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Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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Ubaldino Scardino

Criação da capa
Gualdino Pimentel Rodrigues

Revisão
Profa. Dra. Cybelle Salvador Miranda

Foto da capa
Gualdino Pimentel Rodrigues

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


Biblioteca do Núcleo de Meio Ambiente/UFPA - Belém - PA

C968c Cultura, sociedade e espacialidades na Amazônia / Luiz de Jesus


Dias da Silva, Cybelle Salvador Miranda, Organizadores. —
Belém: NUMA/UFPA, 2020.
132 p. : il. ; 21 cm
Inclui referências
ISBN: 978-65-88151-03-7.

1. Cultura. 2. Arquitetura e sociedade. 3. Espaço (Arquitetura). 4.


Patrimônio cultural - Amazônia. I. Silva, Luiz de Jesus Dias da, Org.
II. Miranda, Cybelle Salvador, Org. III. Universidade Federal do
Pará. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo.

CDD: 22. ed.: 306.409811


Elaborado por Olizete Nunes Pereira - CRB-2 1057

© Direitos Reservados à Editora do NUMA


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SUMÁRIO

PREFÁCIO 07

APRESENTAÇÃO 13

MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM: 17


PERCEPÇÃO E HISTÓRIA
Luiz de Jesus Dias da Silva
Celma Chaves

ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: 29


UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA –
BELÉM-PA
Carmosina Maria Calliari Bahia
Cybelle Salvador Miranda

FACHADAS DE VIDRO: UM SIGNO NA CULTURA 45


ARQUITETÔNICA DE BELÉM
Bernadeth Beltrão
Celma Chaves

PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: 57


QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO
Ana Klaudia Perdigão
Tainá Marçal dos Santos Menezes
Rosineide Trindade da Paixão
Danielli de Araújo Felisbino
Leonice Farias de Oliveira
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: 73
OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS
Renata de Godoy
Cybelle Salvador Miranda
Ana Laura Pereira de Melo Dias

VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: 87


LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E
SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA
Luiz de Jesus Dias da Silva
Everton Ronniery Tavares Souza

O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: 105


REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS
NA CIDADE DE BELÉM (PA)
Renata de Godoy
Luiz de Jesus Dias da Silva

PROJETO E LUGAR: PECULIARIDADES LOCAIS DA 121


ARQUITETURA EM DESIGN PARAMÉTRICO AMAZÔNICO
Ana Klaudia de Almeida Viana Perdigão
PREFÁCIO

Gilberto de Miranda Rocha1

Espaço: um produto social !

Conforme bem acentua Pereira e Oliveira (2011, p. 67)2, o espaço foi e é


um objeto de estudo de várias áreas do saber, tendo ele um caráter polissêmico. Na
realidade, existem vários conceitos de espaço, variando conforme o campo do conhe-
cimento científico e a corrente de pensamento. Várias foram as definições propostas
sobre o espaço. Não somente a Geografia, como também a Sociologia, o Urbanismo,
a Antropologia e a Filosofia lhe propuseram significados diferentes.
Em alguns casos, ele é concebido como um espaço, dotado de propriedade
e atributos inerente à física, e de outro, expresso por dimensões e métricas, espaço
geométrico e matemático. Nas ciências sociais, portanto em outras perspectivas de
análise, o espaço é visto essencialmente associado a existência humana. Conforme
a abordagem utilizada é possível ser compreendido como “um “receptáculo”, um
palco das atividades humanas; em outras, ele é concebido como uma conjunção de
elementos da natureza, sendo também conceituado como reflexo e condicionante das
práticas sociais”3.
A despeito da variedade de concepções sobre o espaço, entendemos o espaço
como o meio utilizado, transformado, moldado e portanto construído pelas atividades
humanas. Ele é produto das relações entre o homem (e, estes entre si) e a natureza
sempre na perpectiva de atendimento das necessidades sociais tornando-se uma con-
dição indispensável à existentência coletiva das sociedades humanas.

1
Geógrafo. Professor titular do Núcleo de Meio Ambiente da da Universidade Federal do Pará.
2
PEREIRA, C. S. S.; OLIVEIRA, J. C. A. O espaço como sistema de valores: uma contribuição à epis-
temologia da geografia. ParaOnde!?, Volume 5, Número 1: p. 67-83, ago./dez. Porto Alegre, RS, Bra-
sil.2011.
3
PENA, Rodolfo F. Alves. “O que é espaço geográfico?”; Brasil Escola. Disponível em: https://brasi-
lescola.uol.com.br/o-que-e/geografia/o-que-e-espaco-geografico.htm. Acesso em 16 de agosto de 2020..

7
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Milton Santos, em seu livro A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e


Emoção (2006), afirma que o espaço é um produto social, “formado por um conjunto
indissociável, solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de
ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história
se dá”4.
Os objetos sociais estão presentes no cotidiano dos indivíduos. A casa, o habi-
tat, o lugar de trabalho e da produção, as estradas, fábricas, os espaços de comércio e
serviços, do lazer, os pontos de encontro e os caminhos são elementos que condicio-
nam as atividades dos homens e comandam práticas sociais.

A indissociabilidade entre o tempo e o espaço

A temporalidade é um dos elementos fundamentais para o entendimento do


espaço. Representa os tempos passados e o tempo presente, onde o espaço pode ter
objetos originados de tempos pretéritos, mas se inscrevem no presente devido às suas
novas funções sociais desempenhadas. Como acentua Ruy Moreira, o espaço, é o
corpo do tempo (MOREIRA, 2019)5.
De acordo com Milton Santos, “O espaço, considerado como um mosaico de
elementos de diferentes eras sintetiza, de um lado, a evolução da sociedade e explica,
de outro lado, situações que se apresentam na atualidade” (SANTOS, 1985, p.22).
O espaço é assim compreendido como materialidade social em construção e
reconstrução permanentee, ao mesmo tempo, composto por formas históricas, inter-
ferindo no presente e no futuro. Estas formas espaciais fornecem, restos de uma de-
cisão de divisão internacional de trabalho, manifestada localmente por combinações
particulares do capital, das técnicas e do trabalho utilizados (SANTOS1986, p. 138).
Desse modo, o espaço social deve ser interpretado como um fato histórico
que, antes de tudo, serve como fundamento à compreensão da realidade social e aos
esforços para transformá-la, pondo-a ao serviço do homem porque a história não se
escreve fora do espaço e o próprio espaço sendo social, não há sociedade a-espacial
(SANTOS 1986) 6.

4
SANTOS, M. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 2. reimpr. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p.39.
5
MOREIRA, R. O Espaço, corpo do tempo. A construção geográfica das sociedades. Rio de Janeiro: Ed.
Consequência, 2019.
6
SANTOS, Milton. Por Uma Geografia Nova. São Paulo: Hucitec, 1986, 3a edição, 236p.

8
PREFÁCIO

Milton Santos propõe ainda a noção de tempo espacial, referindo aos elemen-
tos e configurações espaciais com tempos históricos diferentes, espacialidades pró-
prias. O espaço, visto no presente, deve ser compreendido como resultado da acumu-
lação desigual de tempos!

Espacialidades: desigualdades e diferenças

Conforme percebemos, o espaço é construído a partir da transformação dos


elementos naturais por meio das práticas sociais. Ele guarda as marcas das socieda-
des e suas transformações ao longo do processo histórico, porém é preciso destacar
que, sempre, de forma socialmente desigual e diferenciada culturalmente7 ao longo
do tempo de existência das sociedades.
Conforme Ramos(1982), as espacialidades, podem ser consideradas como for-
mas de organização espacial datadas de momentos diferenciados.

Assim, uma espacialidade é uma certa forma de organização geral do es-


paço social que apresenta características predominantes que a qualificam e
a diferenciam historicamente das outras.[...] Além disso, a noção de espa-
cialidade traz consigo a idéia de processo em permanente movimento, ou
seja, não se trata do espaço em si [...], mas do espaço na história, pensado
como processo histórico, incluindo tanto o realizado quanto o possível,
num constante movimento dialético. Mesmo porque não existe espaço a
priori, ele só pode ser pensado como espaço social, não sendo uma catego-
ria independente da realidade. (RAMOS, 1982, p. 68)8.

Interessa-nos entender as espacialidades como contrastes particulares e sin-


gulares, ou seja, como maneiras socioculturalmente diferenciadas e socioeconô-
micamente desiguais de construção e reconstrução da existência coletiva: padrões
culturais, tradições político-sociais, formas especificas de uso dos recursos naturais,
baseadas em relações de produção de bens e mercadorias, dinâmicas de distribuição
das riquezas e de mobilidade social e espacial. As espacialidades são formas e expres-
sões das contradições no contexto das relações de produção e da existência dentro de
um sistema socioeconômico determinado segundo interesses dominantes.

7
Desigualdade social faz referência à diferença entre as classes sociais e aos rendimentos de cada classe.
Diversidade cultural faz referência à vasta quantidade de culturas diferentes existentes em espaço terri-
torial.
8
RAMOS, Aluísio Wellichan. Espaço- tempo na cidade de São Paulo: historicidade e espacialidade do
“bairro” da água branca. Revista do Departamento de Geografia – Departamento de Geografia da FFL-
CH- USP, São Paulo, n. 1, p. 65-75, 1982.

9
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

As espacialidades demandam e configuram necessidades de quebras da sincro-


nia, apontam para a reformulação das relações entre recursos disponíveis, homens,
padrões culturais, novas formas de pensar e viver no mundo e novos aparatos político
– institucionais e administrativos.

Um livro para ler e refletir!

O livro “Cultura, Sociedade e espacialidades na Amazônia“ organizado por


Luiz de Jesus Dias da Silva e Cybelle Salvador Miranda, ambos do Programa de Pós-
-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (PPGAU/
UFPA), apresenta oito perspectivas de ver-a-cidade, contribuições importantes que
evidenciam o entrelaçamento entre tempo, espaço e cultura na Amazônia, particular-
mente em Belém, mas passeando no Pará, abordando diferenciados temas de interes-
se na compreensão das espacialidades e dinâmicas de lugares e suas manifestações
no espaço construído.
Mercados e feiras livres de Belém do Pará: percepção e história. O secular
mercado do Ver-o-Peso, é analisado como espaço de comercialização de merca-
doria e produção de serviços e, ao mesmo tempo, de socieabilidade e expressão
da culturalidade.
Em outra perspectiva, o mercado do Ver-o-Peso entre água e terra: arquitetu-
ra, cultura e sociabilidade na Amazônia. O artigo procura compreender o Complexo
Ver-o-Peso, também como um lugar de cultura e sociabilidade regional, principal-
mente pelo lado da dinâmica do porto, da circulação de pessoas e mercadorias. O
mercado-porto visto como centralidade.
Vale a pena conferir igualmente a análise e a identificação da Arquitetura
como testemunho do passado: um passeio pela Avenida Magalhães Barata – Belém.
A importância do cenário arquitetônico como referência material para a memória,
história e identidade dos habitantes da cidade.
Em contraste com os padrões históricos habitacionais de Belém, despontam os
modernos edificios da cidade, em geral, expressos na utilização crescente do vidro
nas fachadas de edifícios de uso comercial e de serviço. Uma nova espacialidade,
localização, técnicas construtivas e agentes envolvidos na produção do espaço e na
arquitetura da cidade pode ser visto no artigo: O vidro na cultura arquitetônica con-
temporânea. técnica e signo em fachadas de edifícios em Belém.
Pesquisa e projeto de arquitetura: qualidades espaciais em foco. As necessi-
dades humanas percebidas pela leitura do espaço doméstico, do padrão construtivo
das habitações e a produção arquitetônica comprometida com o respeito ao lugar e
ao ser humano, a produção do habitat amazônico. O estudo das habitações autocons-

10
PREFÁCIO

truídas, adotando-se multimétodos ganha centralidade em estudos no município de


Belém e de Barcarena, no Estado do Pará.
Em outro enfoque semelhante, as qualidades espaciais na pesquisa e projeto
de arquitetura, traz a reflexão de que o processo de projeto paramétrico demanda uma
mudança paradigmática no pensamento projetual ao ampliar a visão sobre o conceito
de espaço para além da representação geométrica, incorporando métodos consisten-
tes à concepção arquitetônica com auxílio da tecnologia computacional. O Workshop
TrapiXe, foi um evento que oportunizou o contato com esse pensamento, com o uso
de softwares que permitem exercícios exploratórios de projetos de terminais públicos
para uma futura linha de transporte fluvial interurbano de passageiros para a cidade
de Belém (PA). Adotando peculiaridades locais, como parâmetros a serem inseridos
na programação computacional, permitem a discussão sobre projeto e lugar, obtendo
como resultados, formas geométricas complexas no contexto urbano amazônico.
Ruínas como patrimônio em Joanes – Marajó: olhares nativos e perspectivas
arqueológicas. Joanes, um sítio histórico protegido por lei localizado na extr emidade
oriental do arquipélago do Marajó, é abordado em sua dimensão paisagística e ma-
terial, enquanto bem arquitetônico em ruínas, e enquanto monumento arqueológico.
O tangível também pode ser invisível, é uma provocação para refletir, quanto
aos bens culturais em Belém do Pará, focando particularmente naqueles que, mesmo
tangíveis, ficam na invisibilidade para a maioria da população, pois, apesar de ver,
sentir e tocar não os percebem como tal. Existem aqueles bens que a arqueologia
encontra somente vestígios que, muito vão informar quanto ao modo de vida e evo-
lução social, e, que a sociedade do presente percebe seu valor patrimonial e cultural.
Assim como existem os bens ancestrais nos dias atuais, existem também alguns bens
culturais tangíveis, no presente, que são invisíveis para a sociedade.
Enfim, eis portanto, um novo livro, uma nova contribuição para pensar e, quem
sabe, repensar as espacialidades e suas relações com a cultura e as transformações
contemporâneas dos espaços da cidade em nosso tempo e espaço regional.

Belém(PA), 16 de Agosto de 2020

Gilberto de Miranda Rocha

11
APRESENTAÇÃO

Luiz de Jesus Dias da Silva (FAU/PPGAU/UFPA)


Cybelle Salvador Miranda (FAU/PPGAU/UFPA)

Este volume visa dar início a uma série de publicações da linha de pesqui-
sa Arquitetura, Cultura e espacialidades na Amazônia, vinculada ao Programa de
Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da UFPA. As pesquisas a ela
associadas visam promover uma abordagem qualitativa da análise, processo e pro-
dução do objeto arquitetônico, enfatizando a aproximação com as demandas sociais
e culturais da Amazônia, visando a construção de matrizes de pensamento referen-
ciadas localmente como apoio à prática arquitetônica, às interpretações históricas
e à valoração do patrimônio. A cultura especifica relações implícitas na sociedade,
entrelaçando subjetividade e objetividade.
A atuação da linha se inicia em 2012, com as atividades do Grupo Teoria,
história e projeto de arquitetura, no Programa de pós-graduação em Arquitetura e
Urbanismo, durante o projeto PROCAD/Casadinho (2012-1015), quando foram rea-
lizadas missões de pesquisa no IAU/USP - São Carlos, sendo parceiros os professores
do Grupo NOMADS Anja Pratschke, Marcelo Tramontano, Renato Anelli e Ângela
Bortolucci. Como produto final das interações de docentes e discentes de ambos os
programas, realizou-se na UFPA o Workshop Trapixe, que redundou na publicação
do livro Belém Fluxos – a orla como interface (2015).
A publicação apresentou ensaios sobre um aspecto eminentemente amazônico:
a relação entre ocupação do território e sua relação com o rio, os vários olhares sobre
a orla de Belém. O Workshop Trapixe trouxe com a ação profissional na orla, uma es-
tratégia para abertura de diálogo sobre novos processos de projeto. Buscou transmitir
aos participantes as particularidades e dinâmicas da realidade amazônica através do
processo de projeto paramétrico, por meio de demonstrações teóricas e práticas, in-
clusive imersão, para utilização das ferramentas operando com parâmetros locais. A
atividade acadêmica foi objeto da dissertação de mestrado de Penafort (2016).
O Seminário “Arquitetura na Amazônia: construindo processos e descons-
truindo mitos”, realizado em maio de 2017 na Universidade Federal do Pará (UFPA)
foi organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PP-
GAU) e tendo à frente os Laboratórios de Historiografia da Arquitetura e Cultura

13
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Arquitetônica (LAHCA), coordenado pela professora Celma Chaves Pont Vidal; Me-
mória e Patrimônio Cultural (LAMEMO), sob coordenação da professora Cybelle
Salvador Miranda, e pelo Laboratório Espaço e Desenvolvimento Humano (LEDH),
coordenado pela professora Ana Klaudia Perdigão. Apontando para a internaciona-
lização do PPGAU, o evento contou com a participação do professor Fernando Luiz
Lara, docente da Universidade do Texas, em Austin.
Outra vertente que integra os pesquisadores do grupo é o locus do Centro
Histórico de Belém, onde se desenvolveu a pesquisa Pedra do peixe no Ver-o-Peso:
etnografia em um lugar simbólico no Centro histórico da cidade de Belém do Pará,
coordenada pelo Professor Luiz de Jesus Dias da Silva e que integrou professores e
discentes do PPGAU. O trabalho resultou na publicação do Livro Olhares sensíveis
ao Centro Histórico de Belém – vivências e temporalidades, com a chancela da Edi-
tora do NAEA, em 2019.
Os autores que integram esta coletânea são professores pesquisadores e dis-
centes da Universidade Federal do Pará, vinculados ao Programa de Pós-Graduação
em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU). Os temas que integram o grupo voltam-se
para a compreensão do espaço construído na região nas suas dualidades urbano e
rural, sujeito e natureza. As singularidades da Amazônia enquanto espaço nas Amé-
ricas mostram-se também em manifestações espontâneas da produção de espaços
socialmente produzidos, apontando a complexidade das sociabilidades presentes e
das espacializações que acolhem a vida humana. Tais singularidades nos levam a
definir matrizes de pensamento como apoio à prática arquitetônica, às interpretações
históricas e valoração do patrimônio, referenciadas localmente e menos impositivas
à população de um modo geral.
A complexidade dos espaços amazônicos repercute no significado dos mes-
mos e de como o significado pode ir muito além da formalização hegemônica de
reprodução do espaço no meio urbano e rural da Amazônia. A aproximação entre
saberes formais e populares permite identificar condicionantes de projeto não tradi-
cionais aos códigos profissionais e, ao mesmo tempo, adverte sobre a importância
da produção de ambientes mais condizentes com a vida amazônica. Tais ações forta-
lecem uma cultura arquitetônica em conformidade com a vida nativa das Américas,
trazendo à luz do conhecimento os modos de produção do espaço que expressam o
homem da região e que merecem validação pelo conhecimento formal no campo da
arquitetura. Pensar estes espaços em seus modelos históricos, teóricos-conceituais e
projetuais significa indagar a que modernidade estamos nos referindo, como catego-
ria que historicamente se pretende unificadora dos processos que se deram na região.
Assim, os capítulos do livro Cultura, Sociedade e espacialidades na Amazônia
da linha de pesquisa Arquitetura, Cultura e Espacialidades na Amazônia, do PPGAU

14
APRESENTAÇÃO

UFPA, poderá trazer contribuições que evidenciam o entrelaçamento entre as ma-


trizes teórico-metodológicas e os lugares de pesquisa amazônicos, estuda-los, para
melhor interpretá-los e até compará-los com outros lugares e espaços de localidades
diversas pelo Brasil para maior apropriação científica e possíveis tomadas de decisão.
Além de instigar novas pesquisas nessa linha ou que a tangenciem em direções aná-
logas ou diversas, dentro das ciências sociais aplicadas.
Agradecemos à UFPA e ao seu Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo (PPGAU). Nossos agradecimentos especiais à Associação Brasileira de
Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (ABRADESA), que realiza e fomenta
pesquisas envolvendo cultura e sociedade amazônica e, desse modo, veio a contribuir
com seu apoio cultural para tornar possível essa edição.

15
MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM:
percepção e história

Luiz de Jesus Dias da Silva1


Celma Chaves2

1. INTRODUÇÃO

Este artigo aborda os mercados e as feiras livres de Belém do Pará enfocados


inicialmente em perspectiva histórica, tratando de sua origem e desenvolvimento.
Em seguida, abordam-se esses espaços em sua componente perceptiva, como lugares
de comercialização e sociabilidade, enfatizando sua importância na constituição de
redes de interações sociais e culturais entre os sujeitos que exercem suas atividades
de trabalho nesses espaços.
Ao longo de sua trajetória de desenvolvimento, o ser humano esteve na busca
da satisfação de suas diversificadas necessidades, desde as mais básicas e essenciais
até as consideradas por muitos como supérfluas, tanto as quotidianas como as de mé-
dio e longo prazo. Dentre suas necessidades diárias básicas estão a de se alimentar3, a
qual é antecedida da procura por alimentos, que nos primórdios se obtinham através
da coleta, seguida da caça e pesca, que marcam seu período nômade. Passando para
uma fase de sedentarismo, o ser humano inicia as práticas da criação de animais e da
plantação sistêmica, passando às trocas a partir dos excedentes agrícolas (FERRARI,
1979, p. 209); chegando às transações monetárias, através da compra e venda de pro-
dutos, de bens e depois de serviços, em uma incipiente economia de mercado.

1
Arquiteto e Urbanista (UFPA), Doutor em Antropologia Urbana (PPGSA/IFCH/UFPA), Mestrado em
Arquitetura (PROArq/UFRJ), Professor Associado da FAU/ITEC/UFPA. Diretor da FAU/ITEC/UFPA
no biênio 2019-2020.
2
Arquiteta e Urbanista (FAU-UFPA); Doutora em Teoria e História da Arquitetura (Universidad Politéc-
nica da Cataluña); Professora Adjunta FAU/PPGAU/UFPA. Coordenadora do Laboratório de Historio-
grafia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica (LAHCA).
3
MASLOW A.H. (1943, p. 373), em sua teoria das necessidades humanas, afirma que nos aspectos fi-
siológicos estão compreendidos os impulsos (drive), acrescidos da dinâmica da homeostase e da ideia de
apetite (que se relaciona com eliminar a fome). A necessidade básica de se alimentar.

17
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Considera-se, como aponta Chaves (2016), que no processo de desenvolvi-


mento das cidades, os espaços de trocas sempre tiveram, e continuam a ter um papel
relevante, tanto nas origens dos primeiros assentamentos urbanos, como nas trans-
formações que esses espaços experimentaram ao longo do tempo. É comum encon-
trar, nas cidades, feiras e mercados populares que formam centros ou sub centros de
abastecimento e de consumo; nesse sentido, a feira é mais livre ou assente em espaço
aberto e o mercado é coberto, tecnicamente fechado, tratado com uma arquitetura
apropriada e aberturas estratégicas.
No transcorrer da história, muitos locais de trocas de produtos se transfor-
maram em feiras sazonais e depois até em cidades, mas com os muitos conflitos,
invasões e guerras na baixa Idade Média e o feudalismo como guardião dos núcleos
urbanos, parte do abastecimento - o que não vinha do campo - passou a ser realizado
por mercadores viajantes entre as cidades e os pontos de produção; até que a volta da
calmaria aos poucos trouxe a periodicidade regular das feiras, no final da Idade Mé-
dia que, somada às necessidades dos consumidores, resultaram no estabelecimento
de muitos mercadores, antes ambulantes-viajantes os quais, percebendo as condições
propícias, se estabelecem em pontos fixos4 na cidade, assinalando o surgimento das
feiras ao ar livre, consolidadas ainda no medievo e em seguida nos espaços cobertos
e protegidos das intempéries que deram origem, mais tarde, aos estabelecimentos
denominados de mercados. A cidade medieval tipificava o que hoje chamaríamos de
economia mista (SENNETT, 2003). Para o autor “a competição econômica não era
colérica [...] o perfil das criaturas envolvidas por ela só se tornou mais nítido quando
surgiram as feiras e mercados. Espaços sujeitos a um controle eficaz” (SENNETT,
2003, p. 167).
Considera-se como Weber (1999, p. 409) que toda cidade “é um local de mer-
cado, ou seja, conta com centro econômico do estabelecimento, com um mercado
local”. Nas cidades da modernidade, os mercados e feiras vão se proliferando propor-
cionalmente à expansão do tecido urbano5, estabelecendo-se ao longo do território,
conforme sua ampliação e desenvolvimento à revelia de outros componentes dos sis-

4
Ponto fixo para Santos (2008, p.86) é um local de estabelecimento, um objeto social graças aos fluxos.
Fixos e fluxos interagem e alternam-se mutuamente. O estudo de fixos permite uma abordagem mais
cômoda, através dos objetos localizados: mercados, supermercados, etc. Cada tipo de fixo surge com
características, que são técnicas e organizacionais.
5
Tecido urbano, para Lefebvre (1969, p. 16) é uma metáfora que representa mais do que um tecido jogado
sobre um território, mas uma espécie de proliferação biológica e uma espécie de rede de malhas desi-
guais, que deixam escapar setores mais ou menos amplos, como lugarejos, aldeias e até regiões inteiras. É
como um ecossistema, no entanto o interesse do tecido urbano não se limita à morfologia, pois dá suporte
ao modo de viver da sociedade urbana.

18
MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM: PERCEPÇÃO E HISTÓRIA

temas de objetos ou de valores. Na base econômica desse tecido aparecem fenôme-


nos de uma outra ordem, num outro nível, os da vida social e cultural (LEFEBVRE,
1969, p. 16).
A sociedade cria necessidades que vão se materializar no tecido urbano de di-
versas formas, como os equipamentos urbanos, os quais “podem refletir, além da sua
função social mais explícita, as condições culturais da sociedade local, com influên-
cia dos diversos setores que interagem nesses espaços de comunicação intercultural”
(SILVA; RODRIGUES, 2016), como é o caso das feiras e mercados. As pessoas estão
tanto no fluxo, onde se relacionam comercialmente e se interconectam em redes de
socialização fazendo circular os produtos, como também nos pontos fixos, onde se
comercializam esses produtos na cidade.
Na cidade de Belém, o local escolhido para embarque e desembarque dos pri-
meiros colonizadores portugueses que vieram tomar posse das terras do Norte do
Brasil e consequentemente fundar a cidade de Belém, transformou-se no complexo
Ver-o-Peso6, que além de ser um resistente centro de abastecimento local, é simbó-
lico à cidade e está presente na memória afetiva de grande parte da população. A
existência de duas feiras7 noturnas e uma feira principal diurna mais conhecida, todas
tradicionais e dois mercados8 garantem a aglomeração diária e o funcionamento dia e
noite do Ver-o-Peso, fazendo com que os demais mercados e feiras de bairros sigam,
de certo modo, algumas características deste conjunto.
Hoje Belém possui feiras e mercados espraiadas em seu tecido urbano, abran-
gendo por completo o território municipal e desse modo, tanto a cidade sede do mu-
nicípio como seus distritos são abastecidos por esses equipamentos públicos distribu-
ídos estrategicamente na maioria dos bairros, aqui compreendidos como lugares de
comercialização e sociabilidade e estudados nos aspectos históricos e de como são
percebidos.
Os dados constantes neste artigo são partes do resultado de pesquisa realizada
em cinco feiras e mercados de Belém: Ver-o-Peso, Complexo do Jurunas, feiras do
Guamá, de São Brás e da 25 de Setembro. Buscou-se encontrar pontos de congruên-

6
Complexo Ver-o-Peso é um complexo por abrigar porto, feiras, mercados, praças e casario de grande po-
tencial arquitetônico e histórico patrimonial, com riqueza social e cultural marcante na região amazônica.
7
As duas feiras aqui referidas são a feira da Pedra do Peixe, localizada na calçada da enseada das em-
barcações, bem próximo do Mercado de Ferro ou de Peixe e a feira do Açaí, localizada no lado oposto
ao Mercado de Peixe, do outro lado da enseada das embarcações, próximo ao Forte do Castelo. Ambas
só funcionam na madrugada e fazem comercialização por atacado, evitando concorrer com a feira tradi-
cional diurna.
8
Os dois mercados são Mercado de Peixe, também conhecido como Mercado de Ferro e o Mercado
Bolonha ou Mercado de Carne.

