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Pensar com método

Susana Durão
Isadora Lins França
(Orgs.)

Pensar com método


© Susana Durão, Isadora Lins França, 2018
© Papéis Selvagens, 2018

Coordenação Coleção Stoner


Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez

Capa e diagramação
Martín Rodríguez

Imagem de Capa
María Elvira Díaz-Benítez

Revisão
Brena O’Dwyer

Conselho Editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

P418 Pensar com método / Organizadoras Susana Durão, Isadora Lins


França - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018.
224 p. : 16 x 23 cm - (Stoner; v. 9)

ISBN 978-85-85349-08-0

1. Pesquisa - Metodologia. I. Durão, Susana, 1970-. II. França,


Isadora Lins, 1978-. II.

CDD 001.42

Elaborado por Maurício Amormino Júnior - CRB6/2422

Este livro foi financiado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) de la
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

[2018]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
Sumário

Pensar com método: uma apresentação


Susana Durão e Isadora Lins França 9

Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio:


os métodos quantitativo, qualitativo e a perspectiva parcial
Bárbara Castro 15

Como escrever um artigo acadêmico


Álvaro Bianchi e Daniela Mussi 37

A interpretação na ciência política


Frederico de Almeida 61

Introdução aos fundamentos da análise demográfica


e dinâmica populacional
Joice Melo Vieira 87

Aperte play para iniciar: desafios metodológicos de


pesquisas nas mídias digitais
Iara Beleli e Larissa Pelúcio 117

O ensino de história na era digital: potencialidades


e desafios
Aldair Rodrigues 145

Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e


financiadores
Taniele Rui 177

Intimidades na pesquisa etnográfica: a diferença da


antropologia
Susana Durão 199

Sobre os autores 217


Pensar com método: uma apresentação

Susana Durão
Isadora Lins França

Pensar com Método é uma obra que nasce de vivas discussões


entre professores e alunos das graduações e licenciaturas de ciências
sociais e de história do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Velhos
problemas ressurgem. Do lado dos alunos, uma inquietação: porque
em nossa formação acadêmica somos mais sensibilizados para
formulações teóricas do que para discussões metodológicas? Do
lado dos professores, uma hesitação: como introduzir, no ensino
das ciências sociais e da história, problemas metodológicos sem os
limitar a questionamentos meramente técnicos capazes de esvaziar
as complexidades do real e do pensamento social? Entre ambos,
um acordo. É preciso colocar em marcha uma reflexão que ofereça
destaque aos métodos em ciências sociais e humanas. A obra, escrita
por professores do IFCH, está aqui, devido a um esforço coletivo,
mas também graças ao generoso apoio da Pró-Reitoria de Graduação
da UNICAMP, concedido na proposta realizada ao edital para apoio à
produção de material didático no final de 2016.
A proposta do livro está relacionada à valorização do diálogo
entre as diferentes tradições disciplinares nas ciências sociais e
à perspectiva de que, guardadas as singularidades, os métodos
relacionados a cada disciplina convergem em diferentes objetos
empíricos e compõem a riqueza da reflexão metodológica voltada
para a produção de conhecimento sobre a vida social. Trata-se
de uma obra que nasce do esforço conjunto de docentes do IFCH,
incluindo também os núcleos e centros de pesquisa na UNICAMP. A
publicação do livro é também uma aposta na interdisciplinaridade
interna às ciências sociais e humanas, com o objetivo de fornecer
uma boa introdução não apenas aos métodos de pesquisa na
antropologia, sociologia, ciência política, demografia e história,
mas também uma contribuição em que essas diferentes tradições
estejam em interlocução. É preciso ressaltar que o ecletismo e a
convivência de diferentes epistemologias, argumentos e teses, com
vistas à formação de uma visão de mundo pluralista e multifacetada,
10 | Pensar com método

é uma marca do IFCH, talvez até mesmo da comunidade científica da


própria UNICAMP.
Ao mesmo tempo, os capítulos do livro simplesmente
extrapolam os limites disciplinares quando são dedicados a reflexões
em torno do próprio processo de produção de conhecimento e
pesquisa a partir de desafios atuais. A opção consciente das editoras
foi, mais do que apostar em textos que representassem orientações
disciplinares muito concretas, poder combinar textos de tom mais
didático e textos que claramente optam por abordagens mais
reflexivas e críticas.
Outro aspecto importante da obra é a concepção de que
ensino e pesquisa devem caminhar juntos necessariamente. E que
teoria e metodologia são termos inseparáveis da construção de boas
pesquisas, sempre aquelas capazes de arriscar novos caminhos,
de formular novas perguntas e de responder às urgências do seu
tempo. Não se trata de um manual de como pesquisar e produzir
conhecimento: os mais experientes dirão que não há outra maneira
de aprender senão enfrentando os próprios dilemas da pesquisa
empírica e teórica. É, antes, um livro destinado a estimular a
imaginação para a pesquisa e o debate sério sobre metodologia, ao
mesmo tempo em que pode funcionar como obra de referência.
Tampouco pode-se afirmar que é um livro destinado
exclusivamente àqueles que ensaiam os primeiros passos na
pesquisa. A discussão das metodologias com base em pesquisas
concretas e a abordagem de temas inovadores confere valor imediato
ao trabalho. Embora estimulados por questionamentos levantados
em sala de aula, os pesquisadores, nos ensaios deste livro, trazem
abordagens e problemas metodológicos que interpelam qualquer
profissional das humanidades.
Ainda, a obra reflete a fundamental contribuição tanto de
métodos qualitativos quanto quantitativos para os saberes sociais,
bem como a possível articulação entre eles. Mais do que a filiação
a um ou outro método, os capítulos apresentados reforçam a
importância de se pensar criticamente nossas próprias escolhas
metodológicas e sua adequação aos problemas de pesquisa que as
subjazem. A construção do próprio problema de pesquisa, aliás, está
aqui em questão: Como recortes empíricos podem se transformar
em questões sociológicas relevantes? Como métodos e ferramentas
de pesquisa permitem fazer a ponte entre o campo da pesquisa e
Apresentação | 11

as preocupações teórico-conceituais que o acompanham? Como


lidar com os diferentes momentos da pesquisa e da produção do
conhecimento, da construção de uma pergunta à publicação dos
resultados? Qual a configuração que na pesquisa tomam as relações
sociais resultantes de interações criadas durante o trabalho de
campo? Quais os limites do conhecimento crítico? Estas são algumas
das questões que acompanham os artigos aqui publicados.
É necessário reforçar que, nesta obra, metodologia é
entendida muito mais do que como um conjunto de tecnologias de
pesquisa. Metodologia é uma proposta, mais ou menos aberta, que
se baseia na possibilidade de manter acesa a dúvida e a inquietude
reflexiva, a tentativa e aprendizagem com o erro na inquirição dos
dados, a construção ativa de evidências e de concepções teóricas
e a obrigação, por fim, de clarificar todo esse complexo caminho
das pesquisas. Assim, mais do que usar um método, qualquer que
seja, convidamos o leitor deste livro a pensar com método. Pensar
metodologicamente ajuda a todos a imaginar e a consolidar as
propostas de pesquisa. Façamos então uma revisão dos textos dos
autores que aqui nos ajudam nesse percurso.
A contribuição de Bárbara Castro questiona uma suposta
neutralidade e objetividade da pesquisa científica, em defesa de
uma perspectiva parcial, produzida por um sujeito de pesquisa
situado. As abordagens de cientistas sociais, em articulação com as
contribuições da teoria feminista, permitem à autora uma crítica
bem-vinda à dicotomia entre métodos qualitativos e quantitativos,
em favor de um olhar mais amplo para o contexto de produção de
conhecimento e dos campos de estudo nas ciências sociais, que
permita compreender o avanço no conhecimento social a partir da
pesquisa produzida desde diferentes pontos de vista.
A própria escrita de textos acadêmicos, ainda pensando no
aspecto fundamental da objetividade, é o tema do texto de Alvaro
Bianchi e Daniela Mussi. Os estilos da escrita expressam também
filiações dos autores e constituem estratégias particulares, nunca
resultado de improvisação, mas de trabalho arduamente empregado
no texto. Ao longo do capítulo, diferentes aspectos que permeiam a
escrita de textos são abordados, com uma variedade de exemplos,
situando a escrita como parte indissociável da pesquisa.
De diferente forma, a discussão sobre o texto acadêmico
também é central ao argumento de Frederico de Almeida. O autor
12 | Pensar com método

defende que a análise interpretativa na ciência política depende


do entendimento da cultura como um texto a ser interpretado,
mais do que um código a ser decifrado. Esse processo se dá por
meio do emprego de estratégias de pesquisa as mais diversas,
mas inevitavelmente resulta em outro texto, que dará sentido aos
processos sociais estudados. O rigor metodológico está, em grande
parte, na explicitação e reflexão sobre a metodologia empregada,
nunca em formulações gerais de causa e efeito.
Joice Melo Vieira apresenta outras perspectivas a partir
da demografia, para a qual a linguagem matemática é essencial. O
capítulo delineia o objeto de estudo da demografia e apresenta com
admirável clareza alguns de seus fundamentos, bem como modos de
trabalhar as formas de representação de dinâmicas populacionais.
A escassez de materiais de referência adequados a estudantes
de graduação, em português e pensados para aqueles que não
necessariamente têm domínio da matemática, é apontada pela
autora, bem como são dispostas várias referências hoje disponíveis
neste campo científico.
Uma área relativamente nova de investigação é abordada
por Iara Beleli e Larissa Pelúcio: a pesquisa na Internet. As autoras
exploram como as tecnologias têm transformado nosso cotidiano e
relações. A sociedade em rede tem exigido também um tratamento
de constante experimentação e reflexividade quando é objeto de
pesquisa: frequentemente há inovações que modificam as formas de
comunicação, de apresentação de si, de relação com o próprio corpo,
entre outras. Nesse terreno, é importante não reproduzir oposições
que supõem um mundo real fora da Internet e outro mundo virtual. As
autoras defendem que a continuidade entre online e offline é marca
de como a Internet passou a fazer parte da vida social, instando os
pesquisadores a navegarem pela rede com seus sujeitos de pesquisa.
A era digital e seus desafios é também o tema da contribuição
de Aldair Rodrigues, mas de um ângulo diferente. Com base na
sua experiência com alunos e professores em formação na área de
história, as tecnologias digitais são exploradas no seu potencial para
documentação, constituição de arquivos e para o desenvolvimento
de conteúdos. Tais tecnologias convergem para a necessidade de uma
reflexão crítica sobre a produção do conhecimento, já que tornam
a informação pura e simples cada vez mais disponível, de forma
quase sempre muito fragmentada. Reforça-se ainda mais o papel
Apresentação | 13

desempenhado pelo professor ao situar criticamente processos


históricos e sociais singulares, permitindo aos alunos compreendê-
los na sua complexidade. Essa tarefa é ainda mais central quando
consideramos a circulação de informações sem muita mediação
através da Internet, com grande potencial de produzir versões
revisionistas de processos históricos. Rodrigues ilustra o argumento
com o caso das abordagens rasas e insuficientes sobre a escravidão
que emergiram como reação às políticas públicas de combate ao
racismo nos anos 2000 no Brasil.
O texto de Taniele Rui é fruto do desconforto de uma pesquisa
conduzida na interface entre programas de governo, “pesquisadores
locais” e agências de financiamento científico. A autora apresenta
certo descompasso entre os diferentes momentos de realização do
trabalho de campo e entre os contextos pelos quais seus resultados
literalmente viajam, considerando que as pesquisas que realizamos
inserem-se cada vez mais em planos e agendas internacionais que
guardam também suas próprias desigualdades. A partir de uma
experiência concreta de pesquisa, o capítulo trata das diferentes
tensões entre financiadores e pesquisadores, bem como, de modo
central, os conflitos ético-metodológicos entre conhecimento
antropológico e interesses políticos-filantrópicos. A ideia de mútua
instrumentalização permite ler estas dificuldades metodológicas
ultrapassando a ingenuidade de que os pesquisadores ocupariam
um papel neutro nas relações de pesquisa.
Susana Durão abre seu texto com uma reflexão sobre as
particularidades da produção de conhecimento antropológico.
Dada a natureza interativa dos métodos de pesquisa etnográficos
Durão sublinha a importância da intimidade como ferramenta de
conhecimento. Com base na assumpção de que estamos perante uma
metodologia intimista, ela levanta uma questão importante: Quais
os limites dessa intimidade em campo? Indo além das noções de
controle ético e demonstrando, a partir da leitura de textos recentes
sobre casos de violência, especialmente vividos por pesquisadoras
mulheres, Durão termina o texto fazendo a apologia da coragem
metodológica e do direito à incerteza. Ela acredita que esses são
aspectos presentes e determinantes nas abordagens aproximativas
que subjazem à atividade etnográfica e ao conhecimento entre
humanos. A ambiguidade constitutiva do método é exatamente o que
permite avançar a antropologia.
14 | Pensar com método

O conjunto de trabalhos aqui apresentado transita


por diferentes aspectos e preocupações frente à produção de
conhecimento nas ciências sociais e humanas. Todos os textos,
porém, estão marcados pela urgência de uma postura reflexiva sobre
a pesquisa e suas práticas, com a indagação constante a respeito dos
caminhos escolhidos desde o enquadramento teórico-metodológico
até à vida pública da pesquisa e as novas mediações que ela exige.
Nosso objetivo foi realizar um livro capaz de dar conta da fluidez que
envolve as atividades de pesquisa, seus diferentes e entrelaçados
tempos, as interlocuções vivas entre as diversas tradições
disciplinares e seus métodos. Trata-se de um convite à reflexão
crítica sobre nosso fazer científico, sem deixar de lado o rigor a que
devem ser submetidas nossas escolhas conceituais e metodológicas.
Escolhas essas que estão na base de sutis produções teóricas.
Em momentos de crispação política e social, frequentemente
vividos pelas nossas democracias, é imperativo que possamos
contribuir para o debate público a partir de intervenções
fundamentadas nas especificidades da nossa prática científica. Essa
função não exige de nós supostas neutralidades, uma vez que é
inerente à ciência contemporânea o trabalho com diferentes teorias
e metodologias, trabalho sempre sob exame e aberto à própria
transformação. Essas transformações devem-se ao debate interno
levado a cabo na própria comunidade científica, mas também são
resultado do exame crítico sobre o quanto nossas escolhas como
pesquisadores permitem compreender melhor nosso mundo e
imaginar novos mundos.
Desejamos aos leitores e leitoras deste livro que, tendo como
orientação este conjunto de textos, possam encontrar inspiração para
a árdua e prazerosa tarefa que é a construção de um conhecimento
vivo, responsável e preciso sobre o mundo que compartilhamos e
ajudamos a erguer.
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio: os
métodos quantitativo, qualitativo e a
perspectiva parcial

Bárbara Castro

A topografia da subjetividade é multidimensional


bem como, portanto, a visão.
(Donna Haraway, 2009, p. 26)

Introdução

Falar sobre metodologia é tratar dos pressupostos racionais


que estão presentes na prática da pesquisa científica, seja em
sua elaboração teórica, seja em suas técnicas de investigação
(Oliveira Filho, 1976, pp. 255-256). O debate metodológico não
deveria se resumir, portanto, a uma discussão sobre as escolhas de
procedimentos e técnicas de investigação de maneira isolada. Antes,
ele deveria se dedicar a compreender qual é a lógica e acrescento, o
contexto, subjacente a essa escolha.
Como aponta Jeremias de Oliveira Filho (1976, 1995),
levantar esses pressupostos é realizar uma crítica da sociologia
imediata, que rejeita uma reflexão sobre a relação entre o “conteúdo
da percepção” e “os objetos do conhecimento”, de modo a ignorar
que o objeto científico historicamente se instaura como provisório-
permanente e é reestruturável sempre que novos problemas são
apresentados (Oliveira Filho, 1976, p. 266). Ou seja, questionar quais
são os pressupostos racionais que estão por trás da escolha das
técnicas de pesquisa e assumi-los como contextualmente situados é
um passo central em uma ciência social reflexiva que assume, desde
o início, que um objeto é extenso e mutável e, portanto, passível de
ser acessado (e visto) de diferentes maneiras, a depender não apenas
da escolha técnica, mas da teoria que a informa e do espaço, tempo e
regimes de poder nos quais a pesquisa se situa.
O exercício que fazemos em pesquisa é o da tradução do
mundo social. Ao coletar e analisar um conjunto de informações,
realizamos o exercício de descrever e sistematizar o conhecimento
16 | Pensar com método

apreendido em nossa investigação, apresentando nossa compreensão


do mundo social a partir do(s) objeto(s) e/ou sujeitos/a(s) em
questão. Esse procedimento de investigação se realiza por meio do
que Oliveira Filho nomeia de uma intermediação técnica. Pode ser
útil trabalhar com essa ideia se atualizarmos seu sentido para o de
uma metáfora, para pensar métodos e técnicas de pesquisa que nos
ajudam a compreendê-los como as diferentes lentes que utilizamos
para ver o mundo social. Uma metáfora que parte do acúmulo de
uma “tendência autorreflexiva”1 que vem ganhando espaço desde os
anos 1970 nas Ciências Sociais, e que aqui será tratada a partir de
um diálogo direto com certas teorias feministas e com determinados
pressupostos compartilhados do campo dos estudos sociais de
ciência e tecnologia.
De modo geral, ao mesmo tempo em que essas intermediações
técnicas possibilitam acessar as informações necessárias para
compreender como o mundo social se organiza, elas são pensadas
como meios de validação de uma teoria. “De certa forma, a metodologia
pode ser entendida como um ‘Superego’ (Gigerenzer, 1993) cuja
missão é exercer um controle férreo sobre o Id do conhecimento
comum, sempre inclinado a diversos vieses autoconfirmatórios”
(Cano, 2012, p. 100).
Veremos que são essas as duas ordens de finalidade
atribuídas às intermediações técnicas que são questionadas quando
a bibliografia contrapõe os métodos quantitativo e qualitativo,
buscando apresentar suas deficiências e destacar suas qualidades.
Eles são julgados, modo geral, em termos de sua capacidade de
“coleta” e generalização dos dados, e em termos de sua capacidade
de validação. A reflexão sobre os limites dos métodos também
se desdobra, como veremos, em um improdutivo julgamento

1
A ideia de tendência autorreflexiva nas ciências humanas, em geral, está presente
no artigo de apresentação da edição brasileira de “A experiência etnográfica:
antropologia e literatura no século XX”, de James Clifford, escrita por José Reginaldo
dos Santos Gonçalves. Esta ideia está presente no artigo de Leonardo Castro sobre
autoria, autoridade e etnografia, no qual traduz tal tendência ou voga reflexiva como
algo que “se faz acompanhar de uma ampla proliferação de adjetivos: “hermenêutica”,
“dialógica”, “desconstrutiva” e, last but not least, “pós-moderna” (…) [e que pode
ser pensada] como um desenvolvimento do tipo de antropologia “interpretativa”
que Geertz popularizou no início da década de 70” (Castro, 2000, p. 54). A virada
hermenêutica ou linguística, prioriza o significado e tem larga inspiração no pós-
estruturalismo francês.
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 17

ideológico e de valor, que condena os métodos quantitativos por


serem positivistas e conservadores e os métodos qualitativos por
não serem objetivos.
Ambas as acusações parecem partir, portanto, do mesmo
pressuposto: o de que a ciência social realizada pelo outro, isto
é, aquele que se vale de uma abordagem diferente da sua, não é
neutra e, portanto, não é confiável. Não vou esgotar aqui a exposição
da crítica. Mas cabe destacar a cilada que ela provoca: a de repor
uma ideia de neutralidade científica transferida para um debate
instrumental das técnicas e métodos de pesquisa. Esses estereótipos
elaborados tanto por quantitativistas quanto por qualitativistas
deslocam, a meu ver, o debate sobre os limites da relação entre
pesquisador/a e pesquisado/a2 para um debate que fetichiza os
métodos e os desconstituem da possibilidade de serem lidos a partir
de uma perspectiva sociológica.
Quero dizer, com isso, que tanto a maneira instrumental e
funcional como a questão metodológica é pensada, quanto as reações
às potentes críticas colocadas à dualidade inócua entre métodos
quantitativos e qualitativos se afastam de uma perspectiva que pensa
o método também como passível de ser analisado pela teoria social.
Ou, de maneira mais clara e direta, se afastam da possibilidade de
pensar, à luz dos argumentos de John Law, Evelyn Ruppert e Mike
Savage (2011), a metodologia como algo que constitui e é constituída
pelo mundo social.
Neste artigo, busco expor as principais controvérsias entre
as nomeadas análises qualitativa e quantitativa a fim de apresentar
uma bibliografia recente que propõe superar a dicotomia (e a
autoexclusão) que está contida no discurso crítico a essas duas
abordagens. Não se trata de defender que todo pesquisador
deve conduzir suas investigações se valendo da integração e
complementaridade entre as duas técnicas. O que se propõe é que
aprendamos com o debate organizado por teóricas feministas que
defendem a ideia do conhecimento situado ou perspectiva parcial
e com teóricos/as dos estudos sociais de ciência e tecnologia

2
Debate este exaustivamente enfrentado na Antropologia e com o qual a Sociologia
e a Ciência Política têm tanto a aprender. Como bem resumiu Taniele Rui, em sua
Tese de Doutorado, “Nós antropólogos sabemos que em nossa ciência muita tinta já
foi gasta para mostrar que os “dados” não existem em separado da forma subjetiva
e interpessoal com que o pesquisador os acessa” (Rui, 2012, p. 12).
18 | Pensar com método

para pensar o alcance dessas duas abordagens. Nesse sentido, as


diferentes posições que ocupamos como sujeitos/as e teóricos/as
na realização de nossas pesquisas unidas às diferentes formas de
ver nossos objetos e sujeitos/as (seja por essa posição, seja por meio
de diferentes métodos e técnicas que empregamos para reunir as
informações que analisamos, seja pelo contexto de tempo, espaço
e relações de poder que desenham a pesquisa e nossa posição
no campo científico), delimitam a nossa compreensão do mundo
social – ao mesmo tempo em que nos abrem novos caminhos a
serem explorados.
Desdobrando os argumentos de Sandra Harding e Donna
Haraway, proponho que levemos a sério a ideia de que a produção
do conhecimento deve ser pensada como um exercício realizado
coletivamente para que consigamos alcançar uma pluralidade de
diferentes olhares sobre um mesmo objeto de pesquisa. Quanto
mais capazes de propor diferentes perguntas para um mesmo objeto
e/ou sujeito/a(s), maior será a nossa capacidade de compreendê-
lo(s) em sua complexidade. E quanto maior for a diversidade de
perguntas, maior será a necessidade de olharmos para esse objeto
e/ou sujeito/a(s) de diferentes maneiras, criando ou se valendo de
tecnologias de acesso ao mundo social e de análise de diferentes
ordens e alcances. Essa perspectiva deveria orientar nossa didática
de ensino de metodologia.
Costurando essa perspectiva à pergunta que orienta Law,
Ruppert e Savage (2011), “O que os métodos fazem?”, e pensando,
junto a eles, que os métodos são a “teoria social na prática”,
proponho uma prática didática que não busque repor, de saída, um
ensino de metodologia que trate de teoria e método como separados.
Tampouco, que reponha a separação dos métodos do mundo social.
São justamente essas divisões, vou argumentar ao longo desse
texto, que nos permitem hierarquizar métodos e elaborar práticas
de acusação que fixam a ideia daquilo que constitui uma análise
qualitativa e quantitativa.
O pressuposto do qual este texto parte é, portanto, que ao
deixar mais preciso o terreno comum que leva um/a pesquisador/a
a escolher ou a desenvolver um método de pesquisa e as perguntas
que a orientam, deixamos de tratar os procedimentos e técnicas
de pesquisa como mera derivação instrumental do campo de
conhecimento no qual nos inserimos e passamos a compreendê-los a
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 19

partir de uma perspectiva mais ampla daquilo que realiza as Ciências


Sociais e de como suas perguntas, métodos e técnicas de pesquisa são
produzidas contextualmente.3 Se ao longo do tempo naturalizamos
as escolhas metodológicas pelo aprendizado acumulado no próprio
ato de fazer pesquisa, no momento do ensino de metodologia é
fundamental traduzir esse conhecimento falsamente tácito em
alguma sistematização. Isso não quer dizer que precisamos criar um
manual engessado de normas e técnicas de pesquisa. Isso quer dizer,
no entanto, que os estudantes precisam ser capazes de compreender
o que essas técnicas permitem enxergar e, principalmente, como
elas dão conta de auxiliar a responder as perguntas de pesquisa
elaboradas.

O caleidoscópio do mundo social e o privilégio da perspectiva


parcial

Antes de apresentar o debate mais recente sobre as
abordagens qualitativas e quantitativas, faço um breve preâmbulo
para sustentar a ideia acima apresentada que defende que nossos
objetos e sujeito/a(s) de pesquisa possuem diferentes facetas
e estão em constante transformação. Partir desse pressuposto
teórico e metodológico implica assumir uma postura que descarta,
a priori, a possibilidade da construção de um caminho único de
pesquisa, amparado em uma tecnologia de investigação também
singular e/ou insuperável. Acredito que um debate amparado pelas
teóricas feministas que se dedicam a compreender a produção do
conhecimento nos auxilie nesse sentido. Recorro, neste texto, à ideia
da teoria de sistemas múltiplos, defendida por Sandra Harding,
para pensar na heterogeneidade do mundo social, e na ideia de
perspectiva parcial, de Donna Haraway, para pensar nos limites de
nossas escolhas teóricas e metodológicas e dos métodos e técnicas

3
Basta pensar que a posição teórico-metodológica na qual se inspira este artigo se
alimenta de perspectivas construídas desde o momento histórico em que outros/
as sujeitos/as sociais emergem, se posicionam na cena pública e reivindicam voz
e identidade próprios/as. A reivindicação da heterogeneidade e da pluralidade
ganham força tanto pelo contexto das guerras anti-coloniais quanto pela organização
política de grupos feministas, negro e étnica e nacionalmente orientados. Agradeço
ao/à(s) parecerista(s) por essa indicação.
20 | Pensar com método

que elegemos para ver o mundo social.


Sandra Harding (1993) propõe a teoria de sistemas múltiplos
como saída para uma polêmica construída no interior das teorias
feministas que disputava como evitar os deslizes daquilo que ela
nomeia como “teorias tradicionais”, ou seja, perspectivas teóricas
que invisibilizam as relações sociais e atividades desenvolvidas por
mulheres porque não fundamentam suas categorias e conceitos
nas diferentes experiências por elas vividas. O problema clássico
apontado pelas teóricas feministas é que a forma de compreender o
mundo se baseia em uma experiência específica (do homem branco,
ocidental, de privilegiada classe social) e a generaliza para o conjunto
da população. É essa mesma experiência específica que gera as
perguntas de pesquisa e os testes e validações de seus achados.
Partindo dessa constatação, as teóricas feministas
empreenderam um esforço de pesquisa que visava propor o
alargamento das categorias analíticas com as quais operamos para
compreender o mundo social. Buscaram tornar mais objetivas e
exatas as categorias e conceitos já elaborados pelas abordagens até
então hegemônicas da ciência.4
Entretanto, questiona Harding, se o principal deslize cometido
pelas “teorias tradicionais” foi partir de uma experiência específica
para generalizar um achado teórico, não caberia propor este mesmo
problema e desafio às teorias feministas?5 Se as mulheres também
vivem em “intrincados complexos históricos de classe, raça e cultura”
(Harding, 1993, p. 9), como dar conta da relação entre nós (agentes)
e as teorias (concepções de reconstrução social) se esta relação está
em constante transformação?
Uma das soluções mais disseminadas até o momento em que
Harding escrevia defendia a ideia de que a forma hegemônica de se

4
Vide o clássico debate interno ao campo de estudos de trabalho. O conceito de
trabalho foi repensado após forte e extensivo debate realizado pelas feministas.
Elas disputavam a maneira como o trabalho era pensado: a partir de um espaço
específico, nomeado como produtivo e majoritariamente ocupado pelos homens
(até então). Ainda hoje a articulação entre os trabalhos produtivos e reprodutivos
ou a reflexão sobre este último é organizada principalmente dentro do campo de
estudos que se nomeia como “trabalho e gênero”.
5
Vide o debate organizado pelas feministas negras, que apontam para a invisibilidade
da questão racial dentro do feminismo hegemônico e nos trabalhos acadêmicos que
se filiam a uma perspectiva feminista e/ou de gênero.
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 21

fazer ciência estava sendo mal realizada, mas que ela era reformável.
Bastaria eliminar a visão androcêntrica nela contida que seria
possível desvendar a realidade social. Essa perspectiva defendia a
ideia de que a objetividade é possível na ciência e que, ao transcender
o gênero, conseguimos encontrar a verdade da realidade social.
Harding apontou diversos problemas relacionados a essa postura
epistemológica: 1) a identidade social do pesquisador se torna
irrelevante para a coleta e análise dos dados; 2) o androcentrismo
fica isolado na seleção do problema e não na metodologia escolhida;
3) o foco principal da questão, a generalização das experiências, é
deixado de lado.
Essa saída é estruturada a partir do argumento lógico segundo
o qual a ciência integra e é integrante dos sistemas de valores da
cultura. Logo, ao eliminar o androcentrismo que a contagiava, era
possível chegar a diferentes proposições. Cabe aqui, acrescentar
a pergunta: se o método também vem desse contexto, como seria
possível eliminar dele os sistemas de valores que contém e como
evitar que nossas interpretações do mundo social sejam deturpadas
pelas escolhas metodológicas que realizamos?
Partindo do pressuposto de que o mundo social é instável
e incoerente, Harding (1993) defende que precisamos aceitar a
instabilidade das categorias analíticas e esquemas teóricos para
construir novas reflexões. Não devemos nem refutar a “má ciência”
nem isolar a produção de conhecimentos feministas. Não devemos
nem nos ancorar em uma perspectiva totalmente objetivista nem em
uma totalmente relativista.
É preciso organizar o que ela nomeia de teoria de sistemas
múltiplos: o feminismo precisa andar junto, ao lado, de outras
epistemologias, de maneira a ampliar os saberes que são produzidos
sobre um mesmo tema. É preciso, também, mudar nossa perspectiva
sobre a ciência, pensando-a como artesanato e não como indústria de
massa ou como máquina de produção de resultados. Para a autora,
é preciso compreender que a ciência é resultado de um trabalho, de
um processo e não de uma capacidade inata de um intelectual ou,
acrescentaria, ato contínuo mecânico de uma metodologia que foi
por ele internalizada e naturalizada.
O que Harding parece nos propor é que mantenhamos um pé
em cada canoa, buscando, ao mesmo tempo, mudar a visão da ciência
hegemônica e construir uma proposta alternativa a ela. Assim,
22 | Pensar com método

contagiamos a ciência hegemônica com nossas ideias e conceitos


(alargando os dela), ao mesmo tempo em que elaboramos uma visão
alternativa da própria ciência.
Assim como Harding, Donna Haraway (2009) enfrenta o
problema da tensão entre as posições objetivistas e relativistas nas
teorias feministas como saída para o problema da generalização. Sua
questão, próxima à de Harding, é a de como articular a contingência
histórica, presente nos trabalhos empiristas, com uma crítica de
nossas limitações nas práticas de produção de saber e com uma
produção real de conhecimento que possa ser compartilhada sem
reduzir outros sujeitos/as, posição relativista. Ela elabora uma saída
diferente da de Harding: tratar de uma objetividade feminista a
partir da ideia de saberes localizados.
O que a autora propõe (e isto é central para o argumento
deste texto) é que modifiquemos a metáfora com a qual pensamos
a produção de saberes: de campo de forças para visão. Ela defende
que a única maneira de sermos objetivos e racionais no fazer ciência
é deixar explícita a nossa posição/visão do problema investigado.
Essa posição/visão será sempre parcial e, por isso, responsável pelos
resultados que obtém, já que de saída reconhece os seus limites.
O exercício que Haraway propõe é o de apostar em um “Eu”
dividido e contraditório. É levar a sério a ideia de que os agentes
sociais são múltiplos, heterogêneos e que essas heterogeneidades
lhes são necessárias, não redutíveis. Nesse sentido, não há um
objeto de pesquisa perfeito, que possa ser desbravado em toda sua
complexidade. O que podemos realizar, enquanto pesquisadores,
é o exaustivo exercício de olhar para o mundo social a partir de
diferentes óticas.
Cada maneira de olhar, seja este olho orgânico ou protético,
como ela bem destaca em seu texto, constrói e/ou abre uma
possibilidade diferente de ver o mundo. Eles são “sistemas de
percepção ativos, construindo traduções e modos específicos de ver”
(Haraway, 2009, p. 22). Nosso olhar e as ferramentas que elegemos
para ver formam sempre uma visão mediada e específica do mundo.
Levar isso a sério é entender a potência (teórica, metodológica e
ética) de se assumir a produção de saberes como localizados.
É nesse sentido que proponho, seguindo a ideia de
intermediação técnica já destacada no início deste texto, que façamos
uma tradução dessa metáfora do olho para os métodos e técnicas
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 23

de pesquisa que utilizamos para delimitar e produzir informações


para nossas análises. A etnografia, o survey, os graphos, a observação
participante, a análise documental, a análise de conteúdo, o método
experimental, a pesquisa-ação, a abordagem biográfica etc., situadas
nas abordagens quantitativa e qualitativa, se constituem em
diferentes formas de ver o mundo social que foram contextualmente
construídas e reelaboradas.6 Com isso, nos permitem acessar
diferentes camadas de sua topografia.
Ao mesmo tempo, é preciso notar que nenhuma dessas
intermediações técnicas tem valor em si, ou seja, não devem ser
pensadas nem como neutras na sua elaboração ou ao contexto da
pesquisa e do pesquisador e nem como completamente determinadas
pelos contextos e pressupostos de seu uso mais dominante.
Penso que ajuda no processo de desconstrução dessas ideias
incorporar a crítica compartilhada no campo de estudos de ciência
e tecnologia, que tinha como ponto de partida combater as ideias
deterministas sobre a tecnologia. Esse campo de estudos mostra
que a produção de tecnologia tem relação direta com a forma com
que nós organizamos a sociedade. Apenas compreendendo como
vivemos e nos organizamos, argumentam, é que podemos entender
como a tecnologia é produzida e os efeitos que ela produz.
Bijker e Law (2000) apresentam a sociologia da tecnologia
como um campo de estudos que buscava superar as limitações da
história social da tecnologia, que, segundo eles, não tratava nem das
relações sociais nem do conteúdo da tecnologia. Esses primeiros
estudos sociais da tecnologia não deixaram de ter, no entanto,
uma importância central para a sociologia, pois mostravam a
heterogeneidade presente na produção da tecnologia. É dessa riqueza
que partem os estudos sociológicos da tecnologia, preocupados
com os padrões e generalizações que podiam ser extraídos daquela
diversidade. Pretendiam transformar o limite epistemológico dos
historiadores, seus exaustivos estudos de caso, em algo que dissesse
respeito à teoria social.
A heterogeneidade não foi deixada de lado. Os novos estudos
sociais da tecnologia a apresentava como prova de que os artefatos

6
Basta pensar, por um lado, no debate sobre a autoridade e autoria na etnografia,
acima citado, ou as constantes disputas daquilo que inclui (ou é excluído) na
modelagem e no desenho estatístico de outro.
24 | Pensar com método

incorporam o social e, por compreenderem o domínio do social


como algo que não é separado da política, psicologia, economia –
e tampouco dos compromissos profissionais, habilidades técnicas,
preconceitos, possibilidades e limitações, como destacam Bijker e
Law (2000) –, a diversidade dessas relações se refletia na produção
do artefato. É essa heterogeneidade que os permite afirmar que
a tecnologia poderia ter sido feita de outra maneira, se outras
relações tivessem sido estabelecidas no momento de sua produção
e utilização.
É essa mesma heterogeneidade, explicam Bijker e Law
(2001), que permite concluir que as tecnologias não fornecem sua
própria explicação. Os diferentes estudos de caso mostram que não
há uma lógica interna ou única lógica externa que as defina.7
Essa perspectiva teórica é compartilhada por uma série de
estudiosos da tecnologia. E, apesar da variedade de seus pressupostos
teóricos,8 Bijker e Law (2000) apontam pelo menos cinco elementos
que os fazem convergir. O primeiro deles é justamente o tratamento

7
O estudo de caso de Madeleine Akrich (2000) sobre o uso do gerador em Paris e
no Senegal é exemplar. A rede construída no Senegal superou a ausência de Estado
e construiu um novo conceito de cidadania, pois era por meio das contas de luz que
os senegaleses mostravam que pertenciam a uma terra (apesar dela não ser nem
propriedade deles, nem do Estado). Nesse caso, houve uma modificação das relações
sociais por meio da implementação de uma tecnologia. Além disso, a tecnologia
moralizou o uso dos consumidores. Após algum tempo da instalação dos geradores,
no Senegal, a companhia elétrica percebeu que o número de casas registradas caía –
o que traduzia um aumento de ligações irregulares ao gerador. Para evitar que isso
acontecesse, eles estabeleceram um teto máximo de consumo que, se alcançado,
derrubava o gerador. Para evitar os roubos, criaram uma tecnologia que fazia o
controle moral do uso da tecnologia. Com isso, Akrich (2000) mostra que não é só a
política o que define a produção dos artefactos. Eles têm sim, força política, mas essa
não é a única relação que os define. Os atores também precisam ser convencidos de
seu uso.
8
A diferença nos focos dos estudos que investigam tecnologia a partir de uma
perspectiva sociológica são as diferentes tradições às quais pertencem. Bijker
e Law (2000) elencam três: 1) teoria dos sistemas, que descreve a forma como a
tecnologia foi construída; 2) a teoria ator-rede, que destaca que os elementos
presentes na rede são, ao mesmo tempo, constituídos e moldados por aquelas
redes; 3) o construtivismo, que argumenta que o conhecimento é uma construção
social, mais do que um espelho da natureza. Eles entendem que o conhecimento e a
prática técnica são um processo de negociação e construção social, dirigidos pelos
interesses dos atores envolvidos.
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 25

da tecnologia como algo contingente, o que os leva a compreender


que elas nascem de conflitos, diferenças ou resistências [2], e
que há uma série de estratégias envolvidas em sua criação que o
pesquisador deve, necessariamente, mapear [3]. Além disso, esses
autores compartilham a ideia de que a tecnologia só se torna estável
se as relações heterogêneas que a compõem também se tornarem
estáveis [4], e que as estratégias e suas consequências devem ser
tratadas como fenômenos.
Esse corpo comum de preocupações, afirmam Bijker e Law
(2000), reflete a problemática sociológica central presente nesses
estudos: aquela que questiona como os atores sociais, sejam eles
pessoas, organizações ou objetos, são tanto produzidos quanto
produzem o contexto no qual eles estão inseridos.
John Law traz essa bagagem teórica para pensar, junto com
Mike Savage e Evelyn Ruppert, em como os métodos de pesquisa
devem ser tratados: como elaborações que derivam do mundo
social e, ao mesmo tempo, o constituem, o criam. Ao questionarem
o que fazem os métodos, os autores defendem que eles: 1) realizam
descobertas sobre o mundo (portanto, nos auxiliam a enxergá-lo,
atuam como o olho proteico do/a pesquisador/a); 2) exprimem
premissas sobre o mundo social (portanto, não são neutros); 3)
produzem esse mundo social (têm efeitos e consequências).
Na revisita à história de uma série de métodos, mostram
como eles foram defendidos por diferentes agentes e para diferentes
finalidades (e acrescentaria, em diferentes arranjos de poderes) e
como o que importa a nós é, na verdade, as questões que colocamos
a eles (e, acrescentaria, a posição que ocupamos na produção de
saberes). Entre os exemplos que descrevem no texto, destacaria o
caso dos grupos focais (um método quali) e o survey (um método
quanti). Se os grupos focais nascem na academia no início da
Segunda Guerra Mundial, com o forte interesse de intelectuais como
Theodor Adorno, Paul Lazarsfeld e Robert K. Merton, ele desaparece
dos interesses acadêmicos até a década de 1980 porque passa a ser
usado massivamente em pesquisas de mercado, como ferramenta
de marketing. Os grupos focais só retornam à academia quando
a separação entre teoria e método, colocada no período em que a
técnica ganha força no setor privado, é rearticulada. Basta, para isso,
mudar a compreensão sobre o que o método pode nos trazer: “uma
análise de comportamentos e atitudes, como percebem os analistas
26 | Pensar com método

de marketing, ou uma ferramenta que nos oferece pistas para


pensar como as pessoas negociam e marcam posições em contextos
saturados por relações de poder”? (Law, Ruppert & Savage, 2011,
p. 6, tradução livre). A diferença em como o método é pensado, a
racionalidade estratégica que está por detrás de sua escolha é
completamente distinta nos dois casos e deixam claro como a
morte do método como ferramenta crítica tem menos a ver com sua
característica qualitativa do que com a teoria que informa o seu uso.
Os autores argumentam na mesma direção para tratar o
survey. Ao investigar como o Censo foi historicamente organizado
no Canadá, Evelyn Ruppert (2007) descobriu que a categoria
“canadense” só passou a existir como opção entre as escolhas de
grupo étnico no país, no final do século XX. Nos dez anos que se
passaram após a introdução dessa opção, a marcação de canadense
no questionário subiu de 0,5% para 31%. A partir do estudo de
Ruppert, os autores nos propõem pensar que o survey e suas
perguntas e categorias partem de premissas sobre o mundo social
que são teoricamente informadas. Ao mesmo tempo, essas premissas
foram ativas em produzir o mundo social. Mais uma vez fica claro
que nem o survey é neutro, como não é um instrumento que tem
uma lógica própria e fechada.
Partindo dessas reflexões teóricas, veremos, agora, em que
pé se coloca o debate sobre as abordagens quantitativa e qualitativa.

Controvérsias, disputas e propostas de aproximação

A bibliografia especializada parece concordar com a ordem


de diferenças colocadas no tratamento que separa e hierarquiza uma
e outra técnica de abordagem da realidade social. De uma maneira
geral, mapeiam que haveria: 1) uma desconfiança ideológica do
método quantitativo, ao associá-lo com uma ciência desengajada
dos sujeitos e excessivamente positivista; 2) um distanciamento dos
sujeitos de pesquisa e suposta objetividade das técnicas quantitativas
contra a proximidade dos sujeitos de pesquisa e a suposta ausência de
objetividade das qualitativas; 3) problemas de validação dos achados
na perspectiva qualitativa; 4) uma impossibilidade de generalização
dos achados das pesquisas qualitativas e uma impossibilidade de
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 27

contextualização das pesquisas quantitativas.9


Para o primeiro ponto, Cano (2012) enfatiza o fato de
o positivismo ter sido/ser usado como categoria de acusação
ao se endereçar críticas aos métodos quantitativos. Trata-se,
segundo ele, de uma acusação que pensa em um “positivismo
difuso e mal definido, que encarnava todos os males atribuídos ao
quantitativismo” (Cano, 2012, p. 104). Essa categoria não era neutra,
mas politizada. A ideia de positivismo vinha/vem acompanhada da
compreensão de uma postura política conservadora. Ou seja, dizer
que o método quantitativo é positivista, é acusá-lo, imediatamente,
de ser conservador. Esta seria, para o autor, uma posição um tanto
quanto fetichizada e determinista de uma técnica de pesquisa.
Para o segundo ponto, apresento o argumento de Gunter
(2006), que aponta como uma das principais diferenças entre a
pesquisa quantitativa e qualitativa, a contextualidade e a “interação
dinâmica entre o pesquisador e o objeto de estudo” (Gunter, 2006,
p. 203). Haveria, para ele, um distanciamento maior da população
analisada no caso das pesquisas quantitativas e, consequentemente,
um afastamento maior do contexto da pesquisa, posto que os
indivíduos analisados não seriam pensados em contraste com o
seu cotidiano.10 Ele também defende a ideia de que sistemas de

9
O artigo não pretende esgotar todas as ordens de diferenças apontadas pela
bibliografia, mas mapear os pontos que parecem ser consensuais e que apontam
para uma análise mais substantiva das diferentes abordagens. Fugindo desse escopo,
Gunter (2006), por exemplo, destaca outra diferença que propõe como central
(embora problemática): o uso de instrumentos padronizados de pesquisa nas
técnicas quantitativas, em contraste com a maleabilidade das técnicas qualitativas.
10
Essa observação nos leva a pensar, por exemplo, na aplicação dos questionários
de usos do tempo pelo IBGE. Em um de seus desdobramentos, as pesquisadoras
envolvidas no projeto propuseram a aplicação de um diário, no qual as mulheres
entrevistadas deveriam anotar, diariamente, as tarefas que realizavam. Poder-
se-ia questionar, seguindo a perspectiva de Gunter, que a despeito do esforço de
incluir um contexto mais complexo ao criar uma técnica de mensuração mais
refinada, a ausência de interação do pesquisador com os participantes da pesquisa o
ausentaria da possibilidade de uma “reflexão contínua”, característica que seria mais
própria (apesar de não exclusiva) do método qualitativo. No entanto, ao comprar a
dicotomia quanti e quali, Gunter parece reificar a visão do método quantitativo que
Cano (2012), como veremos, busca rejeitar: a de que essa separação não se sustenta.
A elaboração do diário no questionário de usos do tempo só foi possível graças
ao acúmulo de pesquisas qualitativa realizadas coletivamente por pesquisadoras
que se dedicaram a pensar na articulação entre trabalho pago e não pago. Foi esse
28 | Pensar com método

valores e crenças e o envolvimento emocional do pesquisador com


o objeto de pesquisa estariam mais presentes nas pesquisas de
tipo qualitativa, o que teria uma implicação direta nos pontos três
e quatro aqui destacados.
Serapioni (2000), parte do pressuposto de que os métodos
quantitativos e qualitativos têm seu conjunto de fraquezas e
vantagens. Enquanto os quantitativos seriam débeis na validade
interna, porque nem sempre sabemos se conseguem medir o que
pretendem, são fortes em validade externa, pois seus resultados
são generalizáveis. O contrário ocorreria com os métodos
qualitativos. Eles teriam muita validade interna, pois seu foco é nas
particularidades e especificidades do objeto investigado, com o qual
está em contato direto e sempre testa os achados da pesquisa (seja
contradizendo-os, seja reforçando-os) e pouca força externa, pois
não seriam generalizáveis (Serapioni, 2000, p. 188).
Soma-se a isso um destaque feito por Gunter (2006). No
momento da análise, segundo ele, a pesquisa de teor quantitativo
teria um maior controle sobre as variáveis que analisa para
compreender um fenômeno, criando ambientes artificiais (ao tirar
uma ou outra variável de um teste de correlações, por exemplo),
enquanto a pesquisa qualitativa estaria aberta a variáveis não
planejadas e compreenderia todas as variáveis como importantes
para a análise.11 Muito embora o autor reconheça que em um estudo
de tipo qualitativo haverá quase sempre uma escolha das variáveis a
serem trabalhadas por motivos de recursos, seja de tempo e dinheiro
disponíveis para a pesquisa; seja do aceite de indivíduos/instituições
em participar da pesquisa.

acúmulo de conhecimento que permitiu a construção de uma técnica de medição


complexa, que levasse em conta o cotidiano (e as metamorfoses da organização do
tempo) como um elemento de análise fundamental em uma ferramenta quantitativa.
11
Entendo que essa ideia deve ser problematizada, pois repõe fronteiras entre as
técnicas quantitativa e qualitativa que parecem envolver menos a ideia de controle
das variáveis e mais a ideia de tempo da pesquisa. Quero dizer, com isso, que do
mesmo modo que um survey é uma fotografia, um recorte de um momento do
tempo, também o podem ser considerados uma série de métodos qualitativos que
não envolvem um retorno constante ao campo, como é o caso das entrevistas em
profundidade. Chamo aqui a atenção para o fato de que mesmo que eles sejam uma
fotografia de um momento, os dados coletados quase sempre são (ou ao menos
deveriam ser) interpretados e analisados à luz de um contexto que escapa do
momento exato do registro realizado.
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 29

A despeito de nessa descrição de diferenças alguns autores


cometerem deslizes, naturalizando as ideias de objetividade
científica e valendo-se de um vocabulário que enquadra e amarra
técnicas, eles concordam em rechaçar a controvérsia de fundo que
parece embalar a dicotomia construída entre as técnicas. A busca
em encontrar um lugar comum, ou ao menos de questionar qual
é o pressuposto racional que está contido em uma investigação
científica, os leva a defender o fim da divisão estabelecida entre as
abordagens quantitativa e qualitativa como técnicas de pesquisa.
Cano (2012), por exemplo, associa a ideia de separação e
impenetrabilidade entre as abordagens qualitativa e quantitativa a
uma tendência histórica, dentro das Ciências Sociais, em se associar
as técnicas de pesquisa quantitativas ao estudo das leis e causas, e as
técnicas qualitativas ao sentido da ação.12 Se ao longo da história das
Ciências Sociais houve demonstrações claras de que essas técnicas não
são autoexcludentes, como bem demonstrou a Escola de Chicago,13
Cano não deixa de reconhecer o excesso da “mensuração extensiva”,
na qual surveys de opiniões são aplicados sem a elaboração de uma
hipótese ou de teoria que os embasam. Essa ausência de reflexividade
muitas vezes transformava a exaustiva elaboração e a caríssima
aplicação do survey em uma coleta de dados inúteis, porque não
possíveis de serem analisados à luz das perguntas que surgiam após
a coleta. A despeito das fronteiras historicamente construídas entre
os métodos quantitativo e qualitativo, o autor defende que seus
dilemas epistemológicos são os mesmos:

A observação e o registo do comportamento humano, o problema


das fontes, os vieses de apresentação pública das pessoas e os
introduzidos pelo próprio pesquisador, o teste das hipóteses
iniciais sem se deixar levar pela tentação autoconfirmatória, a

12
Cano (2012) parte do binômio clássico “explicação versus compreensão” para
compreender quais são os pressupostos racionais que se articulam mais comumente
com as técnicas quantitativa e qualitativas. Interessa destacar que Gunter (2006)
rechaça essa separação: “... a ciência do ser humano e da sua vida mental consiste em
um esforço concomitante de explicar e compreender. Mais enfaticamente, explicação
e compreensão dependem uma da outra, são impossíveis uma sem a outra” (Gunter,
2006, p. 207).
13
Para conhecer o debate na Antropologia, recomenda-se: Mitchel, J. Clyde. 1987.
“A questão da quantificação na antropologia social”. In: Feldman-Bianco, Bela.
Antropologia nas sociedades contemporâneas. São Paulo: Global.
30 | Pensar com método

interpretação de evidências ambíguas, o surgimento de questões


de pesquisa que não tinham sido previstas, entre muitos outros, são
problemas universais (Cano, 2012, p. 108).

