Você está na página 1de 15

Quem merece o quê/

Aristóteles
1

'. 1
1

. Callie Smartt, aluna do primeiro ano do ensino médio, era popular na


. escola e participava da torcida organizada da Andrews High School,
no oeste do Texas. O fato de ter paralisia cerebral e usar uma cadeira
de rodas não diminuía o entusiasmo que inspirava nos jogadores e fãs
de futebol americano, com sua presença sempre animada à beira do
campo nos jogos do time de juniores da escola. No final da temporada,
no entanto, Callie foi expulsa da torcida organizada. 1
Pressionada por outras meninas da torcida e pelos pais dessas jovens,
a diretoria da escola disse a Callie que se ela quisesse participar no ano
seguinte teria de treinar como todas as demais e se submeter à rigorosa
rotina de exercícios físicos, incluindo splits e acrobacias. O pai da líder
da torcida comandou o movimento contra a permanência de Callie,
alegando preocupação com a segurança dela. Mas a mãe de Callie achou
que tudo era fruto da inveja dos aplausos que Calhe sempre recebia.
A história de Callie levanta duas questões. Primeiramente, uma questão
, de equidade. Ela deveria ter de fazer ginástica para participar da torcida
organizada ou esse requisito seria injusto considerando sua deficiência?
Uma forma de se responder a essa pergunta seria invocar o princípio da
não discriminação: desde que desempenhasse bem seu papel, Callie não
deveria ser excluída da torcida apenas por não ter, embora não fosse culpa
sua, capacidade física para desenvolver os movimentos acrobáticos.
O princípio da não discriminação, no entanto, não ajuda muito,
Porque foge da questão no âmago da controvérsia: O que é necessário
Para um bom desempenho em uma torcida organizada? Aqueles que
são contra a permanência de Callie alegam que para ser uma boa líder
de torcida a pessoa deve saber fazer acrobacias e splits. Afinal, é dessa

231
forma que as meninas costumam levantar a torcida. Os defensores d saber que qualidades lhe são essenciais. Entretanto, determinar a essência
Callie diriam que isso confunde o propósito da torcida organizada co da torcida organizada pode ser controverso, porque nos enreda em discus-
uma das maneiras de desempenhar a função. O verdadeiro objetivo d sões sobre quais qualidades são merecedoras das honrarias. O que deve
torcida é promover o espírito escolar e animar os fãs. E, quando Calli ser considerado propósito da torcida organizada depende, em parte, das
grita de um lado para o outro nas laterais do campo em sua cadeira d qualidades que achamos que devem ser reconhecidas e recompensadas.
rodas, agitando seus pompons e distribuindo sorrisos, está desempe Como esse episódio mostra, as práticas sociais, no caso, não têm
nhando muito bem o papel que lhe cabe - o papel de levantar o público apenas um propósito instrumental (incentivar a equipe), mas também um
Então, para definir as qualificações necessárias, precisamos decidir o qu propósito honorífico ou exemplar (celebrar determinadas excelências e
é essencial para uma torcida organizada e o que é meramente incidental virtudes}. Ao escolher seu grupo de animadoras de torcida, a escola não
A segunda questão levantada pelo caso de Calhe é a indignação. Qu apenas promove o espírito escolar, mas também determina as qualidades ,i:1
tipo de sentimento pode ter motivado o pai da líder da torcida? Por qu
que espera que seus alunos admirem e tentem imitar. Isso explica por que
ele se incomodava tanto com a presença de Calhe na equipe? Não pod
a disputa foi tão intensa. E explica também, por outro lado, algo intri- ~
ser por temor de que Callie ocupe o lugar de sua filha, porque sua filha j
gante - como as meninas que já faziam parte da equipe (e seus pais}
i
faz parte do grupo. Tampouco pode ser simplesmente por temer que Cair 1
podiam achar que tinham um interesse pessoal no debate sobre o caso r
possa ofuscar sua filha nas acrobacias, o que não é o caso, evidentement i
!
de Callie. Esses pais queriam que a torcida organizada prestigiasse as
Meu palpite é o seguinte: talvez sua indignação seja o reflexo da im
virtudes tradicionais de uma líder de torcida, que suas filhas possuíam.
pressão de que Callie possa estar recebendo uma honra que não merece,
assim estar desmerecendo o orgulho que ele tem das conquistas da filha
Se ser parte de uma torcida organizada é algo que se pode fazer em u
JUSTIÇA, TtLOS E HONRA
cadeira de rodas, o mérito das pessoas que se destacam nas acrobaci :
e nos splits estaria sendo, de certa forma, depreciado.
Se Callie está apta a participar da torcida organizada porque tem, ape Vista dessa forma, a discussão sobre as líderes de torcida no oeste do
sarda deficiência, as qualidades adequadas ao desempenho da função, s Texas leva-nos diretamente à teoria de justiça de Aristóteles. As duas
permanência realmente significa uma certa ameaça ao mérito das dem ·. concepções centrais da filosofia política de Aristóteles estão presentes
participantes. Sua aptidão para as acrobacias já não parece tão essenci no caso de Calhe:
para a excelência da função, parece ser apenas uma das maneiras, ent
outras, de animar a multidão. Ainda que tenha sido egoísta, o pai d. 1. A justiça é teleológica. Para definir os direitos, é preciso saber
. líder da torcida abordou a questão com propriedade. Uma prática soei qual é o télos (palavra grega que significa propósito, finalidade
que antes tinha um propósito definido e que delegava honr,as definida ou objetivo) da prática social em questão.
a quem a desempenhava bem era agora, graças a Callie, redefinida. El 2. A justiça é honorífica. Compreender o télos de urna prática - ou
demonstrou que há mais de um requisito para ser urna líder de torcida, discutir sobre ele- significa, pelo menos em parte, compreender ,r,.

Notemos a ligação entre a primeira questão, a da equidade, e a segun . '


1

ou discutir as virtudes que ela deve honrar e recompensar.


a da glória e do ressentimento. Para determinar os critérios para a partici
pação na torcida organizada dentro de um princípio de justiça, precisamo A chave para compreender a ética e a política de Aristóteles é a defi-
determinar sua natureza e seu propósito. Do contrário, não conseguireJil nição da força dessas duas considerações e a relação existente entre elas.

