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ANTOLOGIA DE TEXTOS

de apoio à comunicação do Prof. Dr. Leonel Ribeiro dos Santos


sobre

A Reforma luterana no contexto da filosofia do Renascimento


proferida no evento
“AS IMPLICAÇÕES FILOSÓFICAS DA REFORMA PROTESTANTE”

UnB – GPFR: 30.10.2020


[Textos selecionados e traduzidos- salvo indicação em contrário - por Leonel Ribeiro dos Santos]

1. Renascimento/Humanismo e Reforma: incompatibilidade radical?


«Alguns historiadores associam a ideia de Renascimento estreitamente com a Reforma, a qual teria
sido o seu aspeto religioso. Há provavelmente alguma verdade profunda neste juízo, na medida em que
Renascimento e Reforma se opõem à teologia medieval, e seria grave erro negligenciar este aspeto da
questão. É igualmente certo que o Humanismo e a Reforma concorreram, cada qual por métodos
próprios, para produzir certos efeitos no terreno religioso, de tal modo que estes efeitos lhes pertencem
por assim dizer em comum. Entre esses efeitos contam-se a importante renovação da exegese bíblica e
o desenvolvimento dos estudos patrísticos, por exemplo. Mas seria ainda mais inexato confundir o
Renascimento com a Reforma do que isolá-los, pois na medida em que o Humanismo é a exaltação da
natureza, ele é a negação da Reforma na sua própria essência.
Se a evidência desta verdade não é geralmente reconhecida, isso tem a ver antes de mais com
o facto de que confundimos a obra própria de Lutero com o luteranismo que dela resultou mais tarde,
mas também com um certo mau conhecimento do que o próprio Lutero quis fazer. Tal como os
humanistas do seu tempo, ele protesta contra a Idade Média, mas não contra o mesmo e nem da
mesma maneira. A “barbárie gótica” tão detestada por Rabelais… é uma pesada velharia de que ele se
quer desembaraçar para retornar aos Antigos, eternamente jovens porque eternamente humanos, e
juntamente com eles criar o novo. A Idade Média escolástica, coberta de injúrias por Lutero é, pelo
contrário, algo moderno. O que ele detesta acima de tudo é o século XIII e, neste século, Tomás de
Aquino. Longe de o acusar de ter ignorado o Helenismo, ele acusa-o de ter abusado dele e, paganizando
o Evangelho, de ter corrompido a própria essência do cristianismo. Se se levasse suficientemente longe
a análise das obras de Lutero, constataríamos provavelmente que o crime inexpiável do tomismo é a
seus olhos o ter introduzido no Deus cristão, e por conseguinte na teologia cristã, a noção aristotélica,
portanto helénica e pagã, da justiça, juntamente com a conceção da liberdade humana que daquela é
inseparável. […] Eliminando a tradição patrística grega, Lutero apenas se agarrava a
são Bernardo e a santo Agostinho, dois dos homens que, se o tivessem conhecido, o teriam detestado
da forma mais cordial. A sua reação, fosse qual fosse a novidade que trazia oculta em seu seio, era pois
essencialmente um retorno àquilo que há de mais medieval na Idade Média, e de mais dark naquilo
quer se tem chamado as dark ages: o desprezo da natureza, da ciência secular, da filosofia e da sua
intrusão na religião, com a exaltação unilateral da graça concebida como um substituto da natureza em
vez de ser o seu completamento e coroamento. Encontram-se facilmente em Lutero, deformadas e
esvaziadas da sua essência pelo próprio exagero, os carateres do agostinismo medieval, sempre inquieto
diante das iniciativas ousadas de Tomás de Aquino. Se há aqui um homem do Renascimento, esse é
talvez santo Alberto o Grande e são Tomás, que dão direito de cidade no Cristianismo à Ética a
Nicómaco e à Política de Aristóteles; pode ser também Roger Bacon, que recopia e comenta para o papa
Clemente IV os escritos de Séneca pedindo-lhe que os incorpore no ensino da moral cristã; é talvez João
de Salisbúria, cujo Policraticus se nutre de Cícero, ou o monge Aelred que recita o De amicitia para o uso
dos cristãos do século XII. Mas Lutero? Seguramente não. Não é, pois, na Reforma, mas noutro lado,
que se deve procurar o Renascimento.»

1
Étienne Gilson, Humanisme et Renaissance, Paris: Vrin, 1986, pp.172.174.

2. Nietzsche: A Reforma como o anti-Renascimento


«Compreende-se, por fim, quer-se compreender o que foi o Renascimento? A inversão dos valores
cristãos, a tentativa, empreendida com todos os meios, com todos os instintos, com todo o génio, de
levar à vitória os valores opostos, os valores nobres… Até hoje houve essa única grande guerra. Não
houve, até ao presente, nenhuma interpelação mais decisiva que a do Renascimento - a minha questão
é a sua questão - e também não houve nunca uma forma de ataque mais fundamental, mais direta, mais
duramente desencadeado em toda a frente e dirigida contra o centro! Atacar no ponto decisivo, na sede
do próprio cristianismo, colocar aí os valores nobres no trono, quer dizer, introduzi-los nos instintos, nas
necessidades e nas ambições mais baixas daqueles que nele se sentavam… Vejo um espetáculo tão
significativo e, ao mesmo tempo, tão maravilhosamente paradoxal, que todas as divindades do Olimpo
teriam tido ensejo para uma imortal gargalhada – vejo César Bórgia feito Papa… Compreendem-me? …
Pois bem, essa teria sido a vitória, da qual eu sou hoje o único a ter saudades: com ela, ficava suprimido
o cristianismo! Que aconteceu? Um monge alemão, Lutero, veio a Roma. Esse monge, com todos os
instintos rancorosos de um sacerdote malogrado metidos no corpo, insurgiu-se em Roma contra o
Renascimento… Em vez de compreender com a mais profunda gratidão o que de extraordinário
acontecera, a superação do cristianismo na sua própria sede, o ódio de Lutero apenas compreendeu
como tirar desse espetáculo o seu alimento. Um homem religioso só pensa em si. Lutero viu a corrupção
do papado, quando era precisamente o contrário que se podia agarrar com as mãos: a velha perversão,
o peccatum originale, o cristianismo já não estava sentado na cadeira do Papa! Mas sim a vida! Mas sim
o triunfo da vida! Mas o grande “Sim” a todas as coisas elevadas, belas e ousadas!... E Lutero restaurou
a Igreja: atacou-a… O Renascimento transformado num acontecimento sem sentido, num grande em
vão!»
F. Nietzsche, O Anticristo <1895>, trad. de Paulo Osório de Castro, in: Obras escolhidas de Nietzsche, Lisboa: Círculo de
Leitores, 1997, vol. VII, pp.102-104. Já em obra anterior – Humano, demasiado humano <1878> - , Nietzsche expusera
esta sua ideia do Renascimento como uma cultura superior de uma época de ouro que trazia em si todas as forças
positivas, contra a qual a Reforma alemã representou um protesto enérgico de espíritos reacionários que não estavam
fartos da visão medieval do mundo, o que impediu que a grande tarefa do Renascimento pudesse ser consumada. (in:
Menschliches - Allzumenschliches, Werke, ed. Colli / Montinari, Seção IV, Vol. 2,1, 1967, pp. 199-200). Sobre os
pressupostos desta interpretação, veja-se: Leonel Ribeiro dos Santos, «Nietzsche e o Renascimento», in: Idem, O
Espírito da Letra. Ensaios de Hermenêutica da Modernidade, Lisboa: INCM, 2007, pp.387-406.

