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ISBN 85—336—01 28—X

DIÁLOGOS SOBRE
A RELIGIÃO
NATURAL
CLÁSSICOS

J. Michelet — O Povo
Machado de Assis — Dom Casmurro
J.-J. Rousseãu — D Contrato Social
R. Descartes — Discurso do Método
N. Maquiavel — O Príncipe
Erasmo — Elogio da Loucura
A. Comte — Discurso sobre o Espírito Positivo
Voltaire — Cândido
Aristóteles — Política
C. Beccaria — Dos Delitos e das Penas
T. Hobbes — Do Cidadão
P. Verri — Observações sobre a Tortura
Lancelot/Arnauld — Gramática de Port-Royal
Vários — Poesia Lírica Latina
D. Hume — Diálogos sobre a Religião Natural

Próximos lançamentos
J.-J. Rousseau — Emílio
Montesquieu — O Espírito das Leis
DIÁLOGOS SOBRE
A RELIGIÃO
NATURAL

David Hume

TRADUÇÃO
JOSÉ OSCAR DE ALMEIDA MARQUES

Martins Fontes
São Paulo — 1992
Título original: DIALOGUES CONCERNING NATURAL RELIGION
Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Lida., São Paulo, 1992
para a presente edição

Ia edição brasileira: novembro de 1992

Tradução: José Oscar de Almeida Marques


Preparação do original: Silvana Vieira
Revisão tipográfica:
Sandra Rodrigues Garcia
Pier Luigi Cabra

Produção gráfica: Geraldo Alves


Composição: Antonio Cruz

Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes

Dados Internacionais cie Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Hume, David, 1711-1776.


Diálogos sobre a religião natural / David Hume ;
[tradução José Oscar de Almeida Marques ; prefácio de
Michael Wrigley]. — São Paulo ; Martins Fontes, 1992. —
(Clássicos)
Bibliografia.
ISBN 85-336-0128-X
1. Teologia natural í. Título. II. Série.
92-3163 CDD-210
índices para catálogo sistemático:
1. Teologia natural 210

Todos os direitos desta edição reservados para a língua portuguesa ã


LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel,: 239-3677
01325-000 — São Paulo — SP — Brasil
SUMÁRIO

Prefácio VII
Bibliografia XIX
Cronologia XXIII
Nota ao texto desta tradução XXVII

DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO


NATURAL ................................................................ 1

Panfilo a Hérmipo . . ....... .... .......................... 3


Parte I ..................................................................... 7
Parte II................................................................... 25
Parte III ................................................................. 45
Parte IV . . .... .......................... . ............................ 57
Parte V................................................................ 69
Parte VI ................................................................ 79
Parte VII .............................................................. 91
Parte VIII ........................................................... 103
Parte IX............................................................... 115
Parte X.............................................................. 125
Parte XI.............................................................. 143
Parte XII .............................................................. 163
PREFÁCIO

David. Hume (1711-1776) foi um dos mais im­


portantes filósofos do século XVIII. Seus escritos per­
correm uma ampla variedade de tópicos, tanto filo­
sóficos como de caráter mais geral, indo da econo­
mia, política, estética e história até a metafísica, epis-
temologia e ética. Seu trabalho mais significativo é
oH^tadvc^aMdatureza^Humana, em três volumes
(1739 e 1740), que contém a exposição mais com­
pleta e detalhada de seu sistema filosófico. Ele redi­
giu, mais tarde, dois textos mais concisos: a Investi­
gação acerca do Entendimento Humano (1748) e a
Investigação acerca dos Princípios da Moral (1751),
nos quais são oferecidas exposições mais breves, cla­
ras e acessíveis das principais idéias do Tratado.
Além de seus trabalhos propriamente filosófi­
cos, Hume também escreveu uma História da Ingla­
terra em oito volumes (1754 a 1762), e numerosos
ensaios curtos sobre uma grande diversidade de as­
suntos. A primeira foi descrita por um crítico do
VIII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

porte de Voltaire como “a melhor história já escri­


ta em qualquer idioma”, e os últimos terminaram
por ser reconhecidos como clássicos da literatura in­
glesa, estando incluídos, juntamente com os ensaios
de Francis Bacon, entre os exemplos mais excelen­
tes do gênero já escritos nessa língua. Na qualidade
de filósofo, Flume jamais deteve profissionalmente
qualquer posto oficial, mas dedicou-se, ao invés disso,
a uma variedade de ocupações, atuando sucessiva­
mente como preceptor, bibliotecário e diplomata,
até chegar a ser reconhecido, por fim, corm a prin­
cipal figura literária da Grã-Bretanha, podendo vi­
ver, de maneira confortável, com a renda proveniente
de seus escritos.
A base da filosofia de Hume é o princípio ern-
pirista de que todo conhecimento só pode provir
da experiência sensível. Isto levou-o não apenas a re­
jeitar toda a metafísica a priori, do tipo favorecido
por Descartes, Leibniz e Spinoza, mas também à con­
clusão, muito mais radical, de que pouquíssimas de
nossas crenças ordinárias e decididamente não-
metafísicas podem ser racionalmente justificadas. Es­
ta vertente cética e negativa constitui, porém, ape­
nas um aspecto do pensamento de Hume, o qual
também exibe um lado positivo e naturalista. Em­
bora Hume julgue que a maioria de nossas crenças
naturais e cotidianas não admitem justificação racio­
nal, ele enfatiza igualmente o fato de que elas sao
psicologicamente inevitáveis. A vertente naturalis­
ta e positiva do pensamento de Hume revela-se no
projeto de descobrir os princípios psicológicos ge­
rais que explicam como chegamos a formar, com ba­
se na experiência sensível, as crenças particulares que
efetivamente sustentamos.
PREFÁCIO IX
Ambas as vertentes do pensamento de Hume,
positiva e negativa, podem ser vistas operando em
suas discussões sobre a religião. Os Diálogos sobre
a,-Religião Natural, escritos entre 1751 e 1755 e sub­
metidos a diversas revisões antes de sua publicação
póstuma em 1779, constituem a contribuição mais
substancial e influente de Hume à filosofia da reli­
gião, e vemos, neste trabalho, a operação do lado crí­
tico e negativo de seu pensamento, quando ele sub­
mete as crenças religiosas mais centrais a uma pene­
trante investigação, a partir da perspectiva do empi-
rismo radical. Em seu outro trabalho mais impor­
tante sobre a religião, a História Natural da Religião
(1751), Hume adota uma abordagem naturalista das
manifestações religiosas, e oferece um relato pionei­
ro, em termos antropológicos, psicológicos e histó­
ricos, da função e da origem das crenças religiosas
em diversas épocas e culturas, procurando desse mo­
do explicar por que essas crenças estão tão difundi­
das, embora sejam, do ponto de vista de sua racio­
nalidade, completamente injustificáveis. Entre ou­
tras de suas discussões mais breves, mas também im­
portantes acerca da religião, está o ensaio sobre os
milagres, que Hume incluiu na Investigação acerca
do Entendimento Humano, além de outros dois en­
saios curtos que ele escreveu sobre o suicídio e a
imortalidade da alma.
A atitude geral de Hume perante a religião foi,
sem a menor dúvida, extremamente negativa. Du­
rante sua vida, suas posições sobre o assunto foram
notórias, a ponto de ele ser conhecido como “o gran­
de infiel”, e muitos de seus escritos sobre a religião,
incluindo os Diálogos, foram considerados demasiado
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

subversivos para serem publicados com segurança en­


quanto o autor estava vivo. E absolutamente certo
que Hume rejeitou todos os aspectos centrais do
Cristianismo, e considerou a religião em geral não
apenas como falsa, mas também como efetivamente
perniciosa. Seria um erro, porém, descrevê-lo como
sendo realmente um ateísta. Conta-se que, estando
ele uma vez presente a um jantar em Paris na casa
do Barão d’Holbach, famoso philosophe e materia­
lista, e tendo a conversação se dirigido para o tema
da religião, Hume fez a observação de que nunca,
em sua vida, havia encontrado um genuíno ateísta.
A isto d’Holbach replicou imediatamente: “Bem,
o senhor está com sorte. Há dezessete deles senta­
dos ao redor desta mesma mesa neste exato momen­
to.” Não há razão para supor que Hume estivesse
sendo insincero na ocasião. Pois, embora ele eviden­
temente concordasse com d’Holbach e seus amigos
philosophes sobre não haver qualquer evidência pa­
ra justificar a crença na existência de Deus, a dife­
rença entre eles residia no fato de que estes últimos
pensavam poder afirmar, com absoluta certeza, que
Deus não existe; ao passo que, na perspectiva de Hu­
me, a questão geral sobre a existência de Deus, jun­
tamente com todas as outras questões metafísicas úl­
timas desse tipo, é impossível de ser decidida, já que
ela diz respeito a algo que está totalmente fora do
alcance do entendimento humano. É por isso que
sua oposição ao ateísmo dogmático de d’Holbach
não é menos enfática do que sua oposição às afir­
mações dogmáticas da existência de Deus. Em seu
ensaio sobre os milagres, Hume exibe o mesmo ti­
po de abordagem agnóstica frente a questões de na­
PREFÁCIO XI
tureza religiosa, e seu argumento não procura esta­
belecer a impossibilidade de que um milagre venha
a ocorrer, mas apenas que nunca poderemos dispor
de uma evidência sufi ciente mente forte para estar­
mos certos de que ele de fato ocorreu. Quanto aos
milagres propriamente ditos, Hume é bastante cui­
dadoso para não negar dogmaticamente a possibili­
dade de sua ocorrência.
Nos Diálogos sobre a Religião Natural, Hume
volta sua atenção para a questão da existência de
Deus, e é aqui que sua atitude agnóstica frente a es­
sa questão é defendida de forma mais extensa e mi­
nuciosa. Poderia parecer, à primeira vista, que o ob­
jetivo dos Diálogos é menos radical, dado que os par­
ticipantes concordam, logo de início, que a existên­
cia de Deus não pode estar em julgamento, e que
o único ponto em que há lugar para debate diz res­
peito à determinação da natureza desse ser divino.
Aqui, no entanto, Hume está de fato sendo insince­
ro, e não pode deixar de sê-lo, para evitar infringir
abertamente os limites fixados pelas convenções que
estabeleciam o que era permissível, na época, em ma­
téria de discussão sobre temas religiosos. E verdade
que, na Grã-Bretanha setecentista, esses limites eram
bastante liberais, mas o franco questionamento da
própria existência de Deus não estava, nem mesmo
lá, entre as coisas consideradas admissíveis. Isto ex­
plica a cautela de Hume. Embora o argumento dos
Diálogos não conteste abertamente a existência de
Deus, ele solapa de fato, de forma implícita e indi­
reta, todas as justificativas para se acreditar em um
ser que se assemelhe, minimamente, ao Deus da re­
ligião.
XII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Nos Diálogos^ Hume rejeita após uma breve dis­


cussão (Parte IX) a possibilidade de um argumento
a priori para a existência de Deus, mas o principal
foco de interesse é uma longa e detalhada discussão
e refutação do argumento conhecido como o Argu­
mento do Desígnio. A idéia central desse argumen­
to é extremamente simples. Sabemos, a partir de nos­
sa experiência, que entidades complexas e altamen­
te organizadas, como as máquinas, não surgem por
puro acaso, mas apenas como resultado de um de­
sígnio consciente da parte de um criador dotado de
inteligência. Assim, prossegue o argumento, quan­
do consideramos quão imensamente mais comple­
xo e organizado é o universo como um todo, esta­
mos justificados em concluir que a origem dessa or­
dem é, do mesmo modo, o desígnio consciente de
um criador dotado de inteligência, embora, neste ca­
so, deva tratar-se de um ser infinitamente mais inte­
ligente e poderoso do que qualquer ser humano. Nas
palavras sucintas com as quais um dos personagens
de Hume enuncia o cerne do argumento, ÍCO mun­
do assemelha-se aos produtos do engenho humano;
sua causa, portanto, também deve assemelhar-se às
desses produtos.” (Parte VII)
Não há dúvida de que, do ponto de vista psico­
lógico, este é provavelmente o argumento mais for­
te e convincente para a existência de Deus, e que é *
ele que sustenta, de forma consciente ou inconscien­
te, a fé de muitos dos que professam convicções re­
ligiosas. Francis Bacon capturou muito bem esse ape­
lo emocional quando declarou, em seu ensaio so­
bre o ateísmo: “Eu preferiria antes acreditar em to­
das as fábulas do Alcorão do que supor que esta ma­
PREFÁCIO XIII
jestosa construção está desprovida de um espírito,”
Mas a dXcussão de Hume mostra conclusivamente
que, por mais atraente que possa ser este argumen­
to sob o aspecto emocional, ele se revela, quando
analisa de forma cuidadosa e desapaixonada, como
logicamente muito frágil, capaz de provar muito pou­
co ou quase nada.
Não vou tentar resumir os muitos defeitos que
Hume detecta no Argumento do Desígnio. Em vez
disso, deixo ao leitor comprovar por si mesmo o ir­
resistível poder cumulativo da dialética argumenta-
tiva de Hume, à medida que ele traz à luz, de modo
seguro e sistemático, as falhas cada vez mais profun­
das que se escondem sob a superfície aparentemen­
te coesa daquele argumento. Para ilustrar, porém, al­
guns traços característicos de sua discussão, eis aqui
alguns dos problemas que Hume levanta contra os
defensores do Argumento do Desígnio. Uma das ob-
jeções mais óbvias, que Hume introduz na Parte X
dos Diálogos, liga-se ao antigo problema da existên­
cia do mal. Se Deus é sumamente bom e onipoten­
te, então ele deve tanto querer como ser capaz de
criar um mundo sem sofrimentos. No entanto, da­
do que o mundo está obviamente repleto de sofri­
mentos, se há efetivamente um criador inteligente
do universo, ele deve, ou não ser totalmente bené­
volo, ou não ser onipotente. Em qualquer dos ca­
sos, a divindade cuja existência é provada pelo Ar­
gumento do Desígnio está aquém do Deus conce­
bido tradicionalmente pela religião. Mas outras ob-
jeções de Flume deixam claro que nem mesmo isto
pode ser provado pelo argumento em discussão. Ele
indica, na Parte V dos Diálogos, que, ainda que se
XIV DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA 'RURAL

conceda que a única maneira de explicar a comple­


xidade e a ordem que observamos no universo é
considerá-las como resultando de um desígnio inte­
ligente, isto nao fornece nenhuma razão para se acre­
ditar que o universo é o produto de um único cria­
dor dotado de inteligência. Se a analogia com nossa
experiência constitui um princípio válido de argu­
mentação (e esta é uma suposição crucial de todo
o Argumento do Desígnio), então pareceria mais
provável que uma entidade tão vasta e complexa co­
mo o universo tenha sido o resultado do esforço con­
junto de vários planejadores, cada um dos quais sen­
do responsável por uma parte ou aspecto do proje­
to total, do mesmo modo que uma equipe de arqui­
tetos colabora no projeto de uma grande edificação.
E, como se isto já não fosse ruim o suficiente, Hu­
me passa a questionar o ponto fundamental de que
todo o argumento depende, que é a idéia de que a
única origem possível da ordem e complexidade do
universo é um desígnio intelectual consciente. Con­
tra isto, Hume menciona certos exemplos óbvios,
como a reprodução das plantas e animais, nos quais
entidades altamente complexas e organizadas surgem
sem o concurso de qualquer desígnio consciente des­
se tipo (cf. Parte VII). E, o que é mais importante,
Hume enfatiza que nosso conhecimento do universo
é, na verdade, extremamente limitado. Só consegui­
mos observar uma parte muito pequena dele, durante
um tempo muito curto, e sabemos muito pouco mes­
mo sobre isso que nos é dado observar. Não esta­
mos, portanto, em condições de aceitar como justi­
ficado um argumento que faça uso de qualquer ti­
po de analogia para inferir, a partir das proprieda­
PREFÁCIO XV
des que observamos em uma pequena porção do uni­
verso, determinadas conclusões acerca da natureza
do universo como um todo, e acerca de sua origem.
Assim, a estratégia argumentativa geral do Argumen­
to do Desígnio revela-se, em mais um aspecto, co­
mo fundamentalmente falaciosa.
Hume apresenta sua crítica ao Argumento do
Desígnio sob a forma de um diálogo entre três per­
sonagens. Dois deles, Cleantes e Demea, argumen­
tam, cada um à sua maneira, em favor da existência
de Deus. Demea oscila entre duas posições: em al­
guns momentos ele defende a possibilidade de uma
prova a priori da existência de Deus, enquanto em
outros ele insiste que a fé, por si só, é suficiente co­
mo garantia da crença nessa existência. Cleantes, em
contrapartida, pensa que a existência de Deus só pode
ser estabelecida por meio de argumentos a posterio­
ri, ou seja, baseados na experiência, e é ele o defen­
sor do Argumento do Desígnio. O terceiro perso­
nagem, Filo, que é indubitavelmente o expositor das
concepções do próprio Hume, insurge-se contra
qualquer tipo de prova da existência de Deus, e ad­
voga uma postura agnóstica sobre a questão.
Diversas razões podem explicar o fato de Hu­
me ter escolhido a forma do diálogo para sua expo­
sição. Em primeiro lugar, isto lhe permite anteci­
par e responder possíveis réplicas à sua crítica ao Ar­
gumento do Desígnio, tornando-a, desse modo, tão
sólida e persuasiva quanto possível. Em segundo lu­
gar, isto o ajuda a ocultar parcialmente o caráter ra­
dical da posição que ele defende, e a forma dialó-
gica é explorada de diversas maneiras para a obten­
ção desse resultado. Assim, ao atribuir a Demea e
X VI DIÁLOGOS SOBRE A RELTGIÃO NA RURAL

Cleantes (que são, ambos, porta-vozes da religião)


algumas das críticas às provas da existência de Deus,
Hume consegue desviar a atenção das plenas impli­
cações agnósticas de sua argumentação. Além disso,
Hume pode fazer com que seus personagens comen­
tem o próprio progresso da discussão, de uma ma­
neira de liberadamente calculada para iludir o leitor
superficial. O exemplo mais óbvio disto é o veredi-
to final formulado pelo narrador Panfilo, ao decla­
rar que o ponto de vista, definido por Cleantes é o
mais plausível dos três. E claro que Hume não pre­
tende que esse veredito seja levado a sério, como coin­
cidindo com sua própria posição real sobre o assunto,
já que ele o atribui a Panfilo — o qual, devemos lem­
brar, é um discípulo de Cleantes e, portanto, alguém
de quem se poderia muito bem esperar que viesse
a Hvorecer as concepções de seu mestre.
Um exemplo um pouco menos óbvio dessa mes­
ma estratégia ocorre no final da Parte X dos Diálo­
gos, quando Filo, que havia até então mantido con­
sistentemente uma atitude crítica e cética ante a exis-
L.CnClit ciC x-j-CUTS- IliVCFlC SUultcliiiCiiLC SUd poSlÇclo c
passa a concordar com Cleantes quanto à validade
do Á -gumento do Desígnio. Mas o fato de que, tam­
bém aqui, Hume está sendo irônico torna-se claro
se prestarmos a devida atenção aos detalhes daquilo
que Filo continua efetivamente afirmando depois dis­
so. Pois, de fato, suas observações subsequentes, se
lidas com cuidado, restabelecem de maneira implí­
cita quase todas as críticas que ele havia anterior­
mente apresentado. Em ambos os casos, é claro que
Hume está meramente cedendo às convenções que,
na época, governavam as discussões sobre religião.
Que essa cautela estava plenamente justificada rece-
PREFÁCIO XVII
be uma vivida ilustração no fato de que Adam Smith,
amigo íntimo de Hume, considerou os Diálogos —
mesmo na forma em que foram redigidos, com suas
reais conclusões cuidadosamente disfarçadas — co­
mo excessivamente perigosos e subversivos para ar­
riscar-se a atender ao pedido de seu amigo e assegu­
rar sua publicação póstuma. Quando eles foram fi­
nalmente publicados, graças ao empenho do sobri­
nho de Hume, o impressor recusou-se a ter seu no­
me identificado nos volumes.
A influência do argumento de Hume foi pro­
funda, e os Diálogos constituem sem dúvida uma das
grandes linhas divisórias nas discussões filosóficas so­
bre a religião. Antes de Hume, quase todos os gran­
des filósofos tinham admitido que a existência de
Deus podia ser demonstrada, e tinham atribuído ao
conceito de Deus um papel central em seus sistemas
filosóficos. O impacto das idéias de Hume é expres­
sivamente ilustrado pelo fato de que o próximo gran­
de filósofo a sucedê-lo, Immanuel Kant, longe de ten­
tar provar a existência de Deus, argumentou que to­
das as provas desse tipo são impossíveis, e insistiu
em que somente a fé pode constituir-se numa base
para a religião. Após Hume, a relação entre a fé e
a razão jamais poder ia voltar a ser o que era. Seus
argumentos nos Diálogos fazem soar o dobre final
dos sinos pela teologia racional, e preparam o cami­
nho para as abordagens fideístas e existencialistas da
religião, como a de Kierkegaard, que acreditou que
a religião só pode e deve ter sua base na fé, mesmo
que isto signifique aceitar abertamente o irracional.

Michael Wrigley
BIBLIOGRAFIA

A edição definitiva do texto inglês dos Diálogos


encontra-se emHume on Religion, editado por John
V. Price e A. Wayne Colver (Clarendon Press, Ox­
ford, 1976). Este volume contém também um texto
definitivo da História Natural da Religião.
A edição dos Diálogos preparada por Norman
Kemp Smith é indispensável, e contém uma longa
introdução (mais de cem páginas) na qual, além de
uma grande riqueza de informações sobre as várias
revisões do texto realizadas por Hume, a história de
suas publicações, e o contexto histórico, cultural e
religioso de sua produção, encontra-se uma detalhada
análise, profunda e perspicaz, dos argumentos de­
senvolvidos no texto. A primeira edição data de 1935,
e há uma republicação recente pela Macmillan Pu­
blication Company, Nova York, 1980.
O estudo mais abrangente das concepções de
Hume sobre a religião é:
DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

J. C. A, GASKIN Humes Philosophy of Religion.


Macmillan, Londres, 1978.
Outras importantes discussões, a partir de pontos
de vista bastante diversificados, sobre os Diálo­
gos e sobre as perspectivas de Hume diante da re­
ligião em geral, incluem:
R. J. BUTLER “Natural Belief and the Enigma of
Hume”. Archiv für Geschichte der Philosophie, 1960.
NICHOLAS CAPALDI “Hume’s Philosophy of
Religion: God without Ethics”. International Jour­
nal for the Philosophy of Religion, 1976.
J. C. A. GASKIN “God, Hume and Natural Be­
lief”. Philosophy, 1974.
J. C. A. GASKIN “Hume’s Critique of Religion”.
Journal of the History of Philosophy, 1976.
GEORGE J. NATHAN “The Existence and Na­
ture of God in Hume’s Theism”, in D. Livings­
ton e J. King (orgs.)Hume: A Re-evaluation. Ford­
ham Univ. Press, Nova York, 1976.
JAMES NOXON “Hume’s Agnosticism”. Philoso­
phical Review, 1964. Reimpresso em V. C. Chap­
pell (org.) Hume: A Collection of Critical Essays.
Anchor, Nova York, 1966.
JAMES NOXON “In Defence of ‘Hume’s Agnos­
ticism’ ”, Journal of the History of Philosophy, ou­
tubro de 1976.
TERENCE PENELHUM “Hume’s Skepticism and
the Dialogues” in D. Norton, N. Capaldi e W.
Robinson (orgs.) McGill Hume Studies.
Austin Hill Press, San Diego, 1976.
BERNARD WILLIAMS “Hume on Religion” in
D. Pears (org.) David Hume: A Symposium. Mac­
millan, Londres, 1963.
BIBLIOGRAFIA XXI
KEITH E. YANDELL “Hume on Religious Belief”
in D. Livingston e J. King (orgs.) Hume: A Re-
evaluation.
.*
O mais abrangente estudo da filosofia de Hume co­
mo um todo (um clássico ainda não superado) é:
NORMAN KEMP SMITH The Philosophy of Da­
vid Hume: A Critical Study of Its Origins and Cen­
tral Doctrines. Macmillan, Londres, 1941,

Importantes trabalhos mais recentes sobre vários as­


pectos da filosofia geral de Hume incluem:
ANNETTE BAIER A Progress of Sentiments: Re­
flections on Hume’s Treatise. Cambridge, Mass.,
Harvard Univ. Press, 1991.
DUNCAN FORBES Hume’s Philosophical Politics
C.U.P., 1975.
PETER JONES Hume’s Sentiments: Their Cicerro-
nian and French Context. Edinburgh Univ. Press,
1982.
DONALD W. LIVINGSTON Hume’s Philosophy
of Common Life. Univ, of Chicago Press, 1984.
YVES MICHAUD Hume et la fin de la philosophic.
PUF, Paris, 1983.
DAVID MILLER Philosophy and Ideology in Hume’s
Political Thought. Clarendon Press, Oxford, 1982.
JOÃO PAULO MONTEIRO Hume e a Epistemo-
logia. Imprensa Nacional, 1982.
DAVID FATE NORTON David Hume: Common-
Sense Moralist and Sceptical Metaphysician. Prin­
ceton Univ. Press, 1982.
GALEN STRAWSON The Secret Connexion: Cau­
sation, Realism and David Hume. Clarendon
Press, Oxford, 1989.
XXII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

JOHN P. WRIGHT The Sceptical Realism of Da­


vid Hume. Manchester Univ. Press, 1983.

A biografia definitiva de Hume é:


E. C. MOSSNER The Life of David Hume, 2? edi­
ção revisada, Clarendon Press, Oxford, 1980.

Importantes coletâneas de artigos sobre vários as­


pectos do trabalho de Hume incluem:
V. C. CHAPPELL (org.) Hume: A Collection of Cri­
tical Essays. Anchor, Nova York, 1966.
D. LIVINGSTON e J. KING (orgs.) Hume: A Re-
evaluation. Fordham Univ. Press, Nova York,
1976.
K. R. MERRILL e ROBERT SHAHAN (orgs.) Da­
vid Hume: Many-Sided Genius. Oklahoma Univ.
Press, Norman, 1976.
G. R. MORICE (org.) David Hume: Bicentenary Pa­
pers. Edinburgh Univ. Press, 1977.
D. NORTON, N. CAPALDI e W. ROBINSON
(orgs.) McGill Hume Studies. Austin Hill Press,
San Diego, 1976.
D. NORTON e R. POPKIN (orgs.) David Hume:
Philosophical Historian. Bobbs-Merrill, Nova
York, 1965.
DAVID PEARS (org.) David Hume: A Symposium,
Macmillan, Londres, 1963.
W B. TODD (org.) Hume and the Enlightenment.
Univ, of Texas Press, 1974.

Michael Wrigley
CRONOLOGIA

1711. Nasce em Edimburgo, em 7 de maio, Da­


vid Hume, de uma família da pequena no­
breza da Escócia.
1712. Nasce Jean-Jacques Rousseau.
1713. Nasce Denis Diderot. Publicação dos Três diálogos en­
tre Hilas e Filonous de Berkeley, então com 28 anos.
1714. Morre o pai de Hume.
Nasce Condillac.
Leibniz: A monadologia.
1716. Morte de Leibniz.
1719- Daniel Defoe: Robinson Crusoe.
1722. Hume entra para o Colégio de Edimburgo,
onde estudará lógica, retórica, matemática
e sobretudo a “filosofia natural”, o que o faz
entrar em contato com o sistema de New­
ton. Estuda também direito e história, mas
suas preferências vão para a filosofia e a li­
teratura.
172 4. Nasce Immanuel Kant.
XXIV DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

1725. Vico: A ciência, nova.


1726. Voltaire exilado na Inglaterra.
172 7. Morte de Isaac Newton.
1729- Nasce Lessing.
1734. Hume viaja à França, onde se instala em
Reims e depois em La Flèche, no mesmo
lugar onde Descartes estudara. Inicia a re­
dação do Tratado sobre a natureza humana.
1737. Retorna a Londres.
1739- Publicação dos dois primeiros livros do Tra­
tado sobre a natureza humana, que não con­
seguem. nenhum êxito.
1740. Publicação do terceiro livro do Tratado so­
bre a natureza humana.
1741. Publicação dos Ensaios morais e políticos,
obra mais fácil e popular com que Hume
pretendia superar o fracasso comercial do
Tratado-, consegue boa acolhida.
1743. D’Alembert: Tratado de dinâmica.
1745- Hume é rejeitado na tentativa de obter a ca­
deira de filosofia moral na Universidade de
Edimburgo. Torna-se preceptor de um jo­
vem marquês que enlouquece.
Morre Jonathan. Swift.
1746. Hume torna-se secretário do general de
Saint-Clair numa fracassada expedição mi­
litar à Bretanha.
Voltaire: Zadig.
1748. Torna-se marechal-de-campo do general de
Saint-Clair numa missão diplomática em
Turim e Viena. Publica os Ensaios filosófi­
cos sobre o entendimento humano, mais tar­
CRONOLOGIA XXV
de rebatizados Investigações sobre o entendi­
mento humano.
Montesquieu: O espírito das leis.
1749. Nasce Goethe.
Buffon inicia a publicação de sua História natural,
1751. De volta à Inglaterra, Hume publica a In­
vestigação sobre os princípios da moral. É-lhe
negada a cadeira de lógica da Universidade
de Edimburgo.
Publicação do primeiro volume da Enciclopédia.
1752. Hume publica os Discursos políticos; reda­
ção dos Diálogos sobre a religião natural.
Torna-se bibliotecário da ordem dos advo­
gados de Edimburgo; consagra-se à redação
de uma grande História da Inglaterra.
1753- Morre Berkeley.
Buffon: Buffon sobre o estilo.
1754. Hume publica o primeiro volume da His­
tória da Inglaterra.
Morre Christian Wolff.
1755- Rousseau: Discurso sobre a desigualdade.
Kant: História geral da natureza e teoria do céu.
1756. Publicação do segundo volume da História
da Inglaterra.
1757• Publica Quatro dissertações.
1759- Publica o volume 3 da História da Inglaterra.
Voltaire: Cândido.
1762. Publica o quarto e último volume da His­
tória da Inglaterra.
Nasce Fichte.
1763. Hume assume o cargo de secretário da em­
baixada inglesa em Paris, onde se torna um
^XVI DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

personagem da moda; contato com os enci­


clopedistas.
1766. Retorna a Londres como protetor de Rous­
seau, que se julga perseguido; as relações en­
tre os dois são de boa amizade, no início,
mas logo degeneram.
1767. Rousseau volta para a França. Para esclare­
cer o desentendimento, Hume redige a "Ex­
posição sucinta sobre a contestação entre o sr.
Hume e o sr Rousseau, com as peças justifica­
tivas”, editada pelos enciclopedistas.
1769- Já rico e famoso, como sempre desejara ser,
Hume retorna a Edimburgo.
Diderot: O sonho de D'Alembert.
UT~7Q. Nascem Beethoven e Hegel.
1776. Morre David Flume, em 25 de agosto.
Rousseau: Devaneios de um caminhante solitário.
Adam Smith: Investigação sobre a natureza e as causas
da riqueza das nações.
1779* Publicação dos Diálogos sobre a religião na­
tural.
NOTA AO TEXTO DESTA TRADUÇAO

Os Diálogos sobre a Religião Natural de David


Hume foram redigidos sob forma de uma longa car­
ta, na qual o personagem Panfilo relata a seu amigo
Hérmipo suas lembranças de uma conversação filo­
sófica que presenciara algum tempo atrás. O tempo
da narrativa não coincide, assim, com o tempo dos
acontecimentos, e Hume não faz uso do recurso —
comum em textos dialógicos — de prefixar os no­
mes dos interlocutores a suas falas, à maneira de um
texto teatral. Contudo, algumas edições recentes deste
livro (em especial as que não se dirigem exclusiva­
mente ao público acadêmico) têm optado por in­
troduzir essa prefixação, que inegavelmente facilita
a leitura e realça a espontaneidade da discussão. Ao
aplicarem, porém, o mesmo procedimento aos co­
mentários do narrador Panfilo, essas edições rom­
pem a coerência do texto, pois Panfilo, como sim­
ples espectador, não tem participação no diálogo:
suas observações sao feitas posteriormente e dirigi-
5ÇXVIII DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

gidas apenas a Hérmipo. Visando conciliar as van­


tagens de uma apresentação dialógica com o respei­
to ao contexto epistolar em que ela se situa, a pre­
sente edição identifica nominalmente as falas dos par­
ticipantes Demea, Cleantes e Filo, distinguindo a nar­
rativa de Panfilo pelo uso de tipos itálicos. A exce­
ção desse recurso meramente tipográfico (e da ne­
cessária modernização da pontuação), esta tradução
é absolutamente fiel ao texto original, segundo a con­
sagrada edição de Norman Kemp Smith. Todas as
notas de rodapé numeradas são de autoria de Hu­
me, sendo as notas editoriais introduzidas por aste­
riscos.

