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CURSO DE LICENCIATURA EM DIREITO

1º Ano

DISCIPLINA: Hermenêutica do Texto Jurídico


Código: ISCED12-CJURCFE004

Total Horas/2o Semestre: 125

Créditos (CFE): 5

Número de Unidades Temáticas: 24

INS SUPERIOE CIÊNCIAS E EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA - ISCED

INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIA E EDUCAÇÃO

i
Direitos de autor (copyright)
Este manual é propriedade do Instituto Superior de Ciências e Educação a Distância (ISCED) e
contêm reservados todos os direitos. É proibida a duplicação ou reprodução parcial ou total
deste manual, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (electrónico, mecânico,
gravação, fotocópia ou outros), sem permissão expressa de entidade editora (Instituto
Superior de Ciências e Educação a Distância (ISCED).

A não observância do acima estipulado, o infractor é passível a aplicação de processos


judiciais em vigor no País.

Instituto Superior de Ciências e Educação a Distância (ISCED)


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Beira - Moçambique
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ii
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E-mail: isced@isced.ac.mz www.isced.ac.mz

Agradecimentos
O Instituto Superior de Ciências e Educação a Distância  Coordenação do Programa de
Licenciaturas e o autor que elaborou o presente manual, Mestrando Fernando Chicumule,
agradecem a colaboração dos seguintes indivíduos e instituições na elaboração deste
manual:

Coordenação Direcção Académica do ISCED


Pelo Design Direcção de Qualidade e Avaliação do ISCED.
Financiamento e Logística IAPED – Instituto Africano para a Promoção
da Educação a Distância.
Pela Revisão final Dr. Zacarias Mendes Magibir

Elaborado por:
Docente: Fernando Manuel Samuel Safo Chicumule
Mestrando em Línguas, Literaturas e Culturas pela Universidade de Aveiro
Especializado em Língua Portuguesa e Literaturas de Expressão Portuguesa pela Universidade de Aveiro
Licenciado em Língua e Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa
Bacharel em Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade Pedagógica de Maputo
Docente do Instituto Superior de Ciências e Ensino a Distância

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Índice
Visão geral Error! Bookmark not defined.
Bem-vindo à Hermenêutica do Texto Jurídico .................. Error! Bookmark not defined.
Objectivos da cadeira......................................................... Error! Bookmark not defined.
Quem deveria estudar este módulo .................................. Error! Bookmark not defined.
Como está estruturado este módulo? ............................... Error! Bookmark not defined.
Ícones de actividade .......................................................... Error! Bookmark not defined.
Habilidades de estudo ....................................................... Error! Bookmark not defined.
Precisa de apoio? ............................................................... Error! Bookmark not defined.
Tarefas (avaliação e auto-avaliação) ................................. Error! Bookmark not defined.
Avaliação ............................................................................ Error! Bookmark not defined.

Unidade 1: Hermenêutica clássica Error! Bookmark not defined.


Introdução..................................................................................................................... Error!
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Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 2: Hermenêutica geral e a crítica da razão histórica Error! Bookmark not defined.
Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 3: A teoria hermenêutica em Betti Error! Bookmark not defined.


Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 4: Hermenêutica em Gadamer Error! Bookmark not defined.


Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 5: Hermenêutica fenomenológica de Ricoeur Error! Bookmark not defined.


Introdução Error! Bookmark not defined.

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Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 6: Hermenêutica Crítica em Apel Error! Bookmark not defined.


Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 7: Hermenêutica contemporânea em Dworkin: Hard Cases, princípios, políticas


públicas, regras e discricionariedade fraca Error! Bookmark not defined.
Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 8: Direito, argumentação e retórica Error! Bookmark not defined.


Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 9: Teorias discursivas contemporâneas Error! Bookmark not defined.


Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 10: Teoria contemporânea do direito: Tópica, de ViehwegError! Bookmark not defined.
Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 11: Teoria contemporânea do direito: Nova Retórica, de Perelman.Error! Bookmark not defined.
Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

Unidade 12: Teoria da argumentação em Alexy – teoria normativaError! Bookmark not defined.
Introdução Error! Bookmark not defined.
Sumário ....................................................................................... Error! Bookmark not defined.
Exercícios ..................................................................................... Error! Bookmark not defined.

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Visão geral
Bem-vindo à Hermenêutica do Texto Jurídico
A disciplina Hermenêutica do Texto Jurídico surge nesta
época como Módulo Único, no âmbito do Curso de Licenciatura em
Direito do ISCED, no segundo semestre deste ano académico.
Neste módulo, abordaremos, por um lado, a Hermenêutica
Jurídica – estudo das hermenêuticas clássica e geral, teorias e críticas - ;
por outro, a Argumentação Jurídica – estudo do impacto da
argumentação e da retórica no Direito e das teorias contemporâneas de
Direito e de argumentação.
Em suma, esta disciplina pretende desenvolver a capacidade de
análise crítica com base nos conhecimentos fundamentais sobre teoria
do direito, argumentação jurídica e hermenêutica contemporânea,
numa perspectiva multidisciplinar, de maneira que ela possa ser
utilizada para resolver os problemas teórico-práticos.

Objectivos do curso
Quando terminar o estudo de Hermenêutica do Texto Jurídico – 1º
Ano, será capaz de:

 Conhecer a hermenêutica jurídica;


 Distinguir a hermenêutica clássica da hermenêutica geral;
 Reconhecer as teorias hermenêuticas;
 Criticar as teorias hermenêuticas;
 Conhecer a argumentação jurídica;
Objectivos  Relacionar a argumentação e a retórica no Direito e;
 Compreender as teorias contemporâneas de Direito e de
argumentação.

Quem deveria estudar este


módulo?
Este Módulo foi concebido para os estudantes do 1º ano do
curso de Licenciatura em Direito.

1
Poderá ocorrer, contudo, que haja leitores que queiram
actualizar-se e consolidar os seus conhecimentos nesta disciplina,
esses serão bem-vindos, não sendo necessário para tal se
inscrever. Mas poderão adquirir o manual.

Como está estruturado este


módulo?
Este módulo de Hermenêutica do Texto Jurídico, para
estudantes do 1º ano do Curso de Licenciatura em Direito, à
semelhança dos restantes do ISCED, está estruturado como se
segue:

Páginas introdutórias
 Um índice completo.
 Uma visão geral detalhada do curso / módulo, resumindo os
aspectos-chave que você precisa conhecer para completar o estudo.
Para isso, recomendamos vivamente que leia esta secção com
atenção antes de começar o seu estudo, como componente de
habilidades de estudos.

Conteúdo desta disciplina / módulo


Este módulo está estruturado em Temas. Cada tema, por sua
vez comporta certo número de unidades temáticas ou
simplesmente unidades. Cada unidade temática caracteriza-se por
conter uma introdução, objectivos, conteúdos.
No final de cada unidade temática ou do próprio tema, são
incorporados antes o sumário, exercícios de auto-avaliação, só
depois é que aparecem os exercícios de avaliação.
Os exercícios de avaliação têm as seguintes características:
Puros exercícios teóricos/práticos, problemas não resolvidos e
actividades práticas algumas incluíndo estudo de caso.
Outros recursos
A equipa dos académicos e pedagogos do ISCED, pensando em
si, num cantinho, recôndito deste nosso vasto Moçambique e
cheio de dúvidas e limitações no seu processo de aprendizagem,
apresenta uma lista de recursos didácticos adicionais ao seu
módulo para você explorar. Para tal o ISCED disponibiliza na
biblioteca do seu centro de recursos mais material de estudos
relacionado com o seu curso como: livros e/ou módulos, CD, CD-
ROOM, DVD. Para além deste material físico ou electrónico
disponível na biblioteca, pode ter acesso à Plataforma digital
moodle para alargar mais ainda as possibilidades dos seus estudos.

Auto-avaliação e Tarefas de avaliação

Tarefas de auto-avaliação para este módulo encontram-se no


final de cada unidade temática e de cada tema. As tarefas dos
exercícios de auto-avaliação apresentam duas características:
primeiro apresentam exercícios resolvidos com detalhes. Segundo,
exercícios que mostram apenas respostas.

Tarefas de avaliação devem ser semelhantes às de auto-


avaliação mas sem mostrar os passos e devem obedecer o grau
crescente de dificuldades do processo de aprendizagem, umas a
seguir a outras. Parte das terefas de avaliação será objecto dos
trabalhos de campo a serem entregues aos tutores/docentes para
efeitos de correcção e subsequentemente atribuição da nota.
Também constará do exame do fim do módulo. Pelo que, caro
estudante, fazer todos os exrcícios de avaliação é uma grande
vantagem.

3
Comentários e sugestões

Use este espaço para dar sugestões valiosas, sobre


determinados aspectos, quer de natureza científica, quer de
natureza didáctico-pedagógica, etc, sobre como deveriam ser ou
estar apresentadas. Pode ser que graças às suas observações que,
em gozo de confiança, classificamo-las de úteis, o próximo módulo
venha a ser melhorado.

Ícones de actividade
Ao longo deste manual irá encontrar uma série de ícones
nas margens das folhas. Estes icones servem para identificar
diferentes partes do processo de aprendizagem. Podem indicar
uma parcela específica de texto, uma nova actividade ou tarefa,
uma mudança de actividade, etc.

Habilidades de estudo
O principal objectivo deste campo é o de ensinar aprender
a aprender. Aprender aprende-se.

Durante a formação e desenvolvimento de competências,


para facilitar a aprendizagem e alcançar melhores resultados,
implicará empenho, dedicação e disciplina no estudo. Isto é, os
bons resultados apenas conseguem-se com estratégias eficientes e
eficazes. Por isso é importante saber como, onde e quando
estudar. Apresentamos algumas sugestões com as quais esperamos
que, caro estudante, possa rentabilizar o tempo dedicado aos
estudos, procedendo como se segue:

1º Praticar a leitura. Aprender à distância, exige alto


domínio de leitura.

2º Fazer leitura diagonal aos conteúdos (leitura corrida).


3º Voltar a fazer leitura, desta vez para a compreensão e
assimilação crítica dos conteúdos (ESTUDAR).

4º Fazer seminário (debate em grupos), para comprovar se a


sua aprendizagem confere ou não com a dos colegas e com o
padrão.

5º Fazer TC (Trabalho de Campo), algumas actividades


práticas ou as de estudo de caso se existir.

IMPORTANTE: Em observância ao triângulo modo-espaço-


tempo, respectivamente como, onde e quando... estudar, como foi
referido no início deste item, antes de organizar os seus momentos
de estudo, reflicta sobre o ambiente de estudo que seria ideal para
si: Estudo melhor em casa/biblioteca/café/outro lugar? Estudo
melhor à noite/de manhã/de tarde/fins-de-semana/ao longo da
semana? Estudo melhor com música/num sítio sossegado/num sítio
barulhento!? Preciso de intervalo em cada 30 minutos, em cada
hora, etc.

É impossível estudar numa noite tudo o que devia ter sido


estudado durante um determinado período de tempo. Deve
estudar cada ponto da matéria em profundidade e passar só ao
seguinte quando achar que já domina bem o anterior.

Privilegia-se saber bem (com profundidade) o pouco que


puder ler e estudar do que saber tudo superficialmente! Mas a
melhor opção é juntar o útil ao agradável: Saber com profundidade
todos conteúdos de cada tema, no módulo.

Conselho importante: não recomendamos estudar


seguidamente por tempo superior a uma hora. Estudar por tempo
de uma hora intercalado por 10 (dez) a 15 (quinze) minutos de
descanso (chama-se descanso à mudança de actividades). Ou seja,
durante o intervalo, não se deve continuar a tratar dos mesmos
assuntos das actividades obrigatórias.

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Uma longa exposição aos estudos ou ao trabalho
intelectual obrigatório, pode conduzir ao efeito contrário: baixar o
rendimento da aprendizagem. Já que o estudante tem o hábito de
acumular um elevado volume de trabalho, em termos de estudos,
em pouco tempo, criando interferência entre os conhecimentos,
perde sequência lógica; por fim, ao perceber que estuda tanto mas
não aprende, cai em insegurança, depressão e desespero, por se
achar injustamente incapaz!

Não estude na última da hora quando se trate de fazer


alguma avaliação. Aprenda a ser estudante de facto (aquele que
estuda sistematicamente); não estudar apenas para responder a
questões de alguma avaliação; mas sim, estude para a vida, sobre
tudo, estude pensando na sua utilidade como futuro profissional,
na área em que está a formar-se.

Organize na sua agenda um horário onde define a que


horas e que matérias deve estudar durante a semana; Face ao
tempo livre que resta, deve decidir como o utilizar
produtivamente, decidindo quanto tempo será dedicado ao estudo
e a outras actividades.

É importante identificar as ideias principais de um texto,


pois será uma necessidade para o estudo das diversas matérias
que compõem o curso: a colocação de notas nas margens pode
ajudar a estruturar a matéria de modo que seja mais fácil
identificar as partes que está a estudar e pode escrever
conclusões, exemplos, vantagens, definições, datas, nomes; pode
também utilizar a margem para colocar comentários seus
relacionados com o que está a ler; a melhor altura para sublinhar é
imediatamente a seguir à compreensão do texto e não depois de
uma primeira leitura; utilizar o dicionário sempre que surja um
conceito cujo significado não conhece ou não lhe é familiar.
Precisa de apoio?
Caro estudante, temos a certeza que por uma ou por
outra razão, o material de estudos impresso, pode suscitar-lhe
algumas dúvidas como falta de clareza, alguns erros de
concordância, prováveis erros ortográficos, falta de clareza, fraca
visibilidade, páginas trocadas ou invertidas, etc. Nestes casos,
contacte os serviços de atendimento e apoio ao estudante do seu
Centro de Recursos (CR), via telefone, sms, e-mail, se tiver tempo,
escreva mesmo uma carta participando a preocupação.

Uma das atribuições dos Gestores dos CR e seus


assistentes (Pedagógico e Administrativo) é a de monitorar e
garantir a sua aprendizagem com qualidade e sucesso. Daí a
relevância da comunicação no Ensino a Distância (EAD), onde o
recurso às TIC se torna incontornável: entre Estudantes, Estudante
– Tutor, Estudante – CR, etc.

As sessões presenciais são um momento em que você,


caro estudante, tem a oportunidade de interagir fisicamente com
staff do seu CR, com tutores ou com parte da equipa central do
ISCED indigetada para acompanhar as suas sessões presenciais.
Neste período pode apresentar dúvidas, tratar assuntos de
natureza pedagógica e/ou admibistrativa.

O estudo em grupo, que está estimado para ocupar cerca


de 30% do tempo de estudos a distância, tem muita importância,
na medida em que permite lhe situar, em termos do grau de
aprendizagem com relação aos outros colegas. Desta maneira,
ficará a saber se precisa de apoio ou precisa de apoiar os colegas.
Desenvolver hábito de debater assuntos relacionados com os
conteúdos programáticos, constantes nos diferentes temas e
unidade temática, no módulo.

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Tarefas (avaliação e auto-
avaliação)
O estudante deve realizar todas as tarefas (exercícios,
actividades e auto-avaliação), contudo nem todas deverão ser
entregues, mas é importante que sejam realizadas. As tarefas
devem ser entregues duas semanas antes das sessões presenciais
seguintes.

Para cada tarefa, serão estabelecidos prazos de entrega,


mas o não cumprimento dos prazos de entrega, implicará a não
classificação do estudante. Tenha sempre presente que a nota dos
Trabalhos de Campo conta e é decisiva para ser admitido ao exame
final da disciplina/módulo.

Os trabalhos devem ser entregues ao Centro de Recursos


(CR) e os mesmos devem ser dirigidos ao tutor/docente. Podem ser
utilizadas diferentes fontes e materiais de pesquisa, por isso os
mesmos devem ser devidamente referenciados, respeitando os
direitos do autor.

O plágio1 é uma violação do direito intelectual do (s) autor


(es). Uma transcrição à letra de mais de 8 (oito) palavras do texto
de um autor sem o citar é considerada plágio. A honestidade,
humildade científica e o respeito pelos direitos autoriais devem
caracterizar a realização dos trabalhos e seu autor (estudante do
ISCED).

Avaliação
Muitos perguntam: Com é possível avaliar estudantes à
distância, estando eles fisicamente separados e muito distantes do

1
Plágio - copiar ou assinar parcial ou totalmente uma obra literária, propriedade
intelectual de outras pessoas, sem prévia autorização.
docente/turor!? Nós dissemos: Sim é muito possível, talvez seja
uma avaliação mais fiável e consistente.

Você será avaliado, durante os estudos à distância que


contam com um mínimo de 90% do total de tempo que precisa de
estudar os conteúdos do seu módulo, quando o tempo de contacto
presencial conta com um máximo de 10% do total de tempo do
mesmo módulo. A avaliação do estudante consta detalhada do
regulamentado de avaliação.

Os Trabalhos de Campo por si realizados, durante


estudos e aprendizagem no campo, pesam 25% e servem para a
nota de frequência, condição para admitir aos exames. Os exames
são realizados no final da cadeira/disciplina ou módulo e decorrem
durante as sessões presenciais. Os exames pesam no mínimo 75%,
o que adicionado aos 25% da média de frequência, determinam a
nota final com a qual o estudante conclui a cadeira.

A nota de 10 (dez) valores é a nota mínima de


conclusão da cadeira.

Nesta cadeira, o estudante deverá realizar pelo menos 2


(dois) trabalhos e 1 (um) (exame).

Algumas actividades práticas, relatórios e reflexões


serão utilizados como ferramentas de avaliação formativa.

Durante a realização das avaliações, os estudantes


devem ter em consideração a apresentação, a coerência textual, o
grau de cientificidade, a forma de conclusão dos assuntos, as
recomendações, a identificação das referências bibliográficas
utilizadas, o respeito pelos direitos do autor, entre outros.

Os objectivos e critérios de avaliação constam do


Regulamento de Avaliação.

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Unidade 1

Hermenêutica clássica
Introdução

Geralmente, a norma jurídica não se apresenta suficientemente


clara, tornando a actividade do operador do Direito aturada e penosa.
Noutras vezes, muito embora clara, o texto normativo mostra-se
manifestamente alheio aos usos e costumes do tempo em que é
interpretado, causando sérias dúvidas sobre como o interpretar e, mais
que isso, extrair a máxima eficácia de seu texto.

A presente unidade aborda a necessidade e a importância da


Hermenêutica Jurídica, uma vez que, através dela, de modo científico,
pode o intérprete desvelar sentidos racionais para a norma, como
também aborda os seus clássicos métodos, desde a estrita
interpretação gramatical propagada pela Escola da Exegese, até aos
modernos Princípios da Hermenêutica Constitucional.
Ao completar esta unidade / lição, será capaz de:

 Abordar a necessidade e a importância da Hermenêutica Jurídico-


Clássica.

Objectivos

HJC – Hermenêutica Jurídico-Clássica;


HC – Hermenêutica Clássica;
HJ – Hermenêutica Jurídica.
Terminologia

1. Hermenêutica

A interpretação da norma (enquanto facto social valorado e


normatizado) é objecto de estudo da Hermenêutica Jurídica que, nos

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dizeres de Carlos Maximiliano, tem por finalidade a sistematização dos
processos aplicáveis com o intuito de delimitar o sentido e o alcance das
expressões de Direito (MAXIMILIANO, 1993, p. 01)

O cientista do Direito tem como objecto de estudo e análise,


basicamente, a palavra. Mais que a palavra enquanto unidade isolada, a
união delas. E mais que o conjunto de palavras, o horizonte social,
político, económico e jurídico em que se inserem.

Com efeito, a descoberta do significado da norma (conjunto de


palavras destinadas a expressar a valoração de determinado facto social)
é tarefa a que o cientista do direito dedica, sem dúvida, longo tempo,
pois nem sempre o sentido e o alcance das expressões são facilmente
aferíveis.

Isso porque, não raras vezes, o texto normativo lança mão à


utilização de palavras e expressões de múltiplos significados, tornando,
além de imprescindível, árdua a tarefa do hermeneuta.

Além disso, o lugar em que se dá a interpretação é o pensamento do


hermeneuta. Toda a subjectividade do intérprete, de algum modo,
aparece no momento da delimitação e do alcance do sentido das
expressões que compõem a norma.

Não é por menos que o mestre Raimundo Bezerra Falcão chega a


falar na inesgotabilidade de sentido das normas, nos seguintes termos:

O sentido é livre porque o palco de sua criação é o pensamento, que


também o é por excelência. E é inesgotável por ser livre, digamo-lo
sempre. Tão livre é o pensamento – e com ele o sentido – que Spinoza
não hesitou em colocá-lo, juntamente com a extensão, como atributo da
substância, esta que é o ser existente em si e por si, causa de si mesmo e,
por isso, absoluto, identificável com a própria divindade (FALCÃO, 2000,
p. 38).

Prossegue o mestre cearense afirmando que, muito embora a


interpretação seja dotada de infinita liberdade, ainda sim é possível
imprimir-lhe limites, posto que o homem possui liberdade, até mesmo,
para se impor balizas:

O pensamento é, desse modo, livre, em essência. Se algum limite se


lhe pode pôr, é a limitação pelo rumo, pela teleologia. Portanto,
podemos asseverar: ao nosso ver, o pensamento só se limita pelo rumo,
pela finalidade. Acontece que o rumo lhe pode ser imposto pelo homem.
Logo, está dentro da liberdade, pois se trata de algo que
espontaneamente o homem lhe imprime, e, dessa forma, continua tudo
no reino da liberdade (FALCÃO, 2000, p.38)

Por tal razão, a escolha do sentido adequado à palavra que compõe


a norma é tarefa que não se pode dar ao bel prazer do intérprete
jurídico, sob pena de poder, inclusive, malferir a coerência interna da
norma e a coerência externa com as demais existentes no ordenamento
jurídico.

Como bem observado por Falcão, a finalidade é uma baliza que se


deve ter para apontar qual ou quais são os sentidos que melhor surgem
da interpretação do objecto hermenêutico.

Nesse sentido, não é demais lembrar do famoso exemplo dado por


Recaséns Siches sobre a aplicação das finalidades a que se pretende
buscar no esforço hermenêutico. Trata-se da história da estação
ferroviária em que havia uma placa com os dizeres “É proibida a entrada
de cães”. Em seguida, aparece um homem com um urso que insiste em
entrar, alegando que a proibição serve apenas para cachorros, e não
para quaisquer outros animais. Depois, aparece um cego mutilado de
guerra conduzido por um cão-guia (MAGALHÃES FILHO, 2009).

A pergunta que se faz é: Qual dos dois pode entrar na estação


ferroviária? As respostas são várias, ante as inimagináveis possibilidades
que surgem da criatividade do intérprete. Contudo, apenas utilizando-se
de ferramentas finalísticas é que o intérprete alcançará uma solução que
entenda adequada para o exemplo dado.

No entanto, uma pergunta de grande relevo e magnitude deve ser


realizada, referente a qual finalidade deve o intérprete ter como
referencial na interpretação da norma: O hermeneuta deve buscar a
finalidade pretendida por quem fez a norma ou a finalidade de quem
interpreta a norma?

Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta bem a dicotomia entre a


doutrina hermenêutica subjectivista (que busca a interpretação
conforme a vontade do legislador) e a doutrina objectivista (que
entende que a norma possui sentido próprio, podendo, portanto, ser
modificável ao longo do tempo e, por que não, de acordo com a vontade
do intérprete), chegando à conclusão de que uma não prevalece sobre a
outra, servindo a explanação para as deixar mais em evidência do que
para pôr fim à uma. (FERRAZ JR., 2003, p. 268):

A doutrina subjectivista insiste que, sendo a ciência jurídica um


saber dogmático (a noção de dogma enquanto um princípio arbitrário,
derivado de vontade do emissor de norma lhe é fundamental), é,
basicamente, uma compreensão do pensamento do legislador; portanto,
interpretação ex tunc (desde então, isto é, desde o aparecimento da
norma pela positivação da vontade legislativa), ressaltando-se, em
consonância, o papel preponderante do aspecto genético e das técnicas
que lhe são apropriadas (método histótico). Já para a doutrina
objectivista, a norma goza de um sentido próprio, determinado por
factores objectivos (o dogma é um arbitrário social), independente até
certo ponto do sentido que lhe tenha querido dar o legislador, donde a
concepção da interpretação como uma compreensão ex nunc (desde
agora, isto é, tendo em vista a situação e o montante actual de sua

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vigência), ressaltando-se o papel preponderante dos aspectos
estruturais em que a norma ocorre e as técnicas apropriadas e sua
captação (método sociológico) (FERRAZ JR., 2003, p.267)

Assim, sem dirimir sobre qual viés hermenêutico é o mais


apropriado ante ao que se quer interpretar, Tércio acaba por delimitar,
no entanto, quais os métodos clássicos de interpretação que
desembocam nas doutrinas subjectivistas e objectivistas, os quais
passamos a expor.
2. A Hermenêutica Jurídico-Clássica

Os métodos clássicos de interpretação, definidos por Savigny, têm,


na visão de Tércio Sampaio Ferraz Jr, uma finalidade de orientar o
intérprete na tarefa de decidir os conflitos através de regras técnicas
que o auxiliam na obtenção de um resultado (2003, p. 286), sendo tais
problemas de ordem sintáctica, semântica e pragmática.

Nesta subunidade, reflectiremos detidamente sobre os métodos que


serão utilizados na nossa investigação, procurando entender os seus
fundamentos para melhor os utilizar no momento oportuno.

O método gramatical de interpretação tem por escopo realizar uma


interpretação morfológica e sintáctica do texto normativo (MAGALHÃES
FILHO, 2009, p. 35). Noutras palavras, a mera leitura do texto já seria
capaz de revelar o sentido e o alcance da norma jurídica.

A operacionalidade do método gramatical foi posta em evidência


pela chamada Escola de Exegese na França pós-revolucionária. Insta
dizer que, após a Revolução Francesa, acreditavam os revolucionários
(agora no poder do Estado Francês) que o Direito Natural já estava
positivado no Código de Napoleão, pelo que seria despreciada qualquer
interpretação que não fosse a literal, sob pena de desnaturar o sentido
da norma.

O racionalismo e a crença positivista estavam tão arraigados na


cultura francesa naquele momento que se acreditava que a volunté
générale estava devidamente codificada, pelo que a lei, naquele
momento, era perfeita e acabada.

Tal concepção teórica decorria da forte inspiração iluminista que


permeava o ar daquele tempo e lugar. No ancien regime, o déspota era
a lei. Melhor dizendo, a sua vontade, falível e volátil, era a norma. E mais
que isso, o monarca interpretava-a livremente, alterando seu alcance e
conteúdo quando fosse conveniente.

Montesquieu, ao defender a rígida separação dos poderes,


propunha que o Legislativo condensasse a vontade normativa, não
cabendo ao Judiciário ampliá-la ou diminuí-la, apenas cumpri-la.
Assim, a vontade da lei (teoria subjectivista) era evidente, não
cabendo qualquer interpretação que não fosse aquela que advinhasse
do correr dos olhos sobre o texto. Ora, o professor Falcão ensina-nos
que na França pós-revolucionária:

Em torno da lei, então acolhida como a norma jurídica por


excelência, erigem-se altares, onde nem sempre, é bem verdade, se
entroniza a justiça ou se incesa a real liberdade. Até o sentido é, ali,
sacrificado à sua letra. O alcance social da interpretação também cede
espaço ao novo fetichismo legalista. As mentes inclinam-se por um
liberalismo tão extremado que à prática da interpretação só resta a
obediência que na lei se diz, em coro, que se inscreveu (FALCÃO, 2000, p.
156).

O método gramatical termina, em última análise, por resgatar antigo


brocardo jurídico, que ensina que “na clareza cessa a interpretação”,
pois, ante a evidente redacção normativa, não caberiam discussões
sobre o sentido da norma. Trata-se do conhecido “brocardo da clareza”

À insuficiência, contudo, beira o método gramatical.

Segundo o professor Glauco Barreira Magalhães Filho (2009, p. 23),


o brocardo da clareza pressupõe a existência de termos unívocos, isto é,
dotados de um único sentido. Com efeito, a não ser numa linguagem
estritamente científica, o que não é o caso da ciência do Direito,
dificilmente se encontram termos unívocos.

Assim, o método gramatical, embora útil, é, muitas vezes,


insuficiente para a delimitação do alcance e sentido da norma jurídica.
Como bem menciona o professor Hugo de Brito Machado:

O elemento literal, embora indispensável, quando utilizado


isoladamente pode levar a verdadeiros absurdos. O significado das
palavras em geral é impreciso, seja por vaguidade, nos casos em que não
se tem como definir as fronteiras do conceito, seja por ambiguidade, nos
casos em que o conceito se aplica a duas ou mais realidades distintas.
Daí a necessidade que sempre tem o intérprete das normas jurídicas de
se utilizar também outros métodos ou elementos de interpretação
(MACHADO, 2010, p.112)

Outro método hermenêutico clássico é o sistemático. Esse método


tem por característica a busca do sentido da norma através de sua
análise interna e externa, que seja, a análise da norma frente às demais
que estão dentro do mesmo diploma normativo (análise interna) e
frente às demais normas que compõem o ordenamento jurídico (análise
externa).

Nesse sentido, o professor Glauco Barreira chega a afirmar que “o


legislador não cria o ordenamento jurídico, mas um conjunto de normas
que são desconexas”, cabendo ao jurista o dever de sistematizá-las,
dando-lhes um sentido coerente. Diz ainda que “A interpretação

15
sistemática procura compatibilizar as partes entre si e as partes com o
todo, é a interpretação do todo pelas partes e das partes pelo todo”
(MAGALHÃES FILHO, 2009, p. 42).

O método sistemático procura analisar, portanto, as normas no seu


todo, evitando a análise de forma fragmentária, de forma a não perder
de vista o sentimento que permeia o inteiro, uma vez que tem como
axioma apriorístico o facto de o sistema jurídico ser um complexo
harmónico de normas. Isso porque o ordenamento jurídico pátrio é um
emaranhado amorfo de normas, ao qual, se não lhe for atribuído um
sentido único, oriundo de seu substrato de validade, segundo a teoria
kelseniana,será um grande e contraditório engodo de prescrições
normativas.

Tem-se ainda o método sociológico, que tem por escopo adequar o


sentido da norma às finalidades sociais almejadas pelo legislador (teoria
subjectivista). Trata-se, noutras palavras, do método que permite ao
hermeneuta encontrar a melhor interpretação que se adéque à busca
pelo “bem comum”.

Por fim, a interpretação teleológica ou finalística é a interpretação


da norma a partir do fim (vantagem) social a que se destina
(MAGALHÃES FILHO, 2009, p. 47).

Ao iniciar esta segunda subunidade, debruçamo-nos sobre a


necessidade de se interpretar finalisticamente a norma jurídica, sob
pena de deixar ao alvedrio da criactividade do pensamento a
interpretação da prescrição legal.

