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ESTUDO DE CASO

Acondroplasia: diagnóstico clínico precoce


luciana yuri Trentini Frade, Janaína de Oliveira e José Alfredo lacerda de Jesus

rEsUMO
luciana yuri Trentini Frade – médica-residente, Unidade Neonatal do
A acondroplasia é uma síndrome genética que afeta Hospital Universitário de Brasília, Faculdade de Medicina, Universidade
a ossificação endocondral, sendo uma das causas de de Brasília, Distrito Federal, Brasil
nanismo. Acomete um recém-nascido em cada oito Janaína de Oliveira – graduanda em Medicina, Faculdade de Medicina,
a dez mil nascimentos. Embora o defeito genético Universidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil
tenha caráter autossômico dominante, cerca de 85%
José Alfredo lacerda de Jesus – professor adjunto, doutor, Unidade
dos casos resultam de novas mutações. Os portadores Neonatal, Hospital Universitário de Brasília, Área de Medicina da Criança
da acondroplasia apresentam características clínicas e do Adolescente, Faculdade de Medicina, Universidade de Brasília,
típicas como macrocefalia, baixa estatura, membros Distrito Federal, Brasil

curtos com predomínio do segmento proximal e li- Correspondência. José Alfredo Lacerda de Jesus. SMPW qua-
mitação da extensão dos cotovelos. Entretanto, essas dra 21, conjunto 2, lote 11, casa C, Parkway, Brasília-DF, CEP
características clínicas no período neonatal podem 71.745-102. Telefone: 61 92878169.

passar despercebidas dos pais e pediatras, uma vez internet: jalfredo.jesus@gmail.com e alfredo@unb.br
que os recém-nascidos normais apresentam os mem-
bros curtos em relação ao tronco, o que dificulta a
observação dessa desproporção. No presente estudo
de caso, registra-se um caso típico de acondroplasia Recebido em 6-11-2012. Aceito em 15-12-2012.
diagnosticado imediatamente após o nascimento.
Os autores declaram não haver potencial conflito de interesses.

Palavras-chave. Acondroplasia; nanismo;


recém-nascido

Key words. Achondroplasia; dwarfism; newborn.


ABSTRACT

Achondroplasia: early clinical diagnosis iNTrOdUÇÃO

Achondroplasia is a genetic syndrome that affects the en- A acondroplasia é uma síndrome genética que afeta
dochondral ossification, being one of the causes of dwarf- a ossificação endocondral, sendo uma das causas de
ism. It affects one newborn in every 8 to 10 thousand nanismo. Embora sua herança genética tenha caráter
births. Although the genetic defect is of autosomal domi- autossômico dominante, 80% a 90% dos casos resul-
nant origin, about 85% of cases result from new mutations. tam de novas mutações, o que justifica a ausência de
The typical clinical features of achondroplasia are mac- características genotípicas da acondroplasia nos pais.¹
rocephaly, short stature, short limbs with predominance Na maioria dos pacientes com a doença, foi encontrada
of the proximal segment and limitation of elbow exten- mutação no gene do receptor do fator de crescimen-
sion. However, these clinical features may go unnoticed to do fibroblasto tipo 3 (FGFR3), que está localizado no
in the neonatal period, since newborns’ limbs are shorter braço curto do cromossomo quatro. O defeito é de-
in relation to the trunk, making it difficult for parents and corrente da substituição do aminoácido arginina pelo
pediatricians to notice this disproportion. This case report aminoácido glicina no domínio transmembrana do re-
describes a typical case of achondroplasia diagnosed im- ceptor situado no condrócito da placa de crescimen-
mediately after birth. to dos ossos. Na placa epifisária normal, a ativação de

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FGFR3 inibe a proliferação da cartilagem. Na acondro- rElATO dO CAsO