3. O que há de comum entre o Humanismo e a Reforma: a cultura Retórica


«Embora o Humanismo, que assumiu uma grande variedade de formas à medida que passou por
diferentes estádios e foi influenciado por diferentes condições locais, não fosse idêntico às mais
profundas tendências da cultura do Renascimento, era apesar disso frequentemente adaptado para
lhes dar notável expressão, e por razões que não eram acidentais, mas diretamente relacionadas com a
tradição retórica. Apesar das suas diferenças noutros aspetos, as mais recentes interpretações do
Humanismo do Renascimento têm-no pelo menos identificado com o reviver da Retórica. O que é
menos geralmente reconhecido é o profundo significado desta revivescência. […] Baseada num conjunto
de ideias acerca da natureza, competência e destino do homem, a Retórica dava expressão às mais
profundas tendências da cultura do Renascimento. […] Estas tendências parecem-me ter exercido
pressões intoleráveis nos elementos centrais do entendimento medieval do Cristianismo. E eu sugiro
que tendências similares subjazem ao pensamento dos grandes Reformadores Protestantes. Assim, o
significado do Protestantismo no desenvolvimento da cultura europeia reside no facto de que ele aceita
as consequências religiosas destas tendências do Renascimento e foi preparado para aplicá-las ao
entendimento do Evangelho. A partir deste ponto de vista, a Reforma foi o completamento teológico do
Renascimento.»
William J. Bouwsma, A usable Past. Essays in European Cultural History, Berkeley/Los Angeles/Oxford: University of
California Press, 1990, pp. 226-227.

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4. Martinho Lutero: As Theses de Homine <1536>: uma Antropologia nos antípodas da
“Oratio de hominis dignitate”?

«1. A Filosofia, isto é a sabedoria humana, define o homem como sendo animal racional,
sensitivo, corpóreo.
2. Não há necessidade de discutir se o homem é chamado própria ou impropriamente animal.
3. Mas deve saber-se que esta definição só define o homem mortal e desta vida.
[…]
11. Por conseguinte, se compararmos a filosofia ou a razão com a teologia aparecerá que nós
quase nada sabemos acerca do homem.
12. De tal modo que a custo conseguimos ver qual seja a sua causa material.
13. Pois a filosofia não conhece a causa eficiente, e da mesma forma não conhece a causa final.
14. Pois, como causa final não coloca nenhuma a não ser a paz desta vida e desconhece que a
causa eficiente é o Deus criador.
15. Porém, acerca da causa formal a que chamam alma nunca houve acordo e nunca haverá
entre os filósofos.
16. Pois Aristóteles, que a definiu como ato primeiro do corpo que tem a potência de viver, quis
desse modo iludir os professores e os estudantes.
17. Nem há esperança de o homem poder conhecer-se a si mesmo no que ele é nesta sua
principal parte, enquanto não se veja na sua própria fonte, que é Deus.
18. O que ainda é mais miserável é que ele nem sequer tem pleno e certo poder sobre o seu
juízo e pensamento, mas nestes está sujeito ao acaso e à vaidade.
19. Tal como é esta vida assim é a definição e o conhecimento do homem, isto é: exíguo,
incerto e completamente material.
20. Mas a teologia define o homem todo e perfeito a partir da plenitude da sua sabedoria.
21. A saber, que o homem é criatura de Deus que consta de carne e alma viva, criado desde o
início à imagem de Deus sem pecado, para que gerasse e dominasse sobre as coisas e nunca
morresse.
22. Porém, depois da queda de Adão, que ele foi submetido ao poder do diabo, ao pecado e à
morte, dois males que ele não consegue superar pelas suas forças e que por isso são eternos.
23. E que só mediante o Filho de Deus, Jesus Cristo, ele é libertado (se nele acreditar) e obtém
a vida eterna.
24. E que, nestas circunstâncias, se conclui que aquela que é mais bela e excelente de todas as
coisas, como é a razão, depois do pecado permanece sob o poder do diabo.
25. Por conseguinte, todo o homem e todos os homens, seja ele rei, senhor, servo, sábio, justo
e por mais que seja excelente nos bens desta vida, é, Contudo, réu do pecado e da morte e
permanece oprimido sob o diabo.
26. Pelo que, aqueles que dizem que as coisas naturais depois da queda permaneceram
íntegras, filosofam impiamente contra a teologia.
27. Da mesma forma <filosofam impiamente contra a teologia> aqueles que dizem que o
homem que faz o que está ao seu alcance merece a graça de Deus e a vida.
28. Da mesma forma <filosofam impiamente contra a teologia> aqueles que dizem que
Aristóteles, que nada sabe acerca do homem teológico, afirma que a razão se dirige para o
melhor.
29. Da mesma forma <filosofam impiamente contra a teologia aqueles que dizem> que no
homem há a luz do rosto de Deus inscrita sobre nós, isto é, o livre arbítrio capaz de formar o
reto ditame e a boa vontade.
30. Da mesma forma <filosofam impiamente contra a teologia os que dizem> que o homem é
capaz de escolher o bem e o mal ou a vida e a morte, etc.

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31. Todos os que tal afirmam nem entendem o que seja o homem, nem sabem de que coisa
eles mesmos falam.»
Estas Teses devem ser confrontadas com a exegese feita por Lutero dos 3 primeiros capítulos
do Génesis relativos à criação do homem “ad imaginem et similitudinem Dei”, ao pecado e à
expulsão do paraíso. D. Martin Luthers Werke, WA, v. 42, pp.42-131. Veja-se Charles Trinkhaus,
«Luther’s Hexameral Anthropology», in: Idem, The Scope of Renaissance Humanism, Ann
Harbor: The University of Michigan Press, 1983, pp.404-421.

< Respostas de M. Lutero às objeções às suas Teses “De Homine”>

«Deve-se separar cuidadosamente a filosofia da teologia. Os filósofos e Aristóteles não


puderam entender ou definir o que seja o homem teológico, mas nós pela graça de Deus, porque temos
a Bíblia, podemos fazer isso. […]Nós dizemos o que a filosofia de maneira nenhuma sabe acerca do
homem. Aristóteles inventa o primeiro móvel ou movente. Daí conclui que todas as coisas que operam
interiormente são feitas pelo primeiro móvel. E assim imagina que o primeiro móvel faz o mesmo que
uma criada que embala o berço da criança, contudo intui-se a si mesmo. Assim nos condena Aristóteles.
Em suma, os filósofos nada sabem acerca de Deus criador e do homem que foi feito do barro da terra.
Agostinho diz que encontrou todas as coisas nos livros platónicos, menos uma só coisa, a saber que o
verbo se fez carne. Mas Hermegisto [sic! Talvez por Her<mes Tri>megisto] compôs este livro de Platão
<o Asclepius?> e tudo surripiou do evangelho de João. Este livro, porém, chegou a Agostinho e ele ficou
dececionado a respeito da sua persuasão. […]

A filosofia é “a prudência da carne inimiga de Deus”. Este é o louvor da filosofia.»