Com efeito, o fundamento dos métodos teleológicos de


interpretação é que sempre é possível atribuir um propósito às normas
(FERRAZ JR., 2003, p. 292). É imperioso dizer que a interpretação
teleológica é umbilicalmente ligada aos princípios jurídicos que existem
no ordenamento, sendo ela, pois, o método que busca a efectivação e
permeamento deles no caso concreto.

Miguel Reale afirma que os princípios jurídicos são balizas que


regem a actividade legislativa e que norteiam a actividade do intérprete,
nos seguintes termos:

Ao nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas


de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão de
ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para
a elaboração de novas normas. (REALE, 2006, p. 304)

Assim, podemos afirmar que o método teleológico é aquele que


traz a efectivação dos princípios existentes no ordenamento jurídico
voltados à realização de uma vantagem socialmente estabelecida.
Sumário
A actividade do intérprete da norma jurídica, por mais que
possa se dar ad infinitum, posto que assim é o pensamento, lugar
em que acontece a interpretação, não pode ser desvinculada de
mínimos parâmetros que orientem essa actividade.

Dessa forma, deve o intérprete utilizar os métodos de


interpretação da norma jurídica, sejam eles os postos pela
hermenêutica jurídico-clássica, sejam os postos pela moderna
hermenêutica constitucional.

E mais que isso: sua interpretação não se encontra


desvinculada do mundo ao redor, tampouco das pessoas que nele
habitam. A exegese do operador do direito tem consequências
concretas, atingindo a muitos, todos os dias.

Por isso, nessa tarefa o exegeta deve buscar fazê-la de tal


forma que extraia da norma o sentido e alcance que nela foram
postos a fim de buscar a finalidade nela contida.

Exercício 1
1. Que entende por hermenêutica?
2. Qual é o objecto de estudo da Hermenêutica Jurídica?
3. Distinga a doutrina subjectivista da doutrina objectivista no
campo da ciência jurídica.
4. Aborde a necessidade e a importância da Hermenêutica
Jurídico-Clássica.
5. Qual é o impacto do método gramatical na interpretação
jurídica?
6. Comente a seguinte afirmação de Miguel Reale, 2006, p. 304:
Ao nosso ver, princípios gerais de direito são
enunciações normativas de valor genérico, que
condicionam e orientam a compreensão de
ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e
integração, quer para a elaboração de novas normas.

17
1. Define hermenêutica.
Auto-avaliação 2. Que é hermenêutica jurídica?
3. Em que consiste a doutrina objectivista no campo
jurídico?
4. Interprete a doutrina subjectivista na pesrspectiva da
ciência jurídica.
5. Relacione Hermenêutica Jurídica com a Clássica.
6. Qual é a essência do método sistemático?

Unidade 2

Hermenêutica geral e a crítica da razão


histórica
Introdução
Nesta Unidade 2, vamos estudar, no primeiro momento, a
hermenêutica geral, partindo de princípio que a hermenêutica é
um ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação, que
pode referir-se tanto à arte da interpretação, ou à teoria e treino
de interpretação. A hermenêutica tradicional - que inclui
hermenêutica Bíblica – refere-se ao estudo da interpretação de
textos escritos, especialmente nas áreas de literatura, religião e
direito. A hermenêutica moderna, ou contemporânea, engloba
não somente textos escritos, mas também tudo que há no
processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não-verbais de
comunicação, assim como aspectos que afectam a comunicação,
como proposições, pressupostos, o significado e a filosofia da
linguagem, e a semiótica. A hermenêutica filosófica refere-se
principalmente à teoria do conhecimento de Hans-Georg Gadamer
como desenvolvida na sua obra "Verdade e Método" (Wahrheit
und Methode), e algumas vezes a Paul Ricoeur. Consistência
hermenêutica refere-se à análise de textos para explicação
coerente. Uma hermenêutica (singular) refere-se a um método ou
vertente de interpretação.

No segundo momento, o estudo refere-se à crítica da


razão histórica (pura), onde se apresentam a distinção entre
conhecimento puro e empírico, a distinção entre juízos analíticos e
sintéticos, a problematização geral da razão pura e a história da
razão pura ao serviço do Direito.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Conhecer a hermenêutica geral;

 Relacionar a hermenêutica geral com a crítica da razão


histórica.
Objectivos

HG – Hermenêutica Geral;

CRP – Crítica da Razão Prática;

Terminologia CRH – Crítica da Razão Histórica.

19
Hermenêutica geral e a crítica da razão
histórica
Origem do termo
O termo "hermenêutica" provém do verbo grego
"hermēneuein" e significa "declarar", "anunciar", "interpretar",
"esclarecer" e, por último, "traduzir". Significa que alguma coisa é
"tornada compreensível" ou "levada à compreensão".

Alguns defendem que o termo deriva do nome do deus da


mitologia grega Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem os
gregos atribuíam a origem da linguagem e da escrita e
considerado o patrono da comunicação e do entendimento
humano. O certo é que este termo originalmente exprimia a
compreensão e a exposição de uma sentença "dos deuses", a qual
precisa de uma interpretação para ser apreendida correctamente.

Encontra-se desde os séculos XVII e XVIII o uso do termo


no sentido de uma interpretação correcta e objectiva da Bíblia.
Spinoza é um dos precursores da hermenêutica bíblica.

Outros dizem que o termo "hermenêutica" deriva do grego


"ermēneutikē" que significa "ciência", "técnica" que tem por
objecto a interpretação de textos poéticos ou religiosos,
especialmente da Ilíada e da "Odisséia"; "interpretação" do
sentido das palavras dos textos; "teoria", ciência voltada à
interpretação dos signos e de seu valor simbólico.

Hermes é tido como patrono da hermenêutica por ser


considerado patrono da comunicação e do entendimento
humano.
Conceito
Com Friedrich Schleiermacher (1768-1834), no início do século
XIX, a hermenêutica recebe uma reformulação, pela qual ela
definitivamente entra para o âmbito da filosofia. Em seus
projectos de hermenêutica coloca-se uma exigência significativa: a
exigência de se estabelecer uma hermenêutica geral,
compreendida como uma teoria geral da compreensão. A
hermenêutica geral deveria ser capaz de estabelecer os princípios
gerais de toda e qualquer compreensão e interpretação de
manifestações linguísticas. Onde houvesse linguagem, ali aplicar-
se-ia sempre a interpretação. E tudo o que é objecto da
compreensão é linguagem (Hermeneutik, 56). Esta afirmação,
entretanto, mostra todas as suas implicações quando se lhe
justapõe esta outra tese de Schleiermacher: “A linguagem é o
modo do pensamento se tornar efectivo. Pois, não há pensamento
sem discurso. (...) Ninguém pode pensar sem
palavras.”(Hermeneutik und Kritik, 77)

Ao postular a “unidade de pensamento e linguagem”(ibidem),


a tarefa da hermenêutica torna-se universal e abarca a totalidade
do que importa ao humano. A hermenêutica, então, é uma análise
da compreensão “a partir da natureza da linguagem e das
condições basilares da relação entre o falante e o ouvinte”
(Akademienrede, 156). Quatro distinções básicas foram
estabelecidas por Scheleiermacher. Primeiro, a distinção entre
compreensão gramatical, a partir do conhecimento da totalidade
da língua do texto ou discurso, e a compreensão técnica ou
psicológica, a partir do conhecimento da totalidade da intenção e
dos objectivos do autor. Segundo, a distinção entre compreensão
divinatória e comparativa:

21
 Compreensão comparativa: Apoia-se numa multiplicidade
de conhecimentos objectivos, gramaticais e históricos,
deduzindo o sentido a partir do enunciado.
 Compreensão divinatória: Significa uma espécie de
adivinha imediata ou apreensão imediata do sentido de um
texto.

Essas distinções apontam para aspectos da compreensão


superior que se dá pela sua integração. Posteriormente, com os
trabalhos de Droysen e Dilthey, o procedimento hermenêutico
tornou-se a metodologia das ciências humanas. Os eventos da
natureza devem ser explicados, mas a história, os eventos
históricos, os valores e a cultura devem ser compreendidos.
(Wilhelm Dilthey é primeiro a formular a dualidade de "ciências da
natureza e ciências do espírito", que se distinguem por meio de
um método analítico esclarecedor e um procedimento de
compreensão descritiva.) Compreensão é apreensão de um
sentido, e sentido é o que se apresenta à compreensão como
conteúdo. Só podemos determinar a compreensão pelo sentido e
o sentido apenas pela compreensão. Heidegger, em sua análise da
compreensão, diz que toda compreensão apresenta uma
"estrutura circular". "Toda interpretação, para produzir
compreensão, deve já ter compreendido o que vai interpretar". O
cerne da teoria de Heidegger está, todavia, na ontologização da
compreensão e da interpretação como aspectos do ser do ente
que compreende o ser, o "Dasein".
Estruturas básicas da
compreensão
 Estrutura de horizonte: o conteúdo singular é apreendido a
partir da totalidade de um contexto de sentido, que é pré-
apreendido e co-apreendido.
 Estrutura circular: A compreensão acontece a partir de um
movimento de ir e vir entre pré-compreensão e
compreensão da coisa, como um acontecimento que
progride em forma de espiral, na medida em que um
elemento pressupõe outro e ao mesmo tempo faz com que
se possa ir adiante.
 Estrutura de diálogo: A compreensão sempre é apreensão
do estranho e está aberta à modificação das
pressuposições iniciais diante da diferença produzida pelo
outro (o texto, o interlocutor).
 Estrutura de mediação: A compreensão visa um dado que
se dá por si mesmo, mas a sua apreensão faz-se pela
mediação da tradição e da linguagem.

Os costumes, cultura e etnias são alguns dos aspectos


fundamentais para se ter uma legítima interpretação do texto.

Explicação e compreensão
Segundo Wilhelm Dilthey, estes dois métodos estariam opostos
entre si: explicação (próprio das ciências naturais) e compreensão
(próprio das ciências do espírito ou ciências humanas):

"Esclarecemos por meio de processos intelectuais, mas


compreendemos pela cooperação de todas as forças
sentimentais na apreensão, pelo mergulhar das forças
sentimentais no objecto."

23
Paul Ricoeur visa superar esta dicotomia. Para ele,
compreender um texto é encadear um novo discurso no discurso
do texto. Isto supõe que o texto seja aberto. Ler é apropriar-se do
sentido do texto. De um lado não há reflexão sem meditação
sobre os signos; do outro, não há explicação sem a compreensão
do mundo e de si mesmo.

Crítica da Razão Pura


A Crítica da Razão Pura (em alemão, Kritik der reinen
Vernunft) é a principal obra de teoria do conhecimento do filósofo
Immanuel Kant, cuja primeira edição (A) é de 1781, e a segunda
(B), com alterações substanciais feitas pelo autor em
determinadas secções, de 1787. A obra é considerada como um
dos mais influentes trabalhos na história da filosofia, e dá início ao
chamado idealismo alemão. Kant escreveu a CRP como a primeira
de três "Críticas", seguida pela Crítica da Razão Prática (1788) e a
Crítica do Juízo (1790). No prefácio à primeira edição Kant explicita
o que ele quer dizer por crítica da razão pura: "Eu entendo aqui,
contudo, não uma crítica dos livros e sistemas, mas sim da
faculdade da razão em geral, com vistas a todos os conhecimentos
que ela pode tentar atingir independentemente de toda a
experiência" (A XII).

Neste livro Kant tenta responder a primeira das três


questões fundamentais da filosofia: "Que podemos saber? Que
devemos fazer? Que nos é lícito esperar?"

Ele distingue duas formas de saber: O conhecimento


empírico, que tem a ver com as percepções dos sentidos, isto é,
posteriores à experiência. E o conhecimento puro, aquele que não
depende dos sentidos, independente da experiência, ou seja, a
priori, universal, e necessário. O conhecimento verdadeiro só é
possível pela conjunção entre matéria, proveniente dos sentidos,
e forma, que são as categorias do entendimento.

No começo do livro, Kant esclarece a diferença,


fundamental para seu sistema, entre os "juízos sintéticos" e
"juízos analíticos", sendo o primeiro aquele que, através da junção
de informações distintas chega a uma nova informação. O
segundo refere-se à dividir um mesmo objecto nos seus
constituintes, de modo que suas partes se tornem mais claras,
mas que nada mais surja, a não ser aquilo que previamente já
estava contido no próprio objecto. Com relação aos "juízos
sintéticos" e "analíticos" a posteriori Kant não coloca qualquer
problema. Mas afirma que os pensamentos filosóficos correntes
se utilizavam de "juízos analíticos" a priori, isto é, apenas andavam
em círculos sobre algum conhecimento, reproduzindo-o com
palavras diferentes, chegando a conclusões que em nada diferiam
daquilo que já estava contido no primeiro pensamento, sem
produzir, assim, qualquer novo conhecimento a respeito das
questões sobre as quais eram formuladas. Porém o que chamou a
atenção de Kant foi a possibilidade de juízos a priori na
matemática e na física proporcionarem conhecimento novo,
diferente dos sofismas redundantes filosóficos. Assim, Kant
percebeu que estas duas ciências eram capazes de elaborar "juízos
sintéticos" a priori, por tratarem justamente das leis que regem o
conhecimento, dispensando, assim, qualquer experiência para
validar seus achados. A partir daí Kant pergunta-se se é possível
realizar também juízos sintéticos a priori na metafísica, que estava
enfraquecida pela obscuridão dos idealistas e praticamente
destruída pela perspicácia dos empiristas.

Kant principia sua reflexão crítica já na dissertação de


1770, mas, após 11 anos de silêncio bibliográfico, ele lança a

25
Crítica da Razão Pura, contendo uma reflexão sobre a
possibilidade de todo conhecimento, dando uma resposta aos
empiristas, especialmente David Hume, que foi uma de suas
inspirações (Kant disse "Hume acordou-me dos meus sonhos
dogmáticos"), e aos racionalistas alemães, Leibniz e Wolff.

Kant aceita a premissa de que todo conhecimento humano


começa a partir da experiência, mas destaca que os empiristas,
particularmente Locke, negligenciaram o papel da actividade do
entendimento para a origem do conhecimento.

Assim, Kant mostra ao longo de sua crítica quais são as


condições para qualquer experiência possível, na "Estética
Transcendental", analisando quais são as condições a priori para
que um dado fenômeno possa ser dado na intuição, chegando às
condições de "espaço", para as intuições externas, e "espaço" e
"tempo" para as intuições internas.

Após a Estética, Kant prossegue para a análise da forma


pela qual aquilo que é dado na experiência é organizado em
relações que constituem conhecimento. Estas são as categorias do
entendimento, determinadas pela razão pura e que, sendo
preenchidas pela matéria proveniente da experiência podem
formar um conhecimento. Ambas as análises são feitas na
chamada "Analítica Transcendental".

Em seguida ele parte para a "Dialética Transcendental",


parte do livro na qual ele usa esse pensamento elaborado na
analítica para mostrar erros de raciocínio impregnados no modo
de pensar filosófico de então.
Sumário
Em síntese:
A hermenêutica geral deveria ser capaz de estabelecer os
princípios gerais de toda e qualquer compreensão e interpretação
de manifestações linguísticas. Onde houvesse linguagem, ali
aplicar-se-ia sempre a interpretação. Ainda, a HG prende-se com a
compreensão, obviamente, e a explicação do conhecimento
jurídico.

Em todas as ciências teóricas da razão estão contidos,


como princípios, juízos sintéticos a priori e a posteriori. O Direito
precisa de uma ciência que determine a possibilidade, os
princípios e o âmbito de todo conhecimento a priori e a posteriori.
A crítica da razão histórica serve como fio condutor para a
descoberta de todos os conceitos puros do entendimento,
compreensão e explicação de termos jurídicos.

Exercício 2
1. Que entende por hermenêutica geral?
2. “A linguagem é o modo do pensamento se tornar efectivo. Pois,
não há pensamento sem discurso. (...) Ninguém pode pensar sem
palavras.”(Hermeneutik und Kritik, 77)

a. Comente a tese de Schleiermacher, no contexto


hermenêutico.
3. Distinga, com exemplos práticos, a compreensão divinatória da
comparativa.
4. "Toda interpretação, para produzir compreensão, deve já ter
compreendido o que vai interpretar".
a. Aborde o cerne da teoria de Heidegger.
5. Debruce-se sobre as estruturas básicas da compreensão,
fundamentando com casos práticos.
6. Estabelece uma diferença entre explicação e compreensão.

27
7. Relacione a hermenêutica geral da crítica da razão histórica.

1. Define hermenêutica geral.


Auto-avaliação 2. Aborde a tese de Schleiermacher, no contexto
hermenêutico.
3. Que entendes por compreensão divinatória?
4. Examine o cerne da teoria de Heidegger, no plano
hermenêutico.
5. Quais são as estruturas básicas da compreensão?
6. Em que consiste uma explicação jurídica?

7. Critique historicamente a hermenêutica geral.


Unidade 3

A teoria hermenêutica em Betti


Introdução
Nesta terceira unidade, vamos analisar a teoria
hermenêutica em Betti. A hermenêutica jurídica é uma actividade
intelectual voltada para a interpretação e aplicação do Direito.
Assim, ela dá-se em dois momentos: 1) no momento
intelectual puro do entendimento acerca do fenómeno jurídico;
2) no momento da concrectização da decisão judicial. O fenómeno
jurídico; considerado nos seus três elementos: facto, valor e
norma; é complexo. Por isso pretende-se na presente
unidade analisar a hermenêutica jurídica diante do aspecto
normativo do Direito. Sendo assim, o desenvolvimento do estudo
dá-se no tocante à interpretação da norma jurídica. A relação
estabelecida entre o intérprete, concebido como o sujeito, e a
norma jurídica, concebida como objecto funda o presente estudo.

Nessa relação dialéctica entre sujeito e objecto


(ontognoseologia), temos o conflito entre a subjectividade do
intérprete e a objectividade da norma jurídica, o que
implica dois questionamentos: um sobre a existência da
objectividade na interpretação do Direito; outro, saber se o
sentido extraído e fixado do ordenamento jurídico fica, ou não, ao
arbítrio do intérprete. Partindo deste problema, temos a hipótese
de que deve haver, no Direito, uma objectividade no momento da
interpretação e aplicação da norma jurídica. Adoptaram-se, como
teoria, os cânones hermenêuticos da teoria de Emilio Betti, que
visam balizar a actividade interpretativa. Esses cânones possuem
duas funções: a de consagrar uma relativa autonomia do objecto,

29
o que limita a actividade do hermeneuta e a de r eco nh ec er
qu e as c ondiç õe s de possibilidade do c onhe cime nt o
e st ão n o hermeneuta, devendo este actualizar e adequar o
sentido da norma jurídica. Logo, o presente estudo situa-se
no campo teórico da teoria hermenêutica, entendida como
uma epistemologia do acto de interpretação e relaciona-se, ainda,
com a teoria do conhecimento. Pro põe -se, então,
e st abe le ce r limite s a o a cto d e interpret ação do
D ire ito pro cu ra ndo, assim, a construção de um conceito de
objectividade à luz da teoria de Emilio Betti.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Analisar a teoria hermenêutica jurídica em Betti;


 Enquadrar a hermenêutica no entendimento e na
Objectivos
concretização jurídicas;
 Analisar a hermenêutica jurídica diante do aspecto
normativo do Direito;
 P ropo r a construção de um conceito de objectividade
à luz da teoria de Emilio Betti.

THB - Teoria Hermenêutica em Betti

OR - Objectividade Real

Terminologia OI - Objectividade Ideal


A teoria hermenêutica de Emílio Betti e a
objectividade da hermenêutica jurídica
A convivência humana pressupõe uma base de
entendimento entre as pessoas. Só haverá possibilidade de viver
em sociedade se os homens entrarem em acordo sobre certas
questões. Tal acordo pressupõe um processo de comunicação
eficaz no sentido de estabelecer um consenso sobre os sentidos
das coisas numa determinada sociedade. Bleicher (1992, p. 80) diz
que “Não é mais importante para o homem do que viver em
compreensão mútua com os seus semelhantes”. Essa
compreensão mútua implica um conceito ou uma ideia de
objectividade a respeito do acordo estabelecido pelos homens.
Por outro lado, a construção de um conceito de
objectividade pressupõe uma limitação do intérprete
quando da actividade hermenêutica realizada frente à
norma jurídica. O intérprete do Direito não pode extrair de ou
atribuir qualquer sentido que queira a determinada norma ou a
um ordenamento. Como é de conhecimento daqueles que
estudam as ciências sociais, estas não apresentam um carácter de
exactidão como o das ciências naturais conforme já salientado por
Reale (1992, p. 242): “É essa a razão pela qual a objectividade, no
acto interpretativo, não é comparável à objectividade existente,
por exemplo, nos domínios das ciências naturais e explicativas”.
Deve, assim, haver uma ideia de objectividade que permita o
mínimo de segurança para o estudioso do Direito executar sua
tarefa hermenêutica. Em se tratando de ciência do Direito à
necessidade da construção do conceito de objectividade torna-se
tarefa fundamental quando pensamos no princípio da segurança
jurídica que norteia as condutas do homem na sociedade. Há, assim,
a necessidade de verificar quais os limites, ou, como diz Pontes

31
de Miranda (2005), qual a elasticidade da interpretação
jurídica, em e spe cial da interpret ação da n orma
jurídica. No d esen volviment o de sua teo ria
tridimensional, Reale (2003, p. 127) já ressaltava a limitação do
intérprete frente à norma jurídica,

Mas a norma não é também uma coisa assim, que se puxe


para lá e para cá. Pontes de Miranda dizia, sabiamente, que a
norma jurídica tem certa elasticidade. A norma é elástica. Mas
chega um certo momento em que a elasticidade não resiste e a
norma rompe-se. Logo, as variações na interpretação da norma
devem ser compatíveis com sua elasticidade. Pois bem,
quando uma norma deixa de corresponder às necessidades da
vida, ela deve ser revogada, para nova solução normativa
adequada, o que nos revela a riqueza das soluções que a vida
jurídica apresenta. Na construção de uma ideia de objectividade
do acto de interpretação, socorremo-nos em Betti (1990a, p. 01)
já na introdução de sua obra quando lecciona: §I – Então,
quando se considera a posição que o espírito – um
espírito vivente e pensante, sujeito de consciência
e d e autoconsciência – pode assumir com respeito à
objectividade, é necessário distinguir entre a)
objectividade real (OR), que constitui o dado fenomênico da
experiência, nesta buscável e realmente encontrado, e b)
objectividade ideal (OI), que constitui o pressuposto da
experiência, ou seja, conjunto daquela que, de acordo com Kant,
podem ser chamadas as “condições de sua possibilidade”.

A OR dá-se quando o intérprete (que é um espírito vivente


e pensante) dirige sua conduta a uma situação de facto,
ou seja, pratica uma actividade prática num processo
teleológico da acção.
Por sua vez, a OI é o pressuposto da experiência que nos é
legada à consciência por nexo íntimo e profundo da razão da
atitude da consciência. Nos dizeres de Bleicher (1992, p. 48),
“Todavia, a objectividade ideal dos valores espirituais só pode ser
entendida através da “objectividade real” dos objectos palpáveis.”

A questão ora proposta sobre a objectividade, remete-nos,


invariavelmente, à axiologia jurídica. Identificar um grau de
objectividade, seja ela ideal ou real, na norma ou no ordenamento
jurídico é, de certa forma, elucidar qual o valor encerrado naquela
proposição normativa.

Dentre as formas de objectivação, de que o homem vale-se


para protecção dos bens que já objectivou e dos bens que pode ou
deve objectivar – e que é necessário realizar, não só do ponto de
vista utilitário e pragmático, mas também para fins éticos
ou estéticos desligados de qualquer aplicação prática
imediata, obedecendo apenas às exigências espirituais da beleza
e da harmonia -, está o Direito, graças ao qual se procura superar
as particularizações conflitantes das acções humanas. O Direito
é, assim, uma forma de objectivação dos valores dentro
de uma certa sociedade. Só é possível, então, pensarmos numa
teoria de valores dentro de uma concepção histórica, isto é, só há
valores que determinam ou orientam as condutas na sociedade
revelados pela e na história. Voltando ao conceito de OR, Betti
(1990a) fundamenta-o num processo teleológico que tem por escopo
transformar o real segundo certo fins, isto é, trata-se de uma acção
prática realizada mediante uma certa finalidade. Se tal actividade
prática possui características de eticidade, ela torna-se o meio pelo qual
a OI actua.

Ora, eticidade é entendida por Betti (1990a) como uma


acção que está a serviço de um superior ideal e que só por seu
ministério pode actuar-se. A eticidade é, portanto, a conduta

33
prática praticada no intuito de realizar uma finalidade ou um
valor.

A resposta de carácter prático que o espírito dá a uma


determinada situação de facto, no mundo real, consiste,
portanto, num processo teleológico da acção (prática),
pelo qual o espírito reage a uma situação real (BETTI, 1990a). A
determinação da ideia de OI, na própria opinião de Betti, é mais
dificultosa do que a determinação da OR. Pensando na ideia de OI,
como condição de possibilidade da OR, Betti tenta
elaborar seu conceito através da construção de uma axiologia
jurídica. Questionando de que modo podemos determinar, a
priori , e quais são as intuições sensíveis, sem as procurar na
natureza, Betti (1990a, p. 06) concluiu que as categorias que
determinam a OI são estabelecidas pela “razão pura”.

Se a teoria de Betti pretende dar uma objectividade para a


hermenêutica jurídica, ela não pode ficar totalmente condicionada
à subjectividade do intérprete do Direito. Ao mesmo t emp o em
qu e t enta e stabele ce r u ma fund amentação valo rat iva
p ara a objetividade, Betti preocupa-se em afastar-se da
arbitrariedade subjectiva que possa viciar o processo de
interpretação e arruinar sua construção teórica. O dilema
estabelecido acima e, até então insuperável, é resolvido com a
ajuda do pensamento de Nicolai Hartmann, ao perceber que o a
priori do conhecimento não se identifica totalmente com
algo que tenha origem na razão pura ou no sujeito
pensante.

É assim óbvio constatar que as categorias lógicas, como os


valores éticos, não são um dado existente que
p o d e s e r encontrado na natureza, mesmo o critério de
juízos ou de valorações da conduta. Mas daí negá-los, além da
objectividade fenonêmica, ainda que uma objectividade de ordem
ideal, ocorre uma falha. É esse salto lógico que caracteriza
a orientação denominada “subjectivismo” e que se refere ao
esquema (de p e n s a m e n t o ) k a n t i a n o d o p r o b l e m a , a o
p s i c o l o g i s m o d o s sentidos de D. Hume.

Os conceitos de objectividade são, assim, correlacionados


com as ideias de valores que não dependam somente do sujeito,
isto é, valores que são concebidos por u m a d e t e r m i n a d a
comunidade e que, por isso, apresentam uma
o b j e c t i v i d a d e fenomenológica. Tal assertiva, feita por Betti
(1990a, p. 11), é embasada no pensamento de Hartmann.

Hartmann, passando da crítica da posição


subjectivística a uma construção positiva a ser a ela
contraposta, postula – além da realidade fenomênica e da
consciência do sujeito pensante – um cosmo de valores: cosmo ou
esfera ideal não perceptível, mas somente inteligível (pela
intuição) que se eleva acima das concatenações ontológicas e
torna-se percebível no fenómeno do gosto ético.

Esta construção valorativa leva-nos à ideia de que


os valores são, portanto, objectivos. Mas sua objectividade só
é captada pelo homem num determinado momento histórico
responsável pela maturação daqueles valores. A objectividade
depende, assim, de ser cristalizada através da história, que
é o local privilegiado para a concepção dos valores que
conduzem a vida social do homem. Nesse sentido, Lima Vaz (1997,
p. 116) ensina que “Como gestação de valores, a história é,
igualmente, um longo e trabalhoso processo de hierarquização
dos valores, constituindo o lado normativo da cultura, ou
que designamos como seu ethos”.

35
A cristalização desses valores pelas normas jurídicas faz com
que haja uma dialéctica necessária entre o intérprete (do ponto de vista
de sua espiritualidade subjectiva) e a norma (vista como a
condensação dos valores sociais).

Em estudo referente ao carácter axiológico do Direito,


Afonso (1999, p. 49) avalia o posicionamento de Kelsen da
seguinte forma: “Os valores ocuparam muito das reflexões de
Kelsen, que deixou suas concepções referentes a eles em várias
passagens da Teoria Pura do Direito, da Teoria Geral do Direito e
do Estado, da Teoria Geral das Normas, de A Justiça e o Direito
Natural, de A Democracia, de A ilusão da Justiça, de O que é
Justiça? Kelsen percebe claramente que onde há normas há
valores. Há, em seu pensamento, uma íntima relação entre
normas e valores. Toda norma é expressão de um valor, diz ele, um
valor moral, se se trata da norma moral, e um valor jurídico, se se
trata da norma jurídica. “Norma e valor” – afirma – “são conceitos
correlativos”. De acordo com essa lição, para Kelsen os valores, por
si só, são relativos e subjectivos. Somente se revestem de
objectividade quando instituídos pela norma. É a norma que
constituiu o valor e, fora da norma, os valores permanecem no
plano da subjectividade.”

É a razão pela qual há sempre dois aspectos


complementares – um subjectivo, e outro objectivo – em toda
realidade jurídica, assim como em todo valor que se refira
especificamente à experiência jurídica, como se pode ver
apreciando os conceitos fundamentais de segurança, certeza,
ordem ou justiça.

Analisando o processo de conhecimento triádico de Betti,


percebemos que a relação subjectivo-intérprete/objectivo-norma,
na verdade, corresponde à relação subjectivo-
intérprete/subjectivo-autor da norma, ou seja, há uma relação
entre dois sujeitos, mediada pela forma representativa. Dentro
do processo de conhecimento surge, então, uma relação
dialética entre o cânone da autonomia do objecto e o cânone
da actualidade hermenêutica. Essa relação d ialét ica
e st abe le ce - se d iant e da antin omia ent re a
subje ctividad e ine vit ável e a objectividade necessária ao
processo de conhecimento. Tal relação dialéctica só pode ser
compreendida dentro da história que será capaz de revelar os
valores objectivados, sendo, portanto, responsável pela interacção
entre subjectividade e objectividade.

Daí ser fundamental no historicismo


a x i o l ó g i c o a complementariedade dialética entre
subjectividade, como fonte ine xaurível d e valo re s, e a
ob je ct ivid ade , como ine xaurível possibilidade de
determinações da experiência, cabendo ao Direito não só
salvaguardar e tutelar os bens já adquiridos, como, acima de
tudo, preservar e garantir o homem mesmo como livre
criador de novos bens, em quaisquer que possam ser os
ordenamentos políticos-jurídicos da convivência social.
Inicialmente, a objectividade poderia ser pensada da seguinte
forma: deixar que a s co isas falem po r si me smas. Assim,
o su je ito f icaria alijado d o pro ce sso de c o n h e c i m e n t o
subordinando-se totalmente ao objecto. Tal
p r o p o s t a d e i d e a l d e objectividade é rejeitada por Betti
por desconsiderar a “revolução copernica kantiana”deixando,
assim, o sujeito da actividade hermenêutica completamente
isolado do processo de conhecimento. Ora, se para Kant é o
sujeito que fica parado com os objectos circulando ao seu redor,
ele é parte essencial do processo de conhecimento
(PESSOA,2002).