232 233
escritor?" Perguntas como essas só devem ter sentido '!m jogos de salão.
Teorias modernas de justiça tentam separar as questões de equidade
O que Aristóteles quer dizer é que, ao distribuir flautas, não devemos
e direitos das discussões sobre honra, virtude e mérito moral. Elas bus--·
buscar os mais ricos, ou mais bonitos, nem mesmo a melhor pessoa de
cam princípios de justiça que sejam neutros, para que as pessoas possam
todas. Devemos procurar o melhor flautista.
escolher e buscar seus objetivos por conta própria. Aristóteles (384-322
Essa ideia é totalmente rotineira. Muitas orquestras testam os mú-
a.C.) não acha que a justiça possa ser neutra dessa maneira. Ele acredita
sicos que vão contratar fazendo com que toquem atrás de uma cortina
que as discussões sobre justiça sejam, inevitavelmente, debates sobre a .
honra, a virtude e a natureza de uma vida boa. para que a qualidade da música possa ser avaliada sem distorções Oll
Entender por que Aristóteles acredita que justiça e vida boa devem , perturbações. A razão de Aristóteles já não é tão familiar. O motivo
estar ligadas nos ajudará a entender o que está em jogo no esforço para · mais óbvio para que se deem as melhores flautas aos melhores flautistas
dissociá-las. é que isso produzirá a melhor música, proporcionando a nós, ouvintes,
Para Aristóteles, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem, · maior prazer. Mas essa não é a razão de Aristóteles. Ele acha que as
dando a cada um o que lhe é devido. Mas o que urna pessoa merece? melhores flautas devem ser dadas aos melhores flautistas porque é para
Quais são as justificativas relevantes para o mérito? Isso depende do, isso que elas existem - ser bem tocadas.
que está sendo distribuído. A justiça envolve dois fatores: "as coisas e as : O objetivo das flautas é produzir excelente música. Aqueles capazes de
pessoas a quem elas são destinadas". E geralmente dizemos que "pessoas . melhor cumprir esse propósito devem receber os melhores instrumentos.
iguais devem receber coisas também iguais".2 Mas também é verdade que dar os melhores instrumentos aos melho~
No entanto, surge aí uma questão difícil: Iguais em que sentido? · res músicos terá o efeito agradável de produzir a melhor música, o que
Isso depende do que está sendo distribuído - e das virtudes relevantes · todos apreciarão- produzindo a maior felicidade para o maior número
em cada caso. de pessoas. No entanto, é importante notar que a razão de Aristóteles
Imaginemos que estamos distribuindo flautas. Quem deve ficar com· ultrapassa essa consideração utilitarista.
as melhores? A resposta de Aristóteles: os melhores flautistas. Seu modo de raciocinar a partir do propósito de um bem para a devida
A justiça discrimina de acordo com o mérito, de acordo com a exce- alocação desse bem é um exemplo do raciocínio teleológico. (Teleológico
lência relevante. E, no caso das flautas, o mérito relevante é a aptidão vem da palavra grega te/os, que significa propósito, fim ou objetivo.) Aris-
para tocar bem. Seria injusto basear a discriminação em qualquer outro·'. tóteles argumenta que, para determinar a justa distribuição de um bem,
fator, como riqueza, berço, beleza física ou sorte (como na loteria). temos que procurar o télos, Oll propósito, do bem que está sendo distribuído.

Berço e beleza podem ser bens mais valiosos do que a habilidade de tocar .·
flauta e aqueles que os possuem podem, postos na balança, pesar mais do O PENSAMENTO TELEOLÓGICO: QUADRAS DE TÊNIS E O URSINHO POOH
que o flautista nessas qualidades do que o peso que teria a capacidade dele
de tocar; mas o fato é que ele é quem deve receber as melhores flaucas,J . O raciocínio teleológico pode parecer uma forma estranha de pensar
sobre justiça, mas é de certa forma plausível. Suponhamos que você
Há um aspecto interessante na comparação das excelências de natu- :. seja o responsável por destinar as melhores quadras de tênis em um
rezas muito diferentes. Pode até mesmo parecer um disparate perguntar:
campus universitário. Talvez você dê prioridade às pessoas que possam
"Eu sou mais bonito do que ela é uma boa jogadora de hóquei?" Ou: Pagar mais por elas. Ou pode priorizar as autoridades - o presidente
"Babe Ruth era um jogador de beisebol melhor do que Shakespeare era
235
234
QUEM MERECEU l/Ut//AKt:. 1 UI t:.~1::,

da universidade, digamos, ou cientistas vencedores do prêmio Nobei No início da história o ursinho Pooh está andando pela floresta e se de-
No entanto, suponhamos que dois renomados cientistas estejam jogand para com um grande carvalho. Do alto da árvore, "vem um zumbido alto".
uma partida de tênis com certa indiferença, mal lançando a bola sobr
a rede, e a equipe da universidade apareça e queira usar a quadra. Voe O ursinho Pooh senta-se ao pé da árvore, coloca a cabeça entre as patas
não diria que os cientistas deveriam ir para uma quadra inferior par e começa a pensar.
que os jogadores universitários pudessem usar a melhor quadra? E se·· Primeiro pensa: "Esse zumbido significa alguma coisa. Não existiria
argumento não seria que os melhores atletas podem fazer melhor uso um zumbido assim, tão insistente, sem um significado qualquer. Se há
melhores quadras, em vez de desperdiçá-las com jogadores medíocres? um zumbido, alguém está zumbindo, e a única razão pela qual alguém
Ou suponhamos que um violino Stradivarius esteja sendo leiloado zumbe, que eu saiba, é porque é uma abelha."
que um rico colecionador faça uma oferta mais alta do que a de ltzha Ele pensa por mais um bom tempo e diz: "A única razão para ser
Perlman. O colecionador pretende expor o violino em sua sala de visitas uma abelha, que eu saiba, é fazer mel."
Não consideraríamos isso um desperdício, ou mesmo uma injustiça - nã · E então ele se levanta e diz: "E a única razão para fazer mel é para
por considerarmos o leilão injusto, mas porque o resultado não é o mais que eu possa comê-lo." Então, começa a subir na árvore.4
adequado? Por trás dessa reação pode estar o raciocínio (teleológico) de
que um Stradivaríus merece ser tocado, não exposto para ser admirado:· O raciocínio infantil de Pooh sobre as abelhas é um bom exemplo do
No mundo antigo) o raciocínio teleológico era mais comum do que raciocínio teleológico. Quando nos tornamos adultos, a maioria de nós deixa
nos dias atuais. Platão e Aristóteles acreditavam que o fogo aumentava de lado essa maneira de ver o mundo natural, considerando-a encantadora
porque estava tentando alcançar o céu, seu lar natural, e que as pedras porém ultrapassada. E, ao rejeitarmos o raciocínio teleológico na ciência,
caíam porque queriam ficar mais perto da terra, onde era seu lugar;: também somos levados a rejeitá-lo na política e na moral. Mas não é fácil
Acreditava-se que a natureza mantinha uma ordem natural significativa. abandonar o raciocínio teleológico em relação às instituições sociais e às
Para compreender a natureza e o lugar que ocupamos nela, era preciso práticas políticas. Atualmente, nenhum cientista lê os trabalhos de Aristóteles
entender seu propósito e seu significado essencial. sobre biologia ou física e os leva a sério. Mas quem estuda ética e política
Com o advento da ciência moderna, a natureza deixou de ser vista continua a ler e a ponderar sobre a filosofia moral e política de Aristóteles.
como uma ordem significativa. Ao contrário, passou a ser compreendida
mecanicamente, pelas leis da física. Explicar os fenômenos naturais em· i:
termos de seus propósitos, seus significados e suas finalidades passou a QUAL É O TÉLOS DE UMA UNIVERSIDADE?
ser considerado algo ingênuo e antropomórfico. Apesar dessas mudanças,
ainda somos tentados a ver o mundo como algo dotado de uma ordem' A discussão sobre a ação afirmativa pode ser repensada a partir do
teleológica, como um todo com um determinado propósito. Essa noção exemplo das flautas de Aristóteles. Começamos por procurar os crité-
ainda subsiste, especialmente nas crianças, que devem ser ensinadas a· rios justos de distribuição: Quem tem o direito a ser admitido em uma
não ver o mundo dessa maneira. Percebi isso quando meus filhos ainda Universidade? Ao abordar essa questão, perguntamo-nos (pelo menos,
eram muito pequenos e li para eles o livro O ursinho Pooh, de A. A. implicitamente): "Qual é o propósito, ou o télos, de uma universidade?"
Milne. A história mostra uma visão infantil da natureza, encantada e Como acontece com frequência, o télos não é óbvio, mas contestável.
animada pelo significado e pelo propósito das coisas. Alguns dizem que as universidades existem para promover a excelência