Apud: Gerahrd Ebeling, Lutherstudien, Band II: Disputatio de Homine 1. Theil, Tübingen:
J.C.B.Mohr (Paul Siebeck), 1977, pp.15…24.27…30.

Lutero: Disputatio Heidelbergae habita <25 de abril de 1518> WA 9:170.

«Estas conclusões foram por mim tratadas e disputadas para mostrar, em primeiro lugar, quão
longe andaram da sentença de Aristóteles as fantasias de todos os escolásticos sofistas e todos os
sonhos que eles inventaram nos livros de Aristóteles, que não entenderam. Depois, para mostrar que,
mesmo se os tomarmos no sentido máximo (como aqui expus), ainda assim eles são completamente de
nenhum auxílio, pois deles nada se pode tirar, não só para a teologia ou sagradas letras, mas até para a
própria filosofia natural. Com efeito, que ajuda traz ao conhecimento das coisas o divagar e sofismar
acerca da matéria, da forma, do movimento, do finito, do tempo, palavras concebidas e prescritas por
Aristóteles?»

5. Martinho Lutero: voluntarismo radical e egolatria, à mistura com o desprezo pelos


outros e a grosseria?
«Voltando novamente à questão. Se o papista quer incomodar-se bastante com a palavra sola-
somente, diga-lhe logo: o doutor Martinho Lutero quer assim e diz que papista e asno é a mesma coisa.
Sic uolo, sic iubeo, sit pro ratione uoluntas [assim quero, assim ordeno, tome-se a vontade por razão]*.
Pois não queremos ser alunos nem discípulos dos papistas, mas seus mestres e juízes. Queremos por
uma vez também gabar-nos e vangloriar-nos com essas cabeças de asno. E como São Paulo se gloria
contrapondo-se aos santos insensatos, assim também eu quero gloriar-me contrapondo-me a esses
meus asnos. Eles são doutores? Eu também. Eles são teólogos? Eu também. Eles são argumentadores?
Eu também. Eles são filósofos? Eu também. Eles são dialéticos? Eu também. Eles são preletores? Eu
também. Eles escrevem livros? Eu também. E quero continuar gloriando-me: Eu sei interpretar os
salmos e os profetas; eles não sabem. Eu sei traduzir; eles não sabem. Eu sei rezar; eles não sabem. E

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para falar de coisas menores: eu entendo sua própria dialética e filosofia melhor do que todos eles
juntos. E além disso sei deveras que nenhum deles entende seu Aristóteles. E se há alguém entre
todos eles que entenda corretamente um prefácio ou um capítulo de Aristóteles, deixarei que me
açoitem. Não estou agora falando demais, pois fui educado e adestrado desde a juventude em toda a
sua arte, e sei muito bem quão profunda e vasta ela é. Também eles sabem igualmente muito bem que
eu sei e posso tudo o que eles podem. Não obstante, essa gente insana se comporta comigo como se eu
fosse um hóspede em sua arte, que tivesse chegado apenas hoje pela manhã e nunca tivesse visto nem
ouvido o que eles estão aprendendo ou podem fazer, assim tão maravilhosamente ostentam sua arte e
me ensinam o que eu há vinte anos gastei em solas de sapato de forma que também eu, em resposta a
todos os seus berros e gritos, tenho que cantar como aquela rameira: Faz sete anos que eu sei que os
pregos das ferraduras são de ferro.
Valha isto como resposta à sua primeira pergunta; e rogo-lhes que a tais asnos
e seus berros inúteis por causa da palavra sola não respondam nada mais nem diferente disso: Lutero
quer mantê-la assim e diz que é doutor acima de todos os doutores do papado inteiro; por isso deve
permanecer aí. Doravante quero apenas desprezá-los e tê-los desprezado, enquanto são pessoas –
queria dizer asnos – desta classe. Pois entre eles há uns patetas descarados que nunca aprenderam nem
sua própria arte de sofistas, como o doutor Schmidt** e o doutor Rotzlöffel*** e seus semelhantes, e
colocam-se contra mim nesta questão, que está acima não apenas da sofistaria, mas também, como diz
São Paulo, acima da sabedoria e da razão de todo mundo. Realmente, um asno não precisa cantar
muito: é logo reconhecido pelas orelhas.»
Martinho Lutero, Sendbrief vom Dolmetschen – Carta Aberta sobre a Tradução <1530>, tradução de Mauri Furlan, in:
Clássicos da Teoria da Tradução, vol. 4: Renascimento, org. de Mauri Furlan, Florianópolis: UFSC/Núcleo de Pesquisas
em Literatura e Tradução,2006, pp.98-101. Tenha-se presente o juízo de Novalis – Friedrich Hardenberg – a respeito da
Reforma e de Martinho Lutero, no seu opúsculo Die Christenheit oder Europa <1799>: «Lutero tratou em geral o
cristianismo de modo arbitrário, menosprezou o respetivo espírito, e introduziu uma outra letra e uma outra religião,
designadamente a sagrada validade universal da Bíblia, e com isso, infelizmente, misturou-se nos assuntos da religião
uma outra ciência terrena que lhes era sumamente estranha – a Filologia -, cuja influência degenerante se tornou
desde então inconfundível. Precisamente o sentimento obscuro deste equívoco fez com que, junto de grande parte dos
protestantes, Lutero fosse elevado à categoria de evangelista e canonizada a sua tradução. Esta escolha foi
extremamente ruinosa para o sentido religioso, pois que nada aniquila tanto a sua capacidade de incomodar como a
literalidade. No antigo estado das coisas, com o grande alcance da maleabilidade e o abundante material da fé católica,
com o uso esotérico da Bíblia e o sagrado poder dos concílios e do soberano espiritual, a letra nunca podia ter-se
tornado tão nefasta.» (Die Christenheit oder Europa, ed. Reclam, Stuttgart,1980, pp.28-29).<bold de LRS>

*Juvenal, Sátiras, VI,223 / **Johann Faber de Heilbroon, teólogo dominicano / ***Johann Cochläus, humanista, teórico musical e
teólogo. A última frase parece ser-lhe dirigida, tal como a tradução alemã do seu apelido: “colher de ranho”