José Oscar de Almeida Marques


DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO
NATURAL
PANFILO A HÉRMIPO

Já se notou, meu caro Hérmipo, que, embora os


filósofos da A.ntigüidade tenham transmitido a maior
parte de seus ensinamentos sob forma de diálogo, esse
método de exposição foi pouco utilizado em épocas pos­
teriores, e raramente teve sucesso nas mãos daqueles
que o experimentaram. Na verdade, uma discussão exa­
ta e sistemática, tal como hoje se requer dos que se de­
dicam ãs investigações filosóficas, conduz naturalmente
o expositor ao estilo metódico e didático, no qual se
pode explicar de imediato e sem preâmbulos qual é o
objetivo visado, procedendo-se, logo em seguida, ã de­
dução das provas que o fundamentam. Parece pouco
natural apresentar um sistema sob forma de conver­
sação; e, se bem que o escritor de diálogos pretenda,
ao afastar-se do estilo direto de exposição, dar um ar
mais livre a seu texto e evitar o aparecimento de au­
tor e leitor, ele se arrisca a uma inconveniência ain­
da maior, fazendo surgir as figuras de pedagogo e dis­
cípulo. Ou então, se ele conduz a disputa dentro de
4 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

um clima natural de companheirismo, introduzindo


uma grande variedade de tópicos e mantendo um equi­
líbrio adequado entre os participantes, ocorre frequen­
temente que muito tempo será gasto em preparações
e transições, de tal modo que a graça e elegância do
diálogo não poderão, ao final, levar o leitor a sentir-
se compensado pela ordem, concisão e rigor que a elas
são sacrificados.
Há, contudo, alguns assuntos aos quais a escrita
em forma de diálogo é especialmente adequada e, ainda
hoje, preferível ao método simples e direto de exposi­
ção. Assim, qualquer tópico de doutrina que seja tão
óbvio a ponto de quase não admitir disputa, mas ao
mesmo tempo tão importante a ponto de jamais ser
demasiado repeti-lo, parece requerer um tratamento
desse tipo, no qual a novidade do estilo pode compen­
sar a trivialidade do assunto, a vivacidade da conver­
sação reforçar o preceito e a diversidade de pontos de
vista apresentados pelos vários personagens afastar a
aparência de tédio e redundância.
Por outro lado, qualquer questão filosófica que se­
ja tão obscura e incerta a ponto de não ser possível
à razão humana chegar a uma conclusão definitiva
sobre ela parece levar-nos naturalmente (se é que, afi­
nal, devemos ocupar-nos dela) ao estilo de diálogo e
conversação. Nos casos em que ninguém pode razoa­
velmente estar seguro épermissível a divergência en­
tre pessoas razoáveis. Opiniões opostas, mesmo que não
levem a qualquer decisão, proporcionam um agradá­
vel entretenimento; e, se o assunto é curioso e interes­
sante, o livro de uma certa forma nos convida á par­
ticipação, unindo assim os dois maiores e mais puros
prazeres da vida humana: estudo e convivência social.
PANFILO A HÉRMIPO 5
Todas essas circunstâncias estão afortunadamente
presentes no tema da religião natural. Que verdade
poderia ser tão óbvia, tão certa, como a existência de
um Deus, reconhecida mesmo pelas épocas mais igno­
rantes, e para a qual os gênios mais refinados têm-se
empenhado ambiciosamente em fornecer novas pro­
vas e argumentos? Que verdade é tão importante quan­
to esta, que é o sustentáculo de todas as nossas espe­
ranças, o fundamento mais seguro da moralidade, o
apoio mais firme da sociedade e o único princípio que
nem por um momento deve estar ausente de nossos
pensamentos e meditações? E, no entanto, ao tratar
dessa verdade óbvia e importante, quão obscuras são
as questões que surgem acerca da natureza desse Ser
Divino, seus atributos, seus decretos, seu plano provi­
dencial! Estas questões sempre foram objeto de dispu­
tas entre os homens e, relativamente a elas, a razão
humana jamais chegou a alguma conclusão segura.
Apesar disso, trata-se de questões de tão grande inte­
resse que somos incapazes de refrear nossa incansável
curiosidade sobre elas, mesmo que nossas pesquisas mais
acuradas não tenham produzido até agora senão dú­
vidas, incertezas e contradições.
Isso foi o que tive oportunidade de observar al­
gum tempo atrás, durante a parte do verão que pas­
sei, como de hábito, em casa de Cleantes, <ao presen­
ciar suas conversas com Filo e Demea, das quais já
lhe transmiti recentemente um relato algo imperfei­
to. Sua curiosidade, como você me manifestou na oca­
sião, foi tão estimulada pelo assunto que me sinto obri­
gado a entrar em detalhes mais exatos de seus raciocí­
nios e a apresentar os diversos sistemas que eles desen­
volveram em relação a este tópico tão delicado que
6 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

é a- religião natural. O contraste marcante entre suas


personalidades fez com que você alimentasse expecta­
tivas ainda mais altas, ao opor a rigorosa inclinação
filosófica de Cleantes ao descuidado ceticismo de Filo,
ou comparar as disposições de cada um deles ã orto­
doxia rígida e inflexível de Demea. Minha pouca ida­
de tornou-me um simples ouvinte de suas disputas, e
a curiosidade natural à juventude fez com que toda
a cadeia e o nexo de seus argumentos se imprimissem
em minha memória de maneira tão profunda que, se­
gundo espero, a narração não ira omitir ou ohscure-
cer qualquer parte significativa deles.
PARTE I
Depois de ter-me juntado ao grupo, que encontrei
reunido na biblioteca de Cleantes, Demea cumprí-
mentou-o pelo grande zelo que ele dedicava ã minha
educação e pela sua incansável perseverança e fideli­
dade em relação a todos os seus amigos.

Demea: O pai de Panfílo foi seu amigo íntimo,


o filho é seu discípulo e pode mesmo ser considera­
do seu filho adotivo, se julgarmos pelos cuidados que
você dedica à tarefa de educá-lo em todos os campos
úteis da literatura e da ciência. E como estou persua­
dido de que sua prudência não é menor que sua de­
dicação, vou comunicar-lhe um princípio que segui
em relação a meus próprios filhos, para verificar até
que ponto ele concorda com as práticas que você ado­
ta. O método que sigo na educação deles baseia-se
no que disse um autor da Antigiúdade: “Os estudan­
tes de filosofia devem primeiro aprender lógica, de­
10 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

pois ética, em seguida física, e só por último devem


estudar a natureza dos deuses1.” Segundo ele, a ciên­
cia da teologia natural, por ser a mais profunda e
difícil de todas, exige dos estudantes um juízo ple­
namente amadurecido, e só pode ser confiada sem
perigo às mentes já cultivadas em todas as demais
disciplinas.
Filo: Será possível que você demore tanto tem­
po para começar a ensinar os princípios da religião
a seus filhos? Não há nisso o perigo de que eles ve­
nham a negligenciar ou rejeitar completamente es­
sas opiniões, das quais quase não terão ouvido falar
durante todo o curso de sua educação?
Demea: E apenas enquanto ciência, sujeita ao
raciocínio humano e à discussão que eu protelo o
estudo da teologia natural. Minha principal preocu­
pação é acostumar suas mentes desde cedo à devo­
ção e, através de constante aconselhamento e instru­
ção — como também, segundo espero, através do
exemplo —, imprimir profundamente em seus jo­
vens espíritos o hábito da reverência para com to­
dos os princípios da religião. Além disso, à medida
que vão percorrendo todas as outras ciências, cha­
mo sua atenção para a incerteza de cada uma delas,
para as eternas disputas entre os homens, para a obs­
curidade de toda filosofia e para as conclusões des­
propositadas e ridículas a que alguns dos maiores
gênios chegaram a partir dos princípios da mera ra­
zão humana. Assim, depois de ter adestrado suas
mentes na prática de uma apropriada submissão e

1. Crísipo, de acordo com Plutarco, De Staicorum repug-


nantis.
PARTE I 11
modéstia, não hesito mais em introduzi-los nos maio­
res mistérios da religião, sem temer aquela presun­
çosa arrogância da filosofia, que poderia levá-los a
rejeitar as mais bem fundadas doutrinas e opiniões.
Filo: Sua precaução em incutir desde cedo a de­
voção nas mentes de seus filhos é sem dúvida razoá­
vel, e é exatamente o que se requer nesta era profa­
na e irreligiosa. Mas o que mais me admira em seu
plano de educação é o seu método de tirar proveito
dos próprios princípios da filosofia e da erudição,
os quais, ao inspirar o orgulho e a auto-suficiência,
levam comumente, em todas as épocas, à destruição
dos princípios religiosos. De fato, notamos que as
pessoas vulgares, que não estão familiarizadas com
a ciência ou com a investigação rigorosa, são habi­
tualmente levadas, pela observação das infindáveis
disputas dos sábios, a desprezar por completo a fi­
losofia e, em consequência, a aferrar-se cada vez mais
tenazmente aos grandes tópicos de teologia que lhes
foram ensinados. E aqueles que adentram um pou­
co o estudo e a investigação, ao encontrar muitas
aparências de evidência nas mais recentes e extrava­
gantes doutrinas, passam a supor que nada é dema­
siado difícil para a razão humana e, rompendo ar­
rogantemente todas as barreiras, profanam os mais
íntimos santuários do templo. Mas, e nisto espero
contar com a concordância de Cleantes, uma vez que
tenhamos deixado de lado a ignorância, que é o re­
médio mais eficaz, resta ainda um recurso para im­
pedir essa liberdade profana. Que os princípios de
Demea sejam postos em prática e difundidos! Tor-
nemo-nos plenamente conscientes da debilidade, ce­
gueira e estreiteza da razão humana. Que se dê a
12 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

devida atenção às incertezas e infindáveis contradi­


ções que dela provêm, mesmo em assuntos da vida
e da prática cotidianas. Tenhamos presentes diante
de nós os erros e ilusões de nossos próprios senti­
dos, as dificuldades insuperáveis que acompanham
os primeiros princípios de todos os sistemas, as con­
tradições que decorrem das próprias idéias de ma­
téria, causa e efeito, extensão, espaço, tempo, movi­
mento e, numa palavra, quantidade, em todos seus
aspectos, que é o objeto da única ciência que pode
com justiça aspirar a alguma certeza ou evidência.
Quando esses tópicos são mostrados em suas verda­
deiras cores, tal como o fazem alguns filósofos e qua­
se todos os teólogos, quem poderá preservar um grau
suficiente de confiança nessa frágil faculdade da ra­
zão a ponto de sentir qualquer respeito por suas con­
clusões sobre tópicos tão elevados, tão abstratos, tão
distantes da vida e da experiência cotidianas? Quando
a coesão das partes de uma pedra, ou mesmo a com­
posição de partes que a torna uma coisa extensa,
quando esses objetos familiares, repito, são inexpli­
cáveis e contêm aspectos tão incompatíveis e con­
traditórios, com que segurança poderemos decidir
acerca da origem dos mundos ou rastrear sua histó­
ria de eternidade em eternidade?

Enquanto Filo pronunciava essas palavras, pude


observar um sorriso nos rostos de Demea e Cleantes.
O de Demea parecia transmitir uma franca satisfa­
ção com as doutrinas expostas, mas nas feições de
Cleantes pude distinguir um ar astucioso, como se ele
tivesse percebido algum gracejo ou calculada malícia
no raciocínio de Filo.
PARTE I 13
Cleantes: Assim, o que você propõe, Filo, é
que a fé religiosa seja edificada sobre o ceticismo fi­
losófico; e você julga que, se a certeza ou evidência
for expulsa de todos os outros campos de investiga­
ção, ela se refugiará integralmente nessas doutrinas
teológicas, adquirindo aí uma força e autoridade su­
periores. Saberemos logo mais, quando terminar esta
reunião, se o seu ceticismo é tão absoluto e sincero
como você pretende; veremos então se você se reti­
rará pela porta ou pela janela, e se realmente duvi­
da de que seu corpo será submetido à gravidade ou
de que pode machucar-se ao cair, como supõe a opi­
nião popular derivada de nossos sentidos falaciosos
e de nossa ainda mais falaciosa experiência. E estas
considerações, Demea, são suficientes para ameni­
zar, segundo creio, nossa má-vontade em relação a
essa seita humorística dos céticos. Se eles estão real­
mente falando a sério, não incomodarão o mundo
por muito mais tempo com suas dúvidas, manhas
e disputas; se, porém, se trata de mera pilhéria, tal­
vez não tenham muita graça, mas jamais constitui­
rão um real perigo, quer para o Estado, para a filo­
sofia ou para a religião.
Na realidade, Filo, parece certo que, embora um
homem, num acesso temperamental e após intensa
reflexão sobre as muitas contradições e imperfeições
da razão humana, possa renunciar inteiramente a to­
da crença e opinião, é-lhe impossível perseverar nesse
ceticismo total, ou expressá-lo em sua conduta, mes­
mo durante algumas poucas horas. Os objetos exte­
riores impõem-se à sua atenção, as paixões o solici­
tam, sua melancolia filosófica se dissipa e, ainda que
exerça o mais violento esforço sobre suas inclinações,
14 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

não será capaz de manter por mais tempo sua débil


aparência de ceticismo. E qual seria a razão para im­
por a si mesmo uma tal violência? Este é um ponto
acerca do qual jamais lhe será possível justificar-se
de maneira consistente com seus princípios céticos;
de tal modo que, no final das contas, nada pode ser
mais ridículo do que os princípios dos antigos pir-
rônicos, caso eles tenham verdadeiramente buscado,
como se diz, estender a todos os campos o mesmo
ceticismo que aprenderam, nas pregações de sua es­
cola, e que deveríam ter confinado a esses limites.
Há, sob este ponto de vista, uma grande seme­
lhança entre as seitas dos estóicos e dos pirrônicos,
apesar de terem sido antagonistas perpétuos. Am­
bas parecem, estar fundadas nesta máxima errônea:
que aquilo que alguém pode fazer algumas vezes e
em alguns estados de espírito pode fazê-lo sempre
e em qualquer estado de espírito. Quando o espíri­
to se eleva, por meio da reflexão estóica, até um en­
tusiasmo sublime pela virtude e se excita fortemen­
te com alguma espécie dê honra ou de bem públi­
co, esse sublime sentido de dever não será sobrepu­
jado pelas dores ou sofrimentos corporais mais ex­
tremos; e talvez seja possível, por esse meio, até mes­
mo sorrir e regozijar-se em meio à tortura. Se isto
pode algumas vezes ocorrer, de fato e na realidade,
com muito mais razão será possível a um filósofo,
em sua escola ou mesmo em seu gabinete, provocar
em si mesmo um tal grau de entusiasmo e suportar,
na imaginação, a dor mais aguda ou o mais calami­
toso evento que possa conceber. Mas como poderá
ele sustentar esse próprio entusiasmo? Sua propen­
são espiritual afrouxa e não pode ser voluntariamente
restabelecida, distrações afastam-no de seu caminho,
PARTE I 15
infortúnios o atingem inesperadamente, e a condi­
ção do filósofo decai gradualmente até chegar à do
plebeu.
Filo: Aceito sua comparação entre estóicos e cé­
ticos. Mas pode-se ao mesmo tempo observar que,
embora a mente não consiga, no estoicismo, susten­
tar os vôos mais altos da filosofia, ela ainda preser­
va, mesmo na queda mais profunda, algo de sua dis­
posição anterior; e os efeitos do raciocínio estóico
vão manifestar-se em sua conduta cotidiana e em to­
do o teor de suas ações. As escolas da Antigtiidade,
particularmente a de Zenão, produziram exemplos
de virtude e constância que parecem espantosos aos
tempos presentes.

Apenas Sabedoria fútil e falsa Filosofia


Mas podiam, num grato feitiço, encantar
A dor por um instante, ou a angústia; e excitar
A Esperança ilusória, ou armar o peito obstinado
De tenaz Paciência, como se de aço tríplice.*

Do mesmo modo, se um homem habituou-se às con­


siderações céticas sobre a incerteza e os estreitos li­
mites da razão, ele não as esquecerá inteiramente
quando dirigir sua reflexão para outros assuntos; ao
contrário, em todos os seus princípios e raciocínios
filosóficos — embora eu não ouse dizer que também

*Vain Wisdom all and false Philosophy, / Yet with a plea­


sing sorcery could charm / Pain, for a while, or anguish; and
excite / Fallacious Hope, or arm the obdurate breast / With
stubborn Patience, as with triple steel.
(Milton, Paraíso Perdido, livro IL)
16 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

em sua conduta cotidiana — ele se revelará como


diferente daqueles que nunca formaram quaisquer
opiniões sobre o assunto, ou que alimentaram sen­
timentos mais favoráveis à razão humana.
Admito que, seja qual for o ponto a que alguém
leve seus princípios especulativos céticos, ele deve
agir, viver e comunicar-se como qualquer outra pes­
soa; e não está obrigado a dar qualquer outra razão
para sua conduta além da absoluta necessidade em
que se encontra de assim proceder. Se ele chega a
estender essas especulações para além do ponto ao
qual essa necessidade o obriga, e passa a filosofar so­
bre tópicos naturais ou morais, é porque se sente se­
duzido pelo prazer e satisfação que encontra ao ocu­
par seu tempo dessa forma. Ele considera, além dis­
so, que todas as pessoas, mesmo em sua vida diária,
são obrigadas a compartilhar mais ou menos dessa
filosofia; que experimentamos, desde nossa mais ten­
ra infância, um contínuo progresso na formação de
princípios mais gerais de conduta e raciocínio; que,
quanto maior a experiência que adquirimos e mais
forte a razão da qual estamos dotados, tanto maior
é a generalidade e o alcance que atribuímos a nos­
sos princípios; e que aquilo que denominamos filo­
sofia nada mais é que uma operação mais regular e
metódica desse mesmo tipo. Filosofar sobre tais tó­
picos não se distingue essencialmente dos raciocínios
que realizamos na vida cotidiana, e, em função de
seu modo mais exato e escrupuloso de proceder, po­
demos esperar de nossa filosofia uma estabilidade
maior, se é que não uma maior veracidade.
Mas quando estendemos o olhar para além dos
PARTE I 17
assuntos humanos e das propriedades dos corpos ao
nosso redor, e dirigimos nossas especulações para as
duas eternidades — antes e depois do estado atual
das coisas, para a criação e formação do universo,
para a existência e as propriedades dos espíritos, pa­
ra os poderes e operações de um Espírito universal
onipotente, onisciente, imutável, infinito e incom­
preensível, que existe sem ter um começo nem um
fim, é preciso que nos tenhamos afastado muitíssi­
mo de qualquer tendência ao ceticismo, por míni­
ma que seja, para não experimentarmos o temor de
que estamos aqui adentrando uma região que se si­
tua muito além do alcance de nossas faculdades.
Quando nossas especulações se restringem aos ne­
gócios, à moral ou à política, podemos a cada ins­
tante apelar para o senso comum e para a experiên­
cia, que fortalecem nossas conclusões filosóficas e
removem (em parte, ao menos) a desconfiança que
acertadamente experimentamos frente a todo racio­
cínio demasiado sutil e refinado. No caso dos racio­
cínios teológicos, contudo, não dispomos dessa van­
tagem; e, ao mesmo tempo, estamos lidando com
objetos que são sem dúvida excessivamente vastos
para que possamos apreendê-los, e que, de todos, são
os que mais esforço exigem para que se tornem fa­
miliares à nossa compreensão. Somos como foras­
teiros em uma terra estranha, aos quais tudo parece
suspeito e que permanentemente correm o risco de
transgredir as leis e os costumes das pessoas com
quem convivem e se relacionam. Não sabemos em
que medida deveriamos, nesses assuntos, confiar em
nossos métodos usuais de raciocínio, dado que não
podemos responder por eles nem mesmo na vida
18 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

ordinária e no domínio ao qual eles são especialmen­


te apropriados, sendo inteiramente guiados, em seu
emprego, por uma espécie de instinto ou necessidade.
Todos os céticos alegam que a razão, se consi­
derada em abstrato, fornece argumentos irrespondí­
veis contra si mesma, e que jamais poderiamos sus­
tentar alguma convicção ou certeza, sobre qualquer
assunto, se não fosse pelo fato de que os raciocínios
céticos, sendo tão refinados e sutis, são incapazes de
se contrapor aos argumentos mais sólidos e natu­
rais, derivados dos sentidos e da experiência. Mas
é claro que, no momento em que nossos argumen­
tos perdem essa vantagem e se afastam da vida co­
mum, eles se colocam em pé de igualdade com o
ceticismo mais refinado e não podem mais opor-se
a ele e contrabalançá-lo. Ambos passam a ter o mes­
mo peso, e a mente é levada a permanecer em sus­
penso entre eles. E é exatamente essa suspensão, ou
equilíbrio, que constitui o triunfo do ceticismo.
Cleantes: Noto porém, com relação a você,
Filo, e a todos os céticos especulativos, que sua dou­
trina e prática estão em franco desacordo, tanto nos
pontos mais abstratos da teoria quanto na conduta
da vida diária. Você aceita a evidência sempre que
esta se lhe manifesta, não obstante seu pretenso ce­
ticismo. E noto, também, que muitos da sua seita
são tão peremptórios quanto aqueles que emitem as
mais expressas declarações de certeza e segurança.
Não seria ridículo, na verdade, pretender rejeitar a
explicação oferecida por Newton para o admirável
fenômeno do arco-íris sob o argumento de que essa
explicação envolve uma dissecação minuciosa dos
raios de luz, obviamente muito refinada para a com­
preensão humana? E que diriamos a alguém que, sem
PARTE I 19
ter nada em especial a objetar aos argumentos de Co-
pérnico e Galileu em favor do movimento da Ter­
ra, se recusasse a aceitá-los com base no princípio
geral de que tais assuntos são demasiado grandiosos
e inatingíveis para serem explicados pela estreita e
enganosa razão da humanidade?
Como você bem observou, há certamente um
tipo de ceticismo brutal e ignorante, que inspira às
pessoas ordinárias um preconceito geral contra aquilo
que não podem entender com facilidade, e as faz re­
jeitar todo princípio que exija um raciocínio elabo­
rado para sua prova e estabelecimento. Essa espécie
de ceticismo é fatal para o conhecimento, não para
a religião, pois se vê que aqueles que o professam
com mais fervor dão seu assentimento, não apenas
às grandes verdades do teísmo e da teologia natural,
mas até às doutrinas mais absurdas que a supersti­
ção tradicional lhes tenha recomendado. Eles creem
firmemente em bruxas, embora não acreditem nem
deem atenção à mais simples proposição de Eu eli­
des. Mas os céticos filosóficos e refinados sucumbem
a uma inconsistência de natureza oposta. Eles levam
suas investigações aos recantos mais intrincados da
ciência e, a cada passo, dão seu assentimento em pro­
porção à evidência que encontram. São até mesmo
obrigados a reconhecer que os objetos mais enigmá­
ticos e remotos são aqueles que a filosofia explica
melhor. A luz foi realmente dissecada, e o autênti­
co sistema dos corpos celestes foi descoberto e veri­
ficado. Mas a nutrição dos organismos pelos alimen­
tos constitui ainda um mistério inexplicável, assim
como é incompreensível a coesão das partes da ma­
téria. Esses céticos são forçados, portanto, em todas
20 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

as questões, a considerar separadamente cada evidên­


cia particular, e a conformar seu assentimento ao
grau preciso de evidência existente. Essa é sua práti­
ca em todas as ciências naturais, matemáticas, mo­
rais e políticas. E por que nao fazer o mesmo, eu
pergunto, no caso da teologia e da religião? Por que
apenas as conclusões desta última espécie deveriam
ser rejeitadas com base na suposição geral de uma
insuficiência da razão humana, sem qualquer discus­
são específica da evidência pertinente? Não consti­
tui essa conduta tao desigual uma prova manifesta
de preconceito e obsessão?
Você diz que nossos sentidos são enganadores,
e que nossas idéias — mesmo dos objetos mais fa­
miliares: extensão, duração, movimento — estão
cheias de disparates e contradições. Desafia-me a re­
solver as dificuldades ou reconciliar as oposições que
nelas se encontram. Não tenho capacidade para uma
tarefa tão vasta, nem tempo para realizá-la; e perce­
bo que ela é supérflua. Sua própria conduta, em to­
das as circunstâncias, refuta os princípios que você
proclama e demonstra a mais firme confiança nos
ditames usuais da ciência, da moral, da prudência
e do comportamento.
Jamais concordarei com a severa opinião daquele
autor celebrado2, para quem os céticos são uma sei­
ta, não de filósofos, mas apenas de mentirosos. Mas
posso afirmar (sem ofender, espero) que eles formam
uma seita de galhofeiros e humoristas. De minha par­
te, porém, sempre que me sentir inclinado ao pra­
zer e à diversão, procurarei sem dúvida um entrete-

2. L’Art de penser.
PARTE I 21
nimento de natureza menos complicada e obscura.
Uma comédia, um romance ou, no máximo, um li­
vro de história parecem constituir uma recreação
mais natural do que tais sutilezas e abstrações meta­
físicas.
Em vão procurará o cético estabelecei" uma di­
ferença entre a ciência e a vida cotidiana, ou entre
uma ciência e outra. Os argumentos que se empre­
gam em todas elas, se corretos, são de natureza si­
milar e contêm a mesma força e evidência. E, se hou­
ver alguma diferença entre elas, a vantagem estará
inteiramente do lado da teologia e da religião natu­
ral. Muitos princípios da mecânica baseiam-se em
raciocínios extremamente complicados; não obstante,
ninguém que aspire ao conhecimento científico, nem
sequer um cético especulativo, alega manter a me­
nor dúvida sobre eles. O sistema copernicano con­
tém o paradoxo mais surpreendente e mais contrá­
rio às nossas concepções naturais, às aparências e aos
nossos próprios sentidos; apesar disso, até os mon­
ges e os inquisidores estão hoje coagidos a suspen­
der sua oposição a ele. E por que deveria Filo, um
homem de espírito tão liberal e instruído, abrigar
indiscriminadamente escrúpulos gerais com relação
à hipótese religiosa, que se funda nos argumentos
mais simples e óbvios, e que, a menos que se defronte
com obstáculos artificiais, goza de tão fácil acesso
e admissão à mente humana?
E aqui podemos observar [dirigindo-se a Demea],
uma circunstância bastante curiosa na história das
ciências. Após a união da filosofia com a religião
popular, à época do estabelecimento inicial da reli­
gião cristã, nada foi mais usual, entre os que ensi-
22 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

navam a religião, do que as pregações contra a ra­


zão, contra os sentidos e contra todos os princípios
derivados puramente da indagação e investigação hu­
manas. Todos os tópicos dos antigos acadêmicos fo­
ram adotados pelos Padres da Igreja, e desde então
foram propagados, durante várias eras, a partir de
todas as escolas e púlpitos da Crístandade. Os re­
formadores abraçaram os mesmos princípios de ra­
ciocínio ou, antes, de pregação; e todos os panegíri­
cos sobre a excelência da fé estavam infalivelmente
mesclados de alguns severos ataques satíricos à ra­
zão natural. E mesmo um célebre prelado3 da Igre­
ja Romana, um homem de vasta erudição que es­
creveu uma demonstração do cristianismo, compôs
também um tratado que incorpora todas as astúcias
do mais atrevido e deslavado pirronismo. Locke pa­
rece ter sido o primeiro cristão que se aventurou
abertamente a afirmar que a fé não era nada mais
que uma espécie de razão., que a religião era apenas
um ramo da filosofia e que uma cadeia de argumen­
tos, similar à que servia para estabelecer qualquer
verdade em moral, política ou física, era sempre em­
pregada na descoberta de todos os princípios de teo­
logia, natural e revelada. O mau uso que Bayle e ou­
tros libertinos fizeram do ceticismo filosófico dos
Padres da Igreja e dos primeiros reformadores difun­
diu ainda mais o sentimento judicioso de Locke. De
um certo modo, todos aqueles que aspiram ao ra­
ciocínio e à filosofia admitem hoje que ateu e céti­
co são quase sinônimos. E, assim como é certo que
ninguém pode estar falando a sério ao se colocar en-

3. Mons. Huer.
PARTE I 23
tre os últimos, com muito gosto eu esperaria que fos­
sem igualmente escassos os que seriamente se in­
cluem entre os primeiros.
Filo: Você não se lembra da excelente afirma­
ção de Lord Bacon sobre esse tópico?
Cleantes: Que a filosofia, quando é pouca, faz
do homem um ateu, e quando é muita, converte-o
à religião.
Filo: Essa também é uma observação muito ju-
diciosa, mas o que tenho em vista é outra passagem,
na qual, tendo-se referido ao insensato que servia a
Davi e que dissera em seu coração que não há Deus,
esse grande filósofo observa que os ateus de hoje em
dia revelam uma dupla dose de insensatez, pois nao
se limitam a dizer em seus corações que não há Deus,
mas proferem igualmente com seus lábios essa im­
piedade, tornando-se com isso culpados de múltipla
indiscrição e imprudência. Pessoas desse tipo, por
mais que estejam falando a sério, não podem ser,
parece-me, muito temíveis.
Mas embora você me inclua nessa classe de in­
sensatos, não posso deixar de referir-me a uma ob­
servação que me ocorre em relação à história do ce­
ticismo religioso e irreligioso com a qual você nos
brindou. Parece-me que há fortes sintomas de opor­
tunismo clerical ao longo de todo esse processo. Du­
rante as épocas de ignorância, tais como as que se
seguiram à dissolução das antigas escolas, os sacer­
dotes perceberam que o ateísmo, o deísmo ou qual­
quer tipo de heresia só podiam provir do questio­
namento presunçoso das opiniões recebidas e da
crença de que a razão humana estava à altura de qual­
quer tarefa. A doutrinação tinha, então, uma pode­
24 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

rosa influência sobre os espíritos das pessoas e qua­


se se igualava em eficácia àquelas recomendações dos
sentidos e do senso comum pelas quais até o cético
mais resoluto deve deixar-se governar. Mas nos tem­
pos presentes — nos quais a influência da doutrina­
ção encontra-se muito diminuída e as pessoas, gra­
ças a uma comunicação mais livre no nível mundial,
aprenderam a comparar os princípios popularmen­
te aceitos nas diversas nações e épocas — nossos sa­
gazes teólogos modificaram inteiramente seu siste­
ma filosófico e passaram a falar a linguagem dos es-
tóicos, platônicos e peripatéticos, e não a dos pirrô-
nicos e acadêmicos. Se não confiarmos na razão hu­
mana, não nos restará agora qualquer outro princí­
pio para conduzir-nos à religião. E assim, esses reve­
rendos senhores — céticos em uma época, dogmáti­
cos em outra — nao hesitam em adotar seja qual for
o sistema que melhor lhes convenha para obter as­
cendência sobre a humanidade, convertendo-o em
princípio favorito e dogma assentado.
Cleantes: E muito natural que as pessoas ado­
tem princípios pelos quais julgam melhor defender
suas doutrinas, não sendo necessário falar em opor­
tunismo clerical para explicar uma atitude tão ra­
zoável. E, com certeza, nada poderia fortalecer mais
a suposição de que um dado conjunto de princípios
é correto e digno de aceitação do que observar que
eles levam à confirmação da verdadeira religião e ser­
vem para derrotar as maquinações dos ateus, liber­
tinos e livres-pensadores de toda espécie.
PARTE II
Demea: Devo confessar que muito me sur­
preende a maneira pela qual você, Cleantes, condu­
ziu seu argumento ao longo da conversação. Pelo teor
de seu discurso, poder-se-ia imaginar que você esti­
vesse defendendo a existência de Deus contra os so-
fismas dos ateus e infiéis, e precisasse converter-se
em paladino desse princípio fundamental de toda
religião. Mas isto, espero, não está de modo algum
em questão entre nós. Estou convencido de que nin­
guém ou, pelo menos, ninguém dotado de bom sen­
so jamais manteve alguma dúvida diante de uma ver­
dade tão certa e auto-evidente. A questão não diz
respeito à existência mas à natureza, de Deus. E esta,
eu afirmo, é-nos completamente incompreensível e
desconhecida, dada a fragilidade do entendimento
humano. A essência dessa mente suprema, seus atri­
butos, seu modo de existência e a natureza mesma
de sua duração; esses e todos os outros aspectos par­
ticulares de um ser tão divino são misteriosos para
28 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA TURAL

os seres humanos. Criaturas finitas, débeis e cegas


que somos, devemos humilharmos diante de sua au­
gusta presença e, conscientes de nossas falhas, ado­
rar em silêncio suas infinitas perfeiçoes, que os olhos
não podem ver nem os ouvidos escutar e que ao co­
ração humano não é dado conceber. Uma espessa
névoa oculta-as da curiosidade humana, e tentar pe­
netrar nessa obscuridade sagrada constitui profana­
ção. A temeridade de perscrutar sua natureza e es­
sência, desígnios e atributos, aproxima-se, de fato,
da atitude ímpia de negar sua existência.
Mas para que você não pense que minha devo­
ção levou aqui a melhor sobre minha filosofia^ vou
apoiar minha opinião, se é que ela precisa de apoio,
na declaração de uma grande autoridade. Eu pode­
ría citar todos os teólogos que, desde quase a funda­
ção da Cristandade, já trataram deste ou de qualquer
outro assunto teológico, mas vou limitar-me, no mo­
mento, a um que é célebre tanto pela devoção co­
mo pela filosofia. Refiro-me ao padre Malebranche
que, segundo me recordo, assim se exprimiu4:
“Deve-se dizer que Deus é um espírito não tanto
para expressar positivamente o que ele é, mas para
indicar que ele não é matéria. Ele é um Ser infinita­
mente perfeito — disso não podemos duvidar. Mas,
do mesmo modo que não devemos Ímaginá-lo, mes­
mo supondo-o corpóreo, como revestido de um cor­
po humano, como afirmaram os antropomorfistas,
sob o pretexto de que essa é a figura mais perfeita
de todas, também não devemos supor que o espíri­
to de Deus entretém idéias humanas ou se asseme­