19
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

cias entre esses equipamentos públicos e os demais localizados em outras áreas da


cidade (SILVA; RODRIGUES, 2016).
Outra contribuição para sua elaboração adveio da pesquisa realizada desde
20119, sobre os mercados da Primeira Légua Patrimonial em Belém, cuja abordagem
apresenta dimensões histórica, arquitetônica e de localização, enfocando-os não ape-
nas como objetos físicos, mas como um componente significativo das relações que
se estabelecem entre o processo de modernização urbana e parte do discurso político,
social e cultural vigente na cidade de Belém (CHAVES, 2016), e as transformações
dos mercados na atualidade (CHAVES, 2019; CHAVES, 2020).

2. O VER-O-PESO E A ORIGEM DAS FEIRAS EM BELÉM

Belém foi fundada em 1616 e conforme foi aumentando sua população, na


mesma proporção houve aumento da necessidade de abastecimento de gêneros ali-
mentícios e de outras ordens.
A desembocadura do Piri passou então a assumir o papel de “ ‘porto’, onde
se desenvolveria, durante a segunda metade do século XIX, as atividades comer-
ciais. No final deste século, aterrada a praia e retirados os trapiches, o Ver o Peso se
constituiria tal e como hoje o conhecemos, formando então um conjunto de variados
significados para a economia, a cultura e o dinamismo social nesta área do chamado
centro histórico de Belém (CHAVES, 2016), constituindo-se a feira considerada uma
das maiores da América Latina.
A primeira organização aglomerada de trocas ao ar livre nessa área de Belém,
conforme documentada iconograficamente, foi um conjunto de postos de vendas no
lugar onde havia sido instalado um pelourinho10, e outra que se localizava no largo
em frente ao Convento dos Mercedários11, hoje Praça Visconde de Rio Branco, con-
forme se apresenta na pintura em aquarela de J. J. Codina (Figura 1), assentada na

9
Os mercados públicos em Belém em suas dimensões históricas, sociocultural e urbanística, sob Coorde-
nação da Profa. Dra. Celma Chaves, foi desenvolvido no período de 2011 a 2013, com financiamento do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
10
Ilustrado em CODINA, J. J. Prospecto da nova praça do pelourinho. 1784-1785 In: FERREIRA, Ale-
xandre Rodrigues. Viagem filosófica às capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Desenhos originais coligidos pelo Prof. Dr. Edgard de Cerqueira Falcão. São Paulo: Gráficos Brunner,
1970. Estampa n. 5.
11
Ilustrado em CODINA, J. J. Prospecto da nova Praça das Mercês, 1784-1785 In: FERREIRA, Ale-
xandre Rodrigues. Viagem filosófica às capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá.
Desenhos originais coligidos pelo Prof. Dr. Edgard de Cerqueira Falcão. São Paulo: Gráficos Brunner,
1970. Igreja e Praça das Mercês, estampa n. 5

20
MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM: PERCEPÇÃO E HISTÓRIA

praça em frente à Igreja das Mercês (SILVA, 2016, p.69; CHAVES, 2016, p. 20).
Localizava-se estrategicamente muito próximo à rua do Açougue (hoje Rua Gaspar
Viana), na qual, conforme afirma Cruz (1973, p. 276): “ O caminho aberto no bair-
ro da Campina onde estava localizada a casa em que se cortava o gado para venda
de carne aos moradores”, atraía a população para se abastecer de carne. O açougue
passou a ser um atrativo para comercialização de outros produtos nas proximidades.
Figura 1 – Praça das Mercês no final do século XVIII

Fonte: Mendonça, 1999, p. 278.

Assim, o mesmo espaço de comercialização dos escravos, denominado de


mercado para escravos servia também de lugar destinado à comercialização de gêne-
ros alimentícios e quiçá outros tantos produtos visando o abastecimento da população
de Belém, ficando registrado como a primeira feira ou mercado popular na cidade
(DERENJI; DERENJI, 2009, p.60).
O Complexo do Ver-o-Peso, localiza-se entre os dois bairros mais antigos da
cidade, Cidade Velha e Campina, hoje espaço de insuspeita relevância história, cultu-
ral e econômica, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
desde 2007. É comum o afluxo de feirantes de diversos bairros da cidade que ali vão
se abastecer de mercadorias, ainda na madrugada e ao longo do dia. É um bem sim-
bólico local, onde a comercialização é movida pela sucessão de amizade, parentes-
co, reprodução cultural e diversidade. A figura 2 mostra a setorização do Complexo
Ver-o-Peso.

21
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 2 – Complexo do Ver-o-Peso

Fonte: Google Earth modificado por Silva, 2013 (SILVA, 2016, p.64)

3. FEIRAS E MERCADOS EM BELÉM COMO OBJETO DE


PERCEPÇÃO

Perceber algo, qualquer objeto que seja, é perceber um fenômeno que se apre-
senta diante do perceptor ou percipiente12 e cada um tem seu modo de fazê-lo, poden-
do um único objeto - seja uma paisagem, um espaço aberto ou fechado qualquer - ser
captado por dois observadores de modos diferentes ou pelo menos com relativas dife-
renças nos detalhes ou nos aspectos mais básicos. Perceber uma feira ou um mercado
em uma cidade é observar minúcias, particularidades que podem ser importantes para
caracterizar esse equipamento público no contexto dessa cidade, pois a sociedade é
partícipe da sua formação e do seu modo de existir.
Percepção é mais que a reunião resultante das ações dos órgãos sensoriais
humanos atuando sobre um determinado fenômeno, porquanto vai além do que se

12
Perceptor ou percipiente é o sujeito que está a perceber algo, entendido como objeto ou fenômeno
(TUAN, 2012; SANTAELLA, 2012; MERLEAU-PONTY, 2017).

22
MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM: PERCEPÇÃO E HISTÓRIA

vê, do que se ouve, cheira ou se sente em relação a um fenômeno e nesse sentido, é


dependente de muitas variáveis ambientais em que o sujeito perceptor está envolto
como o tempo, a cultura, as experiências de vida, o modo de ver o mundo, dentre
outros. ‘‘Percepção é tanto a resposta dos sentidos aos estímulos exteriores como a
atividade proposital, na qual certos fenômenos são claramente registrados em detri-
mento de outros que voluntariamente são obscurecidos’’ (TUAN, 2012, p.18).
Discutir percepção em feiras e mercados públicos em Belém requer, como re-
quisito, conceituar esses lugares públicos no sentido que nos apontam Silva e Rodri-
gues (2016). Em sentido mais amplo, mercados e feiras são lugares onde as pessoas
se encontram para trocar bens e produtos dos mais diversos tipos e procedências.
Porém, a relação entre os sujeitos aí presentes vai além das trocas materiais de mer-
cadorias, partindo para um plano mais sensível dos seres humanos, implicando nas
trocas de relações sociais, indo além da comercialização. Trocam amizade, confiança
e sociabilidade, o que é nitidamente perceptível, instigando estudos e pesquisas de
tais fenômenos relacionais no ambiente construído.
O estudo da percepção [...] termina por revelar que o mundo percebido não é
uma soma de objetos, no sentido que as ciências dão a essa palavra; que nossa relação
com o mundo não é a de um pensador com um objeto de pensamento (MERLEAU-
-PONTY, 2017, p. 31). Para o autor, a unidade percebida não se assemelha a um
teorema que vários pensadores percebem do mesmo modo. Os mercados e feiras são
pontos fixos de comercialização, porém, em socialização, passam a ser um mundo
de convergência dos sujeitos que revelam práticas diversas da comercialização de
produtos, onde cada sujeito atua em consonância com sua visão de mundo.
Ir às feiras e aos mercados de bairros é encontrar pessoas que moram nas
proximidades e que muitas vezes só se encontram nesse momento de compras, o
que se torna prática habitual, organiza e conforma novos grupos de sociabilidade.
Do mesmo modo, os comerciantes ou feirantes que com o tempo estreitam os laços
e tornam-se familiares, podendo estabelecer confiança mútua, trazendo assim certo
conforto de não haver engano de um para o outro e mais ainda, de que aquela relação
comercial passe para um contrato social mais intenso pela vontade de estar perto,
pela agradável presença sentida mutuamente que caracteriza a sociabilidade; o que é
muito comum se perceber nesses lugares de compra, venda e repleto de sociabilidade.
As relações do mercado com a cidade podem ser verificadas tanto nos aspectos
morfológicos ou de estrutura urbana, como no seu aspecto polarizador de ativida-
des econômicas e socioculturais; para Chaves (2016), os mercados vão além na sua
representatividade, pois “ representam para frequentadores, trabalhadores e para a
própria dinâmica das áreas onde estão inseridos, mais do que um espaço, um lugar”

23
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

[...], “um lugar tem “ componentes afetivos e humanos que ultrapassam a noção de
espaço [...] (CHAVES, 2016, p.18).
Mercados são percebidos, ao mesmo tempo, como lugares de passagem e per-
manência, espacialidades e temporalidades, de encontros e trocas, articulações e in-
terações entre sujeitos, objetos e fatores econômicos (SILVA; RODRIGUES, 2016).
Assim se apresentam os mercados e as feiras, como objeto de percepção, como lugar
de encontro, de compra venda, de afetividade humana aflorada em um meio social
popular, que aguça a sensibilidade dos sujeitos partícipes desses encontros, seja nos
seus bairros ou na feira e mercado do Ver-o-Peso no Centro Histórico de Belém do
Pará, dentro desse tradicional emaranhado cultural da Amazônia.
Pode-se considerar que outras feiras da cidade se espelham na maior e mais
significativa que é a do Ver-o-Peso: “O Ver-o-Peso é a mãe de todas as feiras de Be-
lém. Pode ver, toda feira da cidade quer ser que nem o Ver-o-Peso”, como declarou
Danilo, trabalhador do Mercado Bolonha do Ver-o-Peso, em entrevista (SILVA; RO-
DRIGUES, 2016). A percepção deste feirante encontra eco quando nos deparamos
com a imagem da feira e mercado da Pedreira, com espaços de comercialização dos
mais variados produtos, muitos dos quais também encontrados no Ver-o-Peso, cor-
roborando a importância não somente desta última, mas o caráter imprescindível de
seus espaços e do saber fazer que ali se desenvolve.
Para a feirante Beth Cheirosinha, conhecida vendedora de ervas medicinais
daquele lugar, entrevistada em 2016, “o Ver-o-Peso não dorme, é dia e noite fun-
cionando, a feira do açaí e a pedra do peixe funcionam de madrugada e encerram
de manhã. Aí começa a funcionar a maior parte da feira até de tardinha e quando os
feirantes saem a parte de alimentação continua entrando pela noite até emendar com
a madrugada seguinte” (SILVA; RODRIGUES, 2016). Beth Cheirosinha refere-se ao
funcionamento contínuo do Ver-o-Peso, percebendo esse lugar de um modo holístico,
ela o percebe integrado, tanto nos aspectos espaciais, como no tempo e nos aspectos
sociais, onde ela em poucas palavras situa a saída de feirantes – à tardinha – e a con-
tinuação da feira noturna, da madrugada e do dia seguinte.
As figuras 3A e 3B, mostram imagens de uma parte ricamente simbólica do
Ver-o-Peso, constituída pela Pedra do Peixe, o rio, o Mercado de Peixe, as embar-
cações que o abastecem de pescado, pessoas e ao fundo, prédios altos a cercar a
paisagem.

24
MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM: PERCEPÇÃO E HISTÓRIA

Figura 3 - Mercado (a) e embarcações (B) no Complexo do Ver-o-Peso.


A

Fonte: SILVA, 2016, p.145.

Na pesquisa empreendida pelo GEMP/CNPq13, na qual foram pesquisadas


cinco feiras em Belém - uma das quais foi o Ver-o-Peso - observou-se que as raízes
e morfologia das quatro feiras lembram o Ver-o-Peso e refletem o que se passa nas
demais feiras e nos mercados da cidade, esses últimos cobertos e mais bem traba-
lhados arquitetonicamente, sempre inseridos ou adjacentes às feiras. Observa-se que
sua importância vai muito além do que poderia ser provável, diante da comodidade
oferecida pelos supermercados da cidade, como fica evidente nas entrevistas como a
que foi realizada em 2015, com a senhora Júlia Lassand, dona de casa, que na feira do
Guamá falou da vantagem de encontrar produtos, frescos e de qualidade,

“na feira tem frutas totalmente aproveitáveis enquanto no supermercado a


fruta vem verde e antes de amadurecer já está estragada, fora o peixe que é
da maré, é fresquinho mesmo e a gente encontra conhecidos, aqui tudo se
conhece e se não tiver dinheiro compra fiado mesmo”.

Grupo de Pesquisa em Mercados Populares GEMP – CNPq, o qual realizou pesquisa no Projeto Merca-
13

dos Interculturais: Práticas, linguagens e identidades em contextos amazônicos de 2010-2016.

25
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

O feirante Gigante, que é uma liderança no contexto organizacional entre os


feirantes de Belém, manifestou-se em entrevista, assim:

Belém precisa das feiras e mercados, mesmo tendo toda a estrutura dos
supermercados, dos shopping centers. Os moradores dos bairros gostam
de comprar nas feiras e nos mercados porque encontram produtos fresqui-
nhos, com preço popular e com qualidade. O belenense nunca vai deixar de
comprar aí porque já é tradição, é a cultura regional, é o Ver-o-Peso repre-
sentando tudo isso (GIGANTE, liderança dos feirantes de Belém, 2016).

Os olhares desses dois trabalhadores ratificam a percepção e significacão des-


ses lugares nas vidas dos grupos que os frequentam, ou que passam muitas horas de
seus dias vivenciando esse cotidiano, recordando-nos que são construídos não apenas
pelos espaços físicos, mas, sobretudo, pelas práticas humanas que ali se desenvolvem.
Na cidade de Belém existem 32 feiras e 17 mercados oficializados pela
Prefeitura, no entanto, existem outras dezenas de feiras que funcionam na
clandestinidade para abastecimento local, ora visíveis ora invisíveis ao Poder Público
(SECON, 2015).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Historicamente, tanto os mercados como as feiras são espaços de trocas entre


sujeitos em determinado período. São lugares físicos ou virtuais que podem com-
portar, e, ao mesmo tempo, definir as modalidades de trocas (SILVA; RODRIGUES,
2016). Podem ainda desenhar percursos, construir identidades e representar para fre-
quentadores, trabalhadores e para a própria dinâmica das áreas onde estão inseridos
mais do que um espaço, um lugar com identidade e que oferece potencial de vivên-
cias que são também parte da essência dos mercados, o lugar vivido, como nos diz
Augé (1994).
Abordar a temática dos mercados e feiras livres de Belém a partir dos aspectos
históricos, da percepção à sua sociabilidade, indo além dos lugares de comerciali-
zação é tarefa necessária para melhor compreensão do papel desses espaços para
a vitalidade dos lugares onde estão instalados. Faz-se necessário seu entendimento
ampliado como fontes sinérgicas das relações que se estabelecem em suas várias
dimensões, fazendo convergir seu significado entre ação material de comercialização
aos aspectos humanistas da sociabilidade, imbricadas nas relações sociais que o bele-
nense realiza ao participar do seu comércio, e que é uma tendência geral em espaços
desse tipo em todo o mundo (CHAVES, 2020).

26
MERCADOS E FEIRAS LIVRES EM BELÉM: PERCEPÇÃO E HISTÓRIA

O que poderia ser somente um espaço de trocas de mercadorias, de produtos e


de serviços, mercados e feiras públicas instigam a percepção humana a assinalar que
a sociabilidade entre os sujeitos que frequentam esses equipamentos urbanos ultra-
passa esse tratamento material em relação às mercadorias, passando por um contrato
social, um fato social, onde as pessoas se socializam com vontade de estar próximas
umas das outras, estimulando sua sensibilidade em relação ao outro e consequente-
mente ao lugar.
A história apresenta exemplos que nos instigam a perceber e valorizar esses
equipamentos públicos, suas peculiaridades e seus simbolismos como é o caso do
Ver-o-Peso para Belém, que ainda não sendo a primeira feira da cidade, está na gêne-
se desse tipo de espaço, e deve servir, para além de referência ao turismo e mote de
políticas públicas, como capital humano que promove a preservação dos saberes já
consolidados, os modos de sobrevivência de seus feirantes e os recupere como parte
ativa da vitalidade dos bairros para os quais foram construídos.

REFERÊNCIAS

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

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DERENJI Jussara S.; DERENJI, Jorge. Igrejas, palácios e palacetes de Belém. Bra-
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28
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO
PASSADO: um passeio pela Avenida Magalhães Barata –
Belém-PA

Carmosina Maria Calliari Bahia1


Cybelle Salvador Miranda2

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho envolve uma abordagem transdisciplinar na Avenida Magalhães


Barata, no trecho que inicia no cruzamento com a Travessa 14 de Março e se encer-
ra no Mercado de São Brás, tendo como inspiração o personagem baudelairiano, o
flâneur. A Avenida Magalhães Barata, antiga Avenida Independência, tem seu nome
em homenagem ao Governador do Estado eleito em 1930, Joaquim de Magalhães
Cardoso Barata3. A avenida em toda sua extensão possui um grande potencial histó-
rico e cultural, ainda inexplorado. O interesse pelo tema surgiu da vivência de uma
das pesquisadoras enquanto arquiteta do Museu Paraense Emílio Goeldi, ao longo de
30 anos, o que despertou o olhar para as alterações ocorridas na arquitetura da Anti-
ga Avenida Independência, considerando as transformações que alteram a dinâmica
social do lugar. Buscou-se investigar o cotidiano, a memória local, estilos de vida e

1
Arquiteta, Tecnologista do Museu Paraense Emílio Goeldi, especialista em Preservação e Restauração
do Patrimônio Arquitetônico pela UFPA, com a pesquisa relacionada ao Restauro da Rocinha do Museu
Goeldi. Em 2015 concluiu o Mestrado pelo PPGAU/UFPA, tendo como objeto de pesquisa a Avenida
Magalhães Barata. E-mail: calliari@museu-goeldi.br
2
Arquiteta e Urbanista, Doutora em Antropologia, Pós-doutoramento em História da Arte (Universidade
de Lisboa), Professora Associada FAU/PPGAU/UFPA, Coordenadora do Laboratório de Memória e Pa-
trimônio Cultural (LAMEMO). E-mail: cybelle1974@hotmail.com
3
Nascido no município de Belém, na localidade denominada de Val de Cãs, a 2 de junho de 1886, e
falecido no dia 29 de maio de 1959, em sua residência, a Rua Dr. Moraes. Político influente adquiriu a
confiança e admiração do povo por meio de suas obras que foram grandes e proveitosas à coletividade.
Foi por duas vezes nomeado interventor federal no estado do Pará, a primeira vez em 1930, exercendo
o cargo até 1935, e a segunda vez em 1943. Saindo em 1945 em virtude da deposição do Presidente de
Getúlio Vargas. (CRUZ, 1992, p. 58).

29
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

a análise das relações dos trabalhadores e moradores da Avenida Governador Maga-


lhães Barata com a arquitetura local, uma vez que:

O Patrimônio cultural de um povo não se constitui só dos bens móveis


ou imóveis independentemente de serem públicos ou privados, porém de
toda manifestação que se origine de conceitos históricos, ambientais, pai-
sagísticos, arquivísticos, etnográficos, que em alguma época possam ter
contribuído para a consolidação da identidade de um grupo social (LIMA,
2007, p.79).

Como recurso para a obtenção de dados qualitativos sobre o locus da investi-


gação, optou-se pelo método etnográfico, seguindo as noções de François Laplantine
(2000), que explicita a diferença entre o Método Antropológico e Sociológico de
pesquisar em campo, enfatizando que a etnografia está pautada na observação direta
dos comportamentos sociais, sendo o etnógrafo aquele que deve ser capaz de viver
nele mesmo a tendência principal da cultura que estuda.
A escolha do método etnográfico proporcionou uma abordagem qualitativa
e mais aproximada dos moradores da avenida, o que nos permitiu uma análise das
interações, da memória dos moradores, do cotidiano dos transeuntes e das atividades
tradicionais do comércio formal e não formal da Avenida Magalhães Barata desde as
primeiras décadas do século XX.
O método etnográfico proporcionou a descrição de práticas, no reconhecimen-
to da área e na identificação da memória, de acordo com o pensamento de Eckert e
Rocha (2001), que preceituam a etnografia como um deslocamento em sua própria
cidade, dentro de uma proposta benjaminiana que afirma uma preocupação com a
pesquisa antropológica a partir do paradigma estético na interpretação das figurações
da vida social na cidade. Para as autoras, a Etnografia de Rua é um método destinado
ao estudo dos itinerários urbanos e da memória.
O lugar que é inegavelmente destinado à construção de relações, de vínculos
afetivos, como fonte propulsora de lembranças que a todo momento revelam um
detalhe, um cheiro, um olhar, uma reação positiva ou adversa, que são rapidamente
evocadas e se apresentando sempre com suas ressignificações.

2. ANDANDO SOBRE O MOSAICO DA MEMÓRIA

A preocupação em fortalecer a memória dos vividos foi determinante para o


estudo das relações entre a rememoração do indivíduo e suas relações com o espaço,
indicando ancoragens para a pesquisa. Para Ipiranga (2010), na dimensão tempo - as

30
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

discussões giram em torno da memória. Considerando o espaço como um lugar de


experiências, simbolismo e significados, a dimensão simbólica a ele atribuída per-
mite entende-lo como palco de transformações que acolhem as diferenças. Autores
como Miranda, demonstram uma perspectiva crítica, em que:

As tensões entre consciência do presente e nostalgia do passado se expres-


sam na arquitetura, objeto que testemunha as épocas da história e permite
ao citadino regressar no tempo ao vivenciar os eventos passados. O percur-
so dos séculos se cristaliza na cidade, e a preservação do patrimônio edi-
ficado conduz à leitura de um tempo-espaço que não volta mais, mas que
emerge no imaginário como a busca do ideal, da felicidade (MIRANDA,
2006, p.18).

A memória coletiva, individual e afetiva identificada, fruto das relações entre


os indivíduos, nasce do cotidiano destes e de suas atividades diárias, ações que fazem
parte das relações intrínsecas de uma rua. A memória está relacionada à afetividade
como afirma Schmidt (1993, p. 289):

Em termos dinâmicos, a lembrança é sempre fruto de um processo coletivo,


na medida em que necessita de uma comunidade afetiva, forjada no “entre-
ter-se internamente com pessoas” característicos das relações nos grupos
de referência. Esta comunidade afetiva é o que permite atualizar uma iden-
tificação com a mentalidade do grupo passado e retornar o hábito e o poder
de pensar e lembrar como membro do grupo. Constitui a permanência do
apego afetivo a uma comunidade dá consistência à lembrança.

De acordo com Schmidt, a memória afetiva de um grupo ou comunidade re-


forçam o apego com o local e fortalecem a memória coletiva. A memória coletiva é
aquela formada pelos fatos e aspectos julgados relevantes e que são guardados como
memória oficial da sociedade. Os conceitos de memória foram utilizados no desen-
volvimento deste trabalho, nele tratamos também da memória histórica, que de forma
ativa e dinâmica, permite o entendimento, em diferentes perspectivas, das referências
do passado e presente dos grupos sociais e culturais.
Ao descrever a experiência do habitar na cidade, o arquiteto-pesquisador não
consegue deixar de lado sua sensibilidade para a observação do lugar construído”
(DUARTE, 2010, p.6). Reforça a autora que, para observação dos lugares, ou a des-
crição dos espaços construídos, é necessário o entendimento da transição de espaços
para lugares, como demonstra Tuan (1983), “espaços” transformam-se em “lugares”
quando permitem que a pessoa desenvolva afetividade em relação a esse local e isso

31
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

só é possível através da experiência do espaço. Este processo de transformação é


contínuo e ininterrupto como Duarte exemplifica:

Não existe, contudo, um momento exato em que o espaço “se torna” Lu-
gar. Existe, sim, um processo contínuo, ininterrupto, no qual o ambiente é
modificado, recebe afetos, toma novas significações, modifica o indivíduo
que o usa e retorna a ser alterado em seus valores e significados a cada mo-
mento. A esse processo ininterrupto chamamos de “moldagem do Lugar”
(DUARTE, 2010, p. 7).

De aspecto genuíno, o lugar da pesquisa é um misto de área comercial e resi-


dencial, lugar que gera um eixo de passagem e também lugar de permanência, local
de relações transitórias e relações permanentes.
O processo de ocupação da Avenida inicia quando, no final do século XIX
e início do século XX, Belém recebeu imigrantes de diversas nacionalidades euro-
peias, mudando a estrutura econômica da região, em função do Ciclo econômico de
exportação da borracha. Dentre estes migrantes, muitos elegeram a antiga Rua da
Independência (atual Avenida Magalhães Barata) como local para instalar seus esta-
belecimentos comerciais, que até hoje funcionam com seus antigos proprietários ou
descendentes destes. A identificação destes imigrantes muda a referência e as carac-
terísticas deste comércio e da própria avenida, que passa a ter sua própria identidade.

3. UM PASSEIO PELA MEMÓRIA DOS VIVENTES DA


AVENIDA

A partir da abordagem compromissada e despretensiosa percorremos as seis


quadras que correspondem à Avenida Magalhães Barata em toda a sua extensão. O
trajeto inicia no Bairro de Nazaré, na confluência da Travessa 14 de março, sendo
que o trecho a partir da Avenida Alcindo Cacela já pertence ao Bairro de São Brás,
ao qual pertencem os restantes trechos, até o término, na esquina da Avenida José
Bonifácio, perfazendo um trajeto de 1200 metros. As quadras são interrompidas por
vilas e alamedas durante todo o percurso (Figura 1). Todas as quadras, os lotes e as
ruas têm formas regulares, lineares e planas.

32
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

Figura 1 - O Mapa mostra em destaque o caminhamento proposto para pesquisa, a Avenida


Magalhães Barata, dividida em seis trechos que são limitados pelas ruas transversais.

Fonte: Mapa CODEM, alterações e marcações da autora, editado por Cristhian Cabral,2020.

Ao decidirmos iniciar as entrevistas, fizemos uma incursão ao Colégio Gentil


Bittencourt (antes conhecido como O Collegio das Educandas), em visita a uma das
depoentes. Um pouco antes da hora previamente combinada, não demorou para que
Irmã nos atendesse ali mesmo no sofá da sala de recepção do colégio, iniciamos a
entrevista; a irmã Ana Clemes Melo4 (nome de batismo Irecê), nos seus 88 anos, a
mais antiga do colégio, de estatura pequena, quase some dentro de seu hábito. Aos
11 anos de idade chegou ao Colégio Gentil, em 1938, para estudar como pensionista,
depois formar-se como professora, como ela mesma lembra.
Sobre o comércio existente na Avenida a Irmã descreve a sorveteria do Ja-
ponês (O China), sendo a única das pessoas entrevistadas que citou o local. Ainda
lembro, diz a freira:

4
Irmã Ana Clemes Melo, 88anos, concedeu esta entrevista em 13 de agosto de 2014.

33
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Tinha a Casa Salomão, tinha outra “A Doméstica” na esquina da Rua 22


de Junho, a Padaria Aveirense, ali também naquele pedacinho, tinha a
sorveteria do japonês, que agente chamava a sorveteria do China. Quando
eu era externa, a mãe dava dinheiro pro bonde, ai nós íamos lá comprar
picolé do China.