Na mesma direção argumentam Cipolla & De Lillo (apud


Serapioni, 2000). Para eles, as abordagens quantitativa e qualitativa
buscam se aproximar da realidade observada a partir das mesmas
questões: “Quais as condições que permitem ao pesquisador ter
acesso à realidade social? Quais critérios possibilitam estabelecer
se os procedimentos e as regras interpretativas são adequados para
representar os processos de construção do sentido dos atores?”
(Serapioni, 2000, p. 188).
Além dessas questões, esse tensionamento estaria fortemente
embasado, entre outros fatores, em um reducionismo político ao qual
é submetida uma e outra estratégia de investigação. Gunter (2006),
por exemplo, percebe essa disputa na hierarquização valorativa que
é produzida entre ciência básica vs. aplicada. A pesquisa aplicada, de
viés ativista (a finalidade do conhecimento é o de ajudar as pessoas)
seria relacionada às técnicas qualitativas. Já a pesquisa básica (que
contribuiria para avanço do conhecimento de maneira geral, mas não
necessariamente buscando combater o status quo), às quantitativas.
O autor discorda dessa associação: “A postura do pesquisador
diante do seu objeto de estudo pode levar a estratégias de pesquisa
diferentes, mas não significa que um, ou outro, atribua maior valor
ao contexto sociocultural da pesquisa” (Gunter, 2006, p. 204).
Para o autor, o debate está fora de lugar. A diferença entre
métodos quantitativos e qualitativos é de ênfase e ambos dependem
da análise do contexto para interpretar seus resultados:

As pesquisas quantitativas privilegiam a tentativa de obter uma


mensuração precisa, que permita comparar a frequência dos
fenômenos. As qualitativas, por sua vez, pretendem obter uma
compreensão mais profunda do contexto e da visão dos próprios
atores para poder interpretar a realidade (Cano, 2012, pp. 108-109).

De modo geral, o que os autores defendem é que a partir do


acúmulo organizado pelo uso de uma e/ou técnica, possamos conhecer
os pontos fracos e fortes de cada uma, de modo a assumir suas limitações
e se afastar da defesa positivista de uma ou outra técnica como única
capaz de ver o mundo social. Cano (2012) nos ajuda a pensar nisso:
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 31

Uma das vantagens da pesquisa quantitativa é que os


procedimentos atingem maior grau de padronização e podem
ser prontamente comunicados (tipo e tamanho da amostra,
erro amostral, etc.) de forma que possam ser replicados ou
contestados com maior facilidade. Em pesquisa qualitativa, o grau
de padronização é menor e as estratégias de controle do viés, por
exemplo, menos consolidadas. Entretanto, isto significa que o
cuidado com o rigor e com os controles (por exemplo, através da
busca de casos contrários à hipótese) deve ser inclusive superior
ao que existe em pesquisas quantitativas, de forma a garantir a
validade das conclusões (Cano, 2012, p. 109).

A saída para garantir resultados “fortes” em Ciências Sociais


seria, portanto, unir os resultados de pesquisas conduzidas com
métodos quantitativos e qualitativos.14 O caminho que ele aponta é o
da complementaridade entre as duas técnicas. Em sua compreensão
(compartilhada por Cervi, 2009), os métodos qualitativos abrem
caminho para melhor delimitar um objeto de estudo que não seja
muito conhecido ou ainda não tenha sido muito investigado. Ele
abriria caminho para descobrir dimensões ainda desconhecidas do
objeto e elaborar e comprovar novas hipóteses. Esse conhecimento
acumulado é o que oferece a possibilidade de se organizar
questionários quantitativos, que testam esse conhecimento e o
aprofundam, ao mesmo tempo em que, ao descobrir novas relações
entre variáveis, aponte para a necessidade de novas análises
qualitativas (Serapioni, 2000, p. 190).
Parece haver uma convergência na defesa de uma não-

14
Localizado no campo das Ciências Sociais aplicadas à saúde, Serapioni traz uma
série de exemplos, desde o seu campo de pesquisa, de como esse programa que
busca unir métodos quanti e quali acessam o objeto de pesquisa de maneiras
diferentes justamente porque buscam responder a diferentes perguntas. O caso da
pesquisa de Castro & Bronfman (1997), por ele citado, é exemplar. Ao investigar a
mortalidade infantil, é possível acessá-la apenas de um nível estatístico, cruzando
as taxas de mortalidade com dados sociodemográficos e socioeconômicos. No
entanto, uma pesquisa do tipo qualitativo ajudaria a complexificar os achados da
pesquisa quantitativa, compreendendo quais são as características das famílias e de
suas redes de apoio que impedem a mortalidade infantil. Nesse sentido, ao mesmo
tempo em que a pesquisa quantitativa oferece ferramentas para a construção de
políticas públicas para a população em geral, auxilia o Estado na produção de ações
mais específicas, para as quais as estratégias gerais não davam conta de alcançar
(Serapioni, 2000, p.189).
32 | Pensar com método

exclusão de uma ou outra técnica. O que é preciso, antes de mais nada,


é escolher um método que seja adequado ao objeto e à pergunta de
pesquisa. Esse aspecto é enfatizado por Cervi (2009), Cano (2012) e
Serapioni (2000):

Nem todas as técnicas são adequadas para todos os projetos de


pesquisa. É preciso conhecer as fortalezas e fraquezas de cada uma.
Seria tão absurdo tentar entender as gangues juvenis urbanas que
desenvolvem condutas ilegais através da aplicação de questionários
de 10 minutos a uma amostra aleatória de seus membros quanto
tentar predizer o resultado de uma eleição a partir de uma
etnografia (Cano, 2012, p. 110).

Ou, no exemplo de Serapioni:

Queremos saber quantas pessoas de uma comunidade conhecem


as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), ou o que a
população desta comunidade sabe sobre as DST? Para responder
às preocupações formuladas neste exemplo, precisa-se utilizar
métodos qualitativos e quantitativos (Serapioni, 2000, p. 188).

Além disso, Gunter (2006) destaca problemas objetivos para


a escolha das técnicas, fazendo perguntas que considera de nível
prático “quanto tempo existe para realizar a pesquisa e preparar
o relatório com os resultados? Que incentivos estão disponíveis
para contratar colaboradores e assistentes de pesquisa? Quais os
recursos materiais (gravadores, máquinas fotográficas, filmadoras,
computadores) existentes? Qual o acesso à população a ser estudada?”
(p. 207); e técnico: a competência e habilidade do pesquisador (e sua
equipe) com o método escolhido:

Em suma, a questão não é colocar a pesquisa qualitativa versus a


pesquisa quantitativa, não é decidir-se pela pesquisa qualitativa ou
pela pesquisa quantitativa. A questão tem implicações de natureza
prática, empírica e técnica. Considerando os recursos materiais,
temporais e pessoais disponíveis para lidar com uma determinada
pergunta científica, coloca-se para o pesquisador e para a sua equipe
a tarefa de encontrar e usar a abordagem teórico-metodológica que
permita, num mínimo de tempo, chegar a um resultado que melhor
contribua para a compreensão do fenômeno e para o avanço do
bem-estar social (Gunter, 2006, p. 207).
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 33

Escolher os métodos adequados aos objetos e perguntas


de pesquisa é escolher uma intermediação técnica, teoria e
contextualmente fundamentada, e que nos permita ver o mundo
social a partir de diferentes perspectivas. Não se trata, portanto, de
hierarquizar, isolar ou absolutizar a escolha de um ou outro método,
mas o de compreender o que cada um pode potencialmente nos
auxiliar a ver, ainda que esse filtro técnico não afete, necessariamente,
nossa maneira de entender o que está sendo visto.

Considerações finais

É preciso apresentar de maneira clara que o alcance de cada


método e técnica de pesquisa não depende da intermediação técnica
em si, mas do contexto em que ela foi produzida e do contexto no
qual ela é utilizada. É preciso refletir sobre isso enquanto fazemos
pesquisa, de modo que consigamos desfetichizar aquilo que nos
promete entregar os métodos quantitativos e qualitativos. Nossas
estratégias de pesquisa são contextuais e são informadas tanto por
nossa posição na produção de conhecimento científico quanto por
nossa posição e a de nossos objetos e sujeito/as de pesquisa no mundo
social. É preciso refletir sobre até onde estes contextos articulados a
determinadas intermediações técnicas nos permitem enxergar, bem
como o que eles nos permitem (e não nos permitem) ver. Com esse
ponto de partida estabelecido, deixamos claro, também, para quem
compartilha dessa linguagem e desse modo de pensar ciência, quais
são os critérios de teste e validação do método e técnica empregados.
Ao mostrarmos os caminhos que tomamos em nossa
investigação, as ferramentas utilizadas e, consequentemente,
suas potencialidades e limitações abrimos espaço para nossos/
as leitores/as se perguntarem a quais outras ordens de resultados
teríamos chegado caso tivéssemos optado por outros caminhos - ou
caso fôssemos outro/a pesquisador/a. Percorrendo esses diferentes
caminhos coletivamente, podemos imaginar, de antemão, aquilo
que um questionário de tipo survey, uma etnografia, uma análise de
regressão, uma trajetória biográfica etc. alcançam e não alcançam
responder. Bem como aquilo que posso ou não acessar desde o lugar
que ocupo, a depender da escolha técnica que faço.
O caminho para superar as disputas e tensionamentos
34 | Pensar com método

entre as combinações de técnicas e contextos mais diversos


talvez seja o de reconstruir os por quês das escolhas que nós,
enquanto cientistas sociais, realizamos para reunir e analisar um
conjunto de informações que nos permita responder às perguntas
que colocamos à realidade social. Buscando essa compreensão,
podemos oferecer um caminho para desnaturalizar e desmistificar
os procedimentos e técnicas costumeiros (embora não exclusivos)
de nosso campo de conhecimento.
Retomar essa pergunta (qual é a lógica racional que
embasa o método e a escolha da técnica) nos ajuda a encontrar um
lugar comum nas Ciências Sociais para aproximar as abordagens
qualitativas e quantitativas de maneira não dicotômica ou
excludente. Um lugar comum que permite borrar as fronteiras
disciplinares tão rigidamente construídas nas últimas décadas e
deslocar o tratamento da questão metodológica de uma perspectiva
instrumental (que muitas vezes a reifica) para outra, mais reflexiva,
que não trata teoria e método como algo separável. Mas esse lugar
comum jamais será suficiente se não levarmos em consideração o
contexto de produção de nossas ideias.
Proponho, aqui, que os métodos devem ser pensados como
um mosaico ou um caleidoscópio. Para escolher um caminho de
ler a realidade social, precisamos compreender os limites e as
possibilidades de nossas posições no mundo e das ferramentas que
utilizamos. Nesse sentido, é preciso levar a sério a ideia de perspectiva
parcial, defendida por Donna Haraway, e compreender o que dela
deriva: a defesa contundente de que a construção do conhecimento
só pode ser pensada enquanto um projeto coletivo. Nesse sentido,
um dos melhores exercícios que poderíamos propor a cientistas
sociais em processo de aprendizagem, é o de buscar responder a
mesma pergunta de pesquisa a partir de diferentes entradas. Ao
iluminarmos o mundo social a partir de diferentes perspectivas
teórico-metodológicas, demonstramos sua complexidade, colocamos
novas perguntas e encontramos novas respostas.
Acredito que esta poderia ser uma prática didática corrente
nas disciplinas de metodologia nos cursos de graduação em Ciências
Sociais: ensinar os estudantes a desenvolver diferentes olhares
sobre um mesmo objeto e/ou sujeitos/as de pesquisa, colocando-
lhe diferentes perguntas que se articulam com diferentes entradas
teóricas (e metodológicas), e pedem o uso de diferentes métodos e
Decifrando o mundo social pelo caleidoscópio | 35

técnicas de pesquisa. Desse modo, conseguiríamos deixar claro como


o mundo social é um caleidoscópio, ou seja, formado por diferentes
articulações entre quem produz conhecimento e os/as agentes que
se produzem e se transformam o tempo todo.

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Como escrever um artigo acadêmico

Alvaro Bianchi
Daniela Mussi

Escrever um artigo acadêmico é, em geral, uma atividade


profissional na qual a maior parte dos acadêmicos/as em formação
enfrenta muitas dificuldades. Estas se devem a inúmeros fatores –
hábitos escassos de leitura e escrita, dificuldade em sistematizar os
resultados da pesquisa, desconhecimento das normas e padrões de
publicação, entre outros. Como consequência, a prática de escrever
e publicar artigos acadêmicos, em vez de ser parte do cotidiano de
jovens pesquisadores/as, se converte em um desafio de grandes
proporções. Estar atento à experiência dos demais e partilhar
vivências, estudar manuais de redação acadêmica e, principalmente,
ler e praticar a escrita podem ajudar a superar essas dificuldades.
Pesquisar não é apenas escrever, mas escrever é parte
imprescindível da atividade científica. Para que a ciência possa existir
e se desenvolver os resultados de toda investigação são convertidos
em formas de linguagem tais como livros, ensaios, apresentações,
gráficos, dissertações, palestras e, claro, artigos acadêmicos. Todas
estas formas são resultados específicos e comumente padronizados
– e, por este motivo, compartilhados – da atividade cientifica que tem
lugar em contextos históricos, culturais e institucionais singulares.
Um artigo é uma modalidade específica do discurso
acadêmico, ou seja, das “formas de pensar e usar a linguagem que
existem na academia” (Hyland, 2009, p. 1). Discursos acadêmicos,
por sua vez, existem como forma possível de expressão de
“atividades sociais complexas como educar os alunos, demonstrar
a aprendizagem, divulgar ideias e construir conhecimento” (Ibid.,
p. 1). Os tipos de discurso e suas formas são variados, assim como
suas finalidades.
Gênero é o nome usado para agrupar as diferentes formas
de linguagem nas quais se materializam as atividades sociais
em conjuntos mais ou menos homogêneos e formalizados, o que
permite a constituição de comunidades leitoras nas quais o material
produzido – o texto em suas diversas formas – pode ser intercambiado
e avaliado. A noção de gênero pressupõe que é possível reunir textos
38 | Pensar com método

que contém semelhanças entre si e, como resultado, podem ser


produzidos, reconhecidos e divulgados com relativa facilidade entre
participantes de uma mesma comunidade (Ibid., 2005, p. 87).
No ambiente acadêmico, os textos podem ser diferenciados
em gêneros escritos (conferências, resumos para congressos,
projetos de pesquisa, resenhas, teses, dissertações, manuais,
pareceres, artigos, etc.) ou orais (conferências, arguições em bancas,
comentários em mesas redondas, participação em órgãos colegiados,
seminários de discussão, etc.). Artigos acadêmicos têm por objetivo
comunicar a um grupo especializado sínteses e resultados de
pesquisas, bem como mostrar os procedimentos por meio dos quais
foi possível chegar a estes fins.
Ao escrever um artigo acadêmico é fundamental lembrar
que ele deve ser reconhecido pelo seu público como tal, ou seja,
que segue algumas orientações básicas que caracterizam os artigos
publicados por revistas especializadas. Isto é, um artigo científico é
diferente de um trabalho de conclusão de curso ou de um capítulo de
uma pesquisa maior (monografia, dissertação ou tese), não é igual
a um texto jornalístico (mesmo quando acompanhado de fontes
especializadas), e também não é um apanhado de referências e
citações esparsas. Um artigo é um gênero escrito específico, que pode
ser adaptado a depender dos desafios encontrados pelo pesquisador
ao expor suas ideias, mas que precisa respeitar orientações mínimas
reconhecidas pela comunidade de leitores/as para o qual é destinado.
Identificar as partes, planejar e realizar um artigo requer
prática constante e alguns cuidados básicos que fazem toda a
diferença na hora de submeter o manuscrito para avaliação por pares
e publicação em um periódico. Neste capítulo, algumas sugestões são
oferecidas para ajudar este processo de escrita de jovens cientistas
sociais, sem com isso esgotar o tema e sem que todos os detalhes
presentes no processo de elaboração de um artigo sejam discutidos.
O objetivo é contribuir para quem está no começo de sua trajetória
intelectual e procura orientações básicas para a produção escrita.

Estilo

Existem algumas características por meio das quais um


artigo acadêmico pode ser identificado e avaliado. Estilo de escrita,
Como escrever um artigo acadêmico | 39

uso de vocabulário apropriado, estrutura do texto (argumentação


lógica), uso adequado das fontes e apresentação eficaz dos dados
são alguns dos aspectos fundamentais aos quais o autor deve estar
atento ao longo do processo de escrita.
O estilo de escrita de um artigo é normalmente associado ao
uso da norma linguística padrão, muito embora esta não seja uma
regra absoluta, como é o caso para textos resultantes de pesquisa
etnográfica e ensaios. No geral, para a escrita acadêmica valem os
mesmos princípios que orientam outros tipos de composição textual,
tais como clareza, coerência, objetividade, ordenação lógica, etc.
(Cf. Garcia, 2006, p. 394). Em um artigo acadêmico, porém, alguns
desses princípios ganham maior destaque e é importante considerar
algumas orientações que ajudam a compor um estilo adequado aos
seus propósitos.
Ainda é bastante comum nos artigos científicos publicados
no Brasil o uso da primeira pessoa do plural. Quando a autoria é
de uma única pessoa, o uso do plural majestático tende a tornar o
texto mais rebuscado. Se o objetivo é conferir ao texto um caráter
mais impessoal, mantendo alguma distância do texto e adotando
uma linguagem mais sóbria, uma estratégia pode ser a utilização
da terceira pessoa do singular. Esta opção tem se tornado muito
comum, principalmente nas áreas do conhecimento que assumem
a objetividade do conhecimento como um valor.1 Há, entretanto,
situações nas quais a estratégia de investigação exige que o sujeito
da escrita apareça explicitamente ou nas quais julga apropriado
revelar-se ao público leitor em vez de ocultar-se por detrás de uma
linguagem supostamente neutra. Nessas situações o uso da primeira
pessoa do singular é plenamente justificado.
A orientação mais geral para escrever um texto acadêmico é
escolher um estilo de escrita que permita a forma mais direta possível
de comunicação com quem o lê. “Entre duas palavras, escolher
sempre a menor” aconselhou certa vez o poeta francês Paul Valéry,
argumentando em favor da simplicidade. Ao escrever um artigo
acadêmico, o estilo de escrita enxuto e direto é normalmente melhor
aceito, pois permite que uma quantidade maior de informações e

1
Evidentemente essa objetividade pode ser questionada e frequentemente o foi nas
ciências humanas. Por detrás de uma linguagem acadêmica que tende ao ascetismo
ocultam-se relações de poder. Quem escreve precisa refletir, portanto, sobre suas
próprias práticas científicas, fazer opções a partir delas e ser capaz de justificá-las.
40 | Pensar com método

dados possa compor o texto sem torná-lo cansativo e valorizando,


no argumento do artigo, aquilo que é essencial.
Os manuais acadêmicos norte-americanos de escrita
costumam recomendar o uso da voz ativa para composição do texto
(p. ex. Becker, 2016, pp. 114-115). Para a escrita em português,
porém, esta sugestão não deve ser tomada como diretriz única, pois
em nossa língua a voz passiva é usada com frequência na escrita.
Em seu livro sobre redação acadêmica, Howard S. Becker narrou
uma conversa com o antropólogo brasileiro Gilberto Velho em que
este, certa vez, teria argumentado que o etilo direto é tipicamente
norte-americano, ao contrário do estilo europeu, “indireto e mais
floreado”. Segundo Velho, a insistência na voz ativa poderia ser
vista até mesmo como uma forma de etnocentrismo (apud Becker,
2015, p. 31). O episódio revela os riscos da excessiva normatização
da produção textual com base em padrões externos. As escolhas
estilísticas devem buscar um equilíbrio entre a adequação discursiva
para determinado público e as necessidades expressivas (culturais,
étnicas, etc.) de quem escreve.
Escrever é um aprendizado prático e cotidiano que envolve
também a leitura constante do que é produzido no campo científico
do qual se faz parte. É útil prestar atenção no estilo de escrita dos
autores e autoras preferidos, familiarizar-se com seus textos e, porque
não, inspirar-se neles. Com o tempo, a inspiração se converte em um
caminho próprio e no desenvolvimento de um estilo particular de
redação, para o qual contam muito as práticas cotidianas da escrita e
da leitura para ampliação do repertório. Certos processos ou rotinas
passam a ser automatizados e a parecer espontâneos, mas eles são
resultado de muito trabalho e reflexão. A escrita acadêmica não pode
ser improvisada.

Estrutura

A estrutura básica de um artigo é formada por elementos pré-


textuais, tais como título, autoria, resumo e/ou abstract e palavras
chaves; o texto no qual o argumento é exposto e desenvolvido; e
elementos pós-textuais, como referencias bibliográficas e eventuais
anexos.
Como escrever um artigo acadêmico | 41

Pré-texto

Título

Uma boa maneira de começar um artigo é esboçando um


título para ele (que pode ser alterado posteriormente). O título
pode funcionar como uma bússola para o caminho que o texto
percorre. Se o autor ou autora se afasta da promessa do título, este
lembrará o caminho estabelecido inicialmente. Para cumprir este
papel, o título deve ser o mais preciso e direto possível. Um hábito
muito frequente em títulos é o uso de expressões literárias seguidas
de um subtítulo explicativo. Esta é uma estratégia arriscada, pois
pode dificultar a compreensão do conteúdo discutido no texto.
A linguagem acadêmica não necessita ser árida ou rígida, mas
ela deve ser imediatamente compreensível. Uma boa estratégia
é elaborar títulos sintéticos e diretos. Recomenda-se não usar
mais do que doze palavras, além de evitar abreviaturas, jargões,
metáforas e expressões como “Breves notas sobre”, “Alguns temas
acerca de”, “Uma abordagem introdutória a”, etc.
A função do título é destacar aquilo que é importante no
artigo e atrair o público para seu conteúdo. É a primeira coisa que
será lida e pode ser a última. Por isso, o título precisa arrebatar e
conquistar quem lê o texto, o que dificilmente será bem-sucedido
com expedientes retóricos rebuscados. Miller (2005, pp. 257-258)
apresenta algumas boas sugestões para elaboração de títulos.
Aqui elas aparecem adaptadas e ilustradas com títulos de artigos
publicados em revistas brasileiras que podem ser encontradas na
plataforma Scielo:

· Usar o título para apresentar o tópico do artigo. Ex.:


“O conceito de Estado em Max Weber”.
· O artigo relaciona dois ou mais conceitos: usar o
título para nomeá-los ou afirmar a hipótese sobre
como eles se relacionam. Ex.: “A cor dos eleitos:
determinantes da sub-representação política dos
não brancos no Brasil”.
· O artigo descreve tendências ou padrões: usar o título
para nomear as dimensões contrastantes. Ex.: “Entre
o altruísmo e o familismo: a agenda parlamentar
42 | Pensar com método

feminina e as políticas família trabalho (Brasil, 2003-


2013)”.
· O artigo apresenta um método ou um desenho de
pesquisa novo ou aplica uma técnica em um novo
tópico: mencionar o método e o tópico no título.
Ex.: “Confiança nas Forças Armadas brasileiras: uma
análise empírica a partir dos dados da pesquisa SIPS
- Defesa Nacional”.

Os exemplos acima podem parecer muito simples e pouco


sofisticados, mas o importante é notar como cumprem plenamente
o papel de conquistar o público leitor. Com esse critério em mente
a autora ou autor pode fazer um último teste e perguntar-se: há
palavras no título que podem ser cortadas sem alterar seu sentido?
Ser econômico, neste caso, é uma virtude.

Autoria
A definição do autor/a de um artigo deixou de ser um
problema banal com o advento da atividade coletiva de pesquisa no
século XX. Em algumas áreas do conhecimento, como a filosofia, um
artigo frequentemente é assinado por uma única pessoa. Em outras,
como na medicina ou na física, a autoria pode ser compartilhada
por várias e em alguns casos dezenas ou centenas de cientistas.
O recordista é, provavelmente, um artigo publicado em 2015 na
Physical Review Letters sobre a medida da massa do bóson de Higgs
e que reuniu 5.154 coautores/as. Exageros são comuns e por isso
revistas acadêmicas, associações profissionais e universidades têm
procurado estabelecer regulamentos a respeito. Aqui, opta-se por
uma definição enxuta, a qual tem a vantagem de evitar problemas:
um/a autor/a é alguém que teve um papel importante na produção
do texto, participou ativamente da conceituação ou do design da
pesquisa que deu origem ao artigo, na coleta e análise dos dados,
na preparação do manuscrito e se responsabiliza pelo texto final,
sendo capaz de explicá-lo e defendê-lo perante uma comunidade de
especialistas (ver a respeito Endersby, 1996; Fine & Kurdek, 1993;
Osborne & Holland, 2009).
Outro aspecto importante da autoria é a assinatura. Quem
escreve deve estar ciente de que o nome que escolher para assinar
Como escrever um artigo acadêmico | 43

seus artigos seguirá o mesmo por toda a carreira acadêmica. Em


países de origem ibérica são comuns os nomes compostos e o uso dos
sobrenomes paternos e maternos. O resultado são nomes extensos
que podem gerar grandes problemas na indexação ou na localização
da autoria de textos acadêmicos. Nos países hispânicos, nos quais
a ordem dos sobrenomes paternos e maternos está invertida com
relação aos demais países, a confusão pode ser ainda maior. O
acréscimo do sobrenome de cônjuge também cria dificuldades
adicionais. São comuns os casos nos quais um/a mesmo/a autor/a
tem vários livros nos quais seu nome aparece de forma diferente e
isso gera dificuldades para o reconhecimento da autoria.
Em dissertações e teses a norma é escrever o nome completo.
Essa é uma exigência das autoridades acadêmicas, uma vez que esses
textos são documentos necessários para a obtenção de um título que
será emitido com o nome completo da pessoa. Mas o nome completo
não é necessário em livros ou artigos acadêmicos. Por isso, sugere-se
escolher um “nome acadêmico” curto, de fácil indexação e que não
precise mudar. Duas dicas podem ajudar: 1) dois nomes é o ideal,
três ainda é tolerável, quatro ou mais é exagero; 2) evite abreviações.
Uma vez escolhido esse nome é importante mantê-lo, utilizando-o
em artigos, livros, eventos acadêmicos, conferências, etc.

Resumo e palavras-chave

Editores/as de periódicos acadêmicos com frequência


reclamam dos resumos que acompanham os manuscritos submetidos
para parecer e publicação. Dizem que são mal escritos e não
sintetizam efetivamente o texto do artigo. Eles/as têm razão. Este
elemento pré-textual é frequentemente desvalorizado, considerado
algo menor e, por isso, redigido às pressas. Em publicações científicas,
contudo, o resumo é, depois do título, aquilo que faz o/a leitor/a
decidir a respeito da leitura ou não do artigo. Com a proliferação
das publicações online a importância do resumo tornou-se ainda
maior uma vez que, frequentemente, ele é, juntamente com o título
e a autoria, a única informação gratuita disponibilizada ao público,
o qual somente poderá ver o texto completo se tiver acesso a uma
assinatura eletrônica do periódico.
Em primeiro lugar, é preciso estar ciente de que o resumo não
44 | Pensar com método

é o mesmo que a apresentação ou a introdução ao texto. Também não


é uma passagem que pode ser extraída dos primeiros parágrafos do
artigo ou de sua conclusão. O resumo deve fornecer as informações
básicas e gerais do texto. Deve sintetizar o tema do artigo, o problema
de pesquisa, as hipóteses, como essas hipóteses foram testadas e os
resultados obtidos. O tamanho ideal está entre 100 e 250 palavras,
mas cada revista tem seu próprio padrão, por isso o/a autor/a deve
estar atento/a às normas do periódico. Recomenda-se evitar citações
e referências bibliográficas, abreviações ou acrônimos, informações
que não estão presentes no artigo e frases longas, grandiloquentes
ou desnecessárias.
As palavras-chaves também são importantes. Elas devem
sintetizar o tema do artigo e não teorias ou métodos utilizados (a
menos que estes sejam parte do tema); devem ser no mínimo três
e no máximo seis e pensadas com o objetivo de facilitar a indexação
e a busca em bases de artigos acadêmicos. Palavras-chaves muito
genéricas como “política”, “sociedade”, “conflito”, “guerra”, etc. são
ineficazes. Por outro lado, termos restritos e neologismos também
dificultam uma indexação eficaz. Outra dica: algumas das palavras-
chaves escolhidas, normalmente as últimas, podem ser utilizadas
para delimitar geograficamente o objeto e definir a área de pesquisa
na qual o artigo se insere.
Como escrever um artigo acadêmico | 45

Um bom resumo comentado...

Título: As transformações nas formas de militância no interior do


PT: maior inclusão e menor intensidade.

Autor: Oswaldo E. do Amaral


Resumo: O objetivo deste artigo é avaliar as transformações nas
formas de militância e participação no interior do PT. Analisamos,
em maior profundidade, o surgimento e o desenvolvimento
de duas importantes inovações institucionais trazidas para o
sistema partidário brasileiro pela agremiação: os Núcleos de
Base e o Processo de Eleições Diretas. Por meio da análise de
documentos partidários, de dados de surveys realizados com
a liderança partidária em encontros e congressos nacionais do
PT, demonstramos que atualmente as atividades de militância
interna, embora mais inclusivas, são de intensidade mais baixa do
que nos momentos de fundação e de consolidação do partido e se
deslocaram para as estruturas partidárias vinculadas à competição
eleitoral, como os diretórios municipais.

Palavras-chave: Partido dos Trabalhadores; Organização


partidária; Brasil; Política e governo.

Comentário: O título é sóbrio e sintético, anuncia o tema –


“transformações nas formas de militância no interior do PT” – e
estabelece as duas tendências contrastantes a partir das quais
organizará o argumento – “maior inclusão e menor intensidade”.
O nome do autor tem uma abreviação que poderia ser evitada, a
qual dificultará a indexação se o mesmo resolver assinar artigos
simplificadamente sem a abreviação. O resumo, por sua vez, tem
uma primeira frase desnecessária, uma vez que repete aquilo que já
foi anunciado no título, mas a seguir descreve de maneira apropriada
o objeto da pesquisa – “o surgimento e o desenvolvimento de
duas importantes inovações institucionais [no PT]: os Núcleos de
Base e o Processo de Eleições Diretas” –, os métodos utilizados –
46 | Pensar com método

“análise de documentos partidários, de dados de surveys” – e as


conclusões obtidas – “as atividades de militância interna, embora
mais inclusivas, são de intensidade mais baixa (...) e se deslocaram
para (...) os diretórios municipais. As palavras chaves são precisas e
estão organizadas de maneira apropriada das mais restritas às mais
abrangentes. Atenção para as duas últimas, utilizadas para demarcar
o país objeto da pesquisa – “Brasil” – e a área da pesquisa –, “Política
e governo”.

...e outro muito ruim

Título: Uma teoria marxista do político? O debate Bobbio trent’anni


doppo.

Autor: Alvaro Bianchi

Resumo: O debate aberto por Norberto Bobbio há 30 anos por


meio de uma série de artigos publicados na revista Mondoperaio
levantava dois desafios à teoria marxista da política: 1) Existe uma
teoria marxista da política? 2) Quais as alternativas à democracia
representativa? O debate revelou, por um lado, um elevado grau de
consenso sobre os valores e as regras da democracia liberal e, por
outro, a inexistência entre os participantes do debate de uma teoria
política antagônica à teoria política liberal-constitucionalista. O
presente artigo discute esse debate e desenvolve a hipótese de que
apenas como teoria política negativa o marxismo poderia constituir
uma crítica da política que se afirmasse como o programa teórico
da superação da teoria política de sua época e como o programa
prático da superação da própria política.

Palavras-chave: Norberto Bobbio; Marxismo; Teoria política.


Como escrever um artigo acadêmico | 47

Comentário: Por estar na forma de pergunta o título não é direto.


Além disso, inclui expressão em outra língua – trent’anni doppo –,
e não apresenta de maneira clara ao público o tema do artigo. Para
piorar, o título tem um erro ortográfico – o correto em italiano seria
“dopo”. A primeira frase do resumo fala “30 anos atrás” o que pode
confundir o leitor quanto ao período preciso que o texto investiga.
A síntese não apresenta um recorte histórico e geográfico da
investigação, tampouco a metodologia usada para averiguar suas
hipóteses. A última frase está longa e confusa, diz que vai “discutir
um debate”, “desenvolver uma hipótese”, “construir uma crítica”,
etc.; e repete termos (“superação da teoria política (...) superação
da própria política”) para criar um efeito literário que na prática
atrapalha a compreensão. As palavras-chaves são excessivamente
genéricas.

Texto

A estrutura do texto de um artigo é talvez o maior desa-


fio para quem está começando a escrever academicamente. Isso se
deve à confusão muito comum entre o momento da investigação e
o momento da exposição dos resultados e dos argumentos da pes-
quisa. O momento da investigação exige períodos longos de leitura,
trabalho de campo, coleta e análise dos dados, bem como de do-
cumentos históricos. Muito do que é elaborado nesta fase não fará
sentido no momento seguinte e precisará ser deixado de lado. Isso
porque a seleção daquilo que é relevante para a exposição é uma
atividade específica.
A redação de um artigo depende de uma estratégia e para de-
fini-la é necessário responder algumas perguntas: O que será defen-
dido no texto e com qual recorte? Que evidencias serão usadas para
isso? Com qual percurso narrativo o argumento ficará mais claro e
preciso? Outro aspecto relevante da estratégia de escrita do texto
está relacionado à natureza da investigação realizada e, aqui, outras
perguntas surgem: É necessário, para reforçar os argumentos do tex-
to, descrever informações e dados analisados? É preciso apresentar
o método usado para análise? Necessita-se justificar a escolha dos
métodos e dados usados?
Organizar as ideias antes de começar é importante e, para tal,
48 | Pensar com método

esboçar um sumário do artigo pode ajudar na escrita. Ele pode ser


no formato de um esquema preliminar organizado sob a forma de
itens e subitens para orientar o percurso da redação. A definição de
tópicos deve ser precisa para orientar a produção do texto. Mas o
esboço não deve aprisionar o texto. Às vezes no processo de escrita
surgem ideias melhores do que aquelas iniciais e elas devem ser in-
corporadas ao texto, modificando aquele guia inicial. Para o desen-
ho desse esboço, é prudente deixar de lado metáforas e analogias e
concentrar-se no conteúdo do artigo. Mais tarde, durante a redação,
estes recursos estilísticos podem ser retomados, mas sempre com
vistas a facilitar a compreensão e não para ornamentar o texto ou
exibir erudição.

Modelo IMRAD para a apresentação de pesquisas

Nos últimos anos tem se difundido no Brasil o uso do mo-


delo IMRAD para a apresentação de pesquisas, em especial para a
exposição de resultados de investigações empíricas. Esse modelo,
como a sigla anuncia, consiste de uma estrutura de texto dividida
em “Introdução”, “Materiais e métodos”, “Resultados” e “Discussão”.
A estratégia de escrita de artigos IMRAD é a mais utilizada interna-
cionalmente e possui uma forma padronizada que é frequentemente
identificada como o modelo de artigos acadêmicos por excelência.
O difícil será, portanto, saber quando não usá-la ou limitar-se a ela.
Quando se lança mão de modelos de artigo para escrever é preciso
ter claro que estes não são estruturas rígidas e obrigatórias, e sim
sugestões amplas elaboradas no meio científico a partir de certo
acúmulo e especialização profissional. Os modelos são reflexos dos
processos de padronização pelos quais as ciências passam e, neste
sentido, se transformam com o tempo. Antes de optar por um ca-
minho narrativo na escrita, portanto, é preciso amadurecer no pen-
samento o percurso do trabalho realizado até ali, prestar atenção em
seus pontos fortes e fracos e no que se quer mostrar para a comuni-
dade acadêmica.
Como escrever um artigo acadêmico | 49

Introdução

Nesta seção do artigo são apresentados o tema do trabalho e


sua justificativa, seguidos de um conjunto de explicações bem estru-
turadas e sintéticas a respeito do percurso da investigação. O texto
deve, por exemplo, conter informações contextuais sobre o objeto
estudado, sua duração, persistência e consequências. Além disso,
apresentar de maneira direta os problemas que guiaram a pesquisa
e sua inserção específica na literatura sobre o assunto. Esta locali-
zação mais geral é seguida da apresentação das hipóteses e, normal-
mente, de uma breve síntese das seções seguintes.

Introdução
• Apresentação do tópico.
• Justificativa da pesquisa.
• Problemas que guiaram a investigação.
• Revisão sucinta da literatura.
• Hipóteses tratadas.
• Sumário das seções do artigo.

Materiais e métodos

Esta seção possui um caráter descritivo, ajuda a situar o/a


leitor/a sobre o objeto e o método da pesquisa. Por isso pode trazer,
quando for o caso, detalhes a respeito da amostra, do recorte tem-
poral e espacial da investigação, bem como das fontes documentais
e teóricas usadas. A menos que seja essencial não é preciso anunciar
as metateorias que orientaram a pesquisa e também não é neces-
sário detalhar minuciosamente a abordagem teórica que orientou o
trabalho empírico. Isso pode deixar o texto pesado e fazer com que
ele perca seu rumo. A sagacidade de quem lê, bem como sua capa-
cidade de localizar autores em um contexto intelectual a partir dos
dados fornecidos pelo artigo não deve ser subestimada.
50 | Pensar com método

Na apresentação dos métodos é importante descrever: o


desenho da pesquisa, como os dados foram obtidos e organizados
e as técnicas de análise empregadas. Nos casos em que o artigo visa
contrapor abordagens de outros/as pesquisadores/as é pertinente
apresentar de maneira clara e sucinta as técnicas de análise as quais
se quer criticar. Se a pesquisa possui caráter experimental, cabe des-
crever nesta seção os testes realizados.

Materiais e métodos
• Materiais: descrição do objeto da pesquisa, das
amostras, do tempo e do espaço selecionado, das fontes,
das teorias, etc.
• Métodos: descrição do desenho da pesquisa,
das formas de obtenção e organização dos dados, das
abordagens, das técnicas e das ferramentas utilizadas, dos
testes feitos, etc.

Resultados

No modelo de artigo IMRAD, os resultados são apresentados


em separado e na sequência da apresentação de materiais e méto-
dos. O objetivo desta seção é mostrar os testes aos quais as hipóteses
foram submetidas e de que maneira os dados permitem verificar ou
rejeitar as hipóteses. A seção também serve para destacar em que
medida a pesquisa teve como resultado um conhecimento novo em
relação àquele acumulado anteriormente. Para isso, pode ser inte-
ressante apresentar os dados no formato de tabelas, gráficos ou fi-
guras para facilitar a leitura e interpretação visual dos mesmos. A
apresentação visual dos dados é importante para destacar os resul-
tados obtidos. Por isso requer muito cuidado para evitar falhas nos
dados. A forma adotada deve permitir a visualização sem esforço dos
dados e facilitar as conclusões. Tabelas ou gráficos muito grandes,
com letras e números muito pequenos, dificultam a leitura e podem
atrapalhar a compreensão do argumento.
Como escrever um artigo acadêmico | 51

Resultados
• Avaliação (teste) das hipóteses.
• Apresentação de maneira clara o novo
conhecimento produzido pela pesquisa.
• Tabelas, gráficos e figuras.

Discussão

Esta é a parte final e mais importante do artigo. Aqui é ne-


cessário apresentar e discutir as implicações empíricas e teóricas
dos resultados observados, o que não deixa de ser uma maneira de
justificar a própria relevância da pesquisa realizada. Ao contrário do
que comumente se pensa, não há problema em revelar descobertas
“negativas” com relação às hipóteses ou, ainda, que se trata de uma
pesquisa em andamento ou inacabada. O importante é mostrar ao
público leitor o que foi alcançado até o momento, especialmente as
contribuições do artigo para o campo de conhecimento do objeto
estudado. Para o caso de investigações ainda em andamento, é inte-
ressante propor caminhos possíveis para o futuro e novas problemá-
ticas que podem se desdobrar a partir do que já foi feito.

Adaptando o modelo

O modelo IMRAD funciona melhor para certas áreas do que


para outras. Para aquelas investigações voltadas para a teoria e a
reconstrução histórica é preciso adaptar o modelo e adotar formas
menos estruturadas. Isso porque em certas áreas a separação entre
dados, metodologia e abordagem teórica é bem mais difícil de ser
realizada. Em muitos casos esta separação é desnecessária e até pre-
judicial para a exposição dos argumentos.
Uma solução é manter uma seção de introdução que apre-
sente sumariamente o tópico mais geral e os problemas específicos
investigados, justifique brevemente a pesquisa (aprofundamento em
algo pouco estudado, contestação de uma abordagem, apresentação
52 | Pensar com método

de evidências novas, etc.) e exponha as hipóteses decorrentes. A se-


guir, uma seção separada, pode apresentar a revisão da bibliografia,
as fontes utilizadas, as evidências e argumentos em favor da hipótese
defendida, os contra-argumentos e contraevidências, e, finalmente,
os resultados aos quais a pesquisa chegou. Uma seção conclusiva
pode recapitular as hipóteses, reconstruir sucintamente o argumen-
to, justificar a importância da descoberta e fazer sugestões para pes-
quisas futuras.

Revisão bibliográfica

Artigos de revisão bibliográfica podem adquirir formas mui-


to variadas. A revisão pode recortar um tema e percorrer obras que
tenham contribuído para seu desenvolvimento, ou pode assumir
como objeto de reflexão o trabalho de um único autor ou autora ao
longo do tempo e discutir sua contribuição individual para determi-
nado assunto. Em ambos os casos, é fundamental definir com clareza
o que o texto pretende.
Revisões que abordam um tema e vários/as autores/as terão
de rastrear no campo de estudo as contribuições mais relevantes
em determinado período de tempo; já as que percorrem o trabalho
de determinado autor/as precisarão eventualmente justificar seu
objeto e delimitar um período de tempo e as obras que pretendem
apresentar. De modo geral, espera-se que revisões bibliográficas “de-
finam claramente um problema; sumarizem investigações prévias
para informar sobre o estado da pesquisa; identifiquem relações,
contradições, lacunas e/ou inconsistências na literatura; e sugiram
o próximo passo ou passos para a solução dos problemas” (Publica-
tion, 2010, p. 10).
Revisões bibliográficas feitas sem pesquisa prévia correm o
risco de se tornarem superficiais e, por este motivo, pouco atraentes
para o público. É importante lembrar que o público leitor de artigos
deste tipo normalmente busca nele um guia para aprofundamento e
uma forma de orientar-se diante de uma determinada área de estu-
dos, tema ou trabalho autoral específico. Isso significa que, diferente
de materiais de divulgação genéricos, o artigo de revisão bibliográfi-
ca se caracteriza pelo recorte temático e temporal.
Como escrever um artigo acadêmico | 53

No Brasil, a BIB – Revista Brasileira de Informações


Bibliográficas em Ciências Sociais, é especializada na
publicação de revisões bibliográficas. Seguem alguns
exemplos de revisões publicadas nessa revista:

ABU-EL-HAJ, Jawdat. O debate em torno do capital social: uma


revisão crítica. BIB – Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências
Sociais, n. 47, p. 65-79, 1999.

ALONSO, Angela; COSTA, Valeriano. Ciências Sociais e Meio


Ambiente no Brasil: um balanço bibliográfico. BIB – Boletim
Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, v. 53, n. 1, p. 35-78,
2002.

ARRETCHE, Marta TS. Emergência e desenvolvimento do Welfare


State: teorias explicativas. BIB – Boletim Informativo e Bibliográfico
de Ciências Sociais, n. 39, p. 3-40, 1995.

CHILCOTE, Ronald. Teoria de classe. BIB – Boletim Informativo e


Bibliográfico de Ciências Sociais, n. 39, p. 85-101, 1995.

COELHO, Magda Prates; VALADARES, Lícia do Prado. Pobreza


Urbana e Mercado de Trabalho: uma Análise Bibliográfica. BIB
– Boletim Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, n. 14, p.
1-80, 1982.

LIMONGI, Fernando. O novo institucionalismo e os estudos


legislativos: a literatura norte-americana recente. BIB – Boletim
Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais, v. 37, p. 3-38, 1994.

Na estrutura de um artigo de revisão bibliográfica, além da


apresentação do problema/tema/autor/a é importante sumarizar
os esforços prévios de sistematização do mesmo assunto. Se exis-
tem outras iniciativas de revisão bibliográfica com temas semelhan-
tes ao do artigo que se pretende escrever é importante mencionar
e justificar o que levou a um novo trabalho sobre o mesmo assunto.
54 | Pensar com método

Ao fazer este levantamento e justificar seu artigo, é possível indicar


as lacunas e inconsistências da literatura prévia, além de apontar as
contribuições possíveis de seu trabalho para preencher estes vazios.
No mesmo sentido, a conclusão do texto pode apontar pon-
tos para aprofundamento em trabalhos futuro. Por que fazer isso?
Esta é uma forma de deixar claro que nenhuma revisão bibliográ-
fica é definitiva e que o artigo pretende cobrir aspectos do assunto
escolhido. Apesar da “provisoriedade” de toda revisão bibliográfica,
isto não impede o artigo de propor classificações do campo, autores
ou métodos com que se investigou determinado objeto ao longo do
tempo. Aliás, o esforço classificatório pode ser considerado um dos
pontos fortes das revisões.
Importante: um artigo de revisão bibliográfica pode ser es-
crito a partir de excertos metodológicos de uma dissertação ou tese,
mas não é o mesmo que o “capítulo teórico” ou “metodológico” des-
tas já que – como visto – possui uma estratégia de escrita específica.