4. Recherche de la vérité, liv. 3, cap. 9.


PARTE II 29
lha de algum modo a nosso espírito, sob o pretexto
de que não conhecemos algo mais perfeito que o es­
pírito humano. Devemos antes acreditar que, assim
como ele contém as perfeiçoes da matéria sem ser
material . . . ele também contém as perfeiçoes dos
espíritos criados sem ser espírito, tal como conce­
bemos o espírito; e que seu verdadeiro nome é Aquele
que éy ou, em outras palavras, o Ser sem qualquer
restrição, Todo o Ser, o Ser infinito e universal.”
Filo: Em face de tão grande autoridade, como
essa que você, Demea, invocou, e de mil outras que
você poderia invocar, parecería ridículo de minha
parte acrescentar minha simpatia ou expressar mi­
nha aprovação à sua doutrina. Mas é claro que, quan­
do esses assuntos são tratados por pessoas razoáveis,
o que está em questão jamais pode ser a existência,
mas apenas a natureza de Divindade. Como você
bem observou, a primeira verdade é inquestionável
e auto-evidente. Nada existe sem uma causa, e a causa
original deste universo (qualquer que ela seja) nós
a denominamos Deus, e lhe atribuímos devotamen-
te toda sorte de perfeiçoes. Quem quer que hesite
diante desta verdade fundamental merece todas as
punições que podem ser infligidas entre filósofos,
a saber, o máximo de ridículo, desprezo e desapro­
vação. Dado, porém, que toda perfeição é inteiramen­
te relativa, jamais devemos imaginar que compreen­
demos os atributos desse Ser divino, ou supor que
suas perfeiçoes têm alguma analogia ou semelhança
com as perfeiçoes da criatura humana. Sabedoria,
pensamento, propósito, conhecimento — tudo isto
nós lhe atribuímos com justiça apenas porque tais
palavras são honrosas entre os homens, e não dis­
30 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

pomos de outra linguagem ou de outros conceitos


pelos quais pudéssemos expressar nossa adoração por
ele. Mas é preciso que tenhamos cuidado para não
supor que nossas idéias correspondam de algum mo­
do a suas perfeições, ou que seus atributos tenham
alguma semelhança com essas qualidades tal como
se manifestam nos seres humanos. Ele é infinitamen­
te superior à nossa compreensão e visão limitadas,
sendo muito mais um objeto de culto no templo do
que de disputa nas escolas.
Na realidade, Cleantes, não é necessário recor­
rer àquele ceticismo afetado que tanto o desagrada
para chegarmos a esta conclusão. Nossas idéias só
chegam até onde chega nossa experiência, e não te­
mos experiência de atributos ou procedimentos di­
vinos. Não preciso levar meu silogismo à conclu­
são — você mesmo pode extraí-la. E agrada-me mui­
tíssimo (também a você, espero) que o raciocínio
justo e a sólida devoção coincidam, aqui, em suas
conclusões, e que ambos estabeleçam a natureza ado-
ravelmente misteriosa e incompreensível do Ser Su­
premo.
Cleantes: [dirigindo-se a Demea\: Para não per­
der tempo em rodeios, e menos ainda em réplicas
à piedosa pregação de Filo, vou explicar rapidamente
como vejo este assunto. Olhem para o mundo ao
redor, contemplem o todo e cada uma de suas par­
tes: vocês verão que ele nada mais é que uma gran­
de máquina, subdividida em um número infinito de
máquinas menores que, por sua vez, admitem no­
vamente subdivisões em um grau que ultrapassa o
que os sentidos e faculdades humanas podem des­
cobrir e explicar. Todas essas diversas máquinas, e
PARTE II 31
mesmo suas partes mais diminutas, ajustam-se umas
às outras com uma precisão que leva ao êxtase to­
dos aqueles que já as contemplaram. A singular adap­
tação dos meios aos fins, acr longo de toda a Natu­
reza, assemelha-se exatamente, embora exceda-os em
muito, aos produtos do engenho dos seres humanos,
de seu desígnio, pensamento, sabedoria e inteligên­
cia. E, como os efeitos são semelhantes uns aos ou­
tros, somos levados a inferir, portanto, em confor­
midade com todas as regras da analogia, que tam­
bém as causas são semelhantes, e que o Autor da Na­
tureza é de algum modo similar ao espírito huma­
no, embora possuidor de faculdades muito mais vas­
tas, proporcionais à grandeza do trabalho que ele rea­
lizou. E por meio deste argumento a. posteriori —
e apenas por meio dele — que chegamos a provar,
a um só tempo, a existência de uma Divindade e sua
semelhança com a mente e inteligência humanas.
Demea: Tomo a liberdade, Cleantes, de dizer-
lhe que já de início não posso aceitar sua conclusão
sobre a semelhança da Divindade com o ser huma­
no, e muito menos aprovar os meios pelos quais vo­
cê se esforça para estabelecê-la. Ora vejam! Nenhu­
ma demonstração dedutiva da existência de Deus!
Nenhum argumento formal! Nenhuma prova a, prio­
ri. Será que todas as demonstrações nas quais os fi­
lósofos até agora tanto insistiram são apenas falácias,
apenas sofismas? Será que não podemos, neste as­
sunto, ir além da experiência e da probabilidade? Não
direi que isso é uma traição à causa da Divindade,
mas certamente, com essa presunçosa franqueza, você
está dando aos ateístas uma vantagem que eles ja­
mais poderiam obter com o mero auxílio do argu­
mento e raciocínio.
32 ■ .DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Filo: O que me causa mais escrúpulos neste as­


sunto não e tanto o fato de que todos os argumen­
tos religiosos tenham sido reduzidos por Cleantes
à experiência, mas sim que, mesmo nessa categoria
inferior, eles sequer pareçam ser dos mais certos e
incontestáveis. Já observamos milhares e milhares de
vezes que uma pedra cai, que o fogo queima, que
a terra tem solidez; e quando uma nova instância
desse tipo se apresenta, fazemos sem hesitar a infe­
rência costumeira. A exata similaridade dos casos dá-
nos uma segurança perfeita da ocorrência de um
evento similar; e jamais se procura ou se deseja uma
evidência mais forte do que essa. Mas sempre que
se afasta, por pouco que seja, da similaridade dos
casos, diminui-se proporcionalmente a evidência; e
ela pode afinal ser reduzida a uma analogia muito
tênue, reconhecidamente sujeita a erro e incerteza.
Após termos observado a circulação do sangue em
criaturas humanas, não temos dúvida de que ela
ocorre em Tício e Mévio, mas a circulação do san­
gue em sapos e peixes conduz, por analogia, apenas
a uma suposição, embora forte, de que ela também
ocorre nos seres humanos e outros animais. O ra­
ciocínio analógico é muito mais fraco quando infe­
rimos a circulação da seiva nos vegetais a partir de
nossa experiência de que o sangue circula nos ani­
mais; ê experimentos mais acurados mostraram o
equívoco daqueles que seguiram apressadamente es­
sa analogia imperfeita.
Ao vermos uma casa, Cleantes, concluímos com
a máxima certeza que ela teve um arquiteto ou cons­
trutor, porque ela é exatamente a espécie de efeito
que, por experiência, sabemos que procede daquela
PARTE II 33
espécie de causa. Mas certamente você não afirma­
rá que o Universo guarda tanta semelhança com uma
casa a ponto de podermos inferir, com a mesma cer­
teza, uma causa similar; ou que a analogia seja, aqui,
integral e perfeita. A desigualdade é tão marcante
que o máximo que você pode pretender, nesse caso,,
é conjeturar, supor ou presumir a existência de uma
causa similar; e como essa pretensão será recebida
pelas demais pessoas é algo que deixo à sua consi­
deração.
Cleantes: Sem dúvida ela seria muito mal re­
cebida; e eu seria merecidamente censurado e recri­
minado se alegasse que as provas de uma Divinda­
de não passam de suposições ou conjeturas. Mas se­
rá de fato tão pequena a semelhança entre o ajuste
integral dos meios aos fins em uma casa e no Uni­
verso? Entre a organização funcional de suas causas
finais? Entre a ordem, proporção e arranjo de cada
uma de suas partes? Os degraus de uma escada estão
claramente planejados para que as pernas humanas
possam utilizá-los para subir, e esta inferência é cer­
ta e infalível. Também as pernas humanas estão pla­
nejadas para caminhar e subir; e, embora eu conce­
da que essa última inferência não seja tão inteiramen­
te certa, dada a dissimilaridade que você observou,
será isto suficiente para que ela mereça apenas o tí­
tulo de suposição ou conjetura?
Demea: Bom Deus, a que ponto chegamos! De­
fensores zelosos da religião admitindo que as pro­
vas de uma Divindade não possuem perfeita evidên­
cia! E você, Filo, com cujo apoio eu contava para
provar o caráter adoravelmente misterioso da natu­
reza divina, acaso você concorda com essas opiniões
34 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

desvairadas de Cleantes? Pois de que outro nome eu


poderia chamá-las? E por que poupar minhas cen­
suras quando tais princípios são apresentados, e com
tal autoridade, diante de um jovem como Panfilo?
Filo: Você parece não compreender que estou
argumentando com Cleantes em seu próprio terre­
no, e que, ao mostrar-lhe as perigosas consequências
de suas teses, espero convertê-lo por fim às nossas
opiniões. Mas o que mais o impressiona, segundo
vejo, é a apresentação feita por Cleantes do argumen­
to a posteriori. Ao perceber que esse argumento amea­
ça escapar-lhe das mãos e desvanecer-se no ar, você
o supõe insincero, e quase não pode acreditar que
ele tenha sido exposto em suas verdadeiras cores. Ora,
por mais que eu discorde, em outros aspectos, dos
perigosos princípios de Cleantes, devo admitir que
ele apresentou corretamente esse argumento, e es-
forçar-me-ei para expor-lhe o assunto de tal manei­
ra que você não mais abrigará escrúpulos em rela­
ção a ele.
Se alguém fizesse abstração de tudo o que sabe
ou viu, seria em absoluto incapaz de decidir, sim­
plesmente a partir de suas próprias idéias, qual o ce­
nário que o Universo deveria exibir, ou de dar pre­
ferência a uma situação ou estado de coisas entre ou­
tros. Pois, já que nada daquilo que ele concebe cla­
ramente pode ser tomado como impossível ou co­
mo envolvendo uma contradição, todas as fantasias
de sua imaginação estariam em pé de igualdade; e
ele não seria capaz de oferecer qualquer razão im­
parcial para aderir a uma idéia ou sistema e rejeitar
outros que são igualmente possíveis.
Além disso, ao abrir os olhos e contemplar o
PARTE II 35
mundo tal como realmente é, ser-lhe-ia impossível
identificar de imediato a causa de um evento qual­
quer, muito menos a causa da totalidade das coisas,
ou do Universo. Ele podería dar rédea larga à ima­
ginação, e ela lhe podería fornecer uma infinita va­
riedade de relatos e representações, todos igualmen­
te possíveis. Mas, por serem igual mente possíveis,
ele não chegaria por si mesmo a uma explicação sa­
tisfatória para o fato de preferir um deles aos res­
tantes. E somente a experiência que pode apontar-
lhe a verdadeira causa de qualquer fenômeno.
Note agora, Demea, que, de acordo com este mé­
todo de raciocínio (e isto, na verdade, é tacitamente
admitido pelo próprio Cleantes), se segue que a or­
dem, o arranjo ou o ajustamento das causas finais
não constituem por si sós a prova de um desígnio,
mas apenas na medida em que já se tenha constata­
do pela experiência que eles procedem de um tal
princípio. Por tudo que nos é dado saber a priori,
a matéria pode conter originalmente em si mesma
a fonte ou o móvel da ordem, do mesmo modo que
a mente os contém. Supor que os diversos elemen­
tos — a partir de uma causa interna desconhecida
— possam arranjar-se da maneira mais elaborada não
é mais difícil do que imaginar que suas idéias, a partir
de uma causa interna desconhecida semelhante, ve­
nham a dispor-se dessa mesma maneira no interior
da grande mente universal. A igual possibilidade des­
sas duas suposições é admitida; contudo, segundo
Cleantes, a experiência nos faz descobrir uma dife­
rença entre elas. Lance ao ar um conjunto de diver­
sas peças de aço, sem talhe ou forma: elas jamais se
arranjarão por si mesmas de modo a produzir um
36 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

relógio. Pedras, argamassa e madeira, sem um arqui­


teto, nunca edificarão uma casa. No entanto, obser­
vamos que as idéias, por um inexplicável e desco­
nhecido princípio de organização, dispõem-se na
mente humana de modo a formar o projeto de um
relógio ou de uma casa. A experiência, portanto, pro­
va que há um princípio originário de ordenação na
mente, mas não na matéria. De efeitos similares in­
ferimos causas similares. No Universo, o ajuste dos
meios aos fins é igual ao que existe na máquina pro­
duzida pelo engenho humano. As causas desses ajus­
tes, portanto, devem ser similares.
Devo confessar que me escandalizou, desde o iní­
cio, essa semelhança que se afirma existir entre a Di­
vindade e as criaturas humanas, e sou forçado a tomá-
la como implicando uma degradação do Ser Supre­
mo que é inaceitável para qualquer teísta. Assim,
com seu auxílio, Demea, esforçar-me-ei para defen­
der aquilo que você corretamente denominou “o
adorável mistério da Natureza Divina”, buscando
refutar esse raciocínio de Cleantes, desde que ele ad­
mita que eu o expus de maneira correta.

Após o assentimento de Cleantes., Filo fez uma. pe­


quena pausa e prosseguiu da seguinte maneira.

Filo: Pelo momento, Cleantes, não vou ques­


tionar muito suas teses de que todas as inferências
acerca de fatos estão fundadas na experiência, e de
que todos os raciocínios experimentais se baseiam
na suposição de que causas similares comprovam efei­
tos similares e vice-versa. Eu lhe peço, porém, que
PARTE II 37
observe a extrema cautela com que os verdadeiros
investigadores procedem ao transferir os resultados
de seus experimentos para casos similares. A menos
que esses casos sejam exatarftente similares, eles não
depositam uma confiança perfeita na aplicação das
observações passadas a um fenômeno particular qual­
quer. Toda alteração das circunstâncias dá lugar a
uma dúvida relativa ao evento, e novos experimen­
tos são requeridos para se provar cabalmente que as
novas circunstâncias não são significativas ou impor­
tantes. Mudanças de tamanho, posição, arranjo, oca­
sião, condição atmosférica ou disposição dos corpos
circundantes — qualquer destes aspectos particula­
res pode trazer consigo as mais inesperadas conse­
quências. E, a menos que os objetos nos sejam mui­
to familiares, é extremamente arriscado esperar com
segurança, depois de qualquer dessas alterações, a
ocorrência de um evento similar àqueles que pude­
mos observar anteriormente. Os lentos e refletidos
passos dos filósofos distlnguem-se, nesses casos, mais
do que em qualquer outro, da correria precipitada
das pessoas comuns, as quais, incitadas pela seme­
lhança mais superficial, são incapazes de todo dis­
cernimento ou ponderação.
Mas poderia você supor, Cleantes, que sua ha­
bitual serenidade filosófica permanece incólume
quando você dá um passo tão largo e compara ca­
sas, navios, peças de mobiliário e máquinas ao Uni­
verso, e infere, de sua similaridade em certas circuns­
tâncias, que há uma similaridade entre suas causas?
Pensamento, propósito, inteligência, tal como se en­
contram nos seres humanos e nos outros animais,
não são senão um dos motores e princípios do Uni­
38 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

verso, assim o calor ou frio, atração ou repulsão, e


centenas de outros que são diariamente observados.
E uma causa ativa, pela qual algumas partes especí­
ficas da Natureza produzem, como nos é dado ver,
certas alterações em outras partes. Mas será legíti­
mo transferir para o todo uma conclusão acerca das
partes? A disparidade entre os casos não será, por­
ventura, tão grande a ponto de barrar toda inferên­
cia e comparação? Será possível aprender algo acer­
ca da geração de um ser humano observando o cres­
cimento de um fio de cabelo? Obteríamos alguma
informação sobre o desenvolvimento vegetativo de
uma árvore a partir da maneira pela qual brota uma
folha, ainda que conhecéssemos perfeitamente esse
último processo?
Admitindo-se, porém, que se tomem as opera­
ções de uma parte da Natureza sobre outra como o
fundamento de nossos juízos acerca da origem do
todo (o que é inadmissível), por que se deveria sele­
cionar um princípio tão insignificante, tão frágil, tão
limitado como o é a razão e o propósito dos ani­
mais, tal como esse princípio se apresenta neste pla­
neta? Que mérito especial tem essa diminuta agita­
ção do cérebro que denominamos “pensamento”,
para que precisemos tomá-la como modelo do Uni­
verso por inteiro? Nossa parcialidade para com nós
mesmos leva-nos constantemente a apresentar as coi­
sas desse modo, mas a boa filosofia deve cuidadosa­
mente guardar-nos contra uma ilusão tão natural.
Assim, longe de admitir que as operações de uma
parte nos capacitem a concluir acertadamente sobre
ã origem do todo, recuso-me a aceitar que qualquer
parte proporcione uma regra acerca de outra parte,
PARTE II 39
se esta última for muito alheia à primeira. Que ba­
se razoável haveria para concluir que os habitantes
de outros planetas estão dotados de pensamento, in­
teligência, razão ou de qualquer coisa semelhante a
essas faculdades dos seres humanos? Seria possível
supor que a Natureza copie incessantemente a si mes­
ma ao longo de um Universo tão imenso, quando
seus modos de operação são tão extremamente di­
versificados mesmo neste pequeno globo? E se, co­
mo se pode muito bem supor, o pensamento esti­
ver confinado apenas a este diminuto recanto, ten­
do mesmo aí uma esfera de ação muito limitada, com
que direito poderiamos tomá-lo como a causa ori­
ginária de todas as coisas? Comparada a isto, a pers­
pectiva estreita do camponês que faz da sua admi­
nistração doméstica a regra para o governo dos rei­
nos chega a ser um sofisma desculpável.
Ainda que viéssemos a estar bastante seguros de
que uma razão, ou pensamento, de características hu­
manas estivesse distribuída por todo o Universo, e
que sua atividade em outras regiões fosse muitíssi­
mo maior e mais influente do que parece ser neste
globo, mesmo assim não posso ver por que as ope­
rações de um mundo já constituído, arranjado e ajus­
tado poderíam ser apropriadamente estendidas a um
mundo em estado embrionário, que ainda estivesse
progredindo em direção àquela constituição e arran­
jo. A observação ensina-nos algo sobre a constitui­
ção, o comportamento e a nutrição de um animal
adulto, mas é preciso grande cautela ao se transferir
essa observação para o desenvolvimento de um feto
no útero, e mais ainda para a formação de um ani-
málculo nas ilhargas de seu genitor. Mesmo nossa
40 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

limitada experiência nos mostra que a Natureza pos­


sui um número infinito de princípios motores, que
se exibem incessantemente em cada mudança de es­
tado e situação; e daríamos mostra da mais extrema
imprudência se pretendéssemos determinar quais
princípios inusitados e desconhecidos teriam gover­
nado sua ação em uma situação tão incomum e des­
conhecida como a da formação do Universo.
Só nos é conhecida — e muito imr>erfeitamente
— uma parte mínima desse grande sistema e duran­
te um intervalo muito curto de tempo. Como en­
tão poderiamos nos pronunciar conclusivamente
acerca da origem de seu todo?
Já que as pedras, madeira, tijolos, ferro e latão
não conseguem, na presente época e neste diminu­
to planeta terrestre, dispor-se em arranjos e ordenar-se
sem a arte e o engenho humano, chega-se à admirá­
vel conclusão de que o Universo não poderia ter ori­
ginalmente atingido sua ordem e arranjo sem algu­
ma coisa semelhante ao artifício humano! Mas por
que uma parte da Natureza deveria constituir uma
regra para outra parte remotamente situada cm re­
lação à primeira? Por que deveria constituir uma re­
gra para o todo? Uma parte ínfima pode prover a
regra para o Universo? A Natureza em um dado es­
tado pode constituir-se em uma regra certa para a
Natureza em um estado imensamente distinto do
primeiro?
E você não pode culpar-me, Cleantes, se eu to­
mo aqui como exemplo a prudente circunspeçao de
Simonides, que, de acordo com a célebre narrativa,
ao ouvir de Hierão a pergunta: Qzre é Deus ?, pediu
um dia para pensar sobre o assunto, e depois dois
PAR TE 11 41
dias mais, prolongando dessa forma indefinidamente
o prazo, sem nunca chegar a apresentar sua defini­
ção ou descrição. Poderia você censurar-me se eu ti­
vesse respondido, logo de iúício, que eu não sabia
e que estava consciente de que esse assunto excede
muitíssimo o alcance de minhas faculdades? Você
pode chamar-me quanto quiser de cético e brinca­
lhão, mas o fato é que, tendo-me deparado em tan­
tos outros assuntos muito mais familiares com as im­
perfeições e mesmo contradições da razão humana,
eu jamais poderia esperar, a partir de suas frágeis con-
jeturas, obter qualquer bom resultado em um assunto
tão elevado e tão distante da esfera de nossas obser­
vações. Após a constatação de que duas espécies de
objetos surgem sempre associados, posso inferir, pelo
costume, a existência de um deles onde quer que eu
veja que o outro está presente; e a isto chamo um
argumento a partir da experiência. Mas seria difícil
explicar como esse argumento pode ser aplicado a
um caso — como o que estamos presentemente con­
siderando — no qual os objetos sao singulares, indi­
viduais, sem paralelo ou semelhança específica. Po­
derá alguém dizer-me seriamente que um Universo
ordenado deve provir de algum pensamento ou ar­
tifício de tipo humano, porque disso temos expe­
riência? Para comprovar esse raciocínio, seria preci­
so que tivéssemos experiência da origem dos mun­
dos, e é claro que não basta ter visto navios e cida­
des serem produzidos pela arte e engenho humanos...

Filo prosseguia nesse estilo veemente, alternando,


como me pareceu, ironia e seriedade, até que, perce­
bendo que Cleantes dava alguns sinais de impaciên­
cia, calou-se de imediato.
42 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Cleantes: O que eu tinha a sugerir é apenas


que você não abuse das palavras e não faça uso de
expressões populares para subverter raciocínios filo­
sóficos. Como você sabe, faz-se ordinariamente uma
distinção entre razão e experiência, mesmo quando
o que está em jogo são questões de fato e existência,
embora se descubra, ao analisar-se adequadamente
essa razâoy que ela não é nada mais que uma espécie
de experiência. Provar pela experiência que o Uni­
verso tem uma origem mental não é mais contrário
ao discurso comum do que provar pela experiência
o movimento da Terra. E um sofista poderia levan­
tar contra o sistema copernicano essas mesmas ob-
jeções que você apressou-se a oferecer aos meus ra­
ciocínios. Há, por acaso, outras Terras — ele pode­
ria perguntar — que você tenha visto mover-se? Há...

Filo: [interrompendo-o] Sim, há outras Terras!


Não é a Lua uma outra Terra, que vemos girando
em torno de seu centro? Não é Vênus uma outra
Terra, na qual observamos o mesmo fenômeno? Não
são as revoluções do Sol também uma confirmação,
por analogia, da mesma teoria? Todos os planetas,
não são eles Terras que giram em torno do Sol? E
os satélites não são Luas que se movem em torno
de Júpiter e Saturno e, em companhia desses plane­
tas primários, em torno do Sol? Essas analogias e
semelhanças, junto com outras que não mencionei,
são as únicas provas do sistema copernicano, e cabe
a você considerar se estão disponíveis analogias do
mesmo tipo para sustentar sua teoria.
Na realidade, Cleantes, o moderno sistema da
astronomia é hoje tão bem aceito por todos os in-
PARTE II 43
vestigadores, e tornou-se uma parte tão essencial da
nossa educação, mesmo a mais elementar, que não
somos usualmente muito cqidadosos no exame das
razões sobre as quais ele se funda. Hoje se tornou
mera curiosidade o estudo dos que primeiro escre­
veram sobre o assunto e que, encontrando os pre­
conceitos ainda em pleno vigor, foram obrigados a
revolver seus argumentos em todas as direções, a fim
de torná-los populares e convenientes. Mas, se exa­
minarmos atentamente os famosos Diálogos de Ga-
lileu sobre o sistema do mundo, descobriremos que
aquele grande gênio, um dos mais sublimes que ja­
mais existiu, dedicou imcialmente todos os seus es­
forços a provar que não havia fundamento para a
distinção comumente feita entre as substâncias ele­
mentares e as celestiais. As escolas, partindo das ilu­
sões dos sentidos, tinham levado muito longe essa
distinção e estabelecido que essas últimas substân­
cias eram não-geráveis, incorruptíveis, inalteráveis,
impassíveis, ao mesmo tempo que atribuíam às pri­
meiras todas as qualidades opostas. Galileu, por ou­
tro lado, principiando pela Lua, provou sua seme­
lhança com a Terra em todos os pormenores: sua
figura convexa, sua obscuridade natural quando não
iluminada, sua densidade, sua diferenciação em só­
lido e líquido, as variações de suas fases, a mútua
iluminação da Terra e da Lua, seus mútuos eclipses,
as irregularidades da superfície lunar, etc. Em con-
seqiiência de muitos exemplos desse tipo, relaciona­
dos a todos os planetas, as pessoas viram claramen­
te que esses corpos tinham se tornado objetos pró­
prios de experiência, e que a similaridade de sua na­
tureza nos capacitava a estender os mesmos argumen­
tos e fenômenos de um a outro.
44 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA RURAL

No procedimento cauteloso dos astrônomos,


Cleantes, você pode ler sua própria condenação, ou
antes, pode ver que o assunto do qual você se ocupa
excede toda razão e investigação humanas. Pode vo­
cê pretender exibir qualquer semelhança desse tipo
entre a estrutura de uma casa e a geração de um Uni­
verso? Acaso já se formaram mundos sob seus olhos,
e pôde você observar com vagar o progresso com­
pleto desse fenômeno, desde a primeira aparição da
ordem até sua consumação final? Se é assim, então
cite sua experiência e exponha sua teoria.
PARTE III
Cleantes: É admirável como o argumento mais
absurdo, nas mãos de um homem engenhoso e in­
ventivo, pode adquirir um ar de plauslbilidade! Vo­
cê não se dá conta, Filo, de que só foi necessário a
Copérnico e a seus primeiros discípulos provar a se­
melhança entre a matéria terrestre e a celestial por­
que vários filósofos, ofuscados pelos antigos siste­
mas e apoiados em algumas aparências sensíveis, ti­
nham negado essa similaridade; mas que não é de
modo algum necessário aos teístas provar a seme­
lhança entre os trabalhos da Natureza e os da arte,
pois esta similaridade é auto-evidente e inegável? A
matéria é a mesma, a forma é igual; que mais é pre­
ciso para exibir uma analogia entre suas causas e pa­
ra comprovar que todas as coisas se originam de uma
intenção e propósito divinos? Suas objeções, devo
ser franco, não são melhores que os intrincados em­
bustes daqueles filósofos que negavam o movimen­
to, e merecem ser refutadas da mesma maneira: me-
48 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

diante ilustrações, exemplos e casos concretos, mais


do que pela argumentação séria e pela filosofia.
Suponha, então, que uma voz articulada se te­
nha feito ouvir nas nuvens, muito mais forte e mais
melodiosa do que qualquer outra que a arte huma­
na pudesse produzir; suponha que essa voz se esten­
desse ao mesmo tempo sobre todas as nações, e fa­
lasse a cada uma em sua própria linguagem e diale­
to; suponha ainda que as palavras pronunciadas não
apenas contivessem um sentido e significado preci­
sos, mas transmitissem alguma recomendação dig­
na em todos os aspectos de um Ser benevolente, su­
perior à humanidade. Poderia você hesitar um só
momento acerca da causa dessa voz? Não lhe seria
imperioso atribuí-la instantaneamente a algum de­
sígnio ou propósito? E, no entanto, não posso dei­
xar de considerar que as mesmas objeções (se é que
merecem esse nome) que se podem opor ao sistema
do teísmo também poderíam ser levantadas contra
esta última inferência.
Não lhe seria possível dizer que todas as con­
clusões relativas a fatos estão fundadas na experiên­
cia; que, quando ouvimos uma voz articulada na es­
curidão e inferimos daí a existência de um ser hu­
mano, é apenas a semelhança dos efeitos que nos le­
va a concluir que há também uma semelhança en­
tre suas causas; mas que essa voz extraordinária, pe­
la sua força, alcance e adaptabilidade a todas as lin­
guagens, tem tão pouca analogia com qualquer voz
humana a ponto de não termos razões para supor
qualquer analogia entre suas causas; e, por conse­
guinte, que esse discurso racional, sábio e coerente
proveio, você não sabe por quê, de algum sibilo ca-
PARTE III 49
suai dos ventos, e não de alguma razão ou inteligência
divinas? Nessas manobras você pode enxergar cia-
ramente suas próprias objeções; e, segundo espero,
também pode ver claramentfe que elas não poderíam
ter mais força em um caso do que no outro.
Para fornecer, porém, um exemplo que se apro­
xima ainda mais da situação que presentemente ob­
servamos no Universo, vou introduzir duas suposi­
ções que não envolvem nada de absurdo ou impro­
vável. Suponha que exista uma linguagem natural,
universal e invariável, comum a todos os indivíduos
da espécie humana, e suponha ainda que os livros
sejam produtos naturais que se perpetuam da mes­
ma maneira que os animais e vegetais, por descen­
dência e propagação. Muitas expressões de nossos sen­
timentos envolvem uma linguagem natural: todos
os animais têm uma fala natural que, por limitada
que seja, é bastante inteligível para os de sua espé­
cie. E, dado que há infinitamente menos partes e me­
nos engenhosidade na mais refinada composição da
eloquência do que no organismo corporal mais tos­
co, a propagação da Ilíada ou da Eneida é uma su­
posição mais fácil do que a de qualquer planta ou
animal.
Suponha, portanto, que você entre em sua bi­
blioteca, povoada de volumes naturais que encerram
a razão mais refinada e a mais rara beleza. Seria vo­
cê capaz de abrir um desses livros e duvidar de que
sua causa original apresenta a mais forte analogia com
a mente e a inteligência? Quando ele raciocina e dis­
corre; quando discute, argumenta e impõe suas te­
ses e pontos de vista; quando ele se dirige às vezes
ao puro intelecto, às vezes aos afetos; quando reúne,
50 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

organiza e torna atraentes todas as considerações ade­


quadas ao assunto — poderia você persistir em afir­
mar que tudo isso não tem, no fundo, realmente sen­
tido, e que a primeira conformação desse volume
nas ilhargas de seu antecessor original não procedeu
do pensamento e do desígnio? Sei que sua obstina­
ção não chega a esse grau de rigidez, e que mesmo
sua encenação e leviandade céticas ficariam enver­
gonhadas diante de tão flagrante absurdo.
E entretanto, Filo, se há alguma diferença entre
esta suposta situação e o caso real do Universo, a
vantagem está toda em favor deste último. A anato­
mia de um animal fornece muitos exemplos mais
fortes de desígnio do que o exame de Tito Lívio ou
Tácito; e qualquer que seja a objeção que você adiante
contra o primeiro caso, conduzindo-me de volta ao
inusitado e extraordinário cenário da primeira for­
mação dos mundos, essa mesma objeção será apli­
cável à suposição da nossa biblioteca vegetativa. Es­
colha, pois, o partido que lhe convém, Filo, sem am-
bigüidade ou evasão; e afirme ou que um volume
racional nao é prova de uma causa racional, ou en­
tão admita que todas as obras da Natureza têm uma
causa desse tipo.
Permita-me ainda observar aqui que este argu­
mento religioso, longe de debilitar-se por esse ceti­
cismo que tanto lhe agrada ostentar, é antes fortale­
cido por ele, tornando-se mais firme e inquestioná­
vel. Excluir todo argumento e raciocínio, qualquer
que seja sua espécie, constitui afetação ou loucura.
O que todo cético razoável preconiza é apenas re­
jeitar os argumentos obscuros, remotos e demasia­
do sutis; aderir ao senso comum e aos simples ins­
PARTE III 51
tintos da Natureza; e dar seu assentimento sempre
que alguma razão o sensibilize tão fortemente que
ele não possa, sem extrema violência, deixar de fazê-
lo. Ora, é claro que os argumentos em favor da reli­
gião natural são desse típo; e nada, a não ser a mais
obstinada e perversa metafísica, pode recusá-los. Con­
sidere, analise o olho; examine sua estrutura e seu
plano, e diga-me com toda sinceridade se a idéia de
um planejador não lhe ocorre imediatamente, com
tanta força como a de uma sensação. A conclusão
mais óbvia, com certeza, é em favor de um desíg­
nio; e é preciso tempo, reflexão e estudo para cole­
tar todas essas frívolas, ainda que intrincadas, obje-
ções que podem dar apoio à descrença. Quem po­
deria contemplar o macho e a fêmea de cada espé­
cie, a correspondência entre suas partes e instintos,
suas paixões e o processo integral da vida, antes e
depois da geração, sem tornar-se sensível ao fato de
que a propagação das espécies é tencionada pela Na­
tureza? Milhões e milhões de casos semelhantes ma­
nifestam-se em cada parte do Universo, e nenhuma
linguagem pode transmitir um significado mais in­
teligível e irresistível do que o peculiar ajustamento
das causas finais. Que grau de dogmatismo cego não
deve, então, ter sido atingido por alguém que rejei­
ta argumentos tão naturais e tão convincentes!
Podemos nos deparar com textos de grande be­
leza que parecem contrariar as regras e que, em opo­
sição a todos os cânones da crítica e à autoridade
dos mestres reconhecidos da arte, tocam os sentimen­
tos e estimulam a imaginação. Assim, se o argumento
em favor do teísmo contradiz, como você preten­
de, os princípios da lógica, sua influência universal
52 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

e irresistível prova claramente que pode haver argu­


mentos que compartilham da mesma natureza irre­
gular. Por mais que se insista em raciocínios ardilo­
sos, um mundo ordenado, bem como uma lingua­
gem coerente e articulada, continuarão a ser aceitos
como uma prova incontestável de desígnio e in­
tenção.
Estou disposto a admitir que os argumentos re­
ligiosos não exercem, algumas vezes, a devida influên­
cia sobre um selvagem ignorante e bárbaro. Mas is­
so ocorre não porque sejam obscuros e difíceis, mas
porque o selvagem jamais se faz qualquer pergunta
sobre eles. De onde surge a peculiar estrutura de um
animal? Da união de seus pais. Mas estes, de onde
surgem? De seus pais? Alguns poucos passos levam
as coisas tão longe que desaparecem, para ele, em
obscuridade e confusão; e tampouco lhe despertam
a curiosidade de seguir sua pista. Mas isto não é dog-
matismo ou ceticismo, mas sim estupidez: uma con­
dição mental muito distinta do espírito investigati­
ve e perquiridor que o caracteriza, meu engenhoso
amigo. Você pode rastrear as causas a partir dos efei­
tos, você pode comparar os objetos mais distantes
e r^notos, e seus maiores erros provêm não da este­
rilidade do pensamento e da inventiva, mas sim de
uma fertilidade por demais exuberante, que sufoca
seu natural bom senso com uma profusão de escrú­
pulos e objeções desnecessárias.