O Colégio Gentil Bittencourt é uma instituição de ensino administrada por


freiras da Congregação das Filhas de Sant’ana, construído pelo engenheiro italiano
Filinto Santoro e inaugurado em 1906, de valor histórico inegável. A origem deste
estabelecimento de ensino foi o Colégio Nossa Senhora do Amparo, criado em 1804
pelo Bispo Frei Caetano Brandão (Manoel de Almeida Carvalho), inicialmente de-
nominado de Recolhimento das Educandas, para abrigar meninas índias. Esse esta-
belecimento foi instalado no dia 10 de junho do mesmo ano em uma casa de aluguel
pertencente ao Seminário Episcopal, à Rua do Açougue (ou antiga Rua das Indústrias
e atual Rua Gaspar Viana). O colégio era administrado e mantido pelo governo da
província; conhecido também como Escola das Educandas, teve papel importante na
província e objetivo principal de acolher e educar órfãos do sexo feminino, propondo
uma educação que visava a formar boas mães e esposas, como comprovam os relató-
rios do Governo da Província (Relatório de 1869).
A memória é constituída por lembranças, pessoais e coisas e finalmente luga-
res, que podem ser lugares de memória, lugares ligados a uma lembrança, e que nem
sempre tem uma estrutura cronológica. A lembrança do vivido, ou mesmo do que já
não existe mais, impossível de resgatar, proporciona uma sensação de vazio, da per-
da do vínculo. As relações proporcionadas pela interação linear dos habitantes com
a cidade, seu bairro, sua rua e seus espaços, são ricas em simbolismo, estabelecem
vínculos e constroem identidades. Como afirma Ipiranga “A cultura da cidade, como
espaço de enraizamento, memórias, interação, fronteiras e hibridismo, constrói no
tempo identidades, produz e reflete identificações, símbolos, signos e significados”
(IPIRANGA, 2010, p.68).
Na avenida dos governadores entrevistamos uma representante da Família
Maroja, neta do antigo proprietário do imóvel, a Sra. Dulce Maroja5. Médica apo-
sentada, ela nos conta que nasceu neste imóvel em 1956, a mãe veio do interior para
o Colégio das Educandas, depois a casa foi adquirida pelo avô em 1941, a última
escritura consta de 1896, Manuel Maroja Neto, interventor federal no Estado.

5
Dulce Maroja, 58 anos, médica aposentada, concedeu a entrevista em 12 de agosto de 2014.

34
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

Em sua fala, Dulce sugere um sentimento de exaustão, quando trata da ma-


nutenção do casarão, possuindo três janelas frontais em arco pleno, com entrada
pelo alpendre lateral e platibanda balaustrada, pintada na cor rosa com detalhes em
amarelo, com características do classicismo imperial, talvez o único conservado que
ainda mantém a função original (de raiz), moradia familiar (Figura 2). Ao longo da
conversa percebemos um orgulho exacerbado de pertencimento àquele imóvel e de
seu avô Manuel Maroja Neto6, ex-governador do Estado do Pará e antigo proprietário
do imóvel.
Figura 2 - Vista da fachada da residência do Manuel Maroja Neto, ex-governador do Estado
do Pará. O imóvel é mantido com todas as linhas originais do projeto interna e externamente.

Foto: Carmosina Calliari Bahia, 2014.

6
Manuel Marojah Neto foi Governador do Estado de 6 de novembro de 1945 a 9 de fevereiro de 1946.
Fonte: Lista de governadores do Pará. Tribunal Superior Eleitoral. Centro de Divulgação da Justiça Elei-
toral. Disponível em: http://agencia.tse.gov.br/sadadmagencia/index.jsp

35
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

4. DÉCADA DE 50: O AMANHECER COM O CANTO DOS


PÁSSAROS

Como um marco que valoriza a avenida, o Museu Goeldi, como é conhecido


pela população local, mantém um parque zoobotânico centenário, o mais antigo da
Amazônia, que ocupa um quarteirão, com o seu acervo arquitetônico, arqueológico,
faunístico e florístico, todos conjugados nos seus 5,2 hectares. O Parque compõe a ca-
racterização vegetativa da paisagem, de uma grande área verde, preenchendo todo o
quarteirão. Sendo o primeiro zoológico do País, criado em Belém no início do século
XIX, Neldson Marcolin (2012) ressalta que o parque zoobotânico do Museu “é es-
treitamente regional, concentra um rico acervo da fauna e flora da região amazônica”,
e recebia total apoio do Governo do Estado, no período em questão.
O valor expresso pela instituição contempla o caráter histórico e afetivo a ela
devotado, como se pode detectar pela narrativa de sua criação descrita em relatório
do governo datado de 1882, quando fala do Museu:

Ilustrados como sois, escuso dizer-vos qual a importância que tem um


estabelecimento desta natureza, não só para fins scientíficos, como, prin-
cipalmente, para o desenvolvimento da indústria, desde que ele seja, ao
mesmo tempo, conforme convém, uma verdadeira exposição de riquezas
da Província7.

Neste setor da Avenida o trajeto nos parece mais estimulante, em destaque


a Biblioteca Clara Maria Galvão do Museu Emílio Goeldi. O prédio da biblioteca
compõe, junto com outros, o acervo arquitetônico do Museu Goeldi. Centralizado
em meio ao jardim, sua fachada principal possui seis vãos de abertura, sendo quatro
janelas em arco pleno com guarda-corpo balaustrado, separadas por duas portas cen-
trais de linhas retas apoiadas em patamar de escadas duplas com guarda-corpo em
madeira e ferro fundido. Durante a intervenção realizada no imóvel, em 1994, foram
substituídos panos de alvenaria do muro que contorna o Parque por grades, seguindo
a leitura do restante do muro frontal, abrindo nova visual do prédio da Bibliote-
ca Clara Galvão, como declara a arquiteta responsável pelo projeto, Maria Eugênia
Coimbra8. A suntuosa fachada, de forma inevitável chama a atenção dos transeuntes
que caminham diariamente nas calçadas ao redor do parque.

7
Consultado dos relatórios governamentais de 1882, p. 48 - Provincial Presidential Report Disponível
em: www-apps.crl.edu/brazil/provincial/para.
8
Arquiteta especialista em Preservação do Patrimônio Histórico do Governo do Estado do Pará.

36
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

O Sobrado Alexandre Rodrigues Ferreira do Museu Emílio Goeldi constitui


um exemplar da arquitetura do Classicismo Imperial. Os elementos em sua fachada
como os ornatos, platibanda com arco central nos remetem ao ecletismo. O prédio
possui cinco portas principais na testada da rua, sendo que uma delas leva a um ves-
tíbulo e a escada do pavimento superior, observa-se a platibanda que envolve toda a
cobertura. Pelos depoimentos do Sr. Elias Melo, funcionário aposentado do museu:

Antes era moradia, depois funcionou ali a Farmácia Chermont, depois


foi um cartório 3º ofício, e aí em cima foi residência do pesquisador Alois
String entomólogo. E depois foi o Tribunal de Contas do Estado.

O Sr. Elias Melo veio trabalhar no Museu Goeldi muito jovem como auxiliar
de pesquisa na área de Botânica, depois na piscicultura, tendo exercido também a fun-
ção de porteiro da Instituição. Durante a entrevista realizada no Parque Zoobotânico,
o Sr. Elias Melo demonstra um grande apego emocional e uma estrutura cronológica
clara da narrativa, aliada a relatos históricos importantes, como o fato do entrevistado
ter prestado serviços para o Governador Magalhães Barata, como ajudante de ordem,
em seus horários de folga do Museu Goeldi.
Depois do casamento com dona Teodora, Elias Melo e a esposa moraram seis
meses na antiga pousada (imóvel com características de Rocinha, que pertence ao
acervo do Museu Goeldi), isso na década de 50, como ele fala:

Meu casamento na década de 50 foi nas dependências do Museu, depois


nós fomos morar na Pousada do Museu. Eu amanhecia com o goviar dos
pássaros.

Um pouco mais adiante avistamos a Portaria do Parque Zoobotânico do Mu-


seu Paraense Emílio Goeldi e, ao adentrá-lo, percebemos o principal e mais impor-
tante acervo arquitetônico da Instituição: a Rocinha9 (Figura 3). A casa, ao longo de
seus 133 anos, vem sofrendo modificações e alterações em sua estrutura, algumas já
removidas, outras adaptadas ao uso. As reformas e adaptações infligidas à Rocinha
não levaram em consideração seus valores artísticos e históricos, desconsiderando as
teorias que norteiam as intervenções em bens tombados. Contudo, o bem patrimonial

9
Segundo Leandro Tocantins (1963), Rocinha foi o termo usado para designar o conjunto que formava
a pequena propriedade rural: campo, floresta, pomar e casa. Usualmente significava a vivenda cercada
de árvores silvestres, de fruteiras, jardins rústicos, na paz dos subúrbios. Era comum as construções de
Rocinhas no Caminho do Utinga (Antiga estrada de Nazareth e posteriormente Avenida Nazaré) e Estrada
da Independência, área afastada do centro da cidade.

37
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

ainda guarda suas principais linhas arquitetônicas, e em seu interior encontramos


todos os ornatos e escaiolas, em bom estado de conservação, embora alterações te-
nham sido realizadas em sua estrutura física e espacial. As intervenções marcaram
profundamente as características primitivas do imóvel e mudaram definitivamente
sua feição, considerando-se sua configuração externa.
Figura 3 - Vista frontal do prédio “Rocinha”, foto de 1900, observa-se a cobertura de vidro
no pátio frontal. Prédio construído em estilo eclético com forte influência do Neoclássico.
Observa-se o piso de ladrilho hidráulica na alameda principal.

Fonte: Coleção Fotográfica/Arquivo Guilherme de La Penha/MPEG (original revelada de


negativo em chapa de vidro).

A etnografia neste trabalho não se restringiu à coleta da memória, das narrati-


vas e das formas de sociabilidade, mas na descrição dos espaços urbanos que fazem
cenário para a dinâmica da vida no local. Como advogam Eckert e Rocha “a técnica
da etnografia de rua consiste na exploração dos espaços urbanos a serem investigados
através de caminhadas <<sem destino fixo>>nos seus territórios” (ECKERT; RO-
CHA, 2001, p. 6), no entendimento das autoras:

A intenção não se limita apenas a retornar o olhar do pesquisador para


sua cidade por meios de processos de reinvenção\reencantamento de seus
espaços cotidianos, mas capacitá-lo às exigências de rigor nas observações
etnográficas ao longo de ações que envolvem deslocamentos constantes no
cenário da vida urbana (ECKERT; ROCHA, 2001, p. 6).

38
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

Ao longo desta caminhada foram observados muitos exemplares representati-


vos da arquitetura dos séculos XIX e XX, a maioria com influências dos modelos es-
téticos europeus, como a ornamentação eclética das fachadas dos prédios de tipologia
clássica, estilo que se fortaleceu no período correspondente ao ciclo econômico da
borracha: 1870-1912, de acordo com Derenji (1987), quando escreve sobre a influên-
cia do Ecletismo na arquitetura paraense na época do ciclo econômico da Borracha.
É neste contexto que se insere o prédio principal do Parque da Residência10, a
antiga moradia dos ex-governadores do Pará. Em estilo eclético predominando o Ne-
oclássico, cujo portão pertenceu ao antigo Reservatório Paes de Carvalho e o gradil
foi confeccionado nas oficinas do Instituto Lauro Sodré, podemos então, identificar o
espaço como lugar de memória com boa frequência turística e programação cultural
rotineira. O terreno é composto por outras construções que contribuem para identifi-
car o espaço como um ‘lugar de memória’, no conceito de Pierre Nora. O complexo
sobressai também pelo valor histórico-político e valor simbólico conferido ao am-
biente construído,
Próximo a Travessa 14 de Abril avista-se um exemplar da arquitetura Art Nou-
veau que faz parte do Hospital Ophir Loyola. Este prédio com vãos arqueados, va-
randa lateral com guarda corpo balaustrado, serviu de moradia aos vice-governadores
do Pará na época do governo de Antônio Lemos. Conservado interna e externamente,
abriga o Departamento de Ensino e Pesquisa da Instituição.
No final da avenida se percebe uma quebra de angulação em relação ao cami-
nho reto da via, chegamos então em frente a caixa d’água de ferro da COSANPA. A
Companhia de águas de Belém ainda exibe seu mais representativo monumento da
Arquitetura do Ferro do Brasil, o reservatório de água, todo importado da Europa
pela Casa Tony Dussieux de Paris. Concluída sua construção, foi inaugurada na ges-
tão do Governador da Província Lauro Sodré, em abril de 1884. A obra que hoje é um

10
A antiga residência oficial dos governadores paraenses. Erguido no início do século passado, na antiga
Avenida Independência, o palacete residencial possui elementos estéticos do ecletismo -com recursos do
neoclássico misturados a outros elementos estilísticos e decorativos. Uma curiosidade é o fato de que o
palacete foi alugado ao Estado para ser utilizado como residência dos governadores Enéas Martins e Lau-
ro Sodré. Mas, oficialmente, em 1933, o primeiro inquilino a morar foi o interventor federal Magalhães
Barata, quando o terreno foi adquirido pelo Estado para ser a Residência Oficial do Governador do Pará.
Com o passar dos anos, foram acrescidos à residência alguns elementos como o extenso gradil perten-
cente ao antigo reservatório Paes de Carvalho, um trabalho em ‘Art Nouveau’ da firma inglesa Walter
Macfarlane, e o pavilhão Frederico Rhossard (homenagem ao jornalista e poeta paraense), de procedên-
cia Europeia, e que fazia parte do conjunto da Praça da República. O conjunto histórico sobreviveu sem
boas condições de uso até 1981, quando foi tombado pelo Estado e desativado como residência oficial do
governador, em 1992. O conjunto arquitetônico foi restaurado e inaugurado Como Parque da Residência
em 1995. Fonte: Pará, Secretaria de Cultura do Estado e Estação Gasômetro. Belém. SECULT .2000.

39
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

marco histórico do saneamento em Belém foi construída de forma cilíndrica com ca-
pacidade de 1.570.000 litros, o reservatório tem 25 m de altura, feito em ferro forjado
e sustentado por colunas de ferro fundido (ANDRADE, 2010, p. 94).
A caixa d’água tem valor de rememoração, cercada por grades, sem acesso
ao público, parece um monumento para contemplação à distância. No outro lado da
via observa-se apenas a repetição de modelos arquitetônicos, com pequenos vãos
de abertura, mantendo a mesma volumetria, formam um paredão que finaliza a via.
Novamente temos a sensação de amplitude e alargamento, a vista converge para o
Mercado de São Brás e a Praça Floriano Peixoto que lhe serve de moldura. A monu-
mentalidade do mercado adornada pela praça, favorecida pela área alargada, opera
de acordo com posição do transeunte, determinando os vários pontos focais e varia-
das visuais, possibilitando a observação dos detalhes marcantes deste monumento de
nossa arquitetura.
O Mercado de São Brás11 cuja obra de construção iniciou em 1º de Maio de
1910 e terminou em 21 de Maio de 1911, teve projeto atribuído ao engenheiro ita-
liano Filinto Santoro. O mercado possui estrutura em ferro agrega elementos do Art
Nouveau e do Neoclássico, com detalhes escultóricos também em ferro e azulejos
nas paredes internas. Ao descrever a imponência do mercado, reforçamos sua gran-
diosidade como um espetáculo para quem finda todo o trajeto da Avenida Magalhães
Barata. Este espetáculo visual tem várias cenas, dependendo do olhar atento ao qual
jamais passariam despercebidas, sua significação, as suas várias leituras.

5. PERCEPÇÕES E MEMÓRIAS

Hoje a Avenida Magalhães Barata reúne um acervo considerável de monu-


mentos históricos e não menos importante, o seu entorno, constituído por imóveis
particulares que remontam a várias fases e estilos da história da arquitetura. Preservar
estes ambientes construídos não constitui tarefa fácil, uma vez que, atualmente, são
visíveis sinais crescentes de degradação do espaço físico, socialmente produzido se-
gundo a cultura e tecnologias históricas definidas; uma acentuada mudança nos cos-
tumes provocou alterações na ambiência local e consequente mudança na paisagem.

11
O Mercado de São Brás é uma construção da Belle Époque, construído em função da grande movi-
mentação comercial gerada pela ferrovia Belém –Bragança. Como ponto final do trem, haviam muitas
pessoas embarcando e desembarcando ali, tornando a área atrativa para a comercialização dos produtos.
Antônio Lemos, intendente de Belém na época, cedera a Filinto Santoro o terreno. Foram importados da
Itália os materiais e mão de obra para a execução do projeto (PANTOJA, 2014).

40
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

A acumulação histórica pode ser relacionada às relações cotidianas intrínsecas


de uma rua, formada pelas relações humanas de trabalho e amizade. Ao valorizar as
atividades corriqueiras de uma rua, mantemos o testemunho dos acontecimentos pes-
soais e sociais, que produz o resgate da memória coletiva-cultural de forma integrada,
incluindo todas as atividades humanas: arquitetura, artes, história oral e os afazeres
do dia a dia e profissões de caráter manual.
A relação com o patrimônio edificado é acentuada e a preocupação dos en-
trevistados com as mudanças ocorridas nos imóveis e consequentes mudanças da
paisagem local é considerável. Todo anseio da população no que tange a preservação
estão resguardados por lei, embora a falta de regulamentação impeça a aplicabilidade
da mesma. É fundamental uma fiscalização efetiva nos bens tombados e naqueles que
formam o seu entorno, para que a especulação não encontre no abandono argumentos
para destruição de sua memória, além de coibir outros recursos danosos propostos
pela modernidade e adotados pela sociedade. Assegurando toda a diversidade cul-
tural e combatendo a intolerância que destrói as formas de expressão, sejam elas do
passado ou do presente.
O resultado da análise realizada na Avenida Magalhães Barata com as deter-
minações das legislações de preservação do Patrimônio Arquitetônico demonstram
que é necessária e urgente uma legislação de ordenamento, como instrumento ur-
banístico protetivo, capaz de estimular o proprietário à manutenção do imóvel, que
possa instruir a forma de ocupação e uso do solo ou a não utilização do mesmo, de
proibir o seu remembramento, preservando os lotes menores, impedindo a mudança
de volumetria, controlando a descaracterização do imóvel. Seria prudente também
incentivar o uso habitacional e não especulativo, além do uso cultural e turístico
que valorize a avenida. Tais ações protegeriam de tal forma o entorno imediato dos
grandes monumentos, acompanhando as dinâmicas modificações, e impulsionando
as melhorias na avenida.
A perspectiva é de que esta pesquisa possa subsidiar futuras intervenções, que
tenham como objetivo a preservação da memória, o cotidiano, a valorização da his-
tória oral e das edificações históricas da avenida, permitindo a conservação da iden-
tidade local.

REFERÊNCIAS

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1931: Um Ramal da Estrada de Ferro de Bragança em Belém do Pará. Tese
(Doutorado em História Social), São Paulo, Pontifícia Universidade Católica, 2010.

41
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

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mas e sentidos de um lugar. Dissertação (Mestrado). 2014. Universidade Federal do
Pará. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. Belém, 2014.

42
ARQUITETURA COMO TESTEMUNHO DO PASSADO: UM PASSEIO PELA AVENIDA MAGALHÃES BARATA – BELÉM-PA

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NOSTALGIA BELÉM. Disponível em: http://www.nostalgiabelem.com. Acesso em:
10 abr 2014.

43
FACHADAS DE VIDRO: um signo na cultura
arquitetônica de Belém

Bernadeth Beltrão1
Celma Chaves2

1. INTRODUÇÃO

Situada na região Norte do Brasil, a pesquisa ambientou-se no espaço amazô-


nico, lugar em que a vida se reproduz em meio à paisagem heterogênea, pautada ao
longo do tempo pela economia extrativista de geração de recursos aplicados de forma
desigual, com reflexos sociais e físicos, que configuram o espaço urbano que transita
entre produções arquitetônicas nativas e interferências estrangeiras. Considerando tal
contexto, este artigo busca expor o caráter representativo do vidro e de seu produto
fachada de vidro, visando demonstrar brevemente o processo pelo qual as fachadas
de vidro passam até a sua materialização no cenário urbano, objetivando construir
críticas quanto ao seu uso no mercado imobiliário e a sua imagem imposta de forma
cada vez mais rápida na cidade.
Como objeto de análise, têm-se as fachadas de vidro reproduzidas tanto em
edifícios verticais como horizontais. Ciente de que essas fachadas se estendem em
diferentes zonas da cidade, inclusive em áreas de baixa renda, optou-se por delimitar
o recorte espacial compreendido em dois bairros: Umarizal e Nazaré (figura 1), iden-
tificados como as primeiras áreas de concentração de uso dessas fachadas, caracteri-
zadas também como área ainda em expansão das mesmas.

1
Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFPA, Doutoranda PPGAU/
UFPA.
2
Arquiteta e Urbanista (FAU-UFPA); Doutora em Teoria e História da Arquitetura (Universidad Poli-
técnica da Cataluña); Professora Associada IV FAU/PPGAU/UFPA. Coordenadora do Laboratório de
Historiografia da Arquitetura e Cultura Arquitetônica (LAHCA).

45
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 01. Bairro do Umarizal e bairro de Nazaré

Fonte: CODEM, 2001 e Execução Bernadeth Beltrão,2018.

Sobre os bairros, ambos possuem histórico de investimentos em infraestrutura


urbana realizada ao longo dos anos e diferenciam-se como áreas nobres e privile-
giadas da cidade. Abaixo segue a caracterização dos bairros descritas no anúncio de
divulgação das incorporadoras que possuem empreendimentos (edifícios construídos
para venda ou aluguel de espaços) nos bairros:

O Torre Infinito está situado na localização mais privilegiada e nobre de


Belém, um dos bairros mais clássicos e completos da cidade, o Bairro de
Nazaré, a área é estratégica, devido ficar próximo a agências bancárias [...]
e outros serviços para facilitar o dia a dia, assim os usuários do Torre Infini-
to, poderão usufruir de todos os benefícios práticos, urbanos, tecnológicos
de um dos bairros mais cobiçados e valorizados da atualidade (GRUPO
MB CAPITAL, 2016).
Imóvel comercial em Umarizal, Belém. Faça um excelente negócio agora
para bons negócios no futuro. Trabalhe com conforto. Chegou em Belém

46
FACHADAS DE VIDRO: UM SIGNO NA CULTURA ARQUITETÔNICA DE BELÉM

um verdadeiro conceito inovador em prédios comerciais: Mirai Offices.


No bairro mais moderno e completo da cidade, com toda infraestrutura de
comércio e serviços, a localização do empreendimento permite acesso fácil
e rápido às principais avenidas (CYRELA, 2018).

2. VIDRO: REPRESENTAÇÃO E SIGNIFICADO

“A representação (aparência) é a forma visível de uma imagem de semelhança


(pensamento) e, se o artista foi bem-sucedido, ela se deixa aparecer para o mundo
em sua totalidade” (MALARD, 2006, p. 21). Mergulhada nesse mundo imagético
e comunicativo, a arquitetura como representação de valores e concepções de um
determinado momento, materializa-se por meio de sua técnica e materiais, ao mesmo
tempo em que carrega uma imagem possuidora da relação de representação, na qual
se percebe um “objeto ausente” por meio de uma imagem “presente” (CHARTIER,
1992).
Ao se constituir essa relação, que só se efetua a partir de conhecimento a
priori, surgem formas de interação entre sujeito e objeto, abarcando ideias que di-
recionam o sujeito para certas assimilações com significados de ordem proposital,
que podem ser qualificados como símbolo3 ou signo. Considerando essa distinção, o
presente artigo adota o conceito de signo, interpretado por Malard (2006) para anali-
sar e compreender a forma como essas fachadas se estruturam na cidade. Conforme
a autora, “Um signo pode ser qualquer elemento ao qual é dado um significado es-
pecífico [...] a principal característica dos signos é que seu significado é estabelecido
por convenção” (MALARD, 2006, p.41), complementando que os signos são objetos
de consumo.
É considerando esse caráter representativo, especificamente o de signo, que
este artigo entende as fachadas de vidro. Porém, para compreender essa qualidade
nessas fachadas, destaca-se rapidamente duas representações significativas conferida
ao vidro. A primeira ainda na Idade Média como o de comunicador de preceitos re-
ligiosos, mais que isso, meio próprio de catequização, doutrinação da religião cristã
por meio dos vitrais nas igrejas e monastérios; e de produto modelo da ambiência
moderna, na qual a qualidade representativa tecnológica estaria imersa na lógica de
consumo do século XX. Observa-se nesses dois exemplos, ainda que distintos, a in-
cumbência de transmitir uma mensagem e a convenção que se habituou (durante sé-

3
“Símbolos também elementos aos quais algum significado especial foi atribuído...símbolos são relacio-
nados à cultura, isto é, os símbolos são criados pela práxis” (MALARD, 2006, p.41).

47
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

culos) em perceber nesse material, algo que ele deveria comunicar - esse é um ponto
primordial para alcançar a importância que foi atribuída ao vidro ao longo do tempo.
Objeto de reflexão, o vidro foi interpretado por Baudrillard (1997) como um
material próprio da ambiência moderna, modelo de recipiente moderno que não dei-
xava dúvidas quanto ao conteúdo (permissão do contato visual), mas que recusava
no mesmo ato o contato físico entre as partes - consumidor e produto, evidenciando e
aguçando ainda mais o desejo de consumo. Também discutido por Benjamin (1993),
o vidro pensado de modo semelhante a Baudrillard, foi entendido como material pró-
prio da cultura moderna, que provocava nos objetos e lugares no qual era inserido a
subtração de seus atributos essenciais, “[...] material tão duro e tão liso, no qual nada
se fixa. É também um material frio e sóbrio. As coisas de vidro não têm nenhuma aura
[...]” (BENJAMIN, 1993, p.117).
Outra crítica que Benjamin (1993) estabelece em relação ao significado do
material, associa-se a mudança de comportamento na sociedade, que segundo o autor,
poderia se resumir nas palavras de Scheerbart ‘‘cultura de vidro. O novo ambiente
de vidro mudará completamente os homens” (BENJAMIN, 1993, p.118). Para o filó-
sofo, essa mudança seria provocada também por outros fatores, mas sobretudo pela
pobreza da experiência humana adquirida por meio da produção capitalista, caracte-
rizada pela individualidade e excesso de informações rasas e efêmeras, que estimula-
riam a monotonia, resultante do cansaço das infinitas atribuições do cotidiano.
Ainda no século XX, devido às transformações tecnológicas e culturais ocor-
ridas nesse período, o vidro novamente ganhou destaque com mais um significado
representativo. Na Arquitetura Moderna, com novo uso, plástico e inédita qualidade
representativa nas edificações, esse material combinado com o aspecto da verticali-
dade nos edifícios, inseriram nas cidades, a partir dos centros produtores de cultura
ocidental, a fachada de vidro ou “transparedes” como definiu Baudrillard (1997).
Esse novo produto que intensificou o consumo do vidro nas construções, possibilitou
inovações em vários aspectos das fachadas, maior qualidade técnica, visual e de sig-
nificado, sua reprodução na paisagem urbana passou a transmitir a retórica imagética
combinada pela inovação tecnológica e poder econômico.
No Brasil, a fachada de vidro utilizada já nos anos 40 no prédio do Ministério
da Educação e saúde – 1946, possuía além das características representativas citadas
no parágrafo anterior, outros significados provenientes do comando estatal: a quali-
dade de reafirmação e legitimidade do poder do Estado que, posteriormente, desdo-
brou-se no caráter estético e representativo vinculado à modernidade e identidade
do país (SEGRE, 2013), expressos na arquitetura da nova capital do Brasil, Brasília.
Em Belém, a solução de fachada de vidro corporificou-se na década de 60 por
meio da arquitetura institucional do Banco do Brasil (agência 003) inaugurada em

48
FACHADAS DE VIDRO: UM SIGNO NA CULTURA ARQUITETÔNICA DE BELÉM

1966 na Avenida Presidente Vargas. Representando o poder estatal, esse tipo de fa-
chada que destoava totalmente das construções ao seu redor, tinha também o objetivo
de retratar o desenvolvimento impulsionado na região Amazônica. Salienta-se aqui
o senso de perceber tal região como espaço vazio, atrasado e carente de incentivos,
em um sentido claro de inferioridade ao restante do país, o que lhe conferia como um
terreno fértil para implantação de políticas que consideravam a produção da imagem
de cidade ideal. Criação essa que poderia ser alcançada por meio das transformações
físicas, materializadas na arquitetura, como exemplo do banco citado, “[...] portento-
sa obra, que tanto engalana a Avenida Presidente Vargas [...]4, equipamentos urbanos
entre outros. Tendo também as transformações abstratas produzidas no âmbito social
por intermédio da comunicação em massa, nos quais os discursos das ações moderni-
zantes eram interpretados e reconhecidos como linguagem maior de civilização. Em
resumo, o vidro e a fachada de vidro passaram a servir como um mecanismo da re-
presentação de poder econômico e social na construção da cidade (e de sua imagem),
passando a ser signo da modernidade e modernização instaurada em Belém.