6. Martinho Lutero <1520> e a reforma da Universidade alemã


«As universidades têm necessidade de uma boa e sólida reforma. […] Que são elas, enquanto não
forem mudadas as disposições atuais, senão, como o diz o livro dos Macabeus (2Mac 4, 9,12),
«gymnasia epheberum et gracae gloriae», onde se leva uma existência independente, onde não se
ensina a Sagrada Escritura nem a fé cristã e onde o mestre cego e pagão Aristóteles <der blind
heydnischer meyster Aristoteles> reina sozinho com vantagem até sobre Cristo?
Eu aconselharia então que os livros de Aristóteles, a Física, a
Metafísica, o Tratado da Alma e a Ética, que até ao presente foram tidos pelos melhores, sejam pura e
simplesmente suprimidos, assim como todos aqueles que tratam de coisas naturais, uma vez que
deles não se pode tirar nenhum ensino nem sobre as coisas naturais nem sobre as espirituais; e, além
disso, ninguém até ao presente pôde entender o que ele queria dizer. […] Eu posso bem dizer que um
oleiro tem mais ciência das coisas naturais do que a que contêm esses livros. Dói-me o coração quando
penso que, na sua malícia e seu orgulho, este maldito pagão <der vordampter, hochmutiger,
schalckhafftiger heide> conseguiu seduzir e enlouquecer com as suas palavras enganadoras tantos
excelentes cristãos: assim Deus se serviu dele para nos castigar pelos nossos pecados <got hat uns also
mit yhm plagt umb unser sund willen>. Este infeliz homem <der elend mensch> ensina no seu melhor

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livro, Acerca da Alma, que a alma é mortal tanto como o corpo; todavia, mediante uma avalanche de
palavras inúteis, tentaram salvá-lo, como se nós não tivéssemos superabundantemente na Sagrada
Escritura ensinamentos sobre todas as coisas de que Aristóteles não teve o menor pressentimento. E,
apesar de tudo, foi o pagão morto <der todte heyde> que triunfou, ele prejudicou os livros de Deus
vivo, quase os abafou, ainda que, quando reflito sobre esta miséria, sou obrigado a pensar que foi o
Maligno que introduziu este estudo, e isto vale também para o livro da Ética, pior do que qualquer
outro, pois que é diretamente oposto à graça divina e às virtudes cristãs, e não obstante passa por ser
ainda um dos seus melhores. Ah! Afastem-se todos esses livros dos cristãos! Ninguém me poderá
censurar de falar de mais, nem de reprovar o que eu não conheço. Caro amigo, eu sei bem o que digo.
Aristóteles é-me tão familiar como a ti ou aos teus semelhantes, eu li-o e segui-o com mais
inteligência que são Tomás ou Escoto, posso gloriar-me sem fanfarronice e se necessário posso prová-
lo.[…] Aceito de bom
grado que se conservem os livros de Aristóteles sobre a Lógica, a Retórica e a Poética: expostos sob
forma nova e breve poderão ajudar os jovens a exercitar-se na arte da palavra e da pregação; mas é
necessário suprimir os comentários e escólios. Da mesma forma que se lê a Retórica de Cícero sem
comentários e sem escólios, é preciso ler a Lógica de Aristóteles toda nua, desembaraçada de todos
esses grandes comentários. Atualmente não se tira dela nenhum ensino para o orador ou pregador, e
não é senão ocasião para chicanas e discussões. […] A meu juízo, não há obra mais digna do que a
reforma das Universidades, mas, por outro lado, nada há de mais diabólico que as universidades não
reformadas.»
Lutero, An den christlichen Adel deutscher Nation /À nobreza cristã da nação alemã (1520) ed, bilingue (alemã com
trad. francesa, introdução e notas de M. Gravier), em: Luther, Les grands écrits réformateurs, Paris: Aubier- Éditions
Montaigne, s.d., pp. 214-219 (bold de LRS)

7. Philipp Melanchthon: uma filosofia prática e útil, eloquente e elegante, de inspiração


retórica: docere, delectare, movere
«Aquele homem que, de uma forma correta e clara e com uma certa dignidade, ensina os homens a
respeito das coisas boas e necessárias, nós chamamos-lhe Orador. Aquilo que tu pretendes chamar
Filósofo, não consigo entender o que seja. Pois, chamamos filósofo aquele homem, que tendo
aprendido e assimilado as coisas boas e úteis ao género humano, transfere a doutrina das escolas e da
sombra para o uso e para a república, ensinando os homens seja a respeito da natureza das coisas, seja
a respeito das religiões, seja a respeito do governo das cidades. Nós não falamos de coisas arcanas, que
devem ser mantidas ocultas, mas daquelas coisas que importa dizer e manifestar, cuja parte é a mais
importante nas doutrinas. Pelo que mesmo os símbolos e os apólogos os interpretamos não com o
intuito de encobrir os seus ensinamentos, mas para que sejam como pinturas dos costumes, úteis para
excitar os ânimos para admirá-los.»
Ph.Melanchthon, «Epistola nova ac subdititia Hermolaii Barbari» <do próprio Melanchthon!>,
Elementorum rhetorices libri duo, Vvitebergae, 1582, pp.185..204.

8. Melanchthon: Proposta de uma filosofia instruída, metódica e moderada (como é a de


Aristóteles!) como fundamento para todas as ciências e até para a Teologia: Discurso sobre a
Filosofia <De philosophia oratio> (1536)
«Neste discurso, direi alguma coisa acerca da dignidade e utilidade daquelas artes que a filosofia
ensina e mostrarei o quanto a igreja tem necessidade da instrução nas artes liberais, e não apenas do
conhecimento da gramática, mas também daquelas muitas artes e da ciência da filosofia. De nenhum
modo se pode ver melhor quanta dignidade e força têm estas artes e quanta necessidade delas tem a
igreja, do que olharmos para quantas trevas destroem a religião pela ignorância, quão vastas e horríveis
são as separações das igrejas e quanta barbárie e confusão espalham por todo o género humano. Em
primeiro lugar e acima de tudo, a origem desse mal é a teologia ignorante. Com efeito, disso deriva uma