236 237
acadêmica, e que a promessa acadêmica deveria ser o único critério de QUAL É O PROPÓSITO DA POlÍTICA?
admissão. Outros dizem que elas também existem para atender a deter.
minados propósitos cívicos e que a capacidade de ser um líder em uma Quando analisamos a justiça distributiva atualmente, preocupamo-nos
sociedade diversificada, por exemplo, deveria fazer parte dos critérios: principalmente com a distribuição de renda, riqueza e oportunidades.
de admissão. Definir o télos de urna universidade parece essencial para para Aristóteles, a justiça distributiva não se referia essencialmente a
que se determinem os critérios de admissão adequados. Isso traz à tona dinheiro, mas a cargos e honrarias. Quem deveria ter o direito de go-
o aspecto teleológico da justiça nas admissões às universidades. vernar? Como a autoridade política deveria ser distribuída?
Intimamente relacionada à discussão sobre o propósito de uma uni• À primeira vista, a resposta parece óbvia - equanimemente, claro.
versidade há uma questão de mérito moral: Que virtudes ou excelências
Um indivíduo, um voto. Qualquer outra alternativa seria discriminató-
as universidades efetivamente valorizam e recompensam? Aqueles que
ria. Mas Aristóteles adverte que todas as teorias de justiça distributiva
acham que as universidades existem para celebrar e recompensar apenas
discriminam. A questão é: Quais discriminações são justas? E a resposta
a excelência acadêmica provavelmente rejeitarão a ação afirmativa; por
outro lado, os que acreditam que as universidades também existem para depende do propósito da atividade em questão.
promover determinados ideais cívicos talvez abracem essa ideia. Assim, antes que possamos definir a distribuição dos direitos e da
O faro de os debates sobre universidades - e torcidas organizadas e. autoridade política, devemos questionar o propósito, ou télos, da política.
flautas - procederem naturalmente dessa forma confirma a concepção Precisamos perguntar: "Para que serve a associação política?"
de Aristóteles: as discussões sobre justiça e direitos com frequhcia são Pode parecer impossível responder a essa pergunta. Comunidades
discussões sobre o propósito, ou télos, de uma instituição social, o que, políticas distintas preocupam-se com questões também distintas. Uma
por sua vez, reflete noções conflitantes a respeito das virtudes que a coisa é discutir o propósito de uma flauta ou de uma universidade. Não
instituição deveria valorizar e recompensar. obstante haver margem para discussão, os propósitos são mais ou menos
O que podemos fazer quando as pessoas discordam do télos, ou circunscritos. O propósito de uma flauta tem a ver com a música que
propósito, da atividade em questão? É possível discutir o télos de uma ela produz; o propósito de uma universidade tem a ver com a educação.
instituição social, ou o propósito de uma universidade é simplesmente, Mas será que podemos realmente determinar o propósito ou o objetivo
digamos, aquilo que foí determinado pela autoridade competente ou
de uma atividade política seguindo o mesmo critério?
pelo conselho acadêmico?
Atualmente não pensamos na política como algo que tenha uma
Aristóteles acredita que o propósito das instituições sociais possa ser
finalidade particular e independente, mas como algo aberto às diversas
discutido. Sua natureza essencial não é estabelecida definitivamente,
tampouco é apenas urna questão de opinião. (Se o propósito da Uni· . finalidades que os cidadãos venham a adotar. Não é por esse motivo
versidade de Harvard fosse simplesmente determinado pela intenção de que realizamos eleições - para que as pessoas possam escolher, em
seus fundadores, sua função fundamental ainda seria o treinamento de um determinado momento, os propósitos e as finalidades que queiram
ministros congregacionalistas.) atingir coletivamente? Atribuir por antecipação qualquer propósito ou
Como podemos, então, discutir o propósito de uma prática social · finalidade à comunidade política seria privar o cidadão do direito de
diante de uma divergência? E como as noções de honra e virtude colocam· decidir por si mesmo. Haveria também o risco de impor valores que
se nessa questão? Aristóteles dá sua resposta mais categórica para essas nem todos compartilham. Nossa relutância em atribuir à política um
perguntas em sua análise da política. determinado télos ou finalidade mostra uma preocupação com a liber-