3. MATERIALIZAÇÃO DAS FACHADAS DE VIDRO

A estrutura organizacional das fachadas de vidro se consolida por meio de


etapas, as quais são realizadas pelos agentes envolvidos no processo de sua materia-
lização. Dentro do recorte espacial, identificou-se seis exemplos de construções com
fachada de vidro que estão representadas por meio de diagramas apresentados na
figura 02. Para correta leitura da figura 02, a imagem deve ser interpretada a partir do
retângulo maior, de fora (cinza mais escuro que representa o Agente Promotor/Finan-
ciador) para dentro (retângulo branco que representa a FV - fachada de vidro), con-
siderando a relação de responsabilidade que inicia no Agente Promotor/Financiador,
quem deseja obter a fachada de vidro na edificação e faz a sua compra e é incumbido
da contratação de serviços de arquitetura, serviços de execução de obra e serviço de
fornecimento e também execução da fachada de vidro.

4
A PROVÍNCIA DO PARÁ. J.C. e Assessores para sua orientação, 10 de maio de 1964, p. 6.

49
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 2 - Estrutura organizacional

Fonte: Bernadeth Beltrão, 2018

Por meio da figura 2 demonstra-se que existem situações em que se pode ob-
servar uma logística visivelmente distribuída dos serviços até a concretização da fa-
chada, como no caso dos edifícios 1 – Procuradoria Geral da União (PGU) e Tribunal
de Contas Estado do Pará (TCU). Casos em que se constata a diminuição dos servi-
ços, como nos edifícios 2 – Mirai Oficces e 3 – Torre Infinito, devido ao caráter de
incorporação do Agente Promotor/Financiador (o mesmo agente tem a responsabili-
dade de execução, promoção e gerência do empreendimento). E outras ocorrências,
como os edifícios 4, 5 e 6 (edificações baixas, com quatro pavimentos ou menos) de
uso comercial e de serviço, nos quais existem subtrações de serviços prestados. Nes-
ses últimos, destacam-se os edifícios 5 e 6 por ambos possuírem somente duas etapas
para alcançar a concretização da fachada, nota-se nessas amostras maior contraste
entre as tonalidades de cinza, observando-se a falta de profissionais habilitados para
a adequada execução da fachada.
Buscando compreender a razão, motivação de consumo dessas fachadas, ou
seja, qual a justificativa para a compra e uso das fachadas de vidro em Belém, reali-
zou-se entrevistas com agentes envolvidos nesse processo de materialização das fa-

50
FACHADAS DE VIDRO: UM SIGNO NA CULTURA ARQUITETÔNICA DE BELÉM

chadas5. Como resultado todos os entrevistados apontaram que possuem em comum


o motivo de aquisição devido ao caráter estético do empreendimento. Além da apa-
rência, os entrevistados das empreendedoras apontaram como justificativa de compra
alguns benefícios como: representação de poder econômico de quem usa o imóvel;
valorização do imóvel e redução de tempo de serviço (montagem). Outras respostas
também fundamentadas nas entrevistas, apontaram a justificativa estética (primeira
razão citada por todos), combinada com os benefícios já mencionados, adicionando
outra peculiaridade que também parte da estética, porém não se referindo somente à
beleza, mas ao caráter multiuso:

[...] tenho uns clientes que são donos de imóveis para alugar e eles estão
trocando as paredes pela pele de vidro, as vezes substituem, as vezes põe
por cima mesmo, porque dá, eles dizem que agrada todo mundo e eu acre-
dito, porque é uma coisa que agrada desde quem usa (a pele de vidro nos
edifícios) até quem passa na rua [...] (entrevista concedida à Bernadeth
Beltrão em 2018, pela empresa C).

Conforme os casos demonstrados para adquirir a fachada de vidro além dos


motivos mencionados, existem outras vantagens como: 1 - Diminuição de encargos
trabalhistas, pois a fachada de vidro não necessita de muitos funcionários para sua
execução e no caso do Agente Promotor/Financiador, a montagem será um serviço
terceirizado, porque a mão de obra para correta execução é especializada e as empre-
sas de fornecimento e execução de fachadas de vidro existem também em decorrên-
cia disso; 2 - O ganho de representação de maior status social e poder econômico. Os
usuários e proprietários se beneficiam desses tipos de poder principalmente quando
as edificações com fachada de vidro estão localizadas em áreas nobres da cidade, tor-
nando esses lugares espaços de distinção como na compreensão de Bourdieu (2005);
3 - Incorporação da estética multiuso, utilizada como mecanismo do mercado imo-
biliário para movimentar a venda e aluguel de imóveis que são interpretados como
edifícios capazes de integrar diferentes usos (inclusive ao mesmo tempo em uma

5
Para saber os motivos dessa aquisição, realizou-se entrevistas com: dois funcionários de incorporadoras
que possuem empreendimentos verticais privados com fachada de vidro, ambos solicitaram sigilo de
suas identificações - Funcionário A trabalhou na construção do empreendimento Torre Infinito e Funcio-
nário B trabalhou na construção do empreendimento Mirai Offices; entrevistas com duas fornecedoras
e montadoras de fachadas de vidro na cidade, Petillo Tecnocenter e Empresa C (empresa solicitou sigilo
na identificação); entrevistas com oito locatários e proprietários de salas comerciais do edifício Mirai
Offices e entrevistas com os arquitetos Alcyr Meira e Paulo Chaves.

51
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

única edificação) devido à estética de agradar “a todos” que alugam, usufruem ou


simplesmente passam em frente ao edifício com fachada de vidro.
Outras considerações estéticas podem ser levantadas, como a característica
de menor transparência e maior reflexo externo do vidro. Diferente do vidro transpa-
rente proferido por Baudrillard (1997), atualmente o que se observa nas fachadas de
vidro, durante o período matutino e vespertino (dependendo da condição de ilumina-
ção), é a sua opacidade com evidente reflexo, justificada também como artifício tec-
nológico empregado para promover o conforto ambiental e eficiência energética nas
edificações (caso utilizado corretamente). Então, o que não deixava dúvidas quanto
ao conteúdo, além de esconder, no ápice, provoca a duplicidade de uma imagem ou se
interpretada de outra forma, falseia a imagem à sua frente. Imagem essa finita, fugaz,
que só é capaz de durar o instante, o momento em que os objetos passam na sua fren-
te. Os espelhos são assim, camuflam-se a partir de imagens que não lhes pertencem.
Espelhar, refletir. Explicitamente uma arquitetura narcisista, nascida da neces-
sidade de se ver por não ser - já que não possui imagem própria, mesmo quando o
que se tem em sua frente, no seu entorno, não seja tão agradável (Figura 3). Contanto
que no reflexo não apareça ou tanto faz, se um dia o entorno mudar, melhor a beleza
ressaltará. Há casos em que não se questiona o que se reflete, porque talvez o impor-
tante seja simplesmente refletir.
Figura 3. Edifício Religioso na Av. Bernardo Sayão.

Fonte: Bernadeth Beltrão, 2020.

52
FACHADAS DE VIDRO: UM SIGNO NA CULTURA ARQUITETÔNICA DE BELÉM

Além do reflexo, outra qualidade técnica das fachadas de vidro tem origem
na sua própria construção, fundada na efemeridade da montagem e desmontagem de
suas peças pré-fabricadas, que podem ser substituídas individualmente ou coletiva-
mente por outras mais tecnológicas, assim que sua função estética, por exemplo, já
não mais servir. Tal situação é possível pois os componentes materiais (montantes,
quadros etc.) da fachada de vidro são produzidos e disponibilizados em tamanhos
padrões nas fábricas e fornecedores, com isso podem ser retirados e recolocados em
outras edificações, sob a condição de que suas dimensões estejam condizentes com
o modelo da fachada do edifício (o que não é recomendado, devido ao desgaste de
cada peça, mas é algo possível, segundo alguns entrevistados), logo, o que se constrói
aqui, reproduz-se ali.
A imponência desse tipo de fechamento vítreo é tamanha, que não é somente
a dimensão que deve obedecer ao padrão da fachada de vidro, o projeto arquitetônico
e os complementares necessitam se adequar às especificidades dessa vedação, inclu-
sive outras decisões devem considerar e submeter-se às exigências dessas fachadas
como as econômicas, técnicas, estéticas dentre outras.
Diferente da arquitetura tradicional, a envoltória não acompanha o volume,
o volume acompanha a envoltória. A embalagem define o conteúdo e por vezes a
disposição dos elementos desse conteúdo, a pele não se molda na forma, a forma se
molda na pele, pois a pele de vidro6 tornou-se um sistema autônomo da volumetria,
ainda que seja utilizada sob a justificativa de valorizá-la. Tão adversa da arquitetura
tradicional, nessa solução, a própria natureza do produto nasce desestruturando o
caráter ontológico de parede e janela na arquitetura, pois se perde a noção dos li-
mítrofes desses elementos, não se olha a partir de uma abertura delimitada, na qual
tradicionalmente havia se habituado, enxerga-se por um vão alargado que tem suas
dimensões de parede, porque também é uma parede, ao mesmo tempo em que é jane-
la. Essa desestruturação impõe um novo elemento na composição das fachadas, que
mistura a percepção visual e permite a continuidade entre os meios interior e exterior
por meio da visão.
Considerando essa reprodutibilidade, entende-se na prática o real significado
do caráter multiuso mencionado por um dos entrevistados e questiona-se a partir
disso, o caráter estético e imagético homogêneo que se impõe à paisagem da cidade.
Com usos diferenciados, onde uma repartição pública funciona no mesmo edifício de
uma padaria; de uma clínica ortodôntica que fechou e no prédio passou a funcionar
uma escola; ou neste edifício, que ao ser retirada sua identificação (figura 4), daria
para perceber que é uma igreja?

6
Termo expresso no sentido popular e não no sentido técnico ou produto tecnológico.

53
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 4. Edifício religioso no Umarizal.

Fonte: Bernadeth Beltrão, 2018

Não se pretende determinar esta descaracterização ao agente Promotor/Finan-


ciador, nem ao próprio produto fachada de vidro ou tampouco ao conceito arquitetô-
nico do edifício religioso, mas na forma de aplicação e uso que fazem dessas fachadas
nas edificações. E assim, interpreta-se a fachada de vidro como signo possuidor de
uma beleza vítrea, conceito que excede a aparência e se configura pelo encantamento
(motivo de sua compra, consumo), justificado pelos vários (ou supostos) benefícios:
estético, econômico, social, funcional e outros, que esse tipo de fachada passou a
agregar, oferecer, representar para quem a usufrui, para os edifícios que lhe contém e
para a paisagem da cidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Reconhece-se que as exposições dos seis casos de fachadas abordadas não


representam o universo completo de materialização das fachadas de vidro em Belém.
Contudo, os casos demonstrados são realidades distintas e algumas até preocupantes
quanto ao tratamento desse produto tecnológico, que ao sair do fornecedor pode ter
sua qualidade comprometida ao ser inserido incorretamente nas edificações, devido,
por exemplo, a falta de mão de obra qualificada na sua execução. Portanto, ainda
que esses seis tipos sejam uma pequena parcela de uma realidade mais complexa, os
mesmos são válidos por permitir a compreensão parcial do surgimento dessas facha-

54
FACHADAS DE VIDRO: UM SIGNO NA CULTURA ARQUITETÔNICA DE BELÉM

das na cidade e como as mesmas passaram a ser um mecanismo estratégico para o


mercado imobiliário.
Enfatiza-se neste artigo, que não se questiona a inserção das fachadas de vidro
em áreas de baixa renda ou com infraestrutura precária (como demonstrado no caso
da figura 3). Ao contrário, reconhece-se que há inserção dessas fachadas indepen-
dente da condição econômica e social do lugar, logo, esse aspecto não é um ponto
discutido, mas o sentido que conferem para essas fachadas e seus efeitos na paisagem
urbana.
Quanto à imagem e significado da fachada de vidro, diante do exposto, corro-
bora-se sua representação como um signo na cidade, pois seus benefícios logísticos,
financeiros, somados com a estratégia de estética multiuso utilizada pelo mercado
imobiliário e sua relação direta com a instituição de um status social elevado, con-
ferem essa qualidade, estabelecida por convenção, às fachadas de vidro, entendidas
como objeto de consumo.
Salienta-se que para além de um produto estético e tecnológico, a fachada de
vidro se estabelece na paisagem da cidade como um ecrã da existência contempo-
rânea, em que a velocidade, rapidez, seja ela de sua construção ou das imagens que
reflete por um tempo delimitado, é uma característica compartilhada com a atual con-
dição de vida. E a arquitetura como criação do ser humano, reverbera essa essência
do momento. Benjamin (1993) foi assertivo quando anunciou a “Cultura de vidro”,
em que nada se fixa, o que se capta, larga, não tem aura, não tem memória, pois como
afirmou Bauman (2001) sobre os atuais tempos líquidos, nada foi feito para durar,
porque tudo tornou-se fluido.

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, J. O Sistema dos Objetos. Tradução: Zulmira Ribeiro Tavares.


4ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2004, p. 49.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas. Tradução
Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:  Brasiliense, 1993.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. Introdução, organização e sele-
ção de Sérgio Miceli. 6ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.
CHARTIER, R. El mundo como representación: Estudios sobre historia cultu-
ral.1ed.Barcelona: Editora Gedisa, 1995.

55
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

CYRELA. Imóvel Comercial em Umarizal/ Belém – PA MIRAI, 2016. Disponível


em: http://www.cyrela.com.br/imovel/mirai-salas-comerciais-umarizal-belem-pa.
Acesso em: 20/04/2016.
GRUPO MB CAPITAL. Material publicitário Torre Infinito. MB Capital Realty
Group. 2016.
MALARD, M. L. As aparências em arquitetura. 1ed.Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
SEGRE, R. Ministério da Educação e Saúde: ícone urbano da modernidade
brasileira, 1935-1945. 1.ed. São Paulo: Romano Guerra Editora, 2013.

56
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA:
qualidades espaciais em foco

Ana Klaudia Perdigão1


Tainá Marçal dos Santos Menezes2
Rosineide Trindade da Paixão3
Danielli de Araújo Felisbino4
Leonice Farias de Oliveira5

1. INTRODUÇÃO

A pesquisa em projeto vem se mostrando um campo fértil para produção de


conhecimento em arquitetura, visto que os processos e produtos envolvidos no ato de
projetar podem ser objetos de uma reflexão teórico-conceitual e metodológica (VE-
LOSO, 2016). Como exemplo, as pesquisas pautadas na teoria da produção arquite-
tônica (SILVA, 2003) visam um pensamento projetual mais explícito e transparente,
conforme a caixa de vidro de Jones (1971), onde o foco está no espaço da concepção
(BOUDON, 2007), validando instrumental para apoio à prática arquitetônica e que
assim possa ser ensinável e transmissível. No entanto, é evidente que muitas vezes
não há integração entre as partes voluntárias e involuntárias do processo de con-
cepção, indicando uma série de lacunas no pensamento projetual ainda passíveis de
investigação.
Assim sendo, a pesquisa em projeto do Programa de Pós-graduação em Arqui-
tetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (PPGAU-UFPA) tem buscado
a construção de uma base epistemológica voltada à produção de conhecimento sobre

1
Arquiteta e Urbanista, Professora Dra. FAU-PPGAU-UFPA, Coordenadora do Laboratório Espaço e
Desenvolvimento Humano (LEDH-UFPA).
2
Arquiteta e Urbanista, Doutoranda PPGAU-UFPA.
3
Arquiteta e Urbanista, Mestre PPGAU-UFPA.
4
Arquiteta e Urbanista, FAU-UFPA.
5
Arquiteta e Urbanista, FAU-UFPA.

57
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

questões operativas na medida em que fortalece a prática profissional e o ensino de


arquitetura, contextualizadas pela realidade amazônica (PERDIGÃO, 2019). Um dos
eixos de pesquisa busca à instrumentalização do projeto para concepção arquitetô-
nica na escala do edifício, onde o investimento teórico-metodológico centra-se na
relação entre ser humano e espaço construído para dar conta da problemática envol-
vida na habitação social, investigada pelo ponto de vista do usuário, que geralmente
não é o cliente. Assim sendo, o desafio encontra-se na elaboração de estratégias de
compartilhamento desse conhecimento de modo a impulsionar a assimilação do saber
popular pelo conhecimento formal de arquitetura.
As pesquisas realizadas no âmbito da instrumentalização do projeto, em ter-
mos cognitivos e operativos, têm apresentado importantes contribuições através do
desenvolvimento de categorias analíticas que descrevem a configuração do espaço,
buscando resultados que inaugurem temas não tradicionais (DEL RIO, 1998) a serem
incorporados no percurso projetual. Deste modo, visa que o repertório se especialize
em níveis de aprofundamento da compreensão do espaço arquitetônico e sua conse-
quente formação (OLIVEIRA, 2010) e assim ultrapassem as representações geomé-
tricas com a introdução de representações topológicas no projeto de arquitetura na
escala do edifício, como já adotado no projeto em escala urbana desde a década de
60 do século XX. Isto vem impactando diretamente no ensino de graduação, quando
revela uma alternativa para as decisões de projeto pautadas em estudos do uso espa-
cial para fortalecer um conhecimento detalhado da interação entre ser humano e o
espaço construído, na medida em que possa contribuir com a prática profissional do
arquiteto.
As repercussões diretas de um pensamento mais reflexivo e humanizado, gra-
ças ao uso de categorias como ponto de partida do projeto de arquitetura, podem ser
observadas em trabalhos de conclusão de curso em arquitetura e urbanismo na UFPA.
Portanto, busca-se demonstrar a presença de um círculo virtuoso entre pós-graduação
(PPGAU-UFPA) e graduação (FAU-UFPA) através de atividades coordenadas entre
pesquisa e projeto, conforme os produtos alcançados seguindo a linha de atuação
do Laboratório Espaço e Desenvolvimento Humano (LEDH), sob a coordenação da
Profa. Dra. Ana Klaudia Perdigão.

PARTE I – CATEGORIAS COMO QUALIDADES ESPACIAIS

As pesquisas que visam à instrumentalização do projeto são constituídas por


estudos sobre as representações espaciais (PERDIGÃO E BRUNA, 2009) e os res-
pectivos pontos de partida da concepção arquitetônica em termos geométricos, topo-

58
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

lógicos e pulsionais. São trabalhos que buscam superar temas tradicionais do projeto
de arquitetura e, de modo inclusivo, objetivam somar novas possibilidades, com es-
pecial atenção à descrição do espaço construído na Amazônia, preenchendo lacunas
vindas de teorias hegemônicas que, via de regra, deixam escapar peculiaridades sig-
nificativas a esse modo de vida.
As categorias de base topológica, menos tradicionais ao projeto de arquitetura
na escala do edifício, permitem a investigação da vida espacial de determinados con-
textos da habitação, o que possibilita a reflexão e crítica sobre a produção do espaço
mediante um leque abrangente de variáveis e necessidades humanas. Os resultados
das pesquisas têm oportunizado a sistematização de soluções, realizadas com e sem
arquitetos, que podem ser incorporadas ao saber formal, especialmente como subsí-
dio à concepção em projetos inseridos nas especificidades da realidade amazônica,
sendo uma delas o habitat ribeirinho.
Nesta linha de pesquisa, o tipo palafita amazônico foi caracterizado por Me-
nezes (2015) a partir de qualidades topológicas desenvolvidas por Norberg-Schulz
(1971) - relações de proximidade, de continuidade e de sucessão - para descrever
a interação da casa ribeirinha com o ambiente natural e entorno, bem como no seu
interior. As relações de proximidade referem-se ao contato com o ambiente natu-
ral, o rio e a floresta, e no interior da casa referem-se à localização do banheiro; já
as relações de continuidade envolvem a presença do sistema mata-rio-roça-quintal
(LOUREIRO, 2001), indicando que a dinâmica da habitação é muito mais do que um
local de abrigo, assim como representa o fluxo da circulação no interior da casa, o
qual é conectado ao ambiente de uso e não separado fisicamente por corredores; por
fim, a relação de sucessão aponta para os espaços de transição entre a edificação e o
entorno construído, representado por varandas, jiraus na cozinha, estivas privadas ou
qualquer outro elemento que se faça presente entre o público e o privado na habitação
ribeirinha amazônica (MENEZES, 2015; MENEZES et al, 2015).
Os estudos sobre o tipo palafita amazônico tiveram início com a investigação
das relações espaciais topológicas - proximidade, continuidade e sucessão - na co-
munidade Vila da Barca, em Belém (PA), desdobrando-se em um comparativo entre a
habitação formal (o projeto Vila da Barca) e a habitação informal em palafitas, iden-
tificando que esta comunidade possui fortes traços de uma cultura ribeirinha, mesmo
em perímetro urbano, observados na presença das relações topológicas na casa em
palafita, que, a priori, foram perdidas com o processo de remanejamento habitacio-
nal para o Projeto Vila da Barca, mas que buscaram ser resgatadas pelos próprios
moradores, a partir de modificações nas habitações de destino do reassentamento
(MENEZES, 2015; MENEZES et al, 2015). Os resultados permitiram a compreensão
da vida espacial das famílias estudadas e uma associação direta com referências espa-

59
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

ciais significativas que levam à caracterização do uso de tipos, o que apoia a análise e
concepção arquitetônica em contextos de reassentamento habitacional.
Na mesma direção, Paixão (2019) realizou um estudo longitudinal no contexto
de um programa de intervenção pública em assentamentos precários na cidade de
Belém-PA na comunidade Cubatão e seu correspondente projeto de reassentamen-
to, Projeto Taboquinha, localizados no Distrito de Icoaraci, Belém (PA). A pesquisa
buscou apoio teórico nos estudos de Gehl (2013) ao elencar categorias de natureza
topológica adotadas pelo autor na escala urbana, mas que pudessem ser transportadas
para a escala do edifício e cumprir seu papel com a incorporação da dimensão hu-
mana no projeto de arquitetura. Dessa forma, os conceitos de distância e espaços de
transição suave foram tomados como categorias analíticas investigadas na escala do
edifício (PAIXÃO, 2019).
A categoria distância, em seus desdobramentos, trouxe para a discussão con-
ceitos como espaço pessoal (FROM SOMMER e IACHINI, 2017; SOMMER, 1969;
ALEXANDER, 1977) amplidão (BARROS et al.,2005) e parâmetro projetual casa
longa e estreita (ALEXANDER, 1977); gradiente de intimidade (ALEXANDER,
1977) e privacidade (REIS, 2002; REIS e LAY, 2003). Já a categoria espaços de
transição suave, corresponderam a parâmetros projetuais de Alexander (1977),
como: espaço de transição (112), ambiente de entrada (130) e varandas e galerias
(166), os quais proporcionam inúmeras qualidades tanto para o espaço externo (ruas),
quanto ao interno (habitação), contribuindo de forma harmoniosa para a relação entre
usuário e espaço construído. Estas categorias foram evidenciadas a partir dos estu-
dos nas casas de origem dos moradores (palafitas na comunidade Cubatão – antes do
remanejamento), nas casas dos sonhos (retratadas por desenhos e falas dos morado-
res - antes do remanejamento) e estão sendo resgatadas nas casas da produção for-
mal (casa do Projeto Taboquinha – após o remanejamento) através das modificações
realizadas e planejadas pelos moradores, o que permite apontá-las como categorias
relevantes para auxiliar o projetista como ponto de partida na concepção da habitação
social na Amazônia.
A sistematização de categorias topológicas mostra-se como um mecanismo
profícuo para instrumentalização do projeto de arquitetura e abre caminhos para in-
corporação de temas não tradicionais ao projeto, conforme Del Rio (1998). A dis-
cussão de temas relacionados à vida humana vem demonstrando a importância das
referências espaciais no escopo do projeto, ou seja, a complementação de dados da
vivência espacial permite um aprofundamento da relação entre usuário e lugar, sus-
citando a formação de repertório com mais aspectos significativos, sendo incluídos
no tradicional percurso de projeto com a representação geométrica do espaço arqui-
tetônico e seus temas trabalhados nos aspectos formais e funcionais. Os repertórios

60
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

passam a não serem mais referências exclusivamente geométricas, e sim soluções


projetuais adotadas como forma de resgate da espacialidade do local.
Desta maneira, as categorias topológica, sistematizadas por Menezes (2015)
e Paixão (2019) sintetizam um conhecimento sobre um modo de vida peculiar da
região amazônica, o habitat ribeirinho, o qual ainda é pouco discutido na escala do
edifício, e tem apresentado importantes contribuições para o desenvolvimento de
projetos de arquitetura de estudantes na fase de trabalhos de conclusão de curso que
tem como demanda esta realidade, abrindo caminhos para a incorporação de condi-
cionantes projetuais ligados ao saber informal na prática profissional. A seguir serão
apresentados dois projetos desenvolvidos à época por estudantes do curso de arqui-
tetura com orientação da professora Dra. Ana Klaudia Perdigão, que adotaram essas
categorias como norteadoras da concepção arquitetônica.