37
Ligando a ideia de objectividade à ideia de axiologia
jurídica percebemos que esta concepção de objectividade
relaciona-se com o estabelecimento de um acordo sobre algo.

Pode-se perceber uma influência do pensamento


dialéctico de Hegel na obra de Betti nos seguintes trechos:
Betti (1990a, p. 18), (1990a, p. 147) e, especialmente, no artigo
intitulado “Per una traduzione italiana della fenomenologiae della
lógica di Hegel” em Betti (1991). Sobre a relação entre Betti e
Hegel ver também: Salgado, Ricardo (2004,p. 110).

A objectividade pode ser pensada da seguinte forma: uma


música, que possui uma melodia, harmonia e ritmo próprios, pode
ser executada por diversos músicos. Isto significa dizer que pode
haver algumas interpretações possíveis para a versão original.
Entretanto, todas essas interpretações, quando forem executadas,
deverão permitir ao ouvinte a imediata identificação da música
original que é valorada entre as pessoas participantes de um
processo de comunicação (ADEODATO, 2002).

Para o processo de interpretação ser possível é


necessário que se tenha uma “objectivação”, que é o
pressuposto da compreensão. A objectividade do significado
lin gu íst ico é assegurada na medida em que as
representaçõe s que faze m d ois interlocutores são
correspondentes.

Referindo-se à filosofia da linguagem de Humboldt e de


Saussure, Betti faz a distinção entre discurso e fala. Considera a
linguagem como um sistema de formas de sentido com uma
estrutura autónoma e independente da capacidade linguística do
falante. Todavia, dentro de uma perspectiva evolutiva, adoptada
pela teoria bettiana, a linguagem possui a capacidade de se
transformar num discurso vivo.
Com o auxílio da distinção de Husserl entre efectividade e
objectividade, a sua relação pode ser concebida, em termos
dialéticticos, como a resultante entre actividade do sujeito guiado
pelo significado das intenções e o significado inerente ao objecto,
ou forma: “se considerarmos o acto da fala como uma actividade
mediadora, então a totalidade da linguagem surge como a
realidade viva da formulação linguística de
e x p e r i ê n c i a s inte riore s. P or conse guinte, a linguagem
c onc re tiz a- se no discurso como pensamento e tomada de
posições e o discurso transforma a linguagem numa presença
viva” (p11). A compreensão acontece mediante a conjunção de
dois factores: uma comunidade de falantes (speech community ) e
um universo de discurso. Discurso e compreensão serão
possíveis, portanto, num contexto de comunicação do qual as
pessoas participem co mp art ilh ando os e le mento s
e ssen ciais da linguage m d e fo rma a iden tif icar o
significado pretendido e o significado percebido. Sendo o
valor algo construído pela comunidade, o mesmo só é
percebido ou in tuíd o (me diata ou ime diatamente ) p ela
me sma po r inte rméd io do pro cesso de comunicação
entre seus membros. É assim, justamente, a noção de
“comunidade de falantes” que, para Betti, fundamentará a
objectividade do significado (PESSÔA, 2002). Ela é que possibilitará
o conhecimento das formas representativas, tendo em vista
que o significado delas será o b je ctivame nte con struíd o a
p art ir de um con sen so ent re os p art icipant es de ta l
comunidade, segundo Silva (2000, p. 167).

Para Bleicher (1992, p. 53) esta noção de comunidade


de falantes faz com que a teoria de Betti possua um carácter
idealista: “Entretanto, Betti serve-se desta noção, que atribui
a uma concepção idealista, para refutar a perspectiva

39
materialista que incide sobre as semelhanças exteriores das
individualizações da mente.” Com base kantiana, observa-se
que na realização do processo d o en tend er, a co nsciên cia
co mo o processo sinté tico da categoria a priori é
estritamente vinculada à comunicabilidade ind ividual, p oré m,
o pro cesso d o ent end er se efe ct iva pe la universalidade
da comunicação, a qual implica numa noção de espírito (auto-
consciência) que transcende tanto o objecto quanto os sujeitos
individuais comunicáveis entre si. A comunicação entre os
homens estabelece-se pela fala. Se considerarmos o acto da fala
como uma actividade mediadora, a totalidade da linguagem surge
como uma realidade viva na formulação linguística de
experiências interiores. Nesse sentido, a linguagem concretiza-
se no discurso como pensamento e tomada de posições. Por s u a
vez o discurso transforma a linguagem em presença
v i v a d e n t r o d e u m a comunidade. Partindo das considerações
acima, podemos concluir que o discurso e a compreensão, para
Betti, só são possíveis num contexto de comunicação em que
dois sujeitos participam em igualdade de condições, para que
o pretendido e o percebido possam ser quase coincidentes.
Assim, forma-se a ideia de comunidade de falantes que
permitirá, na teoria de Betti, alcançar a formulação do conceito de
objectividade. As formas representativas são-nos legadas por
meio físico, sem o qual não seriam perceptíveis pelos sentidos.
Todavia, essas formas transcendem seu meio físico enquanto
são reconhecíveis como uma estrutura de um valor. Esse
reconhecimento dá-se por uma outra génese que é capaz de
reconhecer o cosmo de valor daquele espírito objectivado na
forma (BETTI, 1990a).

Uma ideia sobre objectividade forte e moderada


A questão da objectividade sempre esteve correlacionada
com a ideia de ciência. A busca por um conceito de objectividade
relaciona-se com a necessidade humana de dar ao conhecimento
um grau de clareza e segurança no seu desenvolvimento. Essa
é a lição de Reale (2002b, p.189) “Só há ciência onde há
objectivação”, ou seja, realidades independentes da pessoa
do observador, e irredutíveis à sua subjectividade. Daí poder
dizer-se que “objectivo” e “positivo” são termos que se implicam.”

Em estudo sobre positivismo jurídico, Bobbio (1995) admite três


versões para enfocar a teoria positivista: o positivismo pode
ser um método para o estudo do Direito, o positivismo pode
ser uma teoria do Direito e, por fim, o positivismo pode ser uma
ideologia do Direito. Quanto ao positivismo como ideologia do
Direito, Bobbio (1995) prevê duas versões (ou graus de
intensidade), a saber, positivismo forte (extremista) ou fraca
(moderada). Nesse aspecto, podemos fazer, um paralelo
entre a teoria do Direito Positivo, apresentada por Bobbio,
com a construção de uma determinada objectividade na
interpretação. Tal paralelo será traçado do ponto de vista
formal, isto é, aproveitar-se-á a estrutura do pensamento
positivista bobbiano no tocante ao pensamento objetivista
bettiano.

Tanto o positivismo jurídico, visto como ideologia,


quanto à interpretação do Direito realçam o aspecto valorativo
do fenómeno jurídico. Ao propor um positivismo forte e um
moderado, Bobbio reconhece haver possibilidades distintas
de enfrentar os p roblemas t eórico s do D ire ito . Sendo
assim, Bobb io (1995 ) ad opta o po sit ivismo ideológico
moderado em tempos de normalidade, ou seja, reconhece que o
ordenamento jurídico positivo possui valores que podem ser
opostos ao próprio Estado, evitando, dessa forma, a

41
configuração de um totalitarismo.Entendemos que a
estrutura do pensamento positivista de Bobbio, com relação
a positivismo forte ou moderado enquanto ideologia pode ser
utilizada para construir um conceito de objectividade.
Acreditamos, assim, que o conceito de objectividade pode ser
entendido de várias formas, dentre elas, uma forte e uma
moderada. Se pensarmos que o Direito se estrutura por meio
da racionalização normativa de determinados valores, e que a
interpretação jurídica tem por objecto a proposição jurídica que
representa algum valor, podemos afirmar que a hermenêutica
jurídica busca, através da interpretação, o sentido de um
valor. A teoria dos valores, então, será de muita utilidade para o
desenvolvimento da ideia de objectividade. O próprio Betti,
detentor de um carácter humanista, explicitado na sua obra,
correlacionava a ideia de objectividade à ideia de valor jurídico. Na
relação entre objectividade e valores deve levar-se em
consideração a historicidade do homem. A objectividade dos
valores não pode ser pensada distante do tempo e da história,
porém, deve ser vinculada ao espírito vivente e pensante por
uma unidade por razão de que a consciência guia a conduta
deste por uma própria lei de autonomia conforme a experiência
do mundo objectivo que se encontra diante dele. A
interpretação, como processo de compreensão, não é algo de
belo-facto, tendo em vista que necessita da inteligência para uma
interior elaboração reconstrutiva do valor objectivado na forma
significativa. Tal reconstrução encontra, na linguagem, a
instrumentalização necessária para o estabelecimento de uma
correlação e uma correspondência entre a forma
representativa e o desenvolvimento do pensamento (BETTI,
1990a).
No plano da História, os valores possuem
objectividade, porque, por mais que o homem atinja resultados
e realize obras de ciência ou de arte, de bem e de beleza, jamais
tais obras c h e g a r ã o a e x a u r i r a p o s s i b i l i d a d e
dos valores, que representam sempre uma abertura
para novas determinações d o gênio inventivo e
criador. Trata-se, porém, de u m a objetividade
relativa, sob o prisma ontológico, pois os valores não existem em
si e de per si, mas em relação aos homens, com referência a um
sujeito.

Aqui propomos a concepção de uma ideia de


objectividade nos moldes da teoria po sitivist a de Bobb io:
uma c onc e pç ão de objectividade forte e uma
mode rada . A objectividade forte seria marcada pela
corrente da teoria do conhecimento denominada
“objetivismo”, nos moldes propostos por Hessen (2002, p. 70).
Reale (2002a) reconhece essa corrente como “realismo” em que a
orientação ou atitude do sujeito intérprete (espírito) curva-se
diante da eminência do objecto na afirmação de que “nós
conhecemos coisas”. Afastamos a ideia de objectividade forte por
dois motivos: 1) porque segundo o objectivista metafísico forte
o que é verdade a respeito do mundo nunca depende do que
os humanos consideram ser (mesmo em condições
epistêmicas - ideias); 2) porque segundo objectivista
semântico forte, o significado de uma sentença nunca
depende doque algum falante ou comunidade de falantes
considera ser.

Betti (1990a), em oposição à corrente do


“subjectivismo”, denomina a doutrina de “objectivismo forte” a
posição “platônica”. A orientação objectivista forte está em
desacordo com nosso propósito de pesquisa e, também, com o

43
marco teórico adoptado. No Direito não é possível
estabelecer uma prioridade do objecto (norma) sobre o sujeito
(intérprete). Mesmo porque a norma está impregnada de
valores que são considerados em função do sujeito
defende Afonso (1999, p. 60)

A relação entre normas e valores é uma relação sui generis,


em que não há reciprocidade.Os valores não se esgotam nas
normas e a vivência deles não pressupõe a experiência
normativa. Eles atingem o campo das normas, mas estendem-
se muito além dele e depositam-se também onde elas não
alcançam. A passagem acima demonstra a inadequação de uma
concepção de objectividade forte, tendo em vista que a norma
traz uma carga de sentido constituída por reflexos dos
valores dos homens na sociedade. Sendo os valores humanos
algo mutáveis ao longo d a Histó ria, o D ireito como
cristaliz ação de t ais valores, apresenta -se, também ,
suscetível a mudanças. Por outro lado, poderíamos adoptar
uma ideia de objectividade moderada. Tal ideia surge não da
análise do objecto isolado, mas a partir da análise das
condições de conhecimento tanto do objecto quanto o
sujeito. Reale (2002a, p. 108-110) denomina tal
posicionamento de criticismo ontognoseológico.

O criticismo não se reduz, no entanto, apenas à


condicionalidade lógico-formal de Kant. No movimento criticista,
lato sensu, podemos incluir doutrinas de nossos dias, ligadas
especialmente aos nomes de Edmund Husserl, Max Scheler e
Nicolai Hartmann, que re conhe ce m ele mento s de ve rdade
no kantismo , mas repudiam seu formalismo, acentuando o
valor próprio do “objecto”e a existência de outras
condicionantes no acto de conhecer.
Existe na obra desses grandes mestres uma
revalorização do objecto, parecendo-nos decisiva a análise
minuciosa do acto de conh e cer po r e le s p ro ce ssad a,
e mbo ra d ivirjamo s de su as conclusões em pontos que nos
parecem fundamentais. Levando em consideração que o
fenómeno jurídico concretiza-se pela tríade facto-valor-norma,
não podemos olvidar que a interpretação de tal fenómeno deva
passar, necessariamente, pela análise do objecto material que
ele exterioriza. D e aco rdo com no ssa prop osta in icial,
bu scamo s uma interpret ação do fenómeno jurídico que
prime por um conceito de objectividade. Abandonando a
concepção de objectividade forte, acima explanada, e partindo da
norma jurídica como objecto do conhecimento do intérprete,
chegamos, então, à concepção de objectividade moderada.
Essa objectividade moderada traz consigo uma concepção
realista do Direito, como diz Reale (2002a, p. 128).

O Dire ito , como tod a ciê ncia po sit iva, imp lica
u ma at itude realista, enquanto analisa factos do
comportamento humano e até mesmo enquanto estuda
normas, que são apreciadas pela Dogmática Jurídica com um “já
dado”, algo posto senão imposto à interpretação e à
sistematização do jurista como tal. Tal concepção leva em
consideração a forma significativa na qual a norma está
exteriorizada (objectividade real), bem como os valores que tal
norma abriga (objectividade ideal). Desta forma, a
objectividade que Betti propõe na sua obra leva em
consideraçãoo carácter gnoseológico, no qual se encontra a
possibilidade do conhecimento, mas parte de um carácter ôntico a
priori que implica em limites ao intérprete, sem, contudo,
condicioná-lo. É o que se apreende da lição de Reale (2002a,
p. 109).

45
Ora, alguns pensadores contemporâneos sustentam
que na realidade há também um a priori material: que há um a
priori ôntico, e não apenas um a priori gnoseológico, ou mais
claramente, que, se a realidade fosse em si determinada não
haveria possibilidadede ser captada pelo espírito, o qual não pode ser
concebido como produtor de objectos, ex nihilo, a partir do
nada. Alcançamos, assim, uma ideia de objectividade respeitando
a construção da forma significativa tanto em relação à sua
linguagem quanto em relação à sua finalidade. Isto nos permite
dizer que não podemos atribuir qualquer sentido às normas
jurídicas, objecto de nossa interpretação.

Reconhecemos que, ao abrigar valores do homem, as


normas jurídicas podem num determinado momento, entrar em
colisão devido a algum conflito de interesses. Contudo, a
interpretação das normas conflitantes deve, ainda sim, apresentar
um mínimo de objectividade. Principalmente porque não há
nenhum Direito absoluto. Basta, por ora, identificarmos um
conceito de objectividade moderada.

Os limites da actividade hermenêutica

T endo po r objecto a no rma jurídica, é na


reda cção d ela qu e o inté rprete , inicialmente, procurará o
sentido. Após a primeira análise, que é gramatical, o
intérprete buscará a finalidade da norma interpretada, a fim
de estabelecer as conexões com os valores de um
determinado ordenamento jurídico. Torna-se, assim, texto
normativo o meio pelo qual o intérprete alcança o sentido de
determinada conduta descrita na norma jurídica como diz Silva
(2000, p. 161-162).

O processo do entender, o qual tem na forma


representativa seu instrumento mediador, é, pois, sob o
aspecto da linguagem constituído por uma relação dialética
que, após W. Humboldt ter encontrado na língua o ergon, no
qual se objectiva a energéia do vivo falar, teve seu aspecto
dualístico superado no sentido produtivo da propositura do
problema em relação de valor entre o conteúdo do
significado e a expressividade da forma e, nesse caso,
somente a língua escrita vale para poder o intérprete remontar o
sentido dado pelo autor no texto. No momento do processo de
interpretação, o sujeito cognoscente deverá utilizar-se dos
cânones descritos por Betti para assegurar o êxito
epistemológico da ideia de objectividade moderada. Certo de
que a vida prática nem sempre nos permite ter total consciência
de nossos actos, talvez um jurista, ao fazer a interpretação de um
determinado artigo de lei, utilize, intuitivamente, os cânones
bettianos. Tal facto só corrobora o entendimento de que os
cânones não são criação arbitrária do pensamento de Emilio
Betti, mas, sim, descrição e sistematização metodológica do
processo de conhecimento e, de certo modo, da teoria do
conhecimento. Contra estas ideias, temos o pensamento de Streck
(2004) que desenvolve uma hermenêutica filosófica fundada da
filosofia da linguagem. Criticando a metodologia na ciência
hermenêutica, a filosofia da linguagem de Streck (2004a, p.
96) rejeita qualquer tipo de “objectivismo” afirmando que o
intérprete está ligado ao texto por um cont ext o de
t rad ição co orde nado pe la e xistên cia pré via (preju ízo s)
de uma compreensão quanto ao objecto a ser interpretado.

É preciso ter claro que as palavras da lei são plurívocas. O


“elo” (imanência) que “vinculava” significante e sign ificado
e st á irre med iave lmente p erd ido no s conf in s da
viragem linguística ocorrida no campo da filosofia. Isto
porque se alterou radicalmente a noção d e conh e ciment o

47
co mo relação ent re pe ssoas (sujeit os) e objectos,
percebendo-se agora na relação entre pessoas (actores
sociais) e proposições. Daí que, pelo processo interpretativo,
o jurista cria o sentido que mais convém a seus interesses
teórico e político. Nesse contexto, sentidos contraditórios podem,
não obstante, ser verdadeiros. Em outras palavras, o
significado da lei é heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído
pelo intérprete. Contudo, não acreditamos que o intérprete
possa atribuir significado à norma, qualificando, assim, o sentido
de heterônomo. Se isso fosse possível, o sentido seria algo
totalmente determinado pelo sujeito e independente da
norma. Inadmissível tal posicionamento, por desconsiderar
que a norma é uma objectivação de outra mente ou, nos
dizeres de Betti, de outro espírito. Ao discordar do
pensamento de Betti, Streck fá-lo, no nosso entendimento, de
forma equivocada quanto aos fundamentos. Assim, é a crítica
de Streck (2004a, p. 110) à Betti.

Com efeito, é a partir de investidas neokantianas que Betti


desenvolve a sua teoria hermenêutica: uma teoria baseada na
forma metódica e disciplinada da compreensão, no qual a
própria interpretação é f ruto d e um pro cesso trip lo que
p arte d e uma abo rd agem objectivo-idealista. Parece, no
nosso entender, que Betti desconhece a possibilidade de haver
várias respostas para um mesmo problema concreto.
Percebe-se que não é responsabilidade de Betti o
desenvolvimento dos chamados métodos de interpretação.
Ousando discordar do doutrinador, vislumbramos que,
actualmente, há vários autores que já consideram a “velha”
classificação dos métodos de interpretação completamente
inadequada para solução de conflitos.
A metodologia desenvolvida por Betti visa, apenas,
conduzir o processo de interpretação de uma forma objectiva.
Os cânones descritos e apresentados por Betti são, na
verdade, momentos inerentes a qualquer processo de
interpretação, ou seja, momentos inexoráveis do aprendizado
humano. Todavia, Streck (2004b, p. 123), ao criticar a
concepção hermenêutica de Betti, também visualiza a
problemática da relação estabelecida entre a subjectividade
do intérprete e a objectividade do texto normativo.

Trata-se, enfim, de dar um salto sobre


a s c o n c e p ç õ e s hermenêuticas que entendem a interpretação
como parte de umprocesso em que o intérprete “extrai o
exato sentido da norma” ( s i c ) , como se fosse
p o s s í v e l i s o l a r a n o r m a d e s u a concretização.
Mas trata-se também de superar as concepções que, como
contraponto ao normativismo (que equipara à norma ao
texto), “avançam” em direcção a uma espécie de “Direito
livre” (um Direito alternativo tardio?), no interior do qual o
intérprete atribui qualquer sentido aos textos. O que se
observa do trecho acima transcrito é que Streck critica a
tentativa teórica de Betti para resolver o problema da
objectividade da interpretação sem, contudo, apresentar uma
solução teoricamente consistente para o problema. O próprio
Gadamer (2002, p. 358), maior opositor do pensamento bettiano,
visualiza que existe uma objectividade da hermenêutica que
implica limites à actividade do intérprete.

Claro está que as opiniões representam uma infinidade de


possibilidades mutáveis (em comparação com a univocidade
de uma linguagem ou de um vocabulário), mas dentro dessa
multiplicidade do “opinável”, isto é, daquilo em que um
leitor pode encontrar sentido ou pode esperar encontrar, nem

49
tudo é possível, e quem não ouve direito o que o outro
realmente está a dizer acabará por não conseguir integrar o mal-
entendido nas suas próprias e variadas expectativas de sentido.

Dentro da construção filosófica de Gadamer,


encontramos a dialética entre pergunta e resposta. Tal
dialética representa a possibilidade histórica da
compreensão, na medida em que proporciona a fusão dos
horizontes do texto e do intérprete. Quando entendemos a
pergunta colocada pelo texto, abrimos as possibilidades de
sentido. Sendo assim, a tarefa do intérprete é descobrir a
pergunta a que o texto vem dar resposta. Todavia, Gadamer
(2002, p. 358) reconhece que há um condicionamento do
sujeito pelo objecto, ou seja, há uma limitação da actuação do
intérprete frente ao objecto interpretado, quando diz: “A tarefa
hermenêutica converte-se por si mesma num questionamento
pautado na coisa em questão, e já se encontra sempre co-
determinada por esta.”

A citação acima evidencia dois elementos distintos: 1)


limitação da interpretação e 2) determinação da interpretação
pela questão (norma e facto). Esses elementos, constatados por
Gadamer, ensejam a existência de limites à actividade do
intérprete. Tais limites estão na própria expressão (ou
objecto) que deverá ser interpretada. Streck (2004b, p. 122),
citando Gadamer, percebe que na relação texto-intérprete há uma
limitação da actividade deste último pelo primeiro: “Afinal, como
bem diz Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixe
que o texto lhe diga algo!”. Tal percepção, entretanto,
contradiz uma outra proposição, de autoria do mesmo Streck
(2004, p. 496), que afirma que “significado da lei não é
autônomo, mas heterônomo. Ele vem de fora e é atribuído pelo
intérprete”.
A objectividade de Betti, fundada na comunidade de
falantes, no discurso e na forma significativa, leva-nos à ideia de
que a compreensão ocorrerá caso haja a participação, num
mesmo sentido no processo de comunicação, que ligue o
intérprete ao autor da forma significativa. Tal ideia também é
encontrada na filosofia de Gadamer (2002, p. 387) que diz ser a
“ [...] tarefa da Hermenêutica explicar esse milagre da
compreensão, que não é uma comunhão misteriosa das
almas, mas uma participação num sentido comum.”

Segundo Gadamer (2002), é possível para a hermenêutica


explicar como acontece o momento da interpretação que, nesse
caso, será a participação, por duas ou mais pessoas de um
mesmo sentido. Tal participação leva-nos, invariavelmente, à
uma concepção de objectividade. Se um sentido é comum a
um grupo de pessoas, podemos dizer que esse sentido é
objectivo. Podemos, então, afirmar que quando o jurista se
encontra diante do texto positivado e do facto a ser analisado,
existe uma possibilidade de objectividade donde resulta que
vários juristas podem chegar ao mesmo resultado por extraírem o
mesmo sentido daquele caso. Não olvidamos, aqui, que a
interpretação da norma e dos fatos se faz à luz de um
carácter axiológico inerente à proposição normativa. A
objectividade que Betti propõe pode ser alcançada através dos
cânones hermenêuticos que balizam a actividade do
intérprete. Em que pese o pensamento bettiano opor-se ao
pensamento gadameriano, visualizamos, nas duas teorias,
pontos em comum que servem para fundamentar a ideia de
objetividade ora apresentada. Assim, o segundo cânone
referente ao sujeito, o da adequação, pode ser comparado com a
situação hermenêutica produzida pela fusão de horizontes
que se dá na tradição para Gadamer (2002, p. 514).

51
A vida histórica da tradição consiste na sua dependência a
apropriações e interpretações sempre novas. Uma interpretação
correta “em si” seria um ideal desprovido de pensamento, que
desconhece a essência da tradição. Toda interpretação deve
acomodar-se à situação hermenêutica a que pertence.

Para Gadamer, a tradição é a ligação entre o “passado”


e o “presente” num determinado contexto histórico, ou seja,
dentro de uma historicidade que representa a possibilidade
positiva e produtiva da compreensão. Assim, a compreensão é
algo sempre actualizado, e nunca estancado no passado.
Encontramos, também, semelhanças entre a filosofia de Gadamer
(2002, p. 575) e o Cânone da Autonomia do Objecto.

Da relação que a linguagem mantém como mundo


surge sua objectividade (Sachlichkeit). O que vem à fala são
conjunturas, estados de coisas. Uma coisa que se comporta
desse modo ou de outro, isso constitui o reconhecimento de sua
alteridade autônoma, que pressupõe por parte do falante uma
distância própria em relação à coisa. Essa distância serve de
base para que algo possa destacar-se como um estado de
coisas próprio e converte-se em conteúdo de um enunciado,
passível de ser compreendido também pelos outros. Gadamer
demonstra que o objecto deve manter uma certa distância de
seu autor para que ganhe uma “alteridade autônoma”, isto é,
para que possa ter uma existência e uma essência próprias.
Essa “alteridade autônoma” remete-nos à ideia do Cânone
da Autonomia, de Betti, em que a forma significativa, que é a
expressão de uma mente vivente e vibrante, adquire, após sua
exteriorização, vida própria diferente de seu autor.
Visualizamos, ainda, semelhanças, quando Gadamer relaciona a
ideia de objectividade à ideia de linguagem. A linguagem é
tratada pelos dois autores de forma totalmente diferente:
para Betti, a linguagem é meio pelo qual a compreensão
ocorre e, para Gadamer, a linguagem é reconhecida como um
momento estrutural interno da compreensão; entretanto, é por
meio dela que os dois pensadores erigem seus conceitos de
objetividade.

Por outro lado, a objetividade que a ciência conhece, e


pela q u a l e l a p r ó p r i a r e c e b e s u a o b j e c t i v i d a d e ,
pertence às relatividades que abrangem a relação da
linguagem com o mundo. Nela, o conceito do “ser em si”, que
constitui a essência do “conhecimento’, adquire o carácter de
uma determinação da vontade. O que é em si não depende
da vontade e da escolha de cada um. Mas, na medida em que
o conhecemos como é em si, torna-se disponível pelo facto de
que podemos contar com ele, o que significa porém, que podemos
integrá-lo visando os próprios objectivos. Por fim, a hipótese
de que há objectividade na hermenêutica jurídica confirma-se
pela aplicação da metodologia apresentada por Betti. Embora
não haja um conceito absoluto de objectividade, não
podemos deixar de afirmar que a mesma existe e é
constituída pelos seguintes elementos: linguagem, axiologia e
teleologia das normas jurídicas.

A construção de um conceito de objectividade moderada


leva-nos a afirmar que o intérprete possui limites na sua
actividade hermenêutica, não podendo, por conseguinte, extrair
qualquer sentido do ordenamento jurídico.

Sumário
A teoria hermenêutica de Betti tem sido objecto de estudo
de várias ciências. Por ser uma Teoria Geral da Interpretação, ela
interessa a diversos campos de conhecimento. Todavia, sua

53
importância para a ciência do Direito ganha destaque.
Inicialmente, porque Betti é, por formação, jurista. Isto significa
que ao elaborar uma Teoria Geral da Interpretação, Betti
precisou sair de seu campo de conhecimento específico e
adentrar outras ciências para erguer sua grandiosa obra. A
publicação da Teoria da interpretação da Lei e do Acto Jurídico, na
qual Betti propôs sistematizar a interpretação para o
importante ramo do Direito Privado, fez com que aquele
jurista ganhasse destaque dentro do Direito. Com a Teoria Geral
da Interpretação, Betti coloca-se num outro plano diante do
carácter de universalidade de sua obra. Apesar de Betti
(1990a) dizer expressamente que não pretende vincular seu
pensamento a um sistema filosófico, ou seja, que deseje
estabelecer uma teoria voltada para a ciência, a importância de
seu pensamento é elevada ao status de uma filosofia (REALE,
1992).

O êxito epistemológico pretendido por Betti não pode


ser confundido com a bu sca p ela in terp retação co rrecta .
A te oria de Bett i, ao de scre ve r o pro cesso de
compreensão, pretende dar um caminho ao intérprete, alertando-
o sobre certos limites que devem ser observados no momento
da interpretação. A ideia de uma única resposta correcta não é
coerente com os cânones bettianos referentes ao sujeito
(intérprete). Se realmente houvesse uma única possibilidade
hermenêutica, o sujeito não precisaria actualizar e adequar o
sentido da norma ao contexto em que ela está sendo aplicada.

A objectividade aqui pretendida não pode ser estabelecida


sem levar em consideração as teorias do discurso e da
argumentação jurídica contemporâneas. Se a linguagem é a
responsável pela objectivação das ideias de um determinado
sujeito, é na argumentação jurídica que tais ideias serão
exteriorizadas, permitindo, assim, aos interlocutores, o
acompanhamento do raciocínio para o deslinde de
qualquer questão.

Nesta presente unidade, limitamo-nos a reconhecer a


importância actual de um discurso jurídico racional na construção
da ideia de objectividade, sem, contudo, adentrar as questões
que envolvem a teoria da argumentação jurídica.

Como salientado no início do trabalho, a hermenêutica


terá vida plena quando da sua aplicação no caso concreto.
Desta forma, é na aplicação do Direito que a acção
interpretativa se depara com os limites interpretativos (conceitos
e conhecimento prévios) q u e p e r m i t e m a p o s s i b i l i d a d e
de se alcançar uma decisão com o mínimo de
previsibilidade (CAMARGO, 2001).

Em linhas concludentes, segundo a teoria de Emilio Betti,


existe uma objectividade na hermenêutica jurídica. A
metodologia proposta por Betti apresenta-se como
apropriada para impor limites ao intérprete sem, contudo,
retirar-lhe as condições de possibilidade para o
conhecimento do fenómeno jurídico, desde que esse seja
concebido como um fenómeno ontognoseológico.

Exercícios 3
1. Distinga a objectividade real (OR) da objectividade
ideal (OI).
2. A teoria hermenêutica de Betti tem sido objecto de estudo
de várias ciências.
a. Fundamenta a afirmação citada.

3. Aborde sobre “objectividade forte e moderada”, no


contexto bettiano.

55
4. Qual é o êxito epistemológico da teoria de Betti?

5. Disserte sobre os limites da actividade hermenêutica, em


atenção à teorias e respectivas críticas.
6. Como a teoria de Emilio Betti se embasa como uma
objectividade na hermenêutica jurídica?