238 239
......... 4 • ..,.,.,
QUEM Ml:IU<.t U 1./Utf/Al\l::>IVltLt::,

dade individual. Vemos a política como um procedimento que perm·t suas capacidades e virtudes humanas peculiares - para deliberar sobre o
, lh i e
as pessoas esco er suas finalidades por conta própria. bem comum, desenvolver um julgamento prático, participar da autodeter-
Aristóteles
_ , .
pensa de maneira diferente. Para ele, o propósito da pol'ltl·_ JDinação do grupo, cuidar do destino da comunidade como um todo.
ca nao e cnar u~a es:_rutura de_ direitos neutra em relação às finalidades,; Aristóteles reconhece a utilidade de outras formas menos elevadas
t formar bons c1dadaos e cultivar o bom caráter. ·· de associação, como pactos de defesa e acordos de livre comércio. Mas
insiste em afirmar que associações desse tipo não levam às verdadeiras
Qualquer pó/is que mereça ser assim chamada deve dedicar-se ao
- · d pro 4
comunidades políticas. Por que não? Porque suas finalidades são limitadas.
pos1to e promover a bondade. Caso contrário, uma associação política
. Organizações como a Otan, o Nafta e a OMC* só se preocupam com
reduzir-se-á a uma mera aliança(...) Caso contrário, também, a lei será:
a segurança ou o intercâmbio econômico; não pressupõem um modo de
transformada em um mero pacto (...) "uma garantia dos direitos d~-·
homens contra seus semelhantes" - em vez de ser, como deveria, uma:' · vida em comum que molde o caráter dos participantes. E pode-se dizer
regra da vida para tornar seus membros bons e justos.5 •
·. o mesmo de uma cidade ou estado que só se preocupe com a segurança
., e com o comércio, mostrando-se indiferente à moral e à educação cívica
Aristóteles critica aqueles que considera os dois principais postulantes da . de seus membros. "Se as partes mantiverem, depois de se associar, o mes-
autoridade política - os oligarcas e os democratas. Cada um tem sua rei- mo espírito que demonstravam quando separadas", escreve Aristóteles,
vindicação, porém uma reivindicação apenas parcial. Os oligarcas alegam · essa associação não pode ser realmente considerada uma pólis, ou uma
que eles, os abastados, deveriam comandar. Os democratas argumentam· comunidade política.7
que o nascimento livre deve ser o único critério da cidadania e da autoridade "Uma pólis não é uma associação visando à permanência em um
política. Mas ambos os grupos exageram em suas reivindicações, porque local comum ou algo que tenha como objetivo evitar a injustiça mútua
em ambos os casos o propósito da comunidade política é mal interpretado. ou facilitar o intercâmbio." Ainda que tais condições sejam necessárias
para que exista uma pó/is, elas não são suficientes. "A finalidade e o
Os oligarcas estão errados porque a comunidade política não en-
volve apenas proteção da propriedade ou promoção da prosperidade propósito de uma pó/is é uma vida boa, e as instituições da vida social
econômica. Se fosse esse o caso, quem tivesse propriedades teria direito são meios de atingir essa finalidade." 8
à maior parte da autoridade política. Por sua vez, os democratas estão Se a comunidade política existe para promover uma vida boa, quais
errados porque a comunidade política não serve apenas para dar à são as implicações para a distribuição de cargos e honrarias? Tal corno
acontece com as flautas, acontece na política: Aristóteles parte do
maioria o direito de decidir. Por democratas, Aristóteles compreende o
que denominamos majoritários. Ele repudia a noção de que o propósito . princípio do bem para determinar a maneira adequada de distribuí-lo.
"Aqueles que mais contribuem para uma associação desse gênero" são
da política seja satisfazer as preferências da maioria.
Ambos negligenciam a maior finalidade da associação política, que, para · os que se destacam na virtude cívica, os que melhor deliberam sobre o
.bem comum. Aqueles que demonstram a maior excelência cívica - não
Aristóteles, é cultivar a virtude dos cidadãos. O objetivo do Estado não é
"proporcionar uma aliança para a defesa mútua(...) ou facilitar o intercâmbio· , os mais aba:;tados, ou os mais numerosos, ou os mais bonitos - são os
econômico e promover as relações econômicas".6 Para Aristóteles, política· · que merecem a maior parte do reconhecimento e da influência política.9
tem um significado mais elevado. É aprender a viver uma vida boa. O pro·
pósito da política é nada menos do que permitir que as pessoas desenvolvarn •organizaçào do Tratado do Atlàntico Norte, Acordo Norte-Americano de Livre Comércio
e Organização Mundial du Comüciu, rcsptctivamente. (N. dei E.)

240
241
Já que a finalidade da política é a vida boa, os cargos e as honraria A resposta está em nossa natureza. Só realizaremos plenamente nossa
mais importantes deveriam ser dados a pessoas que, como Péricles, · natureza como seres humanos se vivermos em uma pó/is e participar-
destacam na virtude cívica e na capacidade de identificar o bem comlltn. . JDOSda política. Aristóteles nos considera seres "criados para participar
Aqueles que têm bens devem ter voz ativa. As considerações da maior·: da associação política, em grau mais alto do que as abelhas ou outros
devem ser levadas em conta. Mas a a maior influência deve ser daquel animais gregários". A razão que ele dá é a seguinte: a natureza não faz
com as qualidades de caráter e julgamento para decidir se, quando · · nada em vão, e os seres humanos, diferentemente dos outros animais,
como se deve ir para a guerra contra Esparta. possuem a faculdade da linguagem. Outros animais podem produzir
O motivo pelo qual pessoas como Péricles (e Abraham Lincoln) d sons, e sons podem indicar prazer ou dor. Mas a linguagem, capacidade
vem ocupar os mais altos cargos e receber as maiores honrarias não é essencialmente humana, não registra apenas prazer e dor. Ela também
simplesmente porque implantarão políticas sábias, tornando melhor a expressa o que é justo ou injusto, distingue o certo do errado. Não cap-
vida de todos. Trata•se também do fato de que a comunidade política tamos tais coisas silenciosamente para depois lhes atribuir palavras; a
existe, pelo menos em parte, para honrar e recompensar a virtude cívica: linguagem é o meio pelo qual discernimos e deliberamos sobre o bem.w
Reconhecer publicamente o mérito daqueles que demonstram exc.elência Apenas por meio da associação política, diz Aristóteles, podemos
cívica serve ao papel educativo de uma boa cidade. Mais uma vez vemos exercitar a faculdade humana essencial da linguagem, porque somente
como os aspectos teleológico e honorífico da justiça caminham juntos. em uma pó/is deliberamos com os demais sobre justiça e injustiça e sobre
a natureza da vida boa. "Vemos assim que a pólis existe por natureza e
antecede o indivíduo", escreve ele no Livro 1 de A política. 11 "Antecede",
VOCÊ PODE SER UMA BOA PESSOA SEM PARTICIPAR DA POLITICA? nesse caso, refere·se à função ou ao objetivo, e não a algo cronologica·
mente anterior. Os indivíduos, as famílias e os clãs já existiam antes das
Se Aristóteles estiver certo ao considerar que o objetivo da política é a vida· cidades; mas somente na pólis podemos realizar nossa natureza. Não
boa, será fácil concluir que aqueles que demonstram maior virtude cívica somos autossuficientes quando estamos isolados, porque não podemos
serão merecedores dos mais altos cargos e honrarias. Mas ele está certo- desenvolver nossa capacidade de linguagem e de deliberação moral.
1
. 1
em dizer que a política existe para promover a vida boa? Na melhor das
hipóteses, essa é uma alegação controversa. Nos dias atuais, geralmente O homem isolado - incapaz de compartilhar os benefícios da associação
vemos a política como um mal necessário, e não como uma característi-. política, ou que não precisa compartilhá•los por já ser autossuficiente
ca essencial da vida boa. Quando pensamos em política, pensamos ern: - não é parte da pólis e deve, portanto, ser uma besta ou um deus. 12 1

concessões mútuas, fingimento, interesses, corrupção. Até mesmo os usos: 1


Portanto, só realizamos nossa natureza quando usamos nossa faculda- .t
idealístícos da política - como um instrumento de justiça social, como,
uma forma de transformar o mundo em um lugar melhor - a carac-. de da linguagem, o que requer, por sua vez, que deliberemos com nossos
terizam como um meio de atingir uma finalidade, uma profissão como. semelhantes sobre o certo e o errado, o bem e o mal, a justiça e a injustiça.
qualquer outra, e não um aspecto essencial do bem humano. Então por que, pode-se perguntar, só podemos exercitar essa capacida·
Por que então Aristóteles crê que participar da política é, de certa de de linguagem e deliberação na política? Por que não podemos fazê·lo
forma, essencial para alcançar uma vida boa? Por que não podemos em família, nos clãs ou nas agremiações? Para responder a essa pergunta,
viver perfeitamente bem e de forma virtuosa sem política? Precisamos analisar o conceito de virtude e vida boa que Aristóteles apre·