PARTE II – O PROJETO DE ARQUITETURA VISTO


ATRAVÉS DE TEMAS NÃO TRADICIONAIS

Análise, Síntese e Avaliação representam as sequências fundamentais nas de-


cisões de projeto (ASIMOW apud BROADBENT, 1976, p. 247). A Análise de temas
tradicionais e não tradicionais trata-se de uma fase na qual o arquiteto define os cri-
térios adotados como ponto de partida do projeto. Já na fase de Síntese, ele organiza
as ideias e reúne os temas tradicionais (condicionantes de projeto) e não tradicionais
(qualidades topológicas) para concepção do partido arquitetônico, como consequên-
cia de decisões parciais, cuja espacialidade resultante de um conjunto de decisões,
ainda que preliminar, contém a essência da proposta. Por fim, na fase de Avaliação,
o arquiteto pondera se a solução adotada respondeu ao problema de projeto, o que
consequentemente será satisfatório se os objetivos alcançarem demandas espaciais
mais imediatas e também existenciais da vida humana.
Seguindo a lógica projetual que ultrapassa os aspectos geométricos, Felisbino
(2018) e Oliveira (2019) adotaram qualidades topológicas como ponto de partida da
concepção arquitetônica para atender à realidade amazônica, envolvendo análise, sín-
tese e resultados de avaliação em pesquisas realizadas em áreas de remanejamento/
reassentamento habitacionais. Na etapa de Análise as categorias contribuíram para a
decisão de projetar a partir do lugar e das relações espaciais predominantes na reali-
dade local. A motivação para a concepção arquitetônica provém de um pensamento
projetual pautado nas pesquisas realizadas no LEDH, defendidas no PPGAU-UFPA.
Na etapa de Síntese, as categorias integram-se a temas não tradicionais complemen-
tando aos condicionantes tradicionais de projeto de arquitetura. Por isso as relações

61
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

espaciais como a proximidade ao ambiente natural circundante, integração espacial


pela continuidade e sucessão aos espaços externos, a partir de elementos de transi-
ção na da edificação, tornaram-se também evidentes como norteadores do partido
arquitetônico. Já na etapa de Avaliação, observou-se que as categorias respondem às
necessidades expressas pelos usuários em pesquisas realizadas pela equipe do LEDH
em Áreas de Assentamentos Precários, evidenciando que esse instrumento de con-
cepção atende à dimensão humana do projeto de arquitetura, o que foi facilitado pela
contribuição das pesquisas em projeto para a teoria de produção arquitetônica, com
um conhecimento operativo que subsidia a prática projetual.
Nota-se que as categorias de natureza topológica trazem correspondência di-
reta com elementos geométricos, assim ajuda a compreensão da integração de tais
representações espaciais, conforme Perdigão (2009). Os trabalhos de conclusão de
curso (TCC’s) de Felisbino (2018) e Oliveira (2019) manifestam em sua ação proje-
tual a linha de pensamento desenvolvida no LEDH-UFPA, evidenciando que esses
trabalhos cada vez mais demonstram um processo de projeto explícito, com uma
metodologia que organiza o raciocínio projetual e a tomada de decisões passa a ser
pautada não só em aspectos geométricos, mas também em qualidades espaciais de
natureza topológica. Os Quadros 1 e 2 apresentam a proposta arquitetônica de Felis-
bino (2018) e de Oliveira (2019).
Quadro 1 – Unidade Básica de Saúde no Furo do Nazário (Barcarena-PA).
UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE – FURO DO NAZÁRIO (BARCARENA-PA) – FELIS-
BINO (2018)
• Contexto de Projeto
O Trabalho de Conclusão de Curso de Felisbino (2018), intitulado ‘Projeto Arquitetô-
nico para Unidade Básica de Saúde pelo tipo palafita (Barcarena-PA): experimento com o lugar
amazônico’ apresenta uma proposta projetual para a UBS localizada no Furo do Nazário (Barca-
rena, Pará), tendo como premissa respeitar o lugar em que foi inserida e a cultura da comunidade
circundante, o habitat ribeirinho. O trabalho é parte integrante de um projeto de extensão do
LEDH-UFPA em parceria com os profissionais da área da saúde da atual UBS Furo do Nazário,
o qual visa uma discussão mais abrangente sobre tipologias ribeirinhas para a arquitetura institu-
cional de saúde ao sustentar a possibilidade de inserir o conhecimento popular ao conhecimento
profissional na concepção arquitetônica de projetos ofertados pelo poder público e com isso
atender a peculiaridade regional que é o tráfego principalmente pelos rios.
A concepção arquitetônica partiu da análise do tipo palafita amazônico (MENEZES,
2015) na intenção de integrar a arquitetura ao lugar. Logo, as soluções tiveram como base o
conhecimento do entorno, do modo de vida dos moradores ribeirinhos próximos à unidade e da
relação com o rio e o ambiente natural. Os parâmetros de permeabilidade e lugar foram adotados

62
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

no processo de concepção para atender as categorias de continuidade, sucessão e proximidade,


sendo a continuidade pensada a partir da distribuição dos blocos conectados à estiva, a sucessão
ocorre desde o trapiche de acesso como um elemento de transição, e pelo uso das varandas em
todos os blocos da Unidade e, a proximidade é resultado da conservação da vegetação no entor-
no, assim como com a piscina natural com aproveitamento da água do rio.
Para a formação de repertório, adotou-se a análise da configuração espacial, acessibili-
dade e circulação, conforme Reis (2002), selecionando-se exemplares na produção arquitetônica
regional e internacional como meio para viabilidade construtiva de baixo impacto e integração
à paisagem local. Do repertório regional buscou-se o uso de materiais locais como madeira,
circulação integrada ao ambiente natural, cobertura que favorecesse a ventilação natural, beirais
para sombreamento e proteção contra radiação solar e chuvas, esquadrias de madeira, janelas de
abrir para permitir visibilidade do ambiente externo, piso elevado do solo, uso de painéis de ve-
nezianas como recurso para renovação do ar e amenização da temperatura nas obras de arquitetos
como Milton Monte, Roberto Moita, Severiano Porto e João Castro Filho e do repertório inter-
nacional buscou-se referências de projetos do arquiteto Renzo Piano, o qual procura desenvolver
em seus trabalhos o conceito de arquitetura e lugar.
A síntese entre as referências tradicionais e não tradicionais ao projeto culminaram em
quatro propostas de partido arquitetônico. A solução escolhida oferece uma proposta de perme-
abilidade através do desenvolvimento volumétrico e construtivo simples e de fácil apreensão,
mais próximo da realidade do usuário ribeirinho com um partido arquitetônico que define a
distribuição dos ambientes de cada setor em blocos distintos, interligados por uma estiva prin-
cipal e uma secundária que se conectam a cada bloco de forma orgânica, respeitando a melhor
distribuição no que tange aos aspectos referentes ao terreno e ao entorno, preservando parte da
vegetação natural (FELISBINO E PERDIGÃO, 2019).

Fonte: Felisbino, 2018.

63
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Quadro 2 – Centro Comunitário Multiuso na Vila da Barca (Belém-PA)


CENTRO COMUNITÁRIO MULTIUSO NA VILA DA BARCA (BELÉM-PA) – OLIVEI-
RA (2019)
• Contexto de Projeto
O Trabalho de Conclusão de Curso de Oliveira (2019) apresenta a proposta de um Cen-
tro Comunitário Multiuso para a Comunidade Vila da Barca (Belém, Pará), intitulado O lugar
onde habito: Projeto de um Centro Comunitário Multiuso para a Comunidade Vila da Barca (Be-
lém, Pará), cujo processo de desenvolvimento projetual foi focado na incorporação de elementos
ligados à cultura de morar ribeirinha presente na comunidade, afim de atender a uma demanda
existente: a construção de um equipamento comunitário que seja de uso coletivo e que possa
fortalecer a identidade local não apenas no seu uso, mas também através da identificação espacial
entre o usuário e o lugar.
A Comunidade Vila da Barca foi historicamente ocupada por populações ribeirinhas
vindas do interior da Amazônia durante o século XX e que nesse espaço reproduziram sua forma
de morar em palafitas já que, mesmo estando localizada no centro de Belém (PA), a área pos-
sui característica topográfica de solos alagáveis que são acessíveis tanto por terra como por rio
(Baía do Guajará), e que permitem esse tipo de ocupação sobre as águas. Apesar da construção
do Projeto Vila da Barca em blocos de sobrados em alvenaria estrutural para reassentamento
das famílias da área, que data desde 2006 e ainda não foi concluída, a busca pelo entendimento
do habitat ribeirinho mostrou-se importante no processo de concepção arquitetônica do Centro
Comunitário como base de apoio para orientação e identificação da comunidade com o espaço,
visto o forte laço ainda existente com esse modo de vida.
• Concepção Arquitetônica
O processo projetual foi concebido a partir da construção do conceito arquitetônico, que
incorpora o tipo palafita amazônico (MENEZES, 2015) através análise de elementos físico-es-
paciais das referências de arquitetura na Amazônia selecionadas e as relacionadas com categorias
de análise de natureza topológicas de proximidade, continuidade e sucessão (NORBERG-S-
CHULZ,1971), chegando na síntese dos processos que podem ser adotadas no projeto do Centro
Comunitário Multiuso. Já a formação do repertório arquitetônico se deu através da análise dos
elementos ligados à decomposição espacial dos edifícios escolhidos como referência, utilizan-
do-se categorias de analise geométricas apresentadas por Reis (2002) como massa/volumetria,
forma construída, detalhes relevantes, configuração espacial, circulação e acessibilidade. Além
dessas análises, foram realizadas oficinas com os moradores da Comunidade Vila da Barca para
entender as necessidades.
A síntese das referências e decisões projetuais obtidas a partir das análises de repertório
e conceito arquitetônico, juntamente com os estudos preliminares e estudo do contexto projetual,
levaram à proposta de três partidos arquitetônicos que resultam das várias retomadas de relação
entre as decisões projetuais e a seleção de certo número de alternativas formais. O partido ar-

64
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

quitetônico final propõe a configuração de continuidade entre dois blocos que se ligam por uma
grande varanda. Os blocos são apresentados em níveis diferentes do solo e se convergem por
uma circulação linear entre os setores, conectados com o ambiente externo através da relação de
sucessão proposta pelas varandas de cada setor, até chegar à grande varanda onde é feita a união
dos dois blocos.

Fonte: Oliveira, 2019

Ao incorporar as qualidades espaciais decorrentes de categorias topológicas


sistematizadas como fundamentos à concepção e desenvolvimento do projeto de ar-
quitetura, Felisbino (2018) e Oliveira (2019) evidenciam que a solução arquitetônica
é manifestada a partir dessas qualidades topológicas, como pontos de partida da con-
cepção arquitetônica. O Quadro 3 apresenta uma síntese das pesquisas da pós-gradu-
ação desenvolvidas por Menezes (2015) e Paixão (2019) relacionadas aos TCC’s de
Felisbino (2018) e de Oliveira (2019), evidenciando a integração de conhecimento
desenvolvidos pelo LEDH-UFPA entre a pós-graduação e a graduação em Arquitetu-
ra e Urbanismo na Universidade Federal do Pará.

65
Quadro 3 – Síntese dos resultados.

CATEGORIAS CARACTERÍSTICAS QUALIDADES ESPACIAIS PROJETOS

RELAÇÃO DE
PROXIMIDADE Proximidade com
E DISTÂNCIA massas d’água e floresta
(perto).
Centros e Lugares

NORBERG-
SHULZ, 1971 Localização do banheiro
(longe do setor íntimo e
social, ou fora da casa). UBS FURO DO NAZÁRIO
(BARCARENA-PA) – FELISBINO 2018
Amplidão BARROS
et. Al., 2005 Formato retangular,
dimensão dos cômodos,
número de aberturas
(janelas) para entrada da

66
Espaço Pessoal luz natural.
FROM SOMMER
E IACHINI, 2017

Gradiente de
Intimidade
ALEXANDER,
1977 Configuração linear da
casa que permite
privacidade entre os
cômodos
Casa Longa
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

e Estreita

ALEXANDER,
1977

RELAÇÃO DE (1) Sistema mata-rio-


CONTINUIDADE roça-quintal
(LOUREIRO, 2001). CENTRO COMUNITÁRIO
MULTIUSO – VILA DA BARCA
(BELÉM-PA) – OLIVEIRA 2019
Direções e
caminhos
Circulação (condiciona
e Estreita

ALEXANDER,
1977

RELAÇÃO DE (1) Sistema mata-rio-


CONTINUIDADE roça-quintal
(LOUREIRO, 2001). CENTRO COMUNITÁRIO
MULTIUSO – VILA DA BARCA
(BELÉM-PA) – OLIVEIRA 2019
Direções e
caminhos
NORBERG- Circulação (condiciona
SHULZ, 1971 direções internas).

RELAÇÃO DE Espaços de transição:


SUCESSÃO e avarandados, jiraus e
ESPAÇO DE estivas (intervalo entre
TRANSIÇÃO o interior e o exterior).
SUAVE

Limites

NORBERG-
SHULZ, 1971

67
Espaço de
Transição
(ALEXANDER, Varandas cobertas e
1977); pequeno comércio na
fachada da casa.

Ambiente de
entrada
(ALEXANDER,
1977);

Varandas e Galerias
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

(ALEXANDER,
1977).

Fonte: Menezes, 2015; Paixão, 2019; Felisbino, 2018 e Oliveira, 2019.


CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O campo da Arquitetura e Urbanismo mostra-se ainda bastante desafiador na


diminuição de dualidades inerentes ao fazer arquitetônico e, consequentemente, ao
conhecimento que subsidia a prática. O Laboratório Espaço e Desenvolvimento Hu-
mano vem há 13 anos construindo com estratégias de superação de lacunas enfren-
tados no dia a dia do ensino e da pesquisa, entre teoria e prática e entre criatividade
e método.
Por meio da busca de aproximações sucessivas, desde a criação do PPGAU-
-UFPA, com a realização da produção de conhecimento pelo interior da prática, os
resultados dos trabalhos têm buscado integrar mais os conteúdos da pesquisa para
apoiar a prática. Desse modo, demonstra-se que a problemática de um ensino cercea-
do por limites desnecessários sobre a criação arquitetônica motiva sim a produção de
conhecimento que ultrapasse paradigmas estabelecidos e que impedem a expansão
do pensamento na concepção arquitetônica na escala do edifício.
Constata-se, com isso, que já superamos o método de tentativas e erros e a
adoção eminentemente geométrica do partido arquitetônico. O uso de qualidades
espaciais mostra-se como um caminho virtuoso com a complementação de categorias
topológicas à tradicional representação geométrica do espaço no pensamento
projetual.
Demonstrou-se a prática de uma articulação entre a graduação e a pós-gradua-
ção que fortalece cada vez mais a importância da ciência para o campo da arquitetura
quando a produção de conhecimento científico preenche lacunas tanto de natureza
operativa quanto de interesse para um vocabulário arquitetônico local, por meio da
pesquisa em projeto.
Os resultados das pesquisas e os resultados dos trabalhos de graduação, juntos,
deixam transparecer as repercussões diretas de um pensamento mais reflexivo e hu-
manizado na prática arquitetônica, decorrentes de um quadro teórico-metodológico
ampliado e com um processo de projeto envolvendo complexidade e expansão do
pensamento projetual devido ao pensamento científico associado. A complexidade e
expansão do pensamento projetual é um dos pilares do Laboratório Espaço e Desen-
volvimento Humano, o que nos provoca a um desafio ainda maior na medida em que
se trata da contribuição teórica para a produção arquitetônica envolvendo a cultura
ribeirinha da Amazônia.

68
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

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70
PESQUISA E PROJETO DE ARQUITETURA: QUALIDADES ESPACIAIS EM FOCO

REIS, A. T. Repertório, análise e síntese: uma introdução ao projeto arquitetônico.


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71
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES –
MARAJÓ: olhares nativos e perspectivas arqueológicas

Renata de Godoy1
Cybelle Salvador Miranda2
Ana Laura Pereira de Melo Dias3

1. INTRODUÇÃO

Em seu ensaio “As ruínas na cinética do tempo”, o historiador Eidorfe Moreira


atenta para o papel das ruínas enquanto materialização do passado no presente, “uma
vez que elas são formas concretas, imagens reais da sua presença. Elas atestam-no,
configuram-no, individualizam-no, ainda que precariamente” (1979, p. 91). O estado
precário aporta às ruínas um aspecto de desequilíbrio, de perda de certos valores plás-
ticos, embora sejam presentes seus valores simbólicos, relacionados à religiosidade,
ou a lendas e outras vivências. Completa afirmando que as ruínas só morrem quando
desaparecem da paisagem.
Enquanto cultura material, para arqueologia, ruínas podem apresentar duas
características intrínsecas: escala monumental e serem facilmente reconhecíveis pelo
público (Figura 1), o que não significa um benefício propriamente dito quando tra-
tamos de sítios recentes que representam memórias ainda vivas de uma coletividade
(GODOY, 2014). Ser reconhecido suscita explicações próximas, igualmente aces-
síveis para o grande público. Tais vínculos, que não necessariamente precisam ser
baseados em evidências científicas, influenciam processos de interpretação e apro-
priação, mas também de manipulação que incluem usos políticos e econômicos.

1
Arquiteta e Urbanista e Mestre em Gestão do Patrimônio Cultural (PUC-GO), PhD em Antropologia
(Universidade da Flórida), Professora Adjunta UFPA, Faculdade de Ciências Sociais, PPGA e PPGAU.
E-mail: godoy@ufpa.br.
2
Arquiteta e Urbanista, Doutora em Antropologia, Pós-doutoramento em História da Arte (Universidade
de Lisboa), Professora Associada FAU/PPGAU/UFPA, Coordenadora do Laboratório de Memória e Pa-
trimônio Cultural (LAMEMO). E-mail: cybelle1974@hotmail.com.
3
Arquiteta e Urbanista, Mestre em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/UFPA, email: analaura.melo@
hotmail.com.

73
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 1 - Vista do antigo campanário arruinado, em julho de 2015

Fonte: Renata de Godoy, 2015.

Este é certamente o caso das ruínas de Joanes, tão decantadas como marco co-
lonial amazônico, porém tão suscetíveis ao desaparecimento que, embora seja parte
do destino de todas as coisas relacionadas ao devir humano, representaria uma lacuna
na história da povoação marajoara, e um vazio na paisagem das margens da baía do
Marajó. Este capítulo busca abordar, via etnografia, a maneira como estes vestígios
são entendidos no presente, pelos nativos da vila ou seus visitantes.
O capítulo apresenta duas pesquisas etnográficas que visavam compreender
Joanes enquanto patrimônio cultural na contemporaneidade. Ana Laura, sob orienta-

74
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS

ção de Cybelle Miranda, realizou etnografia sondando a visão dos moradores sobre
os vestígios da antiga missão. Renata de Godoy utilizou estratégias etnográficas
para acessar os impactos do uso turístico do sítio arqueológico que existe associado
às ruínas em Joanes. Com abordagens diferenciadas, as pesquisas a seguir mostram
como o patrimônio arquitetônico e arqueológico de Joanes, município de Salvaterra
no Marajó/PA é vivido, compreendido e utilizado por atores, sejam moradores sejam
visitantes, na atualidade, enquanto uma memória viva.

2. ETNOGRAFIA EM JOANES

A fim de alcançar a compreensão do significado atribuído às ruínas de pedra de


Joanes, adotou-se a etnografia como método em que teoria e prática não se dissociam,
e as observações em campo são postas em diálogo com dados coletados em bibliogra-
fia, documentos, e nas conversas empreendidas com os nativos (URIARTE, 2012).
O método etnográfico é um método específico da pesquisa antropológica, con-
siste em uma imersão em campo, pautada no convívio direto com o objeto de estudo,
onde acontece o exercício do olhar, do observar atentamente os detalhes, onde se
adentra em uma outra cultura e tenta-se compreender essa realidade. Segundo Rocha
e Eckert (2001), a etnografia consiste em descrever práticas e saberes de sujeitos e
grupos sociais a partir de técnicas como observações e conversações desenvolvidas
no contexto de uma pesquisa.
O trabalho de campo empreendido na dissertação de Dias (2018) foi o cerne da
coleta de dados e também de sua leitura e análise. A relação de confiança estabelecida
entre investigadora e entrevistados não ocorreu de maneira imediata, como a pes-
quisadora havia imaginado que seria em razão de sua familiaridade com os nativos.
Ao contrário, ao assumir o papel de pesquisadora, a aceitação foi obtida apenas de
modo parcial e com reserva por parte dos entrevistados; especialmente quando foram
mencionadas as atividades do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN) no trato das ruínas, sendo esta imediatamente associada às antigas desaven-
ças entre arqueólogos e membros da comunidade local.
A reconquista da confiança ocorreu então, paulatinamente, ao longo das imer-
sões feitas em campo, quando foi esclarecido o cunho acadêmico da pesquisa, e es-
timulados os relatos acerca dos sentimentos dos nativos sobre as ruínas, bem como
a relação da igreja com o seu cotidiano4. As entrevistas foram feitas com pessoas

4
As incursões foram realizadas em julho de 2017 e novembro do mesmo ano, durante as férias de verão
e no Círio de N. Srª do Rosário.

75
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

da faixa etária de 28 a 80 anos, sendo acompanhadas da assinatura de um Termo de


Consentimento Livre e Esclarecido personalizado para a pesquisa, permitindo com
que os diálogos gravados pudessem ser transcritos e ou relatados em sua totalidade.
Abaixo descrevemos os sujeitos entrevistados.
Quadro 1 - Sujeitos da pesquisa
CATEGORIAS ENTREVISTADOS
João Gaúcho,
Pessoas Marineide, viúva
proprietário de
que não de um filho de
mercadinho há
nasceram em Joanes, trabalha
FORASTEIROS 20 anos, atuante
Joanes, mas com alimentação
nas questões de
a escolheram e integra a
infraestrutura da
para viver. AERAJ1
vila.
Marly, filha
Eduardo, morador de pescador,
Pessoas que do entorno das Edvaldo, vende lanches
FILHOS DE nasceram e ruínas e integrante vulgo pelado, em sua casa,
JOANES permanecem da diretoria da proprietário de integrante da
em Joanes. Igreja de N. Srª do uma mercearia diretoria da
Rosário Igreja de N. Srª
do Rosário.
Pessoas que Mercedes,
Maria, frequenta a
TURISTAS visitam Joanes frequenta a vila
vila desde 1979
anualmente. desde 1976
1
Associação de artesãos da Vila de Joanes, dedicam-se à produção de cerâmica marajoara.

Fonte: Dias, 2018.

A percepção dos nativos funda-se no seu pertencimento ao local, e demons-


tra as dificuldades profundas de subsistência que acometem a vila, tornando seus
moradores ‘reféns’ dos pequenos poderes representados pelos vereadores e prefeito
de Salvaterra. O valor afetivo das ruínas foi construído a partir da vivência do seu
entorno, o sítio arqueológico, que para eles é o local do caminhar e das festividades
associadas à igreja de N. Sr.ª do Rosário. Quanto aos forasteiros, trazem consigo vi-
sões de mundo ampliadas, que divergem do entendimento dos nativos, e são objeto de
desconfiança por parte destes, uma vez que representam concorrência no atendimento
aos turistas que frequentam a vila. Quanto aos turistas, possuem visão idílica do sítio,
na qual as ruínas emergem como referência na paisagem.

76
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS

A imersão em campo permitiu interpretar os conflitos latentes entre os téc-


nicos do patrimônio (IPHAN) e a comunidade local, a qual sentiu-se desrespeitada
na tomada de decisão quanto a proteção do sítio arqueológico, durante as pesquisas
empreendidas em 2006. A relação dos moradores da Vila com o referido patrimônio
é muito ligada ao sentimento de memória que é alimentado individualmente por eles.
O entendimento mítico de que aquelas seriam ruínas jesuítas persiste no imaginário
popular, a despeito de terem sido desconstruídas por conta de pesquisa documental,
que as definiu como vestígios de igreja franciscana.
O sentido de memória coletiva e memória individual foi utilizado como parâ-
metro para a compreensão dos relatos recolhidos. Almeida e Bogéa (2009), afirmam
que “os ambientes construídos pelos homens guardam através de sua materialidade,
a memória das ideias, das práticas sociais e dos sistemas de representação dos indi-
víduos que ali convivem”.
Segundo Márcia Bezerra,

As ruínas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário são uma referência local,


utilizadas pelas artesãs da AERAJ como imagem representativa da Vila.
As ruínas são pintadas em cuias, tecidos, vasos, camisetas, assim como
as cenas cotidianas, os búfalos, as danças e as paisagens locais. [...]. Na
perspectiva das artesãs da AERAJ, a escolha das ruínas como símbolo da
Associação é motivo de orgulho. Segundo elas, a razão para tal escolha é
o anseio de que Joanes tenha sua identidade separada, distinta, “recortada”
de Salvaterra, que tem como ícone o abacaxi, em razão de sua grande pro-
dução da fruta. No discurso das artesãs e de outros moradores, as ruínas são
(ou têm que ser) o símbolo da Vila, já que Joanes é chamada de “Vila das
ruínas”. Para a diretora da escola, a inclusão de sua imagem no uniforme
escolar justifica-se porque: “Em Salvaterra é o abacaxi, aqui então são as
ruínas!” (BEZERRA, 2014b, p. 434 - 435).

Contudo, a percepção das ruínas enquanto patrimônio, sob a visão dos mora-
dores, oscila entre a vivência desses vestígios e até sua apropriação para a edificação
de outras construções. Além da escalada nas ruínas, a retirada de pedras das mesmas
é uma prática frequente entre os moradores e visitantes do local, ocorre também a
retirada das pedras que ficam abaixo do barranco, na praia; essas pedras são utilizadas
para o alicerce das casas que são construídas na Vila até os dias de hoje. Tal prática é
danosa, com risco iminente de erosão do barranco que suporta as ruínas, que pode vir
a redundar na perda definitiva destes vestígios arquitetônicos.

77
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

3. JOANES, O SÍTIO ARQUEOLÓGICO

Enquanto sítio arqueológico, as ruínas fazem parte de um monumento regis-


trado enquanto multicomponencial, ou seja, com ocupações distintas que no caso são
pré-colonial (indígena) e colonial, com a sigla PA-JO-46. As ruínas que hoje ainda
existem são de uma missão religiosa do século XVII, sendo que as pesquisas arque-
ológicas e históricas indicam que são vestígios deixados por outras ordens religiosas
como Franciscana ou Mercedária. O sítio foi objeto de intervenções arqueológicas
de diversas naturezas desde a década de 1980 até os dias atuais (BEZERRA, 2014a,
SCHAAN; MARQUES, 2011), o que é incomum tratando-se de sítios arqueológi-
cos coloniais na Amazônia.
Pesquisas acadêmicas também foram empreendidas em Joanes, em especial
aquelas conduzidas e/ou orientadas por Márcia Bezerra (BEZERRA, 2011; BEZER-
RA, 2014a; FERREIRA, 2012). São pesquisas que demonstram como moradores
constroem vínculos com a cultura material deste sítio, ao coletar e guardar peças
enquanto relíquias particulares, mas que no fundo servem de proteção para a co-
letividade através da memória que tais peças carregam. Um projeto de Educação
Patrimonial (Figuras 2 e 3), aliado à musealização do sítio, chegou a ser implantado,
o que demonstra uma interação não corriqueira entre pesquisa acadêmica e coletivos
locais (FERREIRA, 2012).
Figura 2 – Placa de antigo projeto de Educação Patrimonial, em dezembro de 2013

Fonte: Renata de Godoy, 2013

78
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS

Figura 3 - Placa de antigo projeto de Educação Patrimonial, em 2016

Fonte: Renata de Godoy, 2016

Com objetivo de avaliar impactos em sítios arqueológicos amazônicos com


uso turístico, Joanes foi objeto de outra pesquisa etnográfica que durou quatro anos,
entre 2013 e 2016, durante duas vigências de pós-doutorado vinculado ao programa
de Pós-graduação em Antropologia (PPGA/UFPA), sob supervisão de Denise Schaan
(GODOY, 2014; GODOY, 2016)5.
Utilizando a estratégia de etnografia rápida, considerando os Procedimentos
de Investigação Etnográfica Rápida (ou Rapid Ethnographic Assessment Procedures-
-REAP), neste caso, a coleta de dados focou em observação, observação participante,
e em entrevistas individuais semiestruturadas, que ocorreram em momentos diversos
entre setembro de 2013 e abril de 2014. Trata-se da utilização de diversos métodos
de coleta de dados e posterior triangulação dos mesmos visando um resultado amplo
e satisfatório acerca daquele problema de pesquisa. Esta metodologia já era aplicada
em estudos etnográficos rurais nos Estados Unidos desde a década de 1970, e vem
sendo aplicada em estudos antropológicos em parques e praças na América do Norte
com bons resultados (LOW ET AL., 2005). É um método que permite uma coleta de
dados rápida e confiável em diferentes fontes, tornando a pesquisa menos tendencio-
sa e mais abrangente. Nesta situação apenas arqueólogos foram entrevistados, visto

5
Os financiamentos foram obtidos através de bolsa de pós-doutorado Júnior (PDJ) do CNPq, e Estágio
Pós-doutoral da Capes.