Pude notar nesse momento, meu caro Hérmipo,


que Filo estava um pouco embaraçado e confuso. Mas,
enquanto ele hesitava em prover uma resposta, Demea
interveio na discussão e, felizmente para ele, salvou-o
do apuro.
PARTE III 53
Demea: Devo confessar que seu exemplo,
Cleantes, ganha muita força por ter sido formulado
a partir de coisas familiares como livros e a lingua­
gem. Mas não haveria tambéln algum perigo nessa
própria circunstância, e não poderiamos ser levados
por esse argumento à presunção de imaginar que
compreendemos a Divindade e temos uma idéia cor­
reta de sua natureza e atributos? Quando leio um
livro, penetro na mente e nas intenções do autor e,
naquele momento, me converto, de certo modo, nele
mesmo, experimentando uma percepção e com­
preensão imediatas das idéias que percorriam sua
imaginação enquanto ele se ocupava da redação da­
quele texto. Mas é claro que nunca poderemos che­
gar tão próximos da Divindade. Seus caminhos não
são nossos caminhos; seus atributos, embora perfei­
tos, são incompreensíveis. E o livro da Natureza con­
tém um enigma muito mais vasto e inexplicável que
o de qualquer discurso ou raciocínio inteligíveis.
Os mais religiosos e devotos de todos os filóso­
fos pagãos foram, como você sabe, os antigos platô­
nicos; não obstante, muitos deles, em particular Plo-
tino, declararam expressamente que não se deve atri­
buir intelecto ou entendimento à Divindade, e que
a maneira mais perfeita que temos de adorá-la con­
siste não em atos de veneração, reverência, gratidão
ou amor, mas em uma espécie misteriosa de auto-
aniquilação ou extinção total de todas as nossas fa­
culdades. São idéias algo exageradas, talvez; mas é
forçoso reconhecer que, ao representarmos a Divin­
dade como sendo tão inteligível e compreensível, e
tão similar à mente humana, nos tornamos culpa­
dos da mais grosseira e tacanha parcialidade e nos
arvoramos em modelo de todo o Universo.
54 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA TURAL

Todos os sentimentos da mente humana — gra­


tidão, ressentimento, amor, amizade, aprovação, cen­
sura, piedade, rivalidade, inveja — referem-se clara­
mente ao estado e à condição do ser humano e es­
tão calculados para preservar a existência e promo­
ver as atividades desse ser nessas circunstâncias. Nao
parece razoável, portanto, transferir tais sentimen­
tos ao Ser Supremo, ou supor que exerçam influên­
cia sobre ele; e, além disso, os fenômenos do Uni­
verso não fornecem apoio para uma teoria desse ti­
po. Quanto às nossas idéias derivadas dos sentidos,
todas elas são reconhecidamente falsas e enganosas,
e não podem ser consideradas, portanto, como ten­
do lugar em uma Inteligência suprema. E como as
idéias provenientes do sentido interior, somadas às
do sentido exterior, compõem toda a bagagem do
entendimento humano, podemos concluir que ne­
nhum dos materiais do pensamento é semelhante,
sob qualquer aspecto, na inteligência humana e na
Inteligência divina. Considerando-se, por outro la­
do, a maneira de pensar, como poderiamos estabe­
lecer qualquer comparação entre essas inteligências,
ou supô-las de algum modo semelhantes? Nosso pen­
samento é vacilante, incerto, fugidio, consecutivo e
composto; se removéssemos essas características, ani­
quilaríamos completamente sua essência; e seria, nes­
se caso, um mero abuso da terminologia aplicar-lhe
o nome de pensamento ou razão. Se ainda parece
mais devoto e respeitoso (como realmente é) preser­
var esses termos quando se menciona o Ser Supre­
mo, devemos pelo menos reconhecer que seus sig­
nificados são, neste caso, totalmente Incompreensí­
PARTE III 55
veis; e que a debilidade de nossa natureza não nos
permite apreender quaisquer idéias que tenham a mí­
nima correspondência com a inexplicável grandio­
sidade dos Atributos divinos.
PARTE IV
Cleantes: Parece-me estranho que justamente
você, Demea, tão sincero na defesa dos interesses da
religião, continue mantendo que a natureza da Di­
vindade é misteriosa e incompreensível, e insista com
tanto zelo na afirmação de que ela não possui qual­
quer espécie de paralelo ou semelhança com as cria­
turas humanas. Estou pronto a admitir que a Di­
vindade possui muitos poderes e atributos dos quais
não temos compreensão; mas se nossas idéias, até on­
de alcançam, nao são corretas, adequadas ou perti­
nentes no que diz respeito à sua real natureza, en­
tão já não sei por que Valeria a pena insistir neste
assunto. Por que um nome teria tão grande impor­
tância, se está desprovido de significação? E como
vocês, os místicos, que sustentam o caráter absolu­
tamente incompreensível da Divindade, se distingui-
ríam dos céticos ou ateus, que afirmam que a causa
original de todas as coisas é desconhecida e ininteli­
gível? Muito imprudente seriam eles se, após rejei­
60 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

tar a produção pela mente — quero dizer, mente si­


milar à mente humana, pois não conheço outra —,
pretendessem indicar com segurança alguma outra
causa inteligível específica; e muito escrupulosos, de
fato, se se recusassem a dar a essa causa universal des­
conhecida o nome de Deus, ou Divindade, e con­
ceder-lhe todos os sublimes elogios e epítetos sem
significação que você quisesse exigir deles.
Demea: Quem poderia imaginar que Clean­
tes, o sereno e filosófico Cleantes, tentaria refutar
seus antagonistas afixando-lhes um rótulo; e, à ma­
neira dos vulgares fanáticos e inquisidores da épo­
ca, recorresse à afronta e à pregação ao invés do ra­
ciocínio? Ou será que ele não percebe que esses
lugares-comuns podem facilmente voltar-se contra
ele, e que a alcunha de antropomorfista é tão avil­
tante e de tão perigosas conseqüências quanto a de
místico, com a qual ele nos honrou? Considere,
Cleantes, aquilo que você está efetivamente afirman­
do quando representa a Divindade como similar à
mente e ao entendimento humanos. Que é a alma
do homem? Um composto de várias faculdades, pai­
xões, sensações e idéias; unidas, é verdade, em um
só ego ou pessoa, mas ainda assim distintas umas
das outras. Quando ela raciocina, as idéias que são
as partes de seu discurso arranjam-se em uma certa
forma ou ordem, que não se preserva integralmente
por um só instante, mas dá lugar imediatamente a
um outro arranjo. Novas opiniões, novas paixões,
novas afecções, novos sentimentos surgem e alteram
incessantemente o cenário mental, produzindo ne­
le a maior diversificação e a mais rápida sucessão que
é possível imaginar. Como isto poderia ser compa-
PARTE IV 61
tível com a perfeita imutabilidade e simplicidade que
todos os autênticos teístas atribuem à Divindade?
Por um mesmo ato, dízem eles, ela contempla pas­
sado, presente e futuro; seu afnor e ódio, sua miseri­
córdia e justiça, são uma única operação individual.
Ela está inteira em cada ponto do espaço, e está com­
pleta em cada instante da duração. Nenhuma suces-
•*são, nenhuma mudança, nenhuma aquisição ou di­
minuição. O que ela é nao contém qualquer som­
bra de distinção ou diversidade. E o que ela é neste
momento, sempre o foi e sempre o será, sem ne­
nhum novo juízo, sentimento ou operação. Perma­
nece fixa em um só estado, simples e perfeito, e não
se pode adequadamente dizer que este seu ato é di­
ferente daquele outro, ou que este juízo ou ídéía
formou-se há pouco e dará lugar, sucessivamente, a
um distinto juízo ou idéia.
Cleantes: Estou preparado para afirmar que to­
dos os que sustentam a perfeita simplicidade do Ser
Supremo, no grau em que você a expôs, são remata­
dos místicos, e devem responder por todas as con­
sequências que eu extraí de sua opinião. São, em uma
palavra, ateístas, sem o saber. Pois, embora se deva
reconhecer que a Divindade possui atributos dos
quais não temos compreensão, não nos é jamais per­
mitido conferir-lhe atributos que são absolutamen­
te incompatíveis com a natureza intelectiva que lhe
é essencial. A mente cujos atos, sentimentos e idéias
não são distintos e sucessivos — que é integralmen­
te simples e totalmente imutável — não exibe pen­
samento, nem razão, nem vontade, nem sentimen­
to, nem amor, nem ódio. Em uma palavra, não é
mente, enfim. Dar-lhe esse nome é abusar das pala­
62 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

vras, e poderiamos, com o mesmo direito, falar de


uma extensão limitada sem figura, ou de um núme­
ro sem composição.
Filo: Peço-lhe, por favor, que você note contra
quem suas censuras estão agora dirigidas. Você está
honrando com a denominação de ateístas quase to­
dos os teólogos íntegros e ortodoxos que já trataram
deste assunto; e acabará por ter que se considerar,
pelas suas contas, como o único teólogo legítimo
do mundo. Mas se os idólatras são ateístas, como
penso que é correto afirmar, e os teólogos cristãos
também o são, que restaria daquele célebre argumen­
to baseado na concordância universal da huma­
nidade?
Como sei, porém, que você não se deixa influen­
ciar muito pelos nomes e pelas autoridades, esforçar-
me-ei para mostrar-lhe, com um pouco mais de ni­
tidez, as inconveniências do antropomorfismo que
você adotou, e provar que não há razões para supor
que a mente divina tenha formulado um plano do
mundo, constituído de distintas idéias, diferentemen­
te arranjadas, de maneira análoga à de um arquiteto
que formula em sua cabeça o plano de uma casa que
ele tenciona executar.
Não é fácil, confesso, ver o que se podería ga­
nhar com essa suposição, quer se julgue a questão
pela razão, quer pela experiência. Continuamos ainda
obrigados a subir mais alto, se quisermos descobrir
a causa dessa causa que você designou como satisfa­
tória e conclusiva.
Se é que a razão (e me refiro aqui à razão abs­
trata, derivada das investigações a priori) não emu­
dece invariavelmente perante qualquer questão acerca
PARTE IV 63
de causa e efeito, esta sentença, ao menos, ela se aven­
turará a pronunciar: que um mundo mental ou um.
universo de idéias exige uma causa tanto quanto a
exige um mundo material ou um universo de obje­
tos; e, se seus arranjos forem similares, deverão re­
querer causas similares. Pois o que havería de espe­
cial naquele domínio para proporcionar uma dife­
rente conclusão ou inferência? Do ponto de vista
abstrato, eles são exatamente iguais, e não há difi­
culdade que acompanhe uma suposição e que não
seja comum a ambas.
Por outro lado, quando precisamos forçar a ex­
periência a pronunciar alguma sentença, ainda que
em assuntos que extrapolam sua esfera, tampouco
ela pode perceber qualquer diferença significativa es­
pecífica entre esses dois tipos de mundo, mas reco­
nhece-os como governados por princípios semelhan­
tes e dependentes, em suas operações, de um igual
sortimento de causas. Temos espécimes em minia­
tura de ambos os mundos: nossa própria mente
assemelha-se ao primeiro; e um organismo, vegetal
ou animal, ao segundo. Que a experiência, portan­
to, julgue a partir dessas amostras. Relativamente a
suas causas, nada parece mais delicado que o pensa­
mento; e, já que essas causas nunca operam da mes­
ma maneira em duas pessoas, jamais encontramos
duas pessoas que pensem de modo exatamente igual.
Na verdade, nem sequer uma mesma pessoa pensa
de maneira exatamente igual em quaisquer dois mo­
mentos distintos do tempo. Uma diferença de idade,
da condição de seu corpo, de clima, de alimento, de
companhia, de livros, de paixões — qualquer um des­
ses aspectos particulares, e outros ainda mais dimi­
64 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

nutos, basta para alterar a peculiar maquinaria do


pensamento e comunicar-lhe movimentos e opera­
ções muito distintos. Tanto quanto podemos julgar,
os organismos vegetais e animais não são tão deli­
cados em seus movimentos, nem dependem de uma
variedade tão grande de impulsos e princípios, ajus­
tados de maneira tão peculiar.
Como, então, poderiamos nos dar por satisfei­
tos com relação à causa daquele Ser que você toma
como o Autor da Natureza, ou, de acordo com seu
sistema antropomórfico, daquele Mundo ideal no
qual você encontra a origem do mundo material?
Não teríamos iguais razões para buscar a origem des­
se mundo ideal em outro mundo ideal, ou princí­
pio intelectiyo? Mas, se nos detemos em algum ponto
e nao avançamos mais, de que serve ter avançado até
aí? Por que não nos determos no próprio mundo
material? Como poderiamos nos dar por satisfeitos
sem avançar in infinitum? E que satisfação, afinal,
encontraríamos nessa progressão infinita? Recor-
demo-nos da história do indiano e seu elefante: ela
nunca foi tão adequada como ao presente assunto.
Se o mundo material repousa sobre um mundo ideal
semelhante, este mundo ideal deve repousar sobre
algum outro, e assim indefinidamente. Seria melhor,
portanto, jamais lançar os olhos para além do mun­
do material presente. Ao supor que ele contém em
si mesmo o princípio de sua própria ordem, esta­
mos, na realidade, afirmando que ele é Deus; e quan­
to antes chegarmos àquele Ser Divino, tanto melhor
para nós. Quando você dá um passo além do siste­
ma mundano, apenas excita uma disposição inqui-
sitiva que jamais poderá ser satisfeita.
PARTE IV 65
Dizer que as diferentes idéias que compõem a
razão do Ser Supremo se dispõem de maneira orde­
nada por si mesmas e em virtude de sua própria na­
tureza é, na realidade, falar Sem saber muito bem
o que se quer dizer. Se isso quer dizer algo, eu gos­
taria muito de saber por que não havería igualmen­
te um sentido tão bom na afirmação de que as par­
tes do mundo material se dispõem em ordem por
si mesmas e pela sua própria natureza. Será que uma
das opiniões pode ser inteligível sem que a outra tam­
bém o seja?
Temos, de fato, experiência de idéias que se dis­
põem em ordem por si mesmas e sem nenhuma cau­
sa conhecida. Mas temos também, estou certo, uma
experiência muito mais vasta de um comportamen­
to semelhante na matéria, a saber, em todos os ca­
sos de geração e crescimento vegetativo, nos quais
a análise detalhada da causa excede toda compreen­
são humana. E temos igualmente experiência de sis­
temas particulares de pensamento e de matéria que
não apresentam ordem: do primeiro, na loucura, do
segundo, na corrupção. Por que, então, deveriamos
pensar que a ordem é mais essencial a um do que
ao outro? E, se ela requer em ambos uma causa, que
estaremos ganhando com nosso sistema, ao buscar
a origem do universo de objetos em um universo
similar de idéias? Ao dar o primeiro passo, somos
forçados a prosseguir para sempre. Portanto, seria
prudente de nossa parte limitar nossas investigações
ao mundo presente, sem dirigir o olhar para mais
longe. Nenhuma satisfação poderá jamais ser alcan­
çada por meio dessas especulações, que tanto exce­
dem os estreitos limites do entendimento humano.
66 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA RURAL

Como você sabe, Cleantes, era usual entre os pe-


ripatéticos, quando se pedia pela causa de algum fe­
nômeno, recorrer a suas faculdades ou qualidades
ocultas, e dizer, por exemplo, que o pão alimentava
em virtude de sua faculdade nutritiva, do mesmo
modo que o sene purgava devido à sua faculdade pur-
gativa. Descobriu-se, porém, que esse subterfúgio na­
da mais era que o disfarce da ignorância, e que esses
filósofos, embora menos francos, estavam na reali­
dade dizendo a mesma coisa que os céticos ou as pes­
soas comuns, que confessavam honradamente não
saber a causa desses fenômenos. De maneira análo­
ga, ao serem interrogados sobre a causa que produz
a ordenação das idéias do Ser Supremo, poderiam
vocês, antropomorfistas, dar qualquer outra razão
que não a de que é uma faculdade racional, e de que
essa é a natureza da Divindade? E difícil, contudo,
determinar por que uma resposta semelhante não
seria igualmente satisfatória para explicar a ordem
do mundo, dispensando o recurso a um criador in­
teligente tal como esse em que você insiste. Bastaria
dizer que essa é a natureza dos objetos materiais, e
que todos eles estão originalmente de posse de uma
faculdade de ordem e proporção. Essas são simples­
mente maneiras mais doutas e refinadas de confes­
sar nossa ignorância, e a primeira hipótese não apre­
senta qualquer vantagem genuína sobre a segunda,
exceto sua maior conformidade com os preconcei­
tos vulgares.
Cleantes: Você expôs esse argumento com
grande ênfase e parece não se dar conta de como é
fácil contestá-lo. Se eu atribuo uma causa a um evento
qualquer, mesmo na vida cotidiana, seria porven­
PARTE IV 67
tura objetável, Filo, que eu não seja capaz de identi­
ficar a causa dessa causa e de responder a todas as no­
vas questões que incessantemente podem ser levan­
tadas? Que filósofos poderiam submeter-se a uma re­
gra tão rígida, sendo que confessam que as causas úl­
timas são totalmente desconhecidas e estão conscien­
tes de que os princípios mais aperfeiçoados, aos quais
remetem os fenômenos, continuam sendo para eles
tão inexplicáveis como aqueles mesmos fenômenos
o são para as pessoas comuns? A ordem e arranjo da
Natureza, o notável ajustamento das pausas finais,
os manifestos usos e propósitos de cada parte e cada
órgão; tudo isso proclama na linguagem mais clara
a existência de um autor ou causa intelectiva. Os céus
e a terra juntam-se no mesmo testemunho; o coro
inteiro da Natureza ergue um hino às glórias de seu
Criador. Somente você — ou quase — perturba esta
harmonia geral, levantando complicadas dúvidas, so-
fismas e objeções. Você me pergunta qual é a causa
dessa causa? Não sei, não me preocupo, isso não me
diz respeito. Eu encontrei uma Divindade, e aqui de-
tenho minha investigação. Que sigam adiante os que
forem mais sábios ou empreendedores.
Filo: Não pretendo ser uma ou outra coisa, e
talvez por isso mesmo jamaís deveria ter tentado
ir tão longe, especialmente porque me apercebo que,
no final das contas, devo contentar-me com a mes­
ma resposta com a qual, desde o início e sem maio­
res aborrecimentos, eu poderia ter-me satisfeito. Se
tenho de permanecer na total ignorância das cau­
sas, sem poder explicar absolutamente nada, que van­
tagem haverá em livrar-me momentaneamente de
uma dificuldade que, como você reconhece, reapa­
68 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

recerá de imediato com toda sua força? É verdade


que os cientistas da Natureza explicam muito apro­
priadamente efeitos particulares por meio de causas
mais gerais, embora essas mesmas causas gerais este­
jam destinadas, afinal, a permanecer totalmente inex-
plicadas; mas certamente eles nunca pensaram que
seria satisfatório explicar um efeito particular por
meio de uma causa também particular que não ad­
mitiría uma explicação melhor que a do próprio efei­
to. Um sistema de idéias que se auto-ordenasse sem
um desígnio prévio não seria minimamente mais ex­
plicável do que um sistema material que atingisse
do mesmo modo sua ordenação; e não há, na ver­
dade, mais dificuldade na última suposição do que
na primeira.
PARTE V
Filo: Mas, para mostrar-lhe ainda algumas ou­
tras inconveniências de seu antropomorfismo, peço-
lhe que inspecione novamente seus princípios. A
igualdade dos efeitos prova a igualdade das causas. Este
é o argumento experimental; e também, como vo­
cê diz, o único argumento teológico. Mas é certo
que, quanto maior a igualdade dos efeitos que são
observados e a das causas que sao inferidas, tanto
mais forte é o argumento. Qualquer afastamento, em
cada um dos lados, diminui a probabilidade e torna
o experimento menos conclusivo. Você não pode pôr
em dúvida esse princípio, nem deve rejeitar suas con-
seqíiências.
De acordo com o verdadeiro sistema do teísmo,
todas as recentes descobertas da astronomia que pro­
vam a imensa grandeza e magnificência das obras
da Natureza constituem outros tantos argumentos
adicionais em favor da Divindade. Contudo, segundo
sua hipótese de teísmo experimental, elas se tornam
72 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

outras tantas objeções, ao tornarem o efeito muito


menos semelhante aos efeitos da arte e engenho hu­
manos. Pois, se Lucrécio, mesmo aderindo ao anti­
go sistema do mundo, pôde exclamar:

Quis regere impaensi summan, quis habere profundi,


Indu manu validas potis est moderanter habenas?
Quis pariter coelos omnes convertere? et omnes
aetheriis terras suffire feraces? Ignibus
Omnibus inve locis esse omni tempore praesto?’1'

Se Túlio considerou o seguinte raciocínio tão natu­


ral a ponto de colocá-lo na boca de seu epicurista:

Quibus enim oculis animi intueri potuit vester Plato


fabricam illam tanti operis, qua construi a Deo at~
que aedificari mundum facit? quae molitio? quae fer­
ramenta? qui vectes? quae machinae? qui ministri
tanti numeris fuerunt? quemadmodum autem obedi-
re et parere voluntati architect! aer, ignis, aqua, terra
potuerunt?* **

* Quem é poderoso o bastante para reger o cume e para


manter sob seu controle as poderosas rédeas das profundezas?
Para fazer girar ao mesmo tempo todo o céu, e aquecer com
fogos etéreos todas as terras fecundas? E, ainda, para estar em
todos os lugares em todos os momentos?
(Lucrécio, De Rerum Natura, II.) (N.T.)
** Qual foi, na verdade, a espécie de visão mental que per­
mitiu a seu mestre Platão contemplar o vasto processo arquite­
tônico que se atribui a Deus na edificação do mundo? Que mé­
todo de engenharia foi empregado? Quais ferramentas, alavan­
cas e máquinas? Quais foram os executores de uma tarefa tão
imensa? E como foi possível ao ar, fogo, terra e água obedecer
e realizar a vontade do arquiteto?
(Cícero, De Natura. Deorum, I.) (N.T.)
PARTE V 73
Se esse argumento, eu repito, teve alguma força nas
épocas anteriores, quão mais deve tê-la agora, quan­
do os limites da Natureza se alargam infinitamente
e um cenário tão magnífico se abre para nós! Torna-se
ainda menos razoável moldar nossa idéia de uma cau­
sa tão ilimitada a partir de nossa experiência dos re­
duzidos produtos do cálculo e inventividade huma­
nas.
As descobertas feitas por meio do microscópio,
à medida que revelam um novo universo em minia­
tura, também constituem objeções, de acordo com
você; e argumentos, do meu ponto de vista. Quan­
to mais longe levarmos as pesquisas desse tipo, mais
seremos forçados a inferir que a causa universal de
tudo é imensamente distinta da humanidade, ou de
qualquer objeto da experiência ou observação hu­
manas.
E o que tem você a dizer acerca das descobertas
em anatomia, química, botânica?...
Cleantes: Essas certamente não constituem ob­
jeções, mas apenas revelam novos exemplos de arte
e engenho. Mais uma vez, trata-se da imagem da men­
te refletindo-se sobre nós a partir de inúmeros
objetos.
Filo: Acrescente mente como a humana.
Cleantes: Não conheço outra.
Filo: E quanto mais se iguale a ela, melhor.
Cleantes: Certamente.
Filo: {Com um ar alegre e triunfante] E agora,
Cleantes, observe as consequências. Em primeiro lu­
gar, com esse método de raciocínio, você renuncia
a toda pretensão de infinitude em qualquer dos atri­
butos da Divindade. Pois, como a causa deve estar
74 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

em proporção apenas ao efeito, e este, à medida que


cai sob nosso conhecimento, não é infinito, de que
modo poderiamos pretender, com base em nossas
suposições, aplicar aquele atributo ao Ser Divino?
Você deverá manter que, ao apartá-lo tanto de toda
semelhança com as criaturas humanas, entregamo-
nos à mais arbitrária das hipóteses e enfraquecemos,
ao mesmo tempo, todas as provas de sua existência.
Em segundo lugar, não há razão, em sua teoria,
para que você atribua perfeição à Divindade — mes­
mo em sua capacidade finita —, ou para que a supo­
nha isenta de todo erro, engano ou incoerência em
suas realizações. Há, nas obras da Natureza, muitas
dificuldades que são inexplicáveis, mas que, se ad­
mitirmos que a existência de um autor perfeito é pro­
vada a priori, solucionam-se facilmente e revelam-
se como dificuldades que surgem apenas em virtu­
de da limitada aptidão do ser humano, que não con­
segue esquadrinhar relações infinitas. No entanto,
de acordo com seu método de investigação, todas
essas dificuldades se tornam reais. Talvez se insista
que elas fornecem novos exemplos de semelhanças
com as obras do artifício e talento humanos; mas
vocês está obrigado a reconhecer, ao menos, que nos
é impossível distinguir, a partir de nossa perspecti­
va limitada, se esse sistema contém ou não graves
defeitos, ou qual o grau de louvor que merece, em
comparação com outros sistemas possíveis ou mes­
mo reais. Se léssemos a Eneida para um camponês
que jamais teve contato com qualquer outra obra li­
terária, seria ele capaz de julgar esse poema como
absolutamente impecável, ou mesmo determinar a
posição que lhe cabe dentre as produções do espíri­
to humano?
PARTE V 75
Mas ainda que este mundo fosse um produto tão
perfeito, persistiria a incerteza sobre se todas as ex­
celências da obra podem com justiça ser atribuídas
ao artífice. Ao inspecionarmos um navio, que idéia
elevada não formaremos da engenhosidade do car­
pinteiro que fabricou uma máquina tão complica­
da, útil e bela? E qual surpresa não devemos sentir
ao descobrir que ele é um mecânico estúpido, que
apenas imitou outros e copiou uma arte que, atra­
vés de uma longa sucessão de épocas, e após múlti­
plas tentativas, erros, correções, decisões e contro­
vérsias, foi-se aperfeiçoando gradualmente? Muitos
mundos poderiam ter sido toscamente elaborados
e remendados ao longo de uma eternidade, antes de
delinear-se o presente sistema; muito trabalho pode
ter-se perdido, muitas tentativas infrutíferas realiza­
das, e um lento mas ininterrupto progresso pode ter
tido lugar, através de eras infinitas, na arte de cons­
truir mundos. Quem pode determinar, em tais as­
suntos, onde reside a verdade; ou sequer conjeturar
o que é mais provável, dentre o grande número de
hipóteses que se poderia propor, e o número ainda
maior das que poderiam ser imaginadas?
E que sombra de argumento poderia você ofe­
recer, a partir de sua hipótese, para provar a unida­
de da Divindade? Um grande número de homens
reúne-se para construir uma casa ou um navio, para
edificar uma cidade, para fundar um Estado; por que
não poderiam várias deidades associar-se para con­
ceber e forjar um mundo? Isso nos conduziría, de
fato, a uma semelhança ainda maior com o que ocor­
re nos empreendimentos humanos. Ao dividir o tra­
balho entre muitas deidades, poderiamos limitar em
76 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

muito os atributos de cada uma delas e nos livrar­


mos daquele vasto poder e inteligência que seria pre­
ciso supor no caso de uma única; e que, em relação
ao que você propõe, serve apenas para enfraquecer
a prova de sua existência. Se criaturas estúpidas e cor­
rompidas como os seres humanos podem, mesmo
assim, unir-se freqüentemente para traçar e execu­
tar um plano, com muito maior razão poderíam fazê-
lo essas deidades ou demiurgos, a quem podemos atri­
buir alguns graus a mais de perfeição.
Multiplicar as causas desnecessariamente é, na
verdade, contrário à genuína filosofia; mas, no pre­
sente caso, tal princípio não se aplica. Se sua teoria
tivesse permitido provar com anterioridade a exis­
tência de uma única Divindade, possuidora de to­
dos os atributos requeridos para a produção do Uni­
verso, seria então, eu confesso, desnecessário (mas
não absurdo) supor a existência de alguma outra dei-
dade. Mas, enquanto estiver pendente a questão so­
bre se todos esses atributos estão unidos em um único
sujeito ou dispersos entre vários seres independen­
tes, quais são os fenômenos da Natureza que nos per­
mitiríam decidir a controvérsia? Quando vemos um
corpo erguer-se no prato de uma balança, ficamos
seguros de que há, no prato oposto — por mais ocul­
to que esteja à nossa vista — algum contrapeso equi­
valente; mas permanece a dúvida sobre se esse con­
trapeso consiste em um agregado de vários corpos
distintos ou de uma única massa uniforme e coesa.
E, se o peso requerido é muito maior do que qual­
quer outro que já tivemos ocasião de encontrar reu­
nido em um só corpo, a primeira suposição se tor­
na ainda mais provável e natural. Um ser inteligen-
PARTE V 77
te dotado de um poder e capacidade tão vastos co­
mo seria necessário para engendrar o Universo, ou
— para usar o termo filosófico da Antiguidade —
um animal tão prodigioso, ultrapassa toda analogia
e mesmo toda compreensão.
Além disso, Cleantes, seres humanos são mor­
tais, e renovam sua espécie pela geração; e isto é co­
mum a todas as criaturas vivas. Como disse Milton,
os dois grandes sexos — masculino e feminino — ani­
mam o mundo. Por que, então, se deveria excluir
essa condição, tão universal e essencial, daquelas dei-
dades numerosas e limitadas? Eis aí, portanto, a teo-
gonia dos tempos antigos trazida de volta para nós.
E por que não se tornar um antropomorfista
completo? Por que não considerar a deidade, ou dei-
dades, como sendo corpóreas, tendo olhos, um na­
riz, boca, ouvidos, etc? Epicuro sustentava que nin­
guém tinha observado a razão a não ser em uma fi­
gura humana; assim os deuses devem ter figura hu­
mana. E esse argumento, merecidamente tão ridicu­
larizado por Cícero, torna-se, de acordo com você,
sólido e filosófico.
Numa palavra, Cleantes: alguém que siga sua hi­
pótese é capaz, talvez, de asseverar ou conjeturar que
o Universo surgiu em algum momento a partir de
algo semelhante a um desígnio, mas, como não po­
de certificar-se de nenhuma circunstância para além
dessa situação, só lhe resta, a seguir, fixar todos os
outros pontos de sua teologia utilizando, com a má­
xima liberdade, a imaginação e as hipóteses. Este
mundo, por tudo que ele sabe, é muito falho e im­
perfeito se comparado a um padrão superior; e é ape­
nas a obra de alguma deidade pueril que o abando­
78 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

nou a seguir, envergonhada de sua desastrada reali­


zação. E meramente o trabalho de alguma deidade
inferior e subalterna e constitui motivo de chacota
para seus superiores. É o produto da velhice e seni­
lidade de alguma deidade decrépita e está, desde sua
morte, entregue ao próprio destino, movendo-se pelo
primeiro impulso e força ativa que dela recebeu...
É justo que você dê mostras de horror, Demea, em
face destas extravagantes suposições; mas estas, e mil
outras mais, são suposições de Cleantes, não minhas.
Todas elas surgem a partir do momento em que se
supõe que os atributos da Divindade têm caráter fi­
nito. E não posso conceber, de minha parte, que sus­
tentar um sistema teológico tão assombroso e trans­
tornado seja, sob qualquer aspecto, preferível a não
sustentar nenhum.
Cleantes: Rejeito absolutamente tais suposi­
ções, embora elas não me provoquem horror, espe­
cialmente sob a forma casual e descuidada com que
você as despeja. Ao contrário, elas me dão prazer,
quando vejo que mesmo a máxima licença de sua
imaginação não lhe permite livrar-se da hipótese do
desígnio no Universo, mas obriga-o, a cada passo,
a tazer uso dela. A essa admissão eu me apego fir­
memente; e considero-a como uma fundação sufi­
ciente para a religião.
PARTE VI
Demea: Muito frágil deve ser a estrutura que
pode ser erguida sobre uma fundação tão instável.
Enquanto estivermos incertos sobre se há uma ou
muitas deidades, se a deidade ou deidades a que de­
vemos nossa existência são perfeitas ou imperfeitas,
subordinadas ou superiores, vivas ou mortas, que
crédito ou confiança poderemos depositar nelas?
Que devoção ou adoração dirigir-lhes? Que obediên­
cia ou veneração prestar-lhes? A teoria da religião
faz-se completamente inútil para todos os propósi­
tos da vida; e, mesmo em relação às conseqüências
especulativas, sua incerteza, de acordo com você, deve
torná-la de todo precária e insatisfatória.
Filo: Para torná-la ainda mais insatisfatória,
ocorre-me ainda uma outra hipótese, que certamente
ganhará um ar de plausibilidade a partir do méto­
do de raciocínio em que Cleantes tanto insiste. O
princípio que ele toma como fundamento de toda
religião é o de que causas iguais produzem efeitos
82 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

iguais. Mas há outro princípio do mesmo tipo, que


não é menos certo e que deriva da mesma fonte ex­
perimental, a saber: que, sempre que se observa que
várias circunstâncias conhecidas são similares, en­
tão também as circunstâncias desconhecidas se re­
velarão similares. Assim, se vemos os membros de
um corpo humano, concluímos que ele estará dota­
do também de uma cabeça humana, ainda que oculta
à nossa visão. Do mesmo modo, se vemos uma pe­
quena porção do Sol através de uma fresta na pare­
de, concluímos que, se a parede fosse removida, ve­
riamos o Sol por inteiro. Em suma: este método de
raciocínio é tão óbvio e familiar que não é possível
alimentar o menor escrúpulo com relação à sua
solidez.
Ora, se inspecionarmos o Universo até onde nos
é dado apreendê-lo, veremos que ele guarda uma
grande semelhança com um animal ou corpo orga­
nizado e parece obedecer a um princípio semelhan­
te de vida e movimento. Assim, uma contínua cir­
culação de matéria não produz nele desordem algu­
ma; o constante desgaste de todas as partes é inces­
santemente compensado; observa-se, através de to­
do o sistema, a mais estreita interdependência, e ca­
da parte ou membro, ao desempenhar suas funções
próprias, atua tanto em favor de sua própria pre­
servação como em favor da preservação do todo. In­
firo, portanto, que o mundo é um animal e que a
Divindade é a alma do mundo, pondo-o em movi­
mento e sendo por ele afetada.
Você é muito instruído, Cleantes, para surpre-
ender-se minimamente com esta opinião, que foi
mantida, como você sabe, por quase todos os teís­
PARTE VI 83
tas da Antiguidade, e que ocupa uma posição pre­
ponderante em seus discursos e raciocínios. Pois, em­
bora os filósofos antigos tenham algumas vezes con­
siderado o mundo como um artefato produzido por
Deus, parece que a idéia mais favorecida por eles é
a de tomá-lo como sendo o corpo da Divindade, or­
ganizado de modo a tornar-se subserviente a ela. E
deve-se confessar que, dado que o Universo se asse­
melha mais a um corpo humano do que às obras
da arte e do engenho humanos, a inferência mais
correta parece ser em favor da teoria antiga, e não
da moderna; se é que nossa limitada analogia pode,
de alguma forma, ser apropriadamente estendida à
Natureza como um todo.
Elá também muitas outras vantagens na primeira
teoria que a recomendavam aos olhos dos antigos
teólogos. Nada poderia ser mais repugnante a todas
as suas concepções — porque nada é mais repugnante
à experiência comum — do que a idéia da mente exis­
tindo sem um corpo; uma pura substância espiritual
que não se manifestava a seus sentidos ou à sua com­
preensão, e da qual jamais tinham observado um úni­
co exemplo em toda a Natureza. Eles conheciam
mente e corpo porque percebiam ambos; e, pela mes­
ma razão, sabiam igualmente da existência, em am­
bos, de uma ordem, arranjo, organização, ou meca­
nismo interno. E não poderia deixar de parecer-lhes
razoável transferir essa experiência ao Universo e su­
por que também o corpo e a mente divinos são con­
temporâneos, apresentando, ambos, uma ordem e
arranjo que lhes são naturalmente inerentes e inse­
paráveis.
Eis aqui, portanto, uma nova espécie de antro-
84 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

pomorfismo, Cleantes, sobre o qual você bem po­


deria refletir; e uma teoria, além disso, que não pa­
rece apresentar qualquer dificuldade importante. Vo­
cê, com certeza, está suficientemente acima dos pre­
conceitos sistemáticos para encontrar mais dificulda­
des na idéia de que um corpo animal possa estar,
por si mesmo ou em virtude de alguma causa des­
conhecida, dotado originariamente de ordem e or­
ganização do que na suposição de que a mente apre­
sente uma ordem similar. Mas o preconceito vulgar,
segundo o qual corpo e mente devem estar sempre
acompanhados um do outro, não deve, na minha
opinião, ser inteiramente negligenciado, dado que
se funda na experiência comum, isto é, no único guia
que você admite seguir em todas essas investigações
teológicas. E se você afirmar que nossa experiência
limitada não constitui um padrão aceitável para jul­
gar sobre a extensão ilimitada da Natureza, estará
abandonando inteiramente sua própria hipótese ini­
cial e será obrigado a adotar, daí em diante, nosso
misticismo — como você o denomina — e a reco­
nhecer a absoluta incompreensibilidade da Nature­
za Divina.
Cleantes: Admito que essa teoria, embora bas­
tante natural, nunca me ocorreu antes; e não posso,
com base em um exame e reflexão tão breves, dar
de imediato minha opinião sobre ela.
Filo: Você está sendo, na realidade, muito es­
crupuloso. Se me coubesse examinar qualquer siste­
ma apresentado por você, eu não procedería com
metade dessa cautela e reserva ao levantar-lhe obje­
ções e dificuldades. Apesar disso, se alguma coisa lhe
ocorre, você poderia fazer-nos a gentileza de apre­
sentá-la.
PARTE VI 85
Cleantes: Se é assim, parece-me que, embora
o mundo se assemelhe em muitos aspectos ao cor­
po de um animal, a analogia falha em muitos pon­
tos de extrema importância: não há órgãos senso-
riais, não há uma sede do pensamento ou razão, e
não há uma origem única e precisa do movimento
e da ação. Ele parece, em suma, apresentar uma se­
melhança mais pronunciada com um vegetal do que
com um animal; e, nessa medida, sua inferência em
favor da alma do mundo seria inconclusiva.
Em segundo lugar, sua teoria parece implicar a
eternidade do mundo, e esse é um princípio que tem
contra si, segundo penso, as mais fortes razões e pro­
babilidades. Para ver isso, vou sugerir um argumen­
to que, segundo creio, nenhum autor jamais enfati­
zou. E verdade que aqueles que baseiam seus argu­
mentos na origem tardia das artes e ciências, embo­
ra suas inferências não careçam de vigor, podem tal­
vez ser refutados por meio de considerações deriva­
das da natureza da sociedade humana, que oscila sem
cessar entre a ignorância e o conhecimento, a liber­
dade e a escravidão, a prosperidade e a pobreza; de
tal modo que nao nos é possível, a partir de nossa
limitada experiência, prognosticar com segurança
quais eventos podem ou não ser esperados. A sabe­
doria e a história da Antigüidade parecem ter cor­
rido sério risco de perecer inteiramente após a inva­
são dos povos bárbaros; e, caso essas convulsões se
tivessem prolongado um pouco mais, ou sido um
pouco mais violentas, provavelmente não teríamos
hoje conhecimento do que se passou no mundo pou­
cos séculos antes de nossa época. Mais ainda, se não
fosse pela superstição dos papas — que preservaram
86 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