plasia, a mutação faz que o receptor esteja em estado
de ativação constante. O processo básico é a inabilida- Recém-nascida a termo, do sexo feminino, com
de da placa epifisária em produzir cartilagem colunar, idade gestacional de 40 semanas e 1 dia, peso ao
do que resulta crescimento longitudinal insuficiente nascer de 3.420 gramas, estatura de 43,5 centí-
dos ossos de formação endocondral. Em alguns casos, metros e perímetro cefálico de 39 centímetros.
observa-se uma linha transversal de tecido conjuntivo História familiar materna com vários casos de bai-
interpondo-se entre a epífise e a diáfise, o que compro- xa estatura final. Nasceu de parto cesariano de-
mete mais ainda esse desenvolvimento. O crescimento vido à macrossomia fetal e apresentação pélvica.
transversal está conservado, de modo que o aspecto Não chorou ao nascimento e necessitou de ven-
final dos ossos longos é curto e largo.2-5 tilação com pressão positiva e máscara com boa
resposta nos primeiros vinte segundos. Boletim
O enfermo reúne características clínicas típicas, como de Apgar de 5 e 8 nos primeiro e quinto minutos
baixa estatura, membros curtos com predomínio do de vida respectivamente.
segmento proximal, limitação da extensão dos coto-
velos, dedos das mãos dispostos em forma de triden- De antecedentes obstétricos, a mãe da recém-nas-
te, com separação entre o terceiro e o quarto dedos. cida foi a quinze consultas pré-natais e as sorolo-
No segmento cefálico, notam-se macrocefalia, macro- gias para HIV e sífilis foram negativas no terceiro
crania com proeminência frontal, hipoplasia facial, trimestre gestacional. Durante a gestação, a mãe
depressão da ponte nasal (nariz em sela), macrog- teve infecção do trato urinário, que tratou com ce-
natia, e a cavidade oral mostra mau posicionamento falexina, e doença hipertensiva específica da gravi-
dentário e desalinhamento entre as arcadas superior dez, controlada com metildopa.
e inferior.6 No tronco, as dimensões longitudinais são
normais, embora em algumas ocasiões ocorra dimi- Ao exame físico, notaram-se hipertelorismo ocular,
nuição do diâmetro anteroposterior, o que pode pro- baixa implantação das orelhas, assimetria nasal de
vocar dificuldades respiratórias e circulatórias.7 No partes moles, nariz em sela, hipertrofia gengival
primeiro ano de vida, podem ser observadas cifose superior e inferior e encurtamento dos membros
lombar ou hiperlordose e, após esse período, pode-se superiores e inferiores, com proporções preser-
encontrar abdome protruso. Algumas manifestações vadas, quadro sugestivo de síndrome genética de
de distúrbios neurais podem ser causadas por com- origem a esclarecer (figura 1).
pressões de raízes nervosas em razão de deformida-
des mais graves existentes na coluna vertebral.1

Foram descritos os seguintes achados radiológicos


na acondroplasia: osso frontal proeminente com cal-
vária aumentada e base do crânio pequena; coluna
com diminuição progressiva no sentido descenden-
te da distância interpedicular da região dorsal até a
lombar, ao contrário do que ocorre fisiologicamente;
pelve com os ossos ilíacos arredondados e espinha
sacrociática pequena e rebaixada.6,8

Nos últimos vinte anos, abrangendo-se o total de vinte


e quatro mil nascimentos, apenas um caso de acondro-
plasia foi diagnosticado na Unidade de Neonatologia Figura 1. Acondroplasia, no paciente em estudo,
do Hospital Universitário de Brasília. A baixa incidên- com curtamento dos membros superiores, nariz
cia, assim como a eventual dificuldade diagnóstica no em sela, macrocrania, implantação baixa de
período neonatal, justifica a apresentação deste relato. pavilhões auriculares

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A recém-nascida foi transferida ao alojamento


conjunto do Hospital Universitário de Brasília lo-
go depois do nascimento, onde foi acompanhada
e avaliada por quatro dias. Durante esse período,
foi alimentada exclusivamente com leite materno.
Foram realizados exames de rotina como tipagem
sanguínea, com resultado de A positivo e Coombs
direto negativo. Além disso, foi solicitado ecocar-
diograma devido ao achado de sopro sistólico em
borda esternal esquerda, 2+/6+, com trinta horas de
vida. O exame apresentou normalidade em seu re-
sultado. No período de internação ocorreu icterícia
zona de Kramer III, foi pedido hemograma com do-
sagem de bilirrubina total e frações, com os seguin-
tes resultados: hemoglobina – 15 g/dL; hematócri-
to – 42,1%; plaquetas – 277.000/mm3; bilirrubinas
totais – 8,6 mg/dL; bilirrubina direta – 0,48 mg/dL.

O parecer da Genética Clínica e da Ortopedia


Pediátrica foi hipótese de displasia óssea e discon- A B
drosteose de Leri Weill, tendo em vista os seguintes
achados clínicos: raiz nasal baixa, hipertelorismo Figura 2. A – radiografia em posição anteroposterior
ocular, hipertrofia gengivais e membros superio- mostra encurtamento da coluna lombar e pelve
res e inferiores curtos, com braquidactilia. Não fo- ilíaca arredondada. B – radiografia em perfil mostra
ram observadas alterações no tórax e no abdome. o sacro baixo e curto.
Grandes lábios com hipertrofia.