79
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

que a pesquisa objetivava analisar o fenômeno do turismo arqueológico no contexto


da arqueologia contemporânea.
Foram selecionadas três metodologias: a pesquisa bibliográfica específica so-
bre o estudo de caso; observação e observação participante a fim de elaborar um ma-
peamento comportamental de uso do espaço e registrar o perfil do público (visitante,
residente, trabalhadores, entre outros); e entrevistas individuais com especialistas, no
caso com três arqueólogos que coordenaram pesquisas no sítio de Joanes6. A entre-
vistas aplicadas foram do tipo semiestruturadas, nas quais o pesquisador se baseia em
um guia de questões e não em questionários e perguntas fixas (BERNARD, 2002).
Para garantir a idoneidade e a uniformidade entre entrevistas, um guia foi formulado
previamente contendo perguntas básicas a serem feitas para todos os entrevistados.
A opção por utilizar também a Observação Participante foi em decorrência do tempo
e recursos reduzidos disponíveis, e para aperfeiçoar a coleta de dados. Trata-se de
uma metodologia bastante utilizada em antropologia e “inclui explicitamente o uso
de análise de comportamento e o registro das informações através da observação e
da participação” em determinada situação ou evento (DEWALT ET AL,. 1998:259).
Priorizou-se uma forma de coleta de dados mais rápida, que não causasse nenhum
tipo de impacto em campo.
Com financiamento direto para campo do CNPq foi possível realizar quatro
etapas de coleta de dados em campo, entre 2013 e 2014. No período financiado pela
Capes apenas uma etapa foi realizada, em 2015. A primeira etapa de campo ocorreu
em setembro de 2013 apenas para reconhecimento; depois novamente em outubro,
durante uma festividade local e no início de dezembro do mesmo ano. Uma variação
de período foi fundamental para compreender a dinâmica de uso turístico deste sítio,
tendo abrangido uma festividade religiosa local (Círio de Nossa Senhora do Rosário,
2013); um inverno amazônico em período de baixa (final de semana de dezembro)
e alta movimentação turística na virada do ano em 2014; e no verão amazônico em
julho de 2015. As entrevistas ocorreram em 2014; a pesquisa foi encerrada em 2016.
A observação participante na área do sítio arqueológico em Joanes apenas re-
forçou o baixo número de visitantes, tendo em todas as ocasiões registrado visitas
isoladas e rápidas, nas quais as pessoas circulam pelo entorno das ruínas da igreja e
tiram fotos. A placa que deveria conter informações sobre o sítio sofre constante mo-

6
Anos antes, houve um evento negativo envolvendo grupos de motivação política em disputa na localida-
de. Assim, decidiu-se entrevistar apenas os arqueólogos e não abordar o público local. Não haveria tempo
suficiente em campo para uma interação adequada com a comunidade, e foi escolha da pesquisadora
utilizar uma metodologia menos invasiva.

80
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS

dificação, ora recebendo novas informações sobre o bem cultural ora servindo como
publicidade para a festividade do Círio.
Sobre as entrevistas semiestruturadas individuais com arqueólogos que co-
ordenaram pesquisas no estudo de caso escolhido, elas foram subdivididas por três
assuntos a serem perguntados, sendo eles: 1) o primeiro contato de cada um com o
sítio PA-JO-46; 2) como foi a experiência de cada um com a comunidade local en-
quanto conduziram suas pesquisas; e 3) a opinião de cada um em relação ao turismo
arqueológico presente e potencial para este sítio. Todas as entrevistas foram grava-
das com consentimento do entrevistado7. Os três arqueólogos relataram situações
diversas envolvendo seu primeiro contato com o sítio, sendo que Fernando Marques
conduziu pesquisas ali desde a década de 1980, e Márcia Bezerra de Almeida ainda
tinha um projeto em andamento em Joanes na ocasião. Denise Schaan foi a primeira
a relatar sobre o incidente que ocorreu em virtude da interferência do IPHAN no sítio
em meados dos anos 2000, e da existência de indivíduos que se sentiram ameaça-
dos politicamente com tais intervenções. Todos eles relataram questões institucionais
atrapalhando o diálogo deles com a comunidade local, e a animosidade dos nativos
com os demais que migraram para o distrito, fato também identificado nas visitas
a campo. Denise relatou sobre uma iniciativa importante de instituições ligadas ao
turismo numa tentativa de estabelecer uma parceria com os pesquisadores, mas que
a demanda imediata por ações por parte destes órgãos entrou em descompasso com o
tempo da pesquisa científica. Fernando fez relatos similares, mas ressaltou o fato das
ruínas estarem popularmente ligadas à ordem dos Jesuítas, informação que mesmo
contestada pela pesquisa permeia o imaginário local.
Márcia, talvez porque o viés de sua pesquisa é especialmente de diálogo com
públicos locais e pelo fato dela ainda estar em andamento, apresentou uma perspec-
tiva mais otimista em relação aos efeitos positivos do turismo na comunidade local,
especialmente pelo crescimento da participação comercial da Associação Educativa
Rural e Artesanal da Vila de Joanes (AERAJ).
Nas observações feitas em campo foi possível, sim, notar certo receio dos
moradores antigos em relação aos que vieram depois, impulsionados justamente pelo
desenvolvimento turístico, como donos de pequenos comércios e donos de pousadas.

7
Os três entrevistados foram arqueólogos que conduziram pesquisas importantes no sítio nas últimas dé-
cadas: Drª Denise P. Schaan em seu gabinete, na coordenação do PPGA/UFPA em 02/12/2013 em Belém/
PA; Drª Márcia Bezerra de Almeida em sua residência em Brasília/DF, em 18/03/2014; e Dr. Fernando
Luiz Tavares Marques em seu gabinete no Museu Paraense Emílio Goeldi em 14/04/2014, em Belém/PA.
A duração média de cada entrevista foi de 50 minutos.

81
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Tal constatação também foi encontrada na fala dos entrevistados, em momentos e em


formatos diferentes, mas bem ou mal denotando a mesma resistência das populações que
se identificam como tradicionais ou filhos de Joanes versus os que vieram depois, com
outros objetivos e com mais ferramentas para se inserir no mercado gerado pelos turistas.
Em relação ao patrimônio arqueológico, no caso representado especialmente
pelas ruínas da antiga igreja, o registro de turistas, apesar de baixo em número de
visitantes e em tempo de visitação, também identificou uma forma de vandalismo
indireto ao presenciar pessoas subindo nas ruínas. A falta de controle e de informação
prejudicam a preservação dos bens materiais e, neste caso, o impacto foi claramente
identificado (Figuras 4 e 5).
Figura 4: Turistas e as ruínas em 2013; Figura 5: grupo de turistas em visita guiada, 2015

82
RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS

Fonte: Renata de Godoy, 2013;2015.

4. A APROPRIAÇÃO DA PAISAGEM MISSIONEIRA: MUITAS


ESTÓRIAS, UM LUGAR

O sítio arqueológico de Joanes está no único espaço público de configuração


urbana de convivência da comunidade. Ali também estão os principais equipamentos
locais como a igreja católica, a escola pública, além de instalações de lazer típicas de
uma praça como bancos e brinquedos. As ruínas fazem parte do cotidiano dos mora-
dores, e sua imponência na paisagem não passa despercebida.
A proposta de implantação de turismo arqueológico costuma ser bem vista por
pessoas das comunidades que entendem os benefícios econômicos que podem ser
gerados por tal atividade. No entanto, muitos não veem com bons olhos a inserção de
visitantes no seu dia-a-dia e um exemplo dessa variação de opinião pública já havia
sido notado na Vila de Joanes. Enquanto pequenos comerciantes e proprietários de
pousadas se mostravam a favor do turismo, visto que eles certamente se beneficia-
riam desta iniciativa, outros eram indiferentes ou mesmo contra o uso turístico do
sítio arqueológico (SCHAAN; MARQUES, 2012). É interessante notar que este

83
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

sítio já recebe visitantes há bastante tempo, e que a indiferença e o posicionamento


negativo do público não são, portanto, aleatórios.
Existe uma clara divisão entre os moradores que são nascidos no distrito de
Joanes, e os demais que migraram posteriormente, sendo que a maioria do segundo
grupo teve motivações comerciais e lucra mais com a presença de turistas no local.
Ao analisar o uso turístico das ruínas, ouviu-se do dono de um pequeno comércio que
sempre há ali ‘estrangeiros’ interessados nas ruínas, chamando-os de “americanos”, e
dizendo ainda que eles sempre levam fragmentos como souvenires. Já os moradores
que guardam objetos não chamam tais vestígios assim, pois são testemunhos de uma
memória que está presente em seu cotidiano, que é viva e por isso mesmo precisa ser
ressignificada, reapropriada.
Constatou-se que o sítio arqueológico é de fato uma atração secundária na
vila, pois os turistas almejam em princípio utilizar a praia, conhecida como Praia de
Joanes, e outros passeios ecológicos oferecidos tais como trilhas ecológicas guiadas
ou passeios de barco. O sítio arqueológico não possui informações adequadas para
turistas, e não existe iluminação nas ruínas, o que diminui a frequências de visitantes,
pois eles preferem outras atividades diurnas.
As ruínas não são reconhecidas como arqueológicas, durante a visita o guia
turístico em momento algum usou a palavra “arqueologia” e suas derivações para
descrevê-las. O termo missão jesuíta também foi enfatizado. O que vende em Joanes
é a estrutura da antiga missão, a paisagem onde ela está inserida, e não os dados
históricos e arqueológicos do sítio. O que importa em Joanes é o que se percebe, não
necessariamente o que é.
Patrimônio cultural tem potencial para geração de conflitos, e quando há uso
econômico envolvido o conflito se intensifica. Joanes demonstra todo este potencial
enquanto objeto de pesquisa, e apresenta idiossincrasias sociais e históricas próprias
que só podem ser compreendidas em profundidade. A pesquisa etnográfica demons-
tra que este patrimônio assume funções no presente que ultrapassam os sentidos atri-
buídos a um passado distante, tão distante que precisa ser reinventado.

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RUÍNAS COMO PATRIMÔNIO EM JOANES – MARAJÓ: OLHARES NATIVOS E PERSPECTIVAS ARQUEOLÓGICAS

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

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86
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: lugar de
arquitetura, cultura e sociabilidade na Amazônia
brasileira

Luiz de Jesus Dias da Silva1


Everton Ronniery Tavares Souza2

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem o objetivo de debater o Complexo Ver-o-Peso, em Belém do


Pará, como um lugar de cultura e sociabilidade na Amazônia, o qual, sendo também
um porto, assemelha-se a outros tantos da região, onde embarcam e desembarcam
pessoas, fazendo circular mercadorias para abastecimentos comerciais nas várias lo-
calidades ribeirinhas da região, muitas das quais tem o transporte fluvial como um
dos principais meios, às vezes até o único, de condução de passageiros e cargas.
Atenta-se ainda para a riqueza patrimonial arquitetônica, na qual o Ver-o-Peso está
assente e envolto. Sua arquitetura e espacialidade, onde diariamente milhares de pes-
soas circulam e se reúnem para promover a comercialização de mercadorias, con-
centrando o primeiro e principal centro comercial de Belém, se acercou de casarões
que exalam o ecletismo nas suas misturas de formas e estilos a marcar a época a qual
foram erguidos, imponentes, geminados e coloridos, chegando ao século XXI ainda
grandiosos e relativamente conservados, nas principais vias do entorno.
Indo além de um espaço comercial, por ser valorizado no imaginário e no afeto
dos habitantes da região, o Ver-o-Peso tem sua paisagem notavelmente relevante na
vida social da cidade. Esse espaço heterogêneo, onde se misturam “trabalho, socia-
bilidade e lazer para variados tipos de pessoas que diariamente por lá transitam”

1
Arquiteto e Urbanista (UFPA), Doutor em Antropologia Urbana (PPGSA/IFCH/UFPA), Mestrado em
Arquitetura (PROArq/UFRJ), Professor Associado da FAU/ITEC/UFPA. Diretor da FAU/ITEC/UFPA
no biênio 2019-2020.
2
Arquiteto e Urbanista, Designer, Mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Gradu-
ação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) da Universidade do Pará (UFPA) – Instituto de Tecnologia
(ITEC).

87
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

(SILVA, 2010, p. 183-187) é um espaço que, portanto, não se limita às trocas co-
merciais (LEITÃO, 2010), mas se estabelece como um verdadeiro mercado de bens
simbólicos.
O Complexo Ver-o-Peso, popularmente conhecido como feira do Ver-o-Peso
ou Mercado Ver-o-Peso, é um local multiuso na cidade, com vários destaques, dentre
os quais, nos históricos e na arquitetura secular marcante, funciona também como
porto, ponto comercial e turístico de ampla importância socioeconômica e cultural.
Essa área espacial belenense é denominada pelo Poder Público Municipal de
“Complexo Ver-o-Peso” por reunir diversos segmentos espaciais, denominados de
setores, entre feiras, dois mercados, que são o Mercado de Peixe e o Mercado de
Carne (LIMA, 2010, p. 69), a Doca das Embarcações, mais conhecida como Doca
do Ver-o-Peso, em frente à qual está a Praça do Relógio, e na sua lateral se encontra
a Pedra do Peixe; assim, estão organizados esses setores na grande feira e no meio
desses encontra-se o prédio denominado de Solar da Beira e, no limite ao norte, está
a Praça do Pescador (SILVA e RODRIGUES, 2011, p. 336), onde hoje existe um
estacionamento ao ar livre para os usuários do Complexo.
O Ver-o-Peso, espacialmente, originou-se como um porto natural, semelhante
às praias de água doce que se conhecem nos dias atuais, os quais a povoação se apro-
priou; “ficava na desembocadura do alagadiço e igarapé do Piri, que lançava suas
águas na Baía do Guajará” [...] (ARRUDA, 2003, p. 63), local onde era praticado
o embarque e desembarque de pessoas e especiarias na cidade, nos idos da segunda
década do século XVII, em plena formação do domínio colonial português sobre o
Norte do Brasil. Bastou um trapiche rusticamente erguido na ribeira, juntamente com
uma balança para tabelar os produtos desembarcados ou embarcados e, por fim, uma
população necessitada de abastecimento que pouco a pouco foi se apossando daquele
lugar, dando início ao aglomerado mercantil que resiste vigorosamente nesta segunda
década do século XXI.
Dialogando a respeito da exatidão de sua origem, Cruz (1973, p. 107), afirma
que “[...] a casa do Ver-o-Peso, onde eram pagos os impostos a que estavam sujeitos
os gêneros trazidos para a sede da Capitania, foi instituída em Belém no século XVII,
em data não precisa, sendo a renda destinada à Coroa Real”, legitimando o propósito
de sua instalação. O mesmo autor apontou “o ano de 1625 como sendo o ano no qual
a renda do Ver-o-Peso passou a ser utilizada pelo Senado da câmara local para cobrir
as despesas correntes” (CRUZ, 1973). Mas a população da cidade, usuários e Gover-
nos Estadual e Municipal, consideram a data de 27 de março de 1627 como sendo o
início ou nascimento do Ver-o-Peso. Independente de data de sua fundação, a verdade
é que “o desenvolvimento histórico produziu um espaço a partir da unidade dialética
homem-natureza” (CARLOS, 1997, p. 29), as carências sociais produziram, a princí-

88
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

pio, um porto, um local de desembarque que, em seu desenvolvimento se tornou um


núcleo comercial, o qual se expõe constantemente como um ambiente simbólico para
a cidade de Belém.
Antropologicamente, o espaço do Ver-o-Peso se estabelece como um com-
plexo conjunto de trocas entre diversas categorias de trabalhadores que interagem
diariamente nas mais variadas formas, nos diversos setores da feira. Carlos (1997,
p. 28) considera o espaço como resultado de uma relação que se concretiza de modo
formal “em algo passível de ser apreendido, entendido e aprofundado”.
Esse aporte converge para o que representa o espaço do Ver-o-Peso, um
lugar simbólico que reúne cultura e sociabilidade, como a sociedade o concebeu, o
aprofundou e o reproduz a cada dia no seu cotidiano. Este artigo o aborda desse modo,
como um lugar que reúne arquitetura de estimado valor patrimonial ao longo de sua
história, seu cotidiano, como mercado que contribui para essa ligação simbólica e
cultural de Belém, o qual alcançou um status de lugar, porque um lugar se caracteriza
por ter vida, por ser humanizado, por fazer o ser humano se sentir bem por estar
lá, demonstrando sua afetividade com o lugar e com as pessoas do lugar. O Ver-o-
Peso é assim, um lugar que vai além da sua espacialidade física complexa, por ser
imbuído do sentimento que a população lhe atribui e por refletir outros semelhantes
na Amazônia.

2. ARQUITETURA, PESSOAS E PATRIMÔNIO NO MESMO


LUGAR

Conforme Malheiros (2013) o Ver-o-Peso representa a história de Belém e as


mudanças da paisagem de seu espaço original, pois acumula relíquias arquitetônicas
de diferentes épocas, interconectadas e integradas aos novos elementos da cidade
contemporânea. Pessoas circulam dia e noite entre a riqueza arquitetônica patrimo-
nial local, onde os casarões de estilo eclético circundam o Ver-o-Peso a integrar, de
modo harmonioso, aquela paisagem.
Os casarões se mostram desde a Ladeira o Castelo, onde está a Feira do Açaí,
seguindo pela Travessa Marques de Pombal (Figura 01) onde existe um casario de
exemplar valor arquitetônico e patrimonial, a cercar parte da Doca das Embarcações
e a Praça do Relógio, os quais tem seu uso como lojas e/ou moradias assobradadas,
com 2 ou 3 pavimentos, vários desses prédios ainda têm suas fachadas compostas de
azulejarias em cerâmica e elementos decorativos importantes, nas paredes exteriores
e esquadrias de suas fachadas. As características dessas paredes externas estão rela-
tivamente preservadas.

89
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

No lado oposto, na Avenida Portugal existem outros casarões, sendo que al-
guns já foram bastante descaracterizados como pode ser observado na figura 02 nas
proximidades do Mercado de Ferro. No Boulevard Castilhos França, desde a Aveni-
da Portugal até a rua Frutuoso Guimarães, encontram-se mais casarões, do mesmo
modo, muitos modificados nas suas formas originais. A negligência com o patrimô-
nio arquitetônico da cidade levou a destinos desagradáveis vários desses prédios em
frente ao Complexo Ver-o-Peso, embora existam aqueles conservados em suas for-
mas externas. Como pode ser comparado na figura 03, do ano de 1964 e a figura 4 do
ano de 2020, vários casarões foram modificados, nesse interstício de 56 anos, onde
é possível observar ainda a ocupação da Praça do Pescador pela feira livre do Ver-o-
-Peso (figura 04).
Figura 01 - Casarões da Tv. Marquês de Pombal

Fonte: Gualdino Rodrigues, 2016.

90
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Figura 02 - Doca do Ver-o-Peso. Casarões na Avenida Portugal e o Mercado de Peixe

Fonte: Gualdino Rodrigues, 2016.

Figura 03 – Av. Boulevard Castilhos França, Praça do Pescador e casarões

Fonte: https://64.media.tumblr.com (Acesso em 7.7.2020)

91
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 04 – Av. Boulevard Castilhos França, Feira sobre a Praça do Pescador e casarões

Fonte: Silva (2020)

Na figura 04 é possível observar as fachadas dos casarões e que muitos desses


casarões não são mais residências familiares mudando o uso para comercial e pos-
suem atualmente diversas alterações significativas, seja no seu interior ou em suas
fachadas, principalmente nas aberturas. O que existe hoje na área é o resultado de
vários momentos históricos, compondo a paisagem arquitetônica e histórica do Ver-
-o-Peso, embora muitos de seus elementos não sejam notados pelos transeuntes
A arquitetura de ferro do Mercado de Peixe (Figura 05), as estruturas internas
do mercado Bolonha Figura (06 B e C) e do monumental relógio da praça de mesmo
nome, marcam a época em que o homem domina a técnica de fundir o metal, a ponto
de confeccionar um prédio pré-moldado, peça por peça, transportando-o de navio
da Europa até Belém. Foi o que aconteceu no início do século XX, quando Belém
vivia um auge econômico em função da coleta e exportação da seringa da borracha,
marcando uma transformação urbana que redundou na importação e construção des-
ses e outros bens arquitetônicos em ferro fundido para a cidade. As figuras 05 e 06
mostram respectivamente, o Mercado de Ferro de Ver-o-Peso e o Mercado Bolonha
(Figuras 6A, parte externa e figura 6B e 6C mostram os pavilhões metálicos no inte-
rior do Mercado Bolonha, também conhecido como Mercado de Carne.

92
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Figura 05 – Av. Boulevard Castilhos França, destaque a esquerda o Mercado de Ferro

Fonte: Silva (2020)

Figura 06 (A, B e C) – Av. Boulevard Castilhos França, Exterior e interior do Mercado Bolonha

6A

93
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

6B

6C

Fonte: Silva (2020)

94
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Mas arquitetura e patrimônio no Ver-o-Peso não podem estar dissociados das


pessoas que diariamente labutam por ali, muitos são feirantes que vem de seus bair-
ros para se abastecer nesse ponto referencial da cidade e levar sua mercadoria que
será revendida em feiras, mercados, carrinhos ambulantes ou utilizadas no preparo
de comidas nos restaurantes formais ou informais; outros são feirantes ou trabalha-
dores do próprio Ver-o-Peso e os demais são transeuntes diversos, alguns em busca
das compras domésticas, outros turistas e acompanhantes, pesquisadores etc. Cada
um com um motivo de ir ao Ver-o-Peso, de sentir sua energia e participar da sua vida
cultural e pulsante.
“O Ver-o-Peso une o velho ao novo; o tradicional ao moderno; a elite ao po-
pular” (CAMPELO, 2011, p. 46). Essa afirmação de Campelo pode ser constatada
nos depoimentos selecionados e apresentados, adiante, neste texto. Não é de hoje que
o Ver-o-Peso alcançou esse status junto ao belenense, mas ao longo da história da
cidade; vindo gradativamente a se tornar o seu principal cartão postal e chegando a
representa-la simbolicamente. Segundo Lima (2011, p. 71) “Datam do final do século
XIX, as primeiras imagens fotográficas da Doca do Ver-o-Peso, ainda sem o Mercado
de Ferro, impressas em cartões postais” [...], cujos registros continuam por todo o
século XX, adentrando ainda o século XXI, com crescente intensidade.
Essa autora realizou pesquisa sobre “os discursos oficiais e o que se fala no
Ver-o-Peso”, referindo-se ao patrimônio cultural (LIMA, 2010, p.69). Ela realizou
entrevistas que chamou de depoimentos, para “ apreender e interpelar o conheci-
mento que os trabalhadores do Ver-o-Peso têm sobre patrimônio cultural” (Id, Ibid.
p. 89). Desse modo, Lima classificou os depoimentos a partir das interpretações dos
trabalhadores do Ver-o-Peso em três Blocos:

a) os que apreenderam apenas os aspectos restritivos como “não pode de-


molir”, “não pode fazer nada”, não cuida, então tomba”; b) aqueles que têm
uma noção mais embasada, articulada aos aspectos históricos e artísticos
do edifício e sua antiguidade; c) aqueles que, [...] estão mal informados
a respeito do assunto, têm um entendimento diferente, ou ainda, apenas
não consideram essa uma prioridade diante de outros problemas que os
entrevistados entendem com mais importantes, como, a falta de moradia e
o trabalho (LIMA, 2010, p. 95).

A população de Belém, de um modo geral, tem uma noção do valor patri-


monial do Ver-o-Peso e o modo como os feirantes se manifestam a respeito e que
Lima (2010) classificou em três blocos pode ser similar ao pensamento de muitos
populares da cidade, como a senhora Danielle Larrat de 45 anos (entrevistada em
2015), que afirmou “o Ver-o-Peso é um patrimônio de toda a cidade, desde a história

95
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

até a arquitetura e a arte de ferro dos prédios lá, é nosso cartão postal e deve ter um
projeto que toda Belém aprove a reforma, se não perde esse patrimônio”, referindo-se
ao projeto de requalificação do Ver-o-Peso apresentado pela Prefeitura do Município
aquele tempo, e, que a população não o aprovou em consulta pública3, com o parecer
final do Conselho de Arquitetura e Urbanismo Seção do Pará - CAU/PA, apontando
essa decisão. Danielle pode ser enquadrada em uma das classificações de Lima, onde
o entrevistado tem a noção de patrimônio como um bem comum, de historicidade,
antiguidade e valor artístico.
Por outro lado, existem aquelas pessoas que são a favor da “modernização” e
nesse sentido, ainda tomando entrevistas sobre a reforma ou requalificação do Ver-
-o-Peso em 2015, Manuel Vieira de 58 anos, posicionava-se a favor do projeto que à
época a Prefeitura apresentou, manifestou-se assim: “Tem que modernizar, mesmo,
dar conforto e higiene a quem vai na feira, no mercado, só encontra lixo e mau chei-
ro, dá é vergonha de dizer que é cartão postal da cidade, de levar alguém de fora pra
passear por ali. Aquela pedra onde vende peixe é só urubu, lixo. Um monte de prédio
velho que tinha mais é que trocar pra outros mais modernos”. A posição radical do
Manuel é pensamento de pessoas que não tem afeição sobre o lugar ou um conhe-
cimento sobre o tombamento4 a que o Ver-o-Peso foi elevado em 1977. Mas, em
relação ao depoimento de Danielle, pode-se observar que ambos do seu modo vêm o
Ver- o Peso como um cartão postal da cidade e, portanto, como um bem patrimonial.
Simbolismo e patrimônio caminham juntos no Complexo Ver-o-Peso, juntos com
as pessoas que o fazem dia e noite, seja como trabalhadores ou com frequentadores
diversificados.
Há nitidamente uma riqueza patrimonial e cultural cujo ápice do valor está no
simbolismo coletivo impregnado no belenense, o que é ratificado por vários autores,
como Leitão e Rodrigues (2011). A maior riqueza do Ver-o-Peso está contida no las-
tro de memória da própria cidade que pode ser ali encontrado. Há muito deixou de
ser apenas um porto e uma feira livre, na qual se negocia toda espécie de produtos
comestíveis, industrializados, vestuários, artesanato, ervas, etc., para se consolidar
como importante lugar de grande valor cultural e práticas culturais, onde o cotidiano
regional e o imaginário amazônico se reproduzem e se perpetuam por meio das mais
diversas atividades tradicionais – do preparo de alimentos ao uso de ervas com fins

3
Consulta pública que resultou no Parecer nº 001/2016 Comissão Especial de Política Urbana e Meio
Ambiente do CAU/PA-CEPUMA Assunto: Parecer elaborado para atender a Consulta pública sobre a
proposta de intervenção para a Feira do Ver-o-Peso, realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (Iphan), em comum acordo com o Ministério Público Federal – Pará (MPF-PA).
4
O complexo Ver-o-Peso foi tombado pelo IPHAN em 9/11/1977, através do processo de nº 812-T-1969

96
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

medicinais e místico-religiosos. Nesse sentido, o Ver-o-Peso é também um mercado


de bens simbólicos, que alimenta o corpo, a alma e o espírito de uma cidade que
mantém elos com o rio e a floresta (LEITÃO; RODRIGUES, 2011, p. 13).