algum latim estropiado para manter a aparência de


uma igreja antiga e universal — aquela língua pode­
ria ter-se perdido por inteiro; nesse caso, o mundo
ocidental, mergulhado em completa barbárie, não
estaria adequadamente preparado para receber o idio­
ma e o saber dos gregos, que lhe foram transmiti­
dos após o saque de Constantinopla. Se o conheci­
mento e os livros tivessem sido aniquilados, até mes­
mo as artes mecânicas viriam a experimentar uma
decadência considerável; e é facilmente imaginável
que a lenda ou tradição pudessem chegar a atribuir-
lhes uma origem muito mais tardia do que realmente
é o caso. Assim, o tipo comum de argumento con­
tra a eternidade do mundo aparenta ser um tanto
precário.
Mas parece haver, aqui, a base para um argumen­
to melhor. Lúculo foi o primeiro a trazer as cerejei­
ras da Asia para a Europa, embora essa árvore pros­
pere tão bem em muitos climas europeus a ponto
de crescer nos bosques, sem qualquer cultivo. Seria
possível que, durante uma eternidade inteira, ne­
nhum europeu jamais tivesse passado pela Ásia e pen­
sado em transplantar um fruto tão delicioso para sua
própria terra? Ou, se essa árvore já tivesse alguma
vez sido transplantada e difundida, como poderia
ter-se extinguido a seguir? Impérios podem erguer-
se e tombar, liberdade e escravidão sucederem-se al-
ternadamente, ignorância e sabedoria darem, lugar
uma à outra, mas a cerejeira continuará a existir nos
bosques da Grécia, Espanha e Itália, sem jamais ser
afetada pelas oscilações da sociedade humana.
Nao se passaram ainda dois mil anos desde que
as vinhas foram transplantadas para a França, em-
PARTE VI 87
bora não haja no mundo clima que lhes seja mais
favorável. Há três séculos, cavalos, vacas, ovelhas, suí­
nos, cães e cereais eram desconhecidos na América.
Será possível que, durante os ciclos de toda uma eter­
nidade, nunca tenha surgido um Colombo que inau­
gurasse a comunicação entre a Europa e aquele con­
tinente? Seria o mesmo que imaginar que as pessoas
pudessem usar meias por dez mil anos sem nunca
terem pensado em inventar ligas para prendê-las. To­
das estas parecem constituir provas convincentes da
juventude, ou mesmo infância do mundo, dado que
estão baseadas na operação de princípios mais cons­
tantes e estáveis do que os que dirigem e governam
a sociedade humana. Nada menos do que uma con­
vulsão total dos elementos seria requerida para a des­
truição de todos os animais e vegetais de origem eu­
ropéia que hoje são encontrados em todo o mundo
ocidental.
Filo: E qual é o argumento de que você dispõe
contra tais convulsões? Provas poderosas e quase in­
questionáveis podem ser recolhidas por toda a Ter­
ra para o fato de que cada uma das partes deste glo­
bo permaneceu por muitas eras inteiramente sub­
mersa em água. E, ainda que se supusesse que a or­
dem é inseparável da matéria, e inerente a ela, a ma­
téria pode ser suscetível de muitas e vastas pertur­
bações, através dos infinitos períodos da duração eter­
na. As mudanças incessantes às quais cada parte da
matéria está sujeita parecem sugerir a ocorrência de
transformações gerais desse tipo, embora se possa ob­
servar, ao mesmo tempo, que todas as mudanças e
degradações das quais temos experiência não são mais
do que passagens de um estado de ordenação para
88 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

outro; e que a matéria não pode jamais permanecer


em um estado de total deformidade e confusão. O
que observamos nas partes podemos inferír em re­
lação ao todo; pelo menos, esse é o método de ra­
ciocínio no qual você baseia toda a sua teoria. E se
eu estivesse obrigado a defender algum sistema par­
ticular dessa natureza (o que jamais faria de bom gra­
do), não haveria nenhum que eu considerasse como
mais plausível do que o que atribui ao mundo um
princípio de ordem eterno e inerente, embora acom­
panhado de grandes e ininterruptas perturbações e
alterações. Isto solucionaria de uma vez todas as di­
ficuldades; e se a solução, por ser tão geral, nao é
inteiramente completa e satisfatória, é pelo menos
uma teoria à qual cedo ou tarde precisaremos recor­
rer, seja qual for o sistema que tivermos adotado.
De que forma as coisas poderiam ter chegado a ser
como são se nao houvesse em algum lugar, no pen­
samento ou na matéria, um princípio ordenador ine­
rente e originário? E indiferente a qual dos dois con­
cedemos nossa preferência. Em qualquer hipótese,
cética ou religiosa, o acaso não pode ter lugar. Tudo
está certamente governado por leis fixas e inviolá­
veis; e, se a essência mais recôndita das coisas viesse
a abrir-se para nós, descobririamos então um cená­
rio do qual presentemente não podemos ter a me­
nor idéia. Em lugar de admirar a ordem dos seres
naturais, veriamos claramente que lhes teria sido ab­
solutamente impossível apresentar, no mais ínfimo
detalhe, qualquer outra disposição.
Se alguém desejasse reviver a antiga teologia pa-
gã que sustentava, como lemos em Hesíodo, que es­
te globo era governado por trinta mil deidades, nas­
PARTE VI 89
cidas dos poderes desconhecidos da Natureza, vo­
cê, Cleantes, naturalmente retrucaria que nada se lu­
cra com essa hipótese; e que é igualmente fácil su­
por que todos os homens e animais — seres mais
numerosos, mas menos perfeitos — tenham brota­
do sem intermediação de uma fonte desse tipo. Le­
ve essa mesma inferência um passo adiante e você
constatará que uma sociedade de numerosas deida­
des é tão compreensível quanto uma única deidade
universal que contenha em si mesma os poderes e
perfeições daquela sociedade como um todo. Você
deverá admitir, assim, que todos estes sistemas — o
ceticismo, o politeísmo e o teísmo — estão, de acor­
do com os princípios que você defende, em pé de
igualdade; e que nenhum deles apresenta qualquer
vantagem sobre os outros. E disto você poderá con­
cluir que seus princípios são falaciosos.
PARTE VII
Filo: Ao examinar, contudo o antigo sistema
da alma do mundo, surge-me de súbito uma nova
idéia que, se for correta, deve levar quase à ruína to­
dos os seus raciocínios e destruir até mesmo as infe­
rências mais primordiais às quais você dedica tanta
confiança. Se o Universo apresenta uma maior se­
melhança com organismos animais e vegetais do que
com os produtos do artifício humano, é provável
que sua causa se assemelhe mais às causas dos pri­
meiros do que às dos segundos; e sua origem deve­
ria ser atribuída mais apropriadamente à geração ou
vegetação do que à razão ou desígnio. Sua conclu­
são, mesmo de acordo com seus princípios, surge
então como falha e defeituosa.
Demea: Peço-lhe que estenda um pouco esse
argumento, pois não posso compreendê-lo muito
bem na forma concisa em que você o expressou.
Filo: Nosso amigo Cleantes, como você bem
ouviu, parte da suposição de que toda questão de
94 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

fato só pode ser decidida pela experiência para de­


clarar que é apenas por esse meio que se pode pro­
var a existência de Deus. O mundo, diz-nos ele,
assemelha-se aos produtos do engenho humano; sua
causa, portanto, também deve assemelhar-se às des­
ses produtos. Aqui se poderia observar que a opera­
ção de uma parte muito pequena da Natureza — a
saber, o ser humano — sobre outra parte igualmen­
te pequena — a saber, a matéria inanimada que está
ao alcance desse ser — é a regra pela qual Cleantes
julga acerca da origem do todo; e que objetos tão
desproporcionais são aferidos por ele segundo o mes­
mo padrão individual. Deixando de lado, porém,
as objeções que vão nessa direção, eu afirmo que há
outras partes do Universo (além das máquinas re­
sultantes da invenção humana) que guardam uma
semelhança ainda maior com a textura do mundo,
e que, por essa razão, dão ensejo a uma conjetura
mais plausível acerca da origem universal desse sis­
tema. Essas partes são os animais e os vegetais. É evi­
dente que o mundo é mais semelhante a um animal
ou vegetal do que a um relógio ou tear; assim, é mais
provável que sua causa se assemelhe à causa dos pri­
meiros, que é a geração, ou vegetação. Podemos in­
ferir, assim, que a causa do mundo é alguma coisa
similar ou análoga à geração ou vegetação.
Demea: Mas como conceber que o mundo pos­
sa surgir de algo semelhante à vegetação ou geração?
Filo: Muito facilmente. Do mesmo modo que
uma árvore espalha suas sementes nos campos vizi­
nhos e ocasiona o surgimento de outras árvores, as­
sim também o grande vegetal — o mundo, ou este
sistema planetário — produz dentro de si certas se­
PARTE VII 95
mentes que, dispersando-se no caos circundante, fa­
zem germinar novos mundos. Um cometa, por
exemplo, é a semente de um mundo; e, após atingir
o pleno amadurecimento, pela passagem de um sol
a outro e de uma estrela a outra, é finalmente lança­
do em meio aos elementos informes que jazem por
toda parte ao redor do Universo, fazendo brotar ime­
diatamente um novo sistema.
Ou então, se supusermos (pelo gosto da varie­
dade, pois não vejo outra vantagem) que este mun­
do é um animal, um cometa será o ovo desse ani­
mal; e, assim como um avestruz põe seu ovo na areia,
a qual, sem nenhum cuidado posterior, choca o ovo
e produz um novo animal, da mesma forma...
Demea: Compreendo-o agora. Mas que supo­
sições desatinadas e arbitrárias são essas? De que da­
dos dispõe você para tão espantosas conclusões? Es­
sa semelhança superficial e imaginária do mundo a
um vegetal ou um animal seria porventura suficiente
para ratificar a mesma inferência em relação a am­
bos? Será que objetos que são em geral tão ampla­
mente distintos deveriam ser tomados como padrão
um para o outro?
Filo: Precisamente! Esse é o ponto sobre o qual
venho insistindo durante todo o tempo. Afirmei,
além disso, que não dispomos de dados para decidir
acerca de qualquer sistema de cosmogonia. Nossa
experiência, em si mesma tão imperfeita e tão limi­
tada tanto em alcance como em duração, não nos
pode oferecer qualquer conjetura plausível acerca da
totalidade das coisas. Se, porém, formos obrigados
a nos fixar em alguma hipótese, qual seria a regra,
eu pergunto, pela qual deveriamos guiar nossa esco­
96 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

lha? Há qualquer outra regra, que não a grande si­


milaridade dos objetos comparados? E não é verda­
de que uma planta, ou um animal, procedente da
geração ou vegetação, guarda uma semelhança mais
marcante com o mundo do que a observada em qual­
quer máquina artificial, procedente da razão e do
desígnio?
Demea: Mas o que é essa vegetação e geração
de que você fala? Pode você explicar suas operações
e dissecar a refinada estrutura interna de que elas de­
pendem?
Filo: Ao menos tanto quanto Cleantes pode ex­
plicar as operações da razão, ou dissecar a estrutura
interna da qual ela depende. No entanto, quando
eu vejo um animal, posso inferir, sem qualquer des­
sas laboriosas investigações, que ele proveio da ge­
ração; e isso com uma certeza tão grande quanto
aquela com que você conclui que uma casa foi er­
guida pelo desígnio. Estas palavras, “geração” e “ra­
zão”, indicam somente certos poderes e atividades
naturais, cujos efeitos conhecemos, mas cuja essên­
cia nos é incompreensível; e nenhum desses princí­
pios, mais do que o outro, se destaca o suficiente
de modo a ser tomado como um padrão para a Na­
tureza em sua totalidade.
Na realidade, Demea, pode-se razoavelmente es­
perar que, quanto mais ampla a perspectiva com que
encararmos as coisas, melhor ela nos guiará em nos­
sas conclusões acerca desses assuntos extraordinários
e magníficos. Há, apenas neste pequeno recanto do
mundo, quatro princípios: razão, instinto, geração e
vegetação, que são similares uns aos outros e são cau­
sas de efeitos semelhantes. Que número de outros
PARTE VII 97
princípios não poderiamos naturalmente supor co­
mo existindo na imensa extensão e variedade do Uni­
verso, se nos fosse dado viajar de um planeta a ou­
tro, e de um sistema a outro, a fim de examinar ca­
da parte dessa trama prodigiosa? Qualquer um des­
ses quatro princípios mencionados acima (e cente­
nas de outros que se abrem à nossa conjetura) é ca­
paz de nos fornecer uma teoria para julgar sobre a
origem do mundo; e constitui uma flagrante e ex­
traordinária parcialidade restringir por completo nos­
sa perspectiva ao princípio que governa a operação
de nossas próprias mentes. Se esse princípio se tor­
nasse com isso mais inteligível, tal parcialidade po­
deria ser de algum modo desculpável. Mas a razão,
na sua trama e estrutura internas, é-nos na verdade
tão pouco conhecida quanto o instinto e a vegeta­
ção; e talvez nem mesmo a palavra “natureza” —
esse termo vago e indeterminado ao qual o vulgo
tudo refere — seja, no fundo, mais inexplicável. Os
efeitos desses princípios são-nos todos conhecidos
pela experiência; mas os princípios mesmos, e sua
maneira de operar, são totalmente ignorados. E di­
zer que o mundo proveio da vegetação não é me­
nos inteligível, ou menos conforme à experiência,
do que dizer que ele proveio de uma divina razão
ou invenção, no sentido em que Cleantes a concebe.
Demea: No entanto, parece-me que, se o mun­
do tivesse uma qualidade vegetativa e pudesse semear
as sementes de novos mundos em meio ao caos in­
finito, esse poder constituiría, mais uma vez, um ar­
gumento adicional para a existência de um propósi­
to em seu autor. Pois de onde poderia originar-se
uma faculdade tão admirável, se não do desígnio?
Ou ainda, como poderia a ordem brotar de algo que
98 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

é incapaz de perceber a ordem que está fazendo


surgir?
Filo: Basta apenas que você olhe ao seu redor
para obter a resposta a essa questão. Uma árvore con­
fere ordem e organização a uma outra árvore que
dela procede sem ter qualquer conhecimento dessa
ordem. O mesmo ocorre a uma animal em relação
à sua prole, e a um pássaro em relação a seu ninho;
e casos dessa espécie são até mais frequentes no mun­
do do que aqueles em que a ordem surge da razão
e do artifício. Dizer que toda essa ordem caracterís­
tica dos animais e vegetais provém, em última ins­
tância, do desígnio é pressupor a própria tese que
se deseja estabelecer. Não podemos decidir essa im­
portante questão a não ser provando a priori que
a ordem está inseparavelmente ligada, por sua pró­
pria natureza, ao pensamento; e que ela, por si mes­
ma ou com base em princípios fundamentais des­
conhecidos, não pode jamais ser inerente á matéria.
Além disso, Demea, uma objeção como essa que
você levantou não poderia de modo algum ser uti­
lizada por Cleantes, pois equivalería a renunciar a
uma defesa que ele já empregou contra uma de mi­
nhas objeções. Quando lhe perguntei pelas causas
daquela suprema razão e inteligência à qual ele re­
duz todas as coisas, ele observou que a impossibili­
dade de responder satisfatoriamente a tais questões
não poderia jamais ser admitida como uma objeção
em qualquer espécie de filosofia. “Devemos parar
em algum lugar”, diz ele, “pois jamais estará ao al­
cance da capacidade humana explicar as causas fun­
damentais ou exibir as derradeiras conexões de quais­
quer objetos. É suficiente que cada um dos passos
PARTE VII 99
esteja apoiado, até onde pudermos chegar, pela ex­
periência e observação.” Ora, é inegável que a vege­
tação e a geração fazem parte, tanto quanto a razão,
dos princípios ordenadores da Natureza que nos são
revelados pela existência. Se eu baseio meu sistema
cosmogônico nos primeiros, de preferência ao últi­
mo, isso é uma simples decorrência da minha esco­
lha: a questão parece ser inteiramente arbitrária. E
quando Cleantes me pergunta pela causa dessa grande
faculdade vegetativa ou gerativa, tenho o mesmo di­
reito de pedir-lhe a causa de seu grande princípio
racional. Tanto eu como ele já concordamos em evi­
tar esse tipo de questões; e no presente caso é de seu
especial interesse manter-se fiel ao acordo, pois, a jul­
gar pela nossa experiência imperfeita e limitada, a
geração apresenta algumas vantagens sobre a razão,
já que diariamente presenciamos o surgimento des­
ta última a partir da primeira, e nunca o contrário.
Compare, eu lhe peço, as consequências de ca­
da uma das posições. O mundo, digo eu, parece-se
a um animal; portanto ele é um animal; portanto
proveio da geração. São passos amplos, confesso, mas
cada qual preserva uma pequena aparência de ana­
logia. Para Cleantes, o mundo parece~se a uma má­
quina; portanto ele é uma máquina; portanto pro­
veio do desígnio. Também aqui os passos são am­
plos, sendo a analogia, contudo, menos convincen­
te. E, se ele pretende levar minha, hipótese um passo
adiante, remetendo o grande princípio da geração
que eu defendo ao desígnio ou razão, eu posso, com
maior autoridade, usar da mesma liberdade para
acrescentar um passo a mais em sua hipótese e re­
meter seu princípio racional a uma geração divina,
100 .DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA TURAL

ou teogonia. Tenho, a meu favor, pelo menos uma


leve sombra de evidência experimental, o que cons­
titui o máximo que se pode alcançar no presente as­
sunto: há incontáveis casos em que se observa a ra­
zão surgindo do princípio de geração, mas não te­
mos nenhuma experiência de seu surgimento a par­
tir de qualquer outro princípio.
Hesíodo e todos os demais mitólogos da Anti-
güidade ficaram tão fascinados com essa analogia a
ponto de explicarem universalmente a origem da Na­
tureza por meio de um nascimento e copulação ani­
mal. Também Platão, tanto quanto nos é possível
compreendê-lo, parece ter adotado uma idéia seme­
lhante em seu Timeu.
Os brâmanes asseveraram que o mundo surgiu
de uma aranha infinita, que teceu de suas entranhas
toda essa complicada massa, e que a seguir o aniqui­
la, no todo ou em parte, reabsorvendo-o e dissol­
vendo-o em sua própria essência. Temos aqui uma
espécie de cosmogonia que nos parece ridícula, pois
uma aranha é um animal pequeno e desprezível, cujas
operações jamais estaremos inclinados a tomar co­
mo um modelo para o Universo inteiro. Contudo,
mesmo em relação ao que se observa em nosso mun­
do, também há, neste caso, uma nova espécie de ana­
logia. E se existisse um planeta habitado exclusiva­
mente por aranhas (o que é bem possível), essa infe­
rência pareceria ali tão natural e inquestionável co­
mo a que, em nosso planeta, atribui a origem de to­
das as coisas ao desígnio e inteligência, conforme a
concepção de Cleantes. E lhe será difícil dar uma
boa razão para não admitir que um ventre seja ca­
paz, tao bem quanto um cérebro, de tecer um siste­
ma ordenado.

í P N 3 82 0 -.3
K U v- 's. r-
PARTE VTJ 101
Cleantes: Sou obrigado a confessar que a ta­
refa de levantar dúvidas e objeções à qual você, Fi­
lo, se propôs convêm-lhe melhor do que a qualquer
dos homens que presentemente vivem, e parece ser-
lhe, de um certo modo, natural e inevitável. TCao gran­
de é a fertilidade de sua invenção que não me en­
vergonho de admitir meu despreparo para resolver
metodicamente, de imediato, todas as inauditas di­
ficuldades que você incansavelmente suscita contra
mim, mesmo percebendo claramente, de modo ge­
ral, que elas são falaciosas e errôneas. E não tenho
nenhuma dúvida de que você próprio — não tendo
a solução tão a seu alcance quanto a objeção — está
presentemente na mesma condição; e deve do mes­
mo modo reconhecer que tanto o senso comum co­
mo a razão lhe são inteiramente contrários e que as
excentricidades que você nos propõe podem talvez
levar à perplexidade, mas nunca ao convencimento.
PARTE VIII
Filo: Aquilo que você atribui à fertilidade de
minha invenção deve-se inteiramente à natureza do
assunto. Nos assuntos adequados ao âmbito estrei­
to da razão humana só há, normalmente, uma úni­
ca conclusão que traz consigo plausibilidade ou con­
vencimento; e todas as outras suposições que não
aquela parecem, a uma pessoa de bom juízo, total­
mente absurdas e fantasiosas. Mas em questões co­
mo as de que presentemente nos ocupamos, cente­
nas de perspectivas contraditórias podem preservar
um certo grau de analogia imperfeita, e a inventivi­
dade dispõe aqui de um amplo campo para exercer-
se. Acredito que eu poderia, sem grande esforço in­
telectual, propor agora mesmo outros sistemas cos-
mogônicos que teriam uma leve aparência de ver­
dade, embora as chances de que o seu sistema, ou
qualquer um dos meus, seja o sistema verdadeiro se­
jam de mil, de um milhão contra um.
E se eu revivesse, por exemplo, a velha hipótese
106 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

epicurista? É comum considerá-la — e creio que com


justiça — como o sistema mais absurdo que já foi
proposto, mas não estou certo de que, com algumas
poucas alterações, ela não possa vir a adquirir uma
ligeira aparência de plausibilidade. Em vez de supor
que a matéria é infinita, como o fez Epicuro, vamos
supô-la finita. Um número finito de partículas só
é suscetível de finitas transposições; e, em uma du­
ração eterna, deve ocorrer que cada ordem ou posi­
ção possível seja exemplificada um número infinito
de vezes. Nosso mundo, portanto, com todos seus
eventos, mesmo os mais insignificantes, já foi ante-
i| riormente produzido e destruído, e o será de novo,
iil sem qualquer limite ou restrição. Ninguém que te­
ll nha uma clara concepção dos poderes do infinito,
í em comparação ao finito, poderá jamais duvidar des­
ta conclusão.
Dtmea: Mas isto pressupõe que a matéria po­
de adquirir movimento sem que intervenha um agen­
te, ou primeiro motor, dotado de vontade.
Filo: E que dificuldade haveria nessa suposição?
Qualquer acontecimento, antes de ser experimen-
I tado, é igualmente obscuro e incompreensível, e to­
dos eles, após a experiência, surgem como igualmente
® claros e inteligíveis. O movimento, em muitos ca-
; sos, seja pela gravitação, pela elasticidade ou pela ele-
i tricidade, inicia-se na matéria, sem que se conheça
um agente que o tenha voluntariamente iniciado; e
supor que nesses casos sempre há um tal agente não
seria mais do que mera hipótese, e uma hipótese que
j nãó~ traz consigo qualquer vantagem. O início do
movimento na própria matéria é a priori tão con­
PARTE VIII 107
cebível quanto sua comunicação a partir da mente,
ou da inteligência.
Além disso, por que o movimento não poderia
ter-se propagado por impulso, através de toda a eter­
nidade, de modo que a mesma porção dele, ou qua­
se a mesma, ainda se preserve no Universo? Tudo
o que se perde pela composição do movimento
ganha-se em sua resolução. E, sejam quais forem as
causas disto, é certo que a matéria está, e sempre es­
teve, em contínua agitação, até onde se pode saber
pela experiência humana ou pela tradição. Não há,
provavelmente, em todo o Universo, uma só partí­
cula de matéria que esteja, neste momento, em re­
pouso absoluto.
E esta mesma consideração, com a qual nos de­
paramos no curso do argumento, sugere ainda uma
nova hipótese cosmogônica que não é de modo al­
guma absurda e improvável. Haveria um sistema,
uma ordem, uma organização das coisas mediante
a qual a matéria pudesse preservar essa agitação in­
cessante que lhe parece essencial e, ao mesmo tem­
po, manter constantes as formas que ela produz? E
claro que há uma tal organização, pois é isso, de fa­
to, o que sucede em nosso mundo presente. O mo­
vimento incessante da matéria deve, portanto, em
um número finito de transposições, chegar a pro­
duzir essa ordem ou organização; e essa ordem, uma
vez estabelecida, deve se auto-sustentar, pela sua pró­
pria natureza, ao longo de muitas eras ou mesmo
da eternidade. Ora, onde quer que a matéria se equi­
libre, arranje e ajuste de modo a preservar, apesar
de seu contínuo movimento, uma constância nas for­
mas, sua disposição deverá necessariamente apresen-
108 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

tar a mesma aparência de arte e engenho que pre­


sentemente observamos. As partes de cada forma de­
vem manter uma relação entre si e com o todo; e
este, por sua vez, deve estar relacionado com as ou­
tras partes do Universo, com o meio no qual a for­
ma subsiste, com os materiais de que se serve para
reparar seu desgaste e deterioração, e com toda ou­
tra forma que lhe seja hostil ou favorável. Uma fa­
lha em quaisquer desses aspectos destrói a forma;
e a matéria da qual ela se compõe libera-se e fica mais
uma vez à mercê de movimentos e agitações irregu­
lares, até que venha a unir-se a alguma outra forma
regular. Se nenhuma forma desse tipo estiver pre­
parada para recebê-la, e se houver uma grande quan­
tidade dessa matéria degradada no Universo, então
o próprio Universo estará inteiramente desordena­
do, quer se trate do frágil embrião de um mundo
em seus primórdios que é desse modo destruído, ou
da carcaça apodrecida de um mundo debilitado pe­
la velhice e enfermidade. Em qualquer dos casos so­
brevêm o caos, até que um número finito, mas in­
contável de circunvoluções produza, por fim, algu­
mas formas cujas partes e órgãos estejam ajustados
de modo a sustentar as formas em meio a um fluxo
contínuo de matéria.
Suponha-se (pois nos esforçaremos para variar
o modo de expressão) que a matéria tivesse sido lan­
çada em uma posição qualquer por uma força cega
e não-direcionada; é evidente que esta primeira po­
sição será, com toda probabilidade, a mais confusa
e desordenada que se pode imaginar, sem qualquer
semelhança com as obras do engenho humano que,
paralelamente à simetria das partes, revelam um acor­
PARTE VIII 109
do dos meios aos fins e uma tendência à autopreser-
vação. Se a força atuante cessar após essa operação,
a matéria deverá permanecer para sempre em desor­
dem, persistindo um imenso caos desprovido de
qualquer medida ou atividade. Suponha-se porém
que a força atuante, seja ela qual for, continue pre­
sente na matéria: a primeira posição dara lugar ime­
diatamente a uma segunda que será igualmente, com
toda probabilidade, tão desordenada como a primei­
ra, e assim por diante, através de uma longa suces­
são de mudanças e circunvoluções. Nenhuma ordem
ou posição particular permanece inalterada sequer
por um momento. A força original, mantendo-se em
atividade, transmite uma agitação permanente à ma­
téria; e cada uma das situações possíveis se produz
e é instantaneamente destruída. Se um vislumbre ou
esboço de ordem assoma por um momento, é ins­
tantaneamente afastado e confundido pela força in­
cessante que opera sobre todas as partes da matéria.
Assim prossegue o Universo por muitas eras, nu­
ma sucessão contínua de caos e desordem. Mas não
seria possível que ele viesse por fim a estabilizar-se,
sem perder seu movimento e atividade (que, como
supusemos, são inerentes a ele), mas preservando,
apesar disso, uma aparência uniforme em meio à mu­
dança e flutuação contínuas de suas partes? De fato,
vemos que isso é o que ocorre em nosso presente
Universo. Cada indivíduo está em perpétua mudan­
ça, bem como cada parte de cada indivíduo; mas o
todo, não obstante, permanece aparentemente o mes­
mo. Não seria razoável esperar a ocorrência de uma
situação desse tipo, ou mesmo estar seguro dela, a
partir das circunvoluções eternas da matéria não-
110 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

direcionada? E não poderia ser esta a explicação de


toda a aparente sabedoria e engenho que se mani­
festa no Universo? Basta uma pequena consideração
deste assunto para se perceber que esse ajuste, caso
se alcance por meio de uma estabilidade aparente
nas formas, associada a um movimento real e per­
pétuo das partes, proporciona uma solução plausí­
vel, se não verdadeira, da dificuldade.
E fútil, portanto, insistir sobre a serventia das
partes nos animais ou vegetais e sobre o singular ajus­
te de umas às outras. Muito me agradaria saber co­
mo seria possível a subsistência de um animal cujas
partes não estivessem assim ajustadas! Pois não ve­
mos que sua morte segue-se de imediato sempre que
cessa esse ajuste, e que sua matéria, degradando-se,
procura alguma nova forma? Ocorre, na verdade, que
as partes do mundo estão tão bem ajustadas que uma
forma regular se apropria imediatamente dessa ma­
téria corrompida. E poderia o mundo subsistir, se
as coisas não se passassem dessa maneira? Não deve­
ria ele dissolver-se, tanto quanto o animal, e passar
por novas situações e arranjos, até que, em um nú­
mero imenso, mas finito de etapas, reassumisse, por
fim, a ordem presente, ou alguma ordem semelhante?
Cleantes: Você fez bem em dizer-nos que essa
hipótese ocorreu-lhe repentinamente no curso da dis­
cussão. Se você a tivesse examinado com vagar, lo­
go descobriría as insuperáveis objeções a que ela es­
tá exposta. Você diz que nenhuma forma pode sub­
sistir a menos que possua os poderes e órgãos reque­
ridos para sua subsistência; alguma nova ordem ou
organização deve ser tentada, e assim por diante, sem
interrupção, até que se chegue, por fim, a alguma
PARTE VIII 111
ordem que possa sustentar-se e manter-se. Mas de
onde proviríam, de acordo com essa hipótese, as mui­
tas conveniências e vantagens que os seres humanos
e todos os animais possuem? Dois olhos e dois ou­
vidos nao são absolutamente necessários para a sub­
sistência da espécie. A raça humana poderia ter-se
propagado e preservado sem cavalos, cães, vacas, ove­
lhas e todos os inumeráveis frutos e produtos que
servem ao nosso gozo e satisfação. Se os camelos não
tivessem sido criados para que os homens os empre­
gassem nos desertos arenosos da Africa e da Arábia,
teria o mundo se dissolvido por causa disso? Teriam
a sociedade e a espécie humanas se extinguido ime­
diatamente se não houvesse os ímãs que comunicam
à agulha sua extraordinária e utilíssima direção? Ain­
da que os ditames da Natureza se caracterizem em
geral pela frugalidade, exemplos desse tipo estão lon­
ge de serem raros, e qualquer um deles constitui uma
prova suficiente de desígnio, e de um desígnio be­
nevolente, que deu origem à ordem e arranjo do
Universo.
Filo: Pelo menos você pode inferir com segu­
rança que a hipótese precedente é, nessa medida, in­
completa e imperfeita, o que não hesito em conce­
der. Mas seria razoável esperar obter um sucesso
maior em qualquer tentativa desta natureza? Pode­
riamos pretender edificar um sistema cosmogônico
imune a toda objeção e isento de qualquer aspecto
incompatível com nossa limitada e imperfeita expe­
riência da analogia da Natureza? Sua própria teoria
não pode, com certeza, atribuir-se qualquer uma des­
sas vantagens, ainda que você tenha recorrido ao an-
tropomorfismo para melhor preservar um acordo
112 DIÁLOGOS SORRE A RELIGIÃO NATURAL

com a experiência comum. Vamos pô-la à prova no­


vamente. Em todos os exemplos que já presencia­
mos, as idéias são copiadas dos objetos reais e são
ectípicas, não arquetípicas, para expressar-me em ter­
mos eruditos. Você reverte essa ordem e dá prece­
dência ao pensamento. Em todos os casos que pre­
senciamos, o pensamento não tem influência sobre
a matéria, exceto naqueles em que essa matéria está
de tal modo conjugada ao pensamento a ponto de
exercer igualmente uma influência recíproca sobre
ele. Nenhum animal pode mover alguma coisa sem
intermediação, a não ser os membros de seu corpo;
e, na verdade, a igualdade entre ação e reação parece
ser uma lei universal da Natureza. Sua teoria, po­
rém, está em contradição com esta experiência. Es­
ses exemplos, e muitos outros que seria fácil coligir
(particularmente a concepção da mente, ou sistema
de pensamento, como algo eterno; em outras pala­
vras, um animal nao-gerado e imortal), esses exem­
plos, repito, poderiam ensinar-nos a ser sóbrios em
nossas condenações mútuas e fazer-nos ver que, as­
sim como nenhum sistema desse tipo deve jamais
ser aceito com base em uma frágil analogia, do mes­
mo modo nenhum deles deve ser rejeitado por cau­
sa de uma pequena incongruência. Pois essa é uma
inconveniência da qual, com justiça, pode-se decla­
rar que nenhum sistema está isento.
Admite-se que todos os sistemas religiosos estão
expostos a grandes e insuperáveis dificuldades. Ca­
da um dos competidores experimenta por sua vez
o triunfo enquanto se empenha na ofensiva e denun­
cia os absurdos, as barbaridades e as doutrinas per­
niciosas de seu antagonista. Mas todos eles, em con­
PARTE VIII 113
junto, proporcionam um triunfo completo ao céti-
co, que lhes diz que nenhum sistema deve ser ado­
tado com relação a esses tópicos; e isto pela simples
razão de que não se deve jamais dar o assentimento
a um absurdo, em qualquer assunto que seja. Uma
suspensão integral do juízo é, para nós, o único re­
curso razoável nestes casos. E se, como normalmente
se observa, todos os ataques entre teólogos são bem-
sucedidos e nenhuma defesa o é. quão completa não
será a vitória daquele que, junto com toda a huma­
nidade, se mantém sempre na ofensiva e não ocu­
pa, de sua parte, um terreno fixo ou residência per­
manente que estivesse em todas as ocasiões obriga­
do a defender!
PARTE IX
Demea: Mas se são tantas as dificuldades que
acompanham o argumento a posteriori, não seria me­
lhor apegarmo-nos ao simples e sublime argumen­
to a priori, o qual, ao oferecer-nos uma demonstra­
ção infalível, elimina desde o início todas as dúvi­
das e dificuldades? Além disso, este argumento per­
mite-nos provar a infinitude dos atributos divinos,
coisa que, segundo receio, jamais poderia ser esta­
belecida com certeza a partir de qualquer outra con­
sideração. Pois como poderia um efeito que é finito
ou, por tudo que sabemos, poderia sê-lo; como po­
deria um tal efeito, eu repito, servir de prova para
uma causa infinita? E também é muito difícil, se não
absolutamente impossível, deduzir a unidade da na­
tureza divina simplesmente a partir da contempla­
ção das obras da Natureza; e mesmo a uniformida­
de por si só do plano, admitindo-se que haja tal uni­
formidade, não nos dá qualquer garantia desse atri­
buto. Ao passo que o argumento a priori...
I W1 8 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA RURAL