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doutrina confusa, na qual as matérias importantes não são explicadas claramente, misturando-se as
que deveriam ser separadas, e separando aquelas que a natureza exige que se juntem, com frequência,
juntando as que estão em contradição e separando as vizinhas, como sendo verdadeiras e próprias. Por
fim, toda a doutrina se torna monstruosa. Nada nela é coerente, não se podendo discernir os começos,
do desenvolvimento e da conclusão. Uma tal doutrina não pode deixar de gerar erros infinitos e infinita
dissipação, porque, no meio de tanta confusão, um entende uma coisa outro entende outra, e,
enquanto cada qual defende o seu próprio sonho, proliferam as lutas e as dissensões. Entretanto, as
consciências ficam entregues à indecisão. E porque nenhuma das Erínias atormenta mais
veementemente o ânimo do que esta dúvida a respeito da religião, então é toda a religião que é
rejeitada com um certo ódio e as mentes tornam-se profanas e epicuristas.
Por conseguinte, sendo tanto o mal provocado pela teologia
ignorante, facilmente se pode ajuizar quanto seja necessário na igreja o cultivo de muitas grandes
ciências. Pois para julgar e correta e perspicuamente explicar coisas intrincadas e obscuras não basta
conhecer os vulgares preceitos da gramática e da dialética, mas há necessidade de múltipla doutrina.
Muitas coisas devem ser tomadas da Física e muitas outras colhidas da Filosofia moral para a doutrina
cristã. Além disso há duas coisas que para se obterem requerem magna e vária doutrina e longa
exercitação em muitas artes, a saber o método e a forma do discurso. Com efeito, ninguém se poderá
tornar perito do método a não ser que seja bem e convenientemente instruído na filosofia, e por certo
neste género de filosofia que, sendo estranho à Sofística, investiga e torna patente a verdade com
ordem e por uma via correta. […] Mas não só por causa do método é a filosofia necessária; é-o também,
como anteriormente disse, porque o teólogo precisa de tirar muitas coisas das ciências físicas. Está
destituído de um importante instrumento aquele teólogo que ignora as eruditíssimas disputas acerca da
alma, dos sentidos, das causas das apetições e dos afetos, do conhecimento, da vontade. E fará figura
de arrogante aquele que fizer profissão de dialético ignorando as divisões das causas que só se ensinam
nas ciências físicas, e que não se podem entender a não ser por essas ciências. Existe como que um orbe
de todas as ciências, no qual estão todas de tal modo ligadas e copuladas que, para entender cada uma
delas, é necessário tomar muitas coisas das outras; pelo que é necessário à igreja o conhecimento de
todo aquele orbe das doutrinas. Não quero pensar que possa haver alguém tão estúpido que não veja
que aqueles que ´são instruídos em filosofia moral poderão tratar muitas partes da doutrina cristã de
forma mais feliz. […] E constitui uma espécie de barbárie, para não dizer outra coisa, o desprezar
aquelas belíssimas disciplinas, a respeito dos movimentos do firmamento, que nos são de utilidade, pois
nos permitem a discriminação dos tempos e a previsão de grandes acontecimentos futuros.
Não é que eu ignore que um género de
doutrina é a filosofia e outro a teologia. Nem que eu queira misturar aquela com esta, como faz o
cozinheiro misturando muitos molhos, mas quero ajudar o teólogo na economia do método. E muitas
coisas lhe é necessário tirar também da Filosofia. […] Não há necessidade de mencionar aqui aqueles
velhos que destruíram completamente a doutrina cristã com argúcias estultíssimas. Eu desejo uma
filosofia instruída <eruditam philosophiam>, não aquelas cavilações às quais não subjazem nenhumas
realidades. Pelo que eu disse que deve ser escolhido um certo género de filosofia que tenha o mínimo
de sofistica, e que possua um método correto: e tal é a doutrina de Aristóteles. Mas a esta é de
acrescentar aquela importantíssima parte da filosofia que trata dos movimentos celestes. Pois as
restantes seitas estão cheias de sofística e de absurdas e falsas opiniões, que também prejudicam os
costumes. Com efeito aquelas hipérboles dos Estoicos, segundo as quais a boa saúde, as riquezas e
coisas semelhantes não são boas, são completamente sofísticas. Também imaginária é a apatheia e
falsa e perniciosa é a opinião acerca do destino. Epicuro não filosofa, mas chocarreia, quando afirma que
tudo existe por acaso: suprime a causa primeira e discorda em tudo a respeito da verdadeira doutrina
dos físicos. Também se deve evitar a Academia, a qual não observa o método e permite-se a licença
imoderada para tudo subverter: os que nisso se aplicam necessitam de juntar sofisticamente muitas
coisas. Aquele que toma Aristóteles por orientador principal e escolhe uma doutrina simples e
minimamente sofística pode tomar também alguma coisa de outros autores. Da mesma forma que as
Musas em certame com as Sirenes, tendo vencido estas, das penas delas fizeram para si coroas, assim
também nas seitas filosóficas, mesmo se uma delas é preferida, todavia, se nas outras descobrirmos
algo de verdadeiro, podemos com ele ornar a nossa sentença.

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Mas acerca do género de filosofia e da distinção entre as seitas falaremos noutro lugar.
Também me parece conduzir aos bons costumes a escolha de uma seita que tenha a preocupação de
não provocar rixas, mas antes a de investigar a verdade, por conseguinte, que ame as opiniões
moderadas e não procure o aplauso dos ignorantes e as habilidades das disputas e das sentenças
absurdas. O costume destas coisas é péssimo e quem o transfere para as letras sagradas provoca aí
ingentes procelas. Mas esta filosofa simples, da qual falo, em primeiro lugar, tem a preocupação de
nada afirmar sem demonstração, e assim evita as opiniões absurdas, pois estas não têm demonstrações,
mas defendem-se apenas com artimanhas sofísticas. Finalmente, também por esta razão é necessária a
instrução à igreja, pois os ignorantes são os mais audazes e negligentes. Mas a doutrina impõe um freio
e habitua à diligência. E assim os estudos passam aos costumes, pois esta mesma diligência que se põe
na investigação, gera a modéstia. Em contrapartida, quantos sejam os perigos que resultam da audácia
conjugada com a negligência mostram-no os exemplos de todas as épocas em todos os estados e na
própria igreja, que temerariamente foi outrora muitas vezes dilacerada e neste tempo é cruelmente
dilacerada por ignorantes destruidores. Pelo que vos exorto, excelentes ouvintes, a que penseis em
adequar verdadeiramente os vossos estudos à república e à igreja; pois a pureza da doutrina conserva a
concórdia e a saúde, a concórdia dos homens e principalmente a da igreja. Por conseguinte, peço-vos
pela glória de Deus, que devemos antepor a todas as coisas, e depois pela saúde da igreja, que nos deve
ser cara, que decidais conservar estas ótimas disciplinas que constituem a filosofia e que nelas invistais o
vosso maior empenho, para que alcanceis para vós a sólida doutrina que seja também útil para o
género humano. ~

De philosophia oratio <1536>, Melanchthons Werke, B. III, Humanistische Schriften, 1969, pp.89…94.

9. Melanchton e o elogio de Aristóteles e da sua filosofia – Oratio de Aristotele


(Discurso acerca de Aristóteles) <1544>
«Direi algo acerca da vida de Aristóteles e depois algo acerca do género da sua filosofia. […]
Ainda que naquela Academia <de Platão>, Aristóteles revolvesse todos os escritos eruditos e
trabalhasse em todas as disciplinas que nos patenteia a natureza, todavia, enquanto Platão foi vivo, não
as ensinou publicamente, seja por reverência para com Platão, ou porque verdadeiramente sentia que a
sua idade ainda não lhe conferia a autoridade suficiente para ensinar. Ainda que muitos falem da sua
convivência com Platão e embora eu não isente os homens de todos os vícios, todavia, considero que a
dissensão a respeito da forma das respetivas doutrinas foi sem ódio e ofensa dos ânimos: como
acontece frequentemente entre homens amicíssimos dissentirem sem qualquer aspereza, quando
senado pronunciam uma sentença. Nem Aristóteles era tão obtuso que não entendesse as virtudes de
Platão, nem tão duro que as não venerasse. Não existiu eloquência maior, de que haja registo nas letras,
do que foi a de Platão. Contém coisas pensadas muito sapientemente e por isso o esplendor na
exposição é tanto que alguns antigos não ineptamente disseram que Júpiter, se falasse connosco, usaria
a linguagem de Platão. Tendo em conta a natureza de Aristóteles, sem dúvida, ele admirava e amava
Platão, como a realidade o mostra. Pois mesmo que refute algumas doutrinas platónicas, recolhe dele
muitas sentenças e muitos ornamentos. […] Mas quando Platão morreu, como Aristóteles já estava
quase nos quarenta anos, começou a dar lições. Pouco depois, porém, Filipe da Macedónia convidou-o
para ser mestre do seu filho. Isso se deveu, segundo penso, à abundância e variedade da sua doutrina,
mas também à qualidade dos seus costumes. Pois se o rei não aprovasse os costumes de Aristóteles não
lhe confiava o seu filho, que pretendia fosse educado para a justiça e a moderação, o que, como ele
ensinava, se alcançava pela doutrina mais gentil e mais doce. […]
Tendo permanecido oito anos junto de Alexandre, Aristóteles regressou a
Atenas e começou logo a ensinar publicamente. Distribuiu as obras de tal maneira que de manhã
ensinava filosofia e dedicava os tempos vespertinos a fazer exercícios de eloquência. Maximamente,
porém, deve ser louvado porque ensinou as partes da filosofia com justa ordem e, tanto quanto
possível, esforçou-se por abrangê-las integralmente. Por esta diligência superou Platão, o qual embora
tenha tocado todas as partes da filosofia, porém, nem as ensinou com ordem nem completamente, mas
quase sempre em diálogos e dispersamente, brincando com ironias, e nem sempre revelando