1. Define a objectividade real (OR).


Auto-avaliação 2. Que entende por objectividade ideal (OI)?

3. Explique a “objectividade forte e moderada”, no


contexto bettiano.
4. Que impacto epistemológico tem a teoria de Betti?

5. Critique a teoria de Betti.

6. A que conclusão, no âmbito da hermenêutica jurídica, a


teoria de Emilio Betti chega?

Unidade 4

Hermenêutica em Gadamer
Introdução
Hans-Georg Gadamer foi um importante filósofo alemão
do século XX. Não obstante tenha também se dedicado ao estudo
da história da filosofia e dos pensadores gregos, marcou
profundamente o pensamento ocidental com sua obra-prima
Verdade e Método, publicada pela primeira vez em 1960, na qual o
autor desenvolve uma hermenêutica filosófica.
Influenciado pelos estudos de Martin Heidegger, de quem
foi aluno e assistente na Philipps-Universität Marburg, trouxe a
historicidade para suas reflexões. Conforme explica Stein, “se o
tempo é o horizonte de toda compreensão, todas as teorias devem
converter-se inelutavelmente em formações históricas, e isso
afetara o núcleo da razão”.

Gadamer não se preocupa com o estabelecimento de um


método, como propunha Dilthey, uma vez que, nos termos de
Campos, “não se destina a resolver problemas hermenêuticos
práticos, mas sim, a construir uma teoria acerca de questões
preliminares ligadas ao fenômeno da compreensão“. Para ele, a
compreensão é como o modo de existência do próprio indivíduo
em suas mais variadas possibilidades, ou seja, caracteriza-se como
uma ontologia fundamental.

Deve-se, no entanto, advertir que, segundo Côrtes, inexiste


um “anarquismo metodológico”; pelo contrário, “o fundamento
dessa recusa repousa sobre um postulado de matriz historicista e
fenomenológica que inscreve o fenómeno da compreensão no
mundo da vida e nas experiências ordinárias que os homens
normalmente travam entre si.”

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Abordar a hermenêutica de Hans-Georg Gadamer;


 Conhecer a reabilitação dos preconceitos como
condição da compreensão;
Objectivos  Compreender o círculo hermenêutico;
 Percorrer a história efeitual e sua consciência;
 Analisar a experiência hermenêutica e o problema da
aplicação.

57
HH-GG – Hermenêutica de Hans-Georg Gadamer;

HF – Hermenêutica Filosófica;

Terminologia G – Gadamer.

Os preconceitos como condição da compreensão

Gadamer analisa o descrédito sofrido pelos preconceitos


durante o Iluminismo. Estes, que representam juízos prévios não
definitivos, foram considerados obstáculos a serem removidos na
busca do conhecimento e da verdade. Qualquer imposição externa
e dogmática do antigo levaria a uma aceitação independente de
juízos.

No período áureo de valorização da racionalidade, só podia


ser verdadeiro o que passasse pelo crivo da razão, ou seja, “a
tendência geral do Aufklãrung é não deixar valer autoridade
alguma e decidir tudo diante do tribunal da razão“. A verdade
coincidia com a certeza proveniente de um exercício racional
metodológico. Nesse sentido, desconsidera-se a historicidade dos
sujeitos, uma vez os preconceitos dela oriundos representam um
entrave à razão, na medida em que levam a enganos e a
contingências.

Os preconceitos, dessa forma, advêm do respeito à


autoridade, “uma obediência cega” sem qualquer critério, somada
à precipitação, que induz ao erro. Para superar todo esse
condicionamento, os homens devem valer-se do próprio
entendimento, norteados por um método, um “caminho” passível
de ser refeito e comprovado por todos os seres pensantes.
Embora a crítica tenha dirigido-se directamente à leitura
dogmática das escrituras sagradas, acabou tomando proporções
bem maiores que o esperado.

Por sua vez, o romantismo entende de forma negativa a


transição do mythos ao logos, invertendo a lógica do Iluminismo.
Passa-se a valorizar “a restauração, isto é, uma tendência a repor
o antigo porque é antigo, a voltar conscientemente ao que é
inconsciente etc., e que culmina no reconhecimento de uma
sabedoria superior nos tempos do mito”. Com inspiração nessa
“inversão de valores”, desenvolve-se a consciência histórica do
século XIX.

No entanto, o romantismo aproxima-se daquilo que


criticou, uma vez que se apresenta como ciência histórica. Se a
revalorização do passado parece libertar dos ideais iluministas,
segundo Lopes, verifica-se uma “prisão” ao objectivismo e à
verdade inquestionável conferida pela crítica histórica, o que é
incompatível com os preconceitos de determinada tradição.

Dilthey, grande expoente do período, desenvolve na sua


teoria um método próprio para as ciências do espírito, isto é, a
hermenêutica, considerando que estas se diferenciam das ciências
naturais explicativas por buscarem a compreensão. Nesse sentido,
é elucidativa a lição de Pereira:

“Embora não se proponha a conhecer o passado segundo os


critérios do presente tidos como absolutos, como na “história
filosófica” das luzes, mas concedendo ao passado um valor
próprio e único, o historicismo romântico mantém ainda o
pressuposto fundante do método: a tradição só pode ser
conhecida historicamente, através de procedimentos que
removam os preconceitos do historiador e todo tipo de relação

59
de autoridade. A história deve produzir um conhecimento livre,
desinteressado e objectivo.”

Diante disso, Gadamer, propõe uma releitura da


autoridade e da tradição. Partindo das premissas filosóficas de
Heidegger, deve-se compreender o ser, visto que a história é a
estrutura ontológica da “pre-sença”, do “ser-no-mundo”, ladeada
pelas particularidades do momento histórico.

Não mais se estabelece “um muro entre sujeito e objecto,


sentenciando uma total desintegração entre o investigador e o
objecto investigado”, mas uma compreensão do homem imerso
em conexões com factos, pessoas e coisas. O ser humano quer
compreender a si mesmo na sua forma de existência, logo, “ao ser
a presença coloca em jogo seu próprio ser e ao mesmo tempo pré-
compreende este ser”. A hermenêutica liga-se à própria
possibilidade de existência.

Mais uma vez, esclarece Pereira:

“A historiografia deve ser, portanto, compreendida


existencialmente, como uma das formas provenientes da
historicidade da “pre-sença”, antes de ser vista como disciplina
científica. Somente porque o ser do homem é constituído de
temporalidade, pode ser inserido no movimento histórico tal
qual a historiografia vulgarmente o entende”.

Diante da condição humana, naturalmente, há


preconceitos legítimos ou justificáveis, o que leva a um
questionamento antes inexistente. O pertencimento do homem a
uma realidade histórica faz com que sua visão de mundo e sua
possibilidade de conhecimento partam dos preconceitos que o
cercam. É preciso, pois, “ver com outros olhos”, repensar as
concepções iluministas que extirpam todos os preconceitos em
detrimento da aparente certeza de um saber absoluto.
A autoridade não se confunde com uma “obediência cega”
ou desprovida de racionalidade, nem se opõe diametralmente à
razão, como pensavam os “esclarecidos” do período das luzes. É,
antes de tudo, “um atributo de pessoas”, pelo qual se conhece e
reconhece o maior acerto do juízo do outro. Por conseguinte,
torna-se impossível uma aceitação pura e simples sem critérios.

Trata-se de uma atitude de liberdade, jamais de outorga ou


imposição, passível de ser revisada sempre. Tendo como ponto de
partida os invitáveis preconceitos formadores da pré-
compreensão, o intérprete testa a legitimidade destes no
encontro com o outro, conforme Gacki:

“Na verdade, o preconceito próprio só entra realmente em jogo


na medida em que já está metido nele. Somente na medida em
que se exerce, pode experimentar a pretensão de verdade do
outro e oferecer-lhe a possibilidade de que este se exercite por
sua vez”.

Como a tarefa hermenêutica vai muito além de uma


simples atribuição de sentido ao texto fundada na pré-
compreensão, deve-se pôr à prova os preconceitos. Por diversas
vezes, incorre-se em erros e substitui-se a perspectiva inicial. A
autoridade é exactamente esse reconhecimento de que a
compreensão do outro possa ser mais adequada. Sob tal aspecto,
a obediência a ordens apenas ocorre quando já existe uma
autoridade reconhecida como, por exemplo, do especialista.

A tradição é também forma de autoridade tornada


anónima, mas que continua a influenciar e a determinar os
comportamentos sociais por ser a “forma de validez” dos
costumes. Assim como já discutido anteriormente, o autor
também detecta um tratamento errôneo conferido à tradição,
seja pelo seu total descarte no iluminismo, seja pela concepção

61
romântica, para a qual se trata de “um dado histórico ao modo da
natureza”.

Conforme Gadamer, “na realidade, a tradição é sempre um


momento da liberdade e da própria história”. Mesmo de forma
inconsciente, a tradição mantém-se viva em virtude de seu cultivo.
A atitude histórica humana afirma-se e conserva-se por um acto
racional, o que se percebe quando se operam revoluções e muita
coisa da conjuntura anterior ainda permanece mediante uma
forma nova de validade. Assim, a conservação dá-se de forma tão
livre quanto a destruição ou a mudança.

O círculo hermenêutico

Gadamer recorre ao círculo hermenêutico desenvolvido


por Heidegger – “o movimento de sentido do compreender e do
interpretar” – tido como estrutura ontológica da compreensão. A
consciência do homem ultrapassa a mera “regra” do antigo
cânone hermenêutico, oriundo da retórica, para o qual se deveria
compreender o todo em relação às partes e vice-versa. Devem ser
agregados elementos da autoridade e da tradição, fontes da pré-
compreensão.

Antes de se chegar ao ponto pretendido, é preciso fazer


uma referência a Schleiermacher. Este, no seu projecto de uma
hermenêutica geral, embora exclua expressamente a jurídica pelo
escopo diferenciado de aplicação ao caso concreto, realiza,
conforme Costa, “uma descrição dinâmica (e não mais estática) do
processo de compreensão que, posteriormente, recebeu a
denominação de círculo hermenêutico”. Quando se deseja
compreender um texto, inicia-se com uma pesquisa do aspecto
gramatical da linguagem. Como, nessa etapa, há análise impessoal
de regras linguísticas, segue-se uma incursão na seara psicológica
do autor, capaz de levar o intérprete a conhecê-lo melhor que ele
próprio, reproduzindo o acto de criação.

Para tanto, vale-se dos métodos comparativo e divinatório.


Pressupõe-se a existência de algo comum no texto que ligue o
autor ao intérprete e uma habilitação hermenêutica no sentido de
possuir algum conhecimento. Compara-se o texto com a obra do
autor e até mesmo com género literário a que pertence e com a
própria literatura como um todo. O tal aspecto objectivo do
círculo hermenêutico, soma-se o subjectivo que é a busca pelo
todo da alma do escritor, por sua seara psicológica. Pode-se
perceber elementos originais e novos com a comparação, o que
torna indispensável a congenialidade, ou seja, um pressentimento
sobre o outro, um compartilhamento de sentimentos.

De acordo com Brito,

“A proposta de Schleiermacher afirma a possibilidade de


reconstruir na compreensão a determinação original de uma
obra. Assim, poderíamos reconstruir o sentido de uma obra de
arte ou literária transmitida do passado e que, por isso, nos
chega desenraizada de seu mundo original”.

Contudo, Gadamer tece algumas críticas. É impossível que


se alcance a constituição psíquica do autor, tentando “re-produzir
o que foi a produção original do autor”. A compreensão não se
confunde com uma “comunhão misteriosa de almas”, pela qual
algo praticamente divino permitiria alcançar o íntimo do autor.
Ademais, a tarefa hermenêutica empreendida pelo teólogo visa a
uma generalidade formal, consoante a pretensão de objectividade
científica dada pelo método, desprezando-se a historicidade e a
consciência histórica do homem. A leitura de um texto ultrapassa
as intenções do autor, já que o diferente contexto altera e
inclusive amplia os sentidos originalmente pensados pelo escritor.
A interpretação nunca se dissocia de seu componente histórico e

63
cultural. Não há o conhecimento da “coisa em si”, mas sua
mediação com a tradição e com os preconceitos do autor.

“Quem quiser compreender um texto realiza sempre um


projectar”. Inicia-se a leitura com uma determinada expectativa,
uma opinião prévia em relação ao objecto de estudo, que é a
chamada pré-compreensão, a partir da qual se estabelece um
projecto de compreensão para o todo. Esta pré-compreensão não
é subjectiva, uma vez que as pessoas comungam uma tradição em
contínua formação, variável e construída conforme se participa da
tradição e compreende-a, nos termos de Mello:

“O círculo serve, em realidade, como uma metáfora que viabiliza


a descrição da compreensão que se dá, como num jogo, em que
há o intercâmbio entre o movimento da tradição e o movimento
do intérprete. Constata-se a partir dele que há uma antecipação
de sentido que guia, por exemplo, a interpretação de um texto, a
qual não é um acto da subjectividade, já que se determina a
partir da comunhão que nos une com a tradição. Esta relação
com a tradição é referida por GADAMER como um processo em
contínua formação, que não significa uma prévia observação de
cada homem, como se este homem desde sempre estivesse “ali”,
aguardando a percepção de um observador mais arguto, mas
sim como um processo instaurado continuamente por nós
mesmos, na medida em que compreendemos, na medida em que
participamos do acontecer da tradição e continuamos
determinado-o a partir de nós próprios. O círculo descreve antes
um momento estrutural ontológico da compreensão”.

Costa faz uma analogia bastante interessante com a


primeira vez em que se assiste a um filme sem final previsível.
Tem-se uma primeira ideia, um entendimento motivado pela
leitura da sinopse e por outros factores, como a experiência de
vida e os valores de cada um. Assim, atribui-se determinado
sentido a uma cena inicial. No decorrer da exibição, suspende-se o
juízo da primeira pré-compreensão, considerando que se reflectiu
e foram obtidas novas informações. É possível que isso aconteça
inúmeras vezes, uma vez que se pensa o significado dentro do
todo do filme.
Segundo Gadamer, tendo em vista a concepção ontológica
da hermenêutica, há um sentido positivo em tal processo, pois
permite assegurar o conceito a partir da “coisa, ela mesma”,
evitando os possíveis enganos e desvios da pré-compreensão.
Ressalta-se que não se trata de uma arbitrariedade, pois se
verifica a legitimidade da opinião prévia e coloca-se em discussão.
Pode-se alterar o sentido definido por várias vezes, à medida que
se estuda o texto. O conhecimento adquirido tem por alicerce a
pré-compreensão naturalmente limitada, mas a aquisição de
novas informações torna sua possibilidade infinita, ou seja,
constroem-se círculos concêntricos, nos termos de Zanini:

“GADAMER mostra que, no encontro com o texto, somos


irremediavelmente guiados por nossa pré-compreensão. Esta
resulta de nossa formação pessoal, de nossos valores, de nossa
cultura, de nossa língua, de nossa história, enfim, de nosso
contacto com o mundo. Cada um de nós tem um determinado
conjunto de referências que é utilizado na constante busca da
construção de sentido: os pré-juízos, referências que, para o
autor, não representam algo forçosamente negativo. Nosso
lastro de juízos prévios não indica, necessariamente, sob o
prisma gadameriano, que estamos condenados a uma espécie
de incapacidade intelectual que inviabilizaria qualquer atitude
crítica, ou que estamos atados a um passado imutável,
permeado de tradições dogmáticas e interpretações fixistas, que
traduziriam uma limitação absoluta da nossa liberdade –
significa, apenas, que somos, em parte, condicionados por nossa
finitude e historicidade”.

O significado da distância temporal

Diante do exposto acima, o autor pergunta qual a


consequência de se pertencer a uma tradição para a
hermenêutica. Como se sabe, a autoridade e a tradição não mais
são compreendidas à semelhança do iluminismo, ou seja, algo a
ser removido pelo exercício da razão por se opor ao
conhecimento; pelo contrário, representam o pressuposto de toda
compreensão. Assim, é tarefa da hermenêutica distinguir entre os
preconceitos legítimos e aqueles ilegítimos, que levam a mal-
entendidos. A priori, há uma impossibilidade do intérprete separá-
los, pois não estão disponíveis no âmbito da consciência. É no

65
processo de compreensão que se coloca em discussão a
legitimidade dos juízos prévios.

A hermenêutica histórica tradicional entende a distância


temporal como um problema que afecta a compreensão. Quanto
mais “puro” e livre de preconceitos, mais verdadeiro é o
conhecimento nos moldes metodológicos do século XIX. O
historiador precisa reconstruir o facto com a maior fidelidade
possível, portanto, deve tentar livrar-se de tudo aquilo que o
influencie e o molde dentro dos parâmetros actuais. É preciso
enxergar o passado nos seus padrões e características próprios,
sob pena de se prejudicar a objectividade histórica. Entretanto,
conforme expõe Lopes, a verdadeira compreensão dos fenômenos
históricos dá-se justamente pela historicidade.

Nesse sentido, vale retomar a ponderação feita por G a


respeito da proposta de uma hermenêutica psicologista de
Schleiermacher, pela qual supostamente se permite ao intérprete
entender um autor melhor que ele mesmo, conforme já explicado
no tópico precedente. Porém, não se trata de compreender
melhor, mas de um “modo diferente“, em virtude da insuperável
distância temporal. Toda compreensão representa um acto
produtivo. Os textos inserem-se numa tradição e esta, por sua
vez, tenta autocompreender-se segundo sua época e seus
interesses peculiares.

Com a ontologia fundamental, a distância deixa de


constituir um abismo, passando a ser, nos dizeres de Almeida, “o
fio condutor que liga horizontes distintos e, pelo processo
dialógico, torna possível a fusão entre eles”. A distância
representa uma possibilidade positiva de compreensão,
permitindo que o verdadeiro sentido de uma coisa se expresse,
conforme Côrtes:

“Para além do historicismo com seus problemas metodológicos,


a consciência hermenêutica entende-se exactamente como
aquela que se sabe enraizada na mobilidade da realidade
temporal. E, no entanto, ao invés de converter tal
autoconsciência da sua transitoriedade e do seu próprio
engajamento em empecilhos que interditam o reconhecimento
da realidade histórica, percebe que é exactamente aí onde se
encontram todas as condições de possibilidade para a
compreensão do passado. Seus preconceitos, portanto, são
intelectualmente produtivos. Eles instalam, constituem e lançam
a consciência no mundo”.

Torna-se, pois, possível que os preconceitos verdadeiros


subsistam e sejam colocados em questão, enquanto os falsos
perecem. O tempo traz a serenidade para que não haja
preconceitos irreparáveis ou irrenunciáveis. Cita-se o exemplo da
dificuldade da crítica da arte contemporânea, na qual os
preconceitos se encontram de tal forma arraigados que parece
praticamente improvável qualquer espécie de análise idônea.

Consoante Gadamer, o aparente vazio da distância


temporal “está preenchido pela tradição e pela herança histórica,
a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido”. A consciência
hermenêutica deve ser a consciência dos preconceitos que
participam do processo de compreensão. Faz-se necessário
colocá-los em jogo, sabendo sempre da importância de filtrá-los, o
que se torna possível com a distância temporal. Não obstante a
pré-compreensão dê suporte ao processo hermenêutico, é preciso
encarar o texto como outro e deixar que venha à fala.

A consciência da história efeitual

Gadamer finaliza a abordagem da distância temporal com


uma reflexão sobre os enganos do objectivismo histórico, cuja

67
crença no método retira a validade de qualquer preconceito
questionável. De acordo com essa concepção, sempre que houver
dúvida ou margem para incertezas, deve-se imediatamente deixá-
lo de lado. O mal-entendido precisa ser substituído por outro juízo
“correcto”, sujeito à verificação objectiva por parte de qualquer
indivíduo. Percebe-se, assim, uma ausência de pensar sobre a
própria historicidade da consciência histórica.

Entretanto, a hermenêutica constitui-se em abertura e a


pergunta possibilita exactamente que se questione determinado
preconceito. Segundo o filósofo, “uma hermenêutica adequada à
coisa em questão deve mostrar na própria compreensão a
realidade da história”. A distância temporal e a pertença a uma
tradição trazem a lume a história dos efeitos. Os fenómenos
geram consequências na história, mesmo sem se ter total
consciência disso ou na ausência de uma investigação com
propósito específico, uma vez que o acontecer histórico não é uma
série de compartimentos estanques.

“A consciência da história efeitual é em primeiro lugar


consciência da situação hermenêutica”, ou seja, o intérprete
pertence à tradição que quer compreender. Segundo adverte
Pereira, “a tradição histórica não está morta inteiramente, mas
está viva em nossa cultura, em nossos ‘preconceitos’”. Isso faz com
que a tradição não seja vista através das lentes de um telescópio
preciso e sim pelos óculos do intérprete, que é parte integrante da
“paisagem”, portanto, dispõe de uma visão menos ampla.

Diante do exposto, permite-se retomar o conceito de


horizonte, entendido como o ângulo de visão máximo referente a
determinado ponto. Em outras palavras, considerando que o
intérprete se encontra imerso na tradição e munido de diversos
preconceitos, a compreensão tem um espectro possível, não
obstante se deva percebê-la no seu aspecto positivo. Elaborar a
situação hermenêutica significa, assim, “ganhar” o horizonte
correcto de compreensão.

Cabe, neste momento, perquirir como se adquire o


referido horizonte. Gadamer inicia a reflexão reforçando sua
habitual crítica à consciência histórica. Conhecer historicamente
determinado texto jamais deve confundir-se com um
deslocamento ao horizonte do outro para percebê-lo sob seus
próprios padrões, sem qualquer influência do tempo presente. O
pretenso objectivismo daí resultante esquece que quem deseja
compreender não se consegue blindar da realidade e das próprias
percepções.

A historicidade do homem é inarredável. Embora o


vangloriado acto de se transportar para o horizonte do outro
retire do intérprete a análise de sua própria posição, não há
entendimento ou diálogo. O filósofo inclusive compara tal situação
com determinadas consultas médicas nas quais o profissional
apenas pode conhecer o paciente e suas queixas, sem chegar a
qualquer tipo de entendimento. A compreensão dá-se de forma
produtiva, logo, é preciso dialogar, ter abertura para que o texto
venha à fala, conforme esclarece Mello:

“A compreensão humana, nessa linha de pensamento, é vista e


respeitada como ela realmente se dá, ou seja, com todas as suas
contradições, complexidades e limitações. Finalmente a
compreensão é apresentada como um processo constante e
infindável, de modo que a história efeitual propicia que o sujeito
alcance entendimentos históricos não mais sob a óptica do certo
ou do errado, mas sim percebendo que, dentro da sua própria
tradição, conscientemente ele procurará afastar os preconceitos
inautênticos – por meio do questionamento – sabendo que esse
novo entendimento é o resultado de um projecto desde sempre

69
em constituição, ou seja, de seu ser e da historicidade que se
revelou na coisa segundo as tradições a ele inerentes”.

A partir disso, o escritor de Verdade e Método questiona o


chamado “deslocamento” ao horizonte daquilo que se quer
compreender. Na verdade, não há dois horizontes distintos (o do
passado da tradição e o presente), o que inviabiliza estar num ou
noutro separadamente. Pelo contrário, segundo Gadamer, o
“horizonte é, antes, algo no qual trilhamos nosso caminho e que
connosco faz o caminho”. Portanto, “deslocar-se” significa fundir o
horizonte do passado com as concepções presentes, formando
uma universalidade diferente das anteriores, que “rebaixa tanto a
particularidade própria quanto a do outro”.

A experiência hermenêutica

Segue-se ao estudo da consciência efeitual o


reconhecimento de que ela se estrutura sob a forma de
experiência. Nesse sentido, é preciso compreender o significado
da experiência hermenêutica, especialmente por se tratar de um
conceito de difícil entendimento, “dos que menos possuímos”. A
supervalorização do conhecimento científico, notadamente no
século XIX, levou a uma distorção do seu real valor.

Na óptica científica, experiência é tudo aquilo que pode ser


repetido por quem quer que deseje a qualquer tempo, ou seja,
liga-se fundamentalmente a um “caminho” objetivador do
conhecimento. Logo, não se pode falar de qualquer historicidade
interna da experiência, já que esta é a própria retirada das
contingências em favor da cientificidade.

Dessa forma, Gadamer faz uma revisão do conceito


analisado, perpassando diversos matizes filosóficos, para que se
livre das amarras de sua intrínseca correlação com as ciências
naturais e se permita vislumbrar sua possibilidade hermenêutica.
Com as críticas tecidas acerca das concepções apresentadas,
chega até a real nuance da experiência hermenêutica. De forma
bastante resumida, faz-se necessário percorrer o panorama
traçado pelo autor.

Husserl tentou livrar a experiência da parcialidade de sua


vinculação com a ciência, alegando que esta ocorre no mundo da
vida, portanto, é anterior à sua idealização. Como se sabe,
inspirado por Descartes, o fenomenólogo demonstrava “repúdio
pelas ciências empíricas”, o que denota a falta de apreço pelas
experiências. Se só pode ser verdadeiro aquilo que se torna
evidente na consciência, certamente os sentidos levam a enganos.
Contudo, Husserl permaneceu preso àquilo de que queria libertar-
se.

Para Bacon, todo conhecimento deveria vir da


experiência. Assim, critica a forma habitual e despretensiosa de
encarar a experiência como uma generalização válida até que seja
contraposta, propondo a interpretatio natura, via de acesso
“gradual as generalidades verdadeiras e sustentáveis“. Por meio
da observação da natureza, o método indutivo permite o acesso
ao geral, elevado a essa categoria após a organização racional dos
dados obtidos e a comprovação das hipóteses.

No entanto, a maior contribuição de Bacon reside na


discussão acerca dos possíveis erros na busca do conhecimento.
Há falsas noções (denominadas ídolos), de diversas naturezas,
como a linguagem, a autoridade e a tendência humana de se
prender a falsas generalizações, que permeiam todo o processo do
conhecer. Mesmo com o avanço obtido pela percepção dos

71
preconceitos, o autor continua ainda preso à tradição metafísica,
além de seu método resultar em algo interminável.

Por sua vez, Aristóteles entende a experiência como um


pressuposto da ciência. Na tentativa de superar o idealismo
platônico, afirma não existir um mundo das ideias, mas apenas
aquele da experiência, de onde partem todas as investigações. De
uma série de percepções individuais, chega-se a uma unidade
geral e, a partir dela, dá-se a passagem para o logos. Gadamer traz
o exemplo de determinada erva usada pelas pessoas para algum
fim medicinal, como a cicatrização. Tem-se um dado empírico,
mas ainda inexiste uma explicação racional, pois esta ocorre
posteriormente, motivada pela generalidade da experiência.
Nesse caso, os cientistas apenas investigam e descobrem o porquê
das propriedades terapêuticas após conhecerem o dado
experimental.

Opõe-se à objecção de simplificar o processo de produção


da experiência, focando-se na sua relação com a ciência e com a
formação dos conceitos. O processo de experiência
verdadeiramente dá-se no seu lado negativo, ou seja, desconstrói
generalidades e tipicidades, não corresponde às expectativas.
Segundo explica Gadamer, “a negatividade da experiência possui,
por conseguinte, um particular sentido produtivo. Não é
simplesmente um engano que se torna visível e, por consequência,
uma correcção, mas o que se adquire é um saber abrangente”.

O sentido negativo da experiência e a abertura constante a


novas possibilidades remetem à dialética, questionamento este
elaborado por Hegel, para quem a experiência representa uma
manifestação do cepticismo. Jamais se refaz uma experiência. Embora
possa confirmar-se pela repetição, tal acto nunca representará algo
novo, segundo explica Almeida:

“Ora, Hegel soube captar exemplarmente o momento dialético


da experiência. No entanto, ao concluir a ciência da experiência
da consciência logrou abarcar a própria experiência pressuposta,
pois, para ele, a experiência era vista “como realização do
cepticismo” e, por isso, deveria ser tomada apenas como um
momento negativo de um todo positivo – a ciência filosófica.
Após fazer a experiência, Hegel a possui de tal modo que tudo
quanto antes era inesperado passou a ser previsto”.

Nesse sentido, fala-se numa inversão da consciência. A


experiência traduz-se num movimento dialético da consciência
consigo mesma. Em última instância, no saber absoluto percebe-
se uma identidade de sujeito e objecto. Isso retira toda a
possibilidade e a legitimidade da experiência, já que o homem tem
de estar no próprio conteúdo para aceitá-lo e a consciência
adquirir certeza de si mesma. Segundo Gadamer, “a essência da
experiência é pensada aqui, desde o princípio, a partir de algo no
qual a experiência já está superada. Pois a própria experiência
jamais pode ser ciência.“ Ademais, Heidegger adverte que Hegel
não pensa a experiência como dialética; pelo contrário, visualiza a
dialética a partir da experiência.

Se da experiência jamais se faz ciência por haver “uma


oposição insuperável com o saber e com aquele ensinamento que
flui de um saber teórico ou técnico”, fica-se sempre diante de uma
abertura para outras experiências. Deve-se aceitar o facto de que
certezas e dogmas não perduram eternamente e são passíveis de
alteração. A única certeza plausível é impossibilidade de se
conhecer tudo. Quanto mais experimentado é um indivíduo, mais
consciência tem das infinitas possibilidades do ser humano.

Após ultrapassar todo esse caminho, Gadamer possui


elementos para concluir que a experiência é a consciência da

73
própria finitude humana e das limitações. A referência a Ésquilo é
bastante ilustrativa: “aprender com o sofrer”, ou seja, de forma
dolorosa, o homem torna-se ciente da sua separação da divindade
e da temporalidade de sua existência.

Toda experiência, por mais que se pense consumada ou


exaurida, constitui sempre abertura. Nem mesmo o próprio
homem possui uma essência. O ser significa um poder ser si
mesmo, pois tem por características a indefinição e as infinitas
possibilidades. Dessa forma, torna-se incoerente falar da
experiência no sentido teleológico, à semelhança de Husserl e
Bacon, e da forma descaracterizada de Hegel.

De acordo com Gacki,

“Nas ciências do espírito, aprendemos continuamente coisas


novas da tradição. Para isso, porém, se necessita de uma
disposição à experiência, ao saber, à abertura a esse desejo de
verdade que vem ao nosso encontro na tradição. Assim,
conseguimos algo distinto das meras ordenações históricas. E
isso significa que saímos de aporias em que estávamos presos”.

A tradição precisa alcançar a experiência. Como linguagem,


ela vem à fala - é um tu. Logo, deve-se diferenciar a experiência do
tu da experiência verdadeiramente hermenêutica. A primeira
pode dar-se sob a forma de conhecimento de pessoas, tornando o
tu um objecto de análise, ou reconhecendo-o como pessoa, porém
com referência ao próprio intérprete.

Não se pode ver na tradição um meio para o processo


típico de experiência, no qual o tu é objecto, sem qualquer espécie
de relação com o intérprete, nos termos de Gadamer,
“desconectando metodicamente todos os momentos subjetivos de
sua relação para com ela”. Ademais, nem é adequado
compreender o tu como pessoa (e não objecto) se pela óptica dos
padrões do intérprete, retirando as pretensões do outro, na
tentativa de compreendê-lo melhor que ele próprio, embora já
represente um avanço em relação à primeira concepção.