3. LUGAR CULTURAL E DE SOCIABILIDADE

A imagem do Ver-o-Peso é constante na vida dos belenenses tanto fisicamente,


sendo um local que marca a centralidade econômica da capital paraense, para onde
converge a maioria dos transportes coletivos vindos de vários bairros e até de outros
municípios da Região Metropolitana de Belém, como também por ter sua imagem
presente na memória mais íntima de cada morador da cidade de modo incontinente,
pois é fato comum se falar do Ver-o-Peso no dia-a-dia, é muito comum sair matérias
nos jornais e telejornais sobre algo ali relacionado. Tudo isso faz com que a fixação
de sua imagem esteja presente no imaginário da população local de modo ininterrup-
to, independente até se o sujeito conhece ou não o Ver-o-Peso, todos tem o que dizer
desse lugar.
Um belenense de prenome Luiz, professor de 61 anos, narra que na década
de 1970, no dia do Círio de Nazaré, ele acompanhava a procissão desde a Igreja da
Sé até as proximidades da basílica de Nazaré e já havia nessa época a tradicional
homenagem, através dos fogos – “barulhentos e intermináveis”, na sua visão – que
os “peixeiros” prestavam a Nossa Senhora nas “geleiras do Ver-o-Peso”. Ele, como
tantas pessoas que já viram essa homenagem, guardou na memória o momento em
que ocorria o foguetório seguido da fumaça que pairava no ar entre as velas das em-
barcações e os mastros dos barcos a motor, ao término do que a procissão prosseguia
em seu trajeto rumo à Basílica.
Uma ida ao Ver-o-Peso, além dos sentidos para cheiros, cores e sabores, cer-
tamente aguça as ideias, apontando para as quase infinitas possibilidades de reflexão
sociológica que este mercado provê, uma vez que se constitui em ponto de conver-
gência de produtos e saberes, onde os conteúdos das práticas sociais são tanto cultu-
rais quanto econômicos.
Possuindo a maior feira livre no âmbito nacional e regional, tornou-se, ao
longo de sua existência, um grande mercado popular de trocas e saberes, sendo [...]
“responsável pelo abastecimento de domicílios, restaurantes, lojas e supermercados”
[...], isso de modo direto, mas também de modo indireto, sendo [...] “ponto central
da rede mais extensa de mercados e feiras da cidade [...] (LEITÃO, 2011, p. 24). A
autora se refere ainda aos municípios e cidades vizinhas, considerando que parte dos
consumidores do Ver-o-Peso, são feirantes de bairros e das localidades mais próxi-
mas de Belém.

97
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Dentro desses parâmetros, podemos apresentar o Ver-o-Peso como um exem-


plo, por excelência, de um mercado popular, de tradição regional e local e, ao mesmo
tempo, como um espaço translocal, transnacional, onde se articulam novas e antigas
formas de organização e venda de produtos, sociabilidades e identidades, num con-
texto de modernidade amazônica. (LEITÃO e RODRIGUES, 2011, p. 1).
Leitão (2011) realizou pesquisas socioantropológicas sobre esse lugar “em-
blemático na cidade de Belém” e ainda reuniu seus trabalhos com de outros pesqui-
sadores em duas publicações específicas sobre essa temática com o título comum de
“Ver-o-Peso: Estudos antropológicos no mercado de Belém” – volumes I e II, nos
anos de 2010 e 2016, trazendo contribuições a quem se arvore em conhecer um pouco
mais sobre esse locus tão importante para a cidade e sua população, mostrando seu
cotidiano, as ricas relações sociais ali empreendidas, vendo (...) “o Ver-o-Peso como
um lugar privilegiado tanto pela magnitude sociológica, quanto pelas facilidades
operacionais” (...) (LEITÃO, 2010, p. 9), o que permite aos interessados um campo
inesgotável de pesquisas.
O Ver-o-Peso representa um espaço e um tempo em que há revelação e o espe-
rado encontro da história com a memória. “A memória buscada – a dos trabalhadores
da feira – colocada em termos de uma memória popular encerra, na verdade, uma
dupla atitude: a exclusão e inclusão ideológica desta memória” (CAMPELO, 2011,
p. 65).
A dona Beth Cheirosinha, vendedora de ervas, no Ver-o-Peso, vai além; para
ela o Ver-o-Peso “significa o que é pra todos os paraenses, é a representação da Ci-
dade, que em qualquer lugar que se vai, pra reconhecer Belém tem que mostrar logo
o Ver-o-Peso... é a cara de Belém, meu querido” (Beth Cheirosinha, entrevista em
14/4/2014).
A cidade de Belém não pode passar sem o seu Ver-o-Peso, que exala cultura
e relações sociais mais humanizadas e sensíveis que são denominadas de sociabili-
dades, seus habitantes e demais atores sociais que fazem circular o pescado por sua
malha urbana, mais especificamente nos pontos fixos de venda.

4. PORTO E FEIRA TÍPICA DA AMAZÔNIA

A Amazônia possui uma riqueza hídrica que se interliga em uma imensa ba-
cia, “na qual o Amazonas e seus tributários, a floresta exuberante e a vastidão de seu
território, que chega a ocupar 3/5 do território brasileiro” (FURTADO, 1987, p. 24).
Belém se beneficia dessa rede hídrica por possuir excelente posição geográfica, como
abordou Penteado (1968):

98
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

(...) Por não estar localizada às margens do Amazonas, a cidade de Belém,


paradoxalmente beneficia-se com esse fato, pois o sistema hidrográfico em
que se acha, além de ser relativamente independente do rio-mar, garante-
-lhe condições de fácil acesso ao oceano e ao continente, graças à peculia-
ridade que possui (PENTEADO, 1968, p.87).

A enseada das embarcações onde se localiza o Ver-o-Peso, o Mercado de Peixe


com suas torres pontiagudas e marcantes na paisagem da cidade de Belém, muito
fascinaram Silva desde a infância no final da década de 1960, tempo em que sema-
nalmente, o mesmo acompanhado de seu pai e dois dos irmãos mais velhos, iam às
compras de pescado, frutas, hortaliças, legumes e outros produtos que “só ali eram
frescos”, novo e de qualidade, para abastecimento da família que era numerosa, para
toda a semana. “O que guardo na memória da lembrança é o que na psicologia deno-
mina-se de memória afetiva”.
Por outro lado, de modo conflitante, há uma pressão para a mudança de uso
daquele local. Mas esse entreposto pesqueiro continua, nos dias atuais, como um
marco comercial e simbólico da cidade de Belém, no qual há uma organização que
satisfaz ao conjunto dos usuários que interagem e onde “cada indivíduo tem um papel
específico de ator social” (GOFFMAN, 2013, p. 36; RADCLIFFE-BROWN, 2013,
p. 19), dentro daquele locus sociocultural que influencia toda a cidade desde sua
gênese. Nesse sentido, Loureiro (1985, p. 21) comenta que desde o período colonial:

A subsistência do homem amazônida fundamentou-se no pescado e na pe-


quena produção agrícola, com destaque para a mandioca usada para fabri-
car farinha, a qual sobressaia todas as demais espécies. O pescado, como
produto alimentar básico das populações paraenses, tinha seu valor natural
reconhecido a tal ponto que, em certa época, serviu como moeda em algu-
mas formas de pagamento.

Furtado (1993, p.44) concorda com Loureiro quanto à importância do pescado


ao homem da Amazônia, comentando sobre pesca, comercialização e consumo para
alimentação como algo presente na vida desse habitante da região, a autora afirma
que a pesca na Amazônia, “particularmente no Estado do Pará, se apresenta como
algo muito importante à vida da população regional, tanto pela produção de alimen-
tos quanto por ser um dos vetores que levam reprodução social”.
A combinação alimentícia entre farinha de mandioca e peixe, a que se referem
às autoras, é uma díade que vem acompanhando o habitante da região dos tempos
pretéritos até os tempos atuais, fazendo com que haja sempre a procura desses impor-
tantes gêneros alimentícios necessários à composição da mesa do amazônida.

99
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Os rios e outros cursos d’água como lagos e igarapés da Amazônia, além da


sua costa marítima, sempre apresentaram abundância em qualidade e diversidade de
pescado. Loureiro (1985, p. 21) enfatiza “a relativa facilidade de captura e a significa-
tiva experiência do indígena como pescador, assimilada e desenvolvida por brancos
e mestiços que ocupam a Amazônia e a existência de mercados consumidores”, como
fatores primordiais para transformar [...] “a pesca entre as atividades produtivas re-
gionais das mais antigas e o pescado, ao lado da mandioca, como alimento regional
mais constante” (p. 22).
Embora o costume popular de embarque e desembarque de pessoas e de dro-
gas do sertão tenham potencializado o surgimento da mesa do Haver-o-Peso, ainda
no ano de 1625 (CRUZ, 1973, p.103), a consolidação do entreposto pesqueiro na
doca do Ver-o-Peso foi gradativa, até ao do final do século XVII, quando se iniciou
as primeiras construções de trapiches rudimentares para facilitar o embarque e de-
sembarque. Segundo Barata (1975, p.134) em 1791 já existia a Ponte da cidade, na
realidade um trapiche construído de madeira regional, mas sua oficialização como
entreposto pesqueiro data de 28 de setembro de 1839, quando a função do Haver-
-o-Peso deixou de ser o de arrecadação ou taxação de produtos, momento em que o
trapiche existente passou a ser oficialmente “destinado a ser a ribeira do peixe fresco”
(BARATA, 1975, p. 134), função essa que já conta com quase dois séculos de exis-
tência oficial. A Pedra do Peixe é um local de centralidade da Rede social do pescado,
ou seja, a Rede é como um modelo abstrato construído a partir da maior quantidade
possível de informações sobre a totalidade da vida social de atores em conexões, que
neste caso específico – são os atores do entreposto pesqueiro que se interconectam
para fazer circular o pescado em Belém.
O pescado foi e continua sendo o elemento que está centralizado no Ver-o-Pe-
so, cabendo-lhe o grande papel econômico que dá importância aquele local, que faz
com que outras mercadorias circulem, que continua abastecendo as feiras e mercados
populares e os supermercados; mantendo uma rede viva que chega às mesas dos
paraenses. Fazendo o verdadeiro papel de um terminal pesqueiro popular, mas confli-
tando com princípios legislativos federais.
O peixe advindo da Pedra do Ver-o-Peso tem um valor simbólico entre os con-
sumidores de Belém, os quais o veem positivamente, sendo do senso comum que na
Pedra se encontra peixe fresco, peixe novo e desse modo cada consumidor também
faz parte da rede comercial tecida em volta do pescado e iniciada pelos tripulantes-
-extratores longínquos do litoral, dos rios e estuários amazônicos, pescadores que
são hábeis navegadores, conhecem muito bem os cursos hídricos e se arriscam por
muitos dias para realizar tal tarefa.

100
VER-O-PESO ENTRE ÁGUA E TERRA: LUGAR DE ARQUITETURA, CULTURA E SOCIABILIDADE NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para falar sobre o Ver-o-Peso é preciso considerar as ambivalências e oposi-


ções, que também constituem a realidade e refletem a riqueza e a diversidade da cul-
tura local, sendo um lugar de convergência física e imaterial, de hábitos tradicionais
e também cheio de novidades; de vestígios indígenas, mas também dos Portugueses;
entre orixás e Nossa Senhora de Nazaré, ou seja, um encontro entre rural e urbano,
mas também de encontro da história com a memória afetiva local; lugar que centra-
liza o patrimônio arquitetônico e cultural, sendo ao mesmo tempo um centro comer-
cial que harmoniza o passado e o presente do belenense que com afeto se adequa a
qualquer momento do seu tempo, em que haja revelação desse esperado encontro da
história com a memória.
O Ver-o-Peso revela o antagonismo da coexistência da cultura ribeirinha na
cidade e a interação entre tradição regional, juntamente com as transformações da
metrópole, agindo como uma conexão entre a vida urbana e a vida do interior. Tal
lugar proporciona um significado diferente dos outros aspectos da cidade em termos
de proteção do turismo e do patrimônio histórico e cultural. Portanto, pode-se dizer
que a imagem da Feira está situada entre o ambiente tradicional da Amazônia e a
complexa estrutura de uma metrópole contemporânea, abrangendo lirismo e poesia,
além de história, tradição e uma dura realidade.
O símbolo que o Ver-o-Peso representa para Belém, tão cedo não permitirá
que esse lugar venha a ser demolido ou mesmo modificado por qualquer motivo e por
quem quer que seja, o que é garantido por Lei. Meira, como defendendo essa premis-
sa, arremata assim: “Não aceitamos em nenhuma hipótese, sob qualquer justificativa,
mexer, mutilar, destruir tal patrimônio. Problemas novos que surgem em função do
progresso urbano merecerão soluções outras que não as dessa morbidez de aniquilar
o passado” (MEIRA FILHO, 1973, p. 169).
Cada belenense tem sua opinião sobre o que significa o Ver-o-Peso, que vai
sempre além do aspecto econômico e cultural para Belém. “Ninguém, nesta terra,
lançou os olhos para a vida, sem tê-lo como a tônica, o traço perfeito entre os carac-
teres mais sugestivos da cidade” (MEIRA FILHO, 1973, p. 169), nessa tônica carac-
terística, está inserido o Ver-o-Peso, cheio de significados para a cidade de Belém.

REFERÊNCIAS

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101
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103
O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”:
reflexões acerca de bens culturais na cidade de Belém
(PA)

Renata de Godoy1
Luiz de Jesus Dias da Silva2

1. INTRODUÇÃO

Este texto tem o objetivo de refletir, de um modo geral, quanto aos bens cul-
turais na cidade de Belém do Pará, com foco mais particular naqueles que, mesmo
tangíveis, ficam na invisibilidade para a grande maioria da população citadina, que
apesar de ver, sentir e tocar não os percebem como tal. Existem aqueles bens que
são objeto específico da arqueologia, que estuda cultura material, desde alterações
na paisagem à objetos cotidianos, com objetivo de desvendar comportamentos que
raramente poderiam ser acessados através de documentos ou testemunhos orais. E
existem também os bens culturais tangíveis contemporâneos, objeto de estudo de
outras disciplinas, que parecem invisíveis pela sociedade.
No caso de Belém, o primeiro sítio referencial aos invasores ou colonizadores
portugueses que aportaram na foz do córrego do Piri, no ano de 1616 - iniciando a
consolidação do domínio das terras setentrionais do Brasil, à ordem da Coroa portu-
guesa - era ocupado pelos indígenas da etnia Tupinambá, população essa que com o
tempo foi sucedida, miscigenada e, aos resistentes, o destino foi o extermínio; restan-
do somente objetos e pertences por eles utilizados no cotidiano daquela época, mas
ficaram também os ensinamentos apreendidos pelas diversas gerações sucessoras, do
modo de interagir com o ambiente, a exemplo das construções de suas espacialida-

1
Arquiteta e Urbanista e Mestre em Gestão do Patrimônio Cultural (PUC-GO), PhD em Antropologia
(Universidade da Flórida), Professora Adjunta UFPA, Faculdade de Ciências Sociais, PPGA e PPGAU.
2
Arquiteto e Urbanista (UFPA), Doutor em Antropologia Urbana (PPGSA/IFCH/UFPA), Mestre em
Arquitetura (PROARQ/UFRJ), Professor Associado da FAU/ITEC/UFPA, Professor do PPGAU/UFPA.
Diretor da FAU/ITEC/UFPA no biênio 2019-2020.

105
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

des, que se enquadram como bens culturais presentes, embora invisibilizados. Mas,
os dois bairros que deram origem à cidade de Belém e outros locais ainda guardam,
hoje, muitas relíquias arqueológicas conhecidas e outras desconhecidas, por serem
imperceptíveis.
Esse mesmo princípio perceptivo pode se refletir nas demais localidades bra-
sileiras, uma vez que em toda espacialidade habitada existiu antes um sítio e uma
sociedade dita primitiva, a qual interatuou no ambiente, produziu bens culturais, pas-
síveis de estudos e desses restaram vestígios, dos quais muitas das vezes os sujeitos
do presente se utilizam de algum modo, sem dar a devida atenção ao valor histórico,
cultural e patrimonial contidos. Assim, estudando Belém é possível ver uma analogia
nacional.
Quando pensamos em patrimônio cultural material, parece óbvio que sua pró-
pria tangibilidade seria suficiente para que ele fosse percebido pela sociedade; afinal
trata-se de algo claro às nossas sensações. Entretanto, há muitos bens culturais que
estão presentes no cotidiano das cidades, das comunidades rurais, e que nem por isso
são percebidos. Estão invisíveis, e assim acabam vulneráveis em termos de proteção.
Um bom exemplo disso é a Terra Preta de Índio (TPI), tecnicamente denominada Ter-
ra Preta Arqueológica (TPA)3, que é comercializada como fertilizante apesar de ser
uma das categorias materiais estudadas tanto pela arqueologia, como pela geologia.
O mesmo se pode dizer de bens arquitetônicos singelos, que não represen-
tam os grandes conquistadores, ou elites poderosas que ocuparam ou ocupam lugar
de destaque nas narrativas históricas. Como o exemplo da arquitetura vernacular,
encontrada nas habitações ribeirinhas e indígenas; demonstrando que há muita sa-
bedoria popular espontânea e sucessiva em várias gerações, de adaptação ambiental,
que nosso modelo ocidental raramente segue, preferindo as propostas estrangeiras
de implantação urbana, não levando em consideração a arquitetura vernacular. As-
sim como as construções empreendidas pelos ocupantes colonizadores portugueses
são um legado patrimonial, as habitações de terra firme e as ribeirinhas executadas
mediante a sabedoria popular do indígena e depois do caboclo amazônida, são bens
culturais concretos, embora na invisibilidade, pela tendência de se acompanhar as
formas arquitetônicas importadas da Europa e depois de outros centros hegemônicos.

3
Em inglês ADE - Athropogenic Dark Earth, pois trata-se de algo manejado pela ação humana no passa-
do, portanto vestígio arqueológico.

106
O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

2. BENS ARQUEOLÓGICOS: UMA REFLEXÃO SOBRE SUA


VISIBILIDADE EM BELÉM/PA

Belém, capital do estado do Pará, é uma das metrópoles brasileiras onde a


arqueologia está em todos os lugares. Na maioria dos equipamentos turísticos e de
lazer da cidade se pode identificar referências a bens arqueológicos. Entretanto, em
pesquisa realizada em 2017, constatamos que a mera presença de artefatos ou sítios
evidenciados para visitação não faz com que tais informações sejam corretamente
repassadas aos usuários, sejam eles moradores ou turistas.
A formação de vínculos de pessoas com vestígios arqueológicos não obedece
a regra, e muitas vezes independe de interferência do poder público (GODOY, 2012).
Analisando um contexto onde havia significativa distância temporal e étnica, perce-
beu-se que tal distância pode ter sido um facilitador para a construção de ressonância,
no sentido atribuído por Gonçalves (2005). Um cenário muito diferente é encontrado
na Amazônia urbanizada. Na Amazônia brasileira, a convivência entre populações
e o patrimônio arqueológico é cotidiana, talvez um dos poucos lugares do mundo
em que ainda é possível perceber tal idiossincrasia. E muitos têm sido os exemplos
relatados na literatura, especialmente em áreas rurais e com povos indígenas e popu-
lações tradicionais (BEZERRA, 2011, GOMES, 2011, GREEN et al. 2011, LIMA,
MORAES, 2013, SCHAAN, MARQUES, 2012).
O mapeamento de vestígios arqueológicos na cidade de Belém conta com um
repertório significativo, com intervenções acompanhadas pelo arqueólogo do Museu
Paraense Emílio Goeldi Dr. Fernando Marques. São intervenções que colocaram a ar-
queologia acessível ao público, com sítios adaptados à visitação e exposições museo-
lógicas contendo acervos arqueológicos espalhados pelos principais pontos turísticos
dos bairros onde a cidade começou a se formar no período colonial.
Em Belém também há venda de réplicas de artefatos, um mercado antigo e
significativo na cidade. Troufflard (2012) também indica a produção ceramista em
Paracuri, distrito de Icoaraci em Belém/PA, como uma atividade econômica signi-
ficativa, com produção inspirada em cerâmicas arqueológicas marajoara, tapajôni-
ca, maracá e cunani. A reprodução de muiraquitãs em diversos tamanhos e outras
réplicas materiais também é emblemática, e reflete uma influência marcante e atual
desses artefatos na sociedade, atingindo uma popularidade que ultrapassa fronteiras
étnicas, sociais e territoriais. Segundo Schaan (2006, p. 24), ao produzir artesanato de
inspiração arqueológica, o produtor/vendedor se vale da relação com o bem cultural
resgatado do passado para agregar um valor cultural, simbólico ao seu objeto, o que
vem a elevar seu valor como mercadoria.

107
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Diante deste panorama, uma pesquisa com objetivo de analisar turismo ar-
queológico se encaixava perfeitamente nesta cidade, e foi conduzida em âmbito de
pós-doutorado (GODOY, 2013, GODOY, 2014). Em etapa inicial do projeto, como
parte da disciplina Antropologia Urbana4, utilizamos de métodos etnográficos para
tentar interpretar o comportamento de usuários em um dos principais equipamentos
de turismo da cidade: a Estação das Docas. Realizamos visitas de campo, utilizando
a metodologia de observação participante, em diferentes dias semanais e horários, e
o descaso da grande maioria dos frequentadores com a exposição e sítio arqueológico
foram evidentes.
A Estação das Docas é um espaço multiuso no Centro Histórico de Belém,
com restaurantes, bares, lojas e adaptado para eventos culturais e de toda sorte, espa-
ço que dificilmente passa despercebido para moradores e turistas. Lá existem objetos
espalhados ao longo da orla, um sítio arqueológico evidenciado (como o antigo forte
de São Pedro Nolasco), além de uma exposição interna com artefatos arqueológicos
que não foram resgatados no mesmo local, que divide atenção com o acervo da ex-
posição principal. Ao consultar sua divulgação oficial, no item História, percebemos
a importância de bens materiais que conferem um ar de exotismo e de autenticidade
como espaço cultural da cidade:

Inaugurada em 13 de maio de 2000, a Estação das Docas é um dos espaços


que mais refletem a região amazônica. Referência nacional, o complexo
turístico e cultural congrega gastronomia, cultura, moda e eventos nos mais
de 500 metros de orla fluvial do antigo porto de Belém. São 32 mil metros
quadrados divididos em três armazéns e um terminal de passageiros. Os
guindastes externos, marcas registradas da Estação, foram fabricados nos
Estados Unidos, no começo do século 20. Já a máquina a vapor em meados
de 1800, fornecia energia para os equipamentos do porto (PARÁ 2000,
2020).

Ao realizar as observações e observações participantes, a equipe notou um


descaso generalizado dos usuários em relação à exposição. O antigo forte, cujas es-
truturas estão evidenciadas, dividindo espaço com um anfiteatro do tempo presente
(Figura 1), não tem nenhuma informação de sua presença para visitantes, a não ser
por um painel informativo na exposição, na parte interna do complexo (Figura 2).

4
Disciplina optativa oferecida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA-UFPA) em 2017,
com participação de Amanda Carolina de Sousa Seabra, Camila de Fátima Simão de Moura Alcântara,
Cibelly Alessandra Rodrigues Figueiredo, Luciana Cristina de Oliveira Azulai e Sabrina Campos Costa.
Quem conduziu as entrevistas foi Sabrina Campos Costa.

108
O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

Nem mesmo as participantes da equipe sabiam da existência do forte, considerando


que a maioria é de Belém e pesquisa patrimônio, consideramos este dado simbólico
para a absoluta invisibilidade deste patrimônio em especial.
Figura 1 - Ruínas do Forte São Pedro Nolasco

Fonte: Godoy, 2017.

Figura 2 - Exposição arqueológica interna

Fonte: Godoy, 2017.

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Observamos situações em que encontramos pessoas interessadas sim, mas


conversando com as mesmas percebemos que o interesse partia de objetivos pessoais
pré-definidos como, por exemplo, um turista de passagem na cidade que tem como
meta conhecer as exposições museológicas ou pessoas aleatórias que se encontravam
em situações de “matar o tempo” e o exerciam através do interesse esporádico com
as peças. O público em geral, porém, passava pelo corredor sem ao menos observar
ou se atentar à temática da exposição.
Foi observado que pelo período matutino havia mais movimentação e inte-
resse quanto às exposições, a maioria, turistas, que também visitavam outros pontos
culturais da cidade. Nos demais períodos, com as movimentações e clima de happy
hour, as pessoas que por ali passavam não apresentavam muito interesse e importân-
cia com o patrimônio. Pudemos observar dias de visitação intensa sobretudo na ter-
ça-feira (dia da semana em que há gratuidade geral no Sistema Integrado de Museus
de Belém), e no sábado e domingo, sobretudo na ocorrência ou não de outros eventos
atrativos no entorno, culturais ou religiosos. Em dias da semana comuns, a frequência
de visitantes cai bastante, mas não chegou a ser observado nenhum dia sem visitação.
A pesquisa demonstra duas características que se repetem em outros espaços
da cidade. O patrimônio cultural, no caso bens arqueológicos, é elemento importante
na construção de espaços e narrativas atrativas para moradores ou turistas. Entre-
tanto, seu legado científico desaparece nas exposições, e os sítios evidenciados se
tornam parte de uma paisagem que o visitante dificilmente consegue decifrar.
É preciso salientar que a própria invenção da categoria “patrimônio” no oci-
dente nem sempre esteve associada à ideia romântica de preservação, e que sendo
uma construção social devemos “considerá-lo no contexto das práticas sociais que
o geram e lhe conferem sentido ” (ARANTES, 2006, p. 426). Apesar de sempre ter
existido como uma categoria de pensamento e de ser extremamente importante para
a vida social e mental de qualquer coletividade, semanticamente só foi instituído no
final do século XVIII. Gonçalves introduz conceitos fundamentais para compreensão
do patrimônio na atualidade, como a necessidade de ressonância para obtenção de
respaldo público, a sua dimensão material que media relações entre extremos, como
universal e singular, passado e presente, alma e corpo, tangível e intangível, e a sub-
jetividade inerente que traduz autoconsciências individuais e coletivas e pressupõe
continuidades entre passado, presente e futuro (2005). A arqueologia em Belém, ape-
sar de presente e parte da cidade, nem sempre encontra ressonância junto ao público,
e por isso transforma-se em mera exposição, sem sentido coletivo.
A cidade de Belém já foi a única Metrópole da Amazônia, título este que faz
referência à identidade cultural amazônida, que certamente o município já apresenta,
mas hoje Manaus, no mesmo patamar, divide com Belém esse título e referência. São

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O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

numerosas as características provenientes de uma herança cultural ameríndia e que


estão inseridas no quotidiano do espaço urbano. Temos como exemplo a gastrono-
mia, o folclore, música, mitos e ritos que perpetuam no imaginário social da popula-
ção e, naturalmente, as produções materiais que foram desenvolvidas pelos antigos
povos da região e que hoje representam objetos de estudo para a análise arqueológica.
A ciência não pode ficar restrita ao meio acadêmico, o conhecimento deve ser com-
partilhado; mas a presença da arqueologia na cidade não é suficiente para que ela seja
perceptível ao público. Apesar de presente, ela continua invisível para a maioria, e
assim não tem sentido, não representa uma memória coletiva. Trata, na percepção
genérica, de representar um passado exótico e distante, o qual por isso perde valor
enquanto bem cultural.