242 243
senta em Ética a Nicômaco. Embora essa obra seja primordialmente urn · livros de humor e colecionando historinhas engraçadas. Tampouco pura
estudo da filosofia moral, ela mostra a ligação entre virtude e cidadania, . e simplesmente aprendendo os princípios da comédia. É preciso praticar
A vida moral tem a felicidade como objetivo, mas Aristóteles não con.· __ 0 ritmo, o tempo, os gestos e o tom - e assistir a Jack Benny, Johnny
cebe a felicidade como o fazem os utilitaristas - maximizando o peso Carson, Eddie Murphy ou Robin Williams.
do prazer sobre a dor. O indivíduo virtuoso é aquele que sente prazer e ' Se a virtude moral é algo que aprendemos com a prática, devemos, de
dor com as coisas certas. Se alguém sente prazer em assistir a lutas de · alguma forma, desenvolver primeiramente os hábitos corretos. Para Aris- iI'
cães, por exemplo, consideramos isso um vício a ser superado, e não tóteles, este é o princípio primordial da lei - cultivar hábitos que façam de ;1
uma verdadeira fonte de felicidade. A excelência moral não consiste em nós indivíduos de bom caráter. "Os legisladores tornam os cidadãos bons ao j
agregar prazeres e sofrimentos, mas em alinhá-los para que possamos incutir-lhes bons hábitos, e é isso que rodo legislador deseja; aqueles que não
usufruir das coisas _nobres e sofrer com as coisas reles. A felicidade não. o fazem não atingem seu objetivo, e é aí que uma boa Constituição difere de
é um estado de espírito, mas uma maneira de ser, "'uma atividade da uma ruim." A educação moral está menos relacionada com a promulgação
alma em sintonia com a virtude". 13 de leis do que com a formação de hábitos e a construção do caráter. "Não
Mas por que é preciso viver em uma pólis para que a vida seja virtu- • faz pouca diferença (...) se cultivarmos hábitos de um tipo ou de outro desde .,
.;
..1
osa? Por que não podemos aprender sólidos princípios morais em casa, • muito jovens; faz muita diferença, ou melhor, faz toda a diferença." 16
ou em uma aula de filosofia, ou lendo um livro sobre ética - para então · O fato de valorizar a importância do hábito não significa que Aristóteles 1

aplicá-los quando necessário? Aristóteles diz que não nos tornamos · considere a virtude moral uma forma de comportamento padronizado. O
1
virtuosos dessa maneira. "A virtude moral resulta do hábito." É o tipo hábito é o primeiro passo na educação moral. Mas, se tudo correr bem, o
1
de coisa que aprendemos com a prática. "As virtudes que alcançamos hábito por fim é incorporado e passamos a entender o que ele significa. A u
r
ao exercitá-las, tal como acontece em relação às artes." 14 especialista em etiqueta Judith Martin, conhecida como "Miss Manners"
(srta. Boas Maneiras), lamentou cerca vez a perda do hábito de escrever
cartas de agradecimento. Atualmente tendemos a acreditar que os senti-
APRENDENDO COM A PRÁTICA mentos substituem as boas maneiras, observou ela; desde que você se sinta
grato, não precisa preocupar-se com essas formalidades. Miss Manners
Nesse sentido, tornar-se virtuoso é como aprender a tocar flauta. Nin· discorda: "Eu acho, muito pelo contrário, que é mais seguro esperar que
guém a prende a tocar um instrumento lendo um livro ou assistindo a · o bom comportamento encoraje os sentimentos virtuosos; que se você
aulas. É preciso praticar. Também ajuda ouvir músicos competentes e· escrever muitas cartas de agradecimento tenderá a sentir um pouco mais
observar como eles tocam. Ninguém se torna um violinista sem tocar de gratidão.'' 17 .i,,
1 '.
' .
violino. O mesmo acontece com relação à virtude moral: ''Tornamo-nos. É dessa forma que Aristóteles concebe a virtude moral. Ao praticar o
justos ao praticar ações justas, comedidos ao praticar ações comedidas, comportamento virtuoso estamos propensos a agir dentro dos preceitos
corajosos ao praticar ações corajosas." 1 1' de virtude.
Algo similar acontece com outras práticas e habilidades, como co·. É comum acreditar que agir de acordo com a moral significa agir de
zinhar. Publicam-se muitos livros de culinária, mas ninguém se torna' acordo com um preceito ou uma regra. Mas Aristóteles acha que falta aí
um grande chef apenas por meio da leitura. É preciso cozinhar muito, . Uma característica importante da virtude moral. Você pode conhecer a
Contar piadas é outro exemplo. Ninguém se torna um comediante lendo regra correta e, ainda assim, não saber como ou quando deve aplicá-la.

244 245
A educação moral nos ensina a discernir as características específic pOLÍTICA E VIDA BOA
das situações que requerem essa ou aquela regra.
podemos ver agora com mais clareza por que, para Aristóteles, a política
As questões relativas à conduta e às dúvidas sobre o que seja bom para n não é mais um ofício entre outros, mas uma atividade essencial para a
não têm regras fixas, não mais do que as questões de saúde(...) Os própri vida boa. Primeiramente, as leis da pó/is incutem bons hábitos, formam
agentes devem considerar em cada caso o que é apropriado na ocasião 0 bom caráter e nos colocam no caminho da virtude cívica. Em segundo
tal como acontece na prática da medicina ou na arte da navegação."1s' lugar, a vida do cidadão nos permite exercitar capacidades de deliberação
e sabedoria prática que, de outra forma, ficariam adormecidas. Isso não
A única afirmação genérica que pode ser feita em relação à virtud é O tipo de coisa que podemos fazer em casa. Podemos nos sentar em um
moral, diz Aristóteles, é que ela é um meio entre os extremos. No entanto canto e meditar sobre que tipo de diretriz adotaríamos se tivéssemos de
ele se apressa em admitir que tal generalização não nos leva muito longe decidir. Mas isso não é o mesmo que participar de uma ação significativa
porque não é fácil distinguir o meio em q~alquer situação. A questão· e assumir a responsabilidade pelo destino da comunidade como um rodo.
fazer a coisa certa "para a pessoa certa, na dimensão certa, no moment Só nos tornamos eficientes para deliberar quando entramos em campo,
certo, pelo motivo certo e da maneira certa".19 avaliando as alternativas, discutindo nosso argumento, governando e
Isso quer dizer que o hábito, ainda que seja essencial, não pode se sendo governados - em suma, praticando a cidadania.
tudo na virtude moral. Novas situações sempre surgem, e precisam A ideia de cidadania de Aristóteles é mais abrangente e exigente do
saber qual é o hábito adequado a cada circunstância. A virtude moral que a nossa. Para ele, a política não é a economia praticada por outros
portanto, requer julgamento, um tipo de conhecimento que Aristótel: meios. Ela tem um propósito mais elevado do que a maximização da
denomina "sabedoria prática". Diferentemente do conhecimento científi utilidade ou o estabelecimento de regras justas para que se alcancem
co, que trata das "coisas universais e necessárias", 20 a sabedoria prátic os interesses individuais. Ela é uma expressão de nossa natureza, uma
trata da maneira como se deve agir. Ela deve "reconhecer as particula- oportunidade para expandirmos nossas faculdades humanas, um aspecto
ridades, porque é prática e prática tem a ver com as particularidades".2 essencial da vida boa.
Aristóteles define a sabedoria prática como "um estado racional e ver
<ladeiro de capacidade de agir em relação ao bem humano". 22 A defesa da escravidão por Aristóteles
A sabedoria prática é uma virtude moral com implicações políticas
Os indivíduos com sabedoria prática são capazes de deliberar corre Nem todos estavam incluídos no conceito de cidadania adotado por
tamente sobre o que é bom, não apenas para si mesmos, mas també, Aristóteles. As mulheres eram inelegíveis, assim como os escravos. De
para seus concidadãos e para os seres humanos em geral. Deliberar nã acordo com Aristóteles, suas naturezas não os faziam adequados à cida-
significa filosofar, porque lida com as coisas mutáveis e particulares dania. Atualmente consideramos essa exclusão uma injustiça óbvia. Vale
É algo orientado para a ação aqui e agora. Mas é mais do que um cál lembrar que essas injustiças vigoraram por mais de 2 mil anos depois de
culo. Procura identificar o mais alto bem humano atingível em cad Aristóteles. Nos Estados Unidos, a escravidão só foi abolida em 1865, e
circunstância.13 as mulheres só conquistaram o direito ao voto em 1920. Ainda assim,
a Persistência histórica dessas injustiças não redime Aristóteles do fato
de as aceitar.