Elementos pós-textuais

Referências bibliográficas

A organização e apresentação adequada das referências bi-


bliográficas é um sinal importante de que o artigo foi bem redigido
e acabado. O trabalho com as referências no texto envolve dois mo-
mentos: 1) a escolha das fontes (edições completas, boas traduções,
fontes jornalísticas relevantes, artigos e livros importantes e atuais
sobe o assunto discutido, etc.); e 2) a apresentação das referências.
Este trabalho exige certa disciplina que só se torna espontâneo com
o passar do tempo e o amadurecimento da atividade intelectual. Di-
cionários, enciclopédias ou sites de divulgação, como Wikipedia e
InfoEscola, devem ser evitados, a menos que a pesquisa seja sobre
eles, ou que sejam as fontes primárias da investigação, como ocorre
em alguns ramos da chamada história das ideias.
Quando o artigo é escrito a partir de uma investigação em
andamento ou concluída, o trabalho com as referências é facilitado
se as diversas fontes bibliográficas que foram coletadas ao longo da
pesquisa são centralizadas em uma base de dados. Uma forma cada
vez mais comum de fazer isso é por meio de softwares como Zotero,
Como escrever um artigo acadêmico | 55

Mendeley, Endnote, etc. O uso destas ferramentas – algumas são gra-


tuitas, outras não – pode parecer incômodo no início, mas facilita o
processo de escrita. Elas permitem reunir todas as referências lidas,
usadas ou consultadas; em seguida, é possível acessá-las durante o
processo de redação para citá-las no texto; por fim, o próprio sof-
tware relaciona todas as referências citadas ao final do artigo, garan-
tindo que tudo o que foi citado apareça listado nas “Referências bi-
bliográficas”. Uma vantagem adicional do uso desses softwares é que
eles permitem a formatação das referencias de acordo com vários
padrões (ABNT, APA, MLA, Chicago, etc.) e é possível mudar o padrão
de todo o documento com apenas um clique.
Em todo caso, o mais importante é relacionar previamen-
te as fontes na forma de referências; garantir que nenhuma infor-
mação esteja faltando em cada uma, tais como: cidade da edição,
editora, ano da obra (para os livros); numeração das páginas, nú-
mero do volume e da edição (para os artigos); data precisa do ar-
tigo e link quando houver (para os textos jornalísticos), etc. Todas
as informações requeridas para preencher corretamente uma re-
ferência, bem como a ordem na qual devem aparecer, estão dispo-
níveis nos manuais da Associação Brasileira de Normas Técnicas
(ABNT) e, em muitos casos, também nos sites dos periódicos. Im-
portante: sempre verificar as normas estabelecidas pelos periódi-
cos, pois elas podem variar em relação ao estabelecido pela ABNT
e, neste caso, é aconselhável seguir as regras da revista acadêmica
para qual o artigo será submetido.
Uma última dica: quando a redação do artigo for concluída,
vale percorrer o texto uma última vez para verificar se todas as ci-
tações estão relacionadas nas referências bibliográficas ou, ao con-
trário, se existem referências que constam na relação, mas não foram
usadas no texto. Apenas as obras efetivamente citadas ao longo do
texto devem constar da listagem das referências bibliográficas ao fi-
nal do artigo.

Edição

Na redação de um artigo acadêmico, a primeira versão com-


pleta do texto está longe de ser a última. Algumas pessoas adotam
a prática de revisar seu artigo várias vezes, antes mesmo dele es-
56 | Pensar com método

tar finalizado, em uma espécie de artesanato intelectual. Mesmo


assim, depois de concluída uma versão completa o texto do artigo
precisa ser editado (para inclusão, exclusão ou mudança na ordem
do texto) e revisado mais uma vez (para correção ortográfica e ade-
quação às normas).
Para edição do texto, é preciso realizar uma leitura atenta
conferindo se a exposição é logicamente consistente, se os dados ci-
tados são suficientes para testar as hipóteses e se não há saltos ou
lacunas no argumento que enfraqueçam a apresentação dos resulta-
dos obtidos. Acrescentar mais dados ou escrever mais páginas nem
sempre melhora a exposição do argumento. Mais importante do que
aumentar a quantidade de dados citados em um artigo é verificar a
força deles na estratégia de argumentação escolhida.
A revisão ortográfica, gramatical e estilística é imprescindível.
Corretores ortográficos podem ajudar, mas também podem induzir
ao erro. Por isso, nada substitui a leitura com o lápis na mão. Embora
leiam bastante, são raros/as os/as acadêmicos/as dedicados/as ao
estudo de vários estilos de escrita na área. Apenas por meio da expe-
riência é possível familiarizar-se com a percepção do que “soa bem”
e o que “soa mal”, quando algo no texto é adequado ou não, ou seja,
ser capaz de “editar de ouvido” um texto, como diz Howard S. Becker
(2015, pp. 103-104).
Essa é uma habilidade que pode ser aprendida e desenvol-
vida, ainda, por meio do trabalho editorial em revistas acadêmicas.
Em vários programas de pós-graduação existem revistas acadêmicas
dirigidas por estudantes. Participar delas pode contribuir para um
conhecimento mais aprofundado de todo o processo editorial. A lei-
tura de artigos acadêmicos de áreas variadas também pode ajudar
a desenvolver uma maior sensibilidade e a assimilar melhor certos
padrões de escrita que podem servir como normas. Mas é importan-
te não fixar a leitura em um único tema ou uma única área. A plurali-
dade de recursos é importante para evitar vícios de linguagem e um
discurso muito padronizado.
Como escrever um artigo acadêmico | 57

Pesquisar, escrever, dialogar

Com tempo, aquilo que parece difícil na composição de um


artigo acadêmico acaba se tornando parte espontânea da rotina
de trabalho. Pesquisar também é escrever. A prática faz com que
o desenho do artigo passe a se desenvolver no momento mesmo
da investigação. Além disso, a rotina da escrita permite que o pes-
quisador sinta confiança em discutir os temas sobre os quais pes-
quisa e escreve em seus círculos de trabalho e amizade. Também
é importante lembrar que comunidades acadêmicas colaborativas
tornam a produção do texto muito mais fácil e o trabalho menos pe-
noso e isolado. Foi neste sentido que Howard S. Becker alertou para
a necessidade de uma teoria da organização social da escrita como
atividade profissional, pois desconfiava que as formas tradicionais
de organização do trabalho acadêmico tenderiam a “privatizar” a
redação profissional:

(...) os/as autores/as de ciências sociais não desenvolvem uma


cultura, um conjunto de soluções comuns para seus problemas
coletivos. E assim nasce uma situação que tem sido chamada
de ignorância pluralista. Todo mundo acha que todos os outros
estão aprontando o texto para entrega-lo no prazo. Guardam suas
dificuldades para si mesmos. Talvez esta seja uma das razões pelas
quais os cientistas sociais e outros acadêmicos escrevem num
isolamento tão grande (Becker, 2015, p. 45).

A prática da pesquisa coletiva, cada vez mais comum em


laboratórios, centros e grupos de pesquisa favorece o desenvolvi-
mento da escrita coletiva. Quando as atividades de investigação se
coletivizam, os trabalhos individuais se desenvolvem melhor tanto
no processo de pesquisa como na apresentação dos resultados. A
conformação da dinâmica de trabalho acadêmico coletivo, contu-
do, não é fácil e exige muita paciência e esforço comum. Quando o
artigo nasce de uma pesquisa que envolveu várias pessoas e é assi-
nado por mais de uma delas é conveniente que seja discutido cole-
tivamente pelos/as autores/as durante as várias fases de sua pro-
dução, mesmo quando nem todos participem diretamente de sua
redação. Mas o trabalho de redação pode envolver outras pessoas
mesmo quando apenas uma assinará o artigo. A leitura de um texto
58 | Pensar com método

por alguém que não está envolvido/as diretamente com ele pode
ajudar. Não é necessário que esses leitores e leitoras participem di-
retamente do processo da pesquisa ou da escrita de um artigo, nem
que sejam necessariamente especialistas no tema. Basta que sejam
atentos/as, tenham uma visão abrangente das ciências sociais e
se dediquem a ler o trabalho alheio com o mesmo afinco com que
leem o próprio texto. Uma relação de confiança entre quem escreve
e quem lê as versões preliminares é, entretanto, essencial.
A criação de práticas de trabalho coletivo é um processo difí-
cil. Nas instituições acadêmicas predominam muitas vezes relações
de trabalho marcadas por uma cordialidade superficial, pela compe-
tição e pelo individualismo. Às vezes há pouco espaço para a crítica
e a troca livre de ideias, o que impede a formação de um ambiente
aberto ao diálogo construtivo. Quando esta relação de reciprocida-
de se estabelece, ao contrário, as atividades de pesquisa e de escrita
ganham contornos novos, se convertem em um diálogo permanente
que ultrapassa o artigo e se deslocam no tempo, promovendo o des-
envolvimento acadêmico e científico, além de tornar a vida universi-
tária muito mais agradável.

Referências bibliográficas

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Como escrever um artigo acadêmico | 59

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Publication. 2010. Manual of the American Psychological Associa-
tion. 6th ed. Washington, D.C.: American Psychological Association.
A interpretação na ciência política

Frederico de Almeida

Introdução

Proposta desde os escritos metodológicos de Max Weber


(1972, 1991a, 1991b, 1999) e muito influente na sociologia e na
antropologia graças às contribuições de autores como Howard
Becker (1968, 1993, 1998, 2009, 2014) e Clifford Geertz (1973,
1983, 1989), a análise interpretativa recebe pouca atenção no
debate sobre métodos qualitativos em ciência política (Adcock,
2003; Cuevas Valenzuela; Paredes, 2012; Cuevas Valenzuela;
Yanow, 2012; Yanow, 2003). O objetivo deste capítulo é apresentar
alguns pressupostos, conceitos e noções básicos que permitem
a análise interpretativa da política. Para isso, em primeiro lugar,
apresentarei alguns fundamentos da análise interpretativa em
Weber, Becker e Geertz, autores recorrentemente referenciados
pelos interpretativistas políticos contemporâneos. Na sequência,
apresentarei um panorama do debate recente sobre a interpretação
na análise política, especialmente na forma como é apresentada por
Gary King, Robert O. Keohane e Sidney Verba (1994), e nas críticas
a essa abordagem feita por Dvora Yanow (2003) e outros autores
ligados ou em interlocução com a Qualitative Methods Section da
American Political Science Association (APSA-QM). Ao fim, sintetizarei
as potencialidades da análise interpretativa e enumerarei técnicas,
modos de análise e objetos sobre os quais ela tem sido aplicada com
sucesso.

Fundamentos da análise interpretativa nas ciências sociais

Para Weber (1991a), a ciência social tem por objetivo o


conhecimento da realidade concreta, em sua dimensão singular; em
seu contexto universal; e em seu desenvolvimento histórico a partir
de outras configurações singulares, o que deve fazer por meio da
explicação de seu significado cultural e das suas relações causais.
Essa síntese do projeto epistemológico das ciências sociais segundo
62 | Pensar com método

Weber agrega diferentes elementos, detalhados na sequência, que


estão na base de muitas divergências contemporâneas sobre a
análise interpretativa em ciência política, como veremos no tópico
seguinte.
Quando fala em dimensão singular da realidade concreta,
Weber está chamando atenção para o caráter histórico de sua
configuração, como conjunto de elementos particulares e como
objeto de interesse – ou seja, a historicidade dos fenômenos sociais
impõe ao analista a impossibilidade de considerá-los universais,
enquanto objetos do conhecimento sociológico, e dessa forma,
também a impossibilidade de identificação de “leis gerais” para
sua explicação. Por outro lado, e portanto, ao falar em contexto
universal desses fenômenos, Weber não está se referindo à noção de
invariabilidade no tempo e no espaço: ele se refere, na verdade, à ideia
de cultura, como um sistema de valores que dá ao fenômeno social
sua significação enquanto fenômeno específico (ou seja: importante
em determinada configuração social concreta) e enquanto objeto
de estudo das ciências sociais (ou seja: dotado de uma importância
que é atribuída pelo pesquisador, dentre tantos fenômenos sociais
e tantas relações possíveis desses fenômenos com seus contextos
culturais históricos). Nesse aspecto, a noção de cultura se opõe à de
natureza e, da mesma forma, as “ciências da cultura” devem operar
de maneira distinta das “ciências da natureza” (Weber, 1991a).
Compreender o significado cultural de um fenômeno social
específico, portanto, é compreendê-lo de acordo com o sistema de
valores de seu contexto cultural e histórico; ou seja, compreender seu
sentido. Isso acontece de duas formas, segundo Weber: conhecendo
o valor que os homens que experienciam aquele fenômeno dão a
ele, individualmente ou na média aproximada de ações praticadas
por indivíduos em uma certa quantidade de casos analisados; mas
também pela construção lógica e racional que o analista faz do
sentido que o mesmo fenômeno adquire quando relacionado ao seu
contexto social em determinada configuração histórica, por meio da
construção analítica de tipos puros de ação e de agentes, capazes
de sintetizar e abstrair a particular composição de elementos
empiricamente analisados em situações históricas concretas (Weber,
1991a, 1999).
A sociologia como interpretação é, portanto, uma forma de
compreensão, uma atividade intelectual de atribuição de sentido às
A interpretação na ciência política | 63

ações sociais, ou seja, aos comportamentos humanos relacionais


entre agentes (Weber, 1999). Na epistemologia de Weber, a
interpretação tem importância científica em si mesma, na medida
em que permite conhecer a especificidade de um fenômeno,
sua complexidade como articulação de diferentes elementos e a
particularidade dessa articulação em determinado tempo histórico.
Por ser uma atividade humana que incide sobre outras ações
humanas, a interpretação sociológica não está isenta aos valores e à
subjetividade do analista, e não pretende encontrar uma “realidade
objetiva” ou a “verdade absoluta” (Weber, 1972, 1991b, 1991a).
Isso não quer dizer que ela seja meramente especulativa, parcial ou
subjetiva, ou ainda exclusivamente dependente da capacidade do
analista de “reviver” plenamente a ação estudada; ela deve se basear
em evidências empíricas e na atividade intelectual de reconstrução
lógica de um sentido racionalmente inteligível, mesmo quando não
há evidências suficientes para abarcar uma compreensão de todos
os elementos explicativos da ação (Weber, 1999). A compreensão do
sentido não deve apenas expressar o sentido vivido pelos agentes
estudados e apreendido empiricamente, ainda que parcialmente,
pelo pesquisador; ela deve buscar reconstruir os elementos
“exteriores” (ou seja: não relacionados à psique dos agentes ou ao
motivo expressamente visado por eles) que configuram o contexto
cultural da ação e estabelecer, ainda que por imputações meramente
intelectuais, deduções lógicas e outras operações de conhecimento
racional (como a analogia) um sentido que, explicado pelo analista
ao seu público, faça sentido, seja compreensível:

“Compreensão” significa em todos estes casos: apreensão


interpretativa do sentido ou da conexão de sentido: a) efetivamente
visado no caso individual (na consideração histórica), ou b) visado
em média e aproximadamente (na consideração sociológica em
massa), ou c) o sentido ou conexão de sentido a ser construído
cientificamente (como “ideal-típico”) para o tipo puro (tipo ideal)
de um fenômeno frequente (Weber, 1999, p. 6).

Porém, como vimos anteriormente, além de compreender,


pela interpretação, o sentido dos fenômenos sociais, as ciências
sociais (ou da “cultura”) podem e devem estabelecer relações causais
entre fenômenos. Essas relações, na sociologia de Weber, podem se
dar em dois níveis. O primeiro é o da ação social: uma motivação é
64 | Pensar com método

a causa de uma ação, de grupos ou indivíduos. O segundo nível de


causalidade apreensível pela análise sociológica é histórico: um
fenômeno social anterior causa um fenômeno que lhe sucede no
curso de um processo de desenvolvimento histórico (Weber, 1991a).
Se há hierarquia entre essas duas operações – atribuição de
sentido e identificação de causalidades – ela existe, para Weber, de
forma a privilegiar a primeira como tarefa essencial das ciências
sociais enquanto ciências da cultura:

Quando se trata da individualidade de um fenômeno, o problema


da causalidade não incide sobre as leis, mas sobre conexões causais
concretas; não se trata de saber a que fórmula se deve subordinar
o fenômeno a título de exemplar, mas sim a que constelação deve
ser imputado como resultado. Trata-se, portanto, de um problema
de imputação. Onde quer que se trate de explicação causal de um
“fenômeno cultural” – ou ainda de uma “individualidade histórica”
(…) –, o conhecimento das leis da causalidade não poderá constituir
o fim mas antes o meio do estudo. Ele facilita e possibilita a imputação
causal dos elementos dos fenômenos, tornados importantes para a
cultura pela sua individualização, às suas causas concretas. É apenas
na medida em que presta esse serviço que poderá ter valor para o
conhecimento das conexões individuais. E quanto mais “gerais”, isto
é, abstratas, são as leis, menos contribuem para as necessidades
da imputação causal dos fenômenos individuais e, indiretamente,
para a compreensão da significação dos acontecimentos culturais.
(Weber, 1991a, p. 37, com destaques no original).

Esses argumentos de Weber a respeito da causalidade e da


capacidade de generalização serão importantes quando avançarmos
no debate sobre a interpretação na ciência política contemporânea,
na seção seguinte. Por enquanto, introduzo uma outra concepção de
sociologia interpretativa, a de Howard Becker, diretamente tributária
da concepção weberiana.
Digo que a proposta da sociologia interpretativa de Becker é
tributária de Weber pelo seu foco na ação social pensada como ação
humana baseada em articulação entre meios e fins e voltada para a
interação com outros indivíduos e grupos. Becker (1968, pp. 197-
198) define quatro “regras” não-exaustivas do método interpretativo:
(i) atenção seletiva e preferencial para ações sociais (que envolvem
interação, portanto), e menos para ações humanas em geral; (ii)
A interpretação na ciência política | 65

foco preliminar no que pareça ser o objetivo ou a motivação da


ação social, conforme expressos pelos atores estudados; (iii) esforço
de caracterização da situação social na qual a ação estudada se
desenvolve, com distinção analítica de fatores predominantes na
caracterização da situação; e (iv) identificação e articulação dos
aspectos mais relevantes do sistema de valores que caracteriza a
situação social, os objetivos almejados pela ação e os sentidos que as
condutas situadas socialmente adquirem.
No que se refere ao primeiro aspecto (i), Becker (1968,
p. 198) enfatiza a ação social como comunicação de sentidos entre
indivíduos por meio de símbolos, mesmo que não verbais ou
implícitos, e mesmo quando esses elementos da ação social não são
diretamente observáveis ou sejam apreensíveis por um deixar de
agir – essas considerações serão importantes para compreendermos
o debate sobre a interpretação na ciência política, no tópico seguinte,
em face de certos pressupostos sobre empiria, realidade observável
e método científico que são dominantes na disciplina.
No que se refere ao segundo aspecto (ii), Becker retoma
novamente Weber para estabelecer “modelos de ação”, que sirvam
como parâmetro ideal para a análise da ação concretamente analisada,
formulados com base em sua maior ou menor racionalidade de meios
e fins. Um primeiro tipo de ação seria aquela orientada por uma
“racionalidade conveniente” ou “adequada” (expedient rationality),
ou seja, por princípios de economia de esforços, eficiência e recusa
a efeitos secundários não desejados (Becker, 1968, p. 199). Outro
tipo de ação social seria aquele orientado por uma “racionalidade de
valores” (value-rationality) ou “sancionada” (sanctioned rationality),
segundo a qual a ponderação de economia de esforços e eficiência
é limitada pelo valor que o agente atribui ao fim da ação em si
mesmo, ou seja: a importância dos fins não justifica o emprego de
quaisquer meios, que serão limitados por valores ou princípios do
agente (Ibid., p. 200). Becker ainda diferencia dois tipos de ação que
poderiam ser consideradas irracionais (ou não-racionais), na medida
em que não se baseiam em nenhuma ponderação de meios e fins: a
ação tradicional, fortemente baseada em valores e na qual os meios
se sobrepõem aos fins, tornando-se fins em si mesmos; e a afetiva,
movida por paixões “privadas”, ou seja, por uma sobreposição de
meios, fins e motivações não comunicáveis simbolicamente em um
sistema compartilhado de valores.
66 | Pensar com método

Quanto à necessidade de caracterização da situação social na


metodologia interpretativa (iii), Becker aponta pelo menos quatro
elementos que devem ser considerados pelo analista: o objeto social,
ou seja, o ator individual ou coletivo a quem a ação (considerada como
interação) se dirige; o método social, que seria o conjunto de meios
discursivos e racionalidades empregadas para atingir o objetivo
referente ao objeto da ação; os instrumentos sociais, que seriam os
elementos materiais e simbólicos que colocam o método em ação,
estabelecendo concretamente a comunicação que caracteriza a
interação social; e a resposta social, que seria o resultado (ou conjunto
de resultados possíveis) da ação esperado pelo agente.
Por fim, a quarta regra do método interpretativo (iv)
impõe ao analista o desafio de delimitar a extensão e as conexões
possíveis entre ação, situação e contexto, de modo a captar o quadro
social mais amplo no qual a ação acontece, e os elementos desse
quadro social que atuam na situação e na ação analisadas (Becker,
1968, pp. 203-204). Em outras palavras, de certa maneira esse
é o mesmo desafio da compreensão, conforme vimos em Weber:
a necessidade e a capacidade do analista em delimitar todas as
relações entre elementos da ação, da situação e de contextos mais
amplos que, mesmo que extrapolem aqueles percebidos e vividos
conscientemente pelos atores estudados, ajudam a imprimir a uma
ação um sentido social inteligível.
Becker alerta que o “todo social” em relação ao qual a ação
estudada deve ser enquadrada é um “todo” apenas por definição, ou
seja, por um estabelecimento relativamente arbitrário e analítico
que torne a interpretação possível e empiricamente justificada.
Por outro lado, Becker sugere que esse “todo” pode ser, em geral,
associado à ideia de “estrutura social” e pensado em termos de
tipos de sociedade – que no texto aqui citado ele classifica em
“sociedades sagradas” ou “sociedades seculares” (Ibid., p. 205),
mas que podem ser pensadas em termos de “sociedades agrárias”,
“industriais”, “dependentes”, “coloniais”, “capitalistas”, etc. –,
ou seja, como um arranjo analítico logicamente estruturado e
empiricamente fundamentado de elementos de organização de
uma sociedade que ajudem a explicar a ação social, os seus sentidos
e a sua relação com as situações e os contextos mais amplos. Uma
dica importante apontada por Becker é buscar encontrar nas
racionalidades das ações os elementos culturais e de valores que
A interpretação na ciência política | 67

permitam conectar motivações, ações e situações a elementos da


estrutura social mais amplamente considerada.
O problema (que já foi apresentado por Weber, como vimos
anteriormente) do particular e do geral, da especificidade e da
universalidade, da ação particularmente analisada e da capacidade
da ciência social em fornecer explicações abrangentes sobre o
funcionamento da sociedade aparece para Becker (1968, p. 205)
como o risco de que cientistas sociais se tornem profetas. Esse risco
existe, segundo ele, por duas razões principais: o inumerável (e
inevitavelmente imponderável) conjunto de fatores de uma única
situação analisada; e a variabilidade de importância e intensidade
que esses mesmos fatores (mesmo quando de alguma forma
delimitados pelo analista) podem assumir em diferentes situações
empiricamente consideradas. A solução para esse desafio, segundo
o autor, está na capacidade da interpretação sociológica em
estabelecer, com rigor lógico e evidências empíricas, afirmações
sobre os fenômenos sociais particulares estudados, que permitam
estabelecer probabilidades (não necessariamente afirmadas com
precisão estatística ou expressas em termos numéricos) de sua
recorrência em condições (situações, contextos, elementos da
ação) semelhantes.
Trata-se, portanto, de substituir a tentação da profecia pela
capacidade de predição (literalmente: de “pré-dizer”) legítima:

Sociólogos não são profetas, pois eles consideram que configurações


e acontecimentos únicos estão sempre além do entendimento
científico. No entanto, pelo uso de técnicas adaptadas à previsão
legítima, esperam ser capazes de afirmar as condições limitativas
sob as quais qualquer fenômeno, por mais singular que seja,
provavelmente acontecerá. Além disso, a atenção explícita à lógica
da predição, que é essencialmente a lógica da probabilidade, retira
a sua análise das situações vagas e epistemologicamente ambíguas
nas quais a referência a “sequências causais” as colocaria de outra
forma. Colocando seus resultados de forma preditiva, eles tornam
possível para os outros verificarem a validade de suas conclusões,
de maneiras que não seriam possíveis de outras formas. (Becker,
1968, pp. 212-213)

Gostaria de enfatizar mais alguns elementos da visão de


Becker sobre a análise interpretativa que têm relação com isso. O
68 | Pensar com método

primeiro ponto é o de que a análise qualitativa feita nesses termos não


busca provar de maneira incontestável uma relação particular entre
variáveis, “mas sim de descrever um sistema de relações, de mostrar
como as coisas interagem dentro de uma rede de influência múltipla
ou suportam uma relação de interdependência ou qualquer coisa”
(Becker, 2014, p. 188). Esse é um aspecto importante que diferencia
a análise interpretativa de outros paradigmas metodológicos
reivindicados como “mais científicos” no debate contemporâneo.
O segundo ponto tem a ver com a forma como o pesquisador
que opta por uma metodologia qualitativa/interpretativa lida com
a coleta de dados. Ao contrário da pesquisa feita por surveys, por
exemplo, o pesquisador qualitativista/interpretativista não sabe
de antemão quais informações irá coletar e deve estar aberto à
profusão e à multiplicidade dos dados e informações não previstas
que possam ser transformadas em dados. Isso não quer dizer que a
pesquisa não esteja baseada em modelos prévios ou em hipóteses
sobre relações pressupostas, por mais complexas que sejam, e que de
certa forma orientam o olhar do analista-intérprete; contudo, nesse
tipo de análise o pesquisador deve esperar “continuar a acrescentar
variáveis e ideias aos seus modelos. E, de alguma forma, essa é a
essência do seu método” (Becker, 2014, p. 188).
O terceiro ponto, que se relaciona com o anterior, versa sobre
a relação entre métodos e dados ou, mais especificamente, entre
interpretação e fatos. Segundo Becker (2009), a intepretação é uma
representação da sociedade, assim como o são a fotografia, o cinema,
a música, os mapas e os censos estatísticos. Nesse sentido, torna-
se difícil distinguir interpretações de fatos, já que cada fato (que já
é selecionado um tanto arbitrariamente pelo analista, entre uma
multiplicidade deles) enseja ele mesmo diferentes interpretações.
Sob essa perspectiva, portanto, a atividade científica nas ciências
sociais deve ser concebida como o trabalho de construção de uma
representação ou um relato da sociedade (ou de um fenômeno
social específico), “um dispositivo que consiste em declarações
de fato, baseadas em evidências aceitáveis para algum público,
e intepretações desses fatos, igualmente aceitáveis para algum
público” (Ibid., p. 26).
O terceiro autor recorrentemente citado entre os
interpretativistas políticos contemporâneos é o antropólogo
Clifford Geertz. Embora as reflexões de Geertz tenham claramente
A interpretação na ciência política | 69

por objeto a antropologia e a etnografia, acredito que elas podem


ser úteis para situar o debate sobre a interpretação nas ciências
sociais em geral, e em especial na ciência política. Em primeiro
lugar, porque é possível tratar como em parte equivalentes, em
termos epistemológicos, etnografia e análise qualitativa, como
o faz Becker (2014); em segundo lugar, porque Geertz situa sua
discussão sobre a interpretação no contexto mais amplo de um “giro
interpretativo” nas ciências sociais e nas humanidades (Negueruela
Avellà, 2012), contemporâneo dos seus escritos, e de uma crítica ao
“operacionalismo como dogma metodológico das ciências sociais”
(Geertz, 2008, p. 4); e em terceiro lugar, porque um breve panorama
de sua visão da interpretação nas ciências sociais retoma alguns
aspectos já abordados anteriormente, especialmente o problema da
inteligibilidade (Weber) ou aceitabilidade (Becker) da interpretação
como compreensão (Weber) e representação (Becker) da sociedade,
e o problema da relação entre o pesquisador e seus dados.
O objeto de uma análise interpretativa, segundo Geertz
(2008, p. 4), é a cultura, entendida em termos weberianos:

Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal


amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo
a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não
como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente
uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais
enigmáticas na sua superfície.

A ideia de cultura com a qual Geertz trabalha recusa uma


abordagem ontológica desse objeto, ou seja, como algo externo à
compreensão dos agentes (sejam os “nativos” pesquisados, seja
o pesquisador). Não se trata, portanto, de reificá-la, como uma
“realidade ‘superorgânica’ autocontida, com forças e propósitos
em si mesma”, nem tão pouco de reduzi-la a um “padrão bruto de
comportamentos” empiricamente observáveis (Geertz, 2008, p.
8); mas sim de buscar compreender seus significados públicos, sua
importância social.
A análise etnográfica (que, repito, trato aqui como equivalente
a uma análise interpretativa “em geral”) consistiria, portanto,
em um trabalho seletivo, por parte do intérprete, de estruturas de
significação dos fenômenos estudados, estabelecendo sua base social
70 | Pensar com método

e sua importância. Daí a conhecida definição de Geertz da etnografia


como descrição densa: a leitura de uma realidade composta de uma
multiplicidade de estruturas conceituais complexas, sobrepostas
e interconectadas, “simultaneamente estranhas, irregulares e
inexplícitas” (Geertz, 2008, p. 7).
A ideia da interpretação como leitura de “um manuscrito
estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos” (Ibid., p. 7) não é uma mera
analogia ou metáfora da cultura como um texto: o conceito simbólico,
semiótico de cultura de Geertz considera o discurso – compreendido
como conjunto articulado de signos que permitem a comunicação
pública de sentidos –, a base empírica da interpretação, que permite
ao intérprete a compreensão do contexto da ação humana:

Visto sob esse ângulo, o objetivo da antropologia é o alargamento


do universo do discurso humano. De fato, esse não é seu único
objetivo – a instrução, a diversão, o conselho prático, o avanço moral
e a descoberta da ordem natural no comportamento humano são
outros, e a antropologia não é a única disciplina a persegui-los. No
entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico
se adapta especialmente bem. Como sistemas entrelaçados de
signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorando as
utilizações provinciais), a cultura não é um poder, algo ao qual
podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os
comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto,
algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível –
isto é, descritos com densidade. (Geertz, 2008, p. 10)

A proposta de Geertz traz consigo elementos importantes


para enfrentar imperativos epistemológicos que se apresentam no
campo das ciências sociais em geral, e para a análise interpretativa
em especial. Esses imperativos têm a ver, no geral, com as exigências
de objetividade e verificabilidade do conhecimento empiricamente
construído. O caráter público do objeto da interpretação é um
primeiro aspecto metodológico importante a ser enfatizado: “a
cultura é pública porque o significado o é” (2008, p. 9). Não se
trata, portanto, de interpretação de sentidos subjetivos de ações
individuais, mas sim de seus significados públicos, apreensíveis por
uma observação atenta e inteligíveis a partir de uma descrição densa.
O segundo aspecto metodológico importante a ser enfatizado
A interpretação na ciência política | 71

diz respeito à posição do intérprete. “Situar-se”, ou “tentar formular


a base na qual se imagina, sempre excessivamente, estar situado,
eis no que consiste o texto antropológico como empreendimento
científico” (Geertz, 2008, p. 10). Trata-se de descrever o ponto de
vista do ator – a descrição de seus atos em seus contextos, buscando
revelar seus significados públicos – de uma maneira empática –
retomando a ideia de verstehen, presente também em Weber –, mas
tendo claro que o lócus do estudo não se confunde com o objeto do
estudo: “os antropólogos não estudam as aldeias (tribos, cidades,
vizinhanças...), eles estudam nas aldeias” (Ibid., p. 16). “Estar ali”,
no local onde o objeto cultural se manifesta em sua particularidade,
é mais do que uma condição de presença física da etnografia, mas
depende também de que o intérprete se reconheça não somente
como escritor – alguém que inscreve, registra, um escriba – mas
também como autor do texto etnográfico – alguém que explicita
significados públicos, mas de maneira distinta da vivida e relatada,
por meio de uma representação e uma interpretação de fatos, e que
portanto autoriza aqueles significados (Geertz, 1989).
Em uma condição de trabalho científico na qual objetividade e
subjetividade se enfrentam de maneira tão complexa, como resolver
o problema da verificabilidade dos resultados de pesquisa, uma
das exigências mais presentes nas práticas científicas modernas?
Segundo Geertz:

A exigência de atenção de um relatório etnográfico não repousa


tanto na capacidade do autor em captar os fatos primitivos em
lugares distantes e levá-los para casa como uma máscara ou um
entalho, mas no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre
em tais lugares, para reduzir a perplexidade — que tipos de homens
são esses? — a que naturalmente dão origem os atos não-familiares
que surgem de ambientes desconhecidos. Isso naturalmente levanta
alguns problemas sérios de verificação — ou, se “verificação” é uma
palavra muito forte para uma ciência tão soft (por mim eu preferiria
“avaliação”) — de que maneira diferençar um relato melhor de um
pior. (Geertz, 2008, p. 12)

Portanto, o problema da verificabilidade se resolve
parcialmente, na proposta de Geertz, pela capacidade do intérprete-
autor em inscrever o discurso social, em “anotá-lo”, registrar de
maneira estável e inteligível um fluxo de acontecimentos observados,
72 | Pensar com método

e assim torná-lo inspecionável a outros intérpretes. Recorrendo a


Paul Ricoeur (Ricoeur, 1970, 1985) – importante nome da filosofia
hermenêutica, à qual se relacionam as metodologias interpretativas
em ciência social –, Geertz enfatiza que a interpretação não registra
o acontecimento em si, mas sim o significado dos acontecimentos;
não os fatos, atos e objetos da ação social isoladamente, mas sim o
discurso social que eles expressam, de maneira articulada, em seus
significados públicos.
Essa forte relação com a particularidade do objeto e do
contexto localizado de estudo posiciona a interpretação diante do
desafio da capacidade do empreendimento científico em gerar
generalizações e articulações conceituais e teóricas com algum grau
de abstração. Retomando a distinção entre lócus e objeto de estudo,
Geertz defende que a capacidade de teorização da interpretação
cultural se dá pela cumulatividade não linear e não progressiva de
descrições densas de situações e locais nos quais se estuda um mesmo
ou alguns objetos comuns às ciências sociais e às humanidades
em geral: poder, relações, hierarquias, ideologias, crenças, etc. Os
limites à teorização na interpretação cultural estariam, portanto,
na sua estreita vinculação a objetos empíricos bastante situados e
específicos; porém, ela seria possível a partir da explicitação das
múltiplas e pequenas similitudes e distinções presentes entre várias
situações densamente descritas, e não a partir da amplitude de
conceitos abstratamente aplicáveis a um número cada vez maior de
casos concretos (Geertz, 2008). Daí a presença do intérprete não só
como escritor, mas também como autor, alguém que autoriza novas
leituras do mundo (ou ao menos daquele mundo especificamente
descrito e analisado) (Geertz, 1989).

A análise interpretativa em ciência política

Muito do que é produzido em ciência política contemporânea


baseia-se na distinção entre descrição e explicação, e na afirmação
da inferência como princípio da ciência social em qualquer uma
de suas modalidades (descritiva ou explicativa, quantitativa ou
qualitativa). Segundo Gary King, Robert Keohane e Sidney Verba
(1994), por inferência deve se entender a capacidade de evidenciar,
a partir de dados imediatamente observados, fatos que existem, que
A interpretação na ciência política | 73

não se confundem com os dados em si e que não são imediatamente


observáveis. A inferência descritiva permitiria conhecer fatos não
observáveis a partir da descrição sistemática de fatos observados;
a inferência causal permitiria estabelecer relações de causalidade
não imediatamente evidentes entre fenômenos imediatamente
observados. A explicação causal, contudo, seria o objetivo último
da investigação científica, porque permitiria atingir os objetivos
maiores da ciência: capacidade de formular perguntas e hipóteses
sobre relações causais entre fenômenos, criar generalizações sobre
essas relações e, assim, contribuir para o aperfeiçoamento das
teorias que informam as pesquisas empíricas e as formulações de
novas perguntas e hipóteses.
Para esses autores, a interpretação é um tipo de análise que
busca explicitar “as razões das ações intencionais em relação com
todo o conjunto de conceitos e práticas nos quais ela está inserida”
(King; Keohane & Verba, 1994, p. 37). Embora eles compreendam
que a interpretação não se confunde com a inferência descritiva nem
com a análise qualitativa (que por sua vez compreende uma ampla
série de estratégias e técnicas de investigação), eles afirmam que,
ao se basear exclusivamente na verstehen (empatia), a intepretação
se torna mais “pessoal” (ou subjetiva) do que “científica” (objetiva).
Para ser científica, por outro lado, ela deveria adotar o princípio da
inferência, mesmo quando se resume a uma descrição, e empregar
métodos objetivos e replicáveis por outros pesquisadores.
Há várias objeções que podem ser feitas em relação à leitura
que King, Keohane e Verba fazem da interpretação. A primeira delas
diz respeito a uma compreensão equivocada – se temos Weber como
referência fundante da epistemologia das ciências sociais modernas
– das definições e da distinção entre descrição e interpretação, de
um lado, e explicação causal, de outro, tendo esta superioridade
em relação às demais. Como vimos ao expor as ideias de Weber,
compreensão e explicação causal são dois objetivos distintos, não
hierarquizados, embora complementares das ciências sociais.
Além disso – e esta é uma segunda objeção –, a compreensão
como busca de sentido (portanto, como uma interpretação) não
se resume a uma inferência descritiva, assim como o sentido
não se resume à intencionalidade dos agentes. Como vimos em
Weber e Becker, o objetivo da interpretação não é entender a
“intencionalidade” das ações, mas sim o sentido delas; pode parecer
74 | Pensar com método

um preciosismo conceitual, mas nos parece que King, Keohane e Verba


tratam a intencionalidade como se de alguma forma expressasse uma
formulação racionalista entre vontade (mais ou menos consciente ou
declarada) e ação, quando na verdade trata-se mais propriamente
de se compreender os determinantes da ação (que não se resumem à
intenção, seja ela racional e consciente ou não).
Isso nos leva de volta a Geertz, para explorar, juntamente
com Becker e Weber, uma terceira objeção que pode ser feita à visão
de King, Keohane e Verba: a busca do sentido da ação social não
se confunde com uma análise de intencionalidades subjetivas em
relação com elementos culturais (“conceitos” e “práticas”), mas sim
dos significados públicos produzidos em teias de significação nos
quais ações, conceitos e práticas se entrelaçam. Esse entrelaçamento,
essas teias de significado são a própria cultura, na visão de Geertz, e
é a cultura – ou o complexo formado por ações, sentidos e contextos
(Adcock, 2006) – o objeto último da interpretação. É sutil, mas
importante o deslocamento do foco da análise interpretativa:
ao tratarem a ação social como foco imediato de análise, e como
“inserida” em um complexo cultural (este pensado como foco
secundário da análise), King, Keohane e Verba praticam o erro para o
qual Geertz alertava, ou seja, o de tratar a cultura como algo externo
à compreensão dos agentes, como uma “realidade ‘superorgânica’
autocontida, com forças e propósitos em si mesma” (Geertz, 2008, p.
8), como já citado.
A terceira objeção a ser feita às considerações de King,
Keohane e Verba sobre a interpretação diz respeito a uma leitura
equivocada e restrita do que seja verstehen (empatia) e de como
ela se expressa na prática científica. Em primeiro lugar, e como
consequência do que dissemos anteriormente sobre a cultura ou o
complexo de significados como objeto da interpretação, não se trata
de uma análise de subjetividades, mas sim das intersubjetividades,
entendidas como estruturas de significações (Adcock, 2003). Além
disso, do ponto de vista do intérprete, a verstehen não se refere a
uma (impossível) reprodução do “ponto de vista do ator”, mas sim
de sua análise como parte de um conjunto de relações e significações,
e no qual o próprio analista deve se situar. Daí porque a relação entre
fatos e interpretação e entre subjetividade e objetividade em Becker
e Geertz ganha contornos mais fluidos, bem como a possibilidade de
verificabilidade da interpretação seja colocada por Geertz em termos
A interpretação na ciência política | 75

sensivelmente diferentes daqueles propostos por King, Keohane e


Verba, como veremos a seguir.
Isso nos leva, finalmente, à quarta objeção que se pode
fazer à visão de King, Keohane e Verba sobre a interpretação: essa
contestação antecede logicamente as anteriores e tem a ver com
concepções distintas sobre a ciência, não explicitadas na tentativa
dos autores de submeterem a interpretação aos paradigmas do que
eles consideram como prática científica. A interpretação tal qual
explicitada no tópico anterior (especialmente por Geertz) está ligada
a uma concepção de ciência essencialmente distinta da concepção
de ciência de King, Keohane e Verba. Refiro-me, basicamente, à
distinção entre positivismo e pós-positivismo como concepções
diferentes, e em muitos pontos divergentes, sobre o conhecimento
científico (Cuevas Valenzuela & Yanow, 2012; Haperin & Heath,
2012; Hawkesworth, 2006; Yanow, 2003). Ou seja: trata-se de uma
diferença epistemológica (do nível da concepção sobre a natureza do
conhecimento científico) mais do que meramente metodológica (do
nível das práticas e técnicas científicas).
As concepções positivistas são baseadas no empirismo (só
é cientificamente investigável aquilo que pode ser empiricamente
observável), pela busca de regularidades nos fenômenos estudados
com a finalidade de se identificar relações de causalidade
generalizáveis. No campo das ciências sociais, o positivismo clássico
desenvolve esses pressupostos por meio de uma aproximação
das ciências sociais com as ciências naturais, afirmando que em
ambos os domínios haveria lógicas próprias que poderiam ser
apreendidas empiricamente pela observação, pela identificação
das causalidades e pela formalização de leis explicativas, por meio
do método indutivo, ou seja, pelo percurso indutivo, que vai dos
dados empíricos para a abstração teórica, de construções lógicas,
conceituais e explicativas, que expressassem a lógica real dos
fenômenos estudados. Já o positivismo lógico – mais característico
das concepções contemporâneas da ciência política positivista,
tal como expressada por King, Keohane e Verba (1994) e por Paul
Kellstedt e Guy Whitten (2013), por exemplo – trata com menos
rigor a aproximação entre ciências sociais e naturais, e acrescenta
à indução a dedução (própria do raciocínio lógico-matemático), ou
seja, a possibilidade de que o conhecimento seja construído não
só pela abstração crescente da lógica empiricamente verificada nos
76 | Pensar com método

dados da realidade (indução), mas também pela construção, a partir


da teoria, de relações de causalidade hipotéticas que podem ser
aplicadas a objetos empíricos, verificadas e falseadas empiricamente
(Haperin & Heath, 2012; Hawkesworth, 2006).
Por sua vez, as concepções pós-positivistas abrangem
uma série de concepções alternativas sobre a natureza e a
operacionalização do conhecimento científico, que divergem mais
ou menos do positivismo – sendo o interpretativismo uma dessas
concepções (Haperin & Heath, 2012). Segundo a cientista política
interpretativista Dvora Yanow, o interpretativismo é construído
a partir da contribuição de várias “viradas” epistemológicas pós-
positivistas: a chamada “virada hermenêutica” (já mencionada
ao tratar de Geertz), mas também a ascensão de enfoques
fenomenológicos, semióticos, culturais, pragmáticos, críticos,
etnometodológicos, etc. (Cuevas Valenzuela; Yanow, 2012;
Hawkesworth, 2006; Yanow, 2006a, 2015).
Sendo uma abordagem pós-positivista, portanto, o
interpretativismo na ciência política tem outras referências
epistemológicas para enfrentar o problema de validade do
conhecimento científico apresentado pela perspectiva positivista. A
primeira delas, mais óbvia (mas não tão diferente do que é feito pelos
positivistas), é a de que epistemologia e metodologia não podem ser
tratadas como níveis distintos e desconexos da prática científica
(Yanow, 2006a). Essa afirmação deveria valer para toda a prática
científica, seja qual for sua afiliação teórica, mas é especialmente
sensível ao interpretativismo, para quem “os textos de ciências
sociais não apenas apresentam seus objetos por meio das lentes de
seus dados, mas os representam e reapresentam – os constituem,
constroem” (Yanow, 2006a, p. 7, com tradução e destaques nossos).
O risco dessa posição, contudo, é que não haja uma produção
bibliográfica e uma reflexão mais diretamente epistemológica e
metodológica sobre a interpretação, relativamente apartada da
apresentação de resultados de pesquisa, o que pode e deve ser
enfrentado por meio de manuais, textos e cursos que explicitem o
fazer científico interpretativista.
A segunda delas diz respeito às demandas por rigor e
objetividade do conhecimento científico. A demanda por rigor está
em geral associada à explicitação dos procedimentos de investigação
e à sistematicidade de sua aplicação na pesquisa empírica. O fato
A interpretação na ciência política | 77

de que a interpretação lida com a apreensão de sentidos e com


estratégias de pesquisa que não podem ser plenamente delineadas
previamente, já que se submetem a alto grau de imprevisibilidade
(como é o caso da pesquisa de campo aberta, da observação
participante, da etnografia, das entrevistas semi ou não estruturadas
e das interações pessoais), não faz dela uma análise impressionista,
pouco sistemática ou rigorosa; na verdade, o rigor e a sistematicidade
da análise interpretativa não estão dadas pela apresentação prévia
dos protocolos de pesquisa, mas sim por sua explicitação na
apresentação do trajeto efetivamente realizado na investigação e nos
resultados da análise interpretativa, principalmente pela explicitação
da lógica de construção e de apresentação da interpretação realizada
na forma de um texto (Yanow, 2006b). Nesse sentido, é útil resgatar
o que apresentamos anteriormente sobre a inteligibilidade da
análise compreensiva (Weber, 1999), para a importância do texto
etnográfico e da consideração do intérprete como um escritor e um
autor (Geertz, 1989, 2008).
No que se refere à objetividade, já apresentamos que a
perspectiva interpretativista não admite a visão positivista de que
em ciências sociais é possível uma separação entre sujeito e objeto do
conhecimento. As demandas positivistas por objetividade se referem
tanto a um distanciamento cognitivo quanto a um distanciamento
físico do observador em relação ao seu objeto (Yanow, 2006b); se
isso é aparentemente (e apenas aparentemente) possível a um
pesquisador que lida com dados previamente construídos em sua
sala, manuseando um computador (o que é sempre uma caricatura
um tanto parcial do que é de fato a pesquisa social), isso é claramente
impossível a um pesquisador de campo, que interage com pessoas e
que é responsável pela própria construção do dado que será base
de sua análise. Isso não quer dizer que não há objetividade na
análise interpretativa, mas sim que ela não pode ser concebida como
distanciamento físico e cognitivo; ao contrário, ela deve ser construída
a partir de uma posição reflexiva do pesquisador em relação ao dado
e ao objeto do conhecimento (Bourdieu; Chamboredon & Passeron,
1999; Bourdieu & Wacquant, 1992) e pela explicitação da posição
do intérprete em relação ao seu objeto e das formas pelas quais
ele é responsável pela construção dos seus dados – e aí voltamos à
importância do texto e de sua construção na análise interpretativa
e de sua sistematicidade. Como já afirmado anteriormente, para os
78 | Pensar com método

interpretativistas “a realidade social e o conhecimento humano sobre


elas são criadas por atores humanos por meio de ações e interações”
(Yanow, 2006b).
Outra referência importante para análise interpretativa,
em relação às demandas positivistas, é a da generalização, já
parcialmente abordada anteriormente. Como vimos, para Geertz
(2008), o estudo interpretativo de situações localizadas permite
generalizações do caso, mas não necessariamente generalizações a
partir do caso; mesmo quando se voltam para situações específicas,
os interpretativistas via de regra estão lidando com questões gerais
comuns à ciência social. Seria, então, a partir da cumulatividade do
conhecimento de situações particulares e da comparação distintiva
entre elas que surgiria a capacidade da interpretação de generalizar.
Antes de ser a afirmação de leis gerais ou a formulação de hipóteses
abrangentes sobre relações gerais entre fenômenos (como é para o
positivismo), generalizar seria então a afirmação de um problema
geral (a dominação, o poder, o nacionalismo) ou de um movimento
geral (não como uma lei geral, mas sim como um processo comum a
situações particulares) (Adcock, 2006).
Por fim, o problema da verificabilidade e da falseabilidade.
Devemos, para isso, retomar a questão da inteligibilidade do sentido
reconstruído pelo analista (Weber, 1999) e também a importância
da interpretação como inscrição inspecionável do discurso social
(Geertz, 2008). Nesse sentido, não se trata de “replicar” os mesmos
métodos aos mesmos objetos para verificar se as conclusões são
verdadeiras ou falsas – até porque as situações interpretadas
dificilmente se repetem em todas as suas especificidades e, portanto,
não podem ser “reanalisadas” em sua integridade ou “originalidade”
(Geertz, 2008) –, mas sim de verificar a coerência de uma dada
interpretação, mais do que sua correspondência com a “realidade
externa” (Gerring, 2003).

Técnicas de produção e modos de análise interpretativa de


dados

Como descrito, a interpretação não é uma técnica de pesquisa,


mas uma metodologia baseada em fundamentos epistemológicos
não positivistas. Se a metodologia é uma forma de organizar a
A interpretação na ciência política | 79

compreensão e a análise de dados, as técnicas são ferramentas que


permitem acessar e construir o dado – lembrando o que foi dito: para
os interpretativistas, os dados são construções sociais que não são
prévios e externos à atividade cognitiva do pesquisador, sendo que
ele é responsável pela construção de seus dados.
Se, como vimos, a cultura se expressa e é apreensível por
meio do discurso social (Geertz, 2008), a linguagem é a principal
forma dos dados empregados em análise interpretativa; nesse
sentido, entrevistas e análise documental são as principais técnicas
de coleta e geração de dados para uma análise interpretativa, porque
permitem a identificação de discursos materializados de maneira
bastante evidente e sistemática, inclusive com recurso às técnicas e
teorias de análise do discurso (Yanow, 2015).
Outra técnica útil à análise interpretativa é a observação
participante e a etnografia, pois permitem ao analista identificar e
sistematizar, além dos discursos expressos como fala, as interações
e os espaços das interações (Pader, 2006; Yanow, 2015).
Produzidos os dados, é preciso analisá-los, e seria um
simplismo dizer que a interpretação é uma forma unívoca de análise
de dados. Na verdade, a interpretação é possível por diferentes
modalidades de análise de dados com a finalidade de identificar e
reconstruir sentidos (Yanow & Schwartz-Shea, 2006). Assim, por
exemplo, os dados coletados em uma entrevista ou em documentos
podem ser objeto de análise de discurso (Yanow, 2015), de análise de
conteúdo (Ginger, 2006), de análise configuracional (Jackson, 2006)
ou de análise de narrativas (Shenhav, 2006). Documentos primários
e secundários podem servir de base para uma análise histórico-
interpretativa (Adcock, 2006; Oren, 2006; Perissinotto, 2013). Por
sua vez, a etnografia é tanto uma forma de apreensão e construção
quanto de análise de dados, e tem sido uma modalidade produtiva
de interpretação de temas políticos (Auyero, 2012a; Pader, 2006).
Dados coletados em uma observação ou em documentos específicos
(plantas arquitetônicas e fotografias, por exemplo) podem ser objeto
de uma análise semiótica do espaço construído (Yanow, 2006c).