Cleantes: Você parece raciocinar como se es­


sas vantagens e conveniências do argumento em abs­
trato fossem provas plenas de sua solidez. Mas, em
minha opinião, é preciso inicialmente decidir qual
é, dentre os argumentos dessa espécie, aquele ao qual
você escolheu referir-se. Trataremos, em seguida, de
determinar qual o valor que devemos atribuir-lhe,
julgando-o por si mesmo e não pela utilidade de suas
conseqüências.
Deinea: O argumento no qual insisto é aque­
le comumente reconhecido. Tudo o que existe deve
ter uma causa ou razão para sua existência, pois é
absolutamente impossível que alguma coisa produ­
za a si mesma, ou seja causa de sua própria existên­
cia. Ao remontar, assim, dos efeitos às causas, ou bem
prosseguimos através de uma sucessão infinita, sem
jamais alcançar uma causa última, ou bem temos de
recorrer por fim a uma causa última que existe ne­
cessariamente. Mas pode-se provar que a primeira su­
posição é absurda, pois, na cadeia ou sucessão infi­
nita de causas e efeitos, cada efeito singular tem sua
existência determinada pelo poder ou eficácia daque­
la causa que o precede imediatamente, ao passo que
a cadeia ou sucessão eterna, tomada em conjunto,
não terá qualquer causa ou determinação. E, no en­
tanto, é evidente que ela requer uma causa ou ra­
zão, tanto quanto qualquer objeto particular que co­
meça a existir no tempo. E razoável perguntar por
que essa particular sucessão de causas teria existido
desde a eternidade, e não qualquer outra sucessão,
ou mesmo nenhuma sucessão. Se não há um ser ne­
cessariamente existente, qualquer suposição que se
possa formular é igualmente possível; assim., que nada
PARTE IX 119
tivesse existido desde toda a eternidade não seria um
absurdo maior do que a existência dessa sucessão de
causas que constitui o Universo. O que foi, então,
que determinou que algo existisse em vez. de nada,
e que conferiu um ser a uma possibilidade particu­
lar, excluindo as restantes? Supusemos que não há
causas externas, e o acaso ê uma palavra sem signifi­
cação. Foi, talvez, o nada? Mas este jamais poderia
produzir qualquer coisa. É preciso, portanto, recorrer
a um Ser necessariamente existente, que traga a ra­
zão de sua existência em si mesmo; e que só à custa
de uma flagrante contradição se poderia supor que
não existisse. Há, conseqüentemente, um tal Ser —
ou seja, há uma Divindade.
Cleantes: Não vou permitir a Filo (embora sai­
ba que nada lhe agrada mais do que levantar obje­
ções) apontar a fraqueza desse raciocínio metafísi­
co. Ele me parece tão obvíamente infundado e, ao
mesmo tempo, de tão pouca relevância para a causa
da verdadeira devoção e religiosidade, que eu mes­
mo vou aventurar-me a mostrar sua falácia.
Começo por notar que há um absurdo eviden­
te na pretensão de demonstrar uma questão de fato,
ou de prová-la por meio de qualquer argumento a
priori. Nada é demonstrável a menos que seu con­
trário implique uma contradição. Nada que é dis­
tintamente concebível implica uma contradição. Tu­
do que concebemos como existente também pode­
mos conceber como inexistente. Assim, não há qual­
quer ser cuja não-existência implique uma contra­
dição. Conseqüentemente, nenhum ser pode ter sua
existência demonstrada. Apresento este argumento
como totalmente decisivo, e estou disposto a basear
a controvérsia inteira sobre ele.
I -’() DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Sn põe-se que a Divindade é um ser necessariamen-


ir exisirnte, e busca-se explicar a necessidade de sua
• '« i-.i ri iria pela asserção de que, se conhecéssemos in-
u pi.dmente sua essência ou natureza, perceberiamos
que <• Cio impossível que ele não exista como que duas
vi-. i-s dois não sejam quatro. Mas é claro que isso ja-

m.ir. poderá ocorrer enquanto nossas faculdades per-


iii.iih’i ercin tal como presentemente são. Sempre nos

.1 i .1 possível, a qualquer momento, conceber a não-


< o .ii'iii i.i daquilo que antes supusemos existir; e tam-
poni o <-siá a mente submetida à necessidade de su-
I h h (|ii(> qualquer objeto persistirá existindo para sem-
|u> , d.i maneira pela qual estamos submetidos à ne-
II .-.u Lide de supor sempre que duas vezes dois são qua-
i io Assim, as palavras “existência necessária” não têm
■. i |m11 k-jçã< >; ou, o que dá na mesma, não têm nenhu-
m.i -apnilicação que seja consistente.
Mas, além disso, por que não poderia esse Ser
iH-i ai ia mente existente, de acordo com essa pre-
!■ ii-.a explicação de necessidade, ser constituído pe-
I' • pi dpi io universo material? Não ousamos afirmar
qm < onlircemos todas as qualidades da matéria; e,
poi indo que podemos decidir, ela pode possuir al­
gum.e. qualidades que, se fossem conhecidas, fariam
'.ii.i ii.in existência aparecer como uma contradição
i i< * |',i,iin|e corno a de que duas vezes dois sejam cín-
■ o 'io tenho conhecimento de um único argumen-
u > empregado para provar que o mundo material não
- o Sei necessariamente existente; e esse argumento
doi iva sc da contingência tanto da matéria como da
....... do mundo. “Qualquer partícula de matéria”,
di -.e1’, “pode ser concebida como sofrendo aniqui-

■i I >i ( ’.larke.
PAR TE IX 121
lação, e qualquer forma pode ser concebida como
sofrendo alteração. Tal aniquilação ou alteração não
é, portanto, impossível?’ No entanto, parecería gran ­
de parcialidade não reconhecer que o mesmo argu­
mento se estende igualmente à Divindade, tanto
quanto nos é dado concebê-la; e que a mente pode,
pelo menos, imaginá-la como não-existente, ou co­
mo tendo seus atributos alterados. Se algo faz essa
não-existência aparecer como impossível, ou seus
atributos como inalteráveis, deve tratar-se de certas
qualidades desconhecidas e inconcebíveis; e não há
razão para que tais qualidades nao possam perten­
cer também à matéria, pois, dado que são comple­
tamente desconhecidas e inconcebíveis, não se po­
derá jamais provar que elas lhe sejam incompatíveis.
Acresça-se a isto o fato de que, ao se esquadri­
nhar uma sucessão eterna de objetos, parece absur­
do perguntar por uma causa geral, ou primeiro au­
tor. Como poderia haver uma causa de algo que exis­
te desde a eternidade, se essa relação envolve uma
prioridade no tempo e um começo de existência?
Além disso, em uma tal cadeia ou sucessão de
objetos, cada parte é causada pela precedente e é causa
da que lhe vem a seguir. Onde está, pois, a dificul­
dade? Mas o todo, você .diz, precisa ter uma causa.
Minha resposta é que a união dessas partes em um
todo, assim como a união de várias províncias dife­
rentes em um reino, ou de vários membros distin­
tos em um corpo, realiza-se simplesmente por um
ato arbitrário da mente e não tem influência sobre
a natureza das coisas. Se eu lhe tivesse mostrado as
causas particulares de cada indivíduo de uma cole­
ção de vinte partículas materiais, seria muito pou­
1*22 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

co razoável que você me perguntasse, a seguir, pela


causa das vinte como um todo. Pois ela já foi sufi­
cientemente explicada ao se explicarem as causas das
partes.
Filo: Embora os raciocínios apresentados por
você, Cleantes, sejam suficientes para eximir-me de
levantar novas dificuldades, não posso deixar de res­
saltar ainda um tópico adicional. Aqueles que se ocu­
pam da aritmética observam que os produtos de 9,
se se adicionam os algarismos de que são formados,
resultam sempre em 9 ou em algum outro produto
de 9 menor do que aquele de que se partiu. Assim,
a partir de 18, 27, 36, que são produtos de 9, obtém-se
9 pela adição de 1 a 8, 2 a 7, 3 a 6. Do mesmo mo­
do, também 369 é um produto de 9, e a adição de
3, 6 e 9 resulta em 18, que é um produto de 9 me­
nor do que aquele de que se partiu6. Um observa­
dor superficial poderia, ao contemplar uma regula­
ridade tão admirável, tomá-la como o resultado do
acaso ou de um desígnio, mas um algebrista com­
petente a reconhece imediatamente como obra da
necessidade, e pode demonstrar que ela resulta in­
variavelmente da natureza desses números. Não é
plausível, pergunto, que a organização integral do
Universo seja regida por uma necessidade semelhan­
te, embora nenhuma álgebra humana possa forne­
cer uma chave para a solução da dificuldade? E, em
vez de nos admirarmos com a ordem dos seres na­
turais, nao poderia ocorrer que — caso pudéssemos
penetrar na natureza recôndita dos corpos — che­
gássemos a ver claramente a razão pela qual seria ab­

6. Republique des Lettres, agosto de 1685.


PARTE IX 123
solutamente impossível que eles viessem, alguma vez,
a admitir qualquer outra disposição? Como é peri­
gosa a introdução da idéia de necessidade na presente
discussão, e quão naturalmente ela leva a uma infe­
rência diretamente oposta à hipótese religiosa!
Deixando de lado, porém, todas essas abstrações
e limitando-nos a tópicos mais familiares, eu me
aventuraria a observar, adicionalmente, que o argu­
mento a priori raras vezes tem sido considerado mui­
to convincente, exceto por pessoas de inclinações me­
tafísicas que estão acostumadas a raciocínios abstra­
tos e que, descobrindo com auxílio da matemática
que o entendimento leva freqíientemente à verdade
através de caminhos obscuros e em oposição às pri­
meiras aparências, transferem o mesmo hábito de
pensamento a assuntos nos quais ele não deveria ter
lugar. Outras pessoas, mesmo dotadas de bom sen­
so e bastante inclinadas à religião, sempre reconhe­
cem alguma deficiência em tais argumentos, ainda
que não sejam capazes, talvez, de explicar claramente
onde ela reside; o que é uma prova certa de que as
pessoas sempre derivaram e sempre derivarão sua re­
ligiosidade de fontes que não se confundem com esta
espécie de raciocínio.
PARTE
Demea: Confesso que também sou de opinião
que cada pessoa, de um certo modo, experimenta
em seu próprio peito a verdade da religião; e, a par­
tir do conhecimento de sua própria estupidez e mi­
séria, de preferência a qualquer raciocínio, é levada
a buscar a proteção daquele Ser do qual ela e toda
a Natureza dependem. Mesmo os melhores momen­
tos da vida estão impregnados de angústia e aborre­
cimento, de tal maneira que o futuro continua sen­
do o objeto de todas as nossas esperanças e temores.
Estamos incessantemente olhando à frente, e esfor-
çando-nos por apaziguar, por meio de orações, cul­
tos e sacrifícios, aqueles poderes desconhecidos que
sabemos, por experiência, serem muito capazes de
nos atormentar e oprimir. Que recurso restaria a nós,
criaturas tão desgraçadas, se a religião não nos suge­
risse alguns métodos de expiação e não aplacasse os
terrores que constantemente nos assaltam e ator­
mentam?
V'8 DIÁLOGOS SORRE A RELIGIÃO NATURAL

Fil o: Estou na verdade convencido de que o me­


lhor e, de fato, o único método de despertar em to­
das as pessoas um correto sentimento de religiosi­
dade é a descrição imparcial da miséria e perversi­
dade dos seres humanos. E, para essa finalidade,
requer-se muito mais o talento da eloquência e da
imaginação vivida do que a habilidade nos raciocí­
nios e argumentos. Haveria necessidade de provar
aquilo que todos já sentem dentro de si mesmos?
O que é necessário, simplesmente, é fazer-nos, se pos­
sível, sentir isso de maneira mais íntima e ajuizada.
Deraea: Na realidade, as pessoas já estão sufi­
cientemente convencidas dessa grande e melancóli­
ca verdade. As misérias da vida, a infelicidade do ser
humano, as corrupções gerais de nossa natureza, o
gozo insatisfatório dos prazeres, riquezas e honras:
tais frases já se tornaram quase proverbiais em to­
das as linguagens. E quem poderia pôr em dúvida
aquilo que todas as pessoas proclamam com base
imediata em seus próprios sentimentos e expe­
riências?
Filo: Neste ponto, os sábios e o vulgo estão em
perfeito acordo; e toda a literatura, sacra ou profa­
na, tem insistido sobre o tópico da miséria huma­
na, com a eloquência mais patética que a dor e a
melancolia podem inspirar. Os poetas, que falam a
partir do sentimento, sem dispor de um sistema, e
cujo testemunho tem, portanto, maior autoridade,
excedem-se em imagens desse tipo. Desde Homero
até o dr. Young, toda a tribo dos inspirados sempre
reconheceu que nenhuma outra forma de represen­
tar as coisas poderia convir ao sentimento e obser­
vação de cada indivíduo.
PARTE X 129
Demea: Quanto às autoridades, nem é preci­
so que você as procure. Lance os olhos por esta bi­
blioteca de Cleantes. Eu me atreveria a afirmar que,
com exceção dos autores de ciências especializadas,
tais como a química ou a botânica, os quais não têm
oportunidade de tratar da vida humana, dificilmente
haverá um único desses inumeráveis autores que não
tenha sido levado, pelo sentimento da miséria hu­
mana, a expressar, em uma ou outra passagem, uma
queixa ou confissão dessa miséria. Todas as proba­
bilidades, pelo menos, estão a favor disso, e não posso
record.ar-me de nenhum autor que tenha sido tao
extravagante a ponto de negar tal coisa.
Filo: Quanto a isso, peço-lhe que me desculpe,
mas Leibniz negou-o, e foi talvez o primeiro7 a ar­
riscar uma conjetura tão ousada e paradoxal; ou, pelo
menos, o primeiro a fazer dela algo essencial para
seu sistema filosófico.
Demea: E exatamente por ser o primeiro não
deveria ele ter-se dado conta de seu erro? Será este
um assunto no qual os filósofos podem propor-se
a fazer descobertas, especialmente em época tão tar­
dia? E poderia alguém esperar, mediante um sim­
ples desmentido (pois o assunto dificilmente admi­
te argumento), pôr abaixo o testemunho unânime
da humanidade, fundado no sentimento e na re­
flexão?
E por que deveria o ser humano pretender es­
capar do fado de todos os outros animais? Acredite-
me, Filo, a Terra inteira está amaldiçoada e corrom­

7. Essa opinião foi sustentada, antes de Leibniz, pelo dr.


King e por um pequeno número de outros autores, embora ja­
mais por alguém tão célebre como aquele filósofo alemão.
l£0 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

pida. Uma guerra perpétua está deflagrada entre to­


das as criaturas vivas. A necessidade, a fome e a pri­
vação estimulam os fortes e corajosos; o medo, a an­
siedade e o terror inquietam os fracos e tímidos. O
ingresso na vida angustia o recém-nascido e seus in­
felizes pais. A debilidade, a impotência e a aflição
acompanham cada estágio da vida, que termina, por
fim, em agonia e horror.
Filo: Observe ainda os singulares artifícios em­
pregados pela Natureza para amargurar a vida de to­
do ser vivo. Os mais fortes lançam-se sobre os mais
fracos e mantêm-nos em perpétuo terror e ansieda­
de. Os mais fracos, por sua vez, atacam muitas ve­
zes os mais fortes e os atormentam e importunam
sem descanso. Considere a raça inumerável dos in­
setos, que se procriam no corpo de cada animal ou
que, voando ao seu redor, cravam-lhe seus aguilhões.
Esses insetos têm outros, ainda menores que eles pró­
prios, que, por sua vez, os atormentam. Assim, de
um lado e de outro, à frente e atrás, acima e abaixo,
cada animal está cercado de inimigos, dedicados sem
cessar à sua desgraça e destruição.
Demea: Somente o ser humano parece cons­
tituir-se numa exceção parcial a essa regra. Pois, pe­
la reunião em sociedade, ele pode facilmente domi­
nar leões, tigres e ursos, cuja maior força e agilidade
os capacitariam naturalmente a fazer dele sua presa.
Filo: Pelo contrário, é principalmente aqui que
se tornam mais visíveis as máximas uniformes e igua­
litárias da Natureza! É verdade que o ser humano
pode, pela associação, sobrepujar todos os seus ini­
migos reais e tornar-se senhor de toda a criação ani­
mal. Mas também não é verdade que ele imediata­
PARTE X 131
mente cria para si inimigos imaginários, os demô­
nios de sua fantasia, que o perseguem com terrores
supersticiosos e arruinam todos os deleites da vida?
Seu prazer, segundo ele imagina, torna-se um crime
aos olhos desses demônios; seu alimento e repouso
aparecem-lhes como desrespeitoso e ofensivo. Mes­
mo o sono e os sonhos fornecem novas ocasiões de
terror angustiante; e a própria morte, seu refúgio
contra todos os outros males, só tem a lhe oferecer
O temor de penas inumeráveis e eternas. A aflição
que o lobo traz ao rebanho medroso não é maior
do que a que a superstição produz no coração an­
gustiado dos miseráveis mortais.
Considere além disso, Demea, a própria socie­
dade por meio da qual conseguimos sobrepujar aque­
les animais selvagens, nossos inimigos naturais: quan­
tos novos inimigos ela não levanta contra nós, e quan­
tas penas e aflições ela não ocasiona? O homem é
o maior inimigo do homem. Opressão, injustiça, des­
prezo, ultraje, violência, sublevação, guerra, calúnia,
traição, fraude: tudo isto serve aos seres humanos para
atormentarem-se mutuamente; e a sociedade que for­
maram logo seria por eles dissolvida, se não fosse
pelo temor dos males ainda maiores que devem ne­
cessariamente resultar de sua separação.
Demea: Contudo, embora esses ataques exter­
nos por parte de animais, de homens e de todos os
elementos formem um terrível catálogo de desgra­
ças, eles não são nada em comparação com aqueles
que surgem dentro de nós mesmos, provenientes da
condição desequilibrada de nossa mente e nosso cor­
po. Quantos não estão submetidos ao prolongado
tormento das enfermidades? Ouça a enumeração pa­
tética do grande poeta:
132 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
fel
Pedra interna e úlcera, cólicas agudas,
Furor demoníaco, melancolia prostrante,
E demência lunática, atrofia corrosiva,
Extenuação e pestilência devastadora.
A agitação era horrível, e profundos os gemidos;
O Desespero cuidava dos enfermos, correndo de leito
[em leito.
E, por sobre eles, a Morte triunfante seu dardo
Brandia, mas tardava a ferir, embora amiúde invocada
Com juras, como o maior bem e derradeira esperança.*

As desordens mentais, embora mais ocultas, não


são talvez menos lúgubres e opressivas. Remorso, ver­
gonha, angústia, cólera, desilusão, ansiedade, medo,
desalento, desespero: quem já terá passado pela vida
sem ter sido cruelmente assaltado por esses atormen­
tadores? E quantos não são os que dificilmente che­
gam a experimentar qualquer sensação melhor do
que essas? A labuta e a pobreza, tão detestadas por
todos, são o destino inescapável da imensa maioria;
e os poucos privilegiados que gozam de ócio e opu­
lência jamais alcançam a satisfação ou a verdadeira
felicidade. Todos os bens da vida, em conjunto, não
seriam suficientes para tornar alguém muito feliz,
mas todos os males juntos torná-lo-iam sem dúvida
muito desgraçado; e qualquer um deles (e quem es­
taria livre de todos?), mais ainda: a mera ausência

* Intestine stone and ulcer, colic-pangs, / Demoniac frenzy,


moping melancholy, / And moon-struck madness, pining
atrophy, / Marasmus, and. wide-wasting pestilence. / Dire was
the tossing, deep the groans: Despair / Tended the sick, bu­
siest from couch to couch. / And over them triumphant Death
his dart / Shook; but delay’d to strike, though oft invok’d /
With vows, as their chief good and final hope.
(Milton, Paraíso Perdido, livro XI.)
PARTE X 133
de um bem (e quem poderia possuí-los todos?) é mui­
tas vezes suficiente para tornar a vida indesejável.
Se um estranho chegasse de súbito a este mun­
do, eu poderia exemplificar seus males mostrando-
lhe um hospital cheio de doentes, uma prisão api­
nhada de malfeitores e endividados, um campo de
batalha salpicado de carcaças, uma frota naufragan­
do no oceano, uma nação desfalecendo sob a tira­
nia, fome ou pestilência. Mas para onde deveria
conduzi-lo se quisesse revelar-lhe o lado alegre da
vida e dar-lhe uma idéia de seus prazeres? A um baile,
a uma ópera, à corte? Ele poderia muito bem pen­
sar, e com razão, que o que lhe está sendo exibido
é apenas uma nova variedade de pesares e desgostos.
Filo: Não é possível escapar desses exemplos
chocantes, a não ser por meio de apologias que agra­
vam ainda mais a denúncia. Por que, eu me pergun­
to, teriam todas as pessoas se queixado incessante­
mente, em todas as épocas, das misérias da vida?...
Alguém poderia dizer que'elas não têm uma boa
razão para isso, e que essas queixas procedem ape­
nas de um caráter descontente, lamuriento e ansio­
so... Mas poderia haver, éu replico, uma garantia mais
certa dessa miséria do que esse temperamento des-
venturado?
Contudo, poderia dizer meu antagonista, se eles
são realmente tão infelizes quanto pretendem ser, por
que insistem em permanecer vivos?...

Insatisfeitos com a vida, temerosos da morte*

* Not satisfied with life, afraid of death.


Q4 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Este, eu afirmo, é o grilhão oculto que nos mantém


aprisionados. Não é o suborno, mas o terror que
nos faz perseverar em nossa existência.
Meu antagonista poderia insistir em que essas
queixas se difundiram por toda a espécie humana
simplesmente a partir de uma susceptibilidade equí­
voca, com a qual se comprazem alguns espíritos re­
finados... Mas qual é essa susceptibilidade, eu per­
gunto, que se está acusando? Não é ela senão uma
maior sensibilidade a todos os prazeres e sofrimen­
tos da vida? E se as pessoas de temperamento deli­
cado e refinado, ao estarem tão mais dotadas de vi­
da que as demais, só conseguem ser muito mais in­
felizes, que opinião deveremos formar da vida hu­
mana em geral?
Que as pessoas permaneçam em repouso, diz
nosso adversário, e elas se sentirão aliviadas. Elas são
os agentes espontâneos de sua própria miséria... Não!
eu respondo. Um torpor angustiado será a conse-
qüência de seu repouso, assim como a desilusão, con­
trariedade e transtorno se seguem de sua atividade
e ambição.
Cleantes: Posso observar em algumas pessoas
algo semelhante ao que vocês mencionam, mas con­
fesso que sinto pouco ou nada disso em mim mes­
mo, e espero que não se trate de algo tão comum
como vocês o representam.
Demea: Se você não experimenta em si mes­
mo a miséria humana, permita-me congratulá-lo por
tão feliz peculiaridade. Outros, aparentemente os
mais venturosos, não se envergonharam de procla­
mar suas queixas nos tons mais melancólicos. Con­
sideremos o caso do grande e afortunado imperador
Carlos V, no momento em que, cansado das glórias
PARTE X 135
humanas, renunciou a todos os seus imensos domí­
nios em favor de seu filho. No último discurso que
realizou, naquela ocasião memorável, ele confessou
puhlicamente que as maiores felicidades que já tinha
experimentado estiveram mescladas com tantas adver-
sidades que ele podia verdadeiramente dizer que nun­
ca tinha gozado de qualquer satisfação ou alegria. E
teria ele obtido alguma felicidade maior na vida re­
clusa em que buscou abrigar-se? Se pudermos dar
crédito ao relato de seu filho, seu arrependimento
teve início no próprio dia da renúncia.
A ventura de Cícero alçou-se, desde inícios mo­
destos, até o máximo brilho e renome, mas quão pa­
téticas são as queixas sobre os males da vida conti­
das em suas cartas privadas, assim como em seus dis­
cursos filosóficos! E, em conformidade com sua pró­
pria experiência, ele nos apresenta Catão, o grande,
o afortunado Catão, assegurando em sua velhice que,
se lhe fosse oferecida uma nova vida, ele rejeitaria
a de que presentemente dispunha.
Pergunte a você mesmo, pergunte a qualquer de
seus conhecidos, se eles concordariam em viver de
novo os últimos dez ou vinte anos de suas vidas.
Não! Mas os próximos vinte anos, eles dizem, se­
rão melhores:

E do aluviao da vida esperam obter


O que as primeiras e vivazes correntezas não
puderam ofertar.*

* And from the dregs of life, hope to receive/What the


first sprightly running could not give.
(Dryden, Aurengzebe, ato IV, cena 1.)
V6 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA TURAL

E assim descobrem, por fim (tal é a extensão da mi­


séria humana: ela reconcilia até mesmo as contradi­
ções), que se queixam simultaneamente da brevida­
de da vida e de sua frivolidade e tristeza.
Filo: Será possível, Cleantes, que, após todas estas
reflexões, e infinitas outras que se poderia sugerir,
você possa ainda perseverar em seu antropomorfis-
mo e declarar que os atributos morais da Divinda­
de, sua justiça, benevolência, misericórdia e retidão,
tenham a mesma natureza dessas virtudes nas cria-
turas humanas? Seu poder, admitimos, é infinito: tudo
o que ela quer é executado. Mas nem o ser humano
nem qualquer outro animal é feliz; portanto, ela não
quer sua felicidade. Sua sabedoria é infinita: ela nunca
se engana na escolha dos meios para um certo fim.
Mas o curso da Natureza não tende para a felicidade
humana ou animal; portanto, esse curso não foi es­
tabelecido com tal propósito. Nao há, em todo o âm­
bito do conhecimento humano, inferências mais cer­
tas e infalíveis que estas. Em que aspecto, então, sua
benevolência e misericórdia se assemelhariam à be­
nevolência e misericórdia humanas?
As velhas questões de Epicuro permanecem sem
resposta.
A Divindade quer evitar o mal, mas não é ca­
paz disso? Então ela é impotente. Ela é capaz, mas
nao quer evitá-lo? Então ela é malévola. Ela é capaz
de evitá-lo e quer evitá-lo? De onde, então, provém
o mal?
Você, Cleantes, atribui um propósito e intenção
à Natureza (e creio que com justiça). Mas qual, eu
lhe pergunto, é o objetivo desse artifício e mecanis­
mo singulares que ela nos exibe em todos os animais?
A mera preservação dos indivíduos e a propagação
PARTE X 137
das espécies? Se esse é o seu propósito, basta, à pri­
meira vista, que tais classes de seres sejam meramente
preservadas no Universo, sem qualquer cuidado ou
preocupação pela felicidade dos membros que as
compõem. Nenhum recurso destinado para esse fim,
nenhum mecanismo que vise simplesmente a dar
prazer ou conforto, nenhum cabedal de pura alegria
ou contentamento, nenhuma gratificação sem algu­
ma carência ou necessidade que a acompanhe. Ou,
pelo menos, os poucos fenômenos desta espécie são
contrabalançados por fenômenos opostos de impor­
tância ainda maior.
Nosso sentido da música, da harmonia, e, na ver­
dade, de todos os tipos de beleza, proporciona satis­
fação sem que seja absolutamente necessário para a
preservação e a propagação da espécie. Por outro la­
do, como são atrozes os padecimentos que provêm
da gota, dos cálculos, das enxaquecas, das dores de
dentes e do reumatismo; todos estes sendo casos em
que o dano ao mecanismo animal é ou pequeno ou
incurável. A alegria, o riso, os divertimentos e fol­
guedos parecem satisfações gratuitas que não têm
conseqüências adicionais; o mau-humor, a melan­
colia, o descontentamento e a superstição são sofri­
mentos com a mesma característica, Como, então,
a benevolência divina poderia exibir-se no sentido
em que vocês, antropomorfistas, a concebem? So­
mente nós, os místicos, como lhe agrada chamar-
nos, podemos dar conta dessa estranha mescla de fe­
nômenos, ao derivá-la de atributos infinitamente per­
feitos, embora incompreensíveis.
Cleantes: [sorrindo] E terá você, Filo, finalmen­
te revelado suas verdadeiras intenções? Fiquei, de fato,
um pouco surpreendido pelo seu longo acordo
J38 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

com Demea, mas percebo que você estava, durante


todo esse tempo, montando ocultamente a artilha­
ria contra mim. E devo confessar que você se depa­
rou, agora, com um assunto digno de seu nobre es­
pírito de oposição e controvérsia. Se lhe for possí­
vel estabelecer este ponto e provar que a humanida­
de é infeliz ou corrompida, isso trará imediatamen­
te o fim de toda religião. Pois de que Valeria estabe­
lecer os atributos naturais da Divindade se seus atri­
butos morais permanecem duvidosos e incertos?
Demea: Você se choca muito facilmente com
opiniões as mais inocentes e mais geralmente difun­
didas, mesmo entre pessoas pias e religiosas; e é muito
surpreendente que um tópico como este, referente
à maldade e miséria humanas, receba as acusações
de ateísmo e profanação. Pois não é verdade que to­
dos os mais devotos teólogos e pregadores que já exer­
citaram sua retórica nesse fértil assunto chegaram fa­
cilmente a encontrar a solução de todas as dificul­
dades que possivelmente o acompanham? Este mun­
do não é senão um ponto em comparação com o
Universo; esta vida, apenas um momento em com­
paração com a eternidade. Os fenômenos malignos
presentes serão, portanto, corrigidos em outras re­
giões e em alguma época futura da existência. E en­
tão, com os olhos abertos para uma perspectiva mais
ampla das coisas, os seres humanos perceberão a co­
nexão integral das leis gerais e serão capazes de iden­
tificar, cheios de veneração, a benevolência e a reti­
dão da Divindade, através de todos os labirintos e
meandros de sua providência.
Cleantes: Não! Não! Essas suposições arbitra­
PARTE X 139
rias não podem jamais ser admitidas, já que contra­
dizem os fatos visíveis e inquestionáveis. Como se
poderia conhecer alguma causa se não a partir de
seus efeitos conhecidos? Como se poderia provar al­
guma hipótese se nao pelos fenômenos que presen­
ciamos? Fundar uma hipótese sobre outra é cons­
truir inteiramente sobre o ar, e o máximo que po­
demos atingir por meio de tais conjeturas e ficções
é a determinação da mera possibilidade de nossa opi­
nião, mas jamais nos será possível, com base nisso,
estabelecer sua realidade.
O único método para dar suporte à benevolên­
cia divina (e é deste que estou disposto a fazer uso)
é negar completamente a miséria e a maldade hu­
manas. Suas descrições são exageradas, suas concep­
ções melancólicas são na maior parte imaginárias,
e suas inferências contradizem os fatos e a experiên­
cia. A saúde é mais comum que a doença, o prazer
é mais comum que a dor, e a felicidade é mais co­
mum que a miséria. E, para cada dissabor que expe­
rimentamos, obtemos, ao final das contas, uma cen­
tena de alegrias.
Filo: Admitindo-se esse seu ponto de vista, que
é, no entanto, extremamente duvidoso, você deve ao
mesmo tempo reconhecer que a dor, ainda que seja
menos freqüente que o prazer, é infinitamente mais
violenta e duradoura. Uma hora de sofrimento é
muitas vezes capaz de suplantar um dia, uma sema­
na, um mês de nossas triviais e insípidas alegrias;
e quantos já não passaram dias, semanas ou meses
em meio aos mais agudos tormentos? Dificilmente
haverá um único caso de prazer em que se atinja o
êxtase ou arrebatamento; e em nenhum caso essa sen-
140 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

saçao poderia manter-se por muito tempo em seu


grau mais intenso e elevado. Os humores se evapo­
ram, os nervos relaxam, o organismo se desordena,
e o gozo rapidamente degenera em fadiga e descon­
forto. Mas freqüentemente a dor — Deus meu, quão
frequentemente! — cresce até se tornar uma tortura
e agonia; e, quanto mais ela se prolonga, mais se con­
verte em genuína agonia e tortura. A paciência se
exaure, a coragem desfalece, somos tomados pela
prostração, e nada pode interromper nosso sofrimen­
to a não ser a remoção de sua causa, ou então aque­
le evento que é o único remédio para todos os ma­
les, mas que, devido à nossa natural insensatez, en­
caramos com horror e consternação ainda maiores.
Contudo, para não insistir mais nesses assuntos
— embora sejam óbvios, corretos e importantes ao
extremo — permito-me censurá-lo, Cleantes, por ter
conduzido a controvérsia para uma questão perigo-
síssima e instaurado, sem se dar conta, um ceticis­
mo total com relação aos tópicos mais essenciais da
teologia natural e revelada. Que diz você?! Que o
único método de estabelecer uma base sólida para
e religião exige admitir que a vida humana é afortu­
nada e que a perpetuação da existência, neste mun­
do presente, com todas as suas dores, enfermidades,
tormentos e desatinos, é desejável e digna de prefe­
rência! Mas isto é contrário ao sentimento e expe­
riência de todos, e contrário, portanto, a uma auto­
ridade tão bem estabelecida a ponto de não poder
sofrer qualquer abalo. Contra essa autoridade, ne­
nhuma prova decisiva poderá jamais ser apresenta­
da, nem é possível que você chegue a calcular, ava­
liar e comparar todos os sofrimentos e prazeres das
vidas de todos os homens e animais. Por conseguinte,
PARTEX 14'1
ao fazer com que o sistema da religião se baseie por
inteiro em um tópico que, pela sua própria nature­
za, deve permanecer para sempre incerto, você está
tacitamente confessando que esse próprio sistema é
igualmente incerto.
Concedendo-lhe, porém, esse ponto que jamais
poderá ser digno de crédito — ou, pelo menos, para
o qual você jamais será capaz de fornecer uma pro­
va —, a saber, que a felicidade dos animais, ou pelo
menos dos seres humanos, excede, nesta vida, a so­
ma de seus sofrimentos, isso ainda não lhe servirá
para nada. Pois isso não é de modo algum aquilo
que deveriamos esperar de uma potência, sabedoria
e bondade infinitas. Por que haveria, afinal, qual­
quer desgraça no mundo? Certamente, não por acaso.
Ela deve, então, provir de alguma causa. Será prove­
niente da intenção da Divindade? Mas ela é perfei-
tamente benévola. Será contrária a suas intenções?
Mas ela é onipotente. Nada pode abalar a solidez
deste raciocínio, tão conciso, claro e convincente, a
menos que se declare que esses assuntos estão fora
do alcance de qualquer faculdade humana, e que nos­
sos padrões habituais de verdade e falsidade a eles
nao se aplicam. Tal é o ponto sobre o qual venho
continuamente insistindo, mas que você, desde o iní­
cio, rejeitou com desprezo e indignação.
Não me oponho, porém, a recuar voluntaria­
mente desta minha posição, embora negue que vo­
cê possa forçar-me a tanto. Concederei, assim, que
o sofrimento ou a desgraça dos seres humanos é com­
patível com o infinito poder e benevolência da Di­
vindade, mesmo no sentido que você dá a esses atri­
butos. Mas de que lhe serve essa concessão? Não basta
1^2 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