A experiência hermenêutica é aquela que assume a


consciência da história efeitual. A tradição precisa ser
compreendida verdadeiramente como um tu. Toda alteridade tem
algo a dizer e deve ser respeitada sua condição de outro. Não se
pode impor pretensões ou concepções prévias. A abertura dá-se
de forma mútua, isto é, entre quem “escuta” e aquele que “fala
algo”, inclusive com a possibilidade de que seja contrário ao
intérprete, conforme Gadamer:

“A consciência hermenêutica tem sua consumação não na


certeza metodológica sobre si mesma, mas na pronta disposição
do homem experimentado ao que está preso dogmaticamente. É
isto que caracteriza a consciência da história efeitual, como
poderemos pronunciar mais detalhadamente a partir do
conceito de experiência”.

O problema hermenêutico da aplicação

Ao tratar do que denomina “problema hermenêutico


fundamental”, o filósofo faz um retrospecto acerca das questões
da compreensão, interpretação e aplicação para que se chegue à
sua premissa: “em toda compreensão, produz-se uma aplicação,
de modo que aquele que compreende, está ele mesmo dentro do
sentido do compreendido. Ele forma parte da mesma coisa que
compreende”.

Inicialmente, o autor relembra a divisão antiga do


problema hermenêutico nas três questões citadas acima, como
forma de se atingir a compreensão. A partir do romantismo, a
interpretação passou a ter uma relação necessária com a
compreensão, ou seja, não se trata de uma complementação
posterior, mas de dois momentos que sempre ocorrem dentro do
mesmo processo. Logo, a aplicação foi deixada de lado, talvez até
pela sua aparente desnecessidade na seara teológica. De acordo
com Costa,

75
“Desde meados do século XX, as reflexões da hermenêutica
filosófica acentuaram a existência de uma co-relação circular
entre interpretação e aplicação, de tal forma que a prioridade
lógica tem sido substituída pela ideia de que existe uma
complementaridade circular entre interpretação abstrata e
aplicação concreta, pois essas duas actividades fazem parte de
um mesmo processo de compreensão. Nesse ponto, fica
especialmente caracterizada a distinção entre a linearidade dos
discursos científicos e a circularidade dos discursos
hermenêuticos”.

No entanto, o autor faz uma objecção que ataca o


posicionamento romântico. Para ele, toda compreensão inclui a
aplicação, na medida em que o texto se dirige à situação actual do
intérprete. A hermenêutica possui as vertentes teológica,
filológica e jurídica, não obstante Schleiermacher tenha excluído a
última expressamente de seu projecto de hermenêutica geral por
considerá-la dogmática.

Na origem, tanto a hermenêutica filológica quanto a


jurídica já consideravam a aplicação um momento indispensável
do processo de compreensão. Caso se queira compreender a
validade de uma lei ou a mensagem redentora de um texto, deve-
se interpretá-los em cada situação de uma maneira distinta,
conforme discorre Lopes:

“A compreensão histórica da norma pretende renovar a sua


efetividade histórica em relação a uma nova situação, e não
simplesmente reconstruir a intenção original do legislador,
atitude que seria igual a tentar reduzir os acontecimentos
históricos à intenção dos protagonistas. A historicidade da
norma, igual a em qualquer outro texto, não é uma restrição a
seu horizonte, senão que, pelo contrário, a condição que permite
sua compreensão. No Direito, essa condição se manifesta por
meio do vínculo que existe entre a pessoa obrigada e a norma,
vínculo que afeta a todos por igual, e não faz da lei uma
propriedade do legislador”.
A própria hermenêutica histórica depara-se com o
problema da aplicação, “pois também ela serve à validez de
sentido, na medida em que supera, expressa e conscientemente, a
distância de tempo que separa o intérprete do texto, superando
assim a alienação de sentido que o texto experimentou”.

Sabendo-se que a aplicação é parte integrante de qualquer


processo de compreensão, resta ainda analisar se realmente há
uma incompatibilidade entre a hermenêutica histórica e a jurídica.
Para tanto, Gadamer aborda a situação de “textos jurídicos
interpretados juridicamente e compreendidos historicamente”.

Normalmente, costuma-se dizer que a hermenêutica


jurídica destina-se a aplicar a norma ao caso concreto, enquanto
cabe à compreensão histórica uma investigação do sentido
originário da mesma em âmbito geral. Contudo, tal diferenciação
não analisa de maneira suficiente a questão. O jurista deve
efectuar a concordância do sentido actual com o originário, assim
como o historiador precisa mediar presente e passado, já que este
só pode ser entendido na sua continuidade com aquele.

Quando se está diante de uma lei vigente, a situação


hermenêutica é semelhante em ambos os casos. Mesmo nas
outras hipóteses, o juiz não pode realizar uma “tradução
arbitrária” da ideia da lei ao aplicá-la à situação concreta,
podendo se parecer com o historiador. Este, por sua vez, tem
como matéria-prima a compreensão histórica, porém deve
também analisar juridicamente as normas jurídicas. Logo, “a
hermenêutica jurídica recorda em si mesma o autêntico
procedimento das ciências do espírito. Nela temos o modelo de
relação entre passado e presente que estávamos procurando”.

Considerações finais

77
De acordo com Stein,

“Gadamer deu-nos, com sua hermenêutica filosófica, uma lição


nova e definitiva: uma coisa é estabelecer uma práxis de
interpretação opaca como princípio, e outra coisa bem diferente
é inserir a interpretação num contexto - ou de carácter
existencial, ou com as características do acontecer da tradição
na história do ser - em que interpretar permite ser compreendido
progressivamente como uma autocompreensão de quem
interpreta. E, de outro lado, a hermenêutica filosófica ensina-nos
que o ser não pode ser compreendido na sua totalidade, não
podendo assim, haver uma pretensão de totalidade da
interpretação”.

A teoria de Hans-Georg Gadamer colocou em xeque todas


as bases sobre as quais se sustentavam a antiga hermenêutica.
Com a premissa de que ser é tempo, retirada do pensamento de
Heidegger, não mais se pode pensar na compreensão como uma
reconstrução do processo criativo do autor no seu contexto
originário ou como um método próprio para as ciências do
espírito.

Sumário
A presente unidade apresenta uma abordagem da
hermenêutica de Hans-Georg Gadamer, elaborada especialmente
na segunda parte da obra Verdade e Método. Diante da
consciência da finitude e da historicidade do ser humano, o autor
desenvolve uma teoria de “intenção filosófica”, cujo foco é a
forma como se dá a compreensão, sem imposição de qualquer
método. Neste estudo, são abordados: a reabilitação dos
preconceitos como condição da compreensão; o círculo
hermenêutico; a história efeitual e sua consciência; a experiência
hermenêutica e o problema da aplicação.

Exercício 4
1. Como Gadamer analisa os preconceitos como condição da
compreensão?
2. Aborde o círculo hermenêutico de Gadamer partindo do já
desenvolvido por Heidegger – “o movimento de sentido do
compreender e do interpretar” – tido como estrutura
ontológica da compreensão.
3. Qual é o significado da distância temporal, segundo
Gadamer?
4. Segundo Gadamer, “uma hermenêutica adequada à coisa
em questão deve mostrar na própria compreensão a
realidade da história”.
a. Partindo da afirmação do autor em estudo,
fundamente a consciência da história efeitual.
5. Apresente a reflexão de Gadamer sobre a experiência
hermenêutica, sem perder de vista os posicionamentos de
Husserl, Bacon e Aristóteles.
6. “...em toda compreensão, produz-se uma aplicação, de
modo que aquele que compreende, está ele mesmo dentro
do sentido do compreendido. Ele forma parte da mesma
coisa que compreende”.
a. Fundamente a premissa supracitada de Gadamer,
no contexto do problema hermenêutico da
aplicação.

79
1. Analise os preconceitos da compreensão em Gadamer.
Auto-avaliação 2. Partindo de Heidegger à Gadamer, debruce-se sobre
estrutura ontológica da compreensão.
3. Segundo Gadamer, que é consciência da história efeitual?
4. Aproxime a reflexão de Gadamer com os posicionamentos
de Husserl, Bacon e Aristóteles.
5. Distinga a compreensão da aplicação, no contexto do
hermenêutico de Gadamer.

6. Explique a hermenêutica em Gadamer.

Unidade 5

Hermenêutica fenomenológica de
Ricoeur
Introdução
Nesta unidade 05, vamos descrever hermenêutica
fenomenológica de Ricoeur.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

- Descrever a hermenêutica fenomenológica de Ricoeur;


- Conhecer o percurso biográfico de Paul Ricoeur;
Objectivos - Analisar o cunho hermenêutico e fenomenológico de
Ricoeur.
PR - Paul Ricoeur

Terminologia

Percurso bio-bibliográfico de
Paul Ricoeur
Paul Ricœur nasceu numa família protestante. Em 1936,
licenciado em filosofia, criou a revista Être, inspirada nos preceitos
de Karl Barth, teólogo cristão suíço. Em 1939, servindo como
oficial de reserva, Ricœur foi preso pelos nazistas e enviado ao
campo de Groß Born e depois a Arnswalde, na Pomerânia,
atualmente Polônia.

No pós-guerra foi académico na Universidade da Sorbonne.


Passou também pelas universidades de Louvaina (Bélgica) e Yale
(EUA), onde elaborou uma importante obra de filosofia política.
Ricœur participou em debates sobre linguística, psicanálise, o
estruturalismo e a hermenêutica, com um interesse particular
pelos textos sagrados do cristianismo.

Ricœur descreve assim, em 1991, suas raízes filosóficas:


"Se reflito, dando um passo para trás de meio século [...], sobre as
influências que reconheço ter sofrido, sou grato por ter sido desde
o início solicitado por forças contrárias e fidelidades opostas: de
uma parte, Gabriel Marcel, ao qual acrescento Emmanuel
Mounier; de outra, Edmund Husserl". Portanto, Ricoeur forma-se
em contacto com as ideias do existencialismo, do personalismo e
da fenomenologia.

81
Suas obras importantes são: A filosofia da vontade
(primeira parte: O voluntário e o involuntário, 1950; segunda
parte: Finitude e culpa, 1960, em dois volumes: O homem falível e
A simbólica do mal). De 1969 é O conflito das interpretações. Em
1975 apareceu A metáfora viva.

Em O voluntário e o involuntário, Ricœur dirige a atenção


para a relação recíproca entre voluntário e involuntário, assim
como esta relação se configura na tríplice dimensão do decidir, do
agir e do consentir. Em poucas palavras, necessidades, emoções e
hábitos premem sobre o querer, que replica a eles, por meio da
escolha, do esforço e do consentimento. Escreve Ricœur: "Eu
suporto este corpo que governo".

A problemática da simbólica do mal leva Ricœur ao tema


da linguagem, ou melhor, ao projecto da construção de uma
grande filosofia da linguagem - projecto que encontra seus inícios
num escrito sobre Freud: Da interpretação. Ensaio sobre Freud
(1965).

A humanidade objectiva nos símbolos, nas diversas formas


simbólicas, os significados e os momentos mais importantes da
vida e de sua história. Daí - se quisermos compreender o homem -
a necessidade da interpretação. E justamente a multiplicidade de
modelos interpretativos em conflito torna urgente um
escrupuloso trabalho que, enquanto de um lado bloqueia as
pretensões totalizantes das interpretações particulares, de outro
lado dá razão do efectivo, embora limitado, valor de tais
interpretações particulares. Mais em particular, será necessário
pesquisar, nos símbolos, o vector arqueológico e o teleológico, ou
seja, as razões de suas raízes no passado e as motivações que os
tornam úteis ou necessários para o futuro.
Da história à hermenêutica fenomenológica
Desde cedo, Ricœur interessou-se sobre a história desde
uma perspectiva filosófica sem, no entanto, praticar uma filosofia
da história. Em Histoire et vérité (1955; pt. "História e verdade"),
ele tenta definir a natureza do conceito de verdade em história e
diferenciar a objectividade em história distinguindo-a da
objectividade nas ciências exactas.

Anos mais tarde, ele dedicou-se às questões culturais e


históricas de uma perspectiva fenomenológica e hermenêutica.
Ele fomenta então a discussão sobre a memória e a memória
cultural em La mémoire, l'histoire, l'oubli (2000; pt. "A memória, a
história, o esquecimento").

O cunho da hermenêutica de Ricoeur


PR distinguiu uma hermenêutica da tradição de uma
hermenêutica da suspeita. A primeira visa ouvir atentamente o
que é comunicado para se ganhar uma compreensão acrescida a

83
partir de uma mensagem escondida sob a superfície, ou para se
tornar ciente dela. Um representante desta teoria é Gadamer. A
segunda é "subversiva", e tenta mostrar que, adequadamente
compreendidos, os textos e as acções humanas não são tão
inócuos quanto parecem, podendo antes reflectir impulsos
ocultos, interesses de classe, etc. Os representantes desta
tendência são Nietzsche, Freud, Foucault. Há afinidades entre
estes e os chamados hermeneutas críticos, representados por Apel
e Habermas, que dão continuidade à tradição de crítica das
ideologias, tradição que remonta, via Marx, ao século XVIII. O
objectivo desta abordagem é criticar as condições sociais, políticas
e culturais existentes usando interpretações que são ao mesmo
tempo desmistificações.

Sumário
A fenomenologia é um movimento radicalmente oposto ao
positivismo, porque se centra na experiência intuitiva capaz de
apreender o mundo exterior e porque abala a crença mantida pelo
homem comum de que os objectos existiam independentemente
de nós mesmos nesse suposto mundo que nos seria estranho. Foi
graças a Husserl que a fenomenologia se transformou numa
disciplina que se ocupa do estudo dos fenómenos puros, como
estudo descritivo de tudo quanto se revela no campo da
consciência transcendental. Husserl afirma que, ao nível da
consciência, podemos ter a certeza sobre a forma como
apreendemos os fenómenos em si mesmos, ilusórios ou reais,
mesmo que não exista evidência sobre a existência independente
das coisas. Toda a consciência é consciência de alguma coisa, isto
é, não há consciência sem um objecto de referência, porque um
pensamento está sempre “voltado para” algum objecto. O mundo
exterior fica assim reduzido àquilo que se forma na nossa
consciência, às realidades que constituem os puros fenómenos,
num processo a que Husserl chama a redução fenomenológica. Se
não pode existir um acto de pensamento consciente sem um
objecto de referência, também não pode existir um objecto sem
existir também um sujeito capaz de o interpretar e apreender. O
que ficar de fora desta correlação fundamental deve ser excluído
porque não está “imanente” à consciência e porque não é real —
os fenómenos são reais enquanto parte do mundo que a nossa
consciência concebe. Isto significa que os fenómenos só existem
porque os compreendemos, na exacta medida em que lhes
conseguimos atribuir um significado. Esta perspectiva coloca o
objecto da filosofia na "experiência vivida" do sujeito, em vez de
concepções metafísicas que escapariam ao trabalho da
consciência e às quais não seria possível atribuir uma
intencionalidade.

Exercício 5
1. O que é que se pretende dizer quando alguém
(jurista/hermeneuta) fala / escreve?
2. Quando alguém ou jurista diz mais do que efectivamente
diz?
3. O que é compreender um discurso jurídico quando tal
discurso é um texto normativo ou uma obra de arte?
4. Como decifrar um discurso escrito?
5. Explique a compreensão vs interpretação em PR.
6. Comente a hermenêutica fenomenológica de Ricoeur, em
atenção a outros autores que o circundam.

85
1. Que é a fenomenologia?
Auto-avaliação 2. Distinga “dizer” do “falar” ou “escrever”.
3. Reflicta sobre o além do discurso dito.
4. Quais são as finalidades da compreensão e da explicação
de um discurso jurídico?
5. Quais são os limites da compreensão vs interpretação num
discurso jurídico?

6. Explique a hermenêutica fenomenológica de Ricoeur.

Unidade 6

Hermenêutica Crítica em Apel


Introdução

Nesta unidade, abordaremos Hermenêutica Crítica em


Apel.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Reconhecer a Hermenêutica Crítica em Apel.

Objectivos
HCA - Hermenêutica Crítica em Apel

Terminologia

Karl-Otto Apel
Karl-Otto Apel (Düsseldorf, 15 de Março de 1922) é um
filósofo alemão e Professor Emérito da Johann Wolfgang Goethe-
Universität de Frankfurt am Main .

Licenciado em Bonn e doutor em filosofia em Mogúncia,


em 1960. Foi professor em Kiel (1962-1969), Saarbrücken (1969-
1972) e na Johann Wolfgang Goethe-Universität, (1972-1990).

Tornou-se um dos teóricos mais influentes da Escola de


Frankfurt, após a morte de Adorno, no final da década de 1960.
Crítico do cientificismo positivista por considerá-lo redutor da
razão, na linha defendida pelos frankfurtianos, Apel elaborou
trabalhos sobre a ética comunicativa e assume-se como um dos
restauradores da filosofia prática.

O trabalho de Apel incorpora elementos tanto da Filosofia


analítica como do pragmatismo e da Teoria Crítica da Escola de
Frankfurt.

No plano da crítica ao racionalismo positivista, faz uma


clara distinção entre a compreensão e a explicação. No seu livro
Understanding and Explanation: A Transcendental-Pragmatic
Perspective, Apel reformula a diferença entre entendimento

87
(Verstehen) e explicação (Erklärung), contidos na hermenêutica de
Wilhelm Dilthey e na sociologia interpretativa de Max Weber, com
base numa concepção transcendental- pragmática de linguagem,
inspirada em Charles Peirce. Essa concepção do mundo da vida
tornar-se-ia um elemento da Teoria da Acção Comunicativa e do
discurso ético, que Apel a princípio desenvolveu com seu amigo e
colaborador Jürgen Habermas.

Embora basicamente concorde com a Teoria da Acção


Comunicativa de Habermas, Apel é crítico com respeito a alguns
aspectos da abordagem do colega. Apel defende que a teoria da
comunicação deva basear-se nas condições pragmático-
transcendentais da comunicação e assim, depois de um ponto de
partida comum, Habermas e Apel seguiram caminhos diferentes.
Habermas encaminhou-se para um "transcendentalismo fraco",
mais próximo da pesquisa social empírica.

Apel também escreveu diversos trabalhos sobre Peirce e


foi presidente da 'Charles Sanders Peirce Society.

Exercício 6
1. Que entende por Hermenêutica Crítica?
2. Qual é o percurso bio-bibliográfico de Karl-Otto Apel?
3. Quem são os hermeneutas que Apel se inspirava?
4. O que fundamentalmente a teoria de Apel é criticada?
5. Em que aspectos Habermas e Apel divergem?
6. Analise a Hermenêutica Crítica em Apel.
1. Define Hermenêutica Crítica.
Auto-avaliação 2. Apresente a biografia de Karl-Otto Apel.
3. Aponte o nome de um hermeneuta que Apel estive na base da
sua inspiração.
4. Em que consiste a teoria de Apel?
5. Quem é o opositor de Apel, na hermenêutica jurídica?

6. Fundamente a Hermenêutica Crítica em Apel.

Unidade 7

Hermenêutica contemporânea em
Dworkin: Hard Cases, princípios, políticas
públicas, regras e discricionariedade fraca
Introdução
A sétima unidade aborda hermenêutica contemporânea
em Dworkin: Hard Cases, princípios, políticas públicas, regras e
discricionariedade fraca.

Preocupado com a definição positivista do Direito, que o


reduz a um modelo de regras e que autoriza o juiz a utilizar o
poder discricionário ao deparar-se com casos complexos, Dworkin
propõe uma teoria da interpretação que auxilia os operadores do
Direito a encontrar uma resposta correcta mesmo para os casos
complexos.

O objecto de estudo desta unidade é a teoria desenvolvida


por Dworkin sobre a resolução dos casos difíceis. Acredita Dworkin
que os juízes, ao resolverem os casos difíceis, devem utilizar

89
padrões determinados, para que a previsibilidade e justiça da
resposta seja alcançada.

Para isso, refuta a teoria da discricionariedade, proposta


pelo positivismo jurídico, tentando encontrar algo que vincule o
juiz a uma resposta correcta.

A distinção feita por Dworkin entre princípios, políticas e


regras será analisada na primeira parte. Segundo o autor
estudado, conhecendo as peculiaridades de cada um desses
padrões, a tarefa de integrá-los numa teoria da decisão jurídica
torna-se mais clara e passível de entendimento.

Na segunda parte desta unidade, explicar-se-á o que


Dworkin entende por casos difíceis, a tese dos direitos e o modo
de trabalho do juiz Hércules perante esses casos. Desenvolve a
tese dos direitos e exemplifica a sua aplicação a partir de um juiz
filósofo, comprometido com as leis, os precedentes e a busca da
melhor solução. Esse juiz Hércules terá uma tarefa à altura do seu
nome.

Logo após, tratar-se-á a interpretação construtiva e o que


Dworkin conceituou como integridade. A ideia de integridade
como uma virtude política ao lado da equidade, da justiça e do
devido processo legal, divide-se em dois princípios: um princípio
legislativo e um princípio jurisdicional.

Para finalizar, estudar-se-á a integridade aplicada ao


Direito. De que maneira a teoria dos direitos que Dworkin
desenvolveu no decorrer das suas obras culmina com o princípio
da integridade como uma tese da interpretação construtiva dos
direitos.

Ao completar esta unidade, será capaz de:


 Analisar o princípio da integridade desenvolvido por Dworkin,
como teoria da interpretação construtiva do Direito;
 Procurar entender os conceitos fundamentais deste filósofo,
Objectivos como princípios, regras, políticas, Juiz Hércules e hard cases;
 Investigar o método de resolução de casos difíceis de Hércules;
 Descrever as repercussões do princípio da integridade no
Direito.

PRINCÍPIOS, POLÍTICAS E REGRAS


Ronald Dworkin tem-se destacado com um pensamento
original e, conforme opinião de Wolkmer (2006, p. 38), é um dos
principais jusfilósofos que desenvolve críticas relevantes ao
liberalismo utilitarista e ao positivismo jurídico contemporâneo,
principalmente na versão dada a esta teoria pelo professor
Herbert Hart. Também é considerado por outros como um
“neojusnaturalista”. Esses autores também afirmam que sua
teoria é uma das que demonstra o enfraquecimento da dicotomia
“jusnaturalismo” e positivismo jurídico (OLIVEIRA JUNIOR).

Para outros, Dworkin é responsável por criar uma terceira


teoria do direito, onde a primeira e a segunda seriam o
positivismo jurídico e o jusnaturalismo (FALLON, 1992).

No seu livro Levando os Direitos a Sério (2002), Dworkin


apresenta uma teoria liberal do Direito, não atada apenas às
correntes que costumam ser identificadas como tal, positivismo e
utilitarismo jurídico. Para Dworkin, quando se cria uma teoria do
Direito, ela deve conter uma teoria da legislação e uma teoria da
decisão judicial. Nessa unidade será privilegiada a teoria da
decisão judicial, a qual, segundo o mesmo autor, precisa
estabelecer padrões que os juízes devem seguir para decidir os
casos jurídicos difíceis.

91
Nesse livro ele já começa a esboçar uma teoria conceitual
alternativa. A primeira distinção elaborada por Dworkin versa
sobre os direitos políticos, que podem ser direitos preferenciais
(prevalecem contra decisões tomadas pela sociedade); e direitos
institucionais mais específicos “que podem ser identificados como
uma espécie particular de um direito político, isto é, um direito
institucional a uma decisão de um tribunal na sua função
judicante” (DWORKIN, 2002, XV).

A teoria conceitual alternativa traça a possibilidade de que


os indivíduos tenham direito a uma decisão judicial favorável,
independente de uma decisão anterior favorável ou regra jurídica
expressa aplicável a seu caso. Para o professor de Oxford, essa
hipótese é possível com a distinção entre argumentos de princípio
e argumentos de política, uma vez que defende a tese de que as
decisões jurídicas baseadas em argumentos de princípios são
compatíveis com os princípios democráticos (DWORKIN, 2002,
XVI).

Não é o objectivo de Dworkin indicar, previamente, os


argumentos de política ou de princípio existentes, nem elencar
quais direitos um indivíduo possui abstratamente, mas analisar
casos difíceis, onde, mesmo os juízes mais criteriosos podem
divergir (DWORKIN, 2002, XIX).

Todavia, mesmo nesses casos, é necessário entender que,


para Dworkin, o juiz não tem o direito de criar novos direitos, mas
sim descobrir quais são eles em conformidade com o
ordenamento jurídico (COUTINHO, 2003).

A preocupação esboçada por Dworkin ao relacionar uma


teoria interpretativa do Direito com uma teoria da justificação
política não é uma preocupação efémera ou pontual. Em toda sua
obra perpassa essa necessidade de trabalhar em conjunto uma
concepção de Estado e o papel do Direito neste modelo de
sociedade escolhido.

Dworkin não distingue Direito e Moral, como faz Hart,


assim como para Ingeborg Mause Alexy.

Porém, segundo BAHIA, essa leitura de Dworkin é baseada


numa interpretação alexyana que se popularizou na Alemanha.
Porém para Günther e Habermas, Dworkin concebe a diferença
entre Direito e Moral, e também destes para argumentos éticos e
pragmáticos. Os argumentos morais são importantes na fase
legislativa, porém, no judiciário, valem os argumentos de princípio
e não mais os argumentos de política (BAHIA, 2005, p. 11).

Um dos exemplos trazidos para ilustrar a influência da


questão política sobre a questão jurídica trata da Lei de Relações
Raciais. Existe um conflito entre o direito de agremiações
escolherem seus associados segundo critérios próprios. Pela lei
supra, o direito de estar livre de discriminação é forte para
impedir que instituições inteiramente públicas pratiquem
discriminação, mas não tão forte a ponto de aniquilar o direito de
associações totalmente privadas de escolherem seus associados. A
dificuldade está nos casos intermediários, como as agremiações
político-partidárias (DWORKIN, 2000, p. 35).

Para entender a diversidade de argumentos é necessário


vislumbrar o peso que a diferença entre eles tem nas decisões,
mesmo que tratados por outros nomes ou de outras formas pelas
diversas teorias jurídicas. Nos casos difíceis, a concepção
positivista do Direito que o percebe apenas como um modelo de
regras, ignorando outros padrões como políticas e princípios, é
insuficiente (DWORKIN, 2002, p. 36).

Política é um tipo de padrão que estabelece um objectivo a


ser alcançado, em geral uma melhoria da comunidade (2002, p.

93
36). Dworkin já havia definido este conceito em Uma Questão de
Princípio. Esses argumentos de política justificam decisões
políticas, que fomentam algum objectivo colectivo (2002, p. 129).

Princípio, de maneira genérica, é todo padrão que não é


regra. Princípio, assim, pode ser entendido como um padrão que
deve ser observado por ser uma exigência da justiça ou equidade.
Sua repercussão não será, necessariamente, uma melhoria social.
(2002, p.36). Os argumentos de princípio justificam uma decisão
política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito
de um indivíduo ou de um grupo (2002, p. 129-130). “No caso dos
subsídios, poderíamos dizer que os direitos conferidos são gerados
por uma política e qualificados por princípios; no caso contra a
discriminação, são gerados por princípios e qualificados por
políticas” (DWORKIN, 2002, p. 130).

O objectivo imediato de Dworkin é distinguir princípios, no


sentido genérico, das regras. Analisa o caso “Riggs contra Palmer”,
onde em 1889 um tribunal de Nova Iorque teve que decidir se um
herdeiro nomeado no testamento de seu avô poderia herdar o
disposto naquele testamento, mesmo se ele próprio tivesse
assassinado seu avô com esse objectivo. O tribunal, levando em
conta que as leis e os contratos podem ser limitados por máximas
gerais e fundamentais do direito costumeiro, como a que dispõe
que “ninguém será permitido lucrar com sua própria fraude,
beneficiar-se com seus próprios actos ilícitos, basear qualquer
reivindicação na sua própria iniquidade ou adquirir bens em
decorrência de seu próprio crime”, não deu ao assassino o direito à
herança. (2002, p. 37). O tribunal não aplicou uma regra, aplicou
princípios.

Os padrões utilizados em decisões deste tipo não são


regras jurídicas, são princípios jurídicos. A distinção entre ambos é
de natureza lógica. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-
nada. Ou uma regra é válida, e a sua resposta deve ser aceita, ou
não é válida, e sua resposta em nada contribuirá (DWORKIN, 2002,
p. 39). Mas não é assim que funcionam os princípios jurídicos. O
exemplo utilizado por Dworkin é o exemplo do princípio “Nenhum
homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos”. Segundo ele,
esse princípio não pretende estabelecer condições que tornem
sua aplicação necessária. Ele apenas limita-se a enunciar uma
razão que conduz o argumento em certa direcção, e, por isso
mesmo, para ser concretizado, precisa de uma decisão particular.
Podem existir outros princípios ou outras políticas que
argumentem em outra direcção – uma política que garanta o
reconhecimento da validade de escrituras ou um princípio que
limite a punição ao que foi estipulado pelo Legislativo.

Se assim for, o princípio não prevalecerá, mas assim


mesmo continuará a ser um princípio do sistema jurídico, pois, em
outro caso, quando essas considerações em contrário estiverem
ausentes ou tiverem menor força, o princípio poderá ser decisivo
(DWORKIN, 2002, p. 41-42).

Outra diferença entre regras e princípios é que os


princípios possuem uma dimensão de peso e importância. Quando
os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de protecção
aos compradores de automóveis opõe-se aos princípios de
liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de
levar em conta a força relativa de cada um (DWORKIN, 2002, p.
42).

Já as regras ou são importantes ou desimportantes. Uma


regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque
desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do
comportamento. Se duas regras estão em conflito, uma suplanta a
outra em virtude de sua importância maior. (DWORKIN, 2002, 43).

95
Essa importância maior é dada com a resolução das antinomias
aparentes, estudadas por BOBBIO (1999), em Teoria do
Ordenamento Jurídico.

Mas a distinção entre regras e princípios nem sempre é


fácil. Muitas vezes eles confundem-se, tendo em vista a forma
muito próxima de ambos. Alguns termos como razoável,
negligente, injusto e significativo, segundo Dworkin, fazem com
que uma disposição funcione do ponto de vista lógico como uma
regra e do ponto de vista substantivo, como um princípio. Isso
porque a inclusão desses termos faz com que a aplicação da regra
dependa de princípios e políticas que vão além dela (DWORKIN,
2002, p. 45). Todavia, apenas o uso desses termos não transforma
uma regra em princípio.

Para Dworkin (2002, p. 46), os princípios jurídicos actuam


de maneira mais vigorosa nas questões judiciais difíceis. Todavia,
quando aplicados, os princípios dão origem a regras. No caso
“Riggs contra Palmer” a aplicação do princípio deu origem a uma
nova regra “um assassino não pode beneficiar-se do testamento
de sua vítima”.