Temas e objetos de análise política interpretativa

Essa diversidade de técnicas e modos de análise faz com que a


80 | Pensar com método

interpretação possa ser aplicada a qualquer estudo político (Bevir &


Rhodes, 2006). Para começar, a própria definição do que é “política”
e a qualificação de um objeto como “político” pode ser objeto de uma
análise interpretativa (Hawkesworth, 2006).
Os discursos políticos são o objeto mais evidente da análise
política interpretativa, seja porque se trata de uma forma de
análise que valoriza a linguagem como objeto, como já vimos, seja
porque o discurso é um elemento central das práticas políticas tais
quais as conhecemos. A partir das análises dos discursos políticos,
interpretativistas têm se dedicado especialmente ao estudo das
narrativas políticas – pensadas como uma forma específica do
discurso político: narrativas seriam construções discursivas com
aspectos justificadores de práticas e crenças políticas, orientadas
para o passado ou para o futuro, mais estruturadas e tendentes
à coerência do que os discursos cotidianos e menos abstratas e
coerentes do que se poderia chamar de “pensamento” ou “ideologias”
políticas (Bevir, 2006; Shenhav, 2005, 2006). Segundo Shaul Shenhav
(2006), uma narrativa política contém três elementos: o conjunto
formado por eventos, personagens e contexto; um recorte e uma
linha temporal no qual esses primeiros elementos atuam; e relações
de causa e efeito que são atribuídas a esses eventos na perspectiva
temporal. É assim, por exemplo, que Mark Bevir e Roderick Rhodes
(2006) estudam narrativas de governança política britânicas em
diferentes níveis e espaços: a política parlamentar e do gabinete de
governo, as reformas de políticas específicas; e que Shenhav (2005)
analisa os discursos de políticos israelenses nos primeiros anos da
constituição do Estado de Israel.
Temas consagrados da ciência política contemporânea
também têm sido objeto de análises interpretativas. É o caso, por
exemplo, da análise de políticas públicas, que têm sido objeto
de análises interpretativas em suas diferentes dimensões, da
formulação à implementação, incluindo a percepção de usuários
e burocratas (Pader, 2006; Yanow, 2015), os espaços físicos dos
serviços públicos (Yanow, 2006c) e as histórias contadas sobre seu
trabalho por burocratas responsáveis pelo atendimento direto ao
público (Maynard-Moody; Musheno, 2006). Movimentos sociais,
protestos e ação coletiva também têm sido abordados sob uma
perspectiva interpretativa por autores como Cecelia Lynch (2006),
Dean E. McHenry, Jr. (2006) e Javier Auyero (2012b). As etnografias
A interpretação na ciência política | 81

políticas de Auyero têm apresentado interpretações sobre as


relações dos pobres com o Estado, em especial no que se refere às
práticas clientelistas (Auyero, 2012b, 2012a).

Conclusões

A primeira conclusão que precisa ser reforçada neste artigo


é a de que a interpretação não pode ser compreendida a partir
dos paradigmas positivistas que expressam ou implicitamente
informam o ensino e as práticas de metodologia de pesquisa na
ciência política contemporânea. É preciso ter clareza das distinções
epistemológicas que estruturam o debate metodológico na ciência
política e nas ciências sociais em geral para que as contribuições
deste artigo possam ser bem aproveitadas para a prática de atuais
e futuros pesquisadores.
A busca por esclarecer os sentidos das práticas sociais é,
portanto, um objetivo em si mesmo, não redutível ou subordinado
a outros (por exemplo, o de instruir futuras pesquisas que busquem
relações causais). Dada a complexidade do mundo social, admitida
mesmo por positivistas, a reconstrução de sentidos por uma
interpretação é uma forma legítima e produtiva de reduzir essa
complexidade a sentidos inteligíveis por meio da investigação
científica rigorosa, lógica e sistemática.
A análise interpretativa tem fundamentos diferentes
para tratar de questões como objetividade, generalização e
verificabilidade. Todos eles podem ser entendidos, de maneira geral,
a partir de uma perspectiva epistemológica que nega a diferenciação
entre sujeito e objeto do conhecimento e exige reflexividade do
pesquisador; admite o caráter limitado, parcial e cumulativo do
trabalho científico; e valoriza a complexidade do mundo social como
algo a ser expresso e compreendido nas análises científicas, e não
necessariamente reduzido a formulações parcimoniosas e genéricas
de relações de causa e efeito.
Para que a análise interpretativa seja levada a cabo de
maneira rigorosa, é preciso não só clareza de seus pressupostos
epistemológicos, mas também da diferença entre técnicas de coleta
e construção de dados, de um lado, e de modos de análise, de outro.
A análise interpretativa trabalha com um leque amplo de técnicas de
82 | Pensar com método

pesquisa e modos de análise, mais ou menos adaptáveis a diferentes


objetos, mas todos eles cientes de que a produção de sentidos se dá
em meio a uma teia complexa de relações.
Entender a cultura como discurso e a produção científica
como uma literatura é fundamental para a análise interpretativa.
É no texto científico que se explicitam os dados, as técnicas de sua
construção, os modos de análise, a posição do analista em relação ao
seu objeto, os sentidos empiricamente verificados e reconstruídos
em uma estratégia argumentativa que tem a sua própria lógica, ao
mesmo tempo em que deve expressar a lógica própria e contingente
de seu objeto.
Em tempos nos quais a política está em crise e as formas
conhecidas da representação democrática se veem ameaçadas
por novas ações coletivas, regressos autoritários e identidades em
conflito, a análise interpretativa parece um caminho promissor para
uma ciência política que busca conhecer um mundo em mudança e a
profusão de sentidos que ele expressa.

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Introdução aos fundamentos da análise demográfica
e dinâmica populacional

Joice Melo Vieira

Demografia: afinal, do que se trata?

Para melhor compreender o escopo da análise demográfica,


é preciso antes esclarecer o que se entende por Demografia, qual
o seu objeto de estudo e campo de atuação. Uma forma simples de
aproximação de uma definição é recorrer à etimologia da palavra. O
termo resulta da junção de dois radicais gregos: Demos – que pode
ser traduzido como população ou povo –, e grafia, que remete a
escrita, descrição ou estudo.
Entretanto, dizer que os demógrafos se ocupam do estudo da
população, nos leva a uma segunda tarefa: a necessidade de definir
em que consiste propriamente uma população. Para Livi-Bacci
(2007, p. 9), trata-se de “um conjunto de indivíduos, constituído de
forma estável, ligado por vínculos de reprodução e identificado por
características territoriais, políticas, jurídicas, étnicas ou religiosas”.1
A continuidade da existência do grupo – e, portanto, a sobrevivência
da população ao longo do tempo –, depende tanto da reprodução física
quanto social de seus indivíduos, geração após geração. Vale frisar
que as populações humanas não se constituem aleatoriamente, não
se trata de qualquer grupo de pessoas formado ao acaso. Também não
basta transmitir os genes, é necessário imprimir nos sucessores uma
marca, deixar-lhes uma herança de valores e saberes em comum. Os
membros deste conjunto compartilham algo, seja uma identidade,
uma crença, uma língua, uma fé, uma experiência ou memória, uma
origem ou um território. Assim, é possível adotar como recorte de
estudo a população brasileira, a população judia em São Paulo, a
população Guarani no Rio Grande do Sul, a população refugiada no
Acre ou a população escrava nas Minas Gerais oitocentistas.
Quando os demógrafos estudam uma determinada população,
em geral, seus interesses são canalizados para ao menos uma das
seguintes inquietações:

1
Tradução livre do espanhol para o português realizada pela autora.
88 | Pensar com método

- Quantos são?
- Quem/como são?
- Onde vivem? De onde vêm? Para onde vão?

Logo:
Demografia é o estudo do tamanho, da distribuição territorial e da
composição de uma população, das mudanças e dos componentes
de tais mudanças; estes últimos podem ser identificados como
natalidade, mortalidade, movimentos territoriais (migração) e
mobilidade social (mudança de status) (Hauser & Duncan apud
Patarra, 1991, p. 10).

O estudo da dinâmica populacional – ou seja, sobre como


as populações se modificam ao longo do tempo em um espaço
determinado –, passa necessariamente pelo entendimento do que
acontece com as componentes demográficas: natalidade, mortalidade
e migração. O sexo e a idade dos membros de uma população são
os condicionantes mais básicos que interferem na intensidade
dos eventos demográficos. Não raro a direção e ritmo da mudança
também dependerão do que acontece em termos de mobilidade
social, mobilidade educacional e ocupacional. Pois, – embora todos
os seres humanos nasçam e morram – a posição social que ocupam
e demais variáveis contextuais influem na duração de suas vidas, e
na probabilidade de que encontrem parceiros afetivo-sexuais, o que
consequentemente, interfere em suas trajetórias reprodutivas (se
terão filhos, quando e quantos).
A Demografia enquanto ciência certamente não nega os
imponderáveis da vida e as individualidades, mas a todo o tempo lhe
cabe encontrar padrões de comportamento que melhor descrevam
o que se observa em uma população, ou subgrupos populacionais
segmentados segundo a renda, o nível educacional ou cor, por
exemplo. Ao longo das últimas décadas, além de estudos sobre as
componentes demográficas estrito senso (natalidade, mortalidade e
migração), os eventos científicos e publicações da área contemplam
uma ampla gama de temas, como: famílias, domicílios, formação
e dissolução de uniões; infância e juventude; educação, trabalho e
mobilidade social; pobreza e desigualdade; gênero, sexualidade e
saúde sexual e reprodutiva; saúde e longevidade; envelhecimento;
urbanização; população, desenvolvimento e ambiente; etnicidade;
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 89

história, cultura e religião; população e direitos humanos.2


Ademais de conhecer o objeto de estudo da Demografia e
temáticas de interesse, ao final deste capítulo o leitor deve estar
familiarizado com as formas mais elementares de representação do
crescimento populacional e da estrutura etária, bem como deve ter
noção sobre como controlar o efeito da estrutura etária sobre um
determinado fenômeno demográfico.

A dinâmica populacional e a equação compensadora

Seja qual for a população estudada, há sempre duas formas


de entrada para esta população: por nascimento e imigração. Bem
como duas formas de saída: por morte ou emigração. Logo, desta
primeira constatação, deriva a equação compensadora, também
denominada “equação demográfica básica” (Hinde, 1998):

Onde:
Pt é a população em um ano t;
P(t+1) é a população no ano t+1, ou seja, no ano seguinte a t;
N(t, t+1) é o número de nascimentos ocorridos no período t a t+1;
O(t, t+1) é o número de óbitos ocorridos no período t a t+1;
I(t,t+1) é o número de pessoas que imigraram, ou seja, que chegaram
na área geográfica considerada no período t a t+1;
E(t,t+1) é o número de pessoas que emigraram, ou seja, que partiram
da área geográfica considerada no período t a t+1.

2
Na elaboração dessa listagem de eixos temáticos tratados pela disciplina, levou-
se em conta eventos e publicações organizados por associações profissionais:
1) Associação Brasileira de Estudos Populacionais (ABEP); Associação Latino-
Americana de População (ALAP); Population Association of America (PAA) e
International Union for the Scientific Study of Population (IUSSP).
90 | Pensar com método

Denomina-se crescimento natural a diferença entre o número


de nascimentos e de óbitos ocorridos durante o período em estudo.
O crescimento natural pode assumir valores positivos – quando o
número de nascimentos supera o número de mortes –, ou negativos
– quando ocorre justamente o oposto.
A diferença entre o número de imigrantes e de emigrantes,
é conhecida como saldo migratório, podendo assumir igualmente
valores positivos – quando o número de pessoas que chegam à
área geográfica em estudo no período analisado supera o número
daquelas que partem –, ou negativos, quando a área em questão
perde mais população via migração do que ganha.
Para exemplificar o acima exposto, vamos assumir que a
população brasileira em 2010 era de 190.755.799 habitantes e
que entre 1º/01/2010 e 1º/01/2011 nasceram 2.861.868 bebês e
morreram 1.136.947 pessoas. Suponhamos também que o número
de brasileiros que deixaram o país para viver no exterior foi igual ao
número de estrangeiros que passaram a viver no Brasil exatamente
naquele ano. Ou seja, o número de pessoas que entraram no
território foi igual ao número daquelas que saíram, gerando um saldo
migratório igual a zero. Qual seria a população brasileira estimada
para 2011?

P2011=190.755.799+2.861.868 -1.136.947+0
P2011=192.480.720

Logo, nesse cenário, a população brasileira estimada para


2011 seria de 192.480.720 pessoas.
A equação compensadora pode ser adaptada para estudar o
tamanho de diversos grupos de interesse com os quais os cientistas
sociais trabalham. Pode-se empregar a fórmula para mensurar,
por exemplo, o tamanho da população escolar de um município ou
mesmo qual é o público atendido por um único estabelecimento
educacional. Neste último caso, as matrículas dos alunos
ingressantes pela primeira vez no sistema escolar cumprem o papel
dos nascimentos; outra forma de entrada para a instituição pode
se dar via transferência de alunos procedentes de outras escolas,
situação passível de analogia direta com a migração. As perdas desta
população de uma única instituição escolar também podem se dar
por morte de alunos, pela transferência de estudantes desta para
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 91

outras escolas; bem como via abandono/evasão/desistência.


A esquematização construída por Hinde (1998) – figura
1 – auxilia na compreensão sobre como a população se renova
e se modifica ao longo do tempo e pode servir de referência
para possíveis adaptações da equação compensadora ao estudo
da reprodução de grupos sociais ao longo do tempo. Para este
demógrafo, as componentes que operam a mudança populacional
(natalidade, mortalidade e migração) implicam sempre em que os
indivíduos passem de um estado para outro. A cada componente
demográfica é possível associar não apenas um evento – nascimento,
morte e migração (partida e chegada) – mas transições entre quatro
estados distintos: “vivo e presente na população”; “vivo em outra
população”; “ainda não nasceu” e “morto”. O autor denomina esta
forma de ilustrar os processos intrínsecos à dinâmica populacional
de “representação multiestado”.

Figura 1 – Representação multiestado da equação compensadora; representando N(t,


t+1), O(t, t+1), E(t, t+1) e I(t, t+1) como transições. Extraído de Hinde (1998, p. 2).

Razão, proporção e taxa: fundamentos da construção de


medidas demográficas

Grande parte das medidas mais usadas na Demografia não


passam de razões, proporções ou taxas. Embora à primeira vista
a construção destas medidas seja bastante simples, nem sempre
é uma decisão trivial escolher apresentar um dado em números
92 | Pensar com método

absolutos ou calcular taxas, razões e proporções. Tal escolha sempre


revela uma intencionalidade. Quando um estudante ou pesquisador
não está totalmente consciente de sua intenção ao escolher a forma
de apresentação do dado, é muito provável que não o interprete
corretamente, ou o que exige ainda mais cuidado, abre espaço à
manipulação e à apropriação tendenciosa da informação.
Razões são indicadas, sobretudo, quando se deseja
estabelecer uma relação entre duas grandezas. Por exemplo, uma
medida básica utilizada na Demografia, a “razão de sexo”, expressa
o número de homens existentes para cada mulher em um espaço
geográfico e tempo determinados. Por convenção – e, também para
facilitar a leitura –, essa medida sempre diz respeito ao número de
homens existentes para cada cem mulheres:
H
RS= *100
M
Onde, RS é a razão de sexo, H é o número de homens e M,
o número de mulheres. Salienta-se que, em geral, em uma razão,
o indivíduo que é contabilizado no numerador não é incluído
no denominador. Quando se constrói uma razão está sempre
subentendido uma comparação entre a magnitude de dois grupos,
neste caso a população masculina e a feminina.
Quando se opta por trabalhar com proporções, o objetivo
central é evidenciar a composição de uma população ou grupo
segundo determinada característica ou atributo. A principal
diferença entre a razão e a proporção é que neste último caso, os
indivíduos que estão no numerador de uma relação também são
contabilizados no denominador. Ao dizer que um em cada cinco
habitantes do Canadá é imigrante, estamos nos valendo de uma
proporção, pois os imigrantes também são contabilizados entre os
habitantes. Já a porcentagem é um tipo especial de proporção na
qual o denominador é cem.
Vejamos o quanto esta distinção é clara. De acordo com a
Tabela 1, na China há 105 homens para cada cem mulheres, enquanto
no Brasil temos 97,5 homens para cada cem mulheres. Dentre os
países considerados, Portugal é onde há maior desequilíbrio numérico
entre os sexos, pois há cerca de 90 homens para cada cem mulheres.
A apresentação dos dados em termos percentuais permite destacar a
maior presença de homens ou mulheres na população total.
Tabela 1. Países selecionados, 2015-2016: população segundo sexo em números absolutos,
razão de sexo e distribuição percentual da população total segundo o sexo

Fonte: Divisão de Estatística das Nações Unidas, <data.un.org>. Acesso em: 19 ago. 2018.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 93
94 | Pensar com método

A taxa se refere ao número de ocorrências de determinado


evento no decorrer de um intervalo de tempo dado. É, portanto,
em sua definição mais restritiva uma medida de intensidade ou
frequência de eventos por unidade de tempo. A taxa permite a
comparação entre a frequência de eventos em populações de
tamanhos distintos. Quanto maior a população, é esperado que haja
maior número de ocorrência de eventos caros à Demografia. Mas, ao
ponderar o número de eventos ocorridos pelo tamanho da população
em análise, o efeito do tamanho populacional é contornado.
Trabalhar com taxas pode dar uma perspectiva totalmente
distinta sobre a magnitude de nossos problemas sociais quando
comparados àqueles enfrentados pelos demais. Sendo a população
brasileira a quinta maior do planeta, nossos números sempre tenderão
a se destacar. Por exemplo, de acordo com estatísticas reunidas pelo
World Prison Brief (2018), o Brasil tem a terceira maior população
carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.
Porém, quando se observam as taxas de encarceramento, estamos na
vigésima quinta posição dentre os países que mais aplicam a privação
de liberdade como punição – 328 detentos por cem mil habitantes.
Isso não diminui a relevância social da questão carcerária no Brasil,
mas trabalhar com taxas revela que determinados países que à
primeira vista não se destacariam pelo volume de seu contingente
prisional, também vivem processos de encarceramento massivo tão,
ou mais, intensos do que o Brasil.
Tabela 2. Comparação entre o ranking das maiores populações carcerárias
e das maiores taxas de encarceramento do mundo em 2017

Fonte: World Prison Brief, Institute for Criminal Policy Research. <http://www.prisonstudies.org> Acesso em: 21 ago. 2018.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 95
96 | Pensar com método

Usualmente, os demógrafos utilizam no denominador de


uma taxa o número de pessoas existentes em uma população no
meio do período em análise, a população existente em um território
no meio do ano, por exemplo. Essa prática se deve ao fato de, a rigor,
o denominador de uma taxa ser simultaneamente: 1) o número
de pessoas na população; e 2) a contabilização total da duração
do tempo de exposição ao risco de ocorrência do evento (Preston,
Heuveline & Guillot, 2001, p. 3). Embora possa ser estranha essa
segunda afirmação, o pressuposto é bastante simples. Um conceito
básico da Demografia é o de pessoas-ano, entendido como a soma,
expressa em anos, do tempo de exposição de todos os indivíduos de
um determinado grupo ao risco de ocorrência de certo evento em um
período delimitado. Um grupo de cem mil pessoas, no qual nenhuma
delas morre durante um ano calendário, terá vivido conjuntamente
cem mil anos ao cabo de 12 meses. Ao adotar a população do meio do
ano (1º de julho) como denominador, assume-se que esse número
corresponde a uma boa aproximação do número de pessoas-ano
acumulados naquele ano calendário pelo conjunto da população
em análise, supondo que nascimentos e mortes estarão distribuídos
uniformemente ao longo do ano. Indivíduos que sobreviveram
durantes os doze meses do ano calendário, contabilizam 1 pessoas-
ano. Indivíduos nascidos ou mortos em determinado ano calendário,
contribuem com a fração de tempo correspondente em que estiveram
na população em análise. Utilizar a população no meio do período
como uma aproximação do total de pessoas-ano acumulados no
período supondo que óbitos e nascimentos estão uniformemente
distribuídos durante o ano, contorna o imperativo de necessitar
contabilizar essas frações de tempo dos que estiveram na população
por apenas parte do período.

Taxas de crescimento populacional

A taxa de crescimento populacional é utilizada para


mensurar a velocidade do incremento ou decremento populacional.
Pode, portanto, assumir valores positivos ou negativos. Para calculá-
la é necessário dispor do volume populacional em dois pontos no
tempo. A partir de então, pode-se facilmente identificar: 1) o tempo
transcorrido entre as duas medições do número de habitantes da área;
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 97

e 2) quantos indivíduos a mais (ou a menos) foram contabilizados na


segunda medição em relação à primeira. Esses são os insumos para o
cálculo da taxa de crescimento.
Deve-se destacar, entretanto, que há três métodos de
construção da taxa de crescimento populacional: o método linear,
o geométrico e o exponencial. Os não-demógrafos costumam
utilizar o método linear, provavelmente pela facilidade de computá-
lo. Já o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
geralmente utiliza o método geométrico. Contudo, independente
do método elegido pelo pesquisador, é fundamental compreender
os pressupostos de cada um deles, para que se faça uma escolha
consciente sobre as implicações de nossa decisão metodológica.
De acordo com Livi-Bacci (2007, p. 36), a diferença
fundamental entre os métodos se fundamenta sobre qual é a
população adotada como referência e sobre a qual incide o gradual
incremento (ou decremento) ao longo do tempo. No método linear,
também chamado de aritmético, a população de referência é
aquela do início do intervalo. No método geométrico – denominado
também como composto ou cumulativo –, a população de referência
é a existente no início de cada período anual compreendido no
intervalo de tempo em análise. E por fim, no método exponencial
(ou taxa de crescimento composto contínuo), a população de
referência é a que existe em cada fração mínima de tempo (poderia
ser segundos, por exemplo).
Para simplificar, no método linear, a visão sobre a população
é relativamente mais estática, todo o raciocínio se baseia sobre
a alteração no tamanho da população encontrada no início do
período em análise. Os métodos geométrico e exponencial são mais
dinâmicos, pois incorporam a ideia de que o intervalo transcorrido
entre dois pontos no tempo pode ser “quebrado” em unidades
menores e a população encontrada em cada um desses novos
fragmentos de tempo já não será aquela do ponto inicial da análise. O
tamanho populacional encontrado em um fragmento é a referência
para o cálculo do tamanho populacional no próximo fragmento,
ao invés de fixar sempre a população do início do período em
análise como faz o método linear. No método geométrico, contudo,
a menor unidade em que o tempo será quebrado será discreta
(números inteiros cujo espaçamento entre um e outro é uniforme,
1, 2, 3, etc.), enquanto no método exponencial, se dará o contrário,
98 | Pensar com método

estas unidades menores de tempo serão contínuas (não-discretas)


e fracionadas em porções ínfimas.
O gráfico 1 descreve qual seria o padrão da curva que
descreve o crescimento populacional em números absolutos de
acordo com cada um dos métodos de estimação do crescimento
populacional mencionados anteriormente considerando uma
população hipotética.

Gráfico 1. Representação do padrão de crescimento de uma


população hipotética considerando estimativas construídas segundo
o método linear, geométrico e exponencial

Fonte: Elaboração própria.

Observando o gráfico 1, se calcularmos taxas de crescimento


populacional com o intuito de estimar o tamanho da população
em curto prazo, podemos esperar encontrar valores similares,
independente do método utilizado. Todavia, a medida que as
estimativas envolvem períodos de maior duração, o método adotado
impacta substancialmente os resultados. As estimativas construídas
segundo os métodos exponencial e geométrico são sempre mais
próximas entre si.
Passaremos agora a descrever as equações matemáticas de
cada um dos métodos de cálculo da taxa de crescimento populacional.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 99

Para facilitar o entendimento, vamos calcular a taxa de crescimento


da população brasileira observada entre 2000 e 2010. Procuramos
a partir desse exercício, estimar a população esperada ano a ano até
2020, se o ritmo de crescimento for o mesmo da década anterior.
Segundo dados dos censos demográficos brasileiros
realizados pelo IBGE, a população brasileira em 2000 era de
169.590.693 de habitantes. Dez anos depois, em 2010, essa
população havia ascendido para 190.755.799 habitantes.
Seguindo o método aritmético:
Pf = P0 + P0 * (ra* t)
Onde, Pf é a população final; P0 é a população inicial; ra é a
taxa de crescimento aritmético e t é o tempo transcorrido entre 0 e f.
Se desejarmos isolar ra, teremos que:
Pf - Po
ra =
Po * t
Aplicando à formula à população observada em 2000 (P0) e
2010 (Pf), sendo, portanto, t igual a 10 anos, temos:
190.755.799 - 169.590.693
ra = = 0,01248
169.590.693 * 10
Para facilitar a leitura do resultado, podemos dizer que
a população brasileira cresceu 1,25% ao ano entre 2000 e 2010
(0,01248 *100 = 1,248). Isso significa que a cada 100 habitantes
existentes em 2000 foram adicionados anualmente 1,25 novos
indivíduos entre 2000 e 2010.
Seguindo o método geométrico, temos que:
Pf = P0 * (1 + rg) t
Onde, Pf é a população final; P0 é a população inicial; rg é a
taxa de crescimento geométrico e t é o tempo transcorrido entre 0 e
f. Isolando rg, obtemos:
Pf
(1 + rg) t =
Po
Para contornar o problema do t estar como expoente de (1 +
rg), utilizamos de uma propriedade dos logaritmos:
Pf
Log
Po
Log (1 + rg) =
t
100 | Pensar com método

Observando-se a população mensurada pelos censos


demográficos de 2000 e 2010, temos:
190.755.799
Log
169.590.693
Log (1 + rg) =
10

0,051076
Log (1 + rg) = = 0,005108
10

Para isolarmos rg, necessitamos nos valer da propriedade dos


antilogaritmos, logo:

Antilog (Log (1 + rg)) = Antilog (0,005108)


1 + rg = 100,005108
1 + rg = 1,01183
rg = 1,01183 – 1
rg = 0,01183 ou 1,18% ao ano.

Para as pessoas menos familiarizadas com matemática,


pode parecer estranho que o valor absoluto da taxa de crescimento
geométrica seja um pouco mais baixo do que aquele da taxa de
crescimento aritmético (1,18 < 1,25). Contudo, devemos lembrar que
no crescimento aritmético a população que serve de referência para o
incremento é sempre a de 2000: a cada 100 habitantes existentes em
2000 são acrescidos anualmente 1,25 novos indivíduos entre 2000
e 2010. No crescimento geométrico o efeito é cumulativo. A cada
ano são acrescidos 1,18 indivíduos a cada grupo de 100 habitantes
existentes no ano imediatamente anterior. Como anteriormente
ressaltado, a população de referência do método aritmético sobre
a qual se baseia o incremento anual é aquela do ponto inicial da
análise. Enquanto no método geométrico, a população de referência
será aquela do ano imediatamente anterior.
Seguindo o método exponencial, a função que descreve o
crescimento populacional é dada por:

Pf = P0 * e r * t

Como em passagens anteriores, Pf é a população final; P0 é


Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 101

a população inicial e t representa o tempo transcorrido entre 0 e f.


Nessa equação, e é a base dos logaritmos naturais (= 2,718282) e r é
a taxa de crescimento exponencial. Para isolar r, temos que:
Pf
= e r*t
Po
P
Ln f = r * t
Po

Pf
Ln
Po
r=
t
Sendo que Ln é a notação de logaritmo natural ou neperiano,
aquele de base 2,718282. Calculando a taxa de crescimento
exponencial para o Brasil entre 2000 e 2010, temos:
190.755.799
Ln
169.590.693 Ln (1,1248) 0,11760
r= = =
10 10 10

r = 0,01176 ou 1,18%

Como o período em análise é relativamente pequeno, percebe-


se que a taxa de crescimento exponencial é, após arredondamento
de casas decimais, igual à taxa de crescimento geométrico.
A tabela 3 apresenta as estimações do tamanho da população
brasileira ano a ano entre 2000 e 2020 segundo os métodos
aqui descritos. Nota-se que as estimativas segundo os métodos
geométrico e exponencial coincidem após arredondamento, como
era de se esperar. As diferenças aparecem apenas a partir da sétima
casa decimal.
102 | Pensar com método

Tabela 3. Brasil, 2000-2020: população total do país estimada


segundo os métodos aritmético, geométrico e exponencial

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados de população total dos censos 2000 e 2010.

Taxas brutas e específicas em demografia

Dito de forma direta, as taxas específicas são aquelas que


consideram no numerador o total de eventos ocorridos em um ano
calendário em determinada área; e no denominador, a população
total no meio do período nessa mesma área. Assim, taxas brutas de
natalidade (TBN) de um território são calculadas considerando no
numerador o total de nascidos vivos no ano calendário nesse local, e
no denominador a população total no meio do período.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 103

𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁 𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡 𝑑𝑑𝑑𝑑 𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛𝑛 𝑣𝑣𝑣𝑣𝑣𝑣𝑣𝑣𝑣𝑣 𝑛𝑛𝑛𝑛 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎 𝑛𝑛𝑛𝑛 á𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟 𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔 𝑒𝑒𝑒𝑒 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎
𝑇𝑇𝑇𝑇𝑇𝑇 = 𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝 𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡 𝑑𝑑𝑑𝑑 á𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟 𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔 𝑒𝑒𝑒𝑒 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎 𝑛𝑛𝑛𝑛 𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚 𝑑𝑑𝑑𝑑 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎
* 1000

Não apenas a TBN, mas as taxas brutas em geral são


apresentadas por mil habitantes.
Já a taxa bruta de mortalidade é expressa por:
𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁𝑁 𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡 𝑑𝑑𝑑𝑑 ó𝑏𝑏𝑏𝑏𝑏𝑏𝑏𝑏𝑏𝑏 𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜𝑜 𝑛𝑛𝑛𝑛 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎 𝑛𝑛𝑛𝑛 á𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟 𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔 𝑒𝑒𝑒𝑒 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎
𝑇𝑇𝑇𝑇𝑇𝑇 = 𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝𝑝 𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡𝑡 𝑑𝑑𝑑𝑑 á𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟𝑟 𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔𝑔 𝑒𝑒𝑒𝑒 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎 𝑛𝑛𝑛𝑛 𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚𝑚 𝑑𝑑𝑑𝑑 𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎𝑎
* 1000

A mesma lógica pode ser utilizada para construir taxas brutas


de imigração (considerando no numerador o número de imigrantes,
aqueles que entram no território) e taxas brutas de emigração
(inserindo no numerador o número de emigrantes, aqueles que
deixaram o território em análise).
Taxas brutas são fortemente influenciadas pela composição
da população por idade e sexo. Por exemplo, se duas populações
desfrutassem hipoteticamente de condições de vida idênticas, seria
esperado que aquela que concentrasse maior número de idosos
apresentasse maior taxa bruta de mortalidade. Logo voltaremos a
esse ponto.
Taxas específicas se referem à intensidade de ocorrência de
um evento por idade ou grupo etário. Por exemplo, taxas específicas
de mortalidade (TEM) medem o quão intenso é o evento morte
em uma idade ou grupo etário. As taxas específicas nos auxiliam
a perceber o quanto a intensidade dos eventos demográficos é
distinta de acordo com a idade dos indivíduos. Para ilustrar isso,
vamos observar o comportamento das taxas brutas e específicas de
mortalidade de dois estados brasileiros em 2010: Santa Catarina e
Rondônia.

Tabela 4. Rondônia e Santa Catarina, 2010: Total de óbitos, população


total e taxas brutas de mortalidade

Fonte: MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM, para total


de óbitos. IBGE – censo demográfico 2010, para população total dos Estados.
104 | Pensar com método

Tabela 5. Rondônia e Santa Catarina, 2010: Óbitos, população e


taxas específicas de mortalidade por grupo etário quinquenal

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações


sobre Mortalidade – SIM, para óbitos. IBGE – censo demográfico 2010, para população dos
Estados.

Gráfico 2. Rondônia e Santa Catarina, 2010: Taxas específicas de


mortalidade por grupo etário quinquenal

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações


sobre Mortalidade – SIM, para óbitos. IBGE – censo demográfico 2010, para população dos
Estados.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 105

Pode causar estranhamento que a taxa bruta de mortalidade


em Santa Catarina seja mais alta do que em Rondônia. Em geral, se
assume que áreas com melhores condições de vida, como é o caso
de Santa Catarina, segundo diversos indicadores sociais, terão
mortalidade mais baixa. Mas como afirmamos anteriormente, a TBM
é fortemente influenciada pela composição etária da população.
De toda maneira, o gráfico 2 revela que as taxas específicas de
mortalidade são mais elevadas em Rondônia, o que reforça a tese de
que a TBM de Santa Catarina só é maior do que a TBM de Rondônia
em razão de sua estrutura etária mais envelhecida. Veremos isso
com mais calma. No próximo tópico, nos debruçaremos sobre as
diferenças entre as distribuições etárias dos dois Estados.

A estrutura da população: sexo e idade

A estrutura da população costuma ser representada na


demografia pela pirâmide etária, que nada mais é do que um
histograma horizontal construído com base na classificação
dos indivíduos por sexo e idade. Por convenção os homens são
representados à esquerda do eixo vertical do histograma; e as
mulheres, à direita. As pirâmides podem representar os números
absolutos de indivíduos encontrados na população segundo sexo e
idade, mas isso é menos comum. Normalmente, as pirâmides etárias
consideram a representação proporcional que homens e mulheres
de cada idade têm em relação ao total populacional de ambos os
sexos. É muito importante atentar para esse fato, pois ao representar
a proporção de homens e mulheres em cada idade em relação à
população total de ambos os sexos, a soma das superfícies das barras
dos histogramas terá sempre áreas iguais, independente do tamanho
das populações estudadas.
As pirâmides etárias de Rondônia e Santa Catarina podem
ser visualizadas a seguir:
106 | Pensar com método

Figura 2. Pirâmides etárias de Santa Catarina e Rondônia, 2010

Fonte: IBGE – Censo demográfico 2010.

A leitura e interpretação de pirâmides etárias é bastante


intuitiva. No exemplo em questão, percebe-se que a base da
pirâmide é mais estreita no caso de Santa Catarina, indicando que
proporcionalmente há menos crianças do que em Rondônia, ao passo
que há mais idosos no estado do Sul do que em Rondônia. Nota-se
que a população de Rondônia é claramente mais rejuvenescida do
que aquela de Santa Catarina.
A conclusão de que a população catarinense é mais
envelhecida do que a rondoniense pode ser reiterada atentando-se
para a razão de dependência dos idosos nos dois estados. A razão
de dependência total é uma relação entre pessoas em idade inativa
(aquelas com idades de 0 a 14 anos e de 60+ anos) e aquelas em
idade ativa (15 a 59 anos). A razão de dependência infantil é dada
pela relação entre a população de 0 a 14 anos e aquela de 15 a 59
anos. Por fim, a razão de dependência dos idosos é a relação entre
os idosos de 60+ anos e a população em idade ativa (15 a 59 anos).
Todas essas três medidas são sempre apresentadas por cento
de habitantes:
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 107

Tabela 6. Razão de dependência infantil, dos idosos e total de


Rondônia e Santa Catarina em 2010

Fonte: IBGE – censo demográfico 2010.

De acordo com os dados da tabela 6, embora a razão de


dependência total seja maior em Rondônia se comparado à Santa
Cataria – há 52,4 dependentes para cada 100 pessoas em idade ativa
em Rondônia em contraste com 47,7 dependentes para cada 100
pessoas em idade ativa em Santa Catarina – a razão de dependência
idosa é maior em Santa Catarina (15,5 idosos para cada 100 pessoas
em idade ativa, contra 11 idosos por cento de pessoas em idade
ativa existentes em Rondônia em 2010). Mais uma vez, reitera-se
que a população de Santa Catarina é a mais envelhecida dentre as
duas analisadas.
Até aqui, buscou-se justificar os resultados encontrados para
a TBM com base em indicadores que descrevem a estrutura etária da
população. Contudo, é possível ir além e controlar o efeito da estrutura
etária de forma a tornar as distintas realidades demográficas de fato
comparáveis. No próximo tópico veremos como controlar o efeito da
estrutura etária sobre as taxas brutas.

Noções sobre padronização direta

Se a esta altura estamos conscientes de que os eventos


demográficos são mais intensos em determinadas faixas etárias, como
foi registrado no gráfico 2, algumas regiões podem registrar taxas
brutas mais altas apenas porque possuem proporcionalmente mais
pessoas naquela faixa na qual o evento tende a ser mais frequente,
e não porque o padrão das taxas específicas seja em si mesmo
mais elevado. Para lidar com essa questão e neutralizar o efeito da
estrutura etária sobre as taxas brutas, os demógrafos aplicam uma
108 | Pensar com método

técnica denominada padronização. Nesse capítulo, por uma questão


de espaço, veremos apenas a padronização direta, utilizada quando
dispomos da distribuição de eventos e da população por idade
simples ou por grupo etário. Em todo o caso, deve-se reconhecer que
também existe a padronização indireta, aplicada quando os dados
são incompletos (dispõe-se apenas da distribuição da população por
idade e o total de eventos que se deseja estudar, mas não a distribuição
dos eventos por idade). Dado o volume de informações disponíveis
hoje, na maior parte das situações, de fato aplicamos a padronização
direta. Assim, na maior parte das vezes que necessitamos recorrer
à padronização indireta, é porque estamos trabalhando com áreas
geográficas ou grupos sociais muito pequenos, de maneira que as
taxas específicas oscilam muito, ou o número de eventos ocorridos
em alguma idade é igual a zero.
Aqui veremos a aplicação da padronização direta
considerando o comportamento da mortalidade em Rondônia e
Santa Catarina. Mas a técnica pode ser aplicada a uma infinidade
de outros fenômenos, nos quais suspeitamos que a frequência de
determinado evento seja mais intensa em função da estrutura etária
da população.
Todo o princípio da padronização se fundamenta na relação
existente entre a taxa bruta de mortalidade e as taxas específicas de
mortalidade. Assim:

TBMj = ∑ nPx,j * nTEMx,j

Onde, TBM é a taxa bruta de mortalidade da população j, nPx,j


é a proporção de pessoas com idades entre x e x+n na população
j e nTEMx,j é a taxa específica de mortalidade do grupo etário x a
x+n na população j. A somatória do produto das taxas específicas de
mortalidade do grupo etário x a x+n e da proporção de pessoas no
grupo etário x a x+n é igual à TBM. (Ver Tabela 7 adiante)
Uma vez constatada que a relação é de fato verdadeira,
podemos “eliminar o efeito da composição etária sobre os
indicadores que desejamos comparar, ajustando-os segundo uma
mesma distribuição etária” (Carvalho et all., 1998, p. 42). Na prática,
isso quer dizer que para os dois Estados, devemos multiplicar o
conjunto das respectivas TEM por uma mesma distribuição etária.
A grande questão passa a ser qual distribuição etária utilizar como
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 109

referência. Em geral, os demógrafos utilizam como referência


uma terceira população não incluída na comparação (poderia ser
a distribuição etária da população brasileira como um todo, por
exemplo); ou uma média da distribuição etária das duas populações
investigadas; ou ainda calcular o produto nPx,j * nTEMx,j ora usando
a distribuição etária de uma das populações em estudo e ora, a da
outra. Optaremos aqui por esse terceiro caminho, cujos resultados
são apresentados nas tabelas 8 e 9.
Verifica-se que se o estado de Santa Catarina tivesse a
mesma estrutura etária de Rondônia, sua taxa bruta de mortalidade
diminuiria de 5,5 óbitos por mil para 4,2 óbitos por mil habitantes.
Se a população catarinense fosse tão jovem quanto a rondoniense,
sua taxa bruta de mortalidade seria inclusive menor do que aquela
verificada em Rondônia, que é de 4,6 óbitos por mil habitantes.
Por outro lado, se Rondônia tivesse a mesma estrutura
etária de Santa Catarina, sua taxa bruta de mortalidade seria maior,
passando dos 4,6 óbitos por mil observados em 2010, para 6 óbitos
por mil habitantes.
Tabela 7. Cálculo da taxa bruta de mortalidade para Rondônia e
Santa Catarina em 2010 a partir da somatória do produto nPx,j * nTEMx,j
110 | Pensar com método

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre
Mortalidade – SIM, para óbitos. IBGE – censo demográfico 2010, para população dos Estados.
Tabela 8. Cálculo da taxa bruta de mortalidade de Rondônia e Santa Catarina em
2010, ajustada segundo a distribuição etária de Rondônia em 2010

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 111

Mortalidade – SIM, para óbitos. IBGE – censo demográfico 2010, para população dos Estados.
Tabela 9. Cálculo da taxa bruta de mortalidade de Rondônia e Santa Catarina em 2010,
ajustada segundo a distribuição etária de Santa Catarina em 2010
112 | Pensar com método

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MS/SVS/CGIAE - Sistema de Informações sobre
Mortalidade – SIM, para óbitos. IBGE – censo demográfico 2010, para população dos Estados.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 113

Esse exercício revela que a taxa bruta de mortalidade de


Santa Catarina só é mais alta do que aquela de Rondônia por conta
da estrutura etária. Controlando o efeito da estrutura etária por meio
da utilização de uma mesma distribuição etária como referência,
observa-se que a mortalidade é mais intensa em Rondônia do que
em Santa Catarina.

Tabela 10. Resultados da padronização direta das TBM: Rondônia e


Santa Catarina, 2010

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do MS/SVS/CGIAE - Sistema de


Informações sobre Mortalidade – SIM, para óbitos. IBGE – censo demográfico 2010,
para população dos Estados.

Com base na tabela 10, observa-se que os resultados obtidos


nas duas padronizações são bastante consistentes, indicando que,
uma vez que se controle o efeito da estrutura etária, a taxa bruta
de mortalidade de Rondônia é cerca de 10% maior do que a taxa
bruta de mortalidade de Santa Catarina, revelando que as condições
de sobrevivência no primeiro estado são um pouco piores do que no
último.

Para ir mais longe

Há diversos livros didáticos dedicados a compilar e ensinar os


principais conceitos e métodos de análise demográfica. Entretanto,
grande parte deles se encontra disponível apenas em idiomas
estrangeiros e o público alvo é composto, sobretudo, por estudantes
de pós-graduação (Shryock & Siegel, 1971; Wunsch & Termote,
114 | Pensar com método

1978; Newell, 1988; Smith, 1992; Hinde, 1998; Preston, Heuveline


& Guillot, 2001; Rowland, 2003; Siegel & Swanson, 2004; Keyfitz
& Caswell, 2005; Caselli, Vallin & Wunsch, 2006; Yaukey, Anderton
& Lundquist, 2007; Livi-Bacci, 2007; Leridon & Toulemon, 2014).
Outra barreira que dificulta a difusão destes conhecimentos é a
linguagem por vezes muito técnica e que parte do pressuposto que
o estudante possui uma formação sólida em matemática, o que nem
sempre corresponde à realidade.
Para driblar estas dificuldades iniciais, uma vez que o
estudante ou pesquisador tenha acesso a uma das referências acima
citadas, possíveis problemas de compreensão de termos técnicos
e a necessidade de encontrar o seu equivalente em português
podem ser superados recorrendo-se à Enciclopédia de Demografia
(Demopaedia) disponível online.3 A Demopaedia permite a
recuperação rápida da definição de conceitos demográficos, bem
como identifica como estes conceitos são traduzidos em diferentes
línguas.
Quanto a eventuais dificuldades no entendimento da
linguagem matemática e estatística, há publicações dedicadas ao
ensino de matemática para cursos da área de humanas (Medeiros,
1996; Blanco, 2004) e de estatística básica que merecem ser
consultados sempre que houver dúvida. Destacaríamos os trabalhos
de Medeiros (1996), Blanco (2004); Bussab e Morettin (2004) e
Levine et all. (2005).
A Organização das Nações Unidas (ONU) também é
particularmente preocupada com a divulgação e o desenvolvimento
do conhecimento demográfico. A ONU disponibiliza manuais
e guias que têm como público principal técnicos e analistas de
institutos nacionais de estatística e demais encarregados de
produzir indicadores demográficos apropriados para os Estados
membros da organização. Os manuais e guias de métodos e técnicas
demográficas editados pela ONU cobrem seis eixos temáticos:
estimativas demográficas; modelos demográficos; projeções
demográficas; indicadores socioeconômicos; planejamento familiar
e migração interna. Certamente há demógrafos críticos dos manuais
das Nações Unidas, mas eles têm a vantagem de serem pensados,

3
Demopaedia – Enciclopédia de Demografia – Dicionário Demográfico Multilíngue.
Acessível em: http://www.demopaedia.org/ Acesso em: 18 fev. 2018.
Introdução aos fundamentos da análise demográfica | 115

sobretudo, para a realidade própria de países em desenvolvimento,


nos quais os dados disponíveis costumam ser limitados e por vezes
inconsistentes.4
Considerando o material didático publicado em português,
destacam-se as obras: Dinâmica da População (Santos, Levy &
Szmrecsányi, 1991); Introdução a alguns conceitos básicos e medidas
em demografia (Carvalho, Sawyer & Rodrigues, 1994) e Introdução à
Demografia (Nazareth, 1996). Nota-se que grande parte do esforço
em produzir material didático em português voltado para o ensino
de métodos demográficos esteve concentrado nos anos 1980-1990.
No âmbito da Associação Brasileira de Estudos Populacionais
(ABEP) também existe a preocupação em produzir material de
apoio atualizado, específico para o ensino de Demografia em nível
de graduação.

