, em razão do excesso de
entusiasmo, do que eu poderia ter pensado ser possível. E com essa pista, com esse
propósito presente na sua mente, é possível fazer coisas mais inauditas e constatar que
elas o justificam triunfalmente. Recorrer aos fundamentos simples e racionais de base,
não significa perder tempo. No meio da agitação dos nossos problemas pessoais, creio
que não importará gastar meia hora com um conjunto simples e claro de ideias
comprometidas com princípios abstractos.
Um vez estive a conversar com um homem que desenhara um tipo para
publicidade muito interessante e que certamente vocês todos já utilizaram. Eu referi
algo sobre o que os artistas pensam a respeito de um determinado problema, e ele
respondeu com um bonito gesto: “Ah, minha senhora, nós, artistas, não pensamos… nós
sentimos!”. Nesse mesmo dia citei esse comentário a outro designer meu conhecido, e
ele, tendo menos inclinação poética, murmurou: “Acho que hoje não me sinto muito
bem!”. Ele realmente acreditava que tinha razão, era do tipo que pensa, e é por isso que
não era tão bom pintor mas, na minha opinião, dez vezes melhor como tipógrafo e
designer do que o homem que instintivamente evitava qualquer coisa tão coerente como
a razão. Desconfio sempre da pessoa apaixonada pela tipografia que arranca uma página
impressa de um livro e a pendura emoldurada na parede, pois acredito que, no intuito de
satisfazer um prazer sensorial, mutilou algo infinitamente mais importante. Lembro-me
que T. M. Cleland, o famoso tipógrafo norte-americano, uma vez mostrou-me um
layout muito bonito para um folheto do Cadillac que continha ilustrações coloridas.
Como não dispusesse do texto real para aplicar no desenho das páginas da maqueta,
compôs as linhas em latim. O motivo não foi apenas aquele em que vocês estarão a
pensar; se tiverem visto a famosa reprodução de Queosque Tandem das antigas
fundidoras de tipos (ou seja, que o latim tem poucas descendentes, produzindo,
portanto, uma linha notoriamente uniforme). Não, ele disse-me que inicialmente tinha
composto o “palavreado” mais aborrecido que podia encontrar (atrevo-me a dizer que
seria de Hansard), só que descobriu que a pessoa a quem o submeteu começava a ler e a
fazer comentários sobre o texto. Fiz algumas observações sobre a capacidade mental
dos membros dos Conselhos de Administração, mas o Sr. Cleland disse: “Não, está
enganada; se o leitor não tivesse sido praticamente forçado a ler — se não tivesse visto
aquelas palavras subitamente impregnadas de glamour e significado –, então o layout
teria sido um fracasso. Compô-lo em italiano ou latim é apenas uma forma fácil de
dizer: “Este não é o texto que irá aparecer”.”
Permitam-me começar as minhas conclusões específicas pela tipografia aplicada
ao livro, porque esta contém todos os fundamentos, e depois passar a alguns aspectos
sobre a publicidade. A tarefa do tipógrafo de livro é erguer uma janela entre o leitor que
está dentro da sala e a paisagem, que é composta pelas palavras do autor. Ele pode
colocar um vitral de uma beleza extraordinária, mas que será um fracasso enquanto
janela; ou seja, ele pode utilizar um tipo soberbo e magnífico como o gótico, que é algo
para ser visto, não para se ver através dele. Ou pode trabalhar com o que designo por
tipografia transparente ou invisível. Tenho um livro em casa, do qual não tenho
qualquer recordação visual no que diz respeito à sua tipografia; quando penso nele, tudo
o que vejo são os Três Mosqueteiros e os seus companheiros calcorreando as ruas de
Paris. O terceiro tipo de janela é aquele em que o vidro é dividido por partes de chumbo
relativamente pequenas; isso corresponde ao que hoje em dia se chama “impressão
fina”, na medida em que se está pelo menos consciente de que há uma janela ali, e que
alguém teve o prazer de a construir. Isto não é censurável, devido a um facto muito
importante que tem a ver com a psicologia do subconsciente. Isto é, que o olho mental
se focaliza através do tipo e não sobre ele. O tipo que, através de qualquer distorção
arbitrária de desenho ou excesso de “cor”, se interpõe no caminho da imagem mental a
ser transmitida, é um mau tipo. O nosso subconsciente tem sempre receio de equívocos
(em que composições ilógicas, espaçamento apertado e linhas de texto muito extensas
nos podem enganar), do tédio e da intromissão. O título repetitivo que continua a gritar
connosco, a linha que parece uma palavra extensa, as maiúsculas juntas umas às outras
sem espaço fino – tudo isso significa estrabismo inconsciente e ausência do foco mental.
E, se é verdade o que eu disse sobre a impressão de livros, mesmo das edições
limitadas mais raras, é cinquenta vezes mais evidente na publicidade, onde a única
justificação para a compra de espaço é a de que se está a transmitir uma mensagem –
que se está a implantar um desejo, directamente na mente do leitor. É tragicamente fácil
desperdiçar metade do interesse do leitor de um anúncio, compondo o simples e atrativo
argumento num tipo desconfortavelmente estranho à razoabilidade clássica do livro. Se
tiver a certeza de que o original é inútil como meio para vender bens, poderá conseguir
a atenção que deseja com o título e fazer os quadros tipográficos bonitos que quiser;
mas, se tiver a felicidade de dispor de um original realmente de qualidade para
trabalhar, sugiro que se lembre de que milhares de pessoas pagam sobriedade e de que
apenas a sua criatividade mais extravagante pode impedir que as pessoas leiam um texto
verdadeiramente interessante.
A impressão exige humildade intelectual, e, por lhes faltar isso, muitas das belas
artes estão até agora a vacilar em experiências auto-conscientes e sentimentalistas. Não
há nada de simples ou aborrecido em querer atingir a página transparente. A ostentação
vulgar é duplamente mais fácil do que a disciplina. Quando nos apercebemos de que a
tipografia feia nunca se esvanece, seremos capazes de agarrar a beleza como os sábios
agarram a felicidade apontando para outra coisa. O “tipógrafo-acrobata” descobre a
volubilidade das pessoas ricas que detestam ler. As extensas alusões a respeito de serifas
e espaços não lhes dizem respeito e não saberão dar valor à separação fina dos espaços.
Ninguém (a não ser os outros artífices) apreciará metade da sua habilidade. No entanto,
poderão passar anos sem fim de venturosa experimentação imaginando aquele copo
cristalino que merece conter a vindima da mente humana.

(Publicado originalmente em Londres, em 1932, com o pseudónimo Paul Beaujon. Esta


versão foi publicada em Londres, em 1955.)

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