Existem duas formas de análise dos princípios jurídicos, e a


escolha influencia a resolução do caso submetido ao tribunal.
Segundo primeira orientação, os princípios jurídicos devem
possuir obrigatoriedade de lei e ser levados em conta por juízes e
juristas que tomam decisões sobre obrigações jurídicas. Segundo
essa orientação, o direito inclui tanto regras como princípios.

Já a segunda orientação nega que princípios possam ser


obrigatórios. Para essa orientação, quando o juiz aplica princípios,
ele julga além do direito (DWORKIN, 2002, p. 46-47).
Apesar do enfoque bastante decisivo dado por Dworkin na
distinção entre princípios e políticas, para outras teorias essa
distinção pode não ser tão importante quanto para Dworkin.

A teoria de Hans-George Gadamer prevê que o texto a ser


interpretado não é uma coisa em si, mas possui um significado
pela virtude inferida do que ele chama de wirkungsgeschichte, ou
precedente, o conjunto histórico de interpretações que o texto
teve (HOY, 1987, p. 327). Todavia, não faz nenhuma distinção que
possa ser comparada com a distinção entre princípios e regras
feitas por Dworkin.

Ainda segundo HOY, essa distinção pode nem mesmo


ajudar a afirmação de Dworkin de que sempre há uma resposta
correcta (HOY, 1987, p. 337). Ainda assim, a distinção feita por
Dworkin é capaz de ajudar a resolver o problema da
discricionariedade em sentido forte da doutrina positivista.

A escolha entre uma ou outra abordagem afecta a resposta


aos casos difíceis. Se escolhermos a primeira orientação,
aceitaremos que o juiz está a aplicar direitos e obrigações jurídicas
preexistentes ao caso apresentado.

Se adoptarmos a segunda orientação, deveremos


reconhecer que em algumas decisões a parte sucumbente foi
privada de seus bens por um acto discricionário do juiz (DWORKIN,
2002, p. 49).

Neste ponto, a argumentação de Dworkin supera a


argumentação do positivismo jurídico, uma vez que não aceita a
discricionariedade do poder do juiz e encontra uma
fundamentação legítima para as decisões tomadas nos casos
difíceis. Segundo Ikawa (2006), Dworkin aceita a possibilidade de
discricionariedade judicial no sentido fraco e apenas rechaça-a no
sentido forte.

97
Analisando o conceito de regra de reconhecimento de
Hart, desenvolvido no seu livro O Conceito de Direito (2001),
Dworkin denuncia a inconsistência deste modelo para a integração
entre princípios e regras. Para ele os positivistas sempre lêem os
princípios e políticas como regras, lêem como se fossem padrões
tentando ser regras (DWORKIN, 2002, p. 62). Para ele também não
é correcto trabalhar com o conceito de válido ou não válido com
os princípios, uma vez que esse é apenas apropriado para as
regras, renunciando aí a abrangência dos princípios pela regra de
reconhecimento. (DWORKIN, 2002, p. 66) O autor conclui que não
é possível adaptar a versão de Hart do positivismo, modificando
sua regra de reconhecimento para incluir princípios (DWORKIN,
2002, p. 69).

Então lança a questão: “Se nenhuma regra de


reconhecimento pode fornecer um teste para identificar princípios,
por que não dizer que os princípios constituem a última instância e
constituem a regra de reconhecimento no nosso direito”? Mas isso
não é possível, tendo em vista que não é possível enumerar todos
os princípios que fazem parte de um direito vigente. Por isso, para
que seja possível tratar os princípios como direito, deve-se rejeitar
a doutrina positivista (DWORKIN, 2002, p. 72).

Entende-se, então, que os princípios não podem ser


considerados válidos ou não-válidos. Eles entram em conflito uns
com os outros e interagem. Fornecem justificativas a favor de uma
determinada solução de um caso difícil, mas não a estipula. E, sua
não aplicação em determinado caso não indica que não é válido.
Poderá ser aplicado em outro caso.

Não existe um número fixo de padrões, dos quais se pode


dizer que tantos são regras e outros são princípios. Não cabe na
concepção de Dworkin um conjunto fixo de padrões.
CASOS DIFÍCEIS

Segundo o positivismo jurídico, diante dos casos difíceis, os


juízes possuem poder discricionário para decidir. Casos difíceis
são aqueles que não podem ser decididos apenas com base em
regras, ou porque essas não são claras, ou porque não foram
escritas. Em virtude dessa similitude de termos, Ikawa (2004)
explica que o termo HARD CASES utilizado por Dworkin, é
sinónimo de lacuna da lei, utilizado pelos positivistas e por Herbert
Hart.

A partir dessa teoria, quando o juiz decide um caso difícil,


ele legisla novos direitos jurídicos, e aplica-os retroactivamente.
Por isso essa teoria da decisão é totalmente inadequada, uma vez
que causa insegurança jurídica e, provavelmente, gera decisões
injustas (DWORKIN, 2002, p. 128).

Dworkin afirma que uma teoria geral sobre a validade da


lei não é uma teoria neutra, como defendem os positivistas, entre
eles seu interlocutor Herbert Hart. Para Dworkin, uma teoria sobre
a validade das leis é sempre interpretativa, e é o modo como se
deve interpretá-la que deve ser justificado (DWORKIN, 2004, p.2).

Criticando Dworkin, Postema (1987, p. 286-287) assevera


que, segundo a teoria dele, as deliberações legais podem ser
iluminadas a partir da prática social de interpretação geral. Porém
essa concepção esbarra em dois problemas: 1) onde há desacordo
entre os participantes da comunidade personificada, será
necessário escolher de maneira arbitrária alguns participantes
como porta-vozes; e 2) onde há um consenso forte entre os
participantes da comunidade personificada, não existe
possibilidade de nenhuma crítica desafiadora do pensamento
dominante.

99
Um caso será difícil quando um juiz, na sua análise
preliminar, não encontrar uma interpretação que se sobreponha a
outra, entre duas ou mais interpretações de uma lei ou de um
julgado (DWORKIN, 2003, p. 306). Uma lei só será considerada
obscura quando existirem bons argumentos para mais de uma
interpretação em confronto (DWORKIN, 2003, p. 421).

Em vista desse posicionamento, tornou-se necessário


desenvolver uma nova teoria da decisão, uma vez que deve se
garantir a uma das partes o direito de uma resposta favorável
mesmo que não haja um precedente estrito ou uma lei específica.
O juiz não deve, de forma alguma, criar novos direitos que valham
retroactivamente (DWORKIN, 2002, p. 128).

Para que se descubram quais direitos a parte têm, é


necessário que se conheçam os princípios políticos que inspiraram
a Constituição. Esses princípios auxiliam a leitura da Constituição,
limitando seu conteúdo e auxiliando nos casos difíceis. Mesmo as
decisões dos tribunais que são consideradas decisões políticas
importantes, podem ser lidas como decisões tomadas com base
em princípios, uma vez que as decisões de princípios são aquelas
baseadas nos direitos que as pessoas têm a partir da Constituição,
e não em políticas que buscam realizar objectivos colectivos
(DWORKIN, 2000, p.101; 2002, p. 133).

As decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os


termos claros de uma lei de validade inquestionável, são sempre
justificadas pelos argumentos de princípio, mesmo que a lei em si
tenha sido gerada por uma política (DWORKIN, 2002, p. 131).

Muitas vezes é possível confundir argumentos de princípio


com argumentos de política, todavia deve-se ater à orientação de
Dworkin, onde argumentos de princípios falam sobre direitos que
as pessoas têm em face do ordenamento jurídico e argumentos de
política falam sobre objectivos colectivos que o Estado pretende
alcançar.

Segundo a teoria dos direitos, desenvolvida no livro


Levando os Direitos a Sério, aplicada pelo juiz filósofo Hércules,
existe um caminho para se chegar a uma resposta correcta nos
casos difíceis. Hércules é um juiz que aceita as leis, e acredita que
os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu
tribunal ou dos tribunais superiores. Hércules precisa descobrir a
intenção da lei – ponte entre a justificação política da ideia geral
de que as leis criam direitos e aqueles casos difíceis que
interrogam sobre que direitos foram criados por uma lei
específica. E também o conceito de princípios que subjazem às
regras positivas do direito, fazendo uma ponte entre a justificação
política da doutrina segundo a qual os casos semelhantes devem
ser decididos da mesma maneira e aqueles casos difíceis nos quais
não fica claro o que essa regra requer. Assim, em primeiro lugar,
estudará a Constituição, procurando entender as regras que ela
contém, as interpretações judiciais anteriores, e a filosofia política
que embasa os direitos ali dispostos (DWORKIN, 2002, p. 165-
168). Depois disso procurará a interpretação que vincula de modo
mais satisfatório o disposto pelo legislativo a partir das leis
promulgadas e suas responsabilidades como juiz (DWORKIN, 2002,
p. 169). Ainda se perguntará qual argumento de princípio e de
política convenceria o poder legislativo a promulgar a lei sob
estudo.

Hércules também utilizará uma teoria política para


interpretar a lei, para descobrir o seu fim (DWORKIN, 2002, p. 168-
171).

O terceiro passo na sua busca pela melhor resposta é a


análise dos precedentes, no caso de o problema a ele submetido
não ser regulado por nenhuma. Ao analisar os precedentes,

101
Hércules levará em conta os argumentos de princípio que o
embasaram.

Mas, uma vez que Hércules será levado a aceitar a tese dos
direitos, sua interpretação das decisões judiciais será diferente de
sua interpretação das leis num aspecto importante. Quando
interpreta as leis, ele atribui à linguagem jurídica, como vimos,
argumentos de princípio ou de política que fornecem a melhor
justificação dessa linguagem à luz das responsabilidades do poder
legislativo. A sua argumentação continua a ser um argumento de
princípio. Ele usa a política para determinar que direitos já foram
criados pelo Legislativo. Mas, quando interpreta as decisões
judiciais, atribuirá à linguagem relevante apenas argumentos de
princípio, pois a tese dos direitos sustenta que somente tais
argumentos correspondem à responsabilidade do tribunal em que
foram promulgadas (DWORKIN, 2002, p.173).

Sumário
Analisa o princípio da integridade desenvolvido por
Dworkin, como teoria da interpretação construtiva do Direito.

Procura entender os conceitos fundamentais deste


filósofo, como princípios, regras, políticas, Juiz Hércules e hard
cases.

Investiga o método de resolução de casos difíceis de


Hércules.

Descreve as repercussões do princípio da integridade no


Direito.
Exercício 7
1. Que entende por hermenêutica contemporância de Dworkin?
2. Analise o princípio da integridade desenvolvido por Dworkin,
como teoria da interpretação construtiva do Direito.
3. Procure entender os conceitos fundamentais deste filósofo,
como princípios, regras, políticas, Juiz Hércules e hard cases.
4. Investigue o método de resolução de casos difíceis de
Hércules.
5. Descreva as repercussões do princípio da integridade no
Direito.

1. Define hermenêutica contemporância.


2. Em que consiste o princípio da integridade?
3. Que entende por hard cases?
Auto-avaliação
4. O que significa “casos difíceis” em hermenêutica jurídica?

5. O que quer dizer discricionariedade fraca?

Unidade 8

Direito, argumentação e retórica


Introdução
Nesta oitava unidade, abordaremos Direito, argumentação
e retórica.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

103
 Conhecer os conceitos Direito, argumentação e retórica;
 Distingui-los.
Objectivos

A palavra "direito" possui mais de um significado correlato:

 é o sistema de normas de conduta criado e imposto por


um conjunto de instituições para regular as relações
sociais: direito objectivo.
 é a faculdade concedida a uma pessoa para mover a ordem
jurídica a favor de seus interesses: direitos subjectivos.
 é o ramo das ciências sociais que estuda o sistema de
normas que regulam as relações sociais: "ciência do
direito".
Apesar da existência milenar do direito nas sociedades
humanas e de sua estreita relação com a civilização, há um grande
debate entre os filósofos do direito acerca do seu conceito e de
sua natureza. Mas, qualquer que sejam estes últimos, o direito é
essencial à vida em sociedade, ao definir direitos e obrigações
entre as pessoas e ao resolver os conflitos de interesse.

Argumentação
A teoria da argumentação, ou simplesmente
argumentação, é o estudo interdisciplinar de como conclusões
podem ser alcançadas através do raciocínio lógico; ou seja,
argumentar é afirmar algo, seguramente ou não, baseado em
premissas. Isso inclui as artes e as ciências do debate civil, o
diálogo e a persuasão. Engloba o estudo das regras de inferência,
da lógica e das regras de procedimento, tanto em cenários
artificiais quanto no mundo real. A argumentação inclui o debate e
a negociação, das quais possuem interesse em alcançar
conclusões mutuamente aceitáveis. Também engloba o diálogo
erístico, o ramo do debate social em que a vitória sobre um
oponente é o objectivo principal. Esta arte e ciência é com
frequência o meio por qual algumas pessoas protegem suas
crenças ou seus interesses num diálogo racional, em linguagem
comum, e durante o processo de defender suas ideias. A
Argumentação é usada na advocacia, por exemplo em tribunais,
para provar ou refutar a validade de certos tipos de evidências.
Além disso, estudiosos da teoria da argumentação estudam as
razões post hoc (após o acto concluído) mediante as quais um
indivíduo pode justificar decisões que originalmente poderiam ter
sido realizadas de forma irracional.

105
Desde a antiguidade, a argumentação tem sido objecto de
interesse de todas as áreas em que se pratica a arte de falar e
escrever de forma persuasiva.

Componentes chave da argumentação

 Entender e identificar argumentos, estando eles explícitos


ou implícitos, e os objectivos dos participantes nos
diferentes tipos de diálogos.
 Identificar as premissas de que as conclusões são
derivadas.
 Estabelecer o "ônus da prova" – determinar quem fez a
afirmação inicial e, portanto, quem é o responsável por
prover evidencias que tornam a sua posição digna de
aceitação.
 Para o responsável pelo "ônus da prova", o advogado, para
combinar evidências de sua posição a fim de convencer ou
forçar a aceitação do oponente. O método pelo qual isso é
feito é produzir um argumento válido, sólido e
convincente, desprovido de fraquezas e não facilmente
atacado.
 Num debate, o cumprimento do ônus da prova cria um
ônus da tréplica. O sujeito deve tentar identificar falhas no
raciocínio pelo argumento do oponente, para atacar as
razões/premissas do argumento, para fornecer contra
exemplos se possível, para identificar alguma falácia, e
para mostrar por que uma conclusão não pode ser
derivada das razões apresentadas pelo seu argumento.

Estrutura interna dos argumentos

Normalmente um argumento possui uma estrutura interna,


compreendendo o seguinte:
1. conjunto de pressupostos ou premissas;
2. um método de raciocínio ou dedução;
3. uma conclusão ou ponto.

Um argumento deve ter pelo menos duas premissas e uma


conclusão. Frequentemente a lógica clássica é usada como o
método de raciocínio em que a conclusão é inferida logicamente
dos pressupostos. Um desafio é que se um conjunto de
pressupostos é inconsistente, então nada pode ser inferido
logicamente da inconsistência. Por isso é comum exigir que o
conjunto de pressupostos apresentado seja consistente. É
também uma boa prática exigir que o conjunto de pressupostos
ser o mínimo possível, com relação ao conjunto de inclusão,
necessário para inferir o consequente. Tais argumentos são
chamados argumentos MINCON, abreviação para mínimo
consistente. Esse tipo de argumentação tem sido aplicado nos
campos do direito e da medicina. Uma segunda escola de
argumentação investiga argumentos abstratos, onde o argumento
em si é considerado um termo primitivo, por isso nenhuma parte
da estrutura interna dos argumentos é levada em conta. Na sua
forma mais comum, a argumentação envolve um indivíduo e um
interlocutor ou um oponente engajado num diálogo, cada um
defendendo diferentes posições e tentando convencer o outro.
Outros tipos de diálogos além do convencimento são a erística,
busca de informações, investigação, negociação, deliberação e o
método dialético (Douglas Walton). O método dialético ficou
famoso por causa de Platão nas suas histórias sobre Sócrates
questionando criticamente vários personagens, entre eles figuras
históricas.

107
Argumentação e os fundamentos do
conhecimento

A teoria da argumentação teve suas origens na teoria do


conhecimento (epistemologia), pertencente ao campo da filosofia,
que demandou a procura de bases para as configurações (lógica,
leis que regem o abstrato) e os materiais (física, leis que regem o
concreto) de um sistema universal de conhecimento. Mas
estudiosos do argumento rejeitaram gradualmente a filosofia
sistemática de Aristóteles e o idealismo de Platão e Kant. Eles
questionaram e descartaram totalmente a ideia de que as
premissas dos argumentos recebem sua solidez do sistema
filosófico formal. O seu campo assim foi expandido. O primeiro
ensaio de Karl R. Wallace, "A Substância da Retórica: Boas Razões"
no Quarterly Journal of Speech 44 (1963), levou muitos estudiosos
a estudar a "argumentação de mercado" – os argumentos comuns
das pessoas comuns. O primeiro ensaio da argumentação de
mercado foi feito por Ray Lynn Anderson e David C. Mortensen,
"Lógica e Argumentação de Mercado" no Quarterly Journal of
Speech 53 (1967): 143-150. Essa linha de pensamento levou a uma
aliança natural com os desenvolvimentos mais recentes na
sociologia do conhecimento. Alguns estudiosos obtiveram
conexões com desenvolvimentos recentes na filosofia, isto é, o
pragmatismo de John Dewey e Richard Rorty. Rorty tinha
chamado esta mudança de ênfase de "a virada linguística". Nesta
nova abordagem de argumentação híbrida é usada com ou sem
evidência empírica para estabelecer conclusões convincentes
sobre problemas que são de natureza moral, científica,
epistêmica, ou de uma natureza que a ciência sozinha não pode
responder. Fora do pragmatismo e de muitos desenvolvimentos
intelectuais nas ciências humanas e sociais, teorias da
argumentação "não-filosóficas" cresceram os campos dos
argumentos formal e material em campos intelectuais
particulares. Estas teorias incluem lógica informal, epistemologia
social, etnometodologia, actos de fala, a sociologia do
conhecimento, a sociologia da ciência, e a psicologia social. Essas
novas teorias não são não-lógicas ou anti-lógicas. Elas procuram
coerência lógica na maioria das comunidades de discurso. Essas
teorias são portanto costumeiramente rotuladas como
"sociológicas" em que eles focam nos campos sociais do
conhecimento.

Tipos de argumentação

Há vários tipos de argumentação, nomeadamente:


argumentação da conversação, argumentação matemática,
argumentação científica, argumentação jurídica e argumentação
política. Contudo, detiremos a nossa atenção às seguintes:

Argumentação Jurídica

A argumentação jurídica é um conjunto de apresentações


faladas a um juiz ou tribunal de apelação por um advogado, ou
grupos de advogados, enquanto defendem as razões legais pelo
qual eles deveriam prevalecer. Alegações orais em grau de recurso
são acompanhadas de resumos escritos, que também servem para
avançar o argumento de cada uma das partes na disputa legal. Um
argumento de encerramento, ou soma, é a declaração de
conclusão do conselho de cada parte reiterando os argumentos
importantes para o julgador de facto, muitas vezes o júri, num
processo judicial. Um argumento de encerramento costuma
ocorrer após a apresentação de provas.

109
Argumentação Científica

Talvez a declaração mais radical dos fundamentos sociais


do conhecimento científico tenha sido dita por Alan G. Gross em A
Retórica da Ciência (Cambridge: Harvard University Press, 1990).
Gross afirma que a ciência é retórica "sem resto" [carece de
fontes] o que significa que o conhecimento científico em si não
pode ser visto como uma área idealizada do conhecimento. O
conhecimento científico é produzido de forma retórica, o que
significa que ele tem autoridade epistêmica especial somente
quando os seus métodos costumeiramente usados para
verificação são confiáveis. Esse ponto de vista representa uma
rejeição quase completa do fundacionalismo em que as bases da
argumentação foram criadas.

Aspectos psicológicos

A muito tempo a psicologia tem estudado aspectos não


lógicos de argumentação. Por exemplo, estudos têm demonstrado
que a simples repetição de uma ideia é muitas vezes um método
mais eficaz de argumentação que o apelo à razão. Propaganda,
muitas vezes utiliza a repetição como ferramenta de
convencimento. A retórica nazista tem sido estudada
extensivamente como, entre outras coisas, uma campanha de
repetição. Estudos empíricos sobre a credibilidade do
comunicador e atractividade, também chamado de carisma,
também foram intimamente associados a melhoria dos
argumentos. Tais estudos trazem argumentação para o escopo da
teoria e da prática da persuasão. Alguns psicólogos como William
J. McGuire acreditam que o silogismo é a unidade básica do
raciocínio humano. Eles produziram um grande corpo de trabalho
empírico em torno famoso título de McGuire "Uma análise
silogística das relações cognitivas". O ponto principal desta forma
de pensar é que a lógica está contaminada por variáveis
psicológicas, como "wishful thinking" (o desejo do acontecimento
conforme o previsto), na qual os sujeitos confundem a
probabilidade de previsões com a conveniência de as previsões. As
pessoas ouvem o que querem ouvir e vêem o que eles esperam
ver. Se os planificadores querem que algo aconteça, eles vêem
isso como provável que aconteça. Se eles esperam que alguma
coisa não vai acontecer, que eles vêem como improvável que isso
aconteça, o que no final afecta os seus resultados. Assim fumantes
pensam que, pessoalmente, nunca terão câncer. Pessoas
promíscuas praticam sexo inseguro. Adolescentes dirigem de
forma imprudente.

Teorias
Campos de estudo da argumentação

Stephen E. Toulmin e Charles Arthur Willard têm defendido


a ideia de campos de argumentação, corrigindo a noção de Ludwig
Wittgenstein dos jogos de linguagem, (Sprachspiel) que era a
noção anterior de comunicação e teoria da argumentação,
sociologia, ciência política e epistemologia social. Para Toulmin, o
termo "campo" designa os discursos dentro dos quais argumentos
e alegações de facto estão fundamentados. Para Willard, o termo
"campo" é intercambiável com "comunidade", "público" ou
"leitores". Usando linhas de pensamento semelhantes, G. Thomas
Goodnight tem estudado "esferas" da argumentação e provocado
reacções por parte dos jovens estudiosos que o respondem e
usam das suas ideias. O teor geral dessas teorias de campo é que
as premissas dos argumentos tomam o seu significado a partir de
comunidades sociais. Os estudos de campo podem concentrar-se
em movimentos sociais, questões de interesse público, grupos de
activistas, campanhas de relações públicas e problemas de gestão

111
para corporações, comunidades científicas e conflitos, campanhas
políticas, e tradições intelectuais. Na forma de agir de um
sociólogo, etnógrafo, antropólogo, observador participante e
jornalista; os teóricos de campo reúnem e relatam discursos
humanos do mundo real, reunindo estudos de caso que podem,
eventualmente, ser combinados para produzir explicações de todo
o contexto sobre os processos de argumentação. Esta não é uma
busca de alguma linguagem mestre ou teoria mestre abrangendo
todas as especificidades da actividade humana. Teóricos de campo
são agnósticos sobre a possibilidade de uma única teoria
grandiosa e cépticos sobre a utilidade de tal teoria. A busca deles
é uma missão mais modesta, procurando as teorias de "alcance
médio" que podem permitir generalizações sobre as famílias dos
discursos.

Componentes do argumento

Em The Uses of Argument (1958), Toulmin propôs um layout que


contém seis componentes interrelacionados para a análise de
argumentos:

1. Alegação: Conclusões cujo mérito deve ser estabelecido.


Por exemplo, se uma pessoa tenta convencer um ouvinte
que ele é um cidadão moçambicano, a alegação seria "Eu
sou um cidadão moçambicano."
2. Dados: Os factos que servem como uma base para a
alegação. Por exemplo, a pessoa introduzida em 1 pode
apoiar a sua alegação com dados de apoio como "Eu nasci
na Beira."
3. Garantia: A declaração que autoriza a comprovação da
alegação a partir dos dados. A fim de avançar a partir dos
dados estabelecidos no 2, "Eu nasci na Beira," para a
afirmação de 1 "Eu sou um cidadão moçambicano," a
pessoa deve fornecer uma garantia para preencher a
lacuna entre 1 e 2 com a declaração "um homem nascido
na Beira vai ser legalmente um cidadão moçambicano." (3)
4. Apoio: Poderes destinados a certificar a declaração
expressa na garantia; os apoios devem ser introduzidos
quando a própria garantia não convince o suficiente para
os leitores ou os ouvintes. Por exemplo, se o ouvinte não
considera o mandado em 3 como confiável, a pessoa que
fez a afirmação irá fornecer as disposições legais como
declaração de apoio para mostrar que é verdade que "Um
homem nascido na Beira vai ser legalmente um cidadão
moçambicano."
5. Refutação: Demonstrações reconhecendo as restrições a
que a alegação pode ser legitimamente aplicada. A
refutação é exemplificada da seguinte forma: "Um homem
nascido na Beira vai ser legalmente um cidadão
moçambicano, a menos que ele tenha sido considerado um
traidor do Estado Moçambicano ou tenha se tornado um
espião de outro país."
6. Qualificador: palavras ou frases que expressam o grau de
confiança da pessoa que fez a afirmação ou certeza sobre o
crédito. Tais palavras ou frases incluem "possível",
"provavelmente", "impossível", "certamente",
"provavelmente", "de acordo com as provas", ou
"necessariamente". A afirmação "Eu sou definitivamente
um cidadão moçambicano" tem um maior grau de certeza
do que a afirmação "Eu sou um cidadão moçambicano,
provavelmente."

Os três primeiros elementos "alegação", "dados" e "garantias"


são considerados os componentes essenciais dos argumentos
práticos, enquanto a segunda tríade "qualificador", "apoio" e

113
"refutação" podem não ser necessários em alguns argumentos.
Quando proposto pela primeira vez, este layout de argumentação
baseia-se em argumentos legais e destinados a ser utilizados para
analisar a racionalidade dos argumentos normalmente
encontrados na sala de audiências, na verdade, Toulmin não
percebeu que este esquema seria aplicável ao campo da retórica e
comunicação até que as suas obras foram introduzidas como
retóricas por Wayne Brockriede e Douglas Ehninger. Só depois, ele
publicou Introduction to Reasoning (1979) onde as aplicações
retóricas deste layout foram mencionadas.

Retórica (do latim rhetorica, originado no grego ῥητορικὴ


τέχνη [rhêtorikê], literalmente a «arte/técnica de bem falar», do
substantivo rhêtôr, «orador») é a arte de usar uma linguagem para
comunicar de forma eficaz e persuasiva.

A retórica teria nascido no século V a.C., na Sicília, e foi


introduzida em Atenas pelo sofista Górgias, desenvolvendo-se nos
círculos políticos e judiciais da grécia antiga. Originalmente visava
persuadir uma audiência dos mais diversos assuntos, mas acabou
por tornar-se sinónimo da arte de bem falar, o que opôs os
sofistas ao filósofo Sócrates e seus discípulos. Aristóteles, na obra
"Retórica", lançou as bases para sistematizar o seu estudo,
identificando-a como um dos elementos chave da filosofia, junto
com a lógica e a dialética. A retórica foi uma das três artes liberais
ensinadas nas universidades da Idade Média, constituindo o
"trivium", junto com a lógica e a gramática. Até o século XIX foi
uma parte central da educação ocidental, preenchendo a
necessidade de treinar oradores e escritores para convencer
audiências mediante argumentos.

Retórica
A retórica apela à audiência em três frentes: logos, pathos
e ethos. A elaboração do discurso e sua exposição exigem atenção
a cinco dimensões que se complementam (os cinco cânones ou
momentos da retórica): inventio ou invenção, a escolha dos
conteúdos do discurso; dispositio ou disposição, organização dos
conteúdos num todo estruturado; elocutio ou elocução, a
expressão adequada dos conteúdos; memoria, a memorização do
discurso e pronuntiatio ou acção, sobre a declamação do discurso,
onde a modulação da voz e gestos devem estar em consonância
com o conteúdo (este 5º momento nem sempre é considerado).

A retórica é uma ciência (no sentido de um estudo


estruturado) e uma arte (no sentido de uma prática assente numa
experiência, com uma técnica). No início, a retórica ocupava-se do
discurso político falado, a oratória, antes de se alargar a textos
escritos e, em especial, aos literários, disciplina hoje chamada
"estilística". A oratória é um dos meios pelos quais se manifesta a
retórica, mas não o único. Pois, certamente, pode-se afirmar que
há retórica na música ("Para não dizer que não falei da Flores", de
Geraldo Vandré: retórica musical contra a ditadura), na pintura (O
quadro "Guernica", de Picasso: retórica contra o fascismo e a
guerra) e, obviamente, na publicidade. Logo, a retórica, enquanto
método de persuasão, pode manifestar- se por todo e qualquer
meio de comunicação.

Os Sofistas

O primeiro estudo sistematizado acerca do poder da


linguagem em termos de persuasão é atribuído ao filósofo
Empédocles (444 a.C.), do qual as teorias sobre o conhecimento
humano iriam servir de base para vários teorizadores da retórica.
O primeiro livro de retórica escrito é comumente atribuído a Corax
e seu pupilo Tísias. A sua obra, bem como as de diversos retóricos

115
da antiguidade, surgiu das tribunas jurídicas; Tísias, por exemplo, é
tido como autor de diversas defesas jurídicas defendidas por
outras personalidades gregas (uma das funções primárias de um
sofista). A Retórica foi popularizada a partir do século V a.C. por
mestres peripatéticos (itinerantes) conhecidos como "sofistas". Os
mais conhecidos destes foram Protágoras (481-420 A.C.), Górgias
(483-376 A.C.), e Isócrates (436-338 A.C.).

Os sofistas compunham-se de grupos de mestres que


viajavam de cidade em cidade realizando aparições públicas
(discursos, etc.) para atrair estudantes, de quem cobravam taxas
para oferecer-lhes educação. O foco central de seus ensinamentos
concentrava-se no logos ou discurso, com foco em estratégias de
argumentação. Os mestres sofistas alegavam que podiam
“melhorar” seus discípulos, ou, em outras palavras, que a
“virtude” seria passível de ser ensinada.

Diversos sofistas questionaram a propalada sabedoria


recebida pelos deuses e a supremacia da cultura grega (uma ideia
absoluta à época). Argumentavam, por exemplo, que as práticas
culturais existiam em função de convenções ou “nomos”, e que a
moralidade ou imoralidade de um acto não poderia ser julgada
fora do contexto cultural em que aquele ocorreu.

A conhecida frase “o homem é a medida de todas as


coisas” surgiu dos ensinamentos sofistas. Uma das mais famosas
doutrinas sofistas é a teoria do contra-argumento. Eles ensinavam
que todo e qualquer argumento poderia ser contraposto por outro
argumento, e que a efectividade de um dado argumento residiria
na verossimilhança (aparência de verdadeiro, mas não
necessariamente verdadeiro) perante uma dada plateia.
O termo “sofista” tem uma conotação pejorativa nos dias
de hoje mas, na Grécia antiga, os sofistas eram profissionais muito
bem remunerados e respeitados por suas habilidades.