Referências bibliográficas

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4
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116 | Pensar com método

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desafios metodológicos de pesquisas nas
mídias digitais

Iara Beleli
Larissa Pelúcio

Argonautas digitais

Na Antropologia, pelo menos desde Malinowski, lidamos


com aquilo que acontece no cotidiano miúdo de pessoas ordinárias,
mas que compõem o que chamamos de cultura e de vida social. A
partir dos Argonautas do Pacífico Ocidental, obra seminal do método
etnográfico publicada em 1922, o deslocamento para locais distantes
física e/ou simbolicamente daquele em que a/o pesquisadora/
pesquisador vive, passou a ser mais que uma prática de pesquisa,
“mas a própria teoria vivida” (Peirano, 2008, p. 03).
A história do pesquisador europeu chegando a um
arquipélago melanésio, observando, desde a praia, o barco que o
trouxe desaparecer no horizonte, contada diversas vezes, passou
a compor um dos mitos da Antropologia: o trabalho de campo de
Malinowski entre os trobriandeses (Peirano, 2002). O convívio
prolongado com o “outro”, a valorização do saber nativo, a atenção
voltada para a vida miúda, o “estar lá” (Geertz, 1997) tornaram-se
práticas comuns e compuseram o arsenal conceitual e metodológico
da disciplina.
Pesquisadoras/res passaram a ir a campo em uma experiência
sinestésica intensa de contato com vidas distintas das suas. Se fazer
etnografia era estar lá e valer-se da autoridade da experiência
imersiva do deslocamento para, posteriormente, escrever sobre a
cultura observada, poderíamos chamar de etnográfica a imersão
em mundos digitais, como passamos a fazer de forma cada vez
mais consistente a partir do final do século XX? O que temos feito
como cientistas sociais nos meios digitais? A Internet exige outras
metodologias de pesquisa? Quais métodos podemos emprestar de
nossa experiência acumulada para as investigações nas, das, e com
as mídias digitais?
Adrian Athique (2013) aponta que a relação multifacetada
118 | Pensar com método

entre as ações humanas e as mídias digitais nos colocaram


complexas questões que desafiam a Sociologia contemporânea. Para
nossa discussão aqui, nos interessa pensar em como as Ciências
Sociais e Humanas tem se deixado afetar por essas significativas
formas de construir relações sociais e como enfrentam os desafios
metodológicos que este cenário impõe. Desde que começamos a
nos valer das redes sociais digitais (bem como das mídias digitais)
em nossas investigações acadêmicas percebemos que elas aportam
novas possibilidades de levantar dados, estar em campo, iniciar
contatos, acessar determinados grupos e interagir com pessoas
cujas práticas e desejos estavam, por vezes, no campo do segredo e/
ou do socialmente proscrito.1
Talvez o Orkut (2004-2014), plataforma do Google muito
popular no Brasil no período, tenha sido uma das primeiras redes
sociais digitais a atrair de forma mais significativa cientistas sociais,
cujas “comunidades” abrangiam variados temas e algumas chegavam
a reunir milhares de usurários/as. O quantitativo se traduziu, por
vezes, em aspectos qualitativos relativos às discussões, não apenas no
sentido de serem profundas ou bem embasadas, mas de oferecerem
aos/às pesquisadores/as uma miríade de pontos de vistas, acesso a
termos “nativos” e grande possibilidade de armazenamento. O acesso
a realidades de localidades diversas e dispersas pelo país permite

1
A pesquisa de Daniela Araújo Silva (2001-2004) sobre transtornos alimentares, a
partir do ponto de vistas de jovens mulheres e adolescentes, é um exemplo desse tipo
de investigação. Silva valeu-se de sites, páginas pessoais, grupos de discussão on-line
e blogs para levantar dados e interagir com aquelas pessoas. Referimo-nos a esta
pesquisa não só pela questão do segredo ser central para as colaboradoras, mas pela
forma como a autora aborda a questão metodológica. Ao assumir que estava diante
de uma desafiante novidade, Silva enfatizou os fundamentos e as justificativas de
suas escolhas em um território sobre o qual pairavam suspeitas quanto à veracidade
não exatamente do conteúdo disponibilizado online, mas da identidade das pessoas
que ali estavam, interagiam e sobre o que diziam de si. Ana Maria Nicolaci-da-
Costa (2002) discute a forma como a grande mídia repercutia pesquisas de caráter
científico (o que, na visão da autora não era garantia de veracidade ou de rigor
metodológico) sobre os perigos contidos na Internet, centrados desde o vício por
jogos (vídeo games) até encontros fatídicos com psicopatas, passando por golpes
de toda ordem, inclusive amorosos, de pessoas que se faziam passar por quem não
eram a fim de ludibriar incautos/as. A generalização dessas percepções fizera com
que, nos primeiros anos deste século, algumas/alguns pesquisadoras/es tardassem
a justificar o valor científico dos dados levantados em trabalhos de campo nos quais
a Internet e suas plataformas eram locus centrais.
Aperte play para iniciar | 119

aceder a um conjunto amplo de discursos, incluindo os contatos face


a face, que, em alguns casos, é facilitado pela comunicação digital.2
Antes mesmo das redes sociais digitais, on e off-line já se
apresentavam como esferas interconectadas, Jonatas Donelles
(2004) mostrava como para seus/suas colaboradoras de pesquisa
os encontros presenciais entre si e com o pesquisador eram
valorizados.3 A grande novidade era estar em campo como “avatares”,
corpos virtuais empregados em ambientes de sociabilidade digital,
em interações restritas àqueles “mundos tridimensionais” como o
site Second Life e o Adobe Atmosphere.4 Essas novas formas de fazer
etnografia nos colocou frente a desafios metodológicos específicos,
mas também nos fez (e ainda faz) retomar antigos dilemas éticos e
enfrentar desafios investigativos que têm sido tema de discussão na
Antropologia mais recente, sobretudo, após a publicação da coletânea,
hoje clássica, Writing Culture (1986),5 conhecida por aportar uma

2
Carolina Parreiras Silva (2008) e Larissa Pelúcio (2009) valeram-se das chamadas
“Comunidades” do Orkut em suas pesquisas. A primeira centrou-se na comunidade
“Eles perguntam/Eles respondem”, voltada para homens jovens que tinham interesse
amoroso/sexual em outros homens. Silva buscou entender como as relações on-
line moldavam e pautavam formas de se constituir subjetiva e corporalmente a
sexualidade. Para tanto, a pesquisadora seguiu os fios que a levaram do on para
o off-line, de forma a interagir nos fóruns de discussão da comunidade, além de
participar dos “Orkontros”, encontros off-line organizados dentro da comunidade
entre seus membros. Pelúcio, de forma inédita, criou a “Comunidade” “Homens
que Gostam de Travestis”, o que lhe possibilitou entrar em contato com homens
que buscavam se relacionar sexual e/ou amorosamente com travestis. Em ambas
as pesquisas, os contatos via “Comunidades” derivaram não só em etnografias em
modelos mais clássicos - espaços físicos específicos -, mas em redes digitais que
levaram as pesquisadoras a seguir os sujeitos por outras plataformas digitais.
3
A dicotomia online/off-line ainda aparece nas análises de Dornelles como
realidades apartadas. Ainda que o autor ressalte que os aspectos territoriais, no
sentido material, influam na maneira como usuárias/os interagem nas salas de
bate-papos digitais, Dornelles trata-os como mundos diferentes, até mesmo pelo
momento em que realizava a pesquisa.
4
Para uma discussão acurada e apresentação dos programas citados, ver Leitão e
Gomes (2012) e Guimarães Júnior (2004).
5
Writing Culture (1986) organizado por George Marcus e James Clifford. Na primeira
parte do livro as trajetórias pessoais de Paul Rabinow e de George Marcus deixam
ver suas insatisfações políticas e metodológicas com o fazer antropológico. Esse
debate, do final da década de 1960, aponta para a new sensitivity, gestada a partir
de novas formas de entender o poder e a política - uma nova suscetibilidade para
criticar paradigmas (e criar outros), políticas e projetos científicos, que nasce em um
120 | Pensar com método

postura metodológica particular, posteriormente designada como


crítica pós-moderna. De lá para cá, muito se discutiu sobre o fazer
etnográfico, mas ainda estamos tateantes quanto a etnografia
de Internet. Christine Hine (2000), pioneira na sistematização
metodológica deste campo, propõe que a Internet é, atualmente, uma
forma popular de nos referimos a nichos específicos de sociabilidade
e de circuitos online nos quais as pessoas interagem entre si, mas
também incorporam coisas e sistemas maquínicos (Haraway, 2009).
Etnografia na/da/com a Internet (Ramos, 2016), etnografia
virtual (Hine, 2004), online, do ciberespaço, pós-tradicional (Lewgoy,
2009) são preposições e adjetivações que sinalizam os desafios que
temos enfrentado com o trabalho imersivo no fluxo on/off-line. A
variedade hesitante em nomear a metodologia sinaliza também
as dificuldades que temos tido em admitir que, de fato, estamos
consolidando um novo campo de estudos dentro da antropologia
– mais que trilhando por novas searas investigativas, estamos
construindo uma antropologia digital (Miller & Horst, 2015).
Lidamos com um campo em franca e rápida transformação,
nesse sentido, a discussão apresentada neste artigo não pretende
ter caráter de um manual ou receituário, mas de aprender com as
pesquisas, sobretudo brasileiras, realizadas nesse campo, levando-
nos a enfrentar limites e desafios daquilo que os conteúdos digitais têm
potencializado: capacidades de armazenamento, compartilhamento,
mobilidade, alcance e interatividade – e, ao mesmo tempo, com
uma estrutura temporal singular, tanto no que se refere a memórias
que não se apagam facilmente (Lins, 2017), quanto a já clássica
noção de compressão tempo/espaço. Nancy Baym (2010), uma das
expoentes nesse campo, sublinha esses elementos, sugerindo que
prestemos atenção nas relações que desenvolvemos ao trabalhar
com mídias digitais. É justamente o que tentamos fazer neste artigo,
atentas a essas relações, privilegiamos os trajetos metodológicos
das pesquisas realizadas nas e com as mídias digitais, sobretudo
aquelas cujas temáticas dialogam com os estudos de gênero e
sexualidade articulados a outras diferenças.6 Esperamos que as

terreno de eventos históricos e movimentos políticos, trazendo à cena diálogos com


autores franceses que os influenciaram (entre outros, Foucault, Derrida e Deleuze) e
o clima hostil da ‘Gold Age’ de antropólogos às ideias nascentes que ganhavam mais
adeptos por parte dos estudantes (Ferreira, 2010, p. 374).
6
O volume considerável de pesquisas sobre a e na Internet na grande área de ciências
Aperte play para iniciar | 121

discussões suscitadas por diversos percursos apontem questões


para pesquisadores/as que tem adentrado neste campo. Para isso,
iniciamos com uma breve historicização do surgimento da Internet e
de como as ciências sociais passam a prestar especial atenção a esse
fenômeno sociológico, buscando estratégias metodológicas que, ao
mesmo tempo, refinassem e tencionassem conceitos caros a nossa
área, para lidar com o digital.7

Enredados na sociedade em rede

Nas ciências humanas, não raro, definimos as divisões


temporais e fizemos análises sócio-antropológicas a partir de
registros tecnológicos. Aprendemos que uma das grandes revoluções
humanas foi provocada pelas tecnologias de cultivo da terra; ou pela
industrialização crescente de algumas sociedades. Para Manuel
Castells (2011, p. 43) “a sociedade não pode ser entendida ou
representada sem suas ferramentas tecnológicas”.
O advento da Internet comercial,8 segundo o mesmo autor,
configurou-se como uma das mais impactantes revoluções dos
últimos dois séculos. Para o sociólogo, o conceito de “sociedade em
rede” previa uma nova configuração social resultante da junção de
três grandes transformações – as consequências das conquistas dos
movimentos sociais da década de 1960, em particular o feminismo;
a revolução da tecnologia da informação a partir da década de 1970;
e a reestruturação econômica da década de 1980, em especial a
diminuição do estatismo.

humanas nos levou a dar ênfase àquelas mais próximas dos nossos próprios temas
de pesquisa. Desde já nos desculpamos por possíveis omissões.
7
As tecnologias de comunicação digital, que segundo David Miller e Hearth Horst
(2015) foram desenvolvidas ou podem ser convertidas para códigos binários,
proporcionaram novas formas de constituirmos relações mediadas.
8
Nascida sob a égide da Guerra Fria como resultado de um projeto da ARPA (Agência
de Projetos de Pesquisa Avançada), divisão do Departamento de Defesa dos Estados
Unidos. A então chamada ARPANET tinha como objetivo materializar um sistema de
comunicação que não fosse vulnerável a ataques nucleares, por isso formaria uma
rede sem centros de controle. Ela se iniciou conectando algumas universidades
da costa oeste do país: Universidade da Califórnia em Los Angeles, Universidade
da Califórnia em Santa Barbara, Universidade de Stanford e uma universidade do
Estado de Utah (Miskolci, 2017, p. 7).
122 | Pensar com método

No bojo dessas transformações, as universidades foram palco


de movimentos identitários9 e de juventude – luta por direitos civis
dos/das negros/as, demandas feministas por simetria de gênero,
reivindicação de estudantes por um outro modelo de educação,
movimento pacifista e hippie. Normas e valores culturais estavam
mudando em boa parte das sociedades impactadas, ainda que
tangencialmente, por ideias e comportamentos que agora viajavam
mais rapidamente, dada as possibilidades de transmissão de imagens
via satélite, entre outros avanços das tecnologias de comunicação.
Essas conexões se intensificam quando jovens daquela mesma geração
passam a investir conhecimento e esforços em microssistemas de
comunicação, embalados por ideias comunitaristas. Apostava-se em
uma cultura da conexão (Dijck, 2013), estreitando os laços entre as
pessoas e difundindo conhecimentos.
Três décadas depois, a criação da Word Wide Web (1991)
ofereceu as bases para um novo tipo de comunicação em rede,
que irá constituir o que Jose Van Dijck (2013) chama de “cultura
da conectividade”, na qual os ideais comunitaristas das décadas
passadas dão lugar a perspectivas mais comerciais e tecnificadas. “A
cultura da conectividade evolui como parte de uma transformação
histórica mais longa caracterizada por uma reposição das fronteiras
entre domínios privados, corporativos e públicos” (Dijck, 2013, p.
22), resultando a necessidade, no presente, de estarmos atentas/os
à dimensão comercial e mercadológica das plataformas e de como
esse aspecto impacta e molda nossas interações on/off-line.
Em 1995, quando a Internet se torna comercial, o acesso
enfrentava barreiras tecnológicas e de classe consideráveis, que
restringiam seus usos: conexão analógica, dependente do sistema
de telefonia, suportes caros e interfaces desafiantes para os
neófitos. Reproduzia-se no universo online desigualdades flagrantes
no mundo off-line, anunciando desde aquele momento que o
“ciberespaço”, expressão ainda cara a muitas/os pesquisadores/
as, não era uma “universalidade desprovida de significado central”
ou um “sistema da desordem” apartado do, então chamado, mundo
real, como propôs Pierre Lévy (2003), um dos pioneiros nos estudos

9
Naquele contexto, os movimentos identitários não tinham propriamente um
valor essencialista ou de não-conexão com pautas macrossociais, tratava-se de
movimentos cujas demandas estavam centradas questões de gênero, sexualidade e
raça, até então secundarizadas no interior do movimento operário.
Aperte play para iniciar | 123

sobre cultura e Internet. Mais que um outro espaço, a Internet se


mostrava como “uma ferramenta adicional que as pessoas usam
para se conectar, uma ferramenta que só pode ser entendida como
profundamente embebida e influenciada pelas realidades diárias da
vida corporificada” (Baym, 2010, p. 152). Inicia-se o questionamento
do par real/virtual.
Pioneiramente, a socióloga e psicanalista Sherry Turkle,
em Life on the screen: identity in the age on the Internet (1995),10
discute como o computador deixa de ser um objeto de trabalho, de
linguagem hermética, para se tornar um “amigo”, devido à linguagem
visual dos ícones, do fácil manuseio e da possiblidade de interação.
Nessa abordagem inicial, real e virtual ainda aparecem como mundos
distintos e a Internet é vista como um lugar no qual se pode viver
vidas múltiplas. Alguns anos depois, a autora revê essa separação:

Enquanto a maioria das pessoas parece querer separar o virtual


do real, R-V, não faço essa distinção. Prefiro, insisto, referir-me ao
virtual e ao resto da vida, R-V, para evitar o emprego da palavra
“real”. Penso que, cada vez mais, há menos necessidade de usar
uma oposição tão categórica. No futuro, as fronteiras permeáveis
serão as mais interessantes para estudar e compreender (Turkle
em entrevista a Casalegno, 1999, p. 118).

A grande contribuição de Turkle foi perceber que aquele tipo


de comunicação não era ilusória, mas estava mudando as pessoas e
as relações. O encurtamento das distâncias e a aceleração do tempo
propiciavam mudanças na vida miúda das pessoas que passavam a
ter acesso à conexão/conectividade. A díade conexão/conectividade
possibilitou, e possibilita, o estreitamento dos laços e a rápida
difusão de conhecimentos.11

10
Usamos aqui a versão em português - A vida no Ecrã - publicada em 1997.
11
Turkle escreveu em um outro momento, bastante inaugural, mas chamou atenção
para a dimensão da conexão e da interatividade, ressaltando, no entanto, que
os contatos digitais não suprimiriam o desejo do contato face a face. Mais tarde,
Dominique Wolton (2000), para quem a questão técnica se subsume às questões
políticas, alertava, por outro lado, sobre o risco da sociedade da informação se
transformar na “sociedade do mesmo”, ao favorecer a ligação entre os que defendem
as mesmas causas. Em nossas timelines “viciadas”, por onde circulam notícias
de diferentes meios de comunicação, os mesmos comentários são repetidos à
exaustão, e certamente abrem um debate mais potente sobre quaisquer questões,
124 | Pensar com método

Em poucas décadas, a comunicação proporcionada pela


conexão em rede passou a compor as práticas cotidianas de um
número cada vez maior de pessoas,12 de forma que a esfera pública/
privada já não podem mais ser pensadas sem essas ações. Acessar
notícias, enviar e-mails, checar dados bancários, baixar músicas,
participar de discussões políticas em fóruns online, comprar
produtos diversos ou namorar tendo o computador conectado (e
hoje, o celular) tornaram-se práticas rotineiras, de modo que “a
disseminação das relações mediadas criou uma nova realidade social
e subjetiva, borrando fronteiras entre público e privado, pessoal e
político, que se revelam inextricavelmente associados” (Beleli &
Miskolci, 2016, p. 7).
Nesta segunda década do milênio, é inquestionável que os
sujeitos se encontram imersos em, e se constituem por, uma gama
de imagens fragmentadas, cujas leituras não necessariamente
são detidamente refletidas, mas os/nos impele a ter respostas
imediatas. A Internet acelerou esse movimento, na medida em que,
ao navegar por um site ou aplicativo, estamos continuamente “em
estado de prontidão” (Santaella, 2004, p. 33), tornando a informação
digitalizada parte de nossas experiências profissionais, amorosas,
afetivas e sexuais. Assim, a interface corpo/tecnologia (Bruno,
2013), como parte do fazer e refazer dos corpos (Haraway, 2009),
também constitui subjetividades, em um jogo que borra ainda
mais as fronteiras – natural/artificial, externo/interno, público/
privado.13 Assim como o corpo, a subjetividade vai sendo constituída

mas a pergunta é se, e como, essa capilarização se estende para o social, de forma
que argumentos e contra-argumentos colocados em cena levem a reflexões que
propiciem mudanças sociais.
12
Dados divulgados em 2015, em pesquisa realizada pela União Internacional
das Telecomunicações, órgão vinculado à Organização das Nações Unidas (ONU),
registra 3,2 bilhões de usuários de Internet no mundo. Destes, a maior parte esta em
países em desenvolvimento (http://www.broadbandcommission.org/Documents/
reports/bb-annualreport2015.pdf. Acesso em: 20 out. 2016).
13
O fluxo entre on e off-line conectaram demandas por reconhecimento à agenda
política nacional de forma que podemos afirmar que o pessoal nunca foi tão político,
mas também nos instiga a ideia de Bila Sorj (2016) de que o político tem se tornado
pessoal. Seja nas rusgas familiares provocadas por postagens de teor político e/ou
partidários em páginas pessoais do Facebook ou, como mostra Pelúcio (2018) na
“politização do romance”, quando usuárias/os de aplicativos para relacionamentos
guiam suas escolhas por julgamentos prévios de seus/suas pretendentes, acionando
Aperte play para iniciar | 125

nessa interface, expandindo a visibilidade do que antes poderia ser


entendido como intimidade. Para Fernanda Bruno (2013, p. 125),
“parte da sociabilidade na Internet envolve a exposição voluntária
de dados pessoais, narrativas e registros diversos da vida cotidiana”.
Essas exposições e narrativas se tornam possíveis com o
advento da chamada Web 2.0,14 quando a Internet se torna de fato
social (Van Dijck, 2013). Christine Hine nomeia essa “nova internet”
de 3E (“embedded, embodied e everyday”), uma vez que se torna
um fenômeno permeado, incorporado e cotidiano. O espaço on é
impregnado com elementos que compõem os contextos off-line nos
quais as pessoas interagem, atribuindo significados para o vivido na
web. Essa incorporação aparece na análise de alguns/mas autores/
as que, de seus campos de estudo, assinalam expressões como
“quando saio sem meu celular... me sinto nua” (Beleli, 2015) ou
“estou sem bateria”, “estou com pouco sinal” que apontam as coisas
“como parte de nosso ser e, para alguns, inclusive de sua forma de
desejar” (Miskolci, 2017, p. 6).
Literalmente incorporada, a tecnologia não é externa, um
objeto cuja utilização pode melhorar a vida dos sujeitos ou amainar
os caminhos que levam à realização de seus projetos. Entender essa
conexão e suas consequências ultrapassa a noção de utilidade dos
objetos (Miller, 2010), possibilitando perceber como esses híbridos
(corpos/tecnologias) estão imersos na produção de agência.15 O
acesso à mobilidade/movimento, sem restrições de lugar ou horários,
é compatível com atividades profissionais, domésticas ou mesmo
de lazer, provocando emoções ativadas por sons e vibrações. Mas
também constituem novas subjetividades, muitas vezes capturadas

elementos gráficos e iconográficos que remetem, segundo suas avaliações, a adesões


políticas as quais são avessos ou adeptos. Para uma discussão inicial sobre como as
desqualificações pessoais tem se alastrado pelas redes, ver Beleli, 2016.
14
Segundo Alex Primo (2007, p. 12), “A Web 2.0 é a segunda geração de serviços
online e caracteriza-se por potencializar as formas de publicação, compartilhamento
e organização de informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os
participantes do processo”. É quando a Internet se torna verdadeiramente social. A
mudança na forma de gerar conteúdo e a possibilidade compartilhá-lo, armazená-
lo, interagir com ele, proporcionou uma interatividade altamente emocional.
15
Entendemos agência ao modo de Saba Mahamood (2006), como um conjunto de
capacidades inerentes ao sujeito, que “não são o resíduo de um self não domesticado,
existente antes das operações de poder, mas são, em si mesmas, produto dessas
operações”.
126 | Pensar com método

por demandas constantes, de toda ordem, gerando uma espécie de


mais-valia emocional.16
Dado o barateamento dos suportes e serviços no Brasil,17
estamos cada vez mais conectados/as e temos um número maior
de pessoas acessando as comunicações digitais, mas como isso
muda a forma de pensarmos as sociedades e as relações sociais? A
propósito, como isso nos transforma, nos informa, nos instiga e nos
desloca? Como a intensificação do uso de tecnologias de informação
tem impactado nosso dia a dia, o miúdo da vida?
Na interlocução com outras áreas de conhecimento,
particularmente Comunicação e Educação, percebemos que as
metodologias nesse campo têm sido aprendidas no fazer da pesquisa,
de modo que o próprio campo nos impele a criar caminhos distintos
dos anteriormente traçados e, por vezes, modifica a relação do/da
pesquisador/a com o próprio universo pesquisado. Daí a necessidade
de quem pesquisa na18 Internet exercitar a reflexividade, definida
por Jair Ramos (2015, pp. 32-33) como a “capacidade e exigência
de que o pesquisador examine seus pressupostos e seus recursos
conceituais e metodológicos frente às especificidades da situação
que se quer observar e analisar, de forma a adequar seus meios à
situação estudada”. Assim como se interrogue “sobre a adequação de

16
Referimo-nos ao conceito de mais-valia, de Karl Marx, que mostra como no sistema
capitalista o lucro vem da extração de tempo de trabalho não pago ao trabalhador.
A mais-valia absoluta vem desse tempo de trabalho dilatado e não remunerado, da
intensificação das atividades laborais no mesmo tempo de trabalho. A associação a
este conceito deriva da observação em nossas pesquisas empíricas, ao percebermos
como nossos/as interlocutores/as se sentiam constantemente pressionados
a atender demandas que chegavam por meio das mídias digitais: ansiedade
em responder ou obter respostas; sensação de que nunca cumpriam a agenda;
aborrecimentos por verem online alguns comentários feitos em suas páginas
pessoais, entre outras emoções consideradas exaustivas, talvez a mais conhecida
esteja na sensação de não ser querido/a porque não teve muitas “curtidas” em um
post.
17
Dados recentes mostram que ¼ da população acessa a rede diariamente
(Secretaria de Comunicação Social, 2015).
18
Ainda de acordo com Ramos (2015), as pesquisas na Internet privilegiam os fluxos
entre on e off-line, enquanto aquelas da internet, nos leva a pensar em diálogos com
os agentes maquínicos que compõem o universo online, uma vez que a forma como
trabalham os algoritimos traçam combinações que são articuladas por agentes
não-humanos. Observar a forma como sites, perfis e algoritimos operam nos leva a
observações concentradas no on-line, mais do que no fluxo on/off line.
Aperte play para iniciar | 127

nossas ferramentas conceituais ao mundo social que observamos”


(Ibid., p. 35).
Talvez uma das primeiras interrogações derivada deste
novo campo de investigação tenha sido o questionamento sobre a
dualidade real/virtual, on/off-line, como apresentaremos a seguir.

On/off: trânsitos, fluxos e fronteiras interpenetráveis

Nos anos de 1990, Arturo Escobar (2004 [1994]) e Pierre


Lévy (1999 [1997]), ao escreveram sobre cibercultura e ciberespaço,
não lidavam apenas com neologismos. Instigados em explorar um
fenômeno social novo e marcante, os autores buscavam um cabedal
conceitual que permitisse esse exercício intelectual. Escobar
propõe a antropologia da cibercultura como um novo campo que
demanda novas questões e um repensar metodológico; Lévy (2009
[1999], p. 12) propõe pensar a cibercultura de forma um tanto
entusiástica, apostando em seu potencial criativo e democrático
(sem desconsiderar seus usos comerciais e um tanto espúrios).
No que toca à sensibilidade antropológica, o filósofo nos convoca
a pensar nas “mudanças qualitativas na ecologia dos signos”
provocadas pelas redes digitais. Ambos falavam de uma realidade
nascente, perturbadora e que, por mais que se fizesse presente,
ainda estava circunscrita a grupos específicos nos quais marcas de
nacionalidade, geracionais, de classe e gênero, mesmo silenciadas,
eram presumíveis.
Como afirma Hine (2016, p. 15), “a internet atual percorreu
um longo caminho desde o ciberespaço dos anos 1990”, tornando-
se incorporada, corporificada e cotidiana. Atualmente, segundo a
autora, não “experimentamos a internet como um ‘ciberespaço’
transcendental, mas, ao invés disso, a incorporamos em múltiplas
estruturas de construção de significado” (Ibid., p. 16).
A vida conectada à rede mundial de computadores, passou
a compor fortemente nosso cotidiano, o que levou algumas teóricas
e teóricos chamá-la de “era digital” (Athique, 2013; Baym, 2010).
Richard Miskolci (2017, p. 6) escrutina o conceito:

Digital não é uma definição técnica e sim uma caracterização de


nosso mundo como marcado pela conexão por meio de tecnologias
128 | Pensar com método

comunicacionais contemporâneas que se definem cotidianamente


como digitais e envolvem tanto o suporte material de equipamentos
como computadores, tablets e smartphones quanto diferentes tipos
de rede de acesso. Em termos sociológicos, o que define nossa era é
a conexão em rede por meios comunicacionais tecnológicos. Digital,
portanto, se opõe ao analógico enfatizando o aprimoramento
tecnológico enquanto a conexão em rede por meios comunicacionais
enfatiza a maneira como se constroem relações sociais.

Diferente de um campo marcado e situado, explorar


etnograficamente as relações e processos cotidianos que se
formam nas redes digitais requer o acompanhamento dos fluxos
que, embora partam do que acontece online, não estão blindados
aos valores que permeiam as relações off-line. A percepção inicial
de pesquisadores/as sobre o universo singular e auto referido
que a Internet proporcionava sugeria que estávamos lidando com
uma realidade emergente e singular, a qual exigia que nossas
metodologias também ganhassem novos nomes. Pressupunha-se
que “o universo online seria apartado do off-line (Reihgold, 1994;
Turkle, 1997). Propunha-se, assim, a criação de um termo específico
para a etnografia [bem como para outras metodologias] realizada
nesse ‘novo mundo’, frequentemente percebido como carente de
‘autenticidade’” (Campanella & Barros, 2015, p. 7).
Nesse contexto, alguns discursos alarmistas denunciavam
que não estaríamos nos comunicando com pessoas “reais”, dando
espaço para interações vistas pelo senso comum como menos
verdadeiras justamente por serem mediadas por “máquinas”. Assim,
não é de se estranhar que uma das palavras-chave que ainda rondam
o campo seja “desconfiança”, sentimento manifestado muitas vezes
pelos próprios sujeitos de pesquisa e reverberado pela grande mídia19
sobre o tipo de sociabilidade que se desenvolveria online. Mesmo
cientistas sociais, formados a partir de metodologias clássicas,
chegaram a pressupor que sem o contato presencial com o campo
investigado não teriam material empírico confiável.20 Algumas vezes,

19
Para uma discussão sobre patologização e o pânico social sobre os usos e relações
estabelecidas pela Internet ver Nicolaci-da-Costa (2002).
20
Um dos exemplos cabais é campanha de Jair Bolsonaro à presidência da República
em 2018. Não é o caso de discutir este evento ainda em andamento quando
finalizamos este artigo, mas o candidato privilegiou as redes sociais e, mesmo com
Aperte play para iniciar | 129

duvidaram da sociabilidade potencial que ambientes da Internet


poderiam proporcionar – uma desconfiança sobre a consistência das
relações pessoais constituídas. O mundo crescentemente mediado
por tecnologias digitais é tão real quanto o mundo não-digital sempre
foi. Assumir isso é enfrentar o mito de que a Internet compõe uma
outra esfera de experiências.
A cultural material sempre esteve implicada na construção e
estabelecimento de vínculos entre as pessoas (Appadurai, 2008), seja
por meio do dinheiro, azeitando as trocas e estabelecendo relações
entre agentes (Zelizer, 2009), ou de imagens de santos e divindades,
servindo como signo material de intermediação. Atualmente,
nossas relações envolvem aparelhos, aparatos, sistemas invisíveis
mais tangíveis de comunicação, configurações gráficas, periféricos
etc., mas a “Era Digital” não fez as “coisas” mais importantes na
constituição dos sujeitos como agentes fundamentais, posto que
“a ordem social em si está pressuposta em uma ordem material”
(Miller & Horst, 2015, p. 105). A estreita e emocional relação com
os aparatos tecnológicos também nos constitui subjetivamente –
“O digital, assim como toda a cultura material, é mais do que um
substrato; está constituindo-se como parte do que nos faz humanos”
(Ibid., p. 92).
Nesse sentido, as discussões candentes sobre as relações em
rede, marcadas pelo estabelecimento de fronteiras entre online e off-
line, apontando para uma relativa independência entre ambos, foram
revistas por autores/as que apostaram no “forte entrelaçamento dos
dois reinos” (Kendall, 1999, p. 58) e no continuum on/off-line (Miller
& Slater, 2004). Vale mencionar o fenômeno das web-celebridades,
por vezes personagens fictícios, que se tornaram famosas em
ambientes off-line a partir de suas atuações online (Faria, 2014).
Mais que um outro espaço, a Internet se mostrava como
“uma ferramenta adicional que as pessoas usam para se conectar,
uma ferramenta que só pode ser entendida como profundamente
embebida e influenciada pelas realidades diárias da vida
corporificada” (Baym, 2010, p. 152). Essa corporificação aparece
no trabalho de Adriana Piscitelli (2005) sobre a difusão online de
imagens de mulheres da América do Sul nos circuitos mundiais

pouquíssimos contatos face a face com seus apoiadores, alcançou altos números nas
pesquisas de intenção de voto.
130 | Pensar com método

de turismo sexual. Ainda que a autora não pretendesse discutir a


influência das tecnologias, seu caminho metodológico, que passa por
uma acurada descrição das especificidades dos sites analisados e dos
perfis postados, mostra a importância da Internet na constituição do
mercado transnacional do sexo. A pesquisa mostra, ainda, a implosão
de concepções que apostavam na separação entre mundos on e off-
line, na medida em que eles aparecem todo o tempo justapostos. A
reflexão da autora sobre os processos de racialização que operam on/
off-line inspiraram autores/as que se dedicam às pesquisas na e com
a Internet, especialmente no Brasil, no sentido de prestar atenção
sobre como as diferenças se articulam na produção horizontalizada
de conteúdos, que marcam a pobreza, as sexualidades disparatadas,
a raça/etnia, entre outras.21
Michel Foucault (1979) – em estudo pioneiro sobre as
transformações da sexualidade na modernidade –, enfatiza a
intervenção institucional e política no controle social do corpo
e da sexualidade, afirmando o julgamento social sobre a própria
subjetividade. A era das comunicações digitais propiciou grandes
questionamentos a esse controle, mas também a explicitação de
julgamentos morais de pessoas comuns que acreditam que os corpos
devem ser controlados, um controle que passa pelas diferenças
de gênero, raça/etnia, classe, geração, sexualidade, religião,
nacionalidade, localização, entre tantas outras.
Reiteramos que as propriedades da Internet, como apontam
Daniel Miller e Don Slater (2004), não lhes são inerentes. A criação
de perfis nos sites, nas redes sociais e nos aplicativos não é algo que
possa ser pensado como um afastamento da “realidade”, mas como
parte de certa manipulação estratégica na construção de si (Baym,
2010), o que implica “corporificar-se” de muitas maneiras (Leitão &
Gomes, 2012). A ideia inicial de que estaríamos descorporificados/
das pela textualidade imperante na Internet, sobretudo em seus
primórdios, quando o uso de imagens era inexistente ou restrito, não
se sustentou, posto que as imagens, e cada vez mais as imagens em
ação, se sobrepõem ao texto em distintos ambientes de sociabilidade,
tanto em temas que remetem a manifestações políticas, como

21
Por exemplo, a transformação do nome do site Orkut em um verbo e em adjetivo
(orkutizado, orkutizou) estava impregnada de julgamentos morais e estéticos que
eram, ao fim e ao cabo, formas de transferir para o digital/virtual as divisões de
classe que historicamente marcam a sociedade brasileira.
Aperte play para iniciar | 131

naqueles percebidos como da intimidade – que vão da busca de sexo


ao compartilhamento de receitas culinárias.
Ao revés da dicotomia real/virtual, muitas vezes pensada
como construções em separado, determinados aspectos corporais e
psicológicos percebidos como mais aceitos socialmente podem ser
acionados no continuum online/off-line (Zhao et all, 2008; Beleli,
2012). Apresentar-se em fotos que não revelam o rosto em aplicativos
e sites voltados para encontros de pessoas casadas (Pelúcio, 2015) ou
entre homens, que se afirmam heterossexuais, que buscam homens
para fins sexuais (Miskolci, 2013) são apenas alguns exemplos, não
só de normas e convenções relativas a comportamentos sexuais, que
balizam e orientam maneiras de se proceder on-line, mas também
da suposta garantia de anonimato, dado que em ambas as pesquisas
o “segredo” é fundamental.
Os usos das tecnologias nas pesquisas não só ampliou
as possibilidades investigativas e analíticas, como permitiu
problematizar questões às vezes difíceis de serem acessadas no
off-line, como aquelas que envolvem comportamentos socialmente
proscritos obrigados ao segredo e à invisibilidade, não só em espaços
públicos, mas também no cotidiano doméstico.22 Entre estes, o
desejo sexual fora das expectativas normativas despertou o interesse
especial de muitas pesquisas no campo das Ciências Sociais, de forma
que ao navegarmos nas águas rizomáticas dos desejos expressos em
tantas textualizações de si23 (Illouz, 2011), passamos a seguir os
fluxos imprevistos dos hiperlinks e, de lá, muitas vezes imergimos
também no off-line.

22
Às pesquisas já citadas sobre adolescentes classificadas pelo discurso médico
como bulímicas, mas que se percebiam como pessoas altamente disciplinadas
frente a oferta de alimentos do presente (Silva, 2004) e o compartilhamento das
angústias de homens que desejam/amam crianças (Oliveira, 2009), acrescentamos
outras: sobre o desejo sexual entre parceiros do mesmo sexo (Zago, 2009; Milkolci,
2013); aventuras masculinas que flertam com infidelidade conjugal (Pelúcio, 2015);
etnografia sobre homens que se vestem de mulheres, autodenominados cross-
dressers (Vencato, 2013); a emergência de novas identidades de gênero, como os
“transhomens” que compuseram a pesquisa de Simone Ávila, a qual se valeu de
criação de um blog para iniciar os contatos com seus interlocutores (Ávila, 2014).
23
Eva Illouz refere-se ao processo comunicacional na Internet, sobretudo na
interlocução no campo dos afetos e da busca de parcerias amorosas e sexuais, como
um exercício de escrita que exige grande esforço reflexivo e sintético para falar de
si para o outro.
132 | Pensar com método

Os cuidados com a pesquisa na Internet

As pesquisas nas e com as mídias digitais tornaram mais


acessíveis e compreensíveis a vida íntima – afetiva, amorosa e
sexual –, mas também potencializaram as expressões da intimidade
público/privada, expandindo os limites investigativos. Temas antes
restringidos pelas dificuldades impostas pela exposição face a face,
na qual barreiras morais delimitam mais radicalmente o que se pode
dizer ou mostrar, passam a ser acessíveis. Em outros termos, o contato
mediado expandiu a pesquisa em rede, aumentando tanto o número
de sujeitos quanto os territórios exploráveis. Além das expansões
e vantagens de pesquisar com o uso de mídias digitais, surgem
também novos desafios investigativos. Temos sido provocadas/os a
usar tais recursos não apenas como ferramenta e campo imersivo e,
de fato, é possível perceber que estamos constituindo uma nova área
de estudos. É sintomático que livros e artigos sobre Antropologia
e Sociologia Digitais tenham surgido a partir do final da segunda
década deste século,24 atestando que, se vínhamos experimentado
de forma ensaística novas formas de fazer pesquisa ou, mesmo,
sendo conduzidas/as para o online pelas exigências da Internet 3E
(Hine, 2013), agora estamos frente a novas formas de lidar com a
ordem social.
No início do século XXI, com o advento da Web 2.0,
a comunicação digital em rede incita-nos a fazer pesquisas
multissituadas não apenas no sentido clássico de permitir/demandar
incluir diversos campos territoriais na mesma investigação, mas
também nos levando de uma plataforma a outra, de um site para
um aplicativo, de lá de volta a um blog. Mapear e seguir esses
percursos tem demandado técnicas criativas de armazenamento de
dados, monitoramento constante de atualizações de informações,
administração de perfil de pesquisa, que muitas vezes se confunde
com o perfil do/a pesquisador/a por exigência do próprio campo
investigado. Como aponta Larissa Pelúcio (2016, p. 327):

O foco em uma plataforma confundia o universo online com a


territorialidade off-line em uma passagem mecânica incapaz de
reconhecer a centralidade dos sujeitos na era da comunicação digital

24
Ver as Coletâneas Digital Anthropology (Horts & Miller, 2012) e Digital Sociology
(Orton-Johson, & Prior, 2013), que reúnem um significativo número de artigos.
Aperte play para iniciar | 133

mediada. Afinal, são os usos que os sujeitos fazem das tecnologias


que têm se revelado o alvo mais confiável para investigar, o melhor
ponto de partida e – muitas vezes – também de chegada para a
maioria das pesquisas.

Trabalhar de forma multissituada está imbuída da ideia


de “seguir” (Marcus, 1998) histórias, pessoas, metáforas e não é
diferente nas pesquisas realizadas na Internet, pois para pensar em
como sites, blogs, redes sociais digitais operam é preciso seguir os
fluxos dos sujeitos, “...entrar e sair dos fluxos de informação, seguir os
silêncios, as lacunas e as ausências” (Markham, 2016, pp. 112-113).
Nesses fluxos, por vezes, o off-line passa a se constituir também como
campo e, ainda que inicialmente não tenha sido pensado como lócus
de investigação, não pode, e não deve, ser desconsiderado na análise.
Nesse sentido, imergir em microuniversos digitais não nos autoriza
a desconsiderar contextos sociais, econômicos, culturais, políticos e
históricos que suportam e orientam as relações ali construídas.
É preciso considerar que estamos inseridos em redes globais
de significados (Appadurai, 2001), o que nos leva a enfrentar os
limites do conceito de “campo de pesquisa”. Para Sandra Rubia da
Silva (2016, p. 59), “trata-se de desnaturalizar as associações entre
lugar, pessoas e culturas, pensando-as como criações históricas e não
fatos naturais” (grifos da autora). No entanto, ao desafiar a noção
de borramento de fronteiras on/off, é preciso considerar que em
algumas pesquisas o desejo de nossos/as interlocutores/as possa
vir a ser justamente o de apartar esses mundos (Boellstorf, 2012)
– esse desejo não suprimi em nossas análises a necessidade de
considerar a indexação que o online mantém com o off-line.25 Por
exemplo, estar no Facebook como uma persona ou fazer amigos por
ali sem nunca ter havido encontros presenciais não apaga os vínculos
entre “real” e “virtual”, ao contrário, pode corroborá-los. Lembramos
que as pessoas estão “na internet” e fora dela simultaneamente,

25
Na pesquisa de Alessandro Oliveira (op. cit., nota 4) na comunidade do Orkut
sobre pedofilia, os homens que se identificavam como boy-lovers acreditavam
viver seus desejos em segredo e expressavam que ali eram mais autênticos do que
em suas vidas fora da tela. Isso não evitou que a Comunidade fosse eliminada por
ordem judicial e que muitos deles, incluindo o próprio pesquisador, tivessem o IP
do Servidor (identidade de seus computadores pessoais) rastreadas, exigindo um
grande esforço do pesquisador para seguir com seu trabalho acadêmico e driblar
questões morais e legais.
134 | Pensar com método

como apontam Horts e Miller (2015, p. 100), “Ninguém vive uma


vida completamente digital e nenhuma mídia ou tecnologia digital
existe fora de redes que incluem tecnologias ou mídias analógicas”.
Só muito recentemente começamos a reconhecer essas dinâmicas e
desmistificar propostas que ainda informam o senso comum, mas
que balizaram as pesquisas iniciais nesse universo pensadas como
uma nova área de estudos.
Paula Togni (2011), em pesquisa multissituada sobre
os trajetos transnacionais de um grupo de jovens migrantes de
Minas Gerais para Lisboa, percebeu, em campo, que seus/suas
interlocutores/as faziam largo uso das mídias digitais, não apenas
para se comunicarem com amigos e familiares distantes, mas
também para certa “manipulação”, via fotos e textos nas redes sociais
digitais, de seus projetos migratórios. Ao se dar conta do largo uso
que aqueles jovens faziam do Orkut e do Messenger,26 Togni passou
a integrar a rede social deles também digitalmente, estreitando os
contatos com esses/as jovens. Isso lhe permitiu ampliar o universo
da pesquisa e fortaleceu vínculos com eles, mantendo contato
contínuo com essas pessoas independente se elas estavam no Brasil
ou em Portugal.
Não ter um local e um tempo circunscrito para promover
e manter os vínculos com as pessoas do campo, exigências que a
conexão a cabo e o computador de mesa impunham, temos de lidar
com uma interpelação incessante. Diferentemente de pesquisas
exclusivamente desenvolvidas em contextos off-line, no online,
potencialmente, somos requisitadas/os enquanto permanecermos
conectadas/os. E aqui se coloca outra questão medotológica: “Se eu
posso acessar a internet de praticamente qualquer lugar do mundo
e a qualquer horário do dia, quando começa e quando termina
a pesquisa de campo?” (Couto Jr., 2017, p. 96). Planejar e pactuar
com os sujeitos como e quando essas interações irão se dar não é
tarefa para qual haja um “modo de fazer” determinado. Exige uma
observação das dinâmicas internas de cada campo específico, no
sentido de mapear rotas e fluxos on e/ou off-line, atentando para as
temporalidades (horários de maior número de postagens, interações,

26
O Messenger, programa de comunicação instantânea criado pela Microsoft em
1999, permitia a troca de mensagens de texto e, posteriormente, de voz e imagem
por meio de câmera. Em 2013 a empresa anunciou a descontinuidade do programa.
Aperte play para iniciar | 135

usuários/as online) e usos que fazem de diferentes mídias. Ainda


assim, é necessário reconhecer e aceitar que nem sempre esses
pactos serão cumpridos pelos/as colaboradores/as e que, muitas
vezes, teremos que nos adequar aos ritmos impostos pelo campo.
Acompanhar os sujeitos em uma investigação requer
desde o monitoramento das mensagens instantâneas trocadas
individualmente, a formação de grupos para discussões de tópicos
investigativos, que nos faz reatualizar tecnologicamente o grupo
focal, até as videoconferências e e-mails que podem ser usados
com frequência nas “conversas de acompanhamento” (Facioli,
2013). Trabalhar com os recursos contemporâneos de comunicação
digital é tarefa exigente. Até mesmo os elementos facilitadores –
armazenamento de dados, seu compartilhamento, a sincronicidade
na comunicação –, podem se mostrar desafiantes quanto à forma
de estar em campo e mesmo a efetivação das análises. Isso significa
estarmos atentas/os a estes câmbios, reelaborando técnicas de
pesquisa e coleta de dados, assim como adequando as questões de
pesquisa a essas dinâmicas.
Késia Maximiano de Mello (2016) percebeu que para lidar
com o volume de postagens diárias dos membros do grupo do
Facebook que investigava era preciso se valer de um aplicativo
oferecido gratuitamente pela própria plataforma, o Facebook
Groups, por meio do qual as atualizações eram notificadas, reunidas
e enviadas sistematizadas ao/à usuário/a, facilitando suas consultas
e atualizando a pesquisadora sobe os debates correntes. Essa
ferramenta forçou-a a criar categorias mais circunscritas para o
armazenamento de dados, feitos em pastas nomeadas com os temas
que balizavam as discussões. Por meio de capturas de imagens (prints
de tela) feitas diretamente do celular ou notebook, as mensagens
foram arquivadas, exigindo máquinas com mais memória a fim de
suportar arquivos mais pesados.
Por sua vez, guardar imagens de textos ao invés de apenas
os próprios textos, por meio do mecanismo copiar/colar, foi uma
escolha metodológica e ética feita também em outras pesquisas, a
fim de emprestar veracidade aos dados, sugerindo que o texto não
passou por quaisquer edições. A dimensão ética desse procedimento
exige que nomes e fotos das pessoas envolvidas nas discussões
online sejam borrados, a fim de preservar o pacto do anonimato que,
via de regra, orienta nossos trabalhos.
136 | Pensar com método

Mesmo sem interagir com os sujeitos do seu campo –


usuários do site Disponível.com, voltado para homens que buscam
sexo com homens –, Luiz Felipe Zago (2009) não expôs as fotos dos
perfis em sua dissertação de mestrado, material essencial de suas
análises. Ao invés disso, optou por descrevê-las e assim preservar
não só o anonimato daqueles sujeitos como respeitar as normas do
site, que vetava o uso das fotos dos perfis para qualquer fim que não
a exposição dentro dos limites do site.
Esse procedimento nos leva a questões recorrentes, e
candentes, sobre se o que está na Internet é público. A partir de várias
pesquisas, temos percebido que negociar com colaboradores/as o
que será publicado na forma de artigos é fundamental. A capacidade
de armazenamento impede que algumas informações – arquivos,
vídeos e imagens – sejam apagadas de forma definitiva. É importante
lembrar essa obviedade, pois alguns grupos e indivíduos, cujos
comportamentos e práticas são marginalizadas e/ou invisibilizadas,
reivindicam seu lugar de fala e suas legítimas demandas, que os, nos,
mobilizam política e teoricamente, mas podem trazer problemas
para os próprios sujeitos em outro momento, de forma que não
podemos prever, tampouco controlar.27
Mesmo como “lurkers”, que observam sem interagir (Amaral,
2010), é recomendável tomar certos cuidados, pois palavras-chave
jogadas em buscadores como o Google podem revelar mais do que
gostaríamos sobre nosso campo e os sujeitos que nele circulam.