a mera possibilidade dessa compatibilização: você de­


ve provar a vigência desses atributos puros, simples
e incondicionais, partindo dos fenômenos mescla­
dos e confusos que presenciamos e apenas a partir
deles. Que belas esperanças você pode alimentar!
Ainda que tais fenômenos fossem totalmente puros
e não mesclados, o fato de que são finitos os torna­
ria insuficientes para essa finalidade. Quão mais di­
fícil, então, será a tarefa, dado que eles também apre­
sentam tamanho desacordo e discrepância!
Neste ponto, Cleantes, sinto-me bem à vontade
em meu argumento. Aqui, a vitória é minha. Quan­
do discutíamos, antes, os atributos naturais de inte­
ligência e propósito, tive que mobilizar todas as su­
tilezas céticas e metafísicas para escapar dos apuros
em que você me colocou. Em. muitos aspectos do
Universo e de suas partes, especialmente destas úl­
timas, a beleza e a adequação das causas finais im-
pressionam-nos com uma força irresistível, a tal pon­
to que todas as objeções aparecem-nos como meros
ardis e sofismas (de fato, segundo creio, é isso que
elas realmente são), e não podemos sequer imagi­
nar como nos seria possível atribuir-lhes alguma im­
portância. Mas nao há qualquer aspecto da vida hu­
mana ou da condição da humanidade a partir do
qual, sem cometer a máxima violência, pudéssemos
inferir os atributos morais ou chegar a conhecer
aquela infinita benevolência, associada a um poder
e sabedoria infinitos, que apenas os olhos da fé nos
permitem discernir. É a sua vez, agora, de empunhar
este pesado remo e esforçar-se para defender suas su­
tilezas filosóficas contra os ditames da simples ra­
zão e experiência.
PARTE XI
Cleantes: Não tenho escrúpulos em admitir
que sempre estive inclinado a suspeitar que a repe­
tição frequente da palavra “infinito”, com a qual nos
deparamos em todos os autores teológicos, mais se
aproxima do discurso laudatório do que daquele pro­
priamente filosófico; e que todos os propósitos do
raciocínio, e mesmo da religião, estariam melhor ser­
vidos se nos contentássemos com expressões mais
precisas e moderadas. Os termos “admirável”, “ex­
celente”, “sumamente grande”, “sumamente sábio”
e “sumamente santo” bastam para preencher a ima­
ginação das pessoas; e tudo que os ultrapassa, além
de conduzir a absurdos, não tem qualquer influên­
cia sobre os afetos e sentimentos. Assim, ao aban­
donarmos toda a analogia humana neste assunto, co­
mo parece ser sua intenção, Demea, estaremos, eu
temo, abandonando toda religião e privando-nos de
qualquer idéia do grandioso objeto de nossa adora­
ção. Se, por outro lado, preservarmos a analogia hu­
146 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA TURAL

mana, jamais nos será possível conciliar os atribu­


tos infinitos com qualquer mistura de maldade no
Universo, e muito menos provar a vigência desses
atributos a partir dessa mistura. Supondo-se, no en­
tanto, que o Autor da Natureza seja finitamente per­
feito, embora excedendo em muito a humanidade,
será possível fornecer, então, uma justificação satis­
fatória da maldade natural e moral, e qualquer fe­
nômeno renitente passa a ser passível de explicação
e ajuste. Um mal menor pode então ser escolhido
com o fito de evitar-se outro maior, e certas incon­
veniências podem ser aceitas para que se atinja um
fim desejável. Em uma palavra, a benevolência, re­
gulada pela sabedoria e limitada pela necessidade, po­
deria produzir um mundo exatamente como este que
conhecemos. Ficarei muito satisfeito, Filo, em ou­
vir de você — que sempre está tão disposto a ofere­
cer perspectivas, reflexões e analogias — uma opi­
nião acerca desta nova teoria, de maneira detalhada
e sem interrupções. Se, posteriormente, considerar­
mos que essa teoria é merecedora de nossa atenção,
poderemos, com mais vagar, retomá-la de forma mais
metódica.
Filo: Não há razão para que eu crie um misté­
rio em torno de minhas opiniões; assim, vou expor,
sem qualquer cerimônia, aquilo que me ocorre com
relação a essa proposta. Penso que é preciso admitir
que, se uma inteligência muito limitada e comple-
tamente não familiarizada com o Universo estives­
se segura de que ele é o produto de um ser muito
benévolo, sábio e poderoso, embora finito, ela for­
maria de antemão, a partir dessas conjeturas, uma
idéia do Universo muito diferente daquela que nós,
PARTE XI 147
por experiência, temos dele; e não poderia jamais
imaginar, simplesmente a partir das informações de
que dispõe acerca dos atributos da causa, que o efei­
to, tal como nos aparece nesta vida, poderia conter
tantos vícios, miséria e desordem. Suponha-se ago­
ra que essa pessoa fosse trazida ao mundo, ainda se­
gura de que ele é o produto de um tal ser sublime
e benévolo. Ela poderia, talvez, ficar surpreendida
e desapontada, mas nem por isso seria levada a aban­
donar sua crença anterior se essa crença estivesse fun­
dada em algum argumento bastante sólido, pois uma
inteligência limitada deve reconhecer sua própria ce­
gueira e ignorância e deve admitir que pode haver
muitas explicações para esses fenômenos, embora tais
explicações escapem para sempre à sua compreen­
são. Suponhamos, porém, que essa criatura, assim
como de fato ocorre no caso dos seres humanos, não
esteja antecedentemente convencida da existência de
uma inteligência suprema, benevolente e poderosa,
mas precise chegar a essa crença a partir das coisas
tal como elas lhe aparecem. E claro que isto altera
completamente o quadro, pois ela jamais encontra­
rá qualquer razão que dê apoio a uma tal conclu­
são. Ainda que ela esteja plenamente convencida da
estreiteza de seu entendimento, isso não a ajudará
a formular alguma inferência sobre o caráter benig­
no dos poderes superiores, já que essa inferência de­
ve basear-se naquilo que lhe é conhecido, e não em
algo que ela ignora. Quanto mais você exagerar sua
fraqueza e ignorância, mais desconfiada ela se tor­
nara, e maiores serão suas suspeitas de que assuntos
como esses estão fora do alcance de suas faculdades.
Você está obrigado, portanto, a argumentar com ela
1^8 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

partindo apenas dos fenômenos conhecidos e a dei­


xar de lado toda suposição ou conjetura arbitrárias.
Se eu lhe mostrasse uma casa ou um palácio on­
de nao houvesse um único aposento confortável ou
aprazível, onde as janelas, portas, lareiras, corredo­
res, escadas e toda a organização do edifício fossem
causa de ruído, confusão, fadiga, obscuridade, e ca­
lor e frio extremados, você com certeza culparia o
projeto do edifício, sem perder tempo em maiores
averiguações. Seria inútil que o arquiteto exibisse sua
perspicácia provando que maiores males decorreríam
da alteração desta porta ou daquela janela. Pode ser
que tudo o que ele diz seja estritamente verdadeiro,
e que a alteração de um pormenor, mantendo-se as
demais partes do edifício, só pudesse conduzir ao
agravamento das inconveniências. Mesmo assim, vo­
cê provavelmente declararia que, se o arquiteto fos­
se competente e bem-intencionado, ele poderia ter
planejado o conjunto e ajustado suas partes de tal
modo que todas essas inconveniências, ou a maio­
ria delas, fossem corrigidas. O fato de que tanto ele
como você próprio ignorem como poderia ser esse
planejamento não constitui, de nenhum modo, um
argumento contra sua possibilidade. Ao constatar
quaisquer inconveniências ou defeitos na constru­
ção, você invariavelmente culpará o arquiteto, sem
entrar em maiores considerações.
Repito, em suma, a questão. O mundo, consi­
derado globalmente e da maneira pela qual ele nos
aparece nesta vida, não é porventura diferente da­
quilo que um ser humano, ou um ser igualmente
limitado, poderia esperar de antemão do produto de
uma Divindade muito poderosa, sábia e benevolen­
PARTE XI 149
te? Somente um estranho preconceito poderia levar
alguém a negar tal coisa. Disso concluo que, por mais
que ele seja consistente — dadas certas suposições
e conjeturas — com a idéia de uma Divindade desse
tipo, o mundo jamais será capaz de nos proporcio­
nar uma inferência relativa à existência dessa Divin­
dade. Meras conjeturas, em especial quando está ex­
cluída a infinitude dos atributos divinos, talvez pos­
sam ser suficientes para provar uma consistência, mas
jamais poderão prover as bases de um inferência co­
mo aquela.
Parece haver quatro circunstâncias das quais de­
pendem todos ou a maior parte dos males que afli­
gem as criaturas sensíveis; e não é impossível que
todas essas circunstâncias sejam necessárias e inevi­
táveis. Sabemos tão pouco acerca daquilo que ultra­
passa a vida cotidiana, ou mesmo acerca da própria
vida cotidiana, que, no que diz respeito à organiza­
ção do Universo, não há conjetura, por extravagan­
te que seja, que não possa ser correta e, reciproca­
mente, que não possa sei- errônea, por mais plausí­
vel que seja. Ao entendimento humano, mergulha­
do nesta profunda ignorância e obscuridade, con­
vém apenas ser cético ou, pelo menos, cauteloso e
não admitir nenhuma hipótese, muito menos hipó­
teses que não estejam apoiadas em alguma aparên­
cia de plausibilidade. Ora, afirmo que essa é preci­
samente a situação de todas as hipóteses relativas às
causas do mal e às circunstâncias de que ele depen­
de. Nenhuma delas aparece minimamente à razão
humana como necessária ou inevitável, e é só a mais
extrema liberdade da imaginação que pode levar-nos
a supô-las como tal.
150 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

A primeira circunstância que abre caminho pa­


ra o mal é aquela disposição ou organização da cria­
ção animal pela qual tanto a dor como o prazer são
empregados para estimular todas as criaturas à ação
e para torná-las atentas à grande tarefa da autopre-
servação. Mas o simples prazer, em seus diversos
graus, parece, ao entendimento humano, suficiente
para esse propósito. Todos os animais poderiam mui­
to bem permanecer em um estado de gozo contí­
nuo e, ao serem instados por alguma das necessida­
des da Natureza, tais como a sede, fome e cansaço,
poderiam sentir, em vez de dor, uma diminuição de
prazer que seria suficiente para levá-los a buscar o
objeto necessário à sua sobrevivência. Os seres hu­
manos perseguem o prazer tão avidamente quanto
evitam a dor; ou, pelo menos, poderiam ter sido
construídos para agir desse modo. Parece, assim, que
seria perfeitamente possível dar prosseguimento a to­
das as atividades necessárias à vida sem que a dor
jamais interviesse. A que se deve, então, o fato de
os animais estarem sujeitos a uma tal sensação? Se
lhes é possível viver uma hora sem ela, eles pode­
riam muito bem gozar de uma isenção perpétua. A
produção desse sentimento exigiu um arranjo de seus
órgãos que é tão específico como aquele necessário
para dotá-los da visão, audição ou qualquer um dos
sentidos. Deveremos, sem dispor de qualquer razão
visível para isso, supor que um tal arranjo era neces­
sário? E seria aconselhável construir algo sobre essa
conjetura, como se se tratasse da verdade mais in­
questionável?
Mas a simples capacidade para sentir dor não po­
deria produzir a dor se não fosse pela segunda cir­
cunstância, a saber, que o mundo está governado por
PARTE XI 151
leis gerais; e isto não parece de modo algum neces­
sário para um ser perfeito em alto grau. E verdade
que, se tudo fosse governado por volições particula­
res, o curso da Natureza se veria constantemente in­
terrompido e ninguém poderia empregar sua razão
na condução de sua vida. Mas não poderia essa in­
conveniência ser corrigida por meio de outras voli­
ções particulares? Em suma, não poderia a Divin­
dade ter exterminado todo o mal, onde quer que ele
se encontrasse, e produzido todo o bem, sem qual­
quer preparação ou longas sucessões de causas e
efeitos?
Além disso, é preciso que .se considere que, de
acordo com a presente organização do mundo, o cur­
so da Natureza, embora suposto como exatamente
regular, não nos aparece, porém, dessa forma. Mui­
tos eventos sao incertos, e muitos frustram nossas
expectativas. A saúde e a doença, o bom tempo e
as tempestades, em conjunto com infinitos outros
acidentes cujas causas são desconhecidas e variáveis,
exercem grande influência tanto sobre a sorte das
pessoas individuais como sobre a prosperidade das
associações públicas. E, na verdade, toda a vida hu­
mana depende, de um certo modo, desses acidentes.
Portanto, um ser que conhecesse os princípios se­
cretos do Universo poderia facilmente, através de
volições particulares, direcionar todos esses aciden­
tes para o bem da humanidade e tornar o mundo
inteiro feliz, sem se revelar em nenhuma dessas ope­
rações. Uma frota cujos propósitos fossem benéfi­
cos à sociedade poderia encontrar sempre ventos fa­
voráveis, príncipes benevolentes poderíam gozar de
boa saúde e viver uma vida longa, pessoas nascidas
,152 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

para o comando e o exercício da autoridade pode­


riam ser dotadas de bom temperamento e disposi­
ções virtuosas. Uns poucos eventos como estes, con­
duzidos de maneira regular e ajuizada, modificariam
a face do mundo; e, no entanto, não parecem ser mais
aptos a perturbar o curso da Natureza ou confun­
dir a conduta humana do que a presente organiza­
ção das coisas, onde as causas são secretas, variáveis
e complexas. Alguns pequenos toques efetuados no
cérebro de Caligula, durante sua infância, poderiam
tê-lo convertido em um Trajano. Uma onda um pou­
co mais alta que as demais, ao sepultar César e seu
destino no fundo do oceano, podería ter restituído
a liberdade a uma parcela considerável da humani­
dade. Por tudo que sabemos, pode haver boas razões
pelas quais a Providência não interveio dessa maneira,
mas nós as desconhecemos. E, embora a mera su­
posição de que tais razões existem possa ser suficiente
pam resguardar a conclusão relativa aos atributos di­
vinos, ela não pode, com certeza, ser suficiente para
estabelecer essa conclusão.
Se tudo no Universo é regido por leis gerais, e
se os animais são suscetíveis à dor, parece inescapá-
vel a conclusão de que alguns males devem originar-
se nos diversos choques de matéria e nas diversas
confluências e oposições das leis gerais; mas esses ma­
les seriam, ainda assim, muito raros, se não fosse pela
terceira circunstância que me proponho a examinar,
isto é, a grande parcimônia com que todos os pode­
res e faculdades estão distribuídos entre os seres par­
ticulares. Os órgãos e as capacidades de todos os ani­
mais estão tão bem ajustados, e atendem tão bem
às exigências de sua preservação que, até onde alcan­
PARTE XI 153
çam a história e a tradição, não parece haver uma
única espécie no Universo que se tenha extinguido.
Cada animai tem todos os dotes requeridos, mas es­
ses dotes estão distribuídos segundo uma economia
tão escrupulosa que qualquer diminuição significa­
tiva leva à completa aniquilação da criatura. Onde
quer que haja aumento de um poder, há um decrés­
cimo proporcional dos outros. Animais que se so­
bressaem pela velocidade são, normalmente, despro­
vidos de força. Aqueles que possuem ambas, ou bem
apresentam alguma imperfeição em seus órgãos dos
sentidos, ou bem são afligidos pelas necessidades mais
insaciáveis. A espécie humana, que se destaca prin­
cipalmente pela razão e sagacidade, é, de todas, a maís
necessitada e a mais deficiente em vantagens corpo­
rais: carece de vestuário, armas, alimento, habitação
e não dispõe de nenhuma das conveniências da vi­
da, exceto as que obtém por meio de sua própria
habilidade e engenho. Em suma, a Natureza parece
ter feito um cálculo exato das necessidades de suas
criaturas e, como um amo inflexível, concedeu-lhes
poderes e recursos pouco maiores que os estritamente
suficientes para cobrir essas necessidades. Umpíú con­
descendente, ao contrário, teria fornecido uma larga
provisão para precaver contra acidentes e assegurar
a felicidade e bem-estar da criatura mesmo na mais
desafortunada conjunção de circunstâncias. Os ca­
minhos da vida não estariam todos tao rodeados de
precipícios, a ponto de o menor desvio do caminho
seguro, por engano ou necessidade, ser o bastante
para conduzir-nos à miséria e à ruína. Alguma re­
serva, alguns recursos adicionais deveríam ter sido
providenciados para garantir a felicidade, e não de­
154 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

veria ter havido uma economia tão rígida no ajuste


dos poderes às necessidades. O Autor da Natureza
é inconcebivelmente poderoso; admite-se que sua for­
ça é grande, se não de todo inexaurível, e não há qual­
quer razão, até onde podemos julgar, para que ele
observe essa estrita parcimônia no trato com suas
criaturas. Teria sido melhor, caso seu poder fosse ex­
tremamente limitado, que ele tivesse criado um me­
nor número de animais e os dotado de mais facul­
dades para sua felicidade e preservação. Não se po­
derá jamais considerar como prudente um constru­
tor que se compromete com um plano que vai além
daquilo que seus recursos lhe permitíriam concluir.
Não estou exigindo, para remediar a maior par­
te dos males que afligem o ser humano, que ele de­
va possuir as asas da águia, a velocidade do cervo,
a força do boí, as garras do leão, a couraça do croco­
dilo ou do rinoceronte; e muito menos reclamo a
sabedoria de um anjo ou querubim. Contento-me
em escolher a intensificação de um único poder ou
faculdade de sua alma. Que ele seja dotado de uma
maior propensão para a operosidade e o trabalho,
de uma motivação e atividade mental mais vigoro­
sas, de uma inclinação mais constante para o desem­
penho e a concentração. Que a espécie inteira pos­
sua naturalmente uma diligência semelhante àque­
la que muitos indivíduos conseguem cultivar pelo
hábito e reflexão, e as mais benéficas conseqíiências,
sem qualquer mescla de dissabor, serão o resultado
imediato e necessário desse dote. Quase todos os ma­
les morais da vida humana, assim como os naturais,
surgem da indolência; e se nossa espécie, pela cons­
tituição original de suas disposições, estivesse imu­
PARTE XI 155
ne a esse vício ou enfermidade, seguir-se-iam ime­
diatamente o cultivo perfeito da terra, a melhoria
das artes e manufaturas e a execução precisa de to­
do ofício e tarefa; e os homens poderiam atingir ple­
namente e de súbito aquele estágio de sociedade que
mesmo o governo mais disciplinado só consegue al­
cançar de forma imperfeita. Mas como a diligência
é um poder, e o mais valioso de todos, a Natureza
parece determinada, em conformidade com suas di­
retrizes costumeiras, a distribuí-la entre os homens
da maneira mais parcimoníosa possível e a puni-los
severamente pela sua deficiência ao invés de recom­
pensá-los pelas suas realizações. Ela moldou as dis­
posições humanas de tal maneira que só a mais vio­
lenta necessidade pode obrigá-los a trabalhar, e mo­
biliza todas as outras carências para sobrepujar, pe­
lo menos em parte, a falta de aplicação e para dotá-
los de alguma parcela dessa faculdade da qual ela jul­
gou conveniente despojá-los naturalmente. Deve-se
reconhecer, aqui, que nossas exigências são muito
modestas e, por isso mesmo, tanto mais razoáveis.
Se estivéssemos reclamando os dotes de uma argú­
cia e julgamento superiores, de uma apreciação mais
refinada da beleza e de uma sensibilidade mais agu­
çada para a benevolência e a amizade, poderiamos
ouvir, como resposta, que estamos impiamente pre­
tendendo romper a ordem da Natureza, que quere­
mos alçar-nos a um grau mais elevado de existência,
e que as dádivas que solicitamos, não sendo adequa­
das a nosso estado e condição, só nos poderiam ser
nocivas. Mas é penoso, ouso repeti-lo, é penoso o
fato de que, estando mergulhados em um mundo
tão repleto de carências e necessidades, no qual quase
156 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

todos os seres e elementos ou são nossos inimigos


ou recusam-nos sua assistência, tenhamos também
que lutar contra nosso próprio temperamento e es­
tejamos privados dessa faculdade que, apenas ela, po­
deria fazer frente a esses múltiplos males.
A quarta, circunstância da qual provêm a misé­
ria e os males do Universo é a operação imprecisa
de todos os dispositivos e princípios que compõem
a grande máquina da Natureza. Deve-se reconhecer
que há poucas partes do Universo que, à primeira
vista, não servem a algum propósito e cuja remo­
ção não acarretaria um visível defeito ou desordem
no todo. As partes relacionam-se todas umas às ou­
tras, e não se pode tocar em nenhuma delas sem que
as outras sejam afetadas, em maior ou menor grau.
Mas deve-se ao mesmo tempo observar que nenhu­
ma dessas partes ou princípios, por mais útil que seja,
está tão perfeitamente ajustada a ponto de manter-
se precisamente dentro dos limites compatíveis com
sua utilidade; mas todas elas arriscam-se, a qualquer
momento, a tombar em um extremo ou outro.
Poder-se-ia imaginar que essa grande obra não rece­
beu os retoques finais de seu construtor, tão mal-
acabadas são todas as suas partes e tão grosseiros os
traços de sua execução. Os ventos, por exemplo, são
requeridos para fazer circular os vapores pela super­
fície do globo e para ajudar os homens na navega­
ção. Quantas vezes, porém, erguendo-se em tempes­
tades e furacões, eles não se tornam perniciosos? As
chuvas são necessárias para nutrir todas as plantas,
e animais da Terra; mas quantas vezes elas não es-
casseiam e quantas vezes não se tornam excessivas?
O calor é exigido por toda a vida e vegetação, mas
nem sempre ele é encontrado na proporção devida.
PARTE XI 157
Da mistura e secreção dos humores e sucos do cor­
po depende a saúde e o desenvolvimento do animal,
mas as partes não desempenham regularmente suas
funções próprias. Que poderia ser mais útil do que
as paixões da mente: ambição, vaidade, amor, cóle­
ra? E, no entanto, quantas vezes elas nao excedem
seus limites e ocasionam as maiores convulsões na
sociedade? Nada há de tão vantajoso no Universo
que não se torne com frequência nocivo, por seu
excesso ou falta; e a Natureza tampouco se resguar­
dou, com o devido cuidado, contra toda desordem
e confusão. A irregularidade talvez não seja jamais
tão grande a ponto de causar a destruição de uma
espécie, mas é muitas vezes suficiente para trazer a
ruína e a miséria aos indivíduos.
Da confluência, portanto, dessas quatro circuns­
tâncias depende todo o mal natural, ou sua maior
parte. Se todas as criaturas vivas fossem incapazes de
sentir dor, ou se o mundo pudesse ser administra­
do por volições particulares, o mal não poderia ja­
mais ter tido acesso ao Universo. E, se os animais
estivessem dotados de uma ampla provisão de po­
deres e faculdades, maíor do que a requerida pela
estreita necessidade, ou se os vários dispositivos e
princípios do Universo estivessem ajustados de modo
a preservar para sempre o correto equilíbrio e meio-
termo, deveria haver muito pouco malefício em com­
paração ao que presentemente experimentamos. Que
devemos, então, concluir em tal situação? Diriamos
que essas circunstâncias não são necessárias e que po­
deriam facilmente ter sido alteradas durante o pro­
jeto do Universo? Esta parece ser uma decisão de­
masiado presunçosa para criaturas tão cegas e igno­
>58 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

rantes. Sejamos mais modestos cm nossas conclusões.


Admitamos que, se a benevolência da Divindade
(entendendo-se uma benevolência semelhante à hu­
mana) pudesse ser estabelecida com base em quais­
quer razões aceitáveis a priori, esses fenômenos, por
inconvenientes que fossem, não bastariam para sub­
verter aquele princípio e poderiam facilmente, de
alguma maneira insuspeitada, ser reconciliados com
ele. Mas não deixemos também de afirmar que, co­
mo essa benevolência não pode ser estabelecida de
antemão, mas deve ser inferida dos fenômenos, não
pode haver nenhum fundamento para essa inferên­
cia enquanto existirem tantos males no Universo e
enquanto esses males — na medida em que se per­
mita ao entendimento humano julgar sobre esses as­
suntos — nos aparecerem como tão facilmente re­
mediáveis. Sou suficientemente cético para conce­
der que as aparências perversas podem ser compatí­
veis, apesar de todos os meus raciocínios, com atri­
butos do tipo que você supõe, mas com certeza ja­
mais poderão provar a vigência desses atributos. Uma
conclusão como essa não pode provir do ceticismo,
mas deve ter origem nos fenômenos e em nossa con­
fiança nos raciocínios que deduzimos desses fe­
nômenos.
Olhe para o Universo ao nosso redor. Que quan­
tidade imensa de seres, animados e organizados, sen­
síveis e ativos! Você admira essa prodigiosa varieda­
de e fecundidade. Observe, porém, mais de perto as
existências dotadas de vida, que são os únicos seres
dignos de consideração. Como são hostis e destru­
tivas umas para com as outras! Quão incapazes, to­
das elas, de prover à sua própria felicidade! Como
PARTE XI 159
são odiosas e desprezíveis aos olhos do observador!
Tudo isso não nos oferece senão a idéia de uma Na­
tureza cega, embebida de um grande princípio vivi-
ficador, que despeja de seu regaço sua prole defei­
tuosa e degenerada, sem qualquer discernimento ou
cuidado maternal!
E aqui que o sistema maniqueísta surge como
uma hipótese apropriada para resolver a dificulda­
de. E, sem dúvida, ele é em vários aspectos muito
sedutor e mais plausível que a hipótese comum, ao
fornecer uma explicação viável para a estranha mis­
tura de bem e mal que a vida nos apresenta. Mas
se considerarmos, por outro lado, a perfeita unifor­
midade e concordância das partes do Universo, não
descobriremos aí quaisquer sinais do combate en­
tre um ser maligno e outro benéfico. Há, na verda­
de, uma oposição entre as dores e os prazeres nos
sentimentos das criaturas sensíveis; mas não são, afi­
nal, todas as operações da Natureza levadas a cabo
por meio de uma oposição de princípios, a saber,
quente e frio, úmido e seco, leve e pesado? A con­
clusão correta é que a fonte original de todas as coi­
sas é inteiramente indiferente a todos esses princí­
pios e não tem o bem em maior estima que o mal,
assim como não lhe importa o calor sobre o frio,
a aridez sobre a umidade ou a leveza sobre o peso.
Podem-se formular quatro hipóteses relativas às
causas primeiras do Universo: que estão dotadas de
bondade perfeita, que são perfeitamente malévolas,
que estão em oposição e apresentam tanto bondade
como malícia, e que não possuem nem uma nem
outra. Fenômenos mesclados são incapazes de for­
necer uma prova para os dois primeiros princípios,
:jl
160 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

que não apresentam mistura. Por outro lado, a uni- :


formidade e estabilidade das leis gerais parecem opor- j
se ao terceiro. É o quarto princípio, portanto, que !
surge de longe como o mais plausível.
O que foi dito acerca do mal natural aplica-se, :
com pouca ou nenhuma variação, ao mal moral; e
não temos mais razões para inferir que a retidão do
Ser Supremo assemelha-se à retidão humana do que
teríamos para afirmar que sua benevolência se asse­
melha à benevolência humana. E de se supor que
há até mesmo mais razão para recusar-lhe sentimen­
tos morais do tipo dos que experimentamos, pois
o mal moral, na opinião de muitos, predomina muito
mais sobre o bem moral do que o mal natural so­
bre o bem natural.
Mas ainda que não se deva admitir isto, e ainda
que a virtude existente na humanidade deva ser re­
conhecida como excedendo em muito seus vícios,
mesmo assim os antropomorfistas como você con­
tinuarão experimentando grande embaraço frente ao 3
problema de dar uma explicação para a existência
desses vícios, enquanto houver a menor porção de­
les no Universo. Uma causa deve ser-lhes atribuída,
sem que se possa recorrer à causa primeira. Mas co­
mo todo efeito deve ter uma causa, e essa uma ou­
tra, vocês serão obrigados a conduzir a progressão
in infinitum, ou então, a deter-se naquele princípio 4
original que é a causa última de todas as coisas.
Demea: Pare, contenha-se! Para onde o carre­
ga sua imaginação? Aliei-me a você para provar que
a natureza do Ser Divino é incompreensível e para
refutar os princípios de Cleantes, que pretendia me­
dir tudo pelas regras e padrões humanos. Mas agora
PARTE XI 161
descubro que você está mobilizando todos os tópi­
cos dos maiores infiéis e libertinos e traindo aquela
causa sagrada que aparentemente defendia. Será vo­
cê, então, secretamente, um inimigo ainda mais pe­
rigoso que o próprio Cleantes?
Cleantes: E você demorou tanto tempo para
percebê-lo? Acredite-me, Demea, seu amigo Filo está
desde o início divertindo-se às nossas custas; e deve-
se reconhecer que os argumentos pouco cuidadosos
da nossa teologia vulgar forneceram-lhe uma exce­
lente ocasião para exercitar sua zombaria. E certa­
mente estranho que doutores e teólogos ortodoxos
tenham acalentado tão afetuosamente tópicos como
a total fragilidade da razão humana, a incompreen-
sibilídade absoluta da natureza divina, a miséria
imensa e universal dos seres humanos e sua perver­
sidade ainda maior. E verdade que em épocas de es­
tupidez e ignorância esses princípios podem ser abra­
çados sem perigo, e talvez nenhum outro ponto de
vista seja mais adequado para promover a supersti­
ção do que aquele que encoraja a admiração cega,
a desconfiança e a melancolia da humanidade. Não
obstante, nos tempos presentes...
Filo: Não dirija tantas censuras à ignorância des­
ses reverendos senhores. Eles sabem muito bem co­
mo adaptar seu estilo aos novos tempos. A caracte­
rização da vida humana como fútil e miserável e o
exagero dos males e sofrimentos a que os seres hu­
manos estão sujeitos foram tópicos extremamente
populares nas épocas passadas. Contudo, nos últi­
mos anos, percebe-se que os teólogos começam a re­
cuar dessa posição e a manter, embora ainda com
alguma hesitação, que há mais benefícios do que ma­
162 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

les, e mais prazeres que sofrimentos, mesmo nesta


vida. Quando a religião dependia exclusivamente do
temperamento e da doutrinação, julgou-se apropria­
do encorajar a melancolia, pois é certo que essa é
a disposição de espírito que mais prontamente leva
a humanidade a recorrer aos poderes superiores. Mas
como as pessoas aprenderam agora a formular prin­
cípios e a derivar conseqüências, tornou-se necessá­
rio rearranjar as fortificações e lançar mão de argu­
mentos capazes de resistir a pelo menos algum exa­
me e esquadrinhamento. Essa é a mesma mudança
(e provém das mesmas causas) a que já me referi em
conexão com o tópico do ceticismo.

E assim Filo levou até o fim seu espírito de oposi­


ção e sua censura ãs opiniões estabelecidas. Mas, como
pude observar, Demea não ficou nada satisfeito com
essa última parte da discussão e, valendo-se de um pre­
texto qualquer, logo a seguir abandonou nossa com­
panhia.
PARTE XII
Após a saída deDemea, Cleantes e Filo continua­
ram a palestra da seguinte maneira.

Cleantes: Temo que nosso amigo estará pouco


disposto a tratar mais uma vez deste tema em sua
presença, Filo; e eu mesmo, para dizer-lhe a verda­
de, preferiría discutir com cada um de vocês em se­
parado um assunto tão sublime e interessante. Seu
espírito de controvérsia, aliado à sua aversão pela
superstição vulgar, leva-o a singulares extremos quan­
do envolvido em um debate; e não há nada que vo­
cê poupe nessas ocasiões, por mais sagrado e vene­
rável que seja, mesmo a seus próprios olhos.
Filo: Devo confessar que sou menos cauteloso
em questões de religião natural do que em quaisquer
outros assuntos; de um lado porque sei que, neste
ponto, jamais poderei corromper os princípios de
qualquer pessoa de bom senso; e, de outro, porque
ninguém que me considere uma pessoa de bom senso
166 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

irá, estou certo, interpretar mal minhas intenções.