Retórica clássica, Aristóteles

Aristóteles (384-322 a.C.) desenvolveu um tratado


alargado sobre a retórica, que ainda é alvo de estudo cuidadoso.
Na frase de abertura de A Arte da Retórica, afirma que "a retórica
é a contraparte [literalmente, antistrofe] da dialética". Assim,
enquanto os métodos dialéticos são necessários para encontrar a
verdade em questões teóricas, métodos retóricos são necessários
em assuntos práticos, tais como a defesa da culpa ou inocência de
alguém, quando acusado perante a lei ou para decidir um curso de
acção prudente a ser tomado por uma assembleia deliberativa.

Retórica versus oratória

Após a ascensão romana, a oratória tornou-se a tradução


latina de retórica, enquanto técnica de comunicação. Com uma
distinção todavia: enquanto o núcleo da retórica compunha-se de
técnicas de contestação (persuasão), a oratória visava a
eloquência.

A mudança de rumos deve-se exactamente ao ambiente


em que as duas técnicas se encontraram. Enquanto a retórica
grega existiu em ambiente democrático, a oratória (que originou
da retórica) desenvolveu-se em ambientes totalitários.

Actualmente, a oratória ainda se refere à busca da beleza


na fala (estilo), enquanto retórica é definida como a "arte da
persuasão".

117
Retórica em testamentos

Comumente, o testamento pode ser conceituado como um


acto derradeiro de último desejo. Nele, portanto, encerram-se os
anseios e as vontades do “post mortem”. O testamento, como
acto de última vontade, é uma instituição que remonta às
civilizações mais antigas. Eles foram uma matéria muito
importante na legislação de qualquer povo já que eram
considerados “um instrumento que promove o trabalho e a
economia, suscita o amor e a gratidão permitindo a perpetuação
da memória e recordação do testador”. (ROCHA 1857). Para
TORRES (1998) “são os testamentos uma documentação
privilegiada cuja plurivocidade histórica vem sendo
mulcifacetadamente explorada e aplaudida por motivo dos
contributos da vária índole desveladores de angulações do
passado, nos campos político, econômico, social, religioso,
intercomunicacional entre outros, seja ao nível das instituições e
das mentalidades coletivas, seja ao dos indivíduos e de sua
compleição e cultura.” Dadas essas características, é possível
afirmar, portanto, que os testamentos são documentos
carregados de elementos retóricos, tal como nos ensina
Aristóteles. PLEBE (1978) comenta que “Aristóteles confere um
carácter mais sistemático à tripartição dos géneros oratórios, já
presente em Anaxímedes de Lâmpsaco. Ele principia por
individualizar três factores fundamentais de todo discurso: aquele
que fala, o argumento em torno do qual ele fala, a pessoa a quem
ele fala. Destes três elementos, o terceiro – o ouvinte é o que
determina a estrutura do discurso.” Os testamentos, dessa forma,
são documentos carregados de elementos prontos para o uso,
indispensáveis à arte do bem dizer, “lugares” onde o homem
letrado conhecedor da “res litteraria” encontra tais elementos.
(ALCIDES, 2003) São fontes formais dirigidas a um público com o
objectivo de expressar uma última vontade, mas sem expressá-la
de qualquer modo. É fazê-lo de forma a obedecer uma certa
oralidade e tradicionalidade. Sobre os testamentos no século XVIII,
particularmente, DURÃES (2005) diz que “além de continuar a
revelar as preocupações de ordem religiosa e o cuidado posto na
salvação da alma, o testamento passou a ter uma outra função
essencial: organizar a vida económica e social da família após a
morte de um dos seus membros. A partir daquele momento, o
testamento passou a ser um todo possuindo uma unidade
fundamental gerada pelos laços funcionais existentes entre os
legados pios e a partilha dos bens pelos herdeiros. Esta estrutura,
com as respectivas solenidades internas (nomeação do herdeiro,
nomeação do testamenteiro, número de testemunhas) manter-se-
á ao longo de todo o século XVIII” e são os elementos que
constituirão essa arte retórica.

Sumário
Direito é uma palavra polissémica: (1) sistema de normas de
conduta criado e imposto por um conjunto de instituições para
regular as relações sociais; (2) faculdade concedida a uma pessoa
para mover a ordem jurídica a favor de seus interesses; (3) ramo
das ciências sociais que estuda o sistema de normas que regulam
as relações sociais.

A argumentação é o estudo interdisciplinar de como


conclusões podem ser alcançadas através do raciocínio lógico.

São tipos de argumentação os seguintes: da conversação,


matemática, científica, jurídica e política.

119
A retórica é uma ciência (no sentido de um estudo
estruturado) e uma arte (no sentido de uma prática assente numa
experiência, com uma técnica).

A oratória é a busca da beleza na fala (estilo), enquanto


retórica é a "arte da persuasão".

Exercício 8
1. Quais são as várias acepções do termo “direito”?
2. Qual é a estrutura interna da argumentação?
3. Distingue a argumentação científica da jurídica.
4. Relacione direito, argumentação e retórica.
5. Que infuência têm os sofistas na argumentação jurídica?
6. Diferencie retórica da oratura.
7. Aborde as componentes do argumento, baseando-se num caso
prático jurídico.

1. Define Direito.
Auto-avaliação 2. Que entende por Argumentação?

3. Qual é o papel da Retórica no exercício do Direito?

4. Que impacto tem a Oratura na hermenêutica jurídica?

5. Aponte dois aspectos positivos da Retórica nos Testamentos.

6. Qual é aestrutura da Argumentação?


Unidade 9

Teorias discursivas contemporâneas

Introdução
Esta unidade 09 traz para reflexão as teorias discursivas
contemporâneas.

Nesta unidade serve-se como convite para uma pesquisa


sobre as teorias do discurso, sem, de forma alguma, perder de
vista a figura Jürgen Habermas, um dos mais importantes
intelectuais contemporâneos.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Conhecer as teorias discursivas contemporâneas;


 Percorrer o pensamento discursivo de Habermas;
Objectivos  Estudar as variadas estratégias comunicativas.

Teorias discursivas contemporâneas


Abordar as teorias discursivas contemporâneas é inevitável
incontornar Jürgen Habermas, um filósofo e sociólogo alemão,
inserido na tradição da teoria crítica e do pragmatismo. Ele era
conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e a
esfera pública, sendo considerado como um dos mais importantes
intelectuais contemporâneos.

Associado com a Escola de Frankfurt, o trabalho de


Habermas trata dos fundamentos da teoria social e da

121
epistemologia, da análise da democracia nas sociedades sob o
capitalismo avançado, do Estado de direito num contexto de
evolução social e da política contemporânea, particularmente na
Alemanha.

No seu sistema teórico, Habermas procura revelar as


possibilidades da razão, da emancipação e da comunicação
racional-crítica, latentes nas instituições modernas e na
capacidade humana de deliberar e agir em função de interesses
racionais.

Habermas é conhecido por seu trabalho sobre a


modernidade e particularmente sobre a racionalização, nos
termos originalmente propostos por Max Weber. O pensamento
de Habermas também tem sido influenciado pelo pragmatismo
americano, pela teoria da acção e mesmo pelo pós-estruturalismo.

Pensamento

Max Horkheimer (na frente, à esquerda), Theodor Adorno (na frente, à direita) e Jürgen Habermas
no fundo, à direita, em Heidelberg, 1965.

Em geral, considerado como o principal herdeiro das


discussões da Escola de Frankfurt, uma das principais correntes do
Marxismo Ocidental, Habermas procurou, no entanto, superar o
pessimismo dos fundadores da Escola, quanto às possibilidades de
realização do projecto moderno, tal como formulado pelos
iluministas. Profundamente marcados pelo desastre da Segunda
Guerra Mundial, Adorno e Horkheimer consideravam que
houvesse um vínculo primordial entre conhecimento racional e
dominação, o que teria determinado a falência dos ideais
modernos de emancipação social.

Para recolocar o potencial emancipatório da razão,


Habermas adopta o paradigma comunicacional. O seu ponto de
partida é a ética comunicativa de Karl Otto Apel , além do conceito
de "razão objectiva" de Adorno, também presente em Platão,
Aristóteles e no Idealismo alemão - particularmente na ideia
hegeliana de reconhecimento intersubjectivo.

Assim, Habermas concebe a razão comunicativa - e a


acção comunicativa ou seja, a comunicação livre, racional e crítica
- como alternativa à razão instrumental e superação da razão
iluminista - "aprisionada" pela lógica instrumental, que encobre a
dominação. Ao pretender a recuperação do conteúdo
emancipatório do projecto moderno, no fundo, Habermas está
preocupado com o restabelecimento dos vínculos entre socialismo
e democracia.

Segundo o autor, duas esferas coexistem na sociedade: o


sistema e o mundo da vida. O sistema refere-se à 'reprodução
material', regida pela lógica instrumental (adequação de meios a
fins), incorporada nas relações hierárquicas (poder político) e de
intercâmbio (economia).

O mundo da vida é a esfera de 'reprodução simbólica', da


linguagem, das redes de significados que compõem determinada
visão de mundo, sejam eles referentes aos factos objectivos, às
normas sociais ou aos conteúdos subjectivos.

123
É conhecido o diagnóstico habermasiano da colonização do
mundo da vida pelo sistema e a crescente instrumentalização
desencadeada pela modernidade, sobretudo com o surgimento do
direito positivo, que reserva o debate normativo aos técnicos e
especialistas. Contudo, desde a década de 1990, mudou sua
perspectiva acerca do direito, considerando-o mediador entre o
mundo da vida e o sistema.

Na acção comunicativa, tem-se não raro uma visão


reducionista deste conceito, entendido como mero diálogo. Mas
de facto a acção comunicativa pressupõe uma teoria social - a do
mundo da vida - e contrapõe-se à acção estratégica, regida pela
lógica da dominação, na qual os actores coordenam seus planos
no intuito influenciar, não envolvendo ou dissentimento.
Habermas define sinteticamente a acção estratégica como
"cálculo egocêntrico".

Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a ética. Sua


tese para explicar a produção de saber humano recorre ao
evolucionismo, pois a racionalidade comunicativa é considerada
'aprendente'. Segundo Habermas, a falibilidade possibilita
desenvolver capacidades mais complexas de conhecer a realidade,
além de representar garantia contra regressões metafísicas, com
possíveis desdobramentos autoritários. Evolui-se assim através
dos erros, entendidos como falhas de coordenação de planos de
acção.

Habermas defende também uma ética universalista,


deontológica, formalista e cognitivista. Para ele, os princípios
éticos não devem ter conteúdo, mas garantir a participação dos
interessados nas decisões públicas através de discussões
(discursos), em que se avaliam os conteúdos normativos
demandados naturalmente pelo mundo da vida.

Sobre sua teoria discursiva, aplicada também à filosofia


jurídica, pode ser considerada em prol da integração social e,
como consequência, da democracia e da cidadania. Tal teoria
coloca a possibilidade de resolução dos conflitos vigentes na
sociedade não com uma simples solução, mas a melhor solução -
aquela que resulta do consenso de todos os concernidos.

Sua maior relevância está, indubitavelmente, em


pretender o fim da arbitrariedade e da coerção nas questões que
circundam toda a comunidade, propondo uma participação mais
activa e igualitária de todos os cidadãos nos litígios que os
envolvem e, concomitantemente, obter a tão almejada justiça.
Essa forma defendida por Habermas é o agir comunicativo que se
ramifica no discurso.

Do Agir Estratégico para o Agir


Comunicativo
Na orientação para o sucesso, o indivíduo persegue os seus
interesses individuais, organizando uma estratégia baseada nas
consequências de suas acções. Para alcançar seus objectivos, vale
influenciar outros indivíduos, por meio de armas, bens, ameaças e
seduções. E em qualquer eventual cooperação, cada indivíduo só
está interessado no que pode ganhar individualmente com isso.
Chamaremos esse tipo de ação de “acção estratégica”.

Habermas defende, como proposta para a sociedade, que


transitemos progressivamente da acção estratégica para a acção
comunicativa. Nesse tipo de acção, a orientação deixa de ser
exclusivamente para o sucesso individual, e passa a denominar- se

125
como orientação para o entendimento mútuo. Nesse novo
âmbito, os actores procuram harmonizar seus interesses e planos
de acção, através de um processo de discussão, buscando um
consenso. Nota-se que, embora os dois tipos de orientação
possuam a marca da racionalidade humana, a grande diferença é
que, na acção estratégica a definição da finalidade não abre
espaço para ouvir os argumentos dos outros, enquanto no agir
comunicativo há um espaço de diálogo, em que se pensa em
conjunto sobre quais devem ser os melhores objectivos a serem
buscados por um grupo social. O entendimento mútuo, provindo
do agir comunicativo, será um importante facilitador da
coordenação de acções, e servirá de base para a defesa da
democracia no cenário político, com a crítica da repressão,
censura e de outras medidas que não propiciam o diálogo dentro
da sociedade.

Sumário
Abordar as teorias discursivas contemporâneas é inevitável
incontornar Jürgen Habermas, um filósofo e sociólogo alemão,
inserido na tradição da teoria crítica e do pragmatismo. Ele era
conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e a
esfera pública, sendo considerado como um dos mais importantes
intelectuais contemporâneos.

O entendimento mútuo, provindo do agir comunicativo,


será um importante facilitador da coordenação de acções, e
servirá de base para a defesa da democracia no cenário político,
com a crítica da repressão, censura e de outras medidas que não
propiciam o diálogo dentro da sociedade.
Exercício 9
1. Apresente resumidamente os dados biográficos de Jürgen
Habermas.
2. Aborde as teorias discursivas contemporâneas.
3. Debruce-se sobre a teoria discursiva de Habermas.
4. Qual é a chave do sucesso para Habermas?
5. Discute o agir estratégico e o agir comunicativo.
6. Relaciene as teorias de Habermas com o Direito.

1. O que entende por teoria?


Auto-avaliação 2. Quais são as teorias discursivas contemporâneas?
3. Em que consiste a teoria discursiva de Habermas?
4. Qual é a função da argumentação segundo Habermas?
5. Que impacto tem o agir comunicativo no Direito?
6. A teoria de Habermas consubstancia a prática jurídica?

Unidade 10

Teoria contemporânea do direito: Tópica,


de Viehweg
Introdução
Assim, nesta 10ª unidade, colocaremos ao lume Teoria
Contemporânea do Direito: Tópica, de Viehweg.

Após a Segunda Guerra Mundial, Theodor Viehweg, jurista


e ex-magistrado alemão, desenvolveu minuciosa pesquisa jurídica
que redundou na sua principal obra chamada Tópica e
Jurisprudência, apresentada junto à Universidade de Munique
para a obtenção do título de livre-docente. (ROESLER, 2004, p. 3)

127
A referida obra foi publicada em 1953 e representa
verdadeiro marco na história do pensamento jurídico, porquanto
delineia uma nova forma de pensar a ciência do Direito,
recuperando a tópica nos anos 50 do Século XX.

Viehweg apresentou na sua obra uma contraposição entre


o padrão lógico-sistemático e a tópica, propondo novos
mecanismos de controlo de racionalidade sobre o discurso jurídico
e parâmetros seguros para a fundamentação das decisões.
(ATIENZA, 2003, p. 46)

Com efeito, as atrocidades cometidas durante o regime


nazista, sob a égide do Positivismo Jurídico, revelaram a
insuficiência do modelo lógico-dedutivo cartesiano para conferir
legitimidade às normas de conduta afetas ao domínio do
aporético, no qual se insere o jurídico. O agir humano, objecto de
regulação pelo Direito, situa-se no âmago da aporia e, por isso,
não admite respostas prontas, irrefutáveis e absolutamente
corretas, o que afasta, na visão de Viehweg, o pensamento lógico-
dedutivo como forma de dar tratamento racional ao pensamento
jurídico.

O método lógico-dedutivo propiciaria um estado tal de


engessamento do Direito, que, em certos casos, ter-se-ia o
estabelecimento absurdo da proibição de interpretar as normas,
permitindo o "non liquet" e uma contínua e necessária
intervenção do legislador para dar respostas às diversas questões
que se apresentam.

O referido jurista alemão encontrou na tópica muitas das


respostas para uma nova forma de pensar o direito, tendo como
foco principal os problemas concretos. A teoria tópica estabelece,
na visão do referido jurista, uma verdadeira ruptura com o
método sistemático-dedutivo, cuja lógica formal interpreta o
direito como um sistema fechado, que já possui as respostas
prontas para todas as situações.

Conforme será abordado a seguir nesta unidade, em


contraponto ao método lógico-dedutivo, Viehweg interpretou o
direito a partir da tópica como um sistema aberto de regras e
princípios, no qual não há certezas absolutas e nada é indiscutível.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Conhecer a teoria contemporânea do direito: Tópica, de


Viehweg.
Objectivos  Problematizar a tópica como uma técnica de pensamento;
 Reflectir sobre algumas críticas ao pensamento tópico de
Viehweg.

A tópica como uma técnica de pensamento – o foco no problema


Viehweg sustenta que a tópica consiste numa techne do
pensamento que se orienta para o problema (VIEHWEG, 1979, p.
33), do qual emergem os topoi.

A partir de tal premissa, apresenta a seguinte definição de


problema:

toda questão que aparentemente permite mais de uma


resposta e que requer necessariamente um entendimento
preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto de questão que
há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta
como solução. Isto se desenvolve abreviadamente do seguinte

129
modo: o problema, através de uma reformulação adequada, é
trazido para dentro de um conjunto de deduções, previamente
dado, mais ou menos explícito e mais ou menos abrangente, a
partir do qual se infere uma resposta. Se a este conjunto de
deduções chamamos sistema, então podemos dizer que, de um
modo mais breve, que, para encontrar uma solução, problema se
ordena dentro de sistema. (1979, p. 34)

O Direito lida com a resolução de questões afectas ao agir


humano, ou seja, deve definir qual comportamento é mais
adequado em cada situação e a respectiva sanção para o caso de
infração à norma de conduta. Tais questões podem qualificar-se
como problemas, no conceito de Viehweg, por não admitirem
resposta absoluta e exacta tal como ocorre no raciocínio
matemático (lógico-dedutivo), sendo a tópica a forma de
argumentação jurídica mais propícia à busca de solução para as
situações problemáticas.

Nesse contexto, a tópica caracteriza-se como uma forma


de raciocínio que lida de modo pragmático com uma
problemática, na medida em que sua validez não está imbricada
numa lógica sistemático-dedutiva, mas sim na situação base da
qual o discurso é proveniente (VIEHWEG, 1979, p. 102).

Ferraz Jr. (1994, p. 327) destaca este carácter próprio do


pensamento tópico de ser elaborado em função de problemas,
não propriamente um método, mas um estilo, por não constituir
“um procedimento verificável rigorosamente”.

Parte-se do problema, fazendo-se emergir uma série de


pontos de vista, de verdades pré-estabelecidas, de razões de
decidir, que sugerem o posicionamento num ou noutro sentido.
Tais elementos, na visão de Viehweg (1979, p.47), caracterizam os
topoi, que são seleccionados permanentemente, não são tidos por
verdade absoluta, categórica, mas são aceites num juízo de
razoabilidade dos interlocutores como prováveis, isto é,
verossímeis.

É a partir dos topoi que se desenvolve o raciocínio tópico,


que Viehweg sustenta como formador da coerência e da
integridade do ordenamento jurídico. A decisão a ser adoptada
diante do problema concreto será resultante do enfrentamento
racional, ou seja, do confronto dialético entre os topoi, que têm
força persuasiva diante do confronto de opiniões. Daí a íntima
conexão entre a tópica e a retórica. Com efeito, a preponderância
de uma decisão num ou noutro sentido diante de vários pontos de
vista será dada pelo discurso, ou seja, de forma dialógica.

O pensamento tópico pretende fornecer, pois, um modo


de agir que se apresente como resposta a uma questão prática. Os
problemas jurídicos seriam solucionados em particular, no caso
específico, através do discurso retórico, e a partir daí se construiria
uma norma geral.

Algumas críticas ao pensamento tópico de Viehweg


Canaris e Atienza destacaram-se nas críticas desferidas ao
pensar tópico proposto por Viehweg.

A definição da tópica como “a técnica do pensamento


problemático”, segundo Canaris, defensor da concepção sistêmica
do direito, não acrescentou muito à ciência jurídica, já que “todo o
pensamento científico é em geral pensamento problemático - pois
um problema nada mais é do que uma questão cuja resposta não
é, de antemão, clara”. (1996, p. 246)

131
A tópica seria um instrumento dotado de inúmeras
fraquezas, obscuro e cuja fundamentação baseia-se no argumento
enganoso de que o sistema jurídico repeliria aqueles problemas
que não se adequassem à sua gama de soluções.

Ainda segundo Canaris (1996, p. 255), o uso da tópica seria


impraticável na ciência jurídica tendo em vista o fato de ser
atrelada à retórica. Para o referido autor, é inadmissível a
afirmação de que as premissas fundamentais são legitimadas
através do interlocutor na conversa, uma vez que tais premissas
hão de ser determinadas para os juristas através do direito
objetivo, em especial através da lei.

Da mesma forma, para Manoel Atienza os elementos


básicos do pensamento tópico seriam de uso impreciso e
equivocado. A própria utilização do termo “tópica” já seria
ambígua e vaga para o referido jurista espanhol, podendo referir-
se a três coisas interligadas, porém, distintas: uma técnica de
busca de premissas; uma teoria sobre a natureza das premissas;
ou, finalmente, uma teoria sobre o uso de tais premissas na
fundamentação jurídica. A imprecisão também estaria presente no
conceito de “topos”, utilizado de diversas formas nos diversos
momentos da história: como sinónimo de argumento; como ponto
de referência para obtenção de argumentos; ou até como forma
argumentativa.

Assim, a tópica não permitiria ver importância que a lei, a


dogmática e os precedentes desempenham no raciocínio jurídico.
O pensamento tópico ficaria restrito apenas à estrutura superficial
dos argumentos padrões e não analisaria a sua estrutura
profunda, permanecendo num nível de generalidade inadequado
à interpretação e aplicação do Direito. (ATIENZA, 2003, p. 75)
Sumário
Em que pesem as críticas ao pensamento tópico defendido
por Viehweg, não se pode negligenciar o facto de que o modo de
pensar tópico representa uma importante contribuição para a
Ciência do Direito, pois é capaz de quebrar o rigor dedutivo dos
sistemas formais, desenvolvidos pelas abordagens positivistas.

Enquanto o positivismo jurídico primava pela dimensão


sistêmica fechada do direito, deixando em segundo plano as
particularidades do caso concreto, e focando na proposição
normativa previamente estabelecida, oriundo de considerações
sobre o comportamento humano, a tópica, técnica do
pensamento orientada por problemas concretos, questiona a
regularidade desse comportamento, depositando mais confiança
no poder discricionário do julgador, na sua capacidade de decidir
de forma justa.

A importância do pensamento tópico destaca-se, por isso,


no campo da hermenêutica jurídica, de maneira que se ele
inexistisse seria quase impossível a existência de conflito de
posições (a favor ou contra), a constatação e preenchimento de
lacunas, a resolução de conflitos normativos.

Conforme lição da professora Maria Helena Diniz, a


argumentação tópica guia-se pela intuição, que a precede.
Colocado ante o caso concreto em julgamento, o sujeito
cognoscente (o magistrado), com o auxílio das noções jurídicas,
terá, com o emprego da intuição, possibilidade de operar a
subsunção e, em caso de omissão normativa, de aplicar os
argumentos analógicos, os costumes e os princípios gerais de
direito às espécies propostas e de corrigir antinomias. Enfim,
poderá fazer um ‘diagnóstico jurídico’. (DINIZ, 2004, p. 487)

133
Assim, apesar das críticas e dos conceitos vagos e
ambíguos, o pensamento tópico proposto por Viehweg contribuiu
para a evolução do Direito Contemporâneo, destacando o papel
do discurso na interpretação e aplicação do direito, de modo a
repercutir no estudo das teorias da argumentação jurídica e nas
técnicas decisórias.

Exercício 10
1. Aborde a teoria contemporânea do direito: Tópica, de
Viehweg.
2. O que entende por tópica?
3. Em que se separa a teoria contemporânea da clássica?
4. Discorre sobre a tópica como uma técnica de pensamento.
5. Em que se baseia a argumentação tópica?
6. Apresente algumas críticas ao pensamento tópico de Viehweg.
7. A teoria de Habermas consubstancia a prática jurídica?

1. Define tópica.
Auto-avaliação
2. Qual é a teoria contemporânea do direito?

3. Distinga a teoria contemporânea da clássica?

4. Até que ponto a tópica é vista como uma técnica de


pensamento?

5. Que é a argumentação tópica?

6. Que críticas são feitas ao pensamento tópico de Viehweg?

7. Qual é o pensamento tópico de Viehweg?


Teoria contemporânea do direito:
Nova Retórica, de Perelman
Unidade 11
Introdução
A 11ª unidade aborda especialmente a Teoria
contemporânea do direito: Nova Retórica, de Perelman.

Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Analisar a Teoria contemporânea do direito: Nova Retórica, de


Perelman.
Objectivos

A nova retória e os valores em Chain Perelman


A Teoria da Argumentação ou Nova Retórica surgiu com a
rejeição do Positivismo Lógico, o qual buscava tornar a linguagem
natural mais pura e ajustá-la sobre uma linguagem científica.

Segundo os Positivistas, existe sempre a possibilidade de se


demonstrar a veracidade de alguns factos e de proposições lógicas
e matemáticas, o que jamais seria possível quando falamos de
juízo de valor.

As ideias defendidas pelos retóricos são muito persuasivas


por si mesmas e encontraram ninho na crise do positivismo. As
teorias argumentativas tornaram-se, enfim, as principais linhas de
pesquisa do que veio a ser conhecido genericamente por
correntes pós-positivistas.

Chaïm Perelman abandona sua formação lógica


neopositivista e passa a defender a ideia de ser possível a inserção
de juízos de valor na esfera racional. Assim, afirma que a lógica da
argumentação é uma lógica dos valores, uma lógica do razoável,
do preferível, e não uma lógica matemática.

Para os retóricos não existe nada em absoluto. As coisas


estão mais ou menos correctas, mais ou menos entendidas, mais

135
ou menos aceites. O embate retórico contra a certeza e contra a
objectividade fez-se projectar como teoria do aproximado, do
inconcluso, do relativo. [...] Não se espera convencer através de
um argumento específico em qualquer debate gerado pela vida
quotidiana ou jurídica, a práxis dos falantes revela que o
argumentador não sabe ao certo qual dos seus argumentos –
perante o auditório ou o juiz- pesará mais. Então ele busca a
quantidade, a diversidade e espera, desta forma, ser mais
persuasivo.[3]

Entende PERELMAN que para a solução de problemas


quotidianos que tenham envolvimento com valores a melhor
forma de se buscar uma solução é através da chamada arte da
discussão.

O objecto da retórica, segundo PERELMAN, “é o estudo das


técnicas discursivas que visam provocar ou a aumentar a adesão
das mentes às teses apresentadas a seu assentimento”.

Destarte, podemos dizer que a Retórica é a adesão


intelectual de um ou mais espíritos apenas com o uso da
argumentação; é o preocupar-se mais com a adesão dos
interlocutores do que com a verdade; é não transmitir noções
neutras, mas procurar modificar não só as convicções daqueles
espíritos, como as suas atitudes.

Neste quadrante, destacando que a argumentação


preocupa-se mais com a adesão do que com a verdade, Bernard
Meyer assevera que:

Em primeiro lugar, ela age sobre os indivíduos (e não sobre


os conceitos, como o de verdade), mais precisamente sobre a
opinião deles, ou seja, por definição sobre um elemento pessoal e
subjetivo. Assim, ainda que seu objectivo final seja a procura da
adesão do destinatário, logo a semelhança de concepções entre os
interlocutores, ela sempre deverá levar em conta as diferenças de
apreciação e até as divergências de ponto de vista, inevitáveis
entre indivíduos.

Em segundo lugar, ela não procura determinar se uma tese


é verdadeira ou falsa, mas influenciar outra pessoa, logo, ela
nunca será automática ou obrigatoriamente aceitável, como o é a
demonstração matemática. Diz-se que ela é bem sucedida não
quando atinge a verdade (que não é seu objecto – a menos que
isso seja simplesmente impossível), mas quando convence o
destinatário.
Para o autor, na nova retórica não há falar em
argumentação sem adesão. Cumpre, então fazer o seguinte
questionamento: Se não há argumentação sem adesão, isso
significa que sempre que o orador argumenta ele tem que garantir
uma adesão? Não. A adesão de que fala Perelman é aquela visada
pelo próprio orador quando formula seus argumentos com o
desígnio de convencer o seu auditório. Nesse sentido, Robert
Alexy destaca que “O objetivo de cada argumentação é conquistar
ou fortalecer a adesão (adhésion) da audiência. Para realizar esse
objetivo, o orador tem de adaptar seu discurso à audiência”

O conjunto de espíritos aludido por PERELMAN é o que


chamamos de auditório. É que, todo discurso possui um contexto
e, consequentemente, um auditório para o qual ele é elaborado e
o se amoldar àquele auditório é a condição para que exista a
persuasão.

O autor individualiza, então, os vários tipos de auditório


“diferenciados pela idade ou pela fortuna”, podendo sua extensão
ser universal; de um único ouvinte; ou uma deliberação consigo
mesmo, e tudo isso com o intento de convencer/persuadir um
auditório na sua especificidade.

É que, reconhecer as características específicas de cada um


desses auditórios contribui significativamente para o sucesso do
empreendimento argumentativo.

Cabe ressaltar, no entanto, que no âmbito da nova retórica


a denominada deliberação consigo mesmo perde importância e
isso porque, muito embora o orador discorde de sua própria tese,
possui um auditório maleável, isto é, consegue adaptá-lo e
convencê-lo no momento que isso depende tão somente dele
próprio, o orador.

Quanto à mencionada individualização prévia, em que pese


a sua realização, podem haver auditórios com composição
heterogênea de ouvintes – auditório multifacetado -, nestes casos
a tarefa do orador fica mais intrincada, sendo necessário fazer uso
de argumentos diversos para convencer o seu auditório.

Mas pode ocorrer que o auditório seja o mesmo apenas na


aparência. De facto, na teoria da argumentação, o auditório não é
definido como o conjunto daqueles que escutam um discurso, mas
antes como o conjunto daqueles aos quais visa o esforço da
persuasão.

137
Ainda sobre a possibilidade de se ter um auditório
heterogêneo, assevera Bernard Meyer que:

A dificuldade é maior ainda quando os receptores são


muito variados (por exemplo, um encontro com engenheiros e
operários que devem ser convencidos de algo) ou desconhecidos.
[...] Assim, a presença de um público heterogêneo em termos de
idade, sexo e, sobretudo, origem étnica deve ensejar atenção
maior, pois é indubitável que as reações do corpo, também
chamadas de reações não verbais, são um fator defeedback não
desprezível e estão estreitamente ligadas à nossa cultura.