No quinto dia de internação, a doente recebeu disCUssÃO


alta com encaminhamento para o ambulatório
de crescimento e desenvolvimento do Hospital A acondroplasia pode ser facilmente diagnostica-
Universitário de Brasília. Foi marcada consulta no da no período neonatal, desde que suas caracte-
ambulatório de genética clínica para realização de rísticas clínicas e radiológicas sejam de domínio
cariótipo. Manteve-se conduta expectante. do pediatra. Embora a confirmação da mutação
ocorrida no gene referente ao receptor do FGFR3
Aos vinte e cinco dias de vida, a radiografia da co- por meio de biologia molecular seja fundamental
luna vertebral revelou evidência de espaçamento para o diagnóstico da displasia óssea, dificilmente
acentuado entre os corpos vertebrais, diminuição se obtém essa informação na prática clínica diária.
progressiva no sentido descendente da distância Confirmando-se a mutação no receptor do FGFR3, é
interpedicular e pelve com ossos ilíacos arredon- possível se compreender o efeito da mutação, que
dados e espinha sacrociática pequena e rebaixada. resulta no total desalinhamento das células da zona
O diagnóstico de acondroplasia foi então confir- proliferativa, com o consequente crescimento lon-
mado (figura 2). gitudinal anormal dos ossos tubulares.4

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O fenótipo do acondroplásico é caracterizado por total de nascimentos estudados, de 24 mil, e ao fato


baixa estatura, membros curtos com predomínio que o hospital em foco é uma unidade de referência
do segmento proximal e do comprometimento dos terciária para a qual esses casos são referenciados.
ossos longos, sendo o nanismo resultante dito ri- Além disso, serviu para reforçar a importância do
zomélico.¹ A doença pode eventualmente passar exame clínico minucioso e do apoio propedêutico de
despercebida no período neonatal, uma vez que o exames de imagens do esqueleto e de genética clíni-
recém-nascido normal tem membros curtos, o que ca na confirmação do seu diagnóstico.
mascara a desproporção tronco-membros. Por outro
lado, o tronco compensa a diminuição do tamanho
das pernas, e o comprimento total do recém-nascido rEFErÊNCiAs
pode não chamar à atenção os pais e os pediatras.7
Existe ainda a possibilidade de acometimento ver- 1. Lima RLO, Silva MCP, Cervan MP, Costa RF. Acondroplasia: re-
visão sobre as características da doença. Arq Sanny Pesq Saúde.
tebral, com a consequente preensão das raízes ner- 2008;1(1):83-9.
vosas motora e sensitiva. A maioria desses achados 2. Mundlos S, Olsen BR. Heritable diseases of the skeleton. Part I:
foi encontrada no exame clinico e na radiografia do Molecular insights into skeletal development - transcription fac-
tors and signaling pathways. Faseb J. 1997;11(2):125-32.
esqueleto, como pode ser visto nas figuras 1, 2 e 3. 3. Rousseau F, Bonaventure J, Legeai-Mallet L, Pelet A, Rozet JM,
Maroteaux P, et al. Mutations in the gene encoding fibroblast
Do ponto de vista ortopédico, é necessário o acom- growth factor receptor-3 in achondroplasia. Nature. 1994;
371(6494):252-4.
panhamento especializado a fim de amenizar as 4. Francomano CA, Ortiz de Luna RI, Hefferon TW, Bellus GA, Turner
consequências da acondroplasia. Fisioterapia CE, Taylor E, et al. Localization of the achondroplasia gene to
para correção postural, fortalecimento dos mús- the distal 2, 5 Mb of human chromosome 4p. Hum Mol Genet.
1994;3(5):787-92.
culos, realização de atividade física e até mesmo 5. Ponseti IV. Skeletal growth in achondroplasia. J. Bone Joint Surg.
integração social permitem que o detentor dessa 1970;52(4):701-16.
síndrome conviva e aceite melhor seus desafios e 6. Langer LO, Rimoim DL. Achondroplasia in birth defects compe-
dium. The National Foundation. 1979;2:34.
suas dificuldades. 7. Parrot MJ. Achondroplasia. In: Warkany J, editor. Congenital mal-
formations. Notes and comments. Chicago. Year Book; 1971. p.
A apresentação deste caso permitiu identificar a 768.
8. Dichetchekenian V, Marcondes EDV, Claudette HG. Acondroplasia:
baixa frequência do diagnóstico da acondroplasia Revisão com ênfase nos aspectos radiológicos. J Pediatr.
no período neonatal, levando-se em conta o número 1987;9:103-13.

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