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abertamente o que ele maximamente aprova. […]
Falei até agora da vida <de Aristóteles>. De seguida
acrescentarei algo acerca do género da sua filosofia, pelo que considero ser o seu uso maximamente útil
na igreja. Julgo que todos sabem ser maximamente necessário na igreja o uso da Dialética, a qual nos
informa corretamente a respeito dos métodos, que define de forma adequada, divide de forma justa,
conecta de forma apta, julga e dirime as conexões monstruosas. […] Passo à Física. Esta disciplina,
embora iniciada no Timeu de Platão, está aí tão envolta em números e enigmas, que mais parece
vaticinar do que ensinar. Aristóteles leva-nos habilmente a olhar para a natureza com certa ordem,
tomando os primeiros exórdios das demonstrações geométricas que mostram que o mundo é finito.
Constituída esta hipótese, divide toda a enorme quantidade das coisas. Acrescenta a descrição dos
animais e do homem e, para atribuir ao homem as ações que lhe são próprias, acrescenta a Ética, na
qual investiga as causas da virtude e a sua ordem na natureza. […] Ainda que alguns desejem uma certa
perspicuidade em Aristóteles, contudo, porque ele disputa com ordem, e na maior parte das vezes
declara o que pensa, e usa uma linguagem pura e apropriada, mesmo as coisas supremas podem ser
entendidas com certeza por aqueles que não são rudes. […] Que se pode dizer de mais doce do que
ensinar que as virtudes são mediocridades <a justa medida, igualmente afastada dos extremos>? E o
que ele inculca para aconselhar a moderar e refrear os ímpetos ardentes dos ânimos? Quão eruditas são
as suas distinções da justiça e das igualdades geométricas e aritméticas, do dolo, da culpa, do sumo
direito e da epiqueia! Como as definições das virtudes nos advertem a respeito de Deus, quão grato é
entender que a justiça em Deus é igualdade: e da mesma forma <que ele, como o diz Paulo, quer que
todos os homens sejam salvos, e igualmente que odeia os crimes, e igualmente aceita os que correm
para o Mediador constituído? Quão úteis são as distribuições das capacidades da alma, quão eruditas as
descrições dos temperamentos e dos humores? [... ] Mas dirá alguém:
que necessidade tem a igreja de Física e Ética? … Como convém que a igreja de Deus seja de bons
costumes e belamente instruída nas letras e nas artes, mediante as quais ela mesma possa entender
verdadeiramente quais são os dons de Deus, pelas enormes utilidades concedidas ao género humano, é
uma espécie de estupidez perguntar qual a necessidade que temos da doutrina a respeito da natureza
das coisas, dos números, da mediadas, dos movimentos celestes, das distâncias das regiões e espaços
nesta nossa área, ou seja, em toda a terra, que Deus doou ao género humano para cultivar, das partes
do homem e respetivas funções, das causas das doenças e dos remédios, das virtudes das plantas, das
fontes das leis e dos deveres civis, da história de todos os tempos?[...]

Dos livros de Ética sabeis que a parte verdadeira da ética é a lei divina. Ainda que os Filósofos
procurem na natureza as causas das leis, que outra coisa fazem eles a não ser mostrar os vestígios de
Deus na natureza, o que conduz excelentemente à disciplina e à confirmação das opiniões honestas nos
ânimos? Cícero diz que a primeira sociedade foi a do homem com Deus. Que coisa mais erudita se pode
dizer, que há que seja mais esplêndido a respeito da dignidade do homem, que há que seja mais
acomodado para deplorar a miséria humana? Mas porque diz ele que a primeira sociedade foi a do
homem com Deus? Sapientemente, Cícero viu primeiramente que deveria ser acrescentado o efeito à
causa, de preferência a conferir entre si efeitos similares: mais próprio é o filho ao pai, do que ao irmão.
Mas em que consiste a sociedade constituída entre Deus e o homem? Em duas coisas, no
reconhecimento do autor ou causa, e no reconhecimento da semelhança. A mente humana reconhece
que a natureza das coisas não surgiu às cegas ou por obra do acaso, nem desse modo perecerá, mas foi
criada e ordenada por uma mente arquitetónica <a mente architectatrice>, e ela afirma que estamos
submetidos ao criador e lhe devemos obediência. E reconhece claramente que esta mesma lei foi
impressa nas próprias mentes. Pelo que muito mais se move pelo reconhecimento da semelhança.
Quanta honra é que a mente humana seja como que um quadro pintado à semelhança da divina? E
assim aparecem os deveres da sociedade. Deus sustenta e guarda o género humano, mantém as
políticas que cultivam a justiça, e pune os crimes atrozes, os perjúrios, a tirania, os latrocínios, as paixões
incestuosas. Como se vê esta sociedade compreende-se. Porém, ainda que se veja claramente a
sociedade e as causas e os benefícios da sociedade estejam à vista, nós miseráveis muitas vezes
esquecendo esta pacto <e violamos os direitos da sociedade. […]
A filosofia como que atónita admira-se de

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onde provém tanta imbecilidade na natureza humana, a ponto de que tão facilmente violemos esta
sociedade com Deus. As fontes deste mal mostra-os a doutrina da igreja, e mostra também o Filho de
Deus, que vem em nosso auxílio e renova a nossa sociedade com Deus, e que, pedindo-lhe nós, nos rege
e dobra para que observemos os direitos de sociedade. [ …]
Deus quer que se olhe para a natureza na qual imprimiu
alguns vestígios para que ele seja reconhecido. Ele deu as artes, não apenas para que sejam sustento da
vida, mas muito mais para que nos advirtam da ordem do seu autor, que se mostra nos números, no
movimento celeste, nas figuras e no eterno e imutável reduto que está fundado na mente humana, o
qual se vê evidentemente na discriminação das coisas honestas e torpes: é verdadeiro aquele dulcíssimo
dito de Platão: a grata fama de Deus está espalhada pela artes.
Amemos, pois, a filosofia e saibamos que ela é um grande ornamento e também para
o uso da igreja, se for tratada adequadamente. […]
Philipp Melanchthon, Oratio de Aristotele <1544>, Melanchthons Werke, Band. III, pp.121…134. As mesmas ideias –
ditas até com mais ênfase - são expostas na Oratio de vita Aristotelis <1537>, in Melanchthons Werke, B. III, pp.96-104.
Segue um excerto:

«Aristóteles reuniu integralmente as artes da dialética, da física e da ética e acrescentou duas


coisas que aportam luz ao ensino, a saber, o método e a propriedade da linguagem. É, pois, útil
acostumar os adolescentes ao modo de proceder aristotélico […] No que respeita ao quanto, nas coisas
mesmas, Aristóteles vença as outras seitas, pode-se entender do facto de que nenhuma outra dialética
foi considerada digna de chegar aos posteriores, a não ser a aristotélica, e que a sua física tira os seus
inícios da geometria. Quão belo é o modo como expõe a natureza da virtude, como sendo a
mediocridade <evitar os extremos: justa medida> dos afetos! Dessa maneira, ele quer significar de
forma séria que os ânimos devem ser acostumados em toda a vida à evitar os extremos. […] Grande é a
elegância e perspicuidade do seu discurso em muitos livros. […] Mas é tanta a suavidade das coisas e do
discurso nos restantes livros e outros escritos aristotélicos, como no livro dos animais, nos políticos, nos
éticos, nas cartas e em muitos outros lugares, que os seus livros valem por bibliotecas. Pois muitas
coisas dos antigos documentos que desapareceram ele cita-os e foi por isso, me parece, que Cícero lhe
chama um rio de ouro. […] Eu acho que devia ter dito estas coisas não só para
que ameis mais a Aristóteles, mas também para que penseis quanto ele deve ser amado e tido nas
mãos. Estou convencido de que se seguirá uma completa e grande confusão de doutrinas se Aristóteles
for negligenciado, pois ele é o único mestre do método. E de nenhum outro modo alguém se pode
exercitar no método a não ser que pratique a moderação e o evitar os extremos deste género de
filosofia aristotélica. Pelo que vos exorto não só por vossa causa, mas por causa de toda a posteridade
universal que cultiveis e conserveis este excelente género de doutrina. Platão diz que aquela ponta de
fogo que Prometeu trouxe do céu é o método: mas que, se for extinta esta ponta de fogo,
imediatamente os homens se transformarão em animais. Pelo que, eliminado o verdadeiro método de
ensinar, nenhuma diferença resta entre os homens e os animais. Para que se mantenha, pois, este fogo,
deve conservar-se com suma diligência este género de doutrina que Aristóteles nos deixou. »
Ph. Melanchthon, Oratio De vita Aristotelis <1537>, Melanchthons Werke, B. III, pp.102-104.

10. Melanchthon: “Christina cognitio” vs. “theologia scholastica”

«Não há necessidade de nos aplicarmos naqueles tópicos [locis] supremos acerca de Deus, da
unidade e da trindade de Deus, do mistério da criação, do modo da incarnação. Pergunto: o que
alcançaram sobre isso, em tantos séculos, os teologistas escolásticos que trataram desses assuntos? As
suas discussões não se revelaram vãs quando passaram toda a vida a dizer frivolidades a respeito dos
universais, das formalidades e de outros vários vocábulos com esses conotados? A sua estultícia poderia
dissimular-se se não fosse o caso de o Evangelho e os benefícios de Cristo se nos obscurecerem com tais
disputas estultas. Por isso, se me é lícito ser engenhoso em matéria livre, fácil me parece evitar quantos
argumentos eles produziram como dogmas da fé e neles muitas coisas que mais parecem dever ser
tomadas por heresias do que por dogmas católicos. […] Importa que conheçamos os assuntos de um

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modo diferente do que o fazem os escolásticos. Pois este conhecimento cristão [christiana cognitio]
consiste em saber o que exige a lei, em que consiste a força da lei, onde se requer a graça do pecado
[unde peccati gratiam petas], como levantar o ânimo desfalecido contra o demónio, a carne e o mundo,
como consolar a consciência aflita. Será que os escolásticos ensinam isto? Paulo, na carta que escreveu
aos Romanos, ao enumerar o compêndio da doutrina cristã [doctrinae christianae compendium], por
acaso filosofou acerca do mistério da trindade, do modo da incarnação, da criação ativa e passiva? De
que trata ele? Certamente, da lei, do pecado, da graça e apenas daqueles assuntos dos quais depende o
conhecimento de Cristo [Christi cognitio]. […] Assim nós delinearemos uma outra maneira de expor
[aliquam delineabimus rationem] aqueles tópicos que recomendam Cristo, que confirmam a
consciência, que levantam o ânimo contra Satanás. Quanto aos muitos outros tópicos acerca das
virtudes e dos vícios basta procurá-los nas Escrituras, mas a sua observação é mais filosófica do que
cristã.»
Philipp Melanchthon, Loci Communes rerum theologicarum seu Hypotyposes Theologicae <1521>,
in: Melanchthons Werke, ed. H. Engelland/ R. Stupperich, Gütersloh: Verlagshaus Gerd Mohn,
1978, Band V, pp.20-21.

11. Melanchthon: contra o intelectualismo e o voluntarismo, uma antropologia dos


afetos
«Escreveram acerca do livre arbítrio Agostinho e Bernardo, e aquele de muitas maneiras se retratou
nos seus posteriores livros que escreveu contra os pelagianos. Bernardo não é como ele. Acerca deste
assunto também há alguma coisa entre os Gregos, mas esparsamente. Eu, porém, não seguirei as
opiniões dos homens e exporei a coisa de forma simplíssima e claríssima, que foi obscurecida tanto
pelos autores antigos como pelos mais recentes, os quais interpretaram as Escrituras de tal maneira
que ao mesmo tempo queriam satisfazer o juízo da razão humana. Parecia pouco civil ensinar que o
homem peca necessariamente; parecia cruel repreender a vontade, se ela não pudesse converter-se
do vício para a virtude. E, da mesma forma, a respeito de atribuir muitas coisas às forças humanas,
onde viam em toda a parte as Escrituras serem contrariadas pelo juízo da razão. E precisamente neste
assunto, em que a doutrina cristã absolutamente discorda da filosofia e da razão humana,
insensivelmente se imiscuiu a filosofia no Cristianismo e foi acolhido o dogma ímpio do livre arbítrio e
assim foi obscurecida a beneficência de Cristo por aquela sabedoria profana e animal da nossa razão.
Foi tomada a palavra do livro arbítrio a partir das letras divinas, completamente estranha ao sentido e
juízo do espírito […] Acrescentou-se o vocábulo razão tomado da filosofia de Platão, igualmente
pernicioso. Pois praticamente, nos tempos da Igreja, abraçámos Aristóteles em vez de Cristo, e assim,
imediatamente depois dos começos, a doutrina cristã foi arruinada pela filosofia Platónica. E assim
aconteceu que, para além das Escrituras canónicas, não existam na igreja letras verdadeiras [sincerae
literae]. Cheira a filosofia, tudo quanto nos foi transmitido em comentários. - E primeiramente para
descrever a natureza do homem não temos necessidade das múltiplas partições dos filósofos, mas
dividimos o homem apenas em duas: há nele uma força de conhecimento e também uma força
mediante a qual ele ora segue ora foge do que conhece. A força de conhecimento é aquela mediante a
qual sentimos ou entendemos, raciocinamos e comparamos umas coisas com outras, ou coligimos uma
coisa da outra. A força da qual nascem os afetos é aquela mediante a qual ora seguimos ora recusamos
o que conhecemos. Esta força uns chamam-lhe vontade, outros chamam-lhe afeto, outros chamam-lhe
apetite. […] Nós não usaremos os termos nem de razão nem de livre arbítrio, mas chamaremos as
partes em que se divide o homem força de conhecer e força de submetida aos afetos [vim cognoscendi
et vim obnoxiam affectibus], isto é, ao amor, ao ódio, à esperança, ao medo, e outros
semelhantes.[…] Se considerardes a força da vontade humana em sentido natural não se pode negar,
de acordo com a razão humana, que nela exista uma certa liberdade das obras externas, como podes
experimentar estar em teu poder o saudar ou não saudar um homem, o vestir esta roupa ou não
vestir, o comer carnes ou não comer. E foi nesta contingência das obras externas que fixaram os seus
olhos os filosofastros, que atribuíram liberdade à vontade. Porém, como Deus não olha às obras
externas, mas ao movimento interno do coração, por isso a Escritura nada diz a respeito desta
liberdade. Os que imaginam os costumes externos e pessoais de uma certa civilidade ensinam que há