246
No entanto, essa é uma conclusão precipitada. A defesa de Aristóteles
No caso da escravidão, Aristóteles não apenas a aceitava como tam- ·
da escravidão não vai de encontro ao pensamento teleológico. Ao con-
bém a justificava filosoficamente. Vale a pena examinar sua defesa da .
trário, a própria teoria de justiça de Aristóteles dá margem a críticas à
escravidão para ver como ela esclarece sua teoria política como um todo.
sua concepção de escravidão. Na realidade, sua noção de justiça como
Algumas pessoas veem na defesa de Aristóteles da escravidão uma falha
adequação é moralmente mais exigente e tem uma postura potencial-
no pensamento teleológico como tal; outras a veem como uma aplicação .
mente mais crítica quanto à distribuição do trabalho do que as teorias
equivocada de tal pensamento, anuviada pelos preconceitos de sua época. ·
fundamentadas na escolha e no consentimento. Para ver como, exami-
Não acho que a defesa de Aristóteles da escravidão contenha uma ·
nemos o argumento de Aristóteles.
falha que condene sua teoria política como um todo. Mas é importante . Para que a escravidão seja justa, segundo Aristóteles, é preciso pre-
vermos a força desse argumento tão extremo.
encher dois requisitos: ela deve ser necessária e natural. A escravidão
Para Aristóteles, a íustiça é urna questão de adequação. Atribuir direi- é necessária, diz Aristóteles, porque alguém precisa cuidar das tarefas
tos é buscar o télos de instituições sociais e ajustar as pessoas aos papéis : domésticas enquanto os cidadãos dedicam seu tempo a reuniões para
que lhes cabem, aos papéis que lhes permitem realizar sua natureza. Dar . deliberar sobre o bem comum. A pó/is requer uma divisão de tarefas. A
aos indivíduos seus direitos significa dar-lhes os ofícios e as honrarias não ser que inventemos máquinas que possam fazer o trabalho braçal,
que merecem e os papéis na sociedade que se adequem a sua natureza. algumas pessoas deverão atender às necessidades da vida para que outras
As teorias políticas modernas não aceitam muito bem a noção de possam dedicar-se à participação na política.
adequação. Teorias liberais de justiça, de Kant a Rawls, temem que as Assim, Aristóteles conclui que a escravidão é necessária. Mas a ne-
concepções teleológicas entrem em conflito com a noção de justiça. Para cessidade não basta. Para que a escravidão seja justa, é preciso que de-
elas, a justiça não é questão de adequação, mas de escolha. Atribuir terminadas pessoas se adequem, por sua natureza, a desempenhar esse
direitos não é ajustar as pessoas a papéis adequados à sua natureza; é papel. 24 Aristóteles pergunta, então, se existem "pessoas para as. quais a
deixar que elas escolham sozinhas os próprios papéis. escravidão é a melhor e mais justa condição, ou se acontece 1usramente o
Desse ponto de vista, as noções de télos e adequação são suspeitas, até oposto, e toda escravidão é contrária à natureza". 25 A menos que existam
mesmo perigosas. Quem poderá estabelecer o papel que me é adequado ou pessoas assim, a necessidade política e econômica de escravos não basta
apropriado à minha natureza? Se eu não for livre para escolher meu papel para justificar a escravidão.
social por conta própria, poderei ser forçado a aceitar um papel contra minha Aristóteles conclui que existem pessoas assim. Algumas pessoas nas-
vontade. Portanto, a noção de adequação pode facilmente transformar-se em cem para ser escravas. Elas diferem das demais tal como o corpo difere
escravidão, se aqueles que detêm o poder concluírem que um determinado da alma. Tais pessoas "são escravas por natureza e é melhor para elas
grupo seja, de alguma forma, adequado a um papel subalterno. (...) que sejam comandadas por um mestre". 26
Temendo que isso aconteça, a teoria política liberal argumenta que os "Um homem é então um escravo por natureza se ele for capaz de se
papéis sociais devem ser frutos de escolha, e não de adequação. Em vez de tornar (e essa é a razão pela qual ele de fato se torna) propriedade de
designar às pessoas os papéis que imaginamos adequados à sua natureza, Outro e se ele conseguir identificar o raciocínio de outra pessoa, embora
ele próprio seja destituído de raciocínio.27
deveríamos permitir que elas escolhessem por conta própria seus papéis.
"Da mesma forma que alguns homens são livres por natureza, outros
A escravidão é errada, desse ponto de vista, porque coage os indivíduos a
são escravos por natureza, e para estes o estado de escravidão é benéfico
desempenhar papéis que eles não escolheram. A solução é rejeitar a ética
e iusto."28
do télos e da adequação em favor da ética da escolha e do consentimento,