A Nova Retórica, diferente da Retórica clássica, sabe da


possibilidade da argumentação se dirigir a auditórios distintos,
razão por que se diz que “toda argumentação é relativa ao
auditório”.

Logo que se deseja argumentar, é imprescindível que o


orador reflicta sobre os argumentos que poderão influenciar um
determinado auditório, pois se assim não for, incidirá no que
PERELMAN designa depetição de princípio. Sobre petição de
princípio, Antonio Henrique, citando Othon Garcia, afirma que:

Consiste em se dar como provado – id quod ab initio


demonstrandum propositum est. Othon Garcia (1975, p. 292)
afirma: ‘É argumento de quem... não tem argumentos, pois
apresenta como coisa demonstrada o que lhe cabe demonstrar’.
Vê-se que é uma falácia de raciocínio circulatório, como mostra o
exemplo: o réu suicidou-se porque se enforcou. Trata-se, pois, de
uma falta de razões, de argumentos.

Perelman apresenta três grupos de argumentos, a saber:


argumentos quase-lógicos, argumentos baseados na estrutura do
real e argumentos que fundam a estrutura do real.

Os argumentos quase-lógicos são formulados a partir de


princípios lógicos, como o próprio nome indica. Eles buscam se
aproximar dos princípios matemáticos a fim de garantir certa
confiabilidade. Já os argumentos baseados na estrutura do real
são formulados a partir daquilo que o auditório acredita ser o real.

Por fim, temos os argumentos que fundam a estrutura do


real, estes que atuam por inferência e fundam generalizações e
regularidades, de maneira tal que são capazes de formular
exemplos, modelos etc. a partir de casos isolados.
Aqui, compete dizer que se o orador escolhe seus
argumentos com base posta no real, temos que sua argumentação
é forte e dificilmente será resignada pelo auditório universal.

Isso porque, formulando premissas baseadas no real,


teremos uma constituição objectiva de argumentos o que dificulta
a sua recusa pelos ouvintes. Perelman, por sua vez, acredita que
sendo os argumentos baseados em valores – aqueles de difícil
comprovação empírica – o discurso do orador será mais
formidável.

A Nova Retórica não se prende à oratória, à beleza do


discurso, às abordagens psicológica e sociológica da
argumentação, mas prima pela força dos argumentos capazes de
garantir a adesão do seu auditório.

PERELMAN fala, ainda, da ligação existente entre a pessoa


e seus atos na argumentação. Diversamente do que ocorre no
processo demonstrativo (impessoal e infalível), na argumentação
retórica pressupomos uma ligação entre orador (aquele que fala
ou escreve) com aquilo do que se fala ou escreve, de modo que o
discurso como ato pessoal é inseparável daquele que o profere.

Destarte, a reputação do orador pode garantir o sucesso


ou o insucesso do discurso que profere.

A eficácia da argumentação, o fato de exercer sobre o


auditório uma influência maior ou menor importância, depende
não apenas do efeito dos argumentos isolados, mas também da
totalidade do discurso, da interação entre argumentos isolados,
mas também da totalidade do discurso, da interação entre
argumentos entre si, dos argumentos que acodem
espontaneamente ao espírito de quem ouve o discurso.

Falamos ainda de um segundo vínculo, aquele que existe


entre o orador e o seu auditório e recebe o nome de atenção. É
que, o orador competente fica a todo o momento ligado ao seu
auditório –atenção – já que não existe argumentação possível sem
este mínimo de ligação.

Assim, para criar esse vínculo e obter essa atenção,


indispensável que o orador possua alguma qualidade que lhe
permita proferir seu discurso com eficácia. Isso porque, aquele
que profere o discurso e aqueles para quem se profere o discurso,
pré-estabelecem o grau de credibilidade e aceitação dos
argumentos apresentados.

139
Dessa forma, para garantir o sucesso do empreendimento
argumentativo, deve o orador buscar conhecer as especificidades
de cada auditório, pois a verdade deixa de ser condicionada às
condições de sua emissão, passando a agregar-se ao desempenho
do orador perante àqueles a quem se pretende convencer.

No que tange a esse conhecimento prévio do seu


auditório, destaca Bernard Meyer que:

Conhecer-se e conhecer o outro são coisas preciosas para


o emissor. Assim, ele pode evitar certos excessos nos quais,
sabidamente, sua personalidade poderá levá-lo a incidir, como,
por exemplo, a irritação, a falta de rigor ou a falta de atenção a
conteúdos orais. Mas, conhecendo bem a personalidade do
receptor, também pode escolher argumentos que sabe serem
certeiros, por tocarem certa corda sensível.

Para PERELMAN importa também que o orador, ao


selecionar os argumentos para um auditório específico, busque
conferir-lhes uma presença, ou seja, realizar uma escolha acertada
dos fatos, valores, lugares-comuns garante aos argumentos
selecionados uma dimensão psicológica especial no discurso, já
que é um pensamento recorrente e atua de forma direta sobre a
sensibilidade do auditório.

A elaboração dos argumentos, seja ele falado ou escrito,


passa por duas fases, a saber, a produção dos acordos prévios e a
utilização de técnicas argumentativas, com o intento de
convencer/persuadir um auditório específico.

Em suma, aquilo que nos é mais frequente tende a ser


mais persuasivo do que aquilo que nos é estranho ou remoto. Na
sua obra Lógica Jurídica, PERELMAN apresenta o seguinte
exemplo:

“Um rei vê passar um boi que deve ser sacrificado. Sente piedade
dele e ordena que o substituam por um carneiro Confessa que isso
aconteceu porque via o boi e não via o carneiro.”

Entretanto, deve-se lembrar que a análise desses


argumentos formulados para o escopo da persuasão necessita
ocorrer de forma conjunta, observado principalmente o contexto
de cada um deles.

PERELMAN na obra intitulada Tratado da argumentação: a


nova retórica, escrita em parceria com Lucie Olbrechts-Tyteca,
lembra do perigo da análise de argumentos de forma isolada, já
que isso pode torná-los imprecisos, diminuindo drasticamente sua
força persuasiva.

Como já mencionado, existem vários tipos de auditório,


mas devemos ainda ressaltar que em um mesmo tipo a adesão
obtida pela argumentação pode ter intensidade variável. Isso
ocorre porque na retórica falamos de juízos de valor distintos
entre os interlocutores de um mesmo auditório.

Assim, a verdade obtida pela Lógica formal é sempre


universal e incontestável, mas a adesão, embora seja de um
auditório específico, pode possuir intensidade variável.

Os discursos, segundo Aristóteles, podem ser de três


géneros: deliberativo, judiciário e epidíctico. Para ele, este último
era apenas um espetáculo, sem que fosse preciso, ao final, tomar
uma decisão; o auditório comparece tão somente para apreciar o
talento do orador.

Para PERELMAN, diferente do que pensava Aristóteles,


osdiscursos epidícticos “têm um efeito sério, o de criar uma
comunhão em torno de certos acontecimentos, de certas pessoas,
de certas realizações, cuja valorização caracteriza a cultura de
uma sociedade”.

Assim, o discurso epidíctico é aquele onde não há,


inicialmente, uma oposição já que o orador busca reunir valores já
reconhecidos pelo auditório, fazendo com que a unanimidade
social crieverdades universais.

Isso se dá porque o discurso epidíctico trata de questões


sobre as quais não pairam dúvidas, mas ainda assim são muito
importantes no que tange aos efeitos da persuasão já que
reforçam a disposição do auditório sobre aqueles argumentos.

As chamadas verdades universais, segundo PERELMAN,


somente existirão se pudermos ter um acordo universal e
necessariamente sem controvérsias, ainda que se admita que a
aludida controvérsia seja auxílio na busca da verdade. Verdade
para o autor é a espécie de assentimento do que é comum a
todos, ou seja, um acordo do auditório universal.

Contudo, cabe destacar que cada orador e cada tradição


possuem o seu conceito do que é universal, de modo que o
auditório universal é meramente uma aspiração subjetiva do
orador.

141
A proposta da Nova Retórica de PERELMAN é reformular o
pensamento jurídico contemporâneo desvinculando-o do
pensamento positivista e demonstrar que o aplicador das leis ao
proferir sua decisão não pode ater-se simplesmente à literalidade
da norma, devendo pensar nos fatos como situações que podem
ser valoradas (juízo de valor).

O advogado, por exemplo, que busca através de sua


argumentação obter a adesão do juiz, demonstra que esta adesão
está justificada colacionando jurisprudência de instâncias
superiores no sentido dos seus argumentos.

Assim, afirma PERELMAN que a lógica jurídica difere das


demais por ser uma lógica dialética e argumentativa, não
bastando a demonstração, devendo o juiz ter uma visão estrita de
cada caso concreto para aplicar a solução mais razoável e a mais
justa.

O direito exige fundamentação e não demonstração. A


demonstração é o que se faz quando se expõe o caminho lógico
percorrido para se chegar a um resultado. Mas o direito não é
matemática. Ele precisa fundamentar critica e axiologicamente
seus postulados. Fundamentar é dar razões, explicar, revelar os
motivos e os convencimentos adotados em uma decisão jurídica.

Por fim, cabe destacar que a Nova Retórica não abrevia a


atividade de convencimento e persuasão à argumentação, pelo
contrário, ela dispõe a argumentação como a forma de produzir
convencimento e persuasão tão presentes no meio jurídico.

Neste ponto, cumpre fazer uma distinção


entreconvencimento e persuasão, se é que isso é possível. De
modo geral, os estudiosos da nova retórica dispõem que a
distinção entre convencimento e persuasão é muito imperceptível.

Contudo, já disse a tradição clássica que, enquanto o


convencer busca a razão, a persuasão visa à emoção. Isso porque,
embora ambos os atos sejam racionais, na persuasão temos um
argumento válido para um auditório particular com certas
especificidades e no convencimento temos uma argumentação
que presume ser aceita por qualquer ser racional.

Deste modo, temos que o convencimento é mais


abrangente que a persuasão já que aquele se preocupa com o
caráter racional da adesão (auditório universal), enquanto esta
tem preocupação tão somente com o resultado (auditório
particular).
Mediante tais considerações sobre o pensamento
perelmaniano, concluímos que a argumentação justifica-se
exatamente pela abdicação à coerção para aceitação de uma tese.

Ou seja, o orador não faz uso da força para convencer ou


persuadir o seu auditório, apenas profere um discurso, sendo livre
a adesão daqueles que ele pretende convencer/persuadir. Nesse
sentido, destaca Cláudia Servilha Monteiro in Teoria da
Argumentação Jurídica e Nova Retórica que:

Perelman entende a Teoria da Argumentação como uma


técnica capaz de substituir a violência. O que esta última pretende
obter pela coerção, a argumentação pretende fazê-lo pela adesão.
Por isso, o recurso à argumentação requer o estabelecimento de
uma comunidade de espíritos que, pelo mecanismo interno de sua
própria constituição, exclua a violência. Isso porque, numa
comunidade baseada em princípios igualitários, as próprias
instituições regulam as discussões.

Entretanto, é imprescindível para o sucesso da sua


argumentação que o orador pressuponha um auditório concreto e
o explore, isto é, conheça os meios que lhe influencia e quais os
valores que trazem pré-estabelecidos antes da argumentação. Ou
seja, o orador deve procurar adaptar seu discurso aos valores pré-
estabelecidos pelos seus ouvintes.

No mundo jurídico, temos pela leitura histórica que no


período anterior à Revolução Francesa, onde não havia uma
separação de poderes, o soberano não necessitada fundamentar
suas decisões. Sobre o período mencionado, afirma Antonio
Henriques que:

[...] até a Revolução Francesa houve identificação entre soberania


e direito na Europa inteira, sob os auspícios da Igreja e do corpo de
juristas; juristas e clérigos eram todos eles áulicos dos reis, em
cujas mãos depositavam as normas de conduta social. Havemos de
lembrar que em Portugal as Ordenações Manuelinas, Afonsinas e
Filipinas, já pelo nome, revelam a influência do poder real na
ordenação jurídica.

A dessacralização do direito inicia-se com a Renascença e


culmina com a Revolução Francesa. A cosmovisão não era mais
teocêntrica (vertical), mas antropocêntrica (horizontal). A grande
contribuição da Revolução Francesa foi de ordem social com
repercussão na esfera judicial que ganhou novo status, com a
separação da Igreja e do Estado, e com a nova demarcação de

143
espaço de atuação do Direito, agora desvinculado do poder
político.

Contudo, logo após aludida revolução, aqueles que


proferiam as decisões passaram a ter que motivar suas decisões,
referindo-se sempre às leis (vontade geral) que vigiam no
momento – segurança jurídica.

Assim, o juiz deve decidir com base no direito, mas não é


apenas a legalidade que deve ser realçada quando da
fundamentação das decisões. O juiz deve ainda estabelecer uma
ligação entre o direito e os valores aceitos por uma determinada
sociedade (auditório), de modo que a sua decisão seja ao mesmo
tempo legal, razoável, equitativa e aceitável.

T. Sauvel, citado por Perelman in Lógica jurídica, dia que:

“Motivar uma decisão é expressar-lhe as razões. É, desse


modo, obrigar quem a toma a tê-las. É afastar toda
arbitrariedade. Somente graças à motivação aquele que
perdeu um processo sabe como e por quê. A motivação
convida-o a compreender a sentença e não o deixa
entregar-se por muito tempo ao amargo prazer de
‘maldizer os juízes’”.

É assim que o orador – o juiz – apresenta aos seus


interlocutores – os litigantes, os advogados e a sociedade – as
teses do seu discurso. Quando os litigantes/advogados aderem à
tese do juiz (orador), o processo acaba, mas quando não existe
essa adesão, as partes recorrem às instâncias superiores.

Contudo, não é somente o juiz que busca convencer, mas o


caminho inverso também se realiza quando as partes (orador),
com teses contrárias, tentam convencer o juiz (auditório).

Os advogados, então, devem delimitar o seu auditório –


juiz – conhecer suas decisões anteriores, seus valores pré-
estabelecidos, de forma que consiga elaborar uma argumentação
capaz de convencer esse auditório na sua especificidade.

Quem ignora a opinião e as convicções daqueles a quem se


dirige poderia, caso o auditório se restringisse a uma pessoa ou a
um pequeno número, certificar-se pelo método de perguntas e
respostas – que é o método socrático (maiêutica) – de quais teses
são admitidas pelos seus interlocutores.
O advogado – como orador- tem a função de adaptar seu
discurso ao seu auditório – juiz ou tribunal – com o fim de que a
tese, cuja defesa ficou incumbido de realizar, seja aceita por seu
interlocutor e é essa aceitação ou não que definirá o resultado de
um processo.

Assim, Perelman chega à conclusão de que a argumentação


é um dos instrumentos para chegar a um acordo sobre os valores
e sua aplicação. Destaca a importância de se ter argumentos
baseados no real, pois estes, possuindo uma formação objetiva,
serão dificilmente rejeitados pelos interlocutores do orador.

Sumário
Perelman chega à conclusão de que a argumentação é um
dos instrumentos para chegar a um acordo sobre os valores e sua
aplicação. Destaca a importância de se ter argumentos baseados
no real, pois estes, possuindo uma formação objectiva, serão
dificilmente rejeitados pelos interlocutores do orador.

Exercício 11
1. Em que circunstancia surge a Teoria da Argumentação?
2. Qual é o objecto da retórica, segundo PERELMAN?
3. Qual é a proposta da Nova Retórica de PERELMAN?
4. Comente a seguinte frase: “toda argumentação é relativa ao
auditório”.
5. Explique a seguinte frase: O direito exige fundamentação e não
demonstração.
6. Analise a Teoria contemporânea do direito: Nova Retórica, de
Perelman.

145
1. O que entende por Teoria da Argumentação?
Auto-avaliação 2. Delimite o objecto da retórica, segundo PERELMAN.
3. Em que consiste a proposta da Nova Retórica de PERELMAN.
4. Que é argumentação?
5. Distinga a fundamentação da demonstração.
6. Descreva a nova teoria e os valores de Perelman.

Teoria da argumentação em Alexy –


teoria normativa
Unidade 12
Introdução
A 12ª unidade aborda a Teoria da argumentação em Alexy
– teoria normativa.
Ao completar esta unidade, será capaz de:

 Analisar a Teoria da argumentação em Alexy – teoria


normativa.
Objectivos
A teoria da argumentação de Alexy
As teorias tópico-retóricas, especialmente as concepções
de Perelman, representaram uma tentativa de ampliação do
conceito de racionalidade, de tal forma que dele fizessem parte
tanto os julgamentos baseados em critérios de verdade quanto
aqueles baseados em um critério de aceitabilidade. Porém, como
um argumento é aceitável na medida em que ele é construído de
acordo com os topoi efetivamente compartilhados por um
determinado auditório, a validade desse tipo de construção não
consegue transcender os limites do auditório. Com Habermas, já
havia ficado claro que essas perspectivas operam um trânsito da
verdade para a aceitabilidade, de tal forma que elas terminam por
perder a possibilidade de avaliar a correção de um argumento que
é aceito de maneira consensual.

Não obstante, tanto ele quanto Alexy consideram que as


teorias tópico-retóricas acentuam corretamente que a discussão é
a única instância de controlo da validade de julgamentos
valorativos, “porque não há outra maneira de examinar as
pretensões de verdade tornadas problemáticas”, mas elas não
oferecem critérios capazes de garantir a racionalidade dos
discursos jurídicos. Então, seguindo a trilha aberta por Habermas,
o também alemão Robert Alexy buscou elaborar uma teoria da
argumentação jurídica capaz de oferecer critérios para avaliar se
um determinado juízo de valor é racionalmente justificável.

Tal como Habermas, Alexy abandonou expressamente a


tentativa de elaborar uma teoria normativa da interpretação
composta por critérios semânticos que possibilitem a identificação
de uma resposta jurídica dentro de um sistema predeterminado.
Em compensação, ele oferece uma teoria normativa da

147
argumentação, composta por uma série de regras que definem o
procedimento que uma argumentação deve seguir para ser
considerada racional. Tais regras deveriam ser aplicáveis não
apenas aos discursos jurídicos, mas a todos os discursos práticos,
servindo como parâmetro para a aferição de sua racionalidade.
Assim, a teoria de Alexy segue uma estrutura tipicamente
kantiana: ele pressupõe que existe algo como uma faculdade
universal chamada racionalidade, busca deduzir dessa
racionalidade algumas regras que teriam validade a priori e, com
isso, pretende que essas regras tenham validade objectiva e
universal.

Porém, enquanto Habermas se limita a esboçar a ideia de


uma situação ideal de fala, que serve como modelo para os
discursos reais, Alexy desenvolve essas regras de uma forma bem
mais analítica, oferecendo o esboço do que ele próprio chamou de
código de razão prática, que seria “uma sinopse e uma formulação
explícita de todas as regras e formas de argumentação prática
racional”. Alexy formulou, então, uma série de regras que
definiriam o discurso racional prático, sendo que as quatro
primeiras, que ele chama de regras básicas, são apresentadas
como uma “condição prévia da possibilidade de toda comunicação
lingüística que da origem a qualquer questão sobre a verdade ou a
correção”. São elas:

1.1. Nenhum orador pode contradizer-se.

1.2. Todo orador só pode afirmar aquilo que crê.

1.3. Todo orador que aplique um predicado F a um objecto


a, tem de estar preparado para aplicar F a todo outro
objecto que seja semelhante a a em todos os aspectos
importantes.
1.4. Diferentes oradores não podem usar a mesma
expressão com diferentes significados.

Essas regras básicas definem que um discurso racional


precisa ser sempre sincero, baseado numa linguagem unívoca e
pautado por uma consistência lógica. As regras 1.1 e 1.3 não nos
parecem especialmente densas, pois elas incorporam elementos
da lógica formal que não são especialmente ligadas a um discurso
normativo. Já a regra 1.2 é muito eloquente acerca da vinculação
habermasiana de Alexy, pois significa afirmar que a comunicação
não pode seguir meramente a razão estratégica, mas deve seguir
uma racionalidade comunicativa voltada ao entendimento mútuo
e não à mútua dominação por meio do discurso. Nessa medida,
existe uma ruptura com os ideais da retórica clássica, que era
voltada à conquista estratégica da adesão do auditório, e não à
busca de um consenso acerca de matérias controvertidas. E a
regra 1.4 também é muito significativa, pois implica a adesão à
perspectiva neopositivista de uma teoria da linguagem que
privilegia a fixação de critérios semânticos definidos para cada
termo, de tal forma que a compreensão não seja dificultada por
divergências meramente lingüísticas.

Porém, o passo mais relevante é dado na fixação do


segundo grupo de regras, que diz respeito à justificação das
afirmações. Nesse ponto, Alexy sustenta que “quem faz uma
afirmação não só quer expressar uma crença de que algo é o caso,
mas também exige implicitamente que o que está sendo dito possa
ser justificado”, o que impõe a admissão da regra 2, segundo a
qual “todo orador tem de dar razões para o que afirma quando lhe
pedem para fazê-lo, a menos que possa citar razões que
justifiquem uma recusa em dar justificação”. Essa regra tenta
garantir a racionalidade do discurso, na medida em que esta é

149
ligada à justificação apresentada para cada enunciado, e é
complementada pelas exigências habermasianas de igualdade, no
sentido de que todas as pessoas devem ter direito a participar do
discurso, apresentando suas razões e estando livres de coerções
externas ao próprio discurso.

O terceiro grupo de regras é relacionado à divisão do ônus


de justificar, e implica que precisa de justificativa expressa (1) todo
tratamento diferenciado entre pessoas o que significa a inclusão
do princípio da igualdade como um princípio racional, (2) todo
questionamento a topoi estabelecidos na comunidade do orador,
o que é um princípio de inércia. Além disso, ele estabelece certas
regras colaterais sobre a economia argumentativa, no sentido de
que (3) uma pessoa somente precisa dar novos argumentos
quando os anteriores tenham sido contestados e que (4) quem
introduz elementos emocionais num discurso, que não tenham
diretamente ligação com a linha de argumentação, precisa
justificar essa introdução. Com essas diretrizes, Alexy tenta evitar
que o diálogo se estenda ao infinito, sem uma conclusão, por meio
da eterna repetição do exercício do direito ao questionamento
conferido pela regra 2. Portanto, o direito a questionar é limitado
pela desoneração do dever de argumentar, implicado
especialmente pelas regras 3. e 4.

Mas, além delas, Alexy introduz também regras que


regulam o modo específico de argumentação, radicalizando a
regra 1.3 com um imperativo de reflexividade que se aparenta
muito com a regra de outro que está na base do imperativo
categórico kantiano. Essa união de universalidade e reflexividade,
que também se encontra no pensamento de Habermas, é que
converte a validade do argumento na possibilidade ideal de uma
aceitabilidade por parte de todos os envolvidos, o que envolve
regras que garantam a reflexividade, de modo todo falante
aplique a si mesmo as conseqüências da sua argumentação, a
universalidade, de modo que a todos sejam aceitáveis as
conseqüências particulares de um argumento.

Alexy introduz ainda regras de tratam das concepções


morais racionalmente justificadas e das regras de transição entre
tipos de discursos, mas creio que a enumeração das regras até
aqui feita já é suficiente para deixar claro que a perspectiva que
ele adota é a de que a racionalidade de um discurso deriva da
observância de uma série de regras predefinidas, e que deveriam
ser parte integrante de uma espécie de razão comunicativa. E,
embora o próprio Alexy admita que a observância dessas regras
não garante que a concordância seja alcançada, ele considera que
a sua observância aumenta “a probabilidade de alcançar acordo
em assuntos práticos”, formando consensos que sempre estarão
abertos a revisão, nos termos das próprias regras do discurso.

Um próximo passo na teoria de Alexy é passar do plano da


argumentação prática para o plano da argumentação jurídica, que
é encarado como um caso especial da primeira, que lida com
argumentos juridicamente em dois planos. O primeiro, que ele
chama de justificação interna, tem a ver com a obediência dos
critérios gerais da lógica deôntica, especialmente a observação da
construção do silogismo. Essa parcela é meramente formal e tem a
ver com a coerência lógica da argumentação utilizada, de tal modo
que não se trata de uma justificação especificamente jurídica.

Já a justificação externa não está ligada à estrutura lógica


do argumento, mas à justificativa das premissas que caracterizam
como jurídico o discurso. E como, ao menos desde Viehweg, está
muito claro que o problema básico do direito é a fixação das
premissas valorativas, é nesse ponto que a teoria de Alexy

151
precisaria dar um passo para além das concepções tópico-
retóricas. Não obstante, é justamente nesse ponto que Alexy
menos oferece novas perspectivas, recuperando inclusive alguns
cânones de interpretação que já estavam bastante combalidos,
como a ideia de que devem ter precedência os argumentos que
respeitam a vontade do legislador histórico.

Com isso, após um grande passo rumo à pragmática, Alexy


volta ao tradicional plano semântico da hermenêutica dogmática,
buscando estabelecer uma precedência hierárquica entre os vários
tipos de argumentação, pois considera que “os participantes do
discurso têm de determinar pesos a serem atribuídos às várias
formas de argumento em vários contextos de interpretação”, para
que esses pesos possam ser utilizados como regras gerais. Além
disso, são apresentados como justificados os argumentos
baseados nas proposições da dogmática jurídica, especialmente
quando ela não é disputada por estar “de acordo com a opinião
jurídica dominante”. Então, curiosamente, no núcleo de uma
teoria da argumentação jurídica, a selecção das formas
argumentativas é remetida aos cânones tradicionais de
interpretação e às construções da dogmática jurídica, que não são
garantidos por uma aceitabilidade racional, mas apenas por uma
aceitação histórica dos padrões que fazem parte de uma tradição.

Com isso, apesar de ser inspirada expressamente nas


concepções linguísticas de Habermas, a teoria de Alexy segue um
caminho completamente diverso no tocante à abertura da
possibilidade de crítica. Por mais que ele insista em afirmar que as
condições do discurso ideal habermasiano implicam a manutenção
de uma possibilidade constante de reflexão acerca do resultado
das argumentações anteriores, a sua teoria assume um caráter
eminentemente conservador na medida em que valoriza o
princípio de inércia, conjugado à admissão de que os padrões
consolidados da dogmática (inclusive de uma hermenêutica
dogmática) devem ser aplicados como parâmetros de correção.

Assim, como aponta Miguel Atienza, a teoria de Alexy


assume uma postura muito pouco crítica em relação aos
parâmetros dogmáticos e discursivos que estão na base do que ela
considera uma justificação externa correta, e que são justamente
os parâmetros consolidados nos estados contemporâneos de
direito. Em vez de adotar a radical reflexividade da hermenêutica,
Alexy confere uma relevância pequena à historicidade, de tal
forma que ele admite que os topoi argumentativos são
construídos historicamente, mas insiste em que isso não significa
que as decisões valorativas são arbitrárias porque elas podem ser
justificadas numa discussão jurídica racional, configurada por
regras que não se apresentam como históricas, mas definidoras de
uma racionalidade abstrata.

E o passo que Alexy busca dar além de Habermas o leva a


potencializar imensamente as dificuldades da própria teoria do
agir comunicativo, que termina por introduzir a igualdade como
um elemento da própria racionalidade. Essa introdução de um
critério material de racionalidade, que foi duramente criticada por
Tugendhat, torna relativamente frágil o projecto habermasiano de
fundamentação objetiva da correção normativa, na medida em
que a igualdade que ela funda é construída a partir de um dever
de tratamento igualitário que é pressuposto na própria ideia de
condição ideal de argumentação.

Porém, se alguma metafísica é sempre necessária, conta a


favor de Habermas que a igualdade de tratamento é nuclear na
percepção moderna do mundo e que esta dificuldade é
tematizada pela própria teoria. Assim, mesmo a metafísica

153
residual é tratada de uma maneira reflexiva, o que talvez a torne
tão leve quanto possível. Já em Alexy, o conteúdo axiológico é
muito maior, pois na passagem para o que ele chama de
justificação externa das premissas, ele integra todos os padrões
tradicionais do discurso interno do direito como elementos
relevantes para a definição da racionalidade de uma
argumentação, o que implica uma espécie de legitimação acrítica
da dogmática hermenêutica tradicional.

Sumário
Assim foi que, na teoria de Alexy, os desenvolvimentos da
pragmática universal terminaram abrindo caminho a um
conservadorismo racionalista. Mesmo que ele diga expressamente
que seu interesse na teoria do discurso envolve manter aberta a
possibilidade de um diálogo democrático, o estabelecimento de
regras constitutivas de um discurso racional e, especialmente, o
modo como Alexy validou os cânones tradicionais como critérios
de interpretação racional terminou conduzindo a uma espécie de
refundamentação das tradições semânticas dominantes. Com isso,
tais desenvolvimentos deixaram claro que a ligação entre
pragmática universal e discurso ideal pode conduzir ao resultado
oposto ao pretendido por Habermas: em vez de deixar aberto o
espaço da crítica e da transformação, ela pode terminar por criar
novos lugares fixos e novos processos acríticos de legitimação, em
que a técnica e a ciência assumem o papel de ideologia.

Exercício 12
1. Comente a seguinte afirmação de Miguel Reale, 2006, p. 304:
Ao nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações
normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a
compreensão de ordenamento jurídico, quer para a sua
aplicação e integração, quer para a elaboração de novas
normas.
2. Aborde a Teoria contemporânea e normativa de Alexy.
3. Relacione a hermenêutica geral da crítica da razão histórica.
4. Como a teoria de Emilio Betti se embasa como uma
objectividade na hermenêutica jurídica?
5. “...em toda compreensão, produz-se uma aplicação, de modo
que aquele que compreende, está ele mesmo dentro do sentido
do compreendido. Ele forma parte da mesma coisa que
compreende”.
a. Fundamente a premissa supracitada de Gadamer, no
contexto do problema hermenêutico da aplicação.
6. Comente a hermenêutica fenomenológica de Ricoeur, em
atenção a outros autores que o circundam.
7. Analise a Hermenêutica Crítica em Apel.
8. Aborde as componentes do argumento, baseando-se num caso
prático jurídico.
9. Descreva as repercussões do princípio da integridade no
Direito.
10. Relaciene as teorias de Habermas com o Direito.

155
1. Que entende por Teoria contemporânea e normativa de
Auto-avaliação Alexy.
2. Que é hermenêutica geral?
3. Em que consiste a teoria de Emilio Betti?
4. Que defende Gadamer, no contexto do problema
hermenêutico da aplicação?
5. Qual é a hermenêutica fenomenológica de Ricoeur?
6. Qual é a essência da Hermenêutica Crítica em Apel?
7. Quais são as componentes do argumento?
8. Em que consiste o princípio da integridade no Direito?
9. Enuncie as teorias de Habermas com o Direito.
10. O que entende por uma teoria normativa?
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