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liberdade, tanto os filósofos comos os mais recentes teologistas. Contrariamente, eu digo que os
afetos internos não estão no nosso poder. A experiência e o uso mostram que a vontade não pode por
sua espontaneidade colocar o amor, o ódio e afetos semelhantes, mas o afeto é vencido pelo afeto,
de tal modo, tendo sido lesado por aquele a quem amavas, deixas de o amar. […] Que é, pois, a
vontade, senão a fonte dos afetos? E porque não usamos o nome coração em vez do vocábulo
vontade? Sendo que a Escritura chama coração à parte mais importante do homem e àquela onde
nascem os afetos. Enganam-se, pois, as escolas quando imaginam que a vontade pela sua natureza
pode contrariar os afetos ou pode pôr o afeto, sempre que isto lhe é recomendado ou aconselhado
pelo entendimento. […] As escolas não negam os afetos, mas chamam-lhes doenças da natureza,
bastando-lhes que a vontade tenha capacidade de escolher os atos diferentes. Mas eu nego que haja
alguma força no homem que seriamente possa ser contrariada pelos afetos, e penso que aqueles atos
escolhidos da vontade não passam de um pensamento fictício do entendimento. Pois se Deus julga os
corações é necessário que o coração com os seus afetos seja a parte suprema e principalíssima do
homem. De outro modo, como estimaria Deus o homem pela sua parte mais imbecil e não pela
melhor, se é que a vontade é uma outra força melhor e mais forte do que o coração? Que
responderão a isto os sofistas? Pelo que se preferirmos usar o termo coração usado pela Escritura em
vez do vocábulo vontade usado por Aristóteles, facilmente evitaríamos estes tão grandes e crassos
erros. […] Aristóteles chamava vontade àquela escolha a respeito das coisas nas obras externas, que é
praticamente mentirosa. Mas o que interessam as obras externas à disciplina cristã, se o coração for
insincero? Além disso, também o próprio Aristóteles não admite aqueles atos escolhidos que Escoto
inventou. Mas agora não me ocuparei de os refutar, e sim de ensinar-te, leitor cristão, o que tu deves
seguir. Confesso que na escolha externa das coisas existe uma certa liberdade, mas nos afetos
internos de preferência nego que eles estejam em nosso poder. Nem admito que exista alguma outra
vontade que possa contrariar seriamente os afetos. Isto é o que tenho a dizer acerca da natureza do
homem.» Philipp Melanchthon, ibidem, pp.21-22 e 27-29.

12. Melanchthon e a recuperação da Ética de Aristóteles


«Quais são as utilidades desta doutrina? - São muitas. A primeira é que ela conduz à disciplina e
à pedagogia, que Deus exige, como acima se disse, da mesma foram que as leis dos magistrados
conduzem. E por este nome a filosofia é mais eficaz, porque não coage através de um dito breve, como
as leis, mas ela convida os ânimos e torna-os mais brandos, como se costuma dizer, por um longo
tratamento e meditação, pela investigação das causas, pela consideração da ordem da natureza e pela
contemplação da beleza da virtude; como se costuma dizer: os estudos terminam em costumes. E
também por isso estas virtudes se chamam propriamente éthicai. Pois éthos significa não os ímpetos
bruscos ou desordenados, mas uma certa lenidade e suavidade do ânimo que placidamente modera as
ações. Suavidade que Menandro descreve, dizendo: quão doce é a bondade temperada pela prudência.
Tal como nos leões e nos cavalos, assim nos bárbaros e não cultivados existe frequentemente uma
índole excelente, mas falta aquela suavidade que a doutrina acrescenta, que torna os ânimos mais doces
e mais meigos e os dobra pela arte ao decoro segundo a variedade das circunstâncias e procura dar às
ações uma certa graça. Esta moderação é propriamente éthiké, a qual sem dúvida ninguém consegue a
não ser mediante a doutrina e instrução liberal. - A segunda utilidade é que não há dúvida de que a ética
é útil aos jurisconsultos, pois ela contém as fontes do direito, a partir das quais como que se edifica toda
a ciência do direito. […] Aqueles que defendem causas devem ser instruídos numa grande abundância
de sentenças morais, pelo que lhes é necessária esta filosofia, pois os ignorantes deste método geram
muitas sentenças absurdas e, aprendidas de outros, acomodam-nas mal.
Maximamente, porém, a mais importante utilidade é conferida por esta filosofia aos
Teólogos, se for tratada de forma erudita e prudente. Pois, ainda que o Evangelho tenha os seus
próprios tópicos distintos da lei e da filosofia, como acima se disse, contudo frequentemente se deve
falar ao teólogo da dignidade das coisas civis, das leis políticas, dos magistrados e governos, dos
costumes necessários neste uso civil. […] Mas o teólogo terá de cuidar de não misturar de forma
imprópria aquela parte que é própria do Evangelho com estas disputas civis, mas deve manter a
distinção de cada parte, o que mais facilmente fará se conhecer bem cada um dos géneros. Além

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disso, se agrada e é digna das boas mentes o conhecimento da natureza, das pedras preciosas, das
ervas, dos animais, dos movimentos celestes, quanto mais se deve esperar que o seja o conhecimento
dos nossos ânimos e daquelas coisas que são as mais excelentes e mais belas da natureza, a saber, como
a própria natureza nos chama para a virtude e como estão impressas as causas e as informações da
virtude nas mentes humanas, as quais geraram todas as leis das cidades e governam todos os ofícios
honestos. »

Ph. Melanhthon, Philosophiae moralis epitomes libri duo <1546>, in: Melanchthons Werke, B. III:, pp.160-
162.

Prof. Dr. Leonel Ribeiro dos Santos / Lisboa, 19 de outubro de 2020.

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