249
248
Aristóteles parece perceber que há algo questionável nessa argumen- justo. Para Rawls, a negociação só seria justa se a livre troca se desse
tação, porque ele se apressa em explicá-la: "Mas é fácil entender que em condições justas. Para Aristóteles, nem mesmo o consentimento sob
aqueles que têm opinião oposta também estão de alguma forma certos."29 condições justas é suficiente. Para que o trabalho seja justo, deve estar em
Analisando a escravidão como ela se apresentava na Atenas de sua época· conformidade com a natureza dos trabalhadores que o desempenham.
Aristóteles teve de admitir que os críticos tinham razão. Muitos escravo~ Alguns trabalhos não passam nesse teste. São perigosos, repetitivos e
encontravam-se em tais condições por uma razão puramente contingente: arriscados demais para se adequar à natureza dos trabalhadores que
eram pessoas livres que haviam sido feitas prisioneiras de guerra. O fato os executam. Em casos assim, a justiça requer que o trabalho seja re-
de serem escravos nada tinha a ver com sua adequação para desempenhar organizado para adequar-se à nossa natureza. Caso contrário, será um
esse papel. Para eles, a escravidão não era natural, mas resultado do trabalho tão injusto quanto a escravidão.
azar. Pelos próprios critérios de Aristóteles, sua escravidão era injusta:
"Nem todos os que são realmente escravos, ou homens realmente livres
são escravos naturais ou homens livres naturais." 3u O CARRINHO DE GOLFE DE CASEY MARTIN
Como saber quem se adéqua à condição de escravo?, Aristóteles
pergunta. A princípio, deve-se ver quem, se é que existe alguém, pros- Casey Martin era um jogador de golfe profissional que tinha um proble-
pera como escravo e quem é forçado a isso e tenta fugir. A necessidade ma na perna. Devido a problemas circulatórios, andar nos campos era
do uso da força é um bom indício de que o escravo em questão não é. muito doloroso para Martin e representava um sério risco de hemorragia
adequado ao papel. 31 Para Aristóteles, a coerção é um sinal de injustiça, e fratura. Apesar da deficiência, Martin sempre se destacou no esporte.
não porque o consentimento legitime todos os papéis, mas porque a Ele jogou na equipe de Stanford na época da faculdade, depois tornou-
necessidade do uso da força sugere uma inadequação natural. Aqueles-: se profissional.
que assumem papéis consistentes com sua natureza não precisam ser Martin pediu permissão à PGA (Associação Profissional de Golfe)
forçados a isso. para usar um carrinho durante os campeonatos. A PGA negou-lhe o
Para a teoria política liberal, a escravidão é injusta porque é coercitiva. pedido, citando o regulamento que proibia carrinhos em campeonatos
Para as teorias teleológicas, a escravidão é injusta porque contraria nossa profissionais. Martin levou o caso à justiça. Ele argumentou que a Lei
natureza; a coerção é uma característica da injustiça, não sua origem. É· dos Americanos com Deficiências (1990} exigia acomodações razoáveis
perfeitamente possível explicar, dentro da ética do télos e da adequação,· para pessoas com deficiências, desde que a mudança não "alterasse
a injustiça da escravidão, e Aristóteles de certa forma (embora não de fundamentalmente a natureza" da atividade. 3·'
todo) segue esse caminho. Alguns dos maiores nomes do golfe depuseram no caso. Arnold
A ética do télos e da adequação, na verdade, estabelece um padrão Palmer, Jack Nícklaus e Ken Venturi apoiaram a proibição aos carri-
moral mais exigente para a justiça do trabalho do que a ética liberal da nhos. Eles argumentaram que a fadiga é um fator importante em um
escolha e do consenrimento. 32 Consideremos uma função repetitiva e campeonato de golfe e que usar o carrinho em vez de andar daria uma
perígosa, como trabalhar por várias horas na línha de montagem de uma · vantagem injusta a Martin.
fábrica de processamento de aves. Esse tipo de trabalho é justo ou injusto? O caso foi levado à Suprema Corte dos Estados Unidos, cujos juízes
Para os libertários, a resposta dependeria da livre escolha dos tra· se viram diante de uma questão que parecia ter pouca importância e
balhadores em troca do salário: se houver livre escolha, o trabalho será que se situava ao mesmo tempo aquém de sua dignidade e além de sua

250 251
perícia: "Uma pessoa que se desloca em um carrinho de golfe de bura Dizer que alguma coisa é "essencial" é dizer de forma geral que ela é
em buraco é realmente um jogador de golfe?"34 ~-
necessária para atingir determinado objetivo. Mas uma vez que a própria
Na verdade, o caso levantou uma questão de justiça nos mold · natureza do jogo não tem outro objetivo além de divertir (isso é o que
aristotélicos
. clássicos: para decidir se Martin tinha
. direito a us ar e distingue os jogos das atividades produtivas), é praticamente impossível
0
carrinho,_a corte precisou determinar a natureza essencial da atividade afirmar que qualquer regra arbitrária de um jogo seja "essencial".3 ~
em questao. Andar pelo campo é essencial à prática do golfe ou m .
. . era-
menre ~ncidental? Se, segundo a alegação da PGA, andar era um aspecto Já que as regras do golfe "são {como em todos os esportes) totalmente
essencial do esporte, deixar Martin usar um carrinho seria "alterar arbitrárias", escreveu Scalia, não há fundamento para fazer uma avalia-
fundamentalmente a natureza" do jogo. Para resolver a questão dos ção crítica das regras estabelecidas pela PGA. Se os torcedores não gos-
direitos, a corte precisou determinar o télos, ou a natureza essencial 1 tarem, "podem retirar seu apoio". Mas ninguém pode dizer que essa ou
do esporte. ' aquela regra seja irrelevante para as aptidões que o golfe pretende testar. '
A corte decidiu por 7 votos a 2 que Martin tinha direito a usar um O argumento de Scalia é questionável em vários pontos. Primeira- i
'!1
carrinho de golfe. O juiz John Paul Stevens, em nome da maioria, ana- mente, ele deprecia os esportes. Nenhum torcedor de verdade falaria
1
lisou a história do golfe e concluiu que o uso de carrinhos não interferia. de esportes dessa forma - como se fossem governados por regras
no caráter fundamental do jogo. "Desde o início, a_ essência do esporte inteiramente arbitrárias, sem um objetivo real. Se as pessoas realmente
é o arremesso da bola - usar os tacos para levar a bola a partir da acreditassem que as regras de seu esporte favorito fossem arbitrárias,
marcação até um buraco a uma determinada distância com o mínimo em vez de elaboradas para incentivar e celebrar determinadas aptidões
possível de tacadas." 35 Quanto à alegação de que andar testa a resistên- : e talentos dignos de admiração, dificilmente elas se importariam com o
eia física dos jogadores, Stevens citou depoimentos de um professor de desfecho do jogo. O esporte passana a ser um espetáculo ou uma fonte
fisiologia que calculou que apenas cerca de quinhentas calorias eram de divertimento, em vez de um objeto de admiração.
queimadas na caminhada pelos 18 buracos, "nutricionalmente menos do . Em segundo lugar, é perfeitamente possível discutir os méritos das
que um Big Mac". 36 Como o golfe é "um esporte de baixa intensidade, diferentes regras, avaliando se elas melhoram ou pioram o jogo. Essas
a fadiga do jogo é primordialmente um fenômeno psicológico, em que o discussões ocorrem o tempo todo - em programas de rádio ou entre as
estresse e a motivação são os ingredientes-chave". 37 A corte concluiu que · autoridades que regulamentam os jogos. Consideremos o debate sobre a
permitir que Martin usasse um carrinho para compensar sua deficiência escolha do reabatedor em um jogo de beisebol. Algumas pessoas acham
não alteraria os fundamentos do jogo ou o colocaria em uma posição que melhora o jogo, pois permite que os melhores rebatedores batam,
injusta de vantagem. evitando os lances ruins dos arremessadores mais fracos. Outros dizem
O juiz Antonin Scalia discordou. Em uma divergência inflamada, ele que o jogo é prejudicado, pois se dá mais ênfase ao ato de rebater, em
repudiou a ideia de que a corte pudesse determinar a natureza essencial detrimento de elementos de estratégia complexos. Cada posição baseia-se
do golfe. Seu argumento não foi apenas que juízes não têm autoridade ou em uma determinada concepção do que há de melhor no beisebol: Quais
competência para decidir a questão. Ele desafiou a premissa aristotélica · aptidões são testadas, quais talentos e virtudes ele valoriza e recompensa?
enfatizando a opinião da corte - de que é possível raciocinar sobre o A discussão sobre a regra do rebatedor é, enfim, um debate sobre o télos
télos ou a natureza essencial de um jogo: do beisebol - da mesma forma que o debate sobre a ação afirmativa é
um debate sobre o propósito da universidade.
i