27
Em 2006, durante a realização de pesquisa de campo no doutorado, Larissa Pelúcio
publicou o artigo “Três Casamentos e Algumas Reflexões: notas sobre conjugalidade
envolvendo travestis que se prostituem”. Um dos colaboradores era uma espécie
de liderança dos autointitulados t-lovers, clientes de profissionais do sexo travestis,
que passaram a se organizar por meios digitais e, posteriormente, em encontros
presenciais. Este t-lover insistiu para que seu nickname, apelido nos meios digitais,
fosse mantido e não mudado pela pesquisadora. Naquele momento, era importante
para ele aparecer diante de seus pares em um texto acadêmico defendendo e
assumindo seu direito de amar uma travesti e viver com ela. Anos depois, quando
os encontros não existiam mais e as dinâmicas de sociabilidade online se diluíram,
o colaborador casou-se com uma mulher de quem escondeu seu passado. Por
descuido, certa feita, deixou o computador de mesa ligado, e em um dos arquivos
abertos estava a foto de uma travesti assinada com a logomarca que levava seu
nickname. Como fotógrafo oficial dos encontros presenciais, os chamados Dia T, ele
imprimia digitalmente essa marca em todas as fotos. A esposa, talvez já desconfiada
de algo, colocou no Google aquele nome, a palavra travesti e não tardou a encontrar
o artigo referido, no qual, pelas descrições feitas tornou-se fácil identificá-lo.
Aperte play para iniciar | 137

Dilton do Couto Júnior (2017) optou por omitir todo e qualquer dado
que pudesse facilitar a identificação do grupo do Facebook no qual
seus/suas interlocutores/as interagiam, uma vez que muitos tinham
aquele espaço como local confessional, do segredo.
O segredo permeou muitas pesquisas citadas neste artigo.
Muitas vezes os/as pesquisadores/as aqui mencionadas/os tiveram
que negociar seus segredos, a fim de entrar e/ou permanecer em
campo. Humanizar-se frente aos/às colaboradores/as tem sido um
recurso clássico de pesquisa etnográficas, possível de ser alcançado
também nas interações online. Negociar fronteiras entre confiança,
intimidades, segredos e profissionalismo é exercício exigente, mas
necessário. A confiança tem sido instrumento ético-metodológico
mobilizado em grande parte dos estudos aqui elencados. Por meios
digitais ainda podemos e devemos pactuar princípios e compromissos
que levem colaboradores/as a se sentirem protegidos. O desafio é
pensar formas de também nos resguardarmos, uma vez que, como
mencionado, muitas vezes oferecemos o link para nosso currículo
Lattes, a fim de atestar a veracidade de nosso trabalho e, até mesmo,
provar nossa identidade de cientistas. Aceitamos colaboradores/
as como “amigos” no Facebook, seguidores no Instagram ou
Twitter, dando acesso a uma gama vasta de informações pessoais.
Paradoxalmente, as mesmas informações que podem nos humanizar
e construir confiança.
Mesmo sem nos darmos conta, vale o alerta de Bumachar
(2011, p. 93): “a escolha das tecnologias [para a comunicação] não
apenas revela o idioma do controle, mas também expressa o das
emoções”. A sincronicidade experimentada com as comunicações
via WhatsApp, por exemplo, é distinta daquela que conhecíamos
via telefone fixo e mesmo por celulares. Há mais controle individual
em relação ao tempo para visualizações de mensagens e respostas,
além das ferramentas oferecidas pelo aplicativo, entre elas, impedir
que as pessoas de sua lista de contatos saibam se determinado/a
usuário/a está ou não online, o horário do último acesso e mesmo
se, de fato, visualizaram a mensagem.28 A interface da plataforma,

28
Em novembro de 2014 o WhatsApp passou a sinalizar com dois sinais de “check”
azuis. Um sinal apenas, em cinza, indica que a mensagem foi enviada; dois na
mesma cor sinaliza sua entrega ao destinatário. Maximiano Marentes et all (2016)
discutem a ansiedade e o desassossego gerados por essas visualizações e a espera
que o envio confirmado causa em jovens casais portenhos (vivendo em Buenos
138 | Pensar com método

as possibilidades de comunicação via texto, áudio, fotos, câmera


ao vivo e compartilhamento de links pluralizam e intensificam a
comunicação, diferenciando-a de outras experiências emocionais
mediadas. Assim, os recursos digitais que funcionaram bem em uma
determinada pesquisa, não necessariamente serão adequados para
quaisquer enfoques, objetivos e públicos.
Acreditamos que a realização de pesquisas como as citadas
oferecem ao debate antropológico alguns desafios para repensar o
cultural, provocando-nos a “converter um material familiar a todos
num conjunto conhecido de questões antropológicas (sujeitos,
relações, concepções, valores, agências etc.) como já se anunciava
no movimento que legitimou o estudo antropológico de sociedades
complexas” (Lewgoy, 2009, p. 194). Nesse sentido,

(...) não se trata de outro método, ainda estamos fazendo etnografia.


Isto é, imergindo em um universo relativamente distinto daquele
que nos é cotidiano, atentas/os aos códigos que por ali circulam;
mapeando relações; nos envolvendo com vidas alheias e sofrendo
com suas influências; sendo às vezes convocadas/os a nos
manifestar sobre a dinâmica local (Pelúcio; Cervi & Koga, 2012a,
p. 16).

Até aqui dedicamos atenção especial ao método etnográfico,


mas consideramos a necessidade de expandir as discussões de muitos
estudos que se valem das mídias digitais. A própria caraterística
das plataformas de se constituírem por meio de perfis convida à
reflexão sobre perspectivas que envolvem a formação de bancos de
dados seletivos e criteriosos, que permitem contabilizar demandas e
características socioeconômicas dos/das usuários/as, ultrapassando
as hegemonias simbólicas. Porcentagens esclarecedoras sobre o
predomínio de um tipo de busca, de usuário/a e critérios podem
escapar ao contexto das interações etnográficas ou das entrevistas,
lembrando, ainda, que pesquisas em mídias digitais podem ser
articuladas por diversos mecanismos metodológicos.
Suely Fragoso, Raquel Recuero e Adriana Amaral (2011)
mostram que às pesquisas quantitativas podemos somar os métodos

Aires), desestabilizando as relações e atrapalhando a concentração em atividades


cotidianas como estudos e trabalho.
Aperte play para iniciar | 139

qualitativos ou multimétodos.29 João Paulo Ferreira da Silva (2017),


em pesquisa comparativa entre classificados de busca de parceiros
no jornal Lampião de Esquina30 e os perfis do Hornet,31 quantifica
os dados, a partir do software Statistical Package for Social Sciences
(SPSS), para empreender uma análise qualitativa, aportando
importantes achados sobre a história recente do desejo homossexual
no Brasil.
A sociedade de informação tem se mostrado um excelente
campo de investigação, cujas metodologias ainda estão sendo
testadas, mas falta um longo caminho de pesquisa para percebermos
se, e como, as ideias aí debatidas promovem modificações simbólicas,
seja das demandas dos movimentos sociais contemporâneos – que
interpelaram a sociedade em diversos âmbitos no século XX –, seja
nas reconfigurações no presente, em cenário no qual vemos sob
ameaça várias conquistas. Talvez o grande ganho social propiciado
pela sociedade em rede seja justamente a amplificação de ideias
que tencionam e desafiam percepções cristalizadas sobre diferenças
sociais e culturais fortemente marcadas por gênero, sexualidade,
raça/etnia, classe, entre outros. Em contrapartida, os enfrentamentos
a essas capturas, mesmo percebidas como desorganizadas, convoca
cientistas sociais e de outras áreas do conhecimento a um esforço de
tentar organizá-las, no sentido de produzir conhecimento a partir de
um campo em crescente expansão.
Sabemos que as pesquisas aqui mencionadas compõem apenas
uma ínfima amostra dos trabalhos que vem sendo desenvolvidos nas
Ciências Sociais e Humanas Nossas escolhas pautaram-se nesta seção
final nas experiências de jovens pesquisadoras e pesquisadores cujos

29
“Na abordagem multimétodo, os métodos quantitativos e qualitativos não devem
ser vistos em oposição, ou pensados como uma questão de números versus palavras,
ou, ainda, um debate sobre o que pode ou não pode ser quantificado, mas sim a
partir da produção de diferentes níveis e tipos de explicação, enfocando diferenças
em termos de quão precisas, explícitas e amplas as comparações e as explicações
podem ser na Sociologia” (Oliveira apud Silva, 2017, p. 20).
30
Lampião de Esquina foi um dos tabloides pioneiros voltados para o segmento
de homens que se reconheciam como homossexuais. Fundando em 1978, deixou
de circular em 1981. Com sede na cidade na cidade do Rio de Janeiro, alcançou
distribuição nacional.
31
Aplicativo para busca de parceiros, criando categorias baseadas em marcadores
sociais da diferença.
140 | Pensar com método

trabalhos tivemos a oportunidade de acompanhar mais de perto e,


assim, participar de alguma forma de seus desafios, aprendendo com
as formas criativas com que contornaram seus desafios de pesquisa.


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O ensino de história na era digital:
potencialidades e desafios1

Aldair Rodrigues

Introdução

Este ensaio tem por objetivo desenvolver uma reflexão
crítica sobre o ensino de História na era digital com ênfase nas
transformações que as tecnologias de informação e comunicação
(TICs)2 provocam nos processos de produção e transmissão do
conhecimento no contexto contemporâneo. Serão destacadas as
dimensões sociais, culturais e políticas relacionadas à popularização
dos dispositivos tecnológicos digitais e as contradições que lhes são
subjacentes.
As reflexões que seguem estão ligadas à minha experiência
como professor das disciplinas do departamento de História da
UNICAMP direcionadas para formação inicial (HH690 Estágio
Supervisionado em História - graduação) e continuada de
professores (ME204 - Produção de Material Didático e o Universo
Virtual - do programa de mestrado profissional em História) e aos
debates ocorridos por ocasião das semanas de ensino de História,
organizadas pelos nossos alunos em 2017 e em 2018.3 O intenso
intercâmbio com os estudantes de graduação e com os professores
do mestrado profissional foi fundamental neste exercício de pensar
sobre questões contemporâneas tangentes ao ensino de História.

1
Sou grato aos amigos e colegas pelas leituras críticas e sugestões: Lucilene
Reginaldo, Vinícius Lustoza, Diego Pereira e Raquel Gomes.
2
Sobre o processo de definição desta terminologia e uma extensa lista de indicações
bibliográficas acerca do tema, consultar: Bertoldo & Mill, 2018.
3
A programação dos eventos pode ser encontrada nos seguintes websites:
https://www.ifch.unicamp.br/ifch/noticias-eventos/graduacao/i-semana-ensino-
historia-unicamp (2017) e https://www.ifch.unicamp.br/ifch/noticias-eventos/
departamento-historia/ii-semana-ensino-historia-ensino-historia-quem-quem
(2018).
146 | Pensar com método

Humanidades digitais

Nas Ciências Humanas, a importância assumida pelas novas
formas de armazenamento, acesso, produção e representação
dos conteúdos e do conhecimento no meio digital tem sido objeto
de estudos no campo denominado Humanidades Digitais. O qual
abarca projetos que, de alguma forma, utilizam a tecnologia e, para
sua execução, demandam uma relação interdisciplinar com outras
áreas do conhecimento até então tendencialmente apartadas dos
profissionais das Humanidades, mormente a computação.4
Um dos principais eixos de definição das Humanidades
Digitais prende-se ao desmantelamento de uma suposta neutralidade
do suporte de registro da textualidade e da informação em geral.
Segundo Burdick et all, a longa estabilidade do impresso, que
remonta a meados do século XV (quando houve a invenção da prensa
de tipos móveis por Johannes Gutenberg na Alemanha), impediu
que profissionais da área das Ciências Humanas percebessem
criticamente a materialidade de suas práticas envolvendo o processo
de inscrição da informação nos suportes. No contexto digital, as
“transformações na materialidade da informação e nas tecnologias de
mídias comunicacionais nos permitem perceber que os meios não são
neutros, mas parte do processo de criação de significados” (Burdick,
2012, p. 83). Neste cenário, as novas ferramentas, técnicas e mídias
que permeiam o trabalho dos profissionais de Humanas passaram a
demandar a inter-relação de saberes específicos, englobando, além
da computação, áreas como design gráfico, estatística, engenharia de
dados etc.
Dentro das Humanidades digitais, uma das dimensões que
mais tocam a área de História diz respeito aos desafios enfrentados,
junto aos profissionais da arquivística, na digitalização de diversos
e amplos conjuntos documentais do passado até então preservados
em bibliotecas, arquivos e museus. Além da digitalização, todo
o processo de preservação do patrimônio digital demanda
cuidados específicos em razão da alta obsolescência dos aparatos
tecnológicos, repositórios e mídias de armazenamento, servidores e

4
Riande, 2018; Burdick, 2012; Alves, 2016; Cohen, 2008; Soares, F.; Rovai, M.;
Carvalho, B. & Porto Junior, F. G. R. 2017; Luchesi, 2012. Começa a emergir nos
últimos anos uma abordagem crítica em relação ao tema. Por exemplo: Hui Kyong
Chun; Grusin; Jagoda & Raley, 2016.
O ensino de história na era digital | 147

os custos da sua substituição e gestão.5 Como veremos neste ensaio,


o ensino de História é igualmente impactado pelo conjunto destas
transformações tecnológicas.

A interface e a fragmentação da atenção



Fragmentação é uma das palavras-chaves que funcionam
como ponto de ancoragem para analisarmos as transformações
recentes que atravessam nossas interações com a informação e o
conhecimento, impactando diretamente as práticas de aprendizagem.
Tal dimensão pode ser compreendida em cinco níveis diferentes.
Do ponto de vista da materialidade, os dispositivos digitais
fizeram com que múltiplas facetas da vida social convergissem
para uma mesma tela, seja do notebook, do computador pessoal,
do tablet ou do celular. Neles temos acesso aos conteúdos da esfera
do entretenimento (músicas, filmes, seriados, vídeos em geral),
acesso a notícias, serviços, correspondência pessoal (e-mail), redes
de relações e contatos (redes sociais), textos de várias ordens,
ferramentas de trabalho e mecanismos de busca de informações,
entre outras. Quando conectados à Internet, estes aparelhos
propiciam a constituição de uma subjetividade hiperconectada que
se define pelo acionamento de todas aquelas esferas. Ao mesmo
tempo que permite a realização quase simultânea de múltiplas
tarefas por uma mesma pessoa, o desdobramento de tudo isso
é a fragmentação da atenção humana. O mecanismo que melhor
sintetiza esta dimensão é o funcionamento das notificações (sonoras
ou ícones na tela) de recebimento de novas mensagens ou interações
de toda ordem, fazendo com que as atividades sejam cada vez menos

5
Sobre esta questão, consultar: Innarelli, Humberto Celeste. 2015. Gestão da
preservação de documentos arquivísticos digitais: proposta de um modelo conceitual.
São Paulo: ECA/USP. A respeito da definição de patrimônio digital e herança
digital, ver: Dodebei, Vera. 2008. “Patrimônio digital virtual: herança, documento
e informação”. Trabalho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia,
realizada entre os dias 01 e 04 de junho, Porto Seguro, Bahia, Brasil; Alker, Zoe
& Donaldson, Christopher. 2018. “Digital Heritage”. Journal of Victorian Culture,
Volume 23, Issue 2, 27 April, pp. 220–221, https://doi.org/10.1093/jvcult/
vcy019; UNESCO, ‘Charter on the Preservation of Digital Heritage’ (13 out. 2003)
http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=17721&URL_DO=DO_TOPIC&URL_
SECTION=201.html.
148 | Pensar com método

lineares em razão de tantas demandas e estímulos. No mundo


laboral, em um contexto de retrocessos nos direitos trabalhistas, a
hiperconexão tem como efeito as extenuantes cargas de trabalho
remoto e as notificações incessantes de mensagens instantâneas e
e-mails, esbatendo as linhas que separavam a vida profissional da
vida pessoal.
Na busca de informações na web, a fragmentação ocorre
em um segundo nível que se prende ao fato de o principal motor
de busca de conteúdos (o Google) funcionar por palavras. A cada
palavra ou frase inserida no buscador, o usuário depara-se com
uma quantidade cada vez maior de links para páginas e arquivos
que contêm a informação desejada. Os critérios de hierarquização
dos resultados não são transparentes, a configuração de seu
algoritmo não é acessível ao público e fica concentrada nas mãos
de uma das maiores corporações do capitalismo moderno. Junto
com a informação, aparece a publicidade de serviços correlatos ao
que foi buscado.
Ao entrar em um dos arquivos ou páginas que resultaram
da busca, a fragmentação acontece ainda em um terceiro nível: há
sempre a possibilidade de fazer uma busca por palavra dentro do
texto (via editar/localizar ou ctrl+ L; ctrl + F). Nestas práticas de
contato com a textualidade, ao mesmo tempo que se chega com
rapidez ao que se procura, perde-se a noção do todo. A obra que
havia sido concebida para ser lida por completo é acessada de
forma fragmentada.
A textualidade digital carrega ainda uma outra
característica que rompe com a experiência da leitura no paradigma
gutenbergiano: a hipertextualidade. Diferentemente do que era
inscrito no papel, o texto digital comporta a sobreposição de vários
outros textos em uma mesma tela, bastando clicar na palavra
que contém a porta para o hiperlink (ou que foi marcada com o
recurso de hiperlink do editor de texto ou navegador web) para
se chegar a outro texto ou recurso multimídia. O texto que contém
estas sobreposições organizadas em hiperlinks é denominado
hipertexto.6 Sua leitura não foi pensada para seguir um curso linear,

6
Pierre Lévy defini que “Um hipertexto é uma matriz de textos potenciais, sendo
que alguns deles vão se realizar sob o efeito da interação com um usuário.” Lévy,
Pierre. 1999. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34.
O ensino de história na era digital | 149

propiciando a fragmentação da atenção do leitor.


Esta experiência marcada pela fragmentação (ou
subjetividade fragmentada) tornou-se possível na medida em que a
textualidade foi desterritorializada, desprendendo-se dos suportes
materiais que a continha.7 Historicamente, outras transformações
marcantes na materialidade dos suportes da cultura escrita mudaram
as práticas de leitura e suas funções na relação com o conhecimento,
como, por exemplo, a passagem da leitura do rolo de pergaminho
na horizontal para a leitura em códex na Idade Média.8 Entretanto,
tais mudanças jamais aconteceram na escala proporcionada pelos
recursos digitais que tornaram o contato com o texto menos refém
da gestualidade e do corpo humano.
O conjunto de transformações e rupturas em análise não fica
isolado do espaço escolar, penetra a realidade dos alunos e marca
profundamente suas práticas de aprendizagem e suas maneiras
de se relacionar com conteúdos diversos. Portanto, como veremos
no tópico seguinte, as ferramentas pedagógicas devem contemplar
estas dinâmicas para que os alunos se sintam identificados com elas
e para que os professores desenvolvam estratégias para lidar com a
aprendizagem no contexto da atenção fragmentada.

Nativos digitais e exclusão social



Do ponto de vista geracional, uma extensa literatura
vem debatendo os efeitos que as transformações relacionadas à
penetração das TICs na sociedade exercem na educação. De um
lado, temos um grande percentual de professores que se formaram
e entraram nas redes de ensino quando as tecnologias digitais
ainda não haviam se popularizado. De outro, temos os alunos que
nasceram na era digital e cresceram com os aparatos tecnológicos

7
Segundo Lévy, “Os dispositivos hipertextuais nas redes digitais desterritorializaram
o texto. Fizeram emergir um texto sem fronteiras nítidas, sem interioridade
definível.” Lévy, Pierre. 1999. O que é o virtual? São Paulo: Editora 34.
8
Chartier destaca, por exemplo, o impacto que a passagem da leitura dos rolos de
pergaminhos para os livros em códex, na Idade Média, representou para as práticas
de leitura reflexiva, pois passou a permitr simultaneamente a anotação e a reflexão.
Chartier, Roger. 1999. A aventura do Livro do leitor ao navegador: conversações com
Jean Lebrun. São Paulo: Editora da Unesp, Imprensa Oficial.
150 | Pensar com método

em suas mãos e em múltiplas dimensões da sua experiência humana.


Dentre a oscilante diversidade terminológica cunhada para
definir esta clivagem geracional, uma das que gozaram de maior
alcance é a de Marc Prensky (2001), a qual propõe os conceitos de
nativo digital e imigrante digital. A base da formulação é a analogia
entre o aprendizado sobre o funcionamento dos aparelhos digitais e
o aprendizado de uma língua estrangeira, destacando seus impactos
na cognição. Para Prensky, assim como a aquisição da segunda língua
desenvolve-se em uma área do cérebro diferente de onde ocorre a
aprendizagem da primeira, nativos e imigrantes digitais processariam
a relação corpo-tecnologia de maneira diversa. Os imigrantes digitais
manifestariam uma série de hábitos característicos de seu “sotaque”,
como, por exemplo, a impressão de e-mails ou a necessidade de fazer
uma ligação para conferir se seu destinatário recebeu a mensagem
eletrônica que lhe foi enviada. Em síntese, o autor e seus seguidores
argumentam que a cognição sofre profundas transformações no
contexto digital (Prensky, 2001).9
Robert Darton, refletindo sobre as relações entre
gestualidade, corpo, tecnologia e consciência da nossa presença
no mundo, desenvolveu o conceito de sentido das pontas dos
dedos, que oferece subsídios para refletirmos sobre a mediação
que os celulares exercem na subjetividade dos alunos. Segundo
o autor, “Gerações mais velhas aprenderam a sintonizar girando
botões em busca de canais; gerações mais jovens alternam canais
de imediato, apertando um botão. A diferença entre girar e alternar
pode parecer trivial, mas deriva de reflexos localizados em áreas
profundas da memória cinética.” Mais adiante, conclui que “Somos
guiados pelo mundo mediante uma disposição sensorial chamada de
Fingerspitzengefühl pelos alemães. Se você foi treinado a guiar uma
caneta com seu indicador, observe a maneira como os jovens usam o
polegar em seus celulares e perceberá como a tecnologia penetra o
corpo e a alma de uma nova geração.”(Darton, 2010, p. 11). Ou seja,
os celulares são usados como se fossem uma verdadeira extensão do
corpo. Consequentemente, as barreiras entre mundo real e mundo

9
Consultar também: Pescador, Cristina M. 2010. “Tecnologias digitais e ações de
aprendizagem dos nativos digitais”. V-CINFE - Congresso Internacional de Filosofia e
Educação, UCS; Silva, Patrícia Konder Lins e. 2014. “O mundo dos nativos digitais”.
Biblioteca viva. Texto parcial da palestra apresentada durante o 7º Seminário
Internacional de Bibliotecas Públicas e Comunitárias.
O ensino de história na era digital | 151

virtual tendem a se tornarem mais tênues na subjetividade das


crianças e adolescentes nascidos a partir dos anos 1990 e 2000.
Na visão de Prensky, as abordagens pedagógicas
centradas na transmissão linear e vertical de conteúdos estariam
fadadas ao fracasso, pois os nativos digitais estudam de forma
hiperconectada, exercendo várias atividades ao mesmo tempo
(música, entretenimento, chats com amigos etc.) e preferem lidar
com as informações e com o conhecimento de modo mais aleatório
e menos linear, privilegiando o fluxo tentativa e erro; preferem ver
os gráficos e imagens antes do texto; preferem aprender de forma
lúdica, principalmente por meio de jogos.10
Se historicamente as tradições envolvendo a passagem do
acúmulo dos saberes e conhecimentos sempre foi ensinada aos mais
jovens pelos mais velhos, na era digital o sentido se inverteria. Os
mais jovens demonstrariam, agora, conhecer melhor os recursos e
suportes digitais, podendo pesquisar conteúdos de seus interesses
autonomamente. Trata-se, segundo Prensky, de uma ruptura sem
precedentes na história da humanidade.
Recentemente as teses do autor passaram a receber uma
série de críticas. Em sua maioria destacam a forma monolítica como
Prensky definiu toda uma geração, supostamente influenciado
por um determinismo tecnológico e até biológico em sua análise.
O segmento social que se encaixaria na sua definição para nativos
digitais seria uma minoria de jovens privilegiados habitantes de
países localizados majoritariamente no hemisfério norte.11 Outras
críticas, com base em relatórios sobre níveis de domínio técnico da

10
Prensky, Marc. 2001. “Digital natives, digital immigrants”. On the Horizon, NCB
University Press, vol. 9, n. 5, Oct., pp. 1-6. Outras abordagens críticas sobre a
definição “nativos digitais” podem ser encontradas em: Bayne, Sian & Ross, Jean.
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S. (eds.), Digital Difference. Educational Futures Rethinking Theory and Practice,
vol 50. pp. 159-171. Flávia Vieira, em sua experiência de desenvolvimento de
um aplicativo voltado para alunos de escola pública da periferia de Indaiatuba
discutirem o tema da cidadania, elaborou uma interessante reflexão sobre as
relações entre texto e imagem na percepção dos alunos que participaram do
processo de construção do dispositivo. Cf. Vieira, Flávia. 2018. Ensino de História,
construção de identidades políticas e práticas cidadãs: resistências e desafios na
contemporaneidade. Dissertação de Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
11
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152 | Pensar com método

informática, argumentavam que a geração considerada nativa digital


apresentava dificuldade para resolver problemas que demandam
conhecimento informático e o tempo que passavam na Internet seria
mais voltado ao entretenimento, redes sociais e chat.12 Em termos
teóricos, segundo Koutropoulos (2011, p. 257), as práticas de
aprendizagem apresentadas por Prensky como novidades do meio
digital já ocorriam no contexto analógico, como o método tentativa e
erro analisado por Piaget.
No caso brasileiro, a desigualdade social e regional torna
insustentável qualquer discussão que aborde os nativos digitais de
forma homogênea ou como uma faixa etária monolítica. Há múltiplas
clivagens neste segmento populacional (nascido na era digital)
estruturadas por elementos como gênero, etnia, raça, classe social,
capital cultural dos pais, local de moradia, e, relacionado a tudo
isso, a qualidade do acesso à Internet e a capacidade de adquirir os
dispositivos digitais.
Dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílio)/IBGE publicados este ano indicam uma estagnação da
difusão dos computadores pessoais entre a população e um aumento
extraordinário na posse de aparelhos celulares nos domicílios,
estando presentes em 92,6% da amostra. Quanto à conexão à
Internet (adotando o generoso critério: você acessou a Internet
nos últimos três meses?), a mesma pesquisa constatou importantes
desigualdades. Regionalmente, Norte e Nordeste comparativamente
apresentam baixo nível de acesso e, considerando o critério renda,
nacionalmente, como era esperado, o acesso à Internet tende a
diminuir entre as classes sociais mais baixas.

12
The fallacy of the digital natives: http://www.ecdl.org/digitalnativefallacy.
O ensino de história na era digital | 153

Fonte: IBGE, PNAD Contínua, 2016.

A ubiquidade dos celulares nos domicílios forneceu um dos


principais canais de acesso à Internet: 94,6% das conexões foram
por este canal, enquanto o acesso via computador pessoal englobou
63,7% da amostra, e via tablet, 16,4%, conforme infográfico abaixo:

Fonte: IBGE, PNAD, 2016.

Independente do acesso, temos que questionar a qualidade


da conexão. Embora a pesquisa não tenha verificado este aspecto,
não é difícil estimar que nas classes C, D e E as pessoas tendem a usar
aparelhos com menos memória e menor velocidade de processamento,
além de os planos de dados serem limitados por conta de seus custos.
São fatores que podem limitar a qualidade da navegação de acordo
com as fraturas que organizam a sociedade brasileira.
154 | Pensar com método

Qualquer política pública voltada ao ensino que lance


mão da produção de material para Internet (incluindo o Ensino
à Distância-EAD), deve levar em conta tais fatores relacionados
à exclusão e desigualdade digital.13 Segundo Santos (2006), em
uma realidade social como a brasileira, a desigualdade digital
pode aprofundar ainda mais a desigualdade social e a exclusão
dos serviços públicos mediados por tecnologia e aumento do
desemprego e exclusão social, na medida em que vivemos na
sociedade do conhecimento. Diversos autores salientam também
que projetos de inclusão digital que buscam atacar esta realidade
seriam inócuos se investissem apenas no acesso a aparelhos,
deixando de considerar a formação dos professores e o contexto
social onde a escola e os alunos estão inseridos.14
A despeito das diferentes clivagens, vistas anteriormente,
que podem estar submergidas no termo nativo digital, acreditamos
que o acesso à Internet e às novas formas de buscar conteúdos no
contexto digital estão ubiquamente presentes na vida das crianças
e adolescentes que nasceram após o advento da Internet, mesmo
que em aparelhos de baixa qualidade. Configura-se uma tensão na
cultura escolar quando entram em contato, de um lado, professores
que se formaram na cultura analógica do paradigma gutenbergiano
e, de outro, alunos que, em graus variados, relacionam-se com as
informações a partir de outras lógicas. Esta tensão vai adquirir feições
muito específicas a depender da origem social dos estudantes, do grau
de penetração dos recursos digitais na escola e do grau de abertura,
habilidades e familiaridade do professor com os aparatos digitais. Ou
seja, a tensão envolve todo o aparato educacional, portanto o debate

13
Sorj, Bernardo & Guedes, Luís Eduardo. 2005. “Exclusão digital: problemas
conceituais, evidências empíricas e políticas públicas”.  Novos estudos - CEBRAP,
São Paulo, n. 72, pp. 101-117, jul.; Grossi, Márcia Gorett Ribeiro; Costa, José Wilson
da & Santos, Ademir José dos. 2013. “A exclusão digital: o reflexo da desigualdade
social no Brasil”. Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente, SP, v. 24, n.
2, pp. 68-85, mai./ago.; Oliveira, Maria Lívia Pacheco de & Pinho Neto, Júlio Afonso
Sá de. 2016. “Brecha digital e o acesso à informação: projetos de inclusão digital”.
Humanidades Digitales: Construcciones locales en contextos globales. Asociación
Argentina de Humanidades Digitales, Buenos Aires; Santos, Edvalter Souza. 2006.
Desigualdade social e inclusão digital no Brasil. Tese de Doutorado, Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
14
Por exemplo: Kenski, Vani Moreira. 2007. Educação e tecnologias: O novo ritmo da
informação. Campinas: Papirus.
O ensino de história na era digital | 155

não pode ficar centrado apenas na figura do professor.


Talvez uma das manifestações deste confronto entre um
aparato educacional concebido no paradigma analógico e jovens
nascidos na era digital sejam as idas e vindas nas medidas legais
a respeito dos smartphones em sala de aula, tanto no Brasil como
no mundo. Nas escolas da rede estadual de São Paulo, por exemplo,
após 10 anos da lei nº 12.730, de 11 de outubro de 2007,15 que
proibia o uso do celular nas aulas, foi aprovada a lei nº 16.567, em
06 de novembro de 2017 revertendo a interdição: “Artigo 1º - Ficam
os alunos proibidos de utilizar telefone celular nos estabelecimentos
de ensino do Estado, durante o horário das aulas, ressalvado o uso
para finalidades pedagógicas.”16

Ferramentas pedagógicas e a nova estética da narrativa histórica



Os recursos digitais oferecem novas formas e novas
possibilidades de apresentação das evidências históricas, exercendo
impacto nas ferramentas pedagógicas ao facilitar a visualização
tridimensional, interativa e animada de representações de processos
históricos, particularmente aqueles que ocorreram em largos arcos
temporais e, por isso, demandam o manejo didático de grandes
massas de informações.
A visualização do volume e fluxos do tráfico transatlântico
de escravos em dois minutos17 exemplifica a escala destas
transformações e os cuidados metodológicos que devem ser adotados
na utilização de recursos desta natureza. O processamento de dados,
o ambiente colaborativo e o trabalho em equipes interdisciplinares
que as tecnologias de comunicação digital proporcionaram
viabilizou a formação de um grande consórcio entre universidades e
pesquisadores de vários continentes com o objetivo de reunir e tratar
o imenso conjunto de informações dispersas sobre as embarcações
negreiras. Constitui-se assim o mais importante e completo banco

15
https://www.al.sp.gov.br/norma/?id=74333
https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2017/lei-16567-
16

06.11.2017.html
17
http://www.slate.com/articles/life/the_history_of_american_slavery/2015/06/
animated_interactive_of_the_history_of_the_atlantic_slave_trade.html
156 | Pensar com método

de dados sobre o tráfico transatlântico de escravos: slave trade


database.18 A partir das informações sobre cerca de 20.000 viagens,
os editores do portal gratuito slate.com produziram uma animação
de dois minutos em que cada viagem é representada por um ponto,
o qual varia em tamanho de acordo com o número de pessoas
escravizadas a bordo. Cruzando com informações cronológicas, o
vídeo exibe ainda o local de partida no litoral africano e o porto de
chegada nas Américas.

Fonte: Slate.19

Ao acionar o botão “pause” e clicar no ponto que se


encontrava em movimento, o usuário obtém informações sobre o
país que detinha a embarcação, um breve histórico de suas viagens
transatlânticas e o link que remete à sua ficha no banco de dados,
a qual fornece ainda a lista das fontes primárias que subsidiam a
informação.

O site encontra-se disponível em português, incluindo seções com recursos e


18

materiais educativos: http://www.slavevoyages.org/


19
http://www.slate.com/articles/life/the_history_of_american_slavery/2015/06/
animated_interactive_of_the_history_of_the_atlantic_slave_trade.html
O ensino de história na era digital | 157

Fonte: Slate.20

Ao fundo da tela, em um quadro, pode ser observada a


inserção do ano da viagem na curva geral do volume do tráfico ao
longo do tempo em um gráfico animado. Este projeto bem-sucedido,
desenvolvido a partir dos dados da base slavevoyages.org, testemunha
o impacto das tecnologias digitais na área de História e seu potencial
a partir do trabalho em equipe interdisciplinar de programadores,
designers gráficos, estatísticos, jornalistas e historiadores.
O uso didático do vídeo, no entanto, demanda uma série
de cuidados metodológicos. Em suas múltiplas facetas, na mesma
medida em que o contexto digital proporciona a constituição de uma
subjetividade fragmentada, a representação da informação histórica
em tela, sobretudo aquela de natureza audiovisual, poderia resultar
em uma interpretação linear do tempo histórico e de processos de
grande complexidade. O risco é a reconstituição de uma história
linear e evolutiva dos séculos de tráfico negreiro, invisibilizando os
múltiplos contextos em que se desenvolveu, seus diferentes sujeitos
e as realidades interiorianas às quais esteve articulado nos dois lados
do Atlântico, entre outros aspectos. Portanto, o recurso digital não
dispensa as práticas que envolvem todo exercício de análise histórica
em sala de aula: cruzamento com informações textuais e material
didático e paradidático, além da contextualização adequada que
deve ser desenvolvida pelo professor. Assim, o uso do vídeo atinge

20
http://www.slate.com/articles/life/the_history_of_american_slavery/2015/06/
animated_interactive_of_the_history_of_the_atlantic_slave_trade.html
158 | Pensar com método

seu potencial quando inserido dentro de um conjunto mais amplo


de estratégias pedagógicas desenvolvidas pelo docente da disciplina.
Outro efeito que pode demonstrar os impactos dos
dispositivos tecnológicos digitais no ofício do historiador são as
mudanças na própria estética da narrativa histórica. A tela permite a
construção de uma escrita que combina simultaneamente os recursos
textuais alfabéticos, a imagem, o vídeo e o áudio. Na narrativa digital,
o lugar do sujeito leitor é reposicionado, pois a dinâmica da leitura
está mais centrada na sua iniciativa, na medida em que é menos
linear e mais interativa.21 A exposição às várias camadas do texto está
atrelada ao modo como escolhe acionar ou não os hiperlinks, ícones
e botões que abrem imagens ou ligam sons atrelados ao conteúdo
sobre o qual vem lendo. Chartier (1999) e Levy (1999) destacam
que historicamente as práticas de leitura sempre foram subjetivas,
relacionais e dependiam do repertório cultural e social do leitor,
a inflexão está na escala em que isto ocorre no meio digital, dadas
todas as possibilidades de exploração do conteúdo na tela.
Podemos citar a coleção Históri@ Illustrada,22 da Editora da
UNICAMP, como exemplo de um projeto editorial que busca tornar
a produção historiográfica esteticamente mais atrativa ao leitor
inserido no contexto digital. Em seu primeiro título, Não Tá Sopa,
Clementina Pereira (2016) analisa a História do samba no Rio de
Janeiro recorrendo à justaposição de texto, 180 imagens de sambistas
e locais onde transitavam e tocavam e, de forma inovadora, cerca de
40 fonogramas áudios das músicas.

21
Sobre narrativa digital, consultar: Andrade, Rafael Reis de. 2018. História,
Narrativa e Netflix: a construção simbólica na era digital. Dissertação de Mestrado,
Universidade Estadual de Campinas.
22
Sobre a coleção, consultar o link: https://www.cecult.ifch.unicamp.br/
publicacoes/colecao-histori-illustrada
O ensino de história na era digital | 159

Cunha, Maria Clementina Pereira. 2016. Não tá sopa: sambas e sambistas no Rio de
Janeiro, 1890-1930. Campinas: Editora da UNICAMP, p. 52.

No fluxo da leitura interativa, o sujeito leitor tem a


possibilidade de deslocar o seu foco visual para a sensibilidade
auditiva e ouvir a música referida pelo texto; voltar e deslocar a
atenção para fotografias ou vídeos, acionando a sensibilidade visual
e auditiva; e assim sucessivamente. As várias camadas do texto são
acionadas a partir dos interesses que movem a leitura.
Por conta dos limites deste ensaio, restringimo-nos a
explorar os exemplos acima. Porém, é possível encontrar na Internet
uma quantidade crescente de outras ferramentas digitais que podem
auxiliar o professor de História. É o caso do projeto Detetives do
Passado, da Escola de História da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO), coordenado por Anita Correia e Keila
Grinberg, em que é possível trabalhar o tema da escravidão no
século XIX por meio de jogos digitais organizados a partir de casos
retirados de fontes primárias: http://www.numemunirio.org/
detetivesdopassado/.

Fake history, “revisionismo” conservador e ataques ao professor


de História

Em seus anos iniciais, a disseminação da Internet via
aparelhos de celular com tecnologia smartphone sustentou uma
leitura eufórica de que a democracia estaria em expansão (Hindman,
2009). Os grandes órgãos da mídia corporativa perdiam o monopólio
160 | Pensar com método

da circulação das notícias e as novas formas de conexão interpessoal,


sobretudo as redes sociais, possibilitavam novas dinâmicas de
mobilização social e ação política. O ápice desta percepção seria a
primavera árabe transcorrida entre finais de 2010 e 2011, quando
ditaduras foram derrubadas por protestos de massa em diversos
países do Oriente médio (Egito, Tunísia, Líbia, Síria, Iêmen e Barein).
Nos anos seguintes, uma série de acontecimentos abalaram a leitura
que se fazia da popularização da Internet móvel. Entre eles, podemos
destacar a recomposição de forças autoritárias no Oriente Médio (e
o prolongamento da crise na Síria); a eclosão dos movimentos de
massa convocados pela Internet na Turquia, em 2013 e a ascensão
do autoritarismo no país; e, por fim, o papel das fake news, teorias
conspiratórias e uso abusivo de big data (escândalo da Cambridge
Analytica) na campanha eleitoral Donald Trump e na ascensão de
movimentos extremistas na Europa. A divulgação indiscriminada
de notícias falsas (sobretudo via Facebook, WhatsApp e Instagram)
através da manipulação de imagens, imitações de layouts de sites
de notícias mainstream, e vídeos evidenciam os tensionamentos
trazidos pelas mídias digitais para a experiência democrática
contemporânea.
A polêmica, a controvérsia e a vertiginosa atração pela
novidade são alguns dos principais combustíveis que movem a
viralização de conteúdos no ambiente das redes sociais, onde
o usuário ocupa uma posição central. Seu engajamento com os
conteúdos publicados em posts, memes, links para vídeos e matérias
é o que propaga o material via compartilhamento ou outras formas
de reação. Além disso, robôs e perfis falsos podem ser utilizados
para acelerar a viralização dos conteúdos.
Tais dinâmicas estão inseridas em um modelo de negócios
bilionário em que as principais receitas são provenientes das verbas
de publicidade segmentada, tornada possível com o processamento
dos dados que constantemente deixamos nos nossos dispositivos
digitais. Os algoritmos são configurados para mostrar nossas
preferências ideológicas, níveis de renda, hábitos de consumo e
modos de vida. Assim, o acesso à informação, que deveria ser um
direito relacionado ao exercício da cidadania, vai paulatinamente
se estruturando em função de um consumidor, empoderando um
cidadão consumidor.
O ensino de história na era digital | 161

As disputas e distorções de narrativas sobre o passado (ou


fake history) podem ser enquadradas nesse conjunto mais amplo de
reveses e contradições decorrentes das rupturas proporcionadas
pelas tecnologias digitais. As TICs erodiram as fronteiras que
definiam os espaços formais e informais de aprendizagem e de
acesso a conteúdos tocantes a temas clássicos dos currículos
escolares (Trindade, 2018). Em uma escala sem precedentes, a
Internet permitiu a busca e replicação de informações de maneira
cada vez menos mediada pelos aparatos institucionais do campo
da educação (bibliotecas, escolas, centros de estudo etc.) ou pelos
professores.
Para verificar como esse fenômeno no mundo digital
relaciona-se a uma crise do ensino de História, elegemos a emergência
do discurso “revisionista” sobre a escravidão e o tráfico negreiro.
Além de coincidir com a difusão da Internet, a popularização de
memes e posts sobre os dois temas ocorreu no contexto dos debates
acerca das políticas públicas de combate ao racismo estrutural
que começaram a ser formuladas em meados da década de 1990
e, sobretudo, nos anos 2000. Ainda que tímidas, o poder público
procurava responder a pautas históricas dos movimentos negros.
Dentre elas, podemos elencar as ações afirmativas (cotas étnico-
raciais) para acesso às universidades e a lei 10.639, que estabeleceu
em 2003 a obrigatoriedade do ensino de História da África e da
cultura afro-brasileira nas escolas.

Manifestação durante a reunião da SBPC em Salvador, 1981


Foto: Juca Martins; Acervo: UNICAMP/ AEL (Arquivo Edgard Leuenroth),
Fundo Voz da Unidade
162 | Pensar com método

Esse conjunto de mudanças desestabilizou a legitimidade e a


naturalização das disparidades étnico-raciais brasileiras, provocando
no debate público importantes fraturas nas teses da democracia
racial, até então a principal matriz ideológica das leituras sobre as
relações raciais no país. Como argumentos e evidências históricas
foram acionadas na agenda de reivindicações e nas justificativas
legitimadoras das políticas públicas, a reação contrária recorreu
também a discursos históricos para atacar o reconhecimento que o
Estado começou a promover da existência do racismo no país e seus
efeitos na cidadania da população negra.
Apesar de multiforme e difuso, podemos localizar a matriz
das ideias presentes nos discursos revisionistas das mídias sociais
em autores best sellers, como o livro Guia politicamente incorreto da
História do Brasil, 2009, de Leandro Narloch e o livro O mínimo que
você precisa saber para não ser um idiota, 2013, de Olavo de Carvalho.
Ambos incorporaram em suas obras um suposto “revisionismo
histórico” versando sobre temas como tráfico e escravidão (sobretudo
o envolvimento das elites africanas no comércio transatlântico),
Quilombo dos Palmares e a construção social da memória de
Zumbi como herói. Se na historiografia as revisões sobre consensos
interpretativos bem estabelecidos emergem de agendas de
pesquisa que se apoiam em evidências empíricas, cuidados teóricos
metodológicos lastreados em ampla bibliografia e em conexão com
o contexto histórico onde o historiador está inserido, o revisionismo
populista das redes sociais é seletivo, interessado, ideologicamente
simplificador, produzido e consumido de acordo com a propensão
ideológica do seu produtor e do seu leitor, constituindo uma espécie
de história à la carte.
A intensidade adquirida pelo fenômeno nas mídias digitais
e na sociedade brasileira impõe uma série de desafios ao professor
de História no contexto do acirramento da polarização política e
ideológica que remonta ao contexto pós-junho de 2013 e, sobretudo,
após a crise política e econômica que se aprofundou nos anos
de 2014, 2015, 2016 e 2017. Entre as estratégias adotadas na
disputa pela hegemonia política, principalmente no contexto do
impeachment de Dilma Rousseff, grupos como Movimento Brasil
Livre (MBL) mobilizaram-se na Internet em torno de uma série de
temas que consideravam ser da agenda da esquerda, com destaque
O ensino de história na era digital | 163

para importância de Zumbi (e a posse de escravos por africanos)23


e do dia da consciência negra e cotas étnico-raciais. Costumam
postar memes, vídeos e textos a respeito da escravidão no Brasil
e sobre a história da África, sobretudo o escravismo. Partem de
uma racialização de sua história, e em um nível mais profundo,
procuram deslocar a atenção de problemas do racismo estrutural
para o continente, em uma operação na qual a ideia de raça passa
a ser o principal eixo organizador da sua imagem. Não há espaço
para a história das múltiplas sociedades existentes na África em
sua complexidade, com formas de hierarquização social, conflitos,
diferenças, estratégias de domínio pessoal, ou seja, elementos
constitutivos de qualquer experiência humana.
Lucilene Reginaldo (2017) formulou um exemplo que
pode ilustrar com muita eloquência o contraste estabelecido
nestes discursos entre a história da Europa e a história da África.
No caso específico da escravidão, formula-se uma expectativa
de que os africanos seriam um único povo (o povo negro/os
negros) que falhou moralmente em estabelecer uma solidariedade
natural entre si (afinal, seriam todos de uma mesma raça, naquela
linha de pensamento), traíam-se e se escravizavam. “Os negros
se escravizaram”; “os negros vendiam os negros”, uma linha
interpretativa em que a história começa e termina na África, tirando
o foco da desigualdade social e étnico-racial brutal no Brasil de
hoje. Jamais se pergunta quais eram os sujeitos escravizadores e os
sujeitos escravizados. Tornam-se apenas negros.
Em um exercício de estabelecimento de paralelos
contrastantes, a professora nos lembra que nunca abordamos a
história do Nazismo, por exemplo, a partir de uma chave explicativa

23
Aqui igualmente a ideia de raça é central. Essencializa-se pessoas de origem
africana, projetando a ideia de que deveria haver uma solidariedade “natural” entre
elas na escravidão. Além deste fator, é importante lembrar que estes temas não são
tabus na historiografia profissional. Desde a década de 1980 abundam trabalhos
que analisam a posse de cativos por indivíduos libertos, porém são situados no
quadro mais amplo do funcionamento da escravidão. Trata-se sempre, como alerta
Ricardo Pirola, de uma minoria dos proprietários quando se considera os cerca de
5,5 milhões de africanos trazidos para o Brasil. Já no discurso revisionista populista
esse dado ganha um peso desproporcional na explicação da escravidão, deslocando
o foco de outros fatores. Pirola, Ricardo. 2017. “Cotas raciais: disputas políticas e
apropriações do passado”. Calourada - Gradução em História 2017. IFCH-UNICAMP.
22 mar.
164 | Pensar com método

centrada na ideia racializada: de que “os brancos estavam matando


os brancos” na época da Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário,
a história europeia é recuperada em sua complexidade, com suas
dimensões econômicas, políticas, sociais, culturais, ideológicas
etc., que vão explicar e inscrever a ascensão do Nazismo dentro
de um processo histórico conflituoso, onde sabemos quais eram
os diferentes agentes históricos e suas posições nas relações
assimétricas de poder (Reginaldo, 2017). É a História que impede
a racialização como visão explicativa deste passado. Exercício
semelhante deveria ser adotado para nossa aproximação sem tabus
com a história da escravidão na África no contexto mais amplo das
formas de subordinação pessoal nas sociedades linhageiras; as
complexas hierarquias sociais;24 e suas transformações a partir da
pressão da demanda atlântica, durante a vigência do tráfico negreiro.
Ou seja, como toda sociedade complexa, as múltiplas e heterogêneas
organizações sociais africanas possuem dinâmicas de conflitos,
grupos dominantes e grupos dominados; aliados e inimigos; insiders
e outsiders. Qual era o lugar da escravidão nestas sociedades? Quem
poderia ser escravizado? Como a demanda europeia intensifica e
transforma estas dinâmicas?
A lei 10.639 (2003),25 que tornou obrigatório o ensino de
História da África e da cultura afro-brasileira, ainda é relativamente
recente, o que dificulta abordagens que partam das questões acima
propostas. A grande maioria dos professores em sala de aula formou-
se em uma época em que História da África não fazia parte dos
currículos dos departamentos de História. Outras barreiras podem

24
Sobre escravidão na África, consultar: Lovejoy, Paul E. 2002. A escravidão na
África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira;
Thornton, John. 2004. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico
1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier; Meillassoux, Claude. 1995.  Antropologia da
escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Thorton, John.
1983. The Kingdom of Kongo: civil war and transition, 1641-1718. Madison, Wis.:
University of Wisconsin Press; Stellwell, Sean. 2014. Slavery and slaving in African
History. Cambridge: University Press; Gareth, Austin. 2017. “Slavery in Africa”. In:
Eltis, David; Engermen, Stanley; Drescher, Seymour & Richardson, David (eds.), The
Cambridge World History of Slavery. Cambridge University Press, vol. 4.
25
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Sobre uma
avaliação da aplicação da lei, ver: Janz, Caroline & Cerri, Luis Fernando. 2018. “Treze
anos após a lei nº 10.639/03: o que os estudantes sabem sobre a história da África?”.
Afro-Ásia, 57, pp. 187-211.
O ensino de história na era digital | 165

ser situadas no plano do desenvolvimento de material didático


e paradidático, ainda em volume incipiente, o que aponta para a
necessidade de os departamentos de História se engajarem em
projetos voltados para História da África e da cultura afro-brasileira.
Os recursos digitais podem trazer muitas contribuições para sanar
tais lacunas.
Por fim, é fundamental também discutir a centralidade da
escravidão na formação histórica do país e o acúmulo histórico das
desigualdades sociais e raciais que inviabiliza a cidadania plena da
população afrodescendente no presente. É como se a história de
um crime contra a humanidade que esteve no centro de formação
histórica brasileira fosse legitimada no presente com base no fato
de que alguns grupos nas sociedades africanas se beneficiaram da
escravização e comercialização de milhares de seres humanos para
as Américas. Urge ainda, nestas discussões, evitar a armadilha da
tese da “dívida histórica”, que poderia restringir o debate ao passado
(do Brasil e da África) e à busca de “culpados”. A dívida é com o
presente, com cidadãos brasileiros.
Além de temas relacionados à escravidão e à África, outros
tópicos clássicos dos currículos escolares têm sido ideologicamente
apropriados de forma difusa pela retórica revisionista de matriz
conservadora que se difunde no meio digital.26 Por exemplo no caso
do Nazismo, a retórica inflamada das redes sociais propaga que o
regime era de esquerda, sobretudo por conta da palavra “socialista”
no título do partido de Hitler: Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães. Apesar de bastante disforme, é possível
localizar na obra de Olavo de Carvalho o esforço interpretativo
para, de alguma forma, deslocar o Nazismo do espectro ideológico
da direita (no caso, extrema direita) e aproximá-lo da esquerda
(socialista), embora o autor não afirme categoricamente o que
passou a circular nas mídias sociais. Em artigo publicado em O Globo
e reproduzido em seu livro O mínimo que você precisa saber para ser
um idiota, o autor afirma:

A fraude adquire ainda maior potencial destrutivo quando


reforçada pelo pressuposto — absolutamente mentiroso, conforme

26
No caso da ditadura civil-militar, consultar: Genari, Elton Rigotto. 2018.
Revisionismo, memória e ensino de história da ditadura civil-militar. Dissertação de
Mestrado, Universidade Estadual de Campinas.
166 | Pensar com método

já demonstrei em artigos anteriores — que cataloga na direita


o nazismo alemão, uma ideologia revolucionária, socialista,
estatizante, materialista e anticristã como o marxismo, e que só
se distingue dele por associar sistematicamente o ódio ao burguês
com o ódio ao judeu.27

A propagação nas redes sociais das teses anônimas28 de


que o Nazismo era de esquerda levou grandes portais de notícias
a fazer matérias abordando a questão, o que sempre acaba em
discussões acaloradas nas seções de comentários nas redes sociais
ou no próprio site.29 A controvérsia ganhou tamanha proporção que
a página da embaixada da Alemanha no Brasil posicionou-se sobre o
assunto, afirmando que o nazismo era de extrema direita, o que não
foi suficiente para convencer uma série de perfis que questionaram
o vídeo na seção de comentários da página.30 Em matéria recente
apoiada em várias obras de referência historiográfica, o veículo
Deustche Welle procurou mapear o circuito do discurso e suas
formas de propagação, concluindo que este é um falso debate que
só faz sentido no contexto de acirramento da polarização política
brasileira. Na Alemanha esta não é uma questão, ali há consenso de
que o Nazismo foi um regime de extrema direita.31
Embora à primeira vista os “revisionismos”, as apropriações
e as disputas ideológicas de narrativas da História soem absurdos
e causem espanto, eles não ficam restritos às mídias digitais
(Facebook, YouTube, Whatsapp, etc.). Penetram o senso comum,
chegando aos alunos que a eles estão expostos na Internet e no

27
Olavo de Carvalho. 2001. “Extrema direita e extrema burrice”, O Globo, 8 dez.
http://www.olavodecarvalho.org/extrema-direita-e-extrema-burrice/.
28
O ambiente digital permiti a edição e replicação (ctrl + c/ ctrl + v) rápida de
conteúdos, tensionando o paradigma contemporâneo em torno das ideias de autoria.
29
Costa, Camilla. 2017. “O nazismo era um movimento de esquerda ou de direita?”,
BBC Brasil, 7. https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-39809236; 2018.
“Grupos de direita no Brasil contestam embaixada alemã sobre nazismo”, Folha de
São Paulo, 16 set.. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/
grupos-de-direita-no-brasil-contestam-embaixada-alema-sobre-nazismo.
shtml?utm_source=twitter&utm_medium=social&utm_campaign=twfolha
30
https://twitter.com/Alemanha_BR/status/1037303279724781568
31
Brasileiros criam debate que não existe na Alemanha. Deutsche Welle, 17 de
setembro de 2018. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/brasileiros-criam-
debate-que-n%C3%A3o-existe-na-alemanha/a-45531446
O ensino de história na era digital | 167

cotidiano em geral. Por meio destes circuitos, o ambiente digital


propicia a configuração de uma crise profunda do ensino de História,
desestabilizando o lugar do professor na sala de aula e os cânones
interpretativos que informaram a constituição do currículo com o
qual trabalha. Ao se deparar com as teses “revisionistas” trazidas
pelos alunos, confrontação direta ou censura podem ser abordagens
pouco frutíferas. Talvez o melhor caminho seja a problematização
dos elementos subjacentes ao teor dos discursos “revisionistas”,
procurando entender os lugares por onde se difundem e quais os
interesses que podem estar por trás da sua disseminação. Que papel
cumprem na polarização política e ideológica?
Acreditamos que a crise nos referenciais da História que
eclodiu na era digital é aprofundada atualmente em razão de o
estatuto do professor vir sendo deslegitimado por conta da ação
política de movimentos liderados pelo Escola sem Partido. Por
meio de vídeos e posts nas redes sociais, o movimento projeta
um estereótipo em torno do professor de História que o coloca
sob suspeição ao caracterizá-lo como “esquerdista”, “comunista”,
“doutrinador”, “globalista”, entre outros termos. Por trás de um
discurso legitimador neutro, o movimento defende uma agenda
ideológica conservadora e cerceadora da liberdade de cátedra,
da pluralidade de matrizes de pensamento, ataca qualquer viés
considerado progressista nos costumes e das liberdades individuais
e advoga uma pedagogia conservadora. Em síntese, a ofensiva
promove a criminalização ideológica do professor, do material
didático e das práticas de ensino.32
O professor de História, como qualquer outro profissional,
não é infalível ou inquestionável. Se mães e pais acreditam que pode
haver casos de abusos de poder institucional ou pedagógico nas
aulas, esta questão deve ser debatida sem tabus, mas por intermédio
de práticas democráticas, a começar pelos fóruns da própria escola.
Jamais deve ser seguido o caminho da censura e do cerceamento à

32
2016. Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação (org.), A ideologia do
movimento Escola Sem Partido: 20 autores desmontam o discurso. São Paulo:
Ação Educativa. Disponível em: http://acaoeducativa.org.br/wp-content/
uploads/2017/05/escolasempartido_miolo.pdf; Frigotto, Gaudêncio (org.). 2017.
Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio
de Janeiro: UERJ, LPP; Professores da Faculdade de Educação da USP comentam o
projeto Escola sem Partido: http://www4.fe.usp.br/escola-sem-partido.
168 | Pensar com método

liberdade de cátedra, como são as campanhas lideradas por grupos


conservadores que dão sustentação ao Escola sem Partido, que
moralmente se legitima projetando uma neutralidade ao mesmo
tempo que adota práticas persecutórias, realizando blitz, encorajando
o denuncismo, silenciamento e exposição sensacionalista de
professores nas redes sociais.
Os fenômenos analisados derivam de uma crise profunda
do ensino de História que se configurou na confluência do contexto
digital com a polarização político-ideológica que marca a crise em que
o país se encontra mergulhado. Portanto, o curso de licenciatura em
História deve encarar esta nova realidade e discutir a problemática.
No que toca à atuação dos profissionais, o campo da
divulgação científica e difusão do conhecimento histórico ganha
ainda mais importância nesta conjuntura. Se há uma ofensiva em
que a memória e a História estão sendo disputadas nas redes sociais
e na Internet, este espaço impõe-se como uma nova dimensão
do trabalho do profissional da área de História, ainda que seus
contornos não sejam claros e não tenham lastro institucional.33
Demanda a formulação de métodos e práticas específicas para este
mundo ainda pouco conhecido pelos departamentos de História. Um
aluno de ensino fundamental e médio está mais exposto a discursos
e imagens propagadas nas redes sociais acerca de temas sensíveis
como História da África e da escravidão do que às teses oriundas de
pesquisas vanguardistas escritas a partir de rigorosos métodos de
investigação com base em evidências históricas.
Exemplo bem-sucedido e inspirador nesse sentido é a página
do Facebook “O Incorreto no Guia Politicamente Incorreto de História
do Brasil”, atualmente com 2.858 seguidores,34 que rebate teses
presentes no livro de Narloch com evidências históricas produzidas
pela historiografia profissional (incluindo referências bibliográficas)
em linguagem acessível formatada em post.

33
Sobre as relações entre redes sociais e professores, embora não trate
especificamente dos desafios enfrentados pelos professores de História, consultar:
Bueno, Maysa De Oliveira Brum. 2014. Cultura digital e redes sociais: Incerteza e
ousadia na formação de professores. Tese de Doutorado, Universidade Católica Dom
Bosco.
34
Acesso em: 17 set. 2018, Facebook.
O ensino de história na era digital | 169

Considerações finais: o lugar do professor no paradigma do


excesso

O acúmulo das reflexões no campo das ferramentas e práticas
pedagógicas, em geral, e do ensino de História, em particular, nas
últimas décadas convergiu para o consenso acerca da necessidade
de superação de abordagens centradas na sucessão linear de
eventos na linha do tempo e explicados por relações de causa e
efeito. Defende-se que os conteúdos não sejam trabalhados a partir
da memorização de grandes eventos, datas e nomes de heróis e
personagens históricos, como eram as representações sociais acerca
do ensino de História. Advoga-se um paradigma que propicie o
estudo de temas centrados na multiplicidade de sujeitos que fazem a
história, cujo curso é marcado por diferentes percepções e ritmos do
tempo, permanências, rupturas e descontinuidades.35
Os caminhos teóricos e metodológicos percorridos na
superação daquelas concepções conteudísticas agora podem nos
oferecer subsídios para refletirmos sobre abordagens adequadas
aos desafios envolvendo o ensino de História na era digital. A
possibilidade de recuperar conteúdos por meio da busca por
palavras em qualquer aparelho conectado à Internet provoca uma
importante inflexão nas práticas de aprendizagem. Mapas, datas,
nomes de personagens, espacialidade e localização dos eventos e
fenômenos históricos podem ser facilmente encontrados. Ou seja,
currículos e materiais pedagógicos orientados para a transmissão
vertical de conteúdo factual e descritivo tornam-se obsoletos e
acentuam a decadência dos métodos de aprendizagem centrados

35
Bittencourt, Circe. 1990. Livro didático e conhecimento histórico: uma História do
saber escolar. São Paulo: Loyola; _____. 1988. Pátria, civilização e trabalho. O ensino
de história nas escolas paulistas (1917-1939). São Paulo: s/e.; _____. 2001. O saber
histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto; Fonseca, Thaís Nívia de Lima. 2004.
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práticas. Rio de Janeiro: Mauad; Nadai, Elza. 1993. “O ensino de História no Brasil:
Trajetória e perspectivas”. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25/26,
pp. 163-174, set. 92/ago.93; Napolitano, M. 2006. “A História depois do papel”. In:
Pinsky, Carla (org.), Fontes Históricas. São Paulo: Contexto.
170 | Pensar com método

na memorização.36
Acreditamos que o ensino contemporâneo de História deve
ser articulado com uma reflexão crítica das diferentes dimensões
dos processos históricos e contribuir para a formação de um aluno
pesquisador que saiba navegar no excesso de informações oferecido
pela Internet. Ao buscar uma palavra no Google o estudante se
depara com uma quantidade de páginas, links e hiperlinks que
tendem ao infinito. Desta forma, é superado o paradigma anterior
em que a cultura escolar tinha como estratégia a gestão da escassez
dos conteúdos registrados em poucos recursos mediados pela
escola ou um conjunto limitado de material didático, tais como
dicionários e enciclopédias. Em síntese, os projetos pedagógicos e
as ferramentas didáticas que permitem a viabilização dos processos
de aprendizagem devem ser orientadas para práticas que promovam
o “aprender a aprender”.37 Algumas questões podem auxiliar nestas
reflexões quando um aluno acessa conteúdos na Internet:

- Quem são os autores (formação etc.) ou instituições (escola?


Universidade?) que produziram o conteúdo da página encontrada?
- Que referências bibliográficas utilizam?
- As informações baseiam-se em fontes primárias? Se sim, quais?
- Quais outros conteúdos o mesmo website já produziu? Qual sua
orientação ideológica?

36
Fonseca, 2003. Consultar também: Quaresma, Thatianne Ponce; Nakashima,
Rosária Helena Ruiz & Feitosa, Lourdes Madalena Gazarini Conde. 2015. “Recursos
digitais do portal do professor no ensino de História”. Mimesis, Bauru, v. 36, n. 1,
pp. 57-102; Barros, Daniela Melaré Vieira & Brighenti, Maria José Lourenção. 2004.
“Tecnologias da Informação e Comunicação & Formação de professores: Tecendo
algumas redes de conexão”. In: Rivero, Cléia Maria L. & Gallo, Sílvio. A formação de
professores na sociedade do conhecimento. Bauru: Edusc; Assman, Hugo. 2000. “A
metamorfose do aprender na sociedade da informação”. Ci. Inf., Brasília, v. 29, n.
2, pp. 7-15, mai./ago.; Murguia, Eduardo Ismael & Ribeiro, Raimundo Donato do
Prado. 2001. “Memória, História e Novas Tecnologias”. Impulso, Piracicaba, v.12,
n.28, pp. 175-183.
37
Marilda Behrens defende que “O desafio imposto aos docentes é mudar o eixo do
ensinar para optar pelos caminhos que levam ao aprender. Na realidade, torna-se
essencial que professores e alunos estejam num permanente processo de aprender
a aprender.” Behrens, Marilda. 2000. “Projetos de aprendizagem colaborativa num
paradigma emergente”. In: Moran, José Manuel; Masetto, Marcos T. & Behrens,
Marilda Aparecida. Novas tecnologias e mediação pedagógica. Campinas: Papirus,
p. 73.
O ensino de história na era digital | 171

- É possível encontrar outras páginas que oferecem abordagens


divergentes e contrapontos ao mesmo assunto? Se sim, cotejá-las e
identificar as diferenças.

Além disso, advogamos também um ensino de História que


possibilite a reflexão crítica e a consciência social e histórica acerca
das dimensões econômicas, corporativas, desigualdades e relações
de poder assimétricas subjacentes aos aparatos digitais que mediam
o acesso à informação e ao conhecimento na contemporaneidade.
Os motores de busca e repositórios de informações devem ser
abordados, para além de suas funcionalidades, como parte de
circuitos econômicos mais amplos, pois a configuração de seus
algoritmos e a disposição dos conteúdos na tela não são resultados
de processos neutros. Tais questões constituem, a nosso ver, uma
das fronteiras atuais do campo de reflexões em torno do ensino de
História.


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Sobre a instrumentalização mútua:
pesquisadores e financiadores

Taniele Rui

Setembro de 2015. Preparei-me com ansiedade para


comparecer ao evento Inside Cracolândia: Promoting Health and
Human Rights in Brazil’s “Crackolands”, que ocorreu em Nova York,
na sede de uma das mais importantes fundações filantrópicas
globais,1 que realiza ações em quase 40 países. Por ocasião da minha
passagem pelo Institute for Advanced Study (IAS), em Princeton,2
o evento foi organizado de modo a me figurar como a palestrante
“brasileira” esperada, que dividiria a mesa com três trabalhadoras
da fundação. Abordando cenas de consumo de crack rotuladas
como “cracolândias” no Brasil, o evento apresentou trabalhos
financiados pela fundação nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro
e especialmente, como explicitado em seu folder de divulgação,
concentrou o interesse na experiência paulistana, de modo a propagar
a novidade do Programa De Braços Abertos (DBA), implementado
em 2013 pela prefeitura paulistana, sob gestão de Fernando Haddad
(Partido dos Trabalhadores - PT):

Nos anos recentes, cidades brasileiras têm visto aumentar as


chamadas cracolândias – lugares ocupados por pessoas em situação
de rua onde crack e outras drogas são abertamente consumidos
e vendidos, frequentemente acompanhados por alto índice de
violência. Enquanto muitas cidades respondem ao fenômeno com
repressão policial, prendendo e deslocando pessoas (que logo
voltam às ruas), São Paulo está tentando uma abordagem diferente:
o inovador e controverso programa De Braços Abertos que oferta
casa, comida, trabalho e oferece assistência à saúde e saúde mental
a aproximadamente 800 usuários de drogas. Convidamos para a

1
Para reter o argumento do texto acerca das relações financiadores-pesquisadores,
optei aqui por não identificá-la nominalmente.
2
Durante a primeira quinzena de setembro de 2015, cursei, como fellow, o Summer
Program in Social Science, Inequalities and Differences, coordenado por Didier Fassin.
Quero destacar aqui a parceria com Susana Durão nesse período, figura central na
composição do argumento que apresento.
178 | Pensar com método

discussão sobre saúde, direitos humanos e reforma na política de


drogas nas cracolândias brasileiras (Tradução minha).

Tendo realizado pesquisas e publicado sobre esta área desde


2009,3 fui convidada por email pela grande fundação no trimestre
final de 2014 para coordenar uma pesquisa qualitativa sobre o DBA,
que eles tinham interesse em financiar. Aceita a proposta (cujos
detalhes serão expostos na sequência desse texto), o evento era uma
demonstração pública do meu trabalho para os financiadores da
pesquisa, mas, principalmente, um reforço, igualmente público, de
uma agenda política sobre “saúde, direitos humanos e reforma na
política de drogas” – as palavras-chave que recentemente compõem
o foco de ações globais da fundação e especialmente orienta sua
expansão para a América Latina.4
Ao contrário da projeção que ganhou, e como ficará mais
claro adiante, o DBA era, no Brasil, um programa incipiente e bastante
complexo. Contudo, o interesse da fundação era divulgá-lo como
um “caso de sucesso” na implementação de propostas de redução
de danos para o consumo de crack. Ciente disso, optei, naquela
ocasião, tão simplesmente por preparar e ler um texto em inglês
(com as dificuldades de um “non-native speaker”), complementado
por imagens, no qual me concentrei em narrar o histórico local até à
implementação do DBA, oferecendo, assim, um “contexto” para sua
proposição e, não menos importante, evitando explicitar polêmicas
locais em torno a ele na sede da instituição que, financiadora da
pesquisa, o tinha e o apresentava como exemplo.

3
Publicações diversas sobre a área podem ser lidas em Rui (2012, 2013, 2014a,
2014b, 2014c, 2015a, 2015b, 2016).
4
No centro dos efeitos da “guerra às drogas” (superencarceramento, mitigação
de garantias processuais, criação e eleição do ‘traficante’ como inimigo a ser
combatido, operações violentas em bairros pobres e toda espécie de violação de
direitos), países latino-americanos vêm liderando um movimento internacional de
políticas alternativas sobre drogas, das quais a mais significativa é a pressão por
reformas nas convenções internacionais. A partir de chamado dos países latino-
americanos, em abril de 2016 ocorreu a United Nations General Assembly Special
Session (UNGASS) on drugs. Da perspectiva da Fundação, considera-se, portanto, que
a América Latina está bem posicionada para influenciar outras nações do Sul Global.
Estima-se que em 2016 ela tenha investido cerca de U$ 34 milhões em projetos
parceiros na região.
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 179

Além da minha exposição, as outras duas falas abordaram


a situação da legislação sobre drogas no Brasil e os estudos do
psicólogo Bruce Alexander (Simon Fraser University – Canadá) e do
neurocientista Carl Hart (Columbia University – EUA) que vêm sendo
apresentados como referências científicas, respectivamente, de uma
mudança paradigmática no entendimento do consumo problemático
de drogas; bem como da proposição de novas possibilidades de
tratamento, ancoradas mais em elementos sociais e monetários que
nos aspectos fisiológicos dos organismos;5 elementos que foram
associados, nessa fala, ao Programa De Braços Abertos. O evento
contou com a participação de mais de 100 espectadores, durou cerca
de três horas e foi considerado um sucesso pelas organizadoras.
Quanto a mim, no caminho de trem de Nova York a Princeton,
experimentei uma inesperada sensação de desconforto.

***

Essa inesperada sensação de desconforto me levou a produzir


o presente texto, que tematiza as interfaces entre programas
de governo, pesquisadores “locais” e fundações internacionais,
na condição de financiadoras de pesquisas. Tendo em conta

5
O psicólogo Bruce Alexander é conhecido por, no final dos anos 1980, romper com
a “old theory” sobre dependência química. Seu conhecido experimento, Rat Park,
tratou de retirar os ratos de laboratório das tradicionais “Skinner Box” e transferi-
los para um espaço aberto, com mais variedade de entretenimento (o Rat Park).
Vários experimentos compararam o consumo de drogas dos ratos no Rat Park com
o dos ratos em confinamento solitário. Em todos eles, os ratos em confinamento
consumiram muitíssimo mais drogas. Cf: http://www.brucekalexander.com/
articles-speeches/rat-park/148-addiction-the-view-from-rat-park e http://www.
stuartmcmillen.com/comics_en/rat-park/, último acesso em 25 abr. 2016. O
neurocientista Carl Hart ficou mais conhecido a partir do seu recente livro High Price
(Hart, 2014), um livro de memórias e divulgação dos seus experimentos científicos.
Dentre eles, o oferecimento de doses de crack e metanfetamina em laboratório a
usuários considerados compulsivos. Tais doses, com o tempo, eram intercambiadas
por valores financeiros que variavam de 5 a 20 dólares (em dinheiro ou em voucher
para compras). Ele notou que, quando as doses eram altas, as pessoas continuavam
usando a droga; quando as doses diminuíam, elas escolhiam a recompensa e quando
a recompensa era de 20 dólares, quase todas a preferiam às drogas. Experimentos
que mostrariam que, quando possuíam alternativas ao crack e à metanfetamina,
as pessoas faziam escolhas econômicas e racionais. Cf, por exemplo: http://www.
nytimes.com/2013/09/17/science/the-rational-choices-of-crack-addicts.html,
último acesso em 25 abr. 2016.
180 | Pensar com método

uma experiência pessoal que, portanto, oferece alguns limites à


generalização do argumento, meu objetivo é simplesmente descrever
o processo pelo qual essa interação depende da (e demanda a)
descontextualização de determinados acontecimentos locais para
promover uma agenda política específica em uma cena global. É por
meio da eleição de tópicos determinados da situação política local
e global que se produz uma específica recontextualização dos fatos
em uma arena de disputa mais ampla. Como Ong e Collier (2005)
analisaram, descontextualização e recontextualização são requisitos
para a promoção de “políticas globais”.6
Tal proposição será melhor exposta a partir de um caso
específico: como já deve estar claro, o programa De Braços Abertos,
eleito como exemplo de boas práticas de redução de danos e direitos
humanos. Surgido da remoção e demolição de barracas ocupadas
por consumidores de crack na região central da maior metrópole
brasileira em troca de estadia em hotel, refeições, quatro horas
de trabalho diários remuneradas a quinze reais por semana e a
possibilidade de acesso a serviços de saúde e assistência social,
o DBA, a princípio priorizando negociação e redução de danos e
oferecendo permanência na área ao invés de tratamento forçado
em área distante, foi inicialmente visto com bons olhos por muitos
ativistas de direitos humanos contrários às intervenções higienistas
historicamente presentes na região. Com o desenrolar do programa,
como veremos, pontos críticos foram apresentados.
Transbordando do local e alçando visibilidade externa, o
programa foi alvo de interesse direto desta fundação, que desde seu
início trabalhou junto à Secretaria Municipal de Direitos Humanos,
financiando a capacitação dos funcionários do programa e a primeira
avaliação sobre ele, por mim coordenada. Essa experiência será aqui
relatada não simplesmente como uma crítica aos financiadores de
pesquisa, mas especialmente para refletir sobre como o trabalho

6
Para Ong e Collier (2005, p. 11), global phenomena “have a distinctive capacity
for decontextualization and recontextualization, abstractability and movement
across diverse social and cultural situations and spheres of life. Global forms are able
to assimilate themselves to new environments, to code heterogeneous contexts and
objects in terms that are amenable to control and valuation. At the same time the
conditions of possibility of this movement are complex. Global forms are limited or
delimited by specific technical infrastructures, administrative apparatuses, or value
regimes, not by the vagaries of a social or cultural field”.
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 181

antropológico realizado por um pesquisador local pode ser produzido


e recebido em uma fundação filantrópica global, considerando que
tal conexão envolve riscos e oportunidades.
De partida, aviso que não tenho a intenção de repor ideias
simplistas de recepção, tradução e apropriação unidirecional de
conhecimento antropológico local pelos “doing gooders” (Fisher,
1997). O que se passa é mais complicado: de um lado, a fundação
reconfigurou meu conhecimento para produzir um caso de
interesse a uma agenda política internacional; de outro, eu me vali
da influência desta fundação para construir relações e inserções,
dentre as quais obter acesso a dados oficiais e participação próxima
a atores do governo, em meu próprio país. Abordando o que chamo
de instrumentalização mútua – desigual e prenhe de tensões –, entre
financiadores e pesquisadores, viso contribuir para a reflexão sobre
as relações entre pesquisadores locais, organizações globais e Estado,
dissertando também sobre conflitos ético-metodológicos entre
conhecimento antropológico e interesses políticos-filantrópicos. A
meu ver, esse esforço versa sobre o papel político dos intelectuais
ao oferecer uma descrição detalhada do que pode se passar nessa
interação, evidenciando que os antropólogos e antropólogas, longe
de serem observadores distanciados dessa problemática, são
também parte dela.
Dito isso, o texto que se segue traça o seguinte caminho:
apresento inicialmente um “contexto” para o surgimento do DBA e,
em seguida, abordo o interesse da fundação pelo programa com o
consequente detalhamento dos resultados da pesquisa financiada.
Evidencio então como alguns desses dados foram recebidos pela
fundação e a mediação necessária para tentar apartar a pesquisa
de seu uso político-eleitoral. Com esse relato, espero apresentar
empiricamente nuances do relacionamento entre pesquisadores
e financiadores e, sobretudo, ilustrar algumas das ambiguidades
da produção antropológica em uma arena ampliada das relações
políticas e de conhecimento norte-sul global contemporâneas.

A “cracolândia” e o De Braços Abertos: um contexto

Parte da área central da maior metrópole brasileira passava


por um processo de popularização e desvalorização simbólica
182 | Pensar com método

que remetia a pelo menos 30 anos, quando, a partir dos anos


1990, foi atraindo e concentrando consumidores e vendedores de
crack, prostitutas, adolescentes infratores, boêmios, pessoas que
buscavam drogas eventualmente, egressos do sistema prisional e
moradores de rua. Ao longo dos anos 2000, com o perambular de
milhar desses sujeitos pela região, a questão se tornou bastante
publicizada e midiatizada, demandando não só operações policiais
de retirada deles do espaço urbano, mas também a criação de uma
série de aparatos públicos e privados, municipais e estaduais, de
gestão, intervenção, auxílio e conversão. Os anos de 2008 a 2012
são descritos como os de maior número de pessoas circulando e se
fixando, conformando a “cracolândia” como uma territorialidade
estigmatizada que passou a ser alvo de excessiva atração, interesse,
vigilância e pânico.
Um ponto de virada dos debates e ações sobre a área pode
ser estabelecido a partir da Operação Sufoco, de janeiro de 2012,
quando grande contingente de policiais militares, sob o comando
do governador Geraldo Alckmin (Partido da Social Democracia
Brasileira -PSDB), adentrou essas ruas com violência, impelindo
os que ali estavam a deixarem o local, visando o seu esvaziamento.
As declarações oficiais eram de que, com essa ação, fortemente
repressiva, a “cracolândia” seria “página virada” na história de
São Paulo até o final daquele ano. Contudo, ao contrário do que
esperava o governo, a diáspora acabou tendo o efeito político
reverso e provocou comoção dos moradores das regiões centrais,
de jornalistas e ativistas, sendo denunciada através de uma ação
judicial por defensores e promotores públicos – o que acabou,
meses depois, por conformar novos tipos de mediação para a área e,
consequentemente, novas disputas.7
Minha hipótese é que a crítica a esta operação policial
permitiu a produção de um acontecimento político, cujos
desdobramentos são bastante relevantes para o entendimento do
cenário a partir de 2012. Pois, ao longo do correr desse ano e do
seguinte, enquanto as pessoas retornavam ao local do qual haviam
sido expulsas, o governo estadual ainda autorizou a internação de

7
Reflito com mais detalhes sobre essa operação em Rui (2013). Recomendo
também o artigo opinativo de Teixeira e Matsuda (2012) e os trabalhos de mestrado
de Carvalhido (2014) e Magalhães (2015, 2017).
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 183

dependentes químicos, inclusive compulsoriamente, formulando


através do Programa Recomeço um convênio financeiro entre os
provenientes da “cracolândia” e instituições privadas e/ou religiosas
que fazem acolhimento em espaços fechados e isolados, muitos deles
denominados comunidades terapêuticas. Foi nesses anos também
que cerca de 200 barracos foram se estabelecendo pela área,
conformando o que passou a ser chamado favelinha de frente para
dois cartões postais da cidade: a Sala São Paulo, sede da orquestra
sinfônica do Estado, e a Estação de trem Júlio Prestes.
Foi esta a situação política encontrada por Fernando Haddad,
do PT, quando assumiu a prefeitura em 2013. Filiado a um partido
historicamente de esquerda, com ideias relativamente progressistas
e tendo em sua equipe ativistas e membros de movimentos sociais
atinados à defesa de direitos e a propostas de redução de danos em
nível internacional (alguns já em contato com a fundação), não era
possível a ele nem repetir a experiência da Operação Sufoco, nem
insistir em metodologias de recolhimento que apostassem na remoção
desses sujeitos para estabelecimentos distantes, como fazia o Governo
Estadual, a cargo de um partido rival (PSDB). Outras táticas políticas
precisaram ser acionadas e, ao serem acionadas, concorreram para
fazer da “cracolândia” um campo de embates e ações públicas de
dimensões inéditas no país e no mundo.
Nessa disputa, em algum momento ao longo de novembro
e dezembro de 2013, o prefeito e sua equipe partiram para acordar
diretamente com três pessoas identificadas como lideranças locais
a demolição dos barracos, sem a mediação de defensores públicos
ou ativistas históricos da região, em reuniões que se realizaram em
seu próprio gabinete.8 Assim, dez dias antes do 460º aniversário da
cidade de São Paulo, em 15 de janeiro de 2014, começava oficialmente
o Programa De Braços Abertos, um conjunto de atividades, chamado
por vários membros da prefeitura de pacote de direitos. Inovador, e
com grandes pretensões, foi executado, entretanto, sob o calor das
urgências políticas, atropelando processos de discussão e mediação
importantes para sua sustentação a longo prazo – o que abriu espaço
para tensões entre prefeitura, governo do Estado, lideranças locais e
militantes da área.

8
Detalhes dessa negociação podem ser assistidos a partir dessa entrevista: https://
www.youtube.com/watch?v=aKJwHbK8bKM, visualização em 21 jan. 2016.
184 | Pensar com método

Feito esse brevíssimo histórico, para o que aqui importa,


é necessário apreender contextualmente o DBA como mais um
capítulo (recentíssimo) de um processo de 20 anos de intervenções
públicas na região, com a novidade histórica de apresentar um
importante redirecionamento de postura política, em algum grau
atenta às demandas das pessoas que lá estão e às ideias de redução
de danos que vêm ganhando espaço em debates globais sobre
drogas. Tal envergadura de ideias e práticas interessava a esta
fundação.

Pesquisadores e financiadores

Em outubro de 2014, com 10 meses do andamento do De


Braços Abertos, o programa da fundação na América Latina estava
interessado na iniciativa do DBA e já trabalhand em conjunto com
a Secretaria Municipal de Direitos Humanos da prefeitura de São
Paulo. Recebi nessa ocasião um email me informando da intenção
de realizar uma avaliação preliminar do DBA e cogitando o meu
nome para participar dela. O que se esperava não era nada muito
complicado – explicitaram desde o início da negociação, uma
trabalhadora da fundação queria marcar uma conversa por Skype
para fornecer mais detalhes.
A princípio, recebi o contato com entusiasmo, observando-o
como uma oportunidade única de, pela primeira vez na minha
carreira e recém-doutora, realizar uma pesquisa de avaliação de
um programa de governo, podendo ter a chance, assim, de entrar
em contato com meandros do DBA um tanto desconhecidos e
inacessíveis aos pesquisadores de campo. Desse modo, com dois
pesquisadores que se dispuseram a atuar como consultores da
pesquisa, igualmente contatados, logo passei ao contato por Skype
com a fundação, no qual fui informada de que gostariam de uma
avaliação qualitativa disposta a recolher depoimentos de como os
beneficiários estavam sentindo o programa. A instituição tinha
pressa em fechar seu repasse de verbas no ano de 2014 e eu, diante
dos motivos expostos, logo aceitei o desafio.
Para a consecução da proposta, a fundação pagou 25 mil
dólares por 6 meses de trabalho, dos quais foram descontados 8%
com taxas de câmbio e overhead à instituição intermediária no Brasil.
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 185

O contrato foi firmado por meio da apresentação de um projeto de


pesquisa preliminar. Em conjunto com os consultores, decidimos
realizar, para além do relato etnográfico e da coleta de histórias
em profundidade de alguns beneficiários, também um survey com
amostra aleatória com 80 deles (sorteada a partir do cadastro
cedido pela prefeitura). A fim de realizar tamanho trabalho em
tão pouco tempo, foram recrutados 2 pesquisadores doutorandos
para a parte qualitativa, 10 pesquisadores entre graduandos,
mestrandos e mestres para a fase quantitativa e 2 estatísticos que
ajudaram na produção da amostra. É necessário dizer que, pela
quantidade de pessoas envolvidas, pelas dificuldades encontradas
em campo e pelos produtos obtidos, tratou-se de uma pesquisa
muitíssimo barata.9
O que me movia enquanto coordenadora, entretanto, não
era o dinheiro, mas a própria importância política da pesquisa, a
ocasião inédita para mim de adentrar bastidores da elaboração do
DBA e participar mais do seu andamento observando seus efeitos
na vida concreta dos beneficiários, bem como o aprofundamento
profissional sobre o assunto. Segundo todos esses interesses, ao
contrário do que queria a fundação, era preciso “complicar” – e
muito –, os dados obtidos. Importante divergência. Eles queriam
uma defesa do programa, em algum grau amparada por um trabalho
de pesquisa. O que fizemos foi o que sabíamos fazer: uma pesquisa
sobre o programa.
O trabalho de campo foi realizado entre março e agosto de
2015 e teve respaldo de funcionários da prefeitura para acontecer
– o que nos possibilitou livre acesso aos hotéis do programa.
Alguns dados preliminares foram apresentados em um seminário
organizado pela prefeitura de São Paulo em novembro do mesmo
ano. O relatório final (escrito em português e traduzido pela
fundação para o inglês) foi concluído em fevereiro de 2016 e depois
publicamente lançado em seminário na cidade em junho, quando
teve considerável divulgação na imprensa nacional. Durante esse
tempo, me encontrei pelo menos 3 vezes com as encarregadas da
fundação (duas em São Paulo e aquela vez em Nova York), além de

9
Para fazer uma comparação, cerca de um ano depois, a prefeitura de São Paulo
lançou edital de pesquisa próprio exigindo produtos parecidos com os que
apresentamos, pagando, em troca, quatro vezes o valor ofertado que recebemos:
400 mil reais (algo em torno de 110 mil dólares).
186 | Pensar com método

mantermos contato por email e Skype.


Um breve resumo do relatório e de como ele foi recebido pela
fundação é útil para explicitar os processos de “contextualização” e
“descontextualização” envolvidos. Os desentendimentos10 que che-
garam a ser evidenciados são meu principal foco de interesse.
O relatório, composto de 100 páginas, foi dividido em 2
partes (a primeira destinada à parte quantitativa; a segunda à parte
qualitativa), complementadas de introdução e considerações finais.
Escrito em português, o texto visava sobretudo o público brasileiro
– já que, da nossa perspectiva, se tratava de uma pesquisa esperada
tanto pela prefeitura quanto por vários profissionais, militantes
e acadêmicos que trabalham ou estudam, de perto, a área. Nesse
sentido, optamos por apresentar mais diretamente os resultados,
sem fazer um exercício demasiado retrospectivo de historicização
da área, pois este público já a conhecia; e, sobretudo, tratamos
de apresentar impasses e críticas que julgávamos importantes,
inclusive, para o aperfeiçoamento do programa.
De mais relevante, conseguimos traçar um perfil dos
beneficiários do DBA que confirmou as impressões sobre os
usuários de crack como pertencentes à pobreza urbana (são, em
sua maioria, negros, com baixa escolaridade, com raro histórico
de trabalho formal e com ampla passagem pela prisão – 64%). Em
relação ao programa, de fato, muitos deles afirmaram ter reduzido
o consumo de crack a partir de sua implementação. Ainda assim,
apresentaram sugestões referentes às condições estruturais dos
hotéis que habitavam, à repetição do cardápio e do tempero no
restaurante popular onde comiam, ao salário recebido, à falta
de vínculo trabalhista formal e às poucas opções de ocupação
na ocasião (varrição de praças públicas e horta comunitária).
Reclamaram também das ações da guarda civil metropolitana,

10
Utilizo-me aqui da noção de Rancière, para quem “o desentendimento não é o
conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele
que diz branco e aquele que diz branco, mas não entende a mesma coisa, ou não
entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura”
(...) “o desentendimento não diz respeito apenas às palavras. Incide geralmente
sobre a própria situação dos que falam. (...) As estruturas de desentendimento são
aquelas em que a discussão de um argumento remete ao litígio acerca do objeto da
discussão e sobre a condição daqueles que o constituem como objeto” (Rancière,
1996, pp. 11-12)
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 187

a polícia municipal que continuamente os perturbava, não raro


de modo violento, e inclusive levava embora muitos dos seus
pertences.
Detalhamos esses dados no relatório e incluímos sugestões,
enfatizamos a necessidade de melhoria das condições dos hotéis
(especialmente convocando uma administração mais direta da
prefeitura no cotidiano, pois essa havia terceirizado tal função aos
donos dos hotéis e a ONG contratada), ampliação das ofertas da
frente de trabalho, variedade do cardápio ofertado pelo restaurante
popular e apontamos, ainda, uma fala corrente de muitos usuários
que manifestavam vontade de morar mais longe da “cracolândia”,
onde o crack continuava sendo vendido e consumido, já que
muitos afirmavam que tal proximidade tornava essa relação com
a droga bastante difícil. Enfatizamos também o risco que as ações
repressivas apresentavam ao programa, na medida em que afetavam
a própria ideia de redução de danos e fizemos um apelo contundente
pedindo “parem de prender” pessoas na região – algo que, não
paradoxalmente, aumentou muito desde que se iniciou o DBA.
Muitas dessas sugestões, aliás, já haviam sido compartilhadas
com membros de movimentos sociais e representantes municipais,
inclusive em reuniões na Secretaria de Direitos Humanos, e muitos
deles, inclusive, tinham opinião semelhante. Estávamos seguros
de que nenhuma delas poderia prejudicar a visão estabelecida no
Brasil sobre o programa. Por isso, não víamos problema em lançar a
pesquisa em um seminário público na cidade de São Paulo.

Descontextualização e recontextualização

No entanto, após a tradução do relatório, em março de


2016, a principal mediadora entre nós e a fundação encaminhou
comentários que mesclavam contribuições importantes de um leitor
externo e, principalmente, explicitavam o posicionamento político
da fundação sobre a pesquisa e os pesquisadores. Para ela, alguns
pontos precisavam ser ajustados antes do lançamento da pesquisa.
Ela partia do princípio de que os sujeitos estudados eram
excluídos e criminalizados. Invisíveis, seriam desconsiderados e
desconhecidos das pesquisas e dos serviços públicos. Para ela, o
DBA era o primeiro programa público interessado nesses sujeitos
188 | Pensar com método

e que lhes restaurava direitos humanos básicos, como dar acesso a


uma casa e refeições diárias. Aspectos que, segundo ela, precisavam
ser enfatizados. A fundação tinha em conta um público muito
ampliado e uma agenda política bastante precisa que demandava
um perfil específico da pesquisa encomendada: romper com a visão
estigmatizada do usuário de crack e concentrar-se em apresentar a
inovação do DBA, não em seu aperfeiçoamento.
Essa explicitação do produto esperado evoca dois aspectos
que considero importantes para observar as divergências de
contextos e das posições de financiador e pesquisador: 1) a ideia de
que a pesquisa deveria romper com uma visão estigmatizante dos
usuários de crack e 2) o interesse político de apreender um programa
como o DBA, apesar de todas as suas dificuldades e problemas, como
a melhor proposta já tentada sobre redução de danos e direitos
humanos para sujeitos em extrema precariedade.
Sem discordar do primeiro ponto, a questão mais complexa
é que, longe de ser algo pouco abordado, essa tem sido uma agenda
extensivamente percorrida pelos pesquisadores brasileiros do tema
desde pelo menos 2007, quando o assunto da “cracolândia” passou a
ser bastante midiatizado e objeto de disputa eleitoral no País. No que
tange aos trabalhos de pretensão etnográfica, com interface entre
antropologia, sociologia e saúde pública, estudos coletivos, artigos
autorais e mesmo minha tese de doutorado11 buscaram oferecer
descrições adensadas da dinâmica cotidiana local e da experiência
desses sujeitos, já entre os anos de 2005 e 2011. Formuladas no calor
político em torno do pânico moral sobre a suposta “epidemia do
crack” que assolava o País, tais reflexões foram de fundamental valia
para a produção de um corpus de questões empíricas e teóricas, que
contribuíram significativamente para apreensão mais qualificada, e
menos estigmatizada, da área.
Interessou a esses estudos compreender bem a dinâmica
territorial fluida ali operante e oferecer descrições que se
contrapunham à depreciação política e moral da região. Igualmente
interessou descrever, mais detalhadamente, a heterogeneidade dos
usos do espaço, dos modos de consumo de crack, bem como dos
consumidores da droga. Dentre variados recortes analíticos, ficou

11
Cf., nesse sentido, Adorno et all (2013a; 2013b), Frúgoli Jr. (2012), Frúgoli Jr. &
Spagiari (2010), Raupp & Adorno (2011), Gomes & Adorno (2011), Rui (2012).
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 189

evidente, principalmente, a necessidade de precisar a “questão


social” da “cracolândia”, pois, se de um lado havia nela abertura
espacial aos mais diversos consumidores de crack; de outro, o fato
incontestável era que a maior parte das trajetórias destes usuários
faziam referência à situação de rua ou aos fluxos das periferias
para o centro, com ampla menção à pobreza, ao esgarçamento dos
laços familiares, aos empregos precários e às violências cometidas
ou sofridas, perpassadas por períodos de institucionalização em
albergues, clínicas psiquiátricas, comunidades terapêuticas ou
prisões. Ou seja, destacava-se um excesso de sofrimento social
– um conceito que emergiu nas últimas décadas como lente
particularmente apropriada para referir-se aos efeitos nocivos das
relações desiguais de poder que caracterizam a vida social, em
suas relações com a experiência subjetiva do mal-estar (Pussetti &
Brazzabeni, 2011, p. 4) –, que possibilitou configurar a “cracolândia”
como ponto centrífugo mais radical da abjeção metropolitana.
Não sendo o caso aqui detalhar os pormenores dessas
descrições, o que vale é sugerir como, por meio delas, foi possível
argumentar que não há nada que reitere a ideia batida da
“cracolândia” como um “mundo à parte”, “com lógicas próprias”,
fomentado em decorrência da “ausência de Estado” e de serviços
públicos. É justamente o contrário que ocorre. De 2005 a 2010,
a “cracolândia” passou, definitivamente, de um local para onde
“ninguém olhava” ao centro das questões sociais, urbanas e políticas
do Brasil contemporâneo, movimentando operações policiais,
serviços de saúde e de assistência social dos mais variados níveis de
governo (municipal, estadual e federal), vigilância, além de atores
como ONGs, igrejas,12 facções criminais, ativistas e jornalistas. A
partir de 2012, uma série de dissertações de mestrado e outra tese
de doutorado observaram e analisaram essa grande quantidade de
ações.13 Observando tal dinâmica com atenção, me parece evidente
indicar que a “cracolândia” e os usuários de crack estão sujeitos,
mas também impulsionam e recriam aparatos e técnicas políticas de
controle e gestão de territórios e de populações (Foucault, 2008).

12
Para ações de ONGS, entidades e igrejas atuantes no local, Cf. Spaggiari et all
(2012) e Fromm (2014).
Destaco algumas: Canonico (2015), Menezes (2016), Calil (2015), Alves (2017),
13

Mattar (2017), Fromm (2017)


190 | Pensar com método

Nesse sentido, a pesquisa partiu de um debate já bastante


consolidado entre os estudiosos do assunto no Brasil e ocupou-se em
descrever o DBA enquanto novidade histórica, conferindo atenção à
visão que os beneficiários tinham dele, muitas vezes atentando para
seu aperfeiçoamento. Tivemos inclusive o cuidado metodológico
de fazer uma pesquisa quantitativa de caráter aleatório. O sorteio
dos nomes dos entrevistados, a partir do cadastro fornecido pela
prefeitura, visava, inclusive, escutar os frequentemente menos
escutados desses estudos.
No entanto, a fundação não estava interessada no debate
que vinha sendo feito no país. Ela trabalhava com uma imagem
genérica desses sujeitos e não pensava a pesquisa como um processo
acumulado de conhecimento. Interessava-lhe, principalmente, falas
que rompessem com suposta percepção do senso-comum sobre
usuários de crack e que confirmassem a ampliação de perspectivas
de vida a partir do ingresso no programa. À equipe de pesquisa
interessava observar os efeitos do programa sob o território e sob
os beneficiários – algo não cotejado pela extensa bibliografia. O
desentendimento aqui referia-se, de certa forma, à apreensão do
programa enquanto ideia (para a fundação) e enquanto prática
(para os pesquisadores) – problema que se remete diretamente ao
segundo ponto a ser observado.
De fato, o DBA apresentou-se como uma novidade histórica
em relação às ações públicas já tentadas na região da “cracolândia”.
Com esforço intersetorial e com base em algumas experiências inter-
nacionais (sobretudo, Holanda e Canadá; mas principalmente ten-
do em conta as ideias de Housing First),14 o programa apresentou o
ineditismo de ofertar aquilo que seus implementadores passaram a
chamar de um pacote de direitos a sujeitos que se encontravam ali-
jados dessa perspectiva.
No entanto, se tal ineditismo tornou o programa vitrine, a
ponto de provocar interesse da fundação, ele também nunca deixou
de ser visto internamente com desconfiança por ativistas e conhece-
dores da área.
Direcionado principalmente aos habitantes dos barracos,
não abarcou a população variável (estimada entre 300 e 600 pes-
soas, dependendo do horário), que circula pelo local e que desde en-

14
Cf. http://www.endhomelessness.org/pages/housing. Acesso em: 07 dez. 2016.
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 191

tão passou a ser circunscrita a um espaço determinado, vigiado e


constantemente reprimido, que foi recebendo o nome de fluxo. Por-
tanto, uma importante divisão estabelecida entre os beneficiários do
programa e os frequentadores do fluxo (que podem, na experiência
concreta, ser os mesmos sujeitos) fez com que, naqueles anos, de um
lado, a prefeitura concentrasse atenção em acompanhar e divulgar
as atividades relativas aos primeiros, enquanto disputava o territó-
rio com os segundos.
Além disso, sendo a secretaria de segurança urbana integran-
te do programa, o esforço “humanitário” também veio acompanhado
de novas modalidades securitárias sobre o fluxo, especialmente so-
bre os sujeitos que, nesse local, vão ser, de modo muito controverso,
considerados traficantes de crack (que na prática também podem
ser os mesmos usuários), para os quais ações de coerção e aprisio-
namento são levadas a cabo pelas forças de segurança.
A ambiguidade moral que Didier Fassin (2015) identifica
como no coração do Estado contemporâneo também pode ser no-
tada a partir do De Braços Abertos: de um lado, o programa não
deixa de se apresentar como uma ação original, progressista – es-
pecialmente se contrastado às ações higienistas e repressivas que
marcam a história da “cracolândia”; de outro, ele fez emergir dúvi-
das sobre a sua consecução, encaminhamento e duração, especial-
mente entre aqueles que discordavam da repressão e da disputa
territorial que seguiram sendo parte da relação entre o poder pú-
blico e essa população.
Tamanha ambivalência produziu uma (re)avaliação constan-
te e delicada de seus efeitos e resultados, bem proferida certa vez
por uma redutora de danos, trabalhadora no local:

É cada vez mais difícil falar sobre o Braços Abertos. Quando me


perguntam o que eu acho dele, eu sempre falo que depende.
Depende da pessoa que está me perguntando. Se é uma pessoa
mais conservadora, que não tem a mínima ideia de redução de
danos e da ‘cracolândia’, eu defendo o programa. Se é uma pessoa
que está mais por dentro do assunto, digamos assim, eu apresento
as críticas.