Você, em particular, Cleantes, com quem convivo
em uma intimidade sem reservas, sabe muito bem
que, apesar das liberdades que tomo nas discussões
e da minha predileção por argumentos inusitados,
ninguém tem um sentimento religioso mais profun­
damente inculcado em seu espírito, nem dedica uma
adoração mais profunda ao Ser Divino, tal como ele
se revela à razão através do inexplicável plano e ar­
tifício da Natureza. O pensador mais desatento e es­
túpido depara-se em toda parte com um propósito,
uma intenção, um desígnio; e isto não pode ser per­
manentemente rejeitado mesmo pelos mais empe­
dernidos defensores de sistemas absurdos. A máxi­
ma de que a natureza nada faz em vão foi sanciona­
da por todas as escolas a partir da mera contempla­
ção das obras da Natureza, sem nenhuma finalida­
de religiosa; e a firme convicção de sua veracidade
fa^ com que um anatomista, ao observar algum no­
vo órgão ou canal, não se sinta satisfeito até que te­
nha descoberto também sua utilidade e propósito.
Um dos grandes fundamentos do sistema coperni-
vixio é a máxima de que a natureza age pelos méto­
dos mais simples e escolhe os meios mais apropriados
a um fim qualquer-, e frequentemente os astrônomos
formulam, sem que se deem conta disso, este sólido
fundamento da devoção e religiosidade. O mesmo
se observa nas outras partes da filosofia; e, dessa for­
ma, todas as ciências nos levam quase insensivelmen­
te ao reconhecimento de um Autor originário e in­
teligente, sendo a autoridade dessas ciências tanto
maior à medida que não professem explicitamente
essa intenção.
PARTE XII 167
È com satisfação que ouço Galeno discorrer so­
bre a estrutura do corpo humano. Ele nos diz8 que
a anatomia do homem revela a presença de mais de
600 músculos diferentes; e quem quer que os exa­
mine com a devida atenção descobrirá que há, em
cada caso, pelo menos dez diferentes circunstâncias
cujo ajuste precisou ser efetuado pela Natureza pa­
ra que se atingisse o fim que ela tinha em vista: for­
ma adequada, tamanho justo, exata localização das
diversas extremidades, a posição mais alta e mais bai­
xa do todo, a necessária inserção dos vários nervos,
veias e artérias; de tal modo que terá sido necessá­
rio formular e executar, apenas no caso dos múscu­
los, mais de 6000 diferentes objetivos e intenções.
Quanto aos ossos, ele calculou que são 284; e os di­
versos propósitos visados pela estrutura de cada um
são aproximadamente quarenta. Que prodigiosa exi­
bição de engenhosidade, mesmo nessas partes sim­
ples e homogêneas! E, se considerarmos a pele, os
ligamentos, os vasos, as glândulas, os humores, os
diversos membros e extremidades do corpo, a que
grau não se elevará nosso assombro, em proporção
ao número e à complexificação das partes tão habi-
lidosamente ajustadas! Ao avançarmos mais e mais
nessas pesquisas, descobrimos novas exibições de en­
genho e sabedoria; mas continuamos a vislumbrar,
a distância e fora de nosso alcance, novos espetácu­
los na refinada estrutura interna das partes, na orga­
nização do cérebro, no tecido dos vasos seminais.
Todos esses engenhosos dispositivos repetem-se em
cada uma das diversas espécies de animais, com ad­
mirável diversidade e exata adequação, de modo a

8. De formatione foetus.
148 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

convir aos diferentes propósitos com que a Nature­


za engendra cada uma dessas espécies. E se a írreli-
giosidade de Galeno, mesmo na época em que essas
ciências naturais estavam ainda imperfeitamente de­
senvolvidas, não pôde opor-se a tão notáveis mani­
festações, a que nível de teimosa obstinação não terá
chegado um filósofo de nossa época que seja capaz
de pôr hoje em dúvida uma Inteligência Suprema!
Se me fosse dado encontrar um filósofo dessa
espécie (e agradeço a Deus por serem eles tão raros),
eu lhe dirigiria a seguinte pergunta: supondo-se que
houvesse um Deus que não se revelasse de maneira
imediata aos nossos sentidos, poderia ele fornecer
provas de sua existência mais fortes do que tudo is­
so que aparece no cenário da Natureza? Pois que ou­
tra possibilidade restaria a tal Ser Divino senão re­
produzir a organização presente das coisas, exibin­
do de maneira suficientemente óbvia sua engenho-
sidade em um grande número de casos dc modo que
mesmo os mais estúpidos não possam equivocar-se
acerca deles, permitindo vislumbres de talentos ainda
mais grandiosos, que demonstram sua prodigiosa su­
perioridade diante da nossa estreita compreensão, e
mantendo muitas outras coisas completamente ocul­
tas aos olhos dessas criaturas imperfeitas? Ora, de
acordo com todas as regras do raciocínio correto, ca­
da fato deve ser considerado inquestionável quan­
do recebe apoio de todos os argumentos pertinen­
tes à sua natureza, ainda que esses argumentos não
sejam, em si mesmos, muito numerosos ou conclu­
dentes. E quão mais inquestionáveis não serão, por­
tanto, no caso em pauta, no qual o número de argu­
mentos não pode ser calculado pela razão humana,
e sua força não pode ser avaliada pelo entendimento!
PARTE XII 169
Cleantes: A tudo isso que você tão bem enfa­
tizou, eu ainda acrescentaria que uma grande van­
tagem do princípio teísta é a de ser o único sistema
cosmogônico que pode ser tornado inteligível e com­
pleto, sem no entanto deixar de preservar, sob to­
dos os aspectos, uma forte analogia com aquilo que
diariamente observamos e experimentamos em re­
lação ao mundo. A comparação do Universo a uma
máquina produzida pelo artifício humano é tão ób­
via e natural, e justifica-se por tantos exemplos de
ordem e propósito na Natureza, que deve sensibili­
zar imediatamente todas as imaginações não precon­
ceituosas e obter aprovação universal. Ninguém que
se esforce por enfraquecer essa teoria pode preten­
der ter sucesso por meio de sua substituição por ou­
tra teoria precisa e determinada. Basta-lhe levantar
dúvidas e dificuldades e alcançar, por meio de ima­
gens estranhas e abstratas, aquela suspensão do jul­
gamento que constitui, neste caso, o limite extremo
de suas aspirações. Mas esse estado de espírito, além
de ser em. si mesmo insatisfatório, não poderia de
modo algum ser sustentado com firmeza em face
das espantosas manifestações que nos impelém con­
tinuamente na direção dá hipótese religiosa. A na-'
tureza humana, movida pela força do preconceito,
é capaz de aderir com tenacidade e perseverança, a
um sistema falso e absurdo; mas penso que é abso­
lutamente impossível sustentar ou defender qualquer
sistema que esteja em oposição a uma teoria funda­
da em razões vigorosas e manifestas, em uma pro­
pensão natural e na educação que se recebeu desde
a infância.
Filo: De minha parte, estou tão pouco inclina­
l?0 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

do a admitir a possibilidade de uma suspensão do


julgamento no presente caso que chego a suspeitar
que esta controvérsia abriga, antes, uma disputa ter­
minológica, e em grau maior do que usualmente se
imagina. E evidente que as obras da Natureza apre­
sentam uma grande analogia com os produtos do
artifício humano; e, de acordo com todas as regras
do raciocínio correto, deveremos inferir, se porven­
tura as tomarmos como tópico de argumentação, que
suas causas são análogas na mesma proporção. Con­
tudo, dado que também existem diferenças conside­
ráveis, temos razões para supor que as causas serão
proporcionalmente diferentes, e, em especial, temos
que atribuir à Causa Suprema um grau de poder e
atividade muito maior do que o que já se teve oca­
sião de observar na humanidade. Assim, a existên­
cia de uma Divindade está aqui plenamente atesta­
da pela razão; e se levantamos a questão sobre se é
ou não adequado, com base nessa analogia, deno­
miná-la mente ou inteligência, não obstante a vasta
diferença que se pode razoavelmente supor entre ela
e as mentes humanas, que será isto senão uma sim­
ples controvérsia verbal? Ninguém pode negar as
analogias entre os efeitos, e seria quase impossível
furtarmo-nos à investigação acerca das causas. A con­
clusão legítima dessa investigação é que também as
causas apresentam uma analogia. E se não nos con­
tentarmos em atribuir à causa primeira e suprema
o nome de Deus, ou Divindade, mas quisermos va­
riar a designação, que nos restaria senão chamá-la
Mente, ou Pensamento, dado que se supõe com jus­
tiça que ela guarda uma considerável semelhança
com essas coisas?
PARTE XII 171
As disputas verbais, tão abundantes nas investi­
gações filosóficas e teológicas, desagradam às pessoas
de juízo saudável; e sabe-se que o único remédio pa­
ra esse abuso deve provir das definições claras, do
caráter preciso das idéias postas em jogo pela argu­
mentação e do uso rigoroso e uniforme dos termos
que são empregados. Mas há um tipo de controvér­
sia que, pela própria natureza da linguagem e das
idéias humanas, está envolvida em perpétua ambi-
güidade e é totalmente incapaz de atingir uma cer­
teza ou precisão razoáveis, a despeito de todas as pre­
cauções e definições. Trata-se das controvérsias liga­
das aos graus de qualquer qualidade ou aspecto. Pode-
se discutir por toda a eternidade sobre se Aníbal foi
um homem ilustre, ou muito ilustre, ou sumamen­
te ilustre, sobre qual o grau de beleza possuído por
Cleopatra, sobre qual o título de louvor atribuível
a Tito Lívio ou Tucídides, sem que a controvérsia
chegue a qualquer decisão. Em tais casos, as partes
podem estar de acordo quanto ao sentido e divergir
quanto aos termos, ou vice-versa, e serem incapazes,
no entanto, de definir seus termos de modo que uma
delas possa ter acesso ao significado que a outra lhes
atribui. A razão disso é que os graus dessas qualida­
des não são suscetíveis, como a quantidade e o nú­
mero, de qualquer mensuração exata que pudesse for­
necer um padrão para a controvérsia. No caso da
disputa relativa ao teísmo, mesmo um exame extre­
mamente superficial já é suficiente para revelar que
ela é dessa natureza e, por conseguinte, meramente
verbal; ou talvez, que ela é ainda mais incuravelmente
ambígua, se é que isso é possível. Pergunto ao teísta
1?2 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NA TURAL

se ele não admite que há uma diferença enorme e


imensurável — dado que incompreensível — entre
a mente humana e a divina. Quanto mais devoto
ele for, tanto mais prontamente decidirá pela afir­
mativa e mais disposto estará a engrandecer a dife­
rença. Ele chegará até mesmo a afirmar que a natu­
reza da diferença é tal que não poderia ser exagera- -d
damente ampliada. Dirijo-me em seguida ao ateísta
— o qual, eu afirmo, só o é nominalmente e jamais
poderia sê-lo com sinceridade — e pergunto-lhe se
não há, em vista da coerência e da visível harmonia
de todas as partes deste mundo, um certo grau de
analogia entre todas as operações da Natureza, em
todas as épocas e ocasiões; e se a decomposição de
um nabo, a geração de um animal e a estrutura do
pensamento humano não seriam atividades que man­
têm, com toda probabilidade, alguma analogia re­
mota umas com as outras. Ser-lhe-á impossível ne­
gar tal coisa; ele prontamente o reconhecerá. Ten­
do obtido essa concessão, obrigo-o a recuar ainda $
mais, perguntando-lhe se não é provável que o prin­
cípio que inicialmente produziu essa ordem e con­
tinua a mantê-la neste Universo não manteria igual­
mente alguma analogia remota e insondável com as
outras operações da Natureza e, de resto, com a or­
ganização da mente e do pensamento humanos. Por
mais que relute, ele deverá finalmente dar seu assen-
timento. Mas então — pergunto a ambos os antago­
nistas -— qual é precisamente o ponto sobre o qual
os senhores divergem? O teísta concede que a inte­
ligência original é muito diferente da razão huma­
na, ao passo que o ateísta admite que o princípio
original ordenador mantém, com ela alguma análo-
PARTE XII 173
gia remota. Estarão os cavalheiros dispostos a pole­
mizar sobre gradações e a embarcar em uma dispu­
ta que não tem um significado preciso e que não per­
mite, consequentemente, qualquer conclusão? Não
me admiraria, caso sejam tão obstinados, vê-los ado­
tar insensivelmente a posição oposta, passando o teís­
ta a exagerar a dissimilaridade entre o Ser Supremo
e as criaturas frágeis, imperfeitas, inconstantes, efê­
meras e mortais, e o ateísta, por sua vez, a engran­
decer a analogia entre todas as operações da Natu­
reza, em quaisquer épocas, situações e circunstân­
cias. Considerem, portanto, onde reside o verdadei­
ro núcleo da controvérsia; e, se não lhes for possí­
vel abandonar tais disputas, procurem ao menos
curar-se de seus ressentimentos.
E aqui, Cleantes, devo igualmente reconhecer
que, assim como as obras da Natureza mantêm uma
analogia muito maior com os efeitos de nossa arte
e engenho do que com os de nossa benevolência e
justiça, temos razões para inferir que os atributos na­
turais da Divindade apresentam, relativamente aos
atributos humanos, uma semelhança maior do que
a que se manifesta entre seus atributos morais e as
virtudes da humanidade. Mas qual é a conseqüên-
cia disto? Simplesmente que as qualidades morais do
ser humano são, em sua esfera, mais imperfeitas que
suas capacidades naturais. Pois, dado que se admite
que o Ser Supremo é perfeito em absoluto e por in­
teiro, aquilo que dele mais se diferencia estará, pro­
porcionalmente, mais afastado do padrão supremo
de ret.itude e perfeição9.

9. Parece evidente que a disputa entre céticos e dogmáti­


cos é inteiramente verbal ou, pelo menos, só diz respeito aos
17^ DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

Essas, Cleantes, sao minhas opiniões sinceras so­


bre este assunto; opiniões que, como você bem sa­
be, sempre abriguei e defendi. Mas minha venera­
ção pela genuína religiosidade é proporcional ao meu
repúdio pelas superstições vulgares; e não posso ne­
gar que experimento um prazer especial em exacer­
bar estes últimos princípios de modo que dêem lu­
gar às vezes ao absurdo, às vezes à impiedade. E vo­
cê sabe que todos os fanáticos, embora professem
mais aversão por esta última do que pelo primeiro,
com frequência são igualmente culpados de ambos.
Cleantes: Devo dizer que tendo a pensar de
maneira oposta. A religião, por mais corrompida que
esteja, ainda é melhor que a ausência total de reli­
gião. A doutrina de uma condição futura é uma ga­
rantia tão forte e necessária da moral que jamais po­
deriamos abandoná-la ou dar-lhe pouca importân­
cia. Observamos diariamente os grandes efeitos pro­
duzidos pelas recompensas e punições temporárias
e finitas; quão maiores, então, não serão os resulta­

graus de dúvida e convicção que devemos admitir em relação


a todos os raciocínios; e tais disputas, em última análise, são
habitualmente verbais, não permitindo qualquer conclusão pre­
cisa. Nenhum filósofo dogmático recusa a presença de dificul­
dades, tanto com relação aos sentidos como em relação a toda
ciência, nem nega que essas dificuldades sejam completamente
insolúveis através de um método regular e lógico. E nenhum
cético contesta o fato de que essas dificuldades não nos eximem
da absoluta necessidade de pensar, acreditar e raciocinar acerca
de assuntos de toda espécie, e, até mesmo, de dar muitas vezes
nosso assentimento de maneira confiante e segura. Assim, a única
diferença entre essas seitas, se é que merecem esse nome, é que
o cético, movido pelo hábito, capricho ou inclinação, insiste
mais nas dificuldades, ao passo que o dogmático, pelas mesmas
razões, privilegia a necessidade.
PARTE XII 175
dos que se poderia esperar daquelas que são infini­
tas e eternas?
Filo: Se a superstição vulgar é de fato tão sau­
dável para a sociedade, como explicar que a história
nos forneça tantos exemplos de suas consequências
nefastas para os assuntos públicos? Tumultos, guer­
ras civis, perseguições, derrubadas de governo, tira­
nia e escravidão, tais são as funestas consequências
que têm lugar sempre que a mente humana a ela se
submete. Se, em qualquer narração histórica, o es­
pírito de religiosidade é alguma vez mencionado, po­
demos estar certos de nos deparar, logo a seguir, com
um detalhamento das desgraças que o acompanham.
E nenhuma época pode ser mais feliz ou mais prós­
pera do que aquelas que nao o levam em conta, ou
que o ignoram.
Cleantes: A razão disso é óbvia. A função pró­
pria da religião é disciplinar o coração humano, hu­
manizar a conduta das pessoas, infundir o espírito
da sobriedade, ordem e obediência. E, como sua ope­
ração é silenciosa e apenas reforça os preceitos da mo­
ralidade e da justiça, ela corre o risco de passar des­
percebida e de confundir-se com esses outros pre­
ceitos. Quando chega a sobressair-se e a atuar sobre
os homens como um princípio separado, é porque
ela se afastou de sua esfera própria, tornando-se me­
ro disfarce para a facciosidade e a ambição.
Filo: E esse será o destino de toda religião,
a menos que seja do tipo filosófico e racional. E mais
fácil escapar de seus raciocínios, Cleantes, do que de
meus fatos. Que recompensas e punições finitas e
temporárias tenham tão grande influência não nos
autoriza a inferir que aquelas infinitas e eternas se­
17<j DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIA O NA TURAL

rão ainda mais eficazes. Considere, eu lhe peço, o


apego que temos pelas coisas do presente e o pouco
interesse que manifestamos por objetos muito remo­
tos e incertos, Quando os teólogos invectivam a for­
ma mundana de agir e comportar-se, sempre repre­
sentam esse princípio como sendo o mais forte que
se pode imaginar (o que de fato ele é) e descrevem
quase toda a humanidade como jazendo sob a in­
fluência dele e submersa na mais profunda letargia
e despreocupação perante seus interesses religiosos.
No entanto, esses mesmos teólogos, ao contestar seus
antagonistas especulativos, supõem que os motivos
da religião são tão poderosos a ponto de, sem eles,
ser impossível a subsistência da sociedade civil e não
sentem o mínimo constrangimento diante de tão pa­
tente contradição. A experiência atesta que a menor
parcela de honestidade e benevolência naturais tem
mais efeito sobre a conduta humana do que as mais
pomposas considerações sugeridas pelas teorias e sis­
temas teológicos. A inclinação natural de uma pes­
soa exerce sobre ela uma influência constante, está
sempre presente à mente e mescla-se a todas as suas
idéias e decisões, ao passo que os motivos religio­
sos, nos casos em que chegam a ter algum efeito, ope­
ram apenas de maneira intermitente, e é muito difí­
cil que o espírito venha a habituar-se completamente
a eles. A mais potente força gravitacionai, dizem os
filósofos, é infinitamente pequena em comparação
ao impulso mais tênue; no entanto, não há dúvida
de que a gravidade mais fraca chegará, por fim, a
prevalecer sobre um grande impulso, porque ne­
nhum golpe ou empurrão pode repetir-se com a mes­
ma constância da atração e da gravitação.
PAR TE XII 177
Outra vantagem da inclinação é que ela poe a
seu serviço toda a inventiva e engenhosidade da men­
te e, quando contraposta aos princípios religiosos,
procura todos os métodos e artifícios para contorná-
los — no que quase sempre é bem-sucedida. Quem
pode explicar o coração humano, ou dar a razão de
todos os estranhos pretextos e desculpas que as pes­
soas usam como justificativa para seguir as inclina­
ções que se opõem a seus deveres religiosos? Isto é
bem entendido na sociedade; e só os tolos deposita­
riam menos confiança em um homem simplesmente
por ter ouvido dizer que, em virtude do estudo e
da filosofia, ele alimenta algumas dúvidas especula­
tivas acerca de assuntos teológicos. E quando temos
de lidar com uma pessoa que faz grande alarde de
sua religiosidade e devoção, qual é o efeito disso so­
bre muitos que são considerados prudentes, se não
o de pô-los em guarda para não serem logrados e ilu­
didos por ela?
Note-se ainda que os filosófos, que cultivam a
razão e a reflexão, têm menos necessidade de moti­
vos desse tipo para manter-se dentro dos limites da
moral, e que as pessoas comuns, que são as únicas
que poderiam necessitar de tais estímulos, são com­
pletamente incapazes de aderir a uma religião tão
depurada a ponto de propor que o único meio de
agradar à Divindade é comportar-se de maneira vir­
tuosa. Supõe-se, em geral, que rituais frívolos, êxta­
ses arrebatados ou uma credulidade fanática podem
conseguir os favores do Ser Divino. Não é necessá­
rio recuar à Antiguidade ou percorrer regiões lon­
gínquas para encontrar exemplos dessa degenerescên-
cia: entre nós mesmos já houve quem se tornasse
17„8 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

culpado do ato abominável — do qual não há para­


lelo entre as superstições egípcias e gregas — de vo­
ciferar expressamente contra a moralidade, afirmando
que o menor crédito ou confiança nela depositado
acarretará seguramente a perda do favor divino.
Mas mesmo que a superstição ou o fervor não
se coloquem em direta oposição à moralidade, o me­
ro desvio da atenção, a instituição de uma nova e
fútil espécie de mérito e a absurda maneira pela qual
classificam o que é digno de louvor ou censura tra­
rão, com certeza, as mais perniciosas consequências
e enfraquecerão ao extremo o apego das pessoas aos
preceitos naturais de justiça e humanidade.
Da mesma forma, dado que esse princípio de
ação não se identifica com nenhum dos motivos fa­
miliares que regem a conduta humana, ele só pode
operar sobre o caráter de forma intermitente, e ne­
cessita de um esforço constante para sua ativação,
de modo a fazer com que o zeloso fanático se sinta
satisfeito com sua própria conduta e seja levado a
cumprir suas tarefas votivas. Muitas atividades reli­
giosas são executadas com aparente fervor, embora
o coração esteja, durante esse tempo, frio e inerte.
Adquire-se gradualmente o hábito da dissimulação,
e a fraude e insinceridade tornam-se o princípio do­
minante. Daí a razão do reparo, tão comum, de que
o mais elevado zelo religioso e a hipocrisia mais pro­
funda, longe de serem incompatíveis, estão em ge­
ral e com freqüência unidos na mesma personalida­
de individual.
Os efeitos perversos desses hábitos, mesmo na
vida ordinária, são fáceis de imaginar. Quando, po­
rém, interesses religiosos estão envolvidos, não há
PARTE XII 179
moralidade que seja suficientemente forte para coi­
bir o fanático ardoroso, e o caráter sagrado da causa
glorifica todos os meios dos quais se pode lançar mão
para promovê-la.
A atenção dirigida de maneira fixa e exclusiva
para um assunto tão importante como a salvação
eterna tende a extinguir os sentimentos benevolen­
tes e a engendrar um egoísmo estreito e mesquinho.
E essa disposição de espírito, ao ser encorajada, con­
segue esquivar-se facilmente de todos os preceitos ge­
rais de caridade e benevolência.
Assim, os motivos ligados à superstição vulgar
não têm grande influência sobre a conduta geral, e
sua operação, nos casos em que chegam a predomi­
nar, tampouco favorece a moralidade.
Haveria, em política, algum princípio geral mais
certo e infalível do que o que recomenda que tanto
o número como a autoridade dos sacerdotes sejam
mantidos dentro de limites muito estreitos, e que o
magistrado civil impeça, em todas as circunstâncias,
que o feixe de varas e a machadinha venham a cair
em tão perigosas mãos? Contudo, se o espírito da
religião popular fosse tão benéfico à sociedade, é cla­
ro que um princípio oposto deveria prevalecer, pois
um número maior de sacerdotes, dotados de maior
autoridade e riqueza, produzirá, em qualquer oca­
sião, um crescimento do espírito religioso. E se ca­
be aos sacerdotes dirigir esse espírito, por que não
deveriamos esperar uma vida sumamente santifica­
da e uma maior benevolência e moderação da parte
de pessoas devotadas à religião, que estão continua­
mente inculcando-a nos demais e que devem, elas
mesmas, estar embebidas de uma boa parte dela?
18p DIÁLOGOS SOBRE A .RELIGIÃO NATURAL

Qual é então a razão para que, de fato, o máximo


que um hábil magistrado pode pretender com rela­
ção à religião popular seja tirar dela algum proveito
e evitar, na medida do possível, as conseqtiências per­
niciosas que ela pode trazer para a sociedade? E, mes­
mo tendo em vista um objetivo tão modesto, todos
os meios que ele emprega para atingi-lo estão cerca­
dos de inconveniências. Se ele só permite uma úni­
ca religião para seus súditos, deverá sacrificar, em no­
me de uma incerta perspectiva de tranquilidade, to­
das as considerações relativas à liberdade pública, à
ciência, à razão e à inventividade — e até mesmo
sua própria independência. Se, por outro lado, ele
for condescendente para com diversas seitas (o que
constitui a atitude mais prudente), deverá preservar
uma indiferença perfeitamente filosófica em relação
a todas elas e refrear cuidadosamente as pretensões
da seita dominante; caso contrário só poderá espe­
rar infindáveis disputas, alterações, facciosismos, per­
seguições e levantes civis.
Concedo que a verdadeira religião não tem es­
sas con.seqüências nocivas; mas o que devemos le­
var em conta é a religião tal como ela habitualmen­
te tem sido encontrada no mundo. Não me ocupo,
tampouco, da doutrina especulativa do teísmo, o
qual, sendo uma espécie de filosofia, deve compar­
tilhar da influência benéfica desta, embora esteja, ao
mesmo tempo, sujeito à idêntica inconveniência de
achar-se sempre restrito a um número muito peque­
no de pessoas.
E verdade que todas as cortes judiciais requerem
juramentos, mas é questionável se a autoridade des­
sas cortes provém de qualquer religião popular. E
PARTE XII 181
a solenidade e a importância da ocasião, o cuidado
com a reputação e a reflexão sobre os interesses ge­
rais da sociedade que constituem os principais fato­
res limitativos que operam sobre a humanidade. Pou­
ca importância é atribuída aos juramentos alfande­
gários e políticos, mesmo por parte de alguns que
têm a pretensão de seguir os princípios de honesti­
dade e religião. E, entre nós, a declaração de um qua­
ere é posta em pé de igualdade com o juramento de
qualquer outra pessoa. Bem sei que Políbio atribuiu
a má fama dos testemunhos dos gregos à preponde­
rância da filosofia epicurista; mas também sei que
os testemunhos dos cartagineses tinham, nos tem­
pos antigos, uma reputação tão baixa quanto a dos
depoimentos dos irlandeses na época presente, em­
bora estas observações vulgares não devam ser ex­
plicadas pelas mesmas razões. Sem dizer, além dis­
so, que o testemunho dos gregos já era mal-afamado
antes do advento de Epicu.ro; e Eurípedesi0, em uma
passagem para a qual chamo sua atenção, desferiu
um admirável golpe satírico contra sua nação, com
referência a essa característica.
Cleantes: Tenha cautela, Filo, tenha cautela!
Não leve as coisas tão longe e não deixe que seu ze­
lo contra a falsa religião ponha a perder seu respei­
to pela que é verdadeira. Não abandone esse princí­
pio, o primeiro, o único grande consolo na vida e
nosso principal apoio em meio a todas as investidas
da adversidade. A consideração mais satisfatória que
pode ser sugerida pela imaginação humana é a do
genuíno teísmo, que nos representa como a obra de

10. Ifigênia em Tauris.


1^ DIÁLOGOS SOBRE .A RELIGIÃO NATURAL

um Ser perfeitamente bom, sábio e poderoso, que


nos criou para a felicidade e que, tendo implantado
em nós um imenso desejo pelo bem, irá prolongar
nossa existência por toda a eternidade e transportar-
nos para uma variedade infinita de cenários, a fim
de satisfazer esse desejo e tornar nossa felicidade com­
pleta e duradoura. A condição mais afortunada que
nos é possível imaginar, em seguida à desse próprio
Ser (caso se permita a comparação), é de estar sob
sua guarda e proteção.
Filo: Essas aparências são atraentes e sedutoras
ao extremo; e, no que diz respeito ao verdadeiro fi­
lósofo, são mais do que simples aparências. Mas aqui,
assim como no caso anterior, ocorre que, ao se le­
var em conta a maioria da humanidade, as aparên­
cias são enganosas, e os terrores da religião habitual­
mente prevalecem sobre seus consolos.
Admite-se que as pessoas nunca estão tão dispos­
tas a recorrer às práticas devotas como quando aba­
tidas pelo desgosto ou prostradas pela enfermidade.
Não é isto uma prova de que o espírito religioso não
se acha tão intimamente unido à alegria quanto à
aflição?
Cleantes: Mas os seres humanos, quando afli­
tos, encontram alívio na religião.
Filos Algumas vezes; mas é natural supor que
eles formarão, desses seres desconhecidos, uma idéia
condizente com o estado de espírito triste e melan­
cólico com que se dirigem à sua contemplação. Em
consequência disto, vê-se que as imagens terríveis pre­
dominam em todas as religiões; e mesmo nós, após
termos empregado as mais sublimes expressões em
nossas descrições da Divindade, caímos na mais re­
PARTE XII 183
les contradição ao afirmar que os condenados são
infinitamente mais numerosos que os eleitos.
Posso mesmo dizer que nunca houve uma reli­
gião popular que tenha descrito a condição das al­
mas dos que morreram em cores capazes de desper­
tar, na humanidade, o desejo de que haja efetivamen­
te uma condição como essa. Tais modelos refinados
de religião são meramente o produto da filosofia.
Pois a morte se interpõe entre os olhos e a perspec­
tiva de um estado futuro, e esse acontecimento é tão
ofensivo à Natureza a ponto de lançar forçosamen-
te uma sombra sobre todas as regiões que se situam
para além dele e sugerir à maioria da humanidade
as idéias de Cérbero e as Fúrias, demônios e torren­
tes de fogo e enxofre.
E verdade que tanto o medo como a esperança
têm lugar na religião, pois essas duas paixões, em
ocasiões diversas, excitam o espírito humano; e ca­
da uma delas constrói o tipo de divindade que lhe
é mais conveniente. No entanto, sempre que um ho­
mem se achar aprazívelmente disposto, ele estará
pronto para os negócios, para visitas, ou para qual­
quer espécie de entretenimento, e natural mente se
empenhará nessas atividades, sem sequer pensar em
religião. Se estiver melancólico e deprimido, não terá
nada a fazer a não ser meditar sobre os terrores do
mundo invisível e mergulhar ainda mais fundo na afli­
ção. Pode certamente ocorrer que, após ter assim gra­
vado profundamente as opiniões religiosas em seu
pensamento e imaginação, sobrevenha uma mudança
em sua saúde ou nas circunstâncias capaz de resta­
belecer seu bom humor e, oferecendo-lhe agradáveis
perspectivas para o futuro, faça-o passar para o ou-
1<Ü4 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL

tro extremo de alegria e triunfo. Mas ainda assim


se deverá reconhecer que, como o terror é o princí­
pio primordial da religião, ele também é a paixão
que nela predomina, não admitindo senão breves in­
tervalos de satisfação.
Nem é preciso dizer que esses acessos de alegria
excessiva e entusiástica, ao debilitar os humores, pre­
param o caminho para acessos semelhantes de ter­
ror e prostração, e que só um estado de espírito cal­
mo e equilibrado é capaz de proporcionar o máxi­
mo de felicidade. Mas é impossível que alguém se
mantenha nesse estado enquanto se sentir mergu­
lhado em tão profunda obscuridade e incerteza, sus­
penso entre uma eternidade de alegria e uma eter­
nidade de sofrimentos. Nao surpreende que uma tal
opinião conduza à desarticulação do arcabouço men­
tal, lançando-o na confusão mais extremada. E, em­
bora essa opinião raramente opere de forma tão cons­
tante a ponto de exercer sua influência sobre a tota­
lidade das ações, ela é, no entanto, capaz de ocasio­
nar uma considerável ruptura no temperamento, pro­
duzindo aquela tristeza e melancolia tão notáveis em
todas as pessoas devotas.
E contrário ao senso comum nutrir apreensões
e temores por conta de uma opinião, qualquer que
seja ela; ou imaginar que o uso de nossa razão, por
mais livre que seja, possa trazer-nos algum risco
quanto à vida futura. Tal idéia envolve tanto um ab­
surdo como uma incoerência. E um absurdo acre­
ditar que a Divindade tenha paixões humanas, e lo­
go uma das mais vis dentre elas, como o apetite in­
saciável pelos aplausos. E é incoerente supor que,
tendo essa paixão humana, a Divindade não tenha
PARTE XII 185
também outras, em especial, um desprezo pelas opi­
niões de criaturas que lhe são tão manifestamente
inferiores.
“Conhecer Deus”, diz Sêneca, “é adorá-lo.”
Qualquer outra espécie de adoração é, na verdade,
absurda, supersticiosa e até mesmo ímpia. Ela o de­
grada à vil condição da humanidade, que se deleita
com súplicas, pedidos, presentes e adulações. Ainda
assim, essa é a menor das impiedades das quais a su­
perstição é culpada. Em geral, ela rebaixa a Divin­
dade a uma condição muito inferior à dos seres hu­
manos, representando-a como um demônio capri­
choso que exerce seu poder de forma irracional e
desumana. Se esse Ser Divino estivesse propenso a
ofender-se com as maldades e loucuras dos estúpi­
dos mortais que ele mesmo criou, os adeptos da
maioria das superstições populares estariam certa­
mente em péssima situação. E, dentre os membros
da raça humana, só uns poucos mereceríam sua gra­
ça, a saber, os teístas filosóficos, que abrigam, ou an­
tes, se esforçam por abrigar idéias adequadas acerca
de suas divinas perfeiçoes. Do mesmo modo, as úni­
cas pessoas que fariam jus à sua compaixão e indul­
gência seriam os membros da seita — igualmente rara
— dos céticos filosóficos, os quais, devido a uma des­
confiança natural acerca de sua própria capacidade,
suspendem ou se esforçam por suspender todo e
qualquer julgamento relativo a assuntos tão subli­
mes e extraordinários.
Se a teologia natural, como parecem sustentar
alguns, se resolve inteiramente na simples proposi­
ção (embora algo ambígua ou pelo menos indefini­
da) de que a causa ou as causas da ordem no Unúuer-
186 DIÁLOGOS SOBRE A RELIGIÃO NATURAL
b

so mantêm provavelmente alguma analogia remota


com a inteligência humana-, se essa proposição não
é capaz de ser estendida, variada ou explicada de ma­
neira mais particularizada; se ela não pode dar lu­
gar a qualquer inferência concernente à vida huma­
na, nem funcionar como o princípio de qualquer
ação ou abstenção; e se a analogia, ainda que imper­
feita, não pode ser conduzida para além da inteli­
gência humana nem ser piausivelmente transferida
às outras qualidades da mente; se tudo isto, então,
é realmente o caso, que restaria às pessoas mais in-
dagativas, contemplativas e religiosas senão dar um
assentimento pleno e filosófico a essa proposição,
todas as vezes em que ela ocorre, e acreditar que os
argumentos sobre os quais ela se baseia superam as
objeções que podem ser contra ela levantadas? E cer­
to que alguma dose de espanto resultará naturalmente
da grandiosidade do assunto, alguma melancolia de
sua obscuridade, e alguma frustração da razão hu­
mana do fato de não ser capaz de fornecer uma so­
lução mais satisfatória para uma questão de tal mo­
do extraordinária e majestosa. Mas acredite-me,
Cleantes, o sentimento mais natural que um espíri­
to corretamente disposto experimenta nessa ocasião
é o de um ardente desejo e expectativa de que os céus
se dignem a dissipar ou, pelo menos, a aliviar esta
profunda ignorância, fornecendo à humanidade al­
guma revelação mais específica e proporcionando
descobertas da natureza, atributos e operações do di­
vino objeto de nossa fé. Uma pessoa acostumada à
avaliação imparcial das deficiências da razão natu­
ral lançar-se-á com a maior avidez à verdade revela­
da; ao passo que o dogmático orgulhoso, persuadi-
PARTE XII 187
do de que os simples instrumentos da filosofia lhe
são suficientes para edificar um sistema completo de
teologia, desdenhará qualquer auxílio adicional e re­
jeitará essa instrução adventícia. Ser um cético filo­
sófico é, em um homem de letras, o primeiro e o
mais importante passo para tornar-se um cristão au­
têntico e confiante — uma proposição que de bom
grado recomendo à atenção de Panfilo, esperando
que Cleantes me desculpe por intrometer-me dessa
maneira na educação e ensino de seu discípulo.

Cleantes e Filo não se estenderam por muito mais


tempo nessa conversação; e como jamais algo me im­
pressionou mais fortemente do que todos os raciocí­
nios que ouvi nesse dia, devo confessar que, com base
em uma revisão atenta de tudo o que foi dito, não posso
deixar de pensar que os princípios de Filo são mais
plausíveis que os de Demea, mas que os de Cleantes
se aproximam ainda mais da verdade.
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