2S2
253

1
Por fim, ao negar que o golfe tem um télos, Scalia ignora o aspecto
honorífico da disputa. Qual era, afinal, o real sentido da saga do car~
rinho de golfe, que se estendeu por quatro anos? Aparentemente, era
: A despeito de quem tenha razão sobre a natureza essencial do golfe,
·
oca
so de Casey Martin, levado à justiça federal, ilustra claramente a
. . d. . -
ria de i·ustiça de Aristóteles. Discussões sobre iust1ça e 1re1tos sao,
,
.11

teO '' d ' ..


uma discussão sobre equidade. A PGA e figuras importantes do golfe . JllUitas vezes, inevitavelmente, discussõe~ sobre o propos1to . as mst1tm-
argumentaram que permitir que Martin usasse o carrinho seria dar-lhe . ço-es sociais, sobre os bens
. por elas destmados e sobre .as virtudes que
uma vantagem injusta; Martin contra-argumentou que, em vista de sua· · elas valorizam e recompensam. Apesar das nossas _tentat1~as de man~er a
deficiência, o carrinho não lhe proporcionaria nada além do nivelamento· ; neutralidade da lei em tais questões, talve~ não se1a poss1vel determmar
com os demais jogadores em campo. : que é justo sem discutir a natureza da vida boa.
0
Se, a equidade fosse a única coisa em questão, porém, haveria uma ·.
solução fácil e óbvia: permitir que todos os jogadores de golfe se deslo-
cassem em carrinhos nos campeonatos. Se· todos pudessem fazer isso,
a objeção à equidade não existiria mais. Mas essa solução seria um. Notas
anátema para o golfe profissional, ainda menos plausível do que abrir
uma exceção para Casey Martin. Por quê? Porque a discussão tratava . 1. A história de Callie Smartt foi relatada em Sue Anne Pressley, "A 'Safety' Blitz",
Washington Post, 12 de novembro de 1996, pp. Al, A8. A análise que apresento
menos de equidade do que de honra e reconhecimento - especificamen- :
aqui se remete a Michael]. Sande!, "Honor and Resentment", The New Republic,
te o desejo da PGA e dos melhores jogadores de que seu esporte fosse · 23 de dezembro de 1996, p. 27; republicada em Michael]. Sande), Public Phi/oso-
reconhecido e respeitado em um evento esportivo. phy: Essays on Morality in Politics (Cambridge, Harvard University Press, 2005),
Permitam-me abordar a questão da forma mais delicada possível: pp. 97-100.
golfistas são um pouco sensíveis quanto às condições de seu esporte. 2. Aristóteles, The Politics (A política), edição e tradução para o inglês de Ernest
Ele não envolve corridas nem saltos, e a bola fica parada. Ninguém tem Barker (Nova York, Oxford Universicy Press, 1946), livro lll, cap. xii [1282b].
dúvidas quanto à habilidade exigida pelo golfe. Mas a honraria e o reco- 3. Ibidem.
4. A. A. Milne, Winnie-the-Pooh (1926; Nova York, Dutton Children's Books, 1988),
nhecimento dados aos grandes golfistas dependem do fato de seu esporte
PP· 5-6.
ser visto como uma competição que demanda preparo atlético. Se o jogo 5. Aristóteles, The Politics , livro III, cap. ix [128Gb].
no qual eles se sobressaem puder ser desempenhado dirigindo um carri- 6. Ibidem [1280a].
nho, seu reconhecimento como atletas será questionado ou minimizado. 7. Ibidem [1280b].
Isso pode explicar a veemência com a qual alguns profissionais do golfe 8. Ibídem.
recusaram o pedido de Casey Martin. Tom Kite, veterano havia 25 anos 9. Ibidem [1281a]; livro III, cap. xii [1282b].
10. Ibidem, livro 1, cap. ii [1253a].
da· PGA Tour, declarou em um texto publicado no New York Times:
11. Ibidem.
12. Ibidem.
Parece-me que aqueles que apoiam o direito de Casey Martin de usar 13. Aristóreles, Nicomachean Ethics (Ética a Nicúmaco), rraduçào para o inglês de
um carrinho ignoram o fato de que estamos falando de um esporte com- David Ross (Nova York, Oxford University Pcess, 1925), livro II, cap. 3 [1104b].
petitivo (...) Escamos falando de um evento aclético. E quem quer que 14. Ibidem, livro li, cap. 1 (1103aj.
seja que não considera o golfe um esporte atlético simplesmente nunca 15. Ibidem [1103a-1103b]. 1

[
assistiu a um jogo ou participou de um. 3~ 16. lbid<!m [1003b].
.

254 255
L
17. Judith Martin, "The Pursuit of Politeness", The New Republic, 6 de agosto
1984, p. 29.
18. Aristóteles, Nicomachean Ethics, livro II, cap. 2 (1104a).
19. Ibidem, livro II, cap. 9 [1109a}.
20. Ibide~ , livro VI, cap. 6 [11406].
,
''
1
21. Ibidem, livro VI, cap. 7 [11416].
22. Ibidem, livro VI, cap. 5 [11406].
23. Ibidem, livro VI, cap. 7 (1141b).
24. Agradeço aqui à esclarecedora discussão em Bernard Williams, Shame and Ne
cessity (Berkeley, University of Calífornia Press, 1993), pp. 103-29.
25. Aristóteles, The Politics, livro I, cap. v [1254aJ.
CAPITUL09 O que devemos uns aos outros?/
26. Ibidem [1254bJ. Dilemas de lealdade
27. Ibidem [12546].
28. Ibidem [1255a].
29. Ibidem, livro I, cap. vi [12546).
30. Ibidem [I255bj.
31. Ibidem, livro I, cap. iii [1253b].
32. Para uma esclarecedora discussão sobre esse assunto, ver Russell Muirhead,Jusr
Work {Cambridge, H arvard Universiry Press, 2004).
33. PGA Tour v. Martin, 532 US 661 (2001).
34. Ibidem, protesro do juiz Scalía, em 700.
35. Ibidem, opinião do juiz Stevens, em 682.
36. Ibidem, em 687.
37. Ibidem.
38. Ibidem, protesto do juü: Scalia, em 701.
39. Tom Kíte, "Keep the PGA on Foot", New York Times, 2 de fevereiro de 1998.

256

Você também pode gostar