Esse tipo de fala me levou a observar que refletir sobre tal


programa, portanto, implicava precisamente acionar a ambiguida-
192 | Pensar com método

de15 do “depende”; essa ambiguidade que levava em conta tanto as


tensões na esfera pública quanto as tensões cotidianas e práticas
entre seus implementadores e beneficiários. Ao acompanhar o pro-
grama como pesquisadora, avaliei-o justamente a partir dessa dupla
perspectiva: o seu acontecimento tanto reconfigurou positivamente
o debate e a ação pública sobre o crack em São Paulo, mesmo no Bra-
sil e em certo cenário mundial; quanto não anulou as ações policiais
repressivas e de controle a essa população, nem a disputa territorial
pela área.
Por isso, a descrição dos efeitos diversos de combinar o ofe-
recimento de um pacote de direitos à repressão aos usuários de crack,
na contenda por um espaço tão simbólico da maior cidade brasileira,
foi interesse das minhas reflexões. O intuito desta perspectiva era,
especificamente, contribuir para um entendimento mais complexo
da ação pública municipal na região da “cracolândia” e, de modo
ampliado em meus estudos autorais, para a reflexão sobre as novas
modalidades combinatórias, quiçá nexos constitutivos, entre direito
e repressão, cuidado e controle, compaixão e ordem, presentes nas
formas contemporâneas de gerir a precariedade (Fassin, 2015).
Desse modo, ao invés de eleger apenas o ineditismo do pro-
grama como foco único de observação, optei diversas vezes por re-
marcar a ambiguidade moral do DBA. Enquanto pesquisadora, o ca-
minho que escolhi foi o de sair da seara relativa à disputa pública/
política envolta na almejada defesa do programa para realizar um
estudo de dentro desse programa municipal a partir da escuta qua-
lificada dos seus beneficiários. Tratava-se, da minha perspectiva, de
resguardar a autonomia de pesquisa. Entretanto, tal postura analíti-

15
Cabe esclarecer que não me parece correto tratar distintas ações políticas
(oferta de direitos e repressão) como uma contradição. Ao contrário, as ideias de
ambiguidade e ambivalência parecem mais rentáveis analiticamente, uma vez que
permitem pensar como a injunção entre direito e repressão, de um lado, evoca a
heterogeneidade das ações públicas e do Estado contemporâneos voltadas a sujeitos
precarizados; de outro, revela, no caso das políticas sobre drogas, os entraves de
ações políticas consideradas progressistas diante do marco proibicionista vigente,
pois não se pode ignorar que o DBA opera no limite da polarização entre usuários e
traficantes, destinando cuidado aos primeiros e não medindo esforços para reprimir
os segundos. Assim, não se trata de um paradoxo político, mas, antes, de uma
composição ambígua de agentes e ações bastante heterogêneos que conformam
e são conformados por distintas populações, diversas práticas de governo e,
igualmente, diferentes valores morais do Estado.
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 193

ca, que suspeitou de um tom celebratório do programa, não interes-


sava aos financiadores.
Ainda alguns elementos importantes para produzir os efeitos
da descontextualização, muitos descritos por Ferguson (1994)
em sua arguta análise sobre organizações de desenvolvimento no
Lesotho, também se repuseram, de modo específico, em alguns dos
nossos desentendimentos: a reposição de uma imagem encapsulada
dos sujeitos como invisíveis e criminalizados; a insistência na ideia de
Estado ausente, quando na verdade era o contrário o que se passava;
o pouco caso em relação às pesquisas locais existentes e à discussão
local que movimentava muitos atores.
Somava-se a isso, o cenário político brasileiro de 2016, que
exigia uma mediação rápida.
O relatório (que era um produto específico e que poderia
ser refletido à exaustão em textos posteriores – como o que aqui
escrevo) passou por pequenas, mas significativas, alterações que
anunciavam uma contextualização maior da “cracolândia” e dos
sujeitos que a habitam, bem como tornou mais evidente a inovação
do DBA enquanto ideia forte para ações de redução de danos, sem
deixar de lado os apontamentos e as sugestões de aprimoramento
do programa, que se mantiveram. Tal mediação era necessária
para viabilizar o lançamento público da pesquisa em um seminário
realizado em junho de 2016, na sede do Instituto Brasileiro de Ciências
Criminais, no centro da cidade de São Paulo – o que efetivamente se
sucedeu, embora a fundação tenha se recusado a apoiá-lo. O evento
teve público de cerca de 200 pessoas, foi transmitido online e os
resultados da pesquisa, disponibilizados integralmente no site da
Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas (também financiada
pela fundação), tiveram grande repercussão entre os gestores e
funcionários do DBA, bem como divulgação na imprensa nacional.
Mediar a situação para lançar o relatório na data de
junho de 2016 era, para nós pesquisadores, importante porque
a prorrogação do lançamento o aproximaria da disputa eleitoral
municipal (outubro do mesmo ano) e não tínhamos interesse na
colagem direta entre a pesquisa e a corrida eleitoral. No entanto,
escapando ao nosso controle, com a candidatura de Fernando
Haddad à reeleição, a pesquisa que então foi estrategicamente
divulgada como tendo sido realizada pela fundação, voltou a ocupar
a imprensa no segundo semestre de 2016. Um dos maiores jornais
194 | Pensar com método

do país, a Folha de São Paulo, valeu-se dos resultados da publicação


em um editorial em defesa do programa e Haddad também citou o
relatório durante os debates.
A experiência com o DBA, contudo, não foi suficiente para
garantir-lhe a reeleição à prefeitura, prejudicada pela imagem de
seu partido após o golpe à presidente Dilma Rousseff. O candidato
eleito, João Doria (do PSDB), no primeiro mês de 2017, erradicou
o programa e instaurou um clima de ocupação militar e verdadeiro
terror no território, devastando-o e removendo seus principais
serviços. Fernando Haddad (hoje – setembro de 2018) é um dos
principais nomes à presidente da república.

Considerações finais

Remontar a história dos bastidores dessa pesquisa oferece,


da minha perspectiva, elementos para pensar os processos de
relação entre pesquisadores e financiadores em uma arena de
produção do conhecimento e de disputas políticas globais, a partir da
reflexão sobre mediações, negociações, instrumentalizações mútuas,
em um momento histórico de intensa relações entre governos,
pesquisadores e fundações transnacionais.
O papel político dos intelectuais frente à capilaridade dessas
fundações é também um tema que subjaz toda essa reflexão. Afinal,
se há uma posição desejável para a crítica dessa “razão humanitária”
esta deve ser a que nos inclua, como alertou Fassin (2012).
A pesquisa em tela era um projeto da fundação que tinha
interesse na divulgação do De Braços Abertos como exemplo de
boas práticas de redução de danos em nível internacional. Tratar-
se-ia de um programa que confirmaria ideias consideradas mais
progressistas nos debates mundiais em torno dos usuários de drogas.
Localmente, o programa era bastante incipiente e experimental e,
embora apresentasse avanços na sua concepção, também precisava
ser aperfeiçoado.
Como pesquisadora da área, estava atenta a tais esferas. Me
interessava adentrar nos hotéis do De Braços Abertos, conhecer
mais de perto a equipe que o implementava, bem como obter
dados sobre a conexão prefeitura-fundação. Mesmo ciente de que
a pesquisa encomendada visava uma defesa do DBA, insistir na
Sobre a instrumentalização mútua: pesquisadores e financiadores | 195

descrição complexa do que se passava era, para mim, central em


termos político-acadêmicos e estava de acordo com o que acreditava
ser o dever de um pesquisador. O relatório teve projeção, foi tema
de debate entre os trabalhadores do DBA e alcançou voos não de
todo controlados pela pesquisa. A Fundação, em janeiro de 2017,
lançou uma “agenda positiva para lidar com pessoas em situação
de rua e que usam crack no Brasil” – sua maior iniciativa no país,
com eventos realizados em São Paulo, no Recife e no Rio de Janeiro.
Eu e os consultores da pesquisa, não fomos convidados a participar
desses eventos. Ao questionarmos isso, recebemos em retorno a
justificativa de que não queriam associar pesquisa científica com
proposta política. Ao fim, fiquei com a impressão de que, embora
discordassem da nossa insistência em apresentarmos uma pesquisa
ao invés de uma defesa, eles nos respeitavam e reconheciam a nossa
seriedade. Honestamente, estou satisfeita em ter encontrado essa
mediação e esse respeito.

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Intimidades na pesquisa etnográfica:
a diferença da antropologia

Susana Durão

Neste texto defendo que a intimidade metodológica é um


elemento central na produção de textos etnográficos e análises
antropológicas. Isto significa que pesquisar e conduzir o trabalho
de campo é, por comparação com outras ciências sociais e com as
humanidades em geral, diferente na antropologia social e cultural.
Dada a natureza interativa dos métodos de pesquisa etnográficos,
sublinho a importância da intimidade como ferramenta de
conhecimento. Com base na assumpção de que estamos perante
uma metodologia intimista, levanto uma questão: Quais os limites
dessa intimidade em campo? Indo além das noções de controle ético
e demonstrando, a partir da leitura de textos recentes sobre casos
de violência, especialmente vividos por pesquisadoras mulheres,
e recorrendo a dados do meu trabalho de pesquisa, tento fazer a
apologia da coragem metodológica e do direito à incerteza. Considero
este um caminho necessário para firmar a posição e legado de
Peirano (1995) quando, sem vacilar, ela sustenta sua posição por
uma antropologia “a favor da etnografia” (1995).

Metodologias intimistas

Convencionou-se chamar de observação participante o


modo de aproximação empírica especificamente desenvolvido no
âmbito da produção de conhecimento etnográfico. À parte todas
as polêmicas e apontamentos críticos – como o jogo semântico
proposto por Bourdieu de “objetivação participante” (2003) para
discorrer acerca da possível falta de sistematicidade da disciplina –
não podemos prescindir da intimidade social no campo se de fato
desejamos olhar o mundo nas suas manifestações locais, próximas e
relacionais. Como diria Eriksen, na antropologia pensamos grandes
problemas, sim, mas a partir de pequenos lugares (Eriksen, 2001).
A este projeto chamamos de teoria etnográfica (Nader, 2011). Nas
palavras de João Pina Cabral (2018), a teoria etnográfica é o exame
200 | Pensar com método

sistemático das condições de possibilidade do gesto etnográfico na


existência presente e passada da antropologia. Diz o autor que por
gesto etnográfico se entende o movimento que leva o etnógrafo para
longe de seu mundo cotidiano pré-analítico para um mundo que ele
ou ela analisa para fins analíticos.
A preocupação qualitativa, e de produção de sentidos
com base em relações humanas, não é evidentemente exclusiva
à antropologia. Em um livro muito lido, Métodos de pesquisa em
ciências sociais, Howard S. Becker (1993), sociólogo introduzido
no Brasil pela mão do antropólogo urbano Gilberto Velho (2012),
flerta com a antropologia. Em vez de avançar com princípios
generalistas – que afinal quase todos os comitês de ética assim
como os manuais de pesquisa ajudam a delinear – Becker propõe
que voltemos nossa atenção para o fazer artesanal e a montagem de
nossas pesquisas. Esse caminho complexo de justaposição de ideias
e de produção de sínteses a partir de componentes de manifestações
culturais foi o que levou Lévi-Strauss (1976) a insistir na noção de
bricolagem (bricolage no original). Mas o que se deve ressaltar na
aproximação do autor é o relevo dado ao trabalho do bricoleur, esse
artista-intelectual que é o antropólogo profissional, sempre atento
e capaz de produzir sentidos a partir de manifestações simbólicas,
materiais e relacionais. É inegável que nesse processo a observação
participante se consagra como base sólida do trabalho que fazemos
em antropologia para vir a escrever de modo etnográfico. Em uma
definição mínima, a antropologia é uma prática de construir teoria
(Herzfeld, 2001, p. 19). E sempre que o fim da antropologia foi
proclamado aconteceu o inverso. Tem sido manifesto o interesse
na renovação teórica da disciplina. Segundo Herzfeld e outros, isso
deve-se ao fato de a antropologia oferecer uma crítica única e um
espaço empírico singular no qual examina aspectos universais do
senso comum, incluindo o senso comum da teoria social do Ocidente.
As nossas bases de escrutínio do trabalho de campo e dos
dados que vamos recolhendo se baseiam na indução, como defendeu
recentemente Didier Fassin (2013). Esta abordagem está na base do
princípio da inferência a partir do exame de fatos, e de fatos cujo
examinador participa ativamente. Mas não é demais lembrar que
muito antes da virada hermenêutica, anunciada na década de 1990,
já nos idos 1960 Edmund Leach identificava as encruzilhadas do
estruturalismo e do funcionalismo na antropologia. Em Repensar
Intimidades na pesquisa etnográfica | 201

a Antropologia, texto fundamental na formação dos jovens


antropólogos, Leach (1974) defendia que as generalizações que
produzimos em antropologia estão longe de ter base estatística, pois
elas são por natureza indutivas. Este trabalho consiste em perceber
possíveis leis gerais nas circunstâncias de casos particulares; é
trabalho de adivinhação, um jogo em que se pode estar certo ou
errado, mas se por acaso estivermos certos, teremos aprendido algo
completamente novo.
Para efetivar o gesto etnográfico que induz, gesto de que
falava Pina Cabral, há que desenvolver intimidades no decurso do
trabalho de campo. Mas é claro que tais intimidades são fruto de
relações que derivam desse gesto de conhecimento. Como Marylin
Strathern explicita no texto “Efeito Etnográfico”, todo o momento
etnográfico é um momento de conhecimento e de discernimento
e denota uma relação entre a imersão no campo e o movimento
da escrita (Strathern, 1999, pp. 2-3). Strathern sugere assim
que o conhecimento etnográfico é gerado em uma sequência de
deslocamentos entre efeitos reflexivos e afetivos.
Dependemos de fato de interlocutores, de conhecimentos
íntimos, em todos os momentos da nossa pesquisa; podendo
denominá-los como informantes, amigos e até mesmo parentes.
Precisamos deles para ter acesso ao campo, para nos mantermos
nele, para aprendermos o que quer que seja com eles e nesses lugares
onde não estaríamos não fosse o objetivo e o pulsar da pesquisa
antropológica; o gesto etnográfico.
Por vezes há quem chame a esse movimento geral de
“negociação”, talvez imponderadamente, ou devido a dificuldades
iniciais de imersão, sobretudo se em contextos institucionais. Mas
a verdade é que isso já é uma consequência da nossa penetração e
participação em um sistema de interações no qual circulam pessoas
individuais, mas também coletivos, e outras dinâmicas como forças
e entendimentos políticos, sigilos, segredos, desconfianças ubíquas
e insistentes rumores.
É inegável que o modo de produzir conhecimento na
antropologia é o mais aberto nas ciências sociais. Creio que já não
restam dúvidas, depois do que até aqui foi dito, que até mesmo a
noção de metodologia se revela insuficiente quando pensamos as
implicações da abordagem etnográfica. Trata-se de uma abordagem
que se projeta em várias camadas e cruzamentos de saberes. Mas
202 | Pensar com método

por isso mesmo, este é o modo de conhecimento empírico que mais


problemas suscita aos processos de padronização associados às
noções de ciência e ética modernas.

Interlocutores privilegiados

Um dos aspectos a destacar é a imensa variação possível de


interações e resultados destas interações em campo. Mesmo com um
acordo de pesquisa, negociado e consentido, formal e eticamente,
a variação não pode, por princípio, ser reduzida. Mesmo em uma
primeira análise simples, à partida, no trabalho de campo lidamos
com interlocutores muito variados, de acordo com o momento e
fase em que nos situamos na pesquisa. Lidamos com interlocutores
estratégicos e táticos, com outros que chegam no momento oportuno;
em alguns momentos, estes são por nós selecionados, mas muitas
vezes visitam nossas pesquisas aleatoriamente. E nos encontramos
com alguns que consideramos de algum modo especiais – o que nos
textos clássicos da antropologia ficou referenciado como informantes
privilegiados (Casagrande, 1960). Mas é interessante pensar como
também, de acordo com variações no espaço e tempo das pesquisas,
esses interlocutores podem ser pessoas diferentes ou a mesma
pessoa. Contudo, o caso dos informantes privilegiados, a relação
mais exemplar das metodologias intimistas, merece reflexão. Mais
do que pensar numa aproximação linear e cronológica à pesquisa
– passando pela inserção, imersão, saída de campo e revisitações,
abordagem pensada para estudos em comunidades pequenas e
remotas – creio que devemos cada vez mais pensar na qualidade,
afetiva, reflexiva e epistemológica, das relações que produzimos ou
ambicionamos produzir em campo. Não por acaso, uma das obras
que mais desestabilizou o empreendimento da antropologia foi
Moroccan Dialogues, de Kevin Dwyer (1982), toda ela baseada em
uma única relação entre etnógrafo e informante.
Tendemos a pensar nossa jornada de pesquisa de campo na
pele do bricoleur simpático, o etnógrafo disponível e amistoso que
vai para um lugar sem ser convidado para se relacionar com pessoas
e com todas as dimensões da vida que ali brotam. Assim, os retratos
que nos chegam dos informantes seguem essa mesma linha. Os
textos sobre informantes-chave situam-se frequentemente entre a
Intimidades na pesquisa etnográfica | 203

prosa memorialística e a homenagem; a essas pessoas, a gratidão.


In the company of man é uma obra de referência. Relações entre
etnógrafos e seus informantes são celebradas pela boa vontade,
pelo ajustamento mútuo, pela quebra das barreiras culturais e
pela imensa possibilidade de associação humana que traduzem –
“pessoas que nos servem tão bem nessa empreitada colaborativa que
é o trabalho de campo” (Casagrande, 1960, p. xii). Recentemente, a
publicação da obra Paletó e Eu de Aparecida Vilaça (2018) reflete uma
preocupação que nós, leitores, temos ao mergulhar nas intimidades
sociais e humanas que dizem exatamente respeito ao tempo de vida
passado com interlocutores privilegiados, no caso do livro entre os
Wari’ no interior da Rondônia. É de parentesco, um parentesco do
devir etnográfico, que se trata.

Violências em campo

Foi preciso reconfigurar, ou pelo menos ampliar as análises


das experiências de interlocução, amizade e intimidade em campo
quando experiências violentas entraram em cena. Isto porque a
violência implica coação e redução abrupta ou mesmo anulação
da negociação nas relações – o ingrediente fundamental do gesto
etnográfico. Pensar campos onde interações violentas são parte
integrante da paisagem humana necessariamente leva a refletir
sobre diferentes lugares sociais, emocionais e morais para os
etnógrafos. Fieldwork Under Fire (1996) foi uma das obras que
apelou a essa reflexão. Não é surpreendente que seja em contextos
extremos que surjam questionamentos face aos limites das
metodologias intimistas. Até onde vai e pode ir essa intimidade
social tão necessária à penetração das intimidades culturais dos
lugares, como diria Herzfeld (1997)? O que fazer para circunscrever
efeitos colaterais do intimismo metodológico? Especificamente,
como prevenir, se tal é possível, demonstrações mais ou menos
nefastas, constrangimentos ou mesmo violências que nos afetam e
podem destruir?
Neste processo, muitas vezes, a vida prática transcende a ética
e o bem-fazer. Os julgamentos e regulamentações éticas servem para
proteger nossos interlocutores de nós e dos abusos que possamos
cometer enquanto cientistas, sociais ou não. Frequentemente servem
204 | Pensar com método

mais como controle social, administrativo ou doméstico, do que


como aparato reflexivo em si mesmo. Como Becker (1993), acredito
que as discussões sobre ética ao invés de ampliarem a explicação
sobre o que fazemos correm o risco de reduzir o espaço do que
poderiam ser discussões propriamente sociológicas e heurísticas
sobre metodologias e perspectivas reflexivas-íntimas nas ciências
sociais em geral e na etnografia em particular. A discussão ética nem
sempre serve de amparo quando pesquisamos em determinadas
regiões da vida social, como por exemplo em regiões de guerra e
conflito, entre grupos poderosos, grupos armados ou mesmo entre
prestigiados médicos e empresários. Mas deveriam nos proteger?
A verdade é que talvez não haja como amparar e garantir toda a
variação impressa à empreitada das metodologias íntimas.
Dois textos recentes revelam como a exposição e
vulnerabilidade de mulheres em campo em determinadas partes
do mundo não tem qualquer garantia ou proteção acadêmica.
São narrativas informadas pelo lamento e denúncia. O texto de
Mügge “Sexually harrassed by gatekeepers: reflectios on fieldwork
in Surinam and Turkey” (2013) explora o que chamo de estresse
sexualizante. A autora foca assédios de homens no campo,
interações que usam o gênero, a sexualidade e a idade para forçar
interações violentas. Eva Moreno (2017) usa um pseudônimo para,
com esforço e amargura falar de “Estupro em campo: Reflexões de
uma Sobrevivente”. Se a narrativa aprofunda a dimensão intimista
e interativa da violência, suas conclusões são genéricas. A autora
defende que além do assassinato direto, o estupro é a sanção
máxima usada pelos homens para manter os papéis de gênero.
Defende que o medo do estupro obriga mulheres a aceitarem
restrições em seus movimentos físicos e condutas, e a obedecerem
regras de comportamento que governam a maioria dos aspectos de
suas vidas. Que as mulheres são elas mesmas culpadas pelo estupro
é uma noção predominante em muitas sociedades, que decorre da
ideia de que é responsabilidade das mulheres garantir que elas
não estejam “no lugar errado na hora errada”. Em outras palavras,
há horas, lugares e situações proibidas para as mulheres, que elas
atravessam apenas por sua conta em risco.
Contudo o que gostaria de explorar aqui é como experiências
limite em campo e mesmo nas relações com interlocutores
privilegiados, não só transcendem largamente a reflexão ética e
Intimidades na pesquisa etnográfica | 205

aparatos de proteção dos e das pesquisadoras, como não têm pré-


enquadramento possível. Além disso, mesmo tendo a possibilidade
de escolher de antemão, porque evitar todos os riscos?
Katherine Verdery fez trabalho de campo em vários
momentos no longo período entre 1973 e 1988 na Romênia de
Ceausescu. Descobriu tarde que em vários momentos foi acusada
pela polícia secreta de espiã. Enfrentou revelações perturbadoras
quando levantou a sua ficha policial de 2700 páginas e percebeu que
informações foram dadas por 70 pessoas, entre as quais figuravam
colegas, amigos e pessoas de seus círculos mais íntimos. Resolveu
enfrentar a documentação secreta que se tornou pública no pós-
socialismo, embora com o peso de décadas, e refletir sobre toda essa
perturbação. Reviu toda a sua prática de pesquisa e os dados. Fez
uma analogia entre a prática etnográfica e a dos espiões em My Life
as a Spy (2018). Conta uma história em três perspectivas, Verdery
naquele tempo, a perspectiva policial e Verdery hoje. Procura
entender a lógica subjacente à vigilância transversal e onipresente
no socialismo, escapando de uma avaliação moral de qualquer
espécie – mesmo da avaliação moral das “estruturas”, como ambas,
Mügge e Eva Moreno, fazem. Verdery decidiu não publicar nada que
comprometesse os seus informantes, mesmo se se sentiu traída pelos
amigos em quem confiou. A questão é o lugar em que cada um se
coloca não só para conduzir, mas também para emitir considerações
sobre sua pesquisa. Para Verdery a questão fundamental é que seus
informantes estavam presos em um sistema totalitário de vigilância
e controle, enquanto que ela possuía a liberdade de ir e vir e mesmo
de voltar para casa, nos Estados Unidos. Não tivesse ela saído da
Romênia em 1988 e a polícia secreta teria dado os passos fatais que
a poderiam ter conduzido à prisão.
O que se passa no plano das boas intenções do desenho
metodológico, aquele que com sentimento de artificialidade
submetemos com medo aos comitês de ética, aparenta uma
arrumação que a pesquisa imediatamente decompõe. Não só
ambígua, como frequentemente reconhecemos, a pesquisa é
muito mais caótica do que qualquer texto que sobre ela possamos
escrever. Nesse sentido, a escolha do texto que escrevemos faz toda
a diferença. O que se passa na linha da frente ou nos bastidores
da vida social das pesquisas são dimensões bem diferentes do que
prevemos frequentemente já sabendo que vamos deixar de habitar
206 | Pensar com método

a ingenuidade do momento inicial.


Nesse sentido, e com base nos diversos casos que apresentei,
em vez de tanto debater garantia e proteção ética, eu convidaria os
leitores deste texto a desejarem ter mais coragem metodológica.
Estes exemplos devem servir para desfazer em nós os desejos de
simplicidade militante e de ingenuidade intelectual-romântica que
possamos carregar como cientistas sociais em processo. Acredito
que tão importante como organizar princípios gerais e regulações
sensíveis, podemos lutar pelo risco impresso na pesquisa de carácter
etnográfico e pela vontade de explorar toda a sua complexidade
reflexiva, epistemológica e afetiva. As relações humanas, na
pesquisa como na vida, estão povoadas de descontroles e com eles,
aprendemos, com os devidos cuidados, a conviver.

Violências íntimas

Toda esta reflexão, mas concretamente a obra de Verdery,


fez-me pensar no meu próprio caso. Nos últimos anos tenho
dedicado boa parte do meu tempo a pesquisar empiricamente
várias dimensões da segurança privada em São Paulo. A minha
aproximação se dá não apenas ao fenômeno em si, mas também
e fundamentalmente à manutenção de relações de confiança e de
longa duração com os mais diversos agentes da segurança. Comecei
por conhecer proprietários de empresas que terceirizam serviços
de segurança e limpeza e os novos gestores da segurança, essa
categoria profissional recente que entra em cena em São Paulo,
com anseios de legitimizar um mercado de proteção privada
tradicionalmente opaco. Mas foi com vigilantes e porteiros, homens
e mulheres que guardam o sono e a atividade diurna dos citadinos,
que estabeleci conexões mais permanentes. Estes habitam essa
vasta categoria de assalariados pobres e são eles que nos ensinam
o que significa viver em tempos de precariedade econômica e social
permanente.
A sofisticação da discussão de Verdery me ajudou a deslocar,
ou pelo menos a complementar, a visão de intimidades violentas
em trabalho de campo com a das violências íntimas impressas nas
vidas daqueles com quem lido no meu trabalho de campo. De fato,
a abordagem etnográfica é dos poucos aparatos reflexivos capaz de
Intimidades na pesquisa etnográfica | 207

nos fazer penetrar e entender toda a extensão da íntima violência


ou do que muitos dos meus interlocutores chamam de “vida no
limite” ou no “corre da vida”. Isto significa oscilar entre períodos
de trabalho assalariado, trabalho não remunerado, “bicos”, “rolos”,
ou conciliar todos eles, acumulando horas sem fim de trabalho;
entre ter ou não ter dinheiro para pagar as contas do mês; correr
permanentemente o risco de ser realocado, remanejado ou
despedido, mesmo se mal pago; entrar sem pré-aviso em conflitos
e situações de desvantagem laboral; assistir impotente a atrasos e
erros “do sistema” das empresas nos seus pagamentos mensais e,
por tudo isso, viver em débito; adoecer e perder a vida social e o
sono para não perder o “trampo”.
Violências íntimas estão presentes em cada momento, gesto,
interação, moral e emoção da vida dos “guerreiros” da segurança ou
da proteção de propriedades privadas. Eles são os zeladores quase
invisíveis que 24 horas do dia, com arma e uniforme ou sem eles,
ocupam pontos estratégicos de controle e de acesso as residências,
áreas comerciais e industriais, e com quem durante os últimos anos
tenho convivido. E alguns deles, com as armas que possuem, matam
e morrem.
O leitor mais atento deve compreender que violência íntima
é uma noção inspirada na ideia de intimidade cultural criada
por Herzfeld. Com base nas críticas à arrogância universalista do
conhecimento, proposta pelo filósofo do século XVIII Giambattista
Vico, Herzfeld discute o significado de fatalidade compartilhada,
tão efêmera quanto privada, simultaneamente embaraçosa e alegre.
Segundo Herzfeld, isto emerge de uma consciência anterior e algum
desconforto sobre a intimidade social que bons etnógrafos alcançam.
Muitos etnógrafos são capazes de retornar do trabalho de campo, às
vezes de encontros em escalas extremamente pequenas, dotados de
preocupações politicamente sensíveis e entender sistemas nervosos
culturais de países inteiros e também de outras entidades vizinhas
(Herzfeld, 1997).
Ou seja, se Herzfeld nos alertou que para avançar no
conhecimento antropológico e nas mais íntimas dimensões da
cultura dependemos de intimidades sociais em campo, quando
deparamos com a presença insistente de formas de relações violentas
e precarização da vida e do trabalho, creio termos a condição de
avançar para o entendimento das suas intimidades.
208 | Pensar com método

A maioria dos vigilantes, apoiantes explícitos, amedrontados


ou contrários ao presidente capitão recém-eleito, Jair Bolsonaro,
apreciam as armas. No curso inicial de treino para vigilantes, que
realizei em novembro de 2017 junto com catorze homens e uma
mulher, em uma escola situada em São Paulo, percebi que a aula
de tiro (de um dia apenas) é a mais ansiada desde que o curso tem
início. Meninos-adultos desejam atirar à figura e se excitam ou
frustram com os resultados obtidos. A aula ganha um tom sério e
taciturno no momento de ouvir sobre e segurar a arma com as mãos
– bem contrário ao ambiente humorístico e à distração permanente
mantida nas outras horas de instrução em sala de aula sobre o
aparato legislativo, os primeiros socorros, técnicas de segurança,
sistemas de comunicação, primeiros socorros e gestão de acidentes,
etc. Todos somos convidados ao silêncio e à veneração da arma no
escuro stand de tiro.
Entretanto, a intimidade da violência não se restringe
à exaltação destes homens face ao poder armado e a esses
microisomorfismos fluidos do militarismo policial. Outras faces estão
presentes nas íntimas violências logo no momento da formação. O
que mais ouvimos ao longo dos vinte dias seguidos de 200 horas
de formação, além de advertências legais de base, muitas vezes
relativizadas (quando não mesmo ridicularizadas) por instrutores
que dizem conhecer “a prática”, remete para a desvalorização de
estatuto dos futuros assalariados. Todos os dias os instrutores
proferiam alguma lição moral, por vezes narrando uma pequena
história, com o intuito de demonstrar aos futuros “vigões” (como
são denominados na gíria profissional) que devem se colocar no seu
“devido” lugar. O universo de treino faz-se povoar de frases como:
“Os vigilantes não são ninguém”; “ninguém gosta dos vigilantes”;
“em situação de risco, salvem a sua pele”.
A avaliação da desautorização situacional de porteiros e
vigilantes corresponde a uma precariedade estrutural em dois níveis.
Por um lado, uma precariedade do trabalho em si mesmo. Embora com
contratos de trabalho legais, ou como se diz na gíria, com “carteira
assinada”, estes trabalhadores, na maioria não especializados, em
geral não passam mais de quatro anos neste emprego (Ver relatórios
Fanavist). Por outro lado, uma precariedade social impressa na
divisão do trabalho paulista: quem exerce a atividade de segurança
são pobres, frequentemente habitantes das periferias remotas das
Intimidades na pesquisa etnográfica | 209

cidades, a maioria originária de famílias nordestinas e negros.


E, no entanto, são estes os trabalhadores que habitam e
protegem aqueles que vivem nas cidades de portarias. Argumento
que de “cidades de muros”, como nos anos 1990 Teresa Caldeira
cunhou (2000), hoje as principais cidades paulistas se tornaram
cidades de portarias na medida em que estas composições sócio
tecnológicas, espacialmente pulverizadas, se tornaram um dos
elementos mais presentes na vida urbana de controle e dinâmica
de circulação com identificação de pessoas, bens e serviços. Essas
portarias também permitem, em um primeiro contato com a cidade,
captar uma divisão social do trabalho na qual pobres se encarregam
de proteger a riqueza daqueles que possuem propriedades
privadas. A privatização da segurança é mais do que um mercado,
setor ou atividade. Significa a reconfiguração da vida social urbana.
Portarias, cancelas, biometrias e todo um aparato e formas de
controle tornaram-se parte da infraestrutura das cidades ao mesmo
tempo que se encarregam de estruturar socialmente as relações
humanas e, ainda, distribuindo desigualmente no espaço o direito
à segurança e às manifestações materiais de medo do crime. O que
não é imediatamente visível em toda este processo, como a gestão
permanente de violências íntimas, é parte integrante do fenômeno
de privatização da segurança e uma dimensão fundamental que no
meu entender tem faltado no estudo das “democracias violentas”
(Arias & Goldstein, 2010).
Cabe lembrar que 80% do setor de segurança privada é
ocupada por estes profissionais no nível mais baixo da hierarquia
profissional. Por todo o lado nas cidades paulistas existem postos
fixos e sistemas de controle e manutenção do intenso movimento
de pessoas, bens e serviços. E estes são mantidos por porteiros
e vigilantes contratados em um sistema terceirizado ou de modo
direto, dito orgânico.
As intimidades da violência evidenciam várias formas
de precariedade, são expressões sociais escondidas nas relações
humanas. Proponho pensar estas questões a partir de quatro pontos
teórico-metodológicos mais amplos:

1. Acredito que não é difícil concordar que é


etnograficamente mais acessível e aparentemente mais motivador
para os antropólogos críticos trabalharem na dimensão da
210 | Pensar com método

vulnerabilidade humana do que no plano da precariedade social


e suas intrincadas violências. O que eu sugiro aqui é que devemos
não apenas ampliar, mas também intensificar as teorias sobre
a violência na vida social. Não é suficiente argumentar que na
América Latina se produziram democracias violentas das quais
atores de força e segurança estatais e extralegais, como guardas
de segurança, policiais, vigilantes, milícias e outros, são parte
integrante. Também é necessário reconhecer, como procurei
brevemente demonstrar na descrição anterior que os vigilantes
fazem parte dessa imensa categoria de pessoas a quem podemos
chamar de trabalhadores pobres precários. Eles não são apenas
atores da violência; são sujeitos permanentemente e intimamente
violados.
Nesse sentido, vale lembrar que esses pobres trabalhadores
de segurança, entre outros, se dirigem uns aos outros como
“guerreiros” (como já disse anteriormente), combatentes em meio a
marés geralmente desfavoráveis ao trabalho remunerado e avessas à
estabilidade laboral. Na segurança privada, ser um guerreiro assume
um duplo sentido: significa que as pessoas têm que “correr na vida”
para obter ganhos e meios de subsistência reduzidos, mas significa
também que estas devem absorver e lidar com as humilhações
concretas e impostas à ocupação na área da segurança privada. Por
um lado, homens e mulheres, guerreiros, são vistos como bravos
brasileiros, lutadores de uma inesgotável precariedade. Por outro
lado, eles são os bravos guerreiros a quem, paradoxalmente, um
trabalho de exercício de autoridade é dado sem que a autoridade
como valor social seja reconhecida ou mesmo admitida. Podemos
aprender mais sobre essa dimensão a partir do trabalho de Beatrice
Jauregui (2016) sobre autoridades provisórias e ordem social
na Índia, a minha própria discussão etnográfica e teórica sobre
fabricação de fatos policiais e detenções na polícia portuguesa
(Durão, 2017); mas também com toda a discussão levada a cabo na
coletânea organizada por Garriott (2018) e especificamente na obra
também recente organizada por Fassin (2017). A linha de estudos
sobre segurança e policiamento na antropologia tem conduzido não
só a uma ampliação sobre grandes temas da teoria social como a uma
reflexão sofisticada sobre abordagens e metodologias etnográficas.

2. Quando analisamos as intimidades da violência, também


Intimidades na pesquisa etnográfica | 211

observamos alguns outros deslocamentos importantes. Tenho


observado, no segmento mais formal de negócios na segurança
privada que hoje domina em São Paulo, que experiências de uso de
manifestações abertas de violência com os cidadãos/consumidores
são reduzidas. Como disse recentemente um dos gestores
profissionais de segurança que conheci em eventos de promoção
mercantil e de conhecimento da área, ao me traçar um cenário
futuro: “Com o tempo, a ideia é parar de usar o termo segurança; isso
assusta as pessoas”. Notei essa tendência claramente no trabalho de
campo multissituado que desde 2016 venho realizando com acesso
direto e permanente as várias portarias de condomínios fechados,
shoppings e hospitais privados. Desse modo, é importante salientar
que toda a discussão que no meio envolve a venda e execução prática
dessa vasta e indefinível “sensação de segurança” e novas formas
de “segurança-hospitalidade”, secundariza ou evita referências a
direitos humanos e civis, limites ou controle de uso das forças de
segurança privadas. O “profissionalismo” promovido por uma
política gerencialista se basta para repensar os avanços dos domínios
de atuação da segurança privada onde até pouco tempo os agentes
da segurança pública vigoravam ou simplesmente onde formas de
segurança não existiam materialmente. Os anseios de segurança e
seus formatos ultrapassam e nem sempre têm correlação direta com
a criminalidade registrada dos lugares. Os novos “profissionais da
prevenção” ampliam constantemente um mercado de atuação com
base não apenas em respostas ao crime, mas também a partir de sua
presença cada vez mais estruturada e infraestrutural na vida pública
das cidades.

3. Do prisma dos trabalhadores precários pobres na


segurança privada – que vivem uma condição de trabalho
politicamente instável, mesmo que com algumas garantias legais
– vemos como os direitos e deveres no trabalho podem ser
ofuscados pelo trabalho-como-um-direito. Os vigilantes podem
ser guerreiros com armas, mas são, acima de tudo, guerreiros
precários. Neste contexto, o trabalho assalariado como um direito
é uma miragem, uma profecia nunca realizada plenamente, assim
como os direitos humanos e civis na vida contemporânea. Essa
equação etnográfica tem necessariamente influência nas reflexões
que podemos produzir na antropologia sobre privatização da
212 | Pensar com método

segurança e instrumentalização da força.

4. Finalmente, esta perspectiva aponta para a importância de


estudar os segredos íntimos da violência social na área da segurança.
Os meus interlocutores mais próximos frequentemente me disseram
partilhar dramas da vida aos quais tentam poupar suas esposas e
filhos. Todas as negociações arriscadas, ameaças de despedimento,
humilhações, crimes, mortes ou roubos que compartilham nas redes
de contato pessoal, ganhos e perdas de dinheiro e todo o desejo
visceral de vingança e de atirar, com suas próprias mãos e arma,
sobre aqueles que lhes fazem mal... Os guerreiros da segurança são
também guardiões dos segredos da precariedade e da violência
múltipla que é multiplicada na vida cotidiana. Portanto, carregam
dentro de si, com suas histórias e suas interações sociais, intimidades
de violências que nós, antropólogos ou antropólogas, acessamos
através de encontros etnográficos igualmente íntimos e duradouros.
Portanto, esta questão também aponta para a importância de
reconhecer como menos interessante para pensar nossos próprios
limites internos para as relações que estabelecemos em campo.
Deveríamos nós estabelecer limites para o estudo da violência?

Conclusão

Um método que requer intimidade para promover o


conhecimento é necessariamente ambíguo e não só não oferece
como desafia parâmetros que reduzam sua amplitude de escolhas
e descobertas empíricas. Por intermédio dessa intimidade os
envolvidos são mais expostos a riscos e, na medida em que vivemos
em um mundo auditado (Strathern, 2000), somos permanentemente
convidados a imaginar, calcular e recalcular limites e redução de
danos. Mas esse não pode ser o fim da história. Talvez possa até ser
o catalisador que nos obriga a levar mais longe as possibilidades das
pesquisas antropológicas. Acredito no princípio da coragem e da
preservação de um conhecimento heterodoxo e contra-hegemônico.
A ambiguidade constitutiva do método é exatamente o que permite
avançar a antropologia. A sofisticação das discussões sobre violência
e a lição de modéstia metodológica endereçada aos etnógrafos, como
faz Verdery, podem nos ajudar a pensar pesquisas tão diversas como,
Intimidades na pesquisa etnográfica | 213

no meu caso, o avanço galopante da presença da segurança privada


nas cidades do estado de São Paulo e seus efeitos violentos. Concluo
assim que é parcial e limitado pensar nas intimidades violentas em
trabalho de campo sem refletir sobre violências íntimas impressas
nas vidas daqueles com quem lido no trabalho de campo.
Este caminho tem conduzido a uma reflexão crítica sobre ética
na pesquisa antropológica brasileira. Mas esta reflexão não se limita
ao fato de a dimensão de controle ético subscrever a complexidade
antropológica a sistemas outros porventura mais padronizados de
construção do conhecimento. O risco apontado por vários autores
foi o de discussões sobre ética nas ciências sociais poderem estar
artificialmente condicionadas a regimes biocêntricos (Victoria et
all, 2004) e a regimes normativos de inspiração judicial – o que
significaria mais um retrocesso do que um avanço no processo de
conhecer. Mas o que proponho aqui é uma outra crítica ao processo,
muitas vezes pouco ousada, de arrumação ética da pesquisa. Ao
dicotomizar o velho “nós-eles”, pesquisadores versus pesquisados,
a bem da condução de uma pesquisa “neutra”, e com isso procurar
fixar o que é fluido e incontrolável – isto é, relações humanas
substantivas que sobressaem mais nos trabalhos de campo de longa
duração – se corre o risco de esvaziar e fixar em “papéis sociais” e
“negociações” o peso histórico, tanto afetivo quanto epistemológico,
dos interlocutores privilegiados, amigos e “parentes” (como descreve
Vilaça) nas pesquisas.
Por isso me parece importante regressar à reflexão densa
sobre abordagens metodológicas qualitativas. Tal como Howard
Becker, estou muito mais interessada em discutir como se constroem
amplitudes de conhecimentos possíveis – como seja no caso as
violências íntimas na vida e no trabalho de assalariados pobres
da segurança – e menos em estabelecer limites nas interações de
pesquisa com os interlocutores. Desinstrumentalizar a pesquisa faz-
se necessário. Pensar, convivendo com, violências plurais é, talvez
mais do que nunca, não uma fatalidade, mas sim uma necessidade para
ampliar horizontes de entendimento sobre a contemporaneidade.
Esse pode ser exatamente um dos modos mais ricos para evitar a
simplificação e neutralização da crítica e da condição de vida humana
em um mundo onde a democracia está sob ameaça.
214 | Pensar com método

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Verdery, Katherine. 2018. My Life as a Spy. Investigations in a Secret
Police File. Durham, London: Duke University Press.
Sobre os autores

Aldair Rodrigues é doutor em História Social pela USP e professor


do departamento de História da UNICAMP, desenvolvendo pesquisas
relacionadas à diáspora africana no Brasil colonial. No âmbito da
formação de professores, dedica-se ao tema do ensino de História
no contexto digital.  É autor de Limpos de Sangue e Igreja e Inquisição
no Brasil.

Álvaro Bianchi é professor livre-docente do Departamento


de Ciência Política e diretor do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa na
área de pensamento político italiano, pensamento político latino-
americano e história da ciência política. Coordena o Laboratório de
Pensamento Político (Pepol/Unicamp) e é pesquisador associado
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos Sobre os
Estados Unidos (INCT-Ineu). É autor de Um ministério dos industriais
(Unicamp, 2010), O laboratório de Gramsci (2 ed. Zouk, 2018).

Bárbara Castro é professora do Departamento de Sociologia da


Unicamp e autora de As armadilhas da flexibilidade: trabalho e gênero
no setor de tecnologia da informação. Tem se dedicado a pesquisar
gênero, flexibilidade e usos do tempo. Trabalha com métodos
quantitativos e qualitativos e seu principal desafio tem sido decifrar
o que os dados estatísticos não nos contam sobre a realidade social.

Daniela Mussi é pesquisadora de pós-doutorado do Departamento


de Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP) e professora
colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Integra como
pesquisadora o Laboratório de Pensamento Político (PEPOL-
Unicamp) e é pesquisadora associada do Centro de Estudos e Cultura
Contemporânea (CEDEC). Autora de Política e literatura: Antonio
Gramsci e a crítica italiana (Alameda, 2014) e Intelectuais rebeldes:
Gramsci, Gobetti e a cultura italiana (Zouk, no prelo).
Frederico de Almeida é bacharel em Direito, mestre e doutor em
Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Professor Doutor
do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, onde é
professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência
Política e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Política e
Criminologia (PolCrim).

Iara Beleli possui graduação em historia pela Universidade


Estadual de Campinas (1983), mestrado em História pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), doutorado
em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas
(2005), pós-doutorado no ISCTE-Lisboa (2008), pós-doutorado na
Universitat Rovira i Virgili, Tarragona-Espanha (2012). Atualmente
é pesquisadora e coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero -
PAGU/Unicamp. Suas reflexões estão voltadas para variadas mídias,
especialmente Internet, atravessada por gênero em intersecção
com outras diferenças (raça/etnia, sexualidade, nacionalidade) em
diálogo com Teorias Feministas e de Gênero. 

Isadora Lins França é mestre em Antropologia Social pela


Universidade de São Paulo (2006) e doutora em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (2010). Seu pós-doutorado foi
vinculado ao Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp (2014).
Atualmente, é Professora do Departamento de Antropologia do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual
de Campinas (IFCH-UNICAMP) e pesquisadora colaboradora do
Núcleo de Estudos de Gênero Pagu/Unicamp. É autora do livro
Consumindo lugares, consumindo nos lugares: homossexualidade,
consumo e subjetividades na cidade de São Paulo (Rio de Janeiro:
EDUERJ, 2012).  

Joice Melo Vieira é professora do Departamento de Demografia do


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). No Núcleo de Estudos de População
“Elza Berquó” (Nepo/Unicamp) atua em duas linhas de pesquisa:
1) Demografia e Políticas Sociais; 2) Família, Gênero e População.
Seus principais temas de interesse são: infância e juventude;
desigualdades sociais no processo de transição para a vida adulta;
desigualdades educacionais; fecundidade e nupcialidade.

Larissa Pelúcio é Livre-Docente em Estudos de Gênero, Sexualidade


e Teorias Feministas. Atua como professora de Antropologia na
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (campus
Bauru Departamento de Ciências Humanas FAAC), integra o quadro
de docentes do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
na mesma instituição (campus Marília), é também pesquisadora
colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu. Doutora em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
tem desenvolvido pesquisas que abordam temas como gênero,
sexualidade, saúde, mídias digitais a partir de diálogos com a teoria
queer, as epistemologias feministas e os Saberes subalternos. É
autora do livro Abjeção e Desejo - uma etnografia travesti sobre o
modelo preventivo de aids e Discursos Fora da Ordem (Annablume),
este último em parceria com Richard Miskolci.

Susana Durão é professora no departamento de antropologia,


no programa de pós-graduação em antropologia social e no
programa de pós-graduação em ciências sociais (linha cidades) no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). É bolsista produtividade CNPQ.
É pesquisadora associada ao Centro de Estudos em Migrações
Internacionais (CEMI-UNICAMP) e pesquisadora convidada no
Núcleo de Estudos de Gênero (PAGU-UNICAMP). Foi pesquisadora
contratada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa e pesquisadora visitante no Institute for Advanced Study
em Princeton. Tem estudado cidades, violência, trabalho, segurança
pública e privada em Portugal e no Brasil e, mais especificamente,
institucionalização democrática das polícias, policiamentos plurais
e formação policial.

Taniele Rui é professora do Departamento de Antropologia da


Universidade Estadual de Campinas. É doutora (2012) e Mestre
(2007) em Antropologia Social pela Unicamp; bacharel em Ciências
Sociais (2004) pela mesma Universidade. Autora de Nas tramas do
crack: etnografia da abjeção (Prêmio CAPES de Tese -2013 e Menção
Honrosa do SLACA BOOK PRIZE 2015), co-autora de Novas Faces da
Vida nas ruas (Finalista do Jabuti 2017), vem se dedicando à pesquisa
de temas em antropologia urbana, com foco em vidas e situações-
limites, produzindo investigações etnográficas transversais sobre
pobrezas urbanas, tendo por eixo empírico as interfaces políticas da
associação entre rua, drogas e dispositivos de assistência e controle.
Coleção Stoner

O trabalho universitário talvez poucas vezes tenha sido tão bem retra-
tado quanto no “campus novel” Stoner, de John Williams; nele, somos
apresentados à trajetória de vida do protagonista que dá título à obra,
desde suas origens humildes até o final de sua jornada de muitos anos
como um acadêmico de literatura, passando pelas vicissitudes do coti-
diano institucional, da docência e da pesquisa. Buscamos homenagear
esse personagem no título de nossa coleção devotada a contemplar o
trabalho acadêmico realizado com integridade e excelência - a tese,
a dissertação, a coletânea de ensaios - em suas variadas dimensões.
Títulos publicados

O samba é fogo. O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Mas-


sangano
Márcia Nóbrega

Meninas más, mulheres nuas. As máquinas literárias de Adelaide


Carraro e Cassandra Rios
Pedro Amaral

Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Lati-


na (1896-1932)
Miriam V. Gárate

A vida em cenas de uso de crack


Erick Araujo

A perversão domesticada. BDSM e consentimento sexual


Bruno Zilli

Não leve flores. Crônicas etnográficas junto ao Movimento Passe


Livre-DF
Leila Saraiva

Batalha de confete. Envelhecimento condutas homossexuais e regimes


de visibilidade no Pantanal-MS
Guilherme R. Passamani

(Des)Prazer da norma
Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima (Orgs.)

Pensar com método


Susana Durão e Isadora Lins França (Orgs.)
Formato 16 x 23
Tipologia: Cambria
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)

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