3. BENS CULTURAIS DA ARQUITETURA EM BELÉM

Belém, capital do estado do Pará, é uma cidade celebrada por seu patrimônio
histórico e cultural construído ao longo de quatro séculos de fundação. Uma das
ocupações urbanas mais antigas no Brasil tem seu passado vinculado aos conquistadores
do período colonial e celebra especialmente edificações e transformações urbanas
decorrentes do ápice econômico ocorrido durante o ciclo da borracha. No entanto,
sua atual legislação urbanística e os níveis de proteção municipal, estadual e federal
pelo estatuto do tombamento não alcançam seu real potencial informativo, na medida
em que tais instrumentos isolados não conseguem alcançar o passado de populações
colonizadas, escravizadas e marginalizadas que já habitavam seu território antes da
conquista, ou mesmo daqueles que permaneceram invisibilizados nos documentos
históricos. Schaan (2009) faz um retrato muito distinto da Amazônia antes de 1500; e
em Belém, essa história ainda pode ser desvendada através de seus vestígios materiais.
Entendemos que a cultura material tem sim um viés transformador de relações
sociais, reproduzindo e legitimando valores que não necessariamente refletem res-
sonância patrimonial, mas que atuam como elementos distintivos de novas formas
de relacionamento através de uso político, simbólico e econômico. Neste sentido, a
perspectiva de vida social das “coisas”, defendida por Appadurai (2008), em que o
vínculo entre a troca e o valor é político, é representativa nesta análise.
O maior desafio para uma categoria fortemente arbitrária, instituída de cima
para baixo, é respeitar e incluir os sentidos atribuídos ao patrimônio para as popu-
lações vivas, e refletir se lidar com os vestígios do passado como uma categoria
ocidental e enraizada institucionalmente faz sentido para os próprios sujeitos inves-
tigados. O próprio conceito de patrimônio arqueológico tem sido debatido, sendo
uma leitura bastante interessante feita por Costa (2004), que afirma este como uma

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

construção da/o arqueóloga/o, característica em parte corroborada pela afirmação de


Schaan (2013) para as narrativas sobre o passado indígena que não interessam aos
povos nativos na atualidade.
Os processos de mercantilizarão e gentrificação da cultura, intensos na socie-
dade contemporânea, causam o deslocamento simbólico que contaminam o campo
semântico do patrimônio cultural e o transforma em fetiche, o que também ocor-
re nas práticas de colecionismo segundo Mariza Veloso (2006). Essa autora aponta
que o patrimônio apresenta um dos paradoxos mais marcantes da atualidade, pois ao
mesmo tempo em que é associado ao passado, ao tradicional e autêntico, também
“precisa sintonizar-se com a pós-modernidade e, mais do que isto, com a agenda
contemporânea” (VELOSO, 2006, p. 450).
Temos hoje, no Brasil, um sítio arqueológico que é patrimônio da UNESCO
desde 2017 por representar um passado envergonhado, um sítio de memória sensível,
o Cais do Valongo, que é o porto por onde desembarcavam africanos escravizados
no Rio de Janeiro/RJ. Nessa cidade, que celebra há séculos a presença portuguesa,
percebemos que o passado africano é também importante para entendermos quem
somos hoje, e mais do que nunca vital para refletirmos sobre a relevância de bens cul-
turais na contemporaneidade. Trata-se de uma importante mudança de paradigma dos
órgãos de patrimônio mundial têm experimentado. É preciso valorizar memórias, é
preciso perceber também o passado inconveniente, aqueles que são deliberadamente
escondidos e esquecidos.
Aloísio Magalhães, na década de 1980, já alertava sobre a ação do tombamen-
to, que por si só não basta. Todas as ações de preservação patrimonial dependem de
um elenco de outras iniciativas para que possam ser realmente efetivadas. É preciso
criar alternativas que valorizem o patrimônio no cotidiano das pessoas. “É necessário
que ele volte a ser importante, volte a ser usado diária, quotidiana e fortemente pela
comunidade. Primeiro porque assim é que ele vale e, segundo, porque assim é que ele
se conserva” (MAGALHÃES, 1997, p.189).
Dos casarões e igrejas monumentais de características europeias dos primei-
ros séculos da evolução urbana de Belém, aos prédios modernos, pós-modernos, às
moradias de madeira das suas periferias e às palafitas construídas nas beiras dos rios,
além das choupanas que lembram as ocas indígenas, a cidade coleciona uma arquite-
tura digna de se considerar patrimônio cultural. O patrimônio cultural como um ins-
trumento legitimador de identidades tanto pode ser usado para reforçar quanto para
apagar diferentes histórias culturais, muitas vezes relacionadas com os interesses das
classes dominantes.
Os órgãos de proteção e conservação do patrimônio cultural, das três esferas
administrativas, há muito procuram realizar os devidos tombamentos de prédios e

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O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

conjuntos ou complexos de interesse e valor histórico patrimonial, material e ima-


terial em Belém. Mas o que se observa é que o foco maior está na preservação de
prédios e conjuntos arquitetônicos do ecletismo, erguidos nos três primeiros séculos
da fundação da cidade de Belém. Não se nota muita disposição no sentido de buscar
o tombamento da arquitetura moderna do século XX e muito menos de exemplares da
arquitetura vernacular, indígena, cabocla e ribeirinha, que vem atravessando séculos
a expor o saber, a vontade e a possibilidade popular do amazônida.
No entanto, é necessário que haja atenção na busca de um enquadramento da
produção arquitetural popular, das periferias das cidades e das áreas lindeiras dos
rios, do interior da Amazônia - dos quais Belém possui muitos exemplares - por seu
valor cultural que em função das suas peculiaridades, devem ser considerados como
tal. Pois são resultantes ou produtos do senso comum e desse modo, pelas repetidas
vezes que foram usadas e deram certo, passaram a fazer parte da cultura local, e, “há
um número de razões pelas quais tratar o senso comum como um corpo organizado
de pensamento deliberado” (GEERTZ, 2013, p. 79). Para Geertz (1989, p. 20-22),
“a cultura, esse documento de atuação, é, portanto, pública [...], a cultura é pública
porque o significado o é”. “A cultura é o senso comum de um povo” (NORBERG-
-SCHULZ, 1965).
A arquitetura indígena pode ter influenciado a arquitetura espontânea pratica-
da pelo caboclo, o quilombola e o ribeirinho, havendo aí uma carência de investiga-
ção; no entanto, a estrutura adotada nas construções de moradias dos povos indíge-
nas, praticada por significativo número de grupos e etnias, mostra que há uma certa
congruência no modo de usar a madeira e fazê-la trabalhar nessa função de estabilizar
a edificação. Contudo, nos dias atuais se vê que habitação com telhado de cerâmica,
fechamento com madeira e até com alvenaria já é bastante aceita pelas várias etnias,
por influência reversa, lembrando a arquitetura ribeirinha e dos caboclos do centro
(de longe dos rios) (Figura 3).

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Figura 3 - Estrutura de uma habitação indígena

Fonte: Ribeiro et al, 1986, p.94.

As figuras 4 e 5 apresentam imagens bem comuns de habitações ribeirinhas,


nas quais externamente predominam a madeira e a cerâmica, que nos dias atuais, pela
raridade da madeira ou por influências externas, esses materiais estão aos poucos
sendo substituídos pela alvenaria de cerâmica e o fibrocimento. O telhado das unida-
des habitacionais da figura 4 são de telha cerâmica, mas o da figura 5 já é revestido
em telha de fibrocimento. Essas imagens vêm demonstrar que o tradicional, advindo
da sabedoria de nossos ancestrais e há muito praticado como senso comum, que se
tornou cultural, vai aos poucos cedendo lugar ao surgimento de outras alternativas,
antes mesmo que se perceba a importância do bem cultural existente e despercebido
com esse valor.
Figura 4 - Habitações ribeirinhas em madeira com telhado de uma e duas águas

Fonte: Silva e Carvalho, 2010.

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O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

Figura 5: Habitação ribeirinha em madeira com telhado em fibrocimento e de quatro águas

Fonte: Silva e Carvalho, 2010.

Essas imagens são da ilha Murutucu, município de Belém, onde as casas,


como outras tantas ribeirinhas, são construídas em madeira, que é um material abun-
dante na região, por meio da autoconstrução (SILVA, CARVALHO, 2010, p.11). Os
autores destacam ainda, a elevação do nível das casas em relação ao solo - em função
das marés mais altas, que influenciam o nível das águas dos rios da região - evitando
que as edificações sofram alagamentos com as sazonais cheias dos rios.

Todas essas características habitacionais, em especial no que concerne aos


elementos construtivos, provêm da cultura dos moradores, repassada de
forma hereditária, não havendo grandes variações estéticas e funcionais,
independentemente do período em que cada habitação foi construída (id.,
Ibid, p.12).

Dos povos tradicionais existentes, nem todos são classificados dentro do De-
creto de número 6.040 de fevereiro de 2007, que institui a política relativa aos povos
e comunidades tradicionais, no qual cita como sendo tradicionais os povos indígenas
e os quilombolas, embora em seus artigos haja deixa para entender que os ribeirinhos
e outras comunidades, também o são, pois que:

[...] constituírem grupos sociais que ocupam um mesmo território asso-


ciado ao trabalho e a reprodução cultural de suas práticas, seja pelo saber
local impregnado por conhecimentos tradicionais, seja pela relação direta
de alguns setores com os conhecimentos associados à biodiversidade e ao
patrimônio genético[...] (LIMA, 2010, p. 88).

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

A autora faz essa citação em um outro contexto, não se referindo aos povos
ribeirinhos, no entanto, como ela é considerada uma autoridade no tema e tratava de
patrimônio cultural, adotou-se este fragmento do seu texto como sendo relevante para
corroborar com a ideia que se quer passar, pois a autora se referia a outra categoria
das muitas comunidades tradicionais existentes, e para Lima (2010,p. 88), “o patri-
mônio imaterial ou intangível se constitui das culturas tradicionais e populares que na
atualidade passam a expressar o patrimônio cultural”.
Para Mesquita (2017, p.26), no ano de 2009 foram estabelecidos e avaliados
dois instrumentos de proteção e difusão do patrimônio cultural nacional:

[...] as inovações elencadas pela Carta de Nova Olinda no que tange aos
aspectos de difusão e educação trazidos com a implementação de casas
do patrimônio, e a chancela de paisagem cultural (Portaria IPHAN n.
127/2009), que amplia a possibilidade de proteção a partir da valorização
de aspectos da interação humana com o ambiente natural, além de ser base-
ada em pactuações entre comunidade e entes federados.

O autor realizou pesquisa no município de Afuá (Arquipélago do Marajó) no


Pará, publicada em 2017, buscando “abordar a temática de identificação e valoriza-
ção do patrimônio vernacular como objeto empírico” onde aprofunda esta temática
aqui tratada, no sentido de refletir “sobre a devida valoração como patrimônio cul-
tural representativo do processo de ocupação do território brasileiro ” (2017, p. 26).
Assim se observa as habitações construídas pelos próprios ribeirinhos, essas,
fruto das exigências funcionais do cotidiano dos moradores, ou seja, um vestígio
concreto de como os próprios ribeirinhos compreendem a relação entre o espaço
doméstico, a fauna, a flora e o rio (SILVA, CARVALHO, 2010), em uma integração
ambiental, do senso comum, e, portanto, cultural. Refletindo enquanto há tempo,
é preciso valorizar, tornando visíveis essas práticas arquitetônicas e considerar seu
produto como um bem cultural concreto e passível de ser preservado.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste texto, citamos a Terra Preta Arqueológica (TPA), terra, valas
e montes como vestígios arqueológicos invisibilizados no presente. Ela não está so-
zinha, em especial na Amazônia, onde as transformações identificadas na paisagem
também são vestígios de coletivos humanos extremamente complexos que ocupa-
ram um ambiente que, até meados do século XX, era considerado cientificamente
como inóspito para o desenvolvimento de grandes populações. São transformações

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O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

ambientais extremamente sofisticadas; são marcadores paisagísticos e biológicos da


presença humana na floresta Amazônica há milênios (COSTA, 2018), com signifi-
cância científica inquestionável, são vestígios de um passado ainda desconhecido que
simplesmente ocorrem despercebidos do público em geral.
Essa analogia levou à interpretação de que a arquitetura vernacular praticada
pelos ribeirinhos da Amazônia e, de modo particular em Belém, são bens culturais
presentes, concretos, com grande potencial e valor patrimonial, os quais hoje são
invisibilizados e tendem a ir se modificando cada vez mais, até possivelmente se
perder.
Depois que forem substituídas plenamente por outras técnicas e materiais
construtivos e desaparecerem definitivamente das beiras dos rios da Amazônia, a
apreensão, como bem cultural dessas habitações construídas dessa forma, que o tem-
po presente ainda vê, sente, percebe, passará a ter uma importância maior para a
sociedade, pois que os estudos e pesquisas apontarão nesse sentido. Desse modo,
essa reflexão quanto aos bens culturais na cidade de Belém do Pará, com foco mais
contundente naqueles que são tangíveis, mas ficam na invisibilidade para a grande
maioria da sociedade, é mais um alerta para que se dê a devida importância a essa
realidade.
No momento os órgãos responsáveis pelo zelo com o patrimônio, mal têm
condições de alcançar as igrejas dos séculos XVII e XVIII, bem como os casarões
erguidos com a economia da borracha, pela qual passou a cidade de Belém entre
1870 a 1912, período denominado de Belle-Époque local. Pelo modo como agem tais
instituições, mas em função da atenção governamental com a pasta, percebe-se que
ainda vai demorar a chegar nas edificações do modernismo de meados do século XX,
onde arquitetos como Camilo Porto de Oliveira, Jorge Derenji, Alcyr Meira e Milton
Monte, dentre outros, muito contribuíram na produção de arquiteturas dignas de se-
rem consideradas como bens culturais tangíveis e presentes, pelo valor simbólico de
um estilo e época.
Outros bens culturais similares às habitações ribeirinhas, que tem um grande
potencial para serem consideradas bens culturais do tempo presente e pela origem
em um importante passado, são as moradias construídas de madeira nas periferias
da cidade de Belém, as quais são similares às construções ribeirinhas, mas estão em
terra firme.
Em 2020, assistimos à destruição de estátuas históricas em várias partes do
mundo, pois coletivos de hoje as entendem como símbolo de violência e dominação.
Perceber quão intangível nosso passado é, mesmo que continue representado e pre-
servado na forma da cultura material, é um exercício de sensibilidade, de compreen-
são social e histórica. Afinal, o patrimônio cultural é uma representação do que quere-

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CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

mos lembrar, são demandas que mudam com o tempo. Mas essa reflexão se estende,
em sua pretensão, para instigar novas pesquisas no sentido de provocar maior atenção
dos órgãos gestores patrimoniais e da sociedade em geral para que aproveitem a exis-
tência desses e de outros bens culturais. Através desta reflexão, propomos ao leitor
enxergar o invisível que se pode tocar.

REFERÊNCIAS

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tora da Universidade Federal Fluminense, 2008.
BEZERRA, Márcia. “As moedas dos índios”: um estudo de caso sobre os signi-
ficados do patrimônio arqueológico para os moradores da Vila de Joanes, ilha de
Marajó, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas 6,
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COSTA, Diogo Menezes. Arqueologia Patrimonial: o pensar do construir. Habitus,
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COSTA, Diogo Menezes. Eco-historical Archaeology in the Brazilian Amazon:
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land. 2018.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989
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GODOY, Renata de Plano de gestão para o patrimônio arqueológico da Cidade
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GODOY, Renata de. Assessing Heritage Values: Public Archaeology in Brasília.
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GODOY, Renata de. Projeto de Pós-Doutorado - O Público e a Arqueologia: uma
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Belém. 2013.
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uma reflexão sobre os efeitos do turismo em sítios amazônicos, PPGA/UFPA - CA-
PES, Belém. 2014.

118
O TANGÍVEL TAMBÉM PODE SER “INVISÍVEL”: REFLEXÕES ACERCA DE BENS CULTURAIS NA CIDADE DE BELÉM (PA)

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120
PROJETO E LUGAR: peculiaridades locais da
arquitetura em design paramétrico amazônico

Ana Klaudia de Almeida Viana Perdigão1

1. INTRODUÇÃO

A instrumentalização do projeto de arquitetura, via de regra, tem sido explo-


rada por meio de métodos e técnicas que tornam visível a formalização do projeto,
ocultando outra parte menos visível no processo de concepção, que é uma rede de
funções do pensamento que, quando observada, fortalece o processo projetual, ain-
da que seja incipiente na formação do arquiteto. Atualmente, essa parte encontra-se
ainda mais invisível e encoberta pela tecnologia computacional e softwares de repre-
sentação gráfica.
A elaboração do projeto como um processo aleatório, sem método, evita as
evidências de uma complexidade envolvida na concepção arquitetônica, ao contrário
de uma abordagem com ênfase ao espaço da concepção (BOUDON, 2007), a qual
encontra apoio teórico no pensamento sistêmico da Teoria dos Sistemas e da Ciber-
nética pela sua natureza relacional e dinâmica, por meio de um processo cíclico de
tomadas de decisão e não equivocadamente baseadas em etapas lineares, como tem
se apresentado o pensamento cartesiano tradicional.
Nesta direção, arquitetos como Geoffrey Broadbent e seus colegas, desde a
década de 60 do século XX, passaram a difundir novas possibilidades, fundamenta-
das pelo pensamento sistêmico e pela cibernética, ao discutir métodos de projeto que
estimulariam o maior domínio do processo de concepção, com pontos de vistas mais
amplos e flexíveis, admitindo interações e imprevisibilidades no desenvolvimento
projetual. Baseando-se na reflexão da ação, um sistema cibernético estrutura-se por

1
Autora é Arquiteta, Professora Doutora FAU-PPGAU-UFPA, Coordenadora do Laboratório Espaço e
Desenvolvimento Humano – LEDH-UFPA) I Tainá Marçal dos Santos Menezes (Arquiteta e Urbanista,
Doutoranda PPGAU-UFPA) I Ana Carolina Vaz Penafort (Arquiteta e urbanista, Mestre PPGAU-UFPA)
I Danielli de Araújo Felisbino (Arquiteta e Urbanista FAU-UFPA) I Rosineide Trindade da Paixão (Ar-
quiteta e Urbanista, Mestre PPGAU-UFPA)

121
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

meio de interações circulares entre sistemas e/ou subsistemas e, através dos proces-
sos de feedback-loop e autorregulação, busca corrigir possíveis erros por meio da
análise do estado atual e o objetivo do sistema, não obedecendo a uma hierarquia
linear de ações quando visa uma meta ou objetivo (BROADBENT, 1973).
A disseminação de estudos com abordagem didático-metodológica, em com-
plementação aos métodos tradicionais de projetação no campo da arquitetura, per-
mite superar a associação da concepção arquitetônica a processos dinâmicos com
a inclusão de modelos mentais, complementando, com maior profundidade, as
tradicionais práticas que adotam como ponto de partida do projeto a representação
geométrica na arquitetura e modelos figurativos.
Assim sendo, descreve-se o processo de projeto envolvendo o design
paramétrico objetivando-se, por um lado, a diversificação de parâmetros locais com
a inserção das peculiaridades do lugar amazônico, bem como, o levantamento de
questões epistemológicas com a produção de conhecimento envolvendo questões que
vão e vem do objeto ao pensamento projetual.
O Workshop TrapiXe, realizado no ano de 2014 no Programa de pós-gradua-
ção em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará (PPGAU-UFPA),
em parceria com professores e alunos do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Carlos (IAU-USP São Carlos) oportunizou o contato com esse
novo paradigma de pensamento e de prática projetual, com aplicação de conheci-
mentos para propostas de terminais hidroviários fluviais na região amazônica, como
descreve a equipe do Laboratório Espaço e Desenvolvimento Humano da Universi-
dade Federal do Pará (LEDH-UFPA) sobre o processo de concepção do projeto de
arquitetura para o Trapiche Brilhante em Belém (PA).

DESIGN PARAMÉTRICO
2.

O pensamento sistêmico age como principio regulador da complexidade do


processo de projeto arquitetônico (VILLAC, 2010). Assim sendo, o interior da prática
projetual tem revelado métodos de projeto que lidam com elementos mais dinâmicos,
como fluxos, relações e informações (PENAFORT, 2016). As bases epistemológicas
do projeto de arquitetura apontam transformações sem caminho de volta, demandan-
do ao arquiteto algumas revisões no pensamento projetual e nas operações de projeto.
O arquiteto transpõe o contexto a um sistema de relações e significados pas-
sando a tomar decisões a partir da identificação e definição de tais relações ao invés
da busca do repertório formal, o que o leva a soluções pautadas na interação de múl-
tiplas variáveis, ajustando-as e adaptando-as até alcançar a performance desejada,
permitindo maior domínio nas escolhas adotadas (OLIVEIRA, 2010).

122
PROJETO E LUGAR: PECULIARIDADES LOCAIS DA ARQUITETURA EM DESIGN PARAMÉTRICO AMAZÔNICO

O desenvolvimento de um raciocínio projetual sistêmico vem ganhando no-


toriedade pelo uso de ferramentas computacionais, desde a década de 1960 já auxi-
liavam a representação gráfica do projeto, mas a partir da década de 1980 ganharam
protagonismo ao fazer parte do processo de concepção de arquitetos que passaram
a projetar por meio de parâmetros com o auxilio de ferramentas digitais e métodos
generativos.
Os modelos, elaborados a partir de softwares paramétricos, passaram a re-
presentar a integração dos requisitos de projeto através de parâmetros matemáticos,
sendo a forma uma consequência dessas relações. Desta maneira, o uso de softwares
paramétricos na concepção projetual passou a atuar como catalisador desse novo
modo de pensar o projeto de arquitetura, a partir do raciocínio sistêmico, surgindo daí
a definição de processo de projeto paramétrico (PENAFORT, 2016).
Segundo Hensel et. al (2011), o processo de projeto paramétrico consiste
em uma etapa inicial de identificação, interpretação e estabelecimento de relações
entre os elementos que estruturam a concepção arquitetônica a partir de parâme-
tros matemáticos flexíveis às respostas dadas pelos feedbacks. Tais respostas são
constantemente ajustadas e adaptadas à performance desejada, visto que as relações
que integram os sistemas são determinadas pelos parâmetros definidos e suas
variáveis (KOLAREVIC, 2010).
O feedback-loop e a autorregulação, próprios de ações condicionadas por um
pensamento sistêmico, possibilitam regressar às etapas de concepção, organizando-
-as, para que possíveis alterações, comuns diante da complexidade projetual, não
impliquem na elaboração de uma nova proposta, visto que a alteração de um elemen-
to implica na alteração de outros, simultaneamente (OLIVEIRA, 2010; VILLAC,
2010).
A interpretação dos dados ocorre a partir da evidência de relações topológi-
cas, que posteriormente, são integradas às geometrias, euclidianas e não euclidianas
(HENSEL et al., 2010; PENAFORT, 2016), visto que os softwares paramétricos pre-
servam as relações, de natureza topológica, mas a forma, de natureza geométrica,
pode ser ajustada (KOLAREVIC, 2010; PENAFORT, 2016).
Os parâmetros podem ser dimensões, características, dados de localização, de
pessoa, culturais, ambientais, entre outros requisitos de projeto, passíveis de inter-
pretação para serem inseridos na programação por algoritmos matemáticos, que es-
tabelecem pontos de inicio e fim do fluxo, como atratores que definem o percurso da
concepção projetual (HENSEL et al., 2010; KOLAREVIC, 2010). Interligados entre
si, evidenciam o caráter sistêmico do processo, visto que a alteração das variáveis de
um parâmetro corresponde à alteração sistêmica das variáveis dos outros parâmetros
(PENAFORT, 2016).

123
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Desta maneira, observa-se que o processo de projeto paramétrico demanda


uma mudança paradigmática na formação do arquiteto, confirmando a necessidade
de um pensamento projetual baseado na ampliação da representação do espaço no
pensamento projetual, conforme Perdigão e Bruna (2009), incorporando ao aparato
cognitivo e operativo do ser humano, as representações que vão além das geométri-
cas, por meio de relações, princípios e padrões, vivências e experiências humanas
como ponto de partida do projeto.
No design paramétrico, a tradicional representação geométrica do espaço é
substituída por operações complexas, em que o pensamento cartesiano não encontra
apoio, baseando-se em relações pré-estabelecidas, em conhecimentos matemáticos e
geométricos de natureza não euclidiana, uso das ferramentas e softwares paramétricos.
Outra contribuição importante da Cibernética é a Teoria da Conversação, pro-
posta pelo ciberneticista inglês Gordon Pask (1928-1996). Instigado pela maneira
que os sistemas relacionam-se por meio de interações comportamentais, Pask (1969)
propõe uma teoria reflexiva em que “os participantes da conversa” dialogam para que
através de uma interação linguística ocorra troca e/ou compartilhamento de conceitos
a fim de que os conflitos sejam solucionados. Os participantes dessa conversa, os sis-
temas, são organizacionalmente fechados, mas informacionalmente abertos e as tro-
cas de informações constroem uma malha de vínculos a partir das coerências. Na ar-
quitetura esta teoria contribui para uma atividade projetual essencialmente dialógica,
baseada em trocas (PASK, 1969; PASK, 1980 apud PASCHOALIN, 2012).

3.
RUPTURAS PARADIGMÁTICAS NO PROCESSO DE
PROJETO: WORKSHOP TrapiXe

O Workshop TrapiXe foi uma atividade acadêmica realizada pelo Projeto


PROCAD UFPA/USP/UFBA (2011-2015), em abril de 2014, através do intercâmbio
entre professores e alunos dos Programas de pós-graduação em Arquitetura e Urba-
nismo do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – PP-
GAU/IAU-USP e da Universidade Federal do Pará – PPGAU/UFPA, financiado pelo
CNPq, e coordenado pelos professores Marcelo Tramontano (IAU-USP) e Ana Klau-
dia Perdigão (PPGAU/UFPA) com o intuito de produzir exercícios exploratórios de
projeto de terminais públicos para uma futura linha de transporte fluvial interurbano
de passageiros, no bairro da Cidade Velha - Belém (PA), através do uso de programas
computacionais paramétricos (TRAMONTANO, 2014).
De acordo com Tramontanto et. al (2014) três aspectos do uso de programas
paramétricos balizaram a organização do Workshop TrapiXe: a discussão sobre a in-

124
PROJETO E LUGAR: PECULIARIDADES LOCAIS DA ARQUITETURA EM DESIGN PARAMÉTRICO AMAZÔNICO

trodução de formas geométricas complexas no contexto urbano amazônico, até então


pouco discutidas nessa região; a utilização de informações sobre a realidade local
como fornecedoras de parâmetros a serem inseridos na programação computacional;
e a manutenção de possibilidades de seriamento de componentes não-idênticos para
a reprodução de três terminais diferentes a partir de um mesmo sistema inicial, alte-
rando-se apenas parâmetros da programação em função de informações específicas
de cada sítio.
O workshop contou com uma imersão com duração de 12 dias de atividades.
Com três equipes de estudantes de graduação e pós-graduação, foram realizadas visi-
tas técnicas em diversas áreas da orla de Belém para reflexão e discussão. A realidade
de uma região significativa e conflitante da cidade de Belém foi tema de seminários
com especialistas.
Os principais problemas caracterizados no contexto de projeto, a partir das
discussões pertinentes nos seminários dos especialistas, bem como nas visitas técni-
cas às diversas áreas da orla de Belém, em especial a região do antigo Porto do Sal,
na Ilha do Combú e Comunidade Vila da Barca, com entrevistas com moradores,
registradas em vídeo, áudio e fotos, foram naturalmente incorporados e discutidos no
processo de projeto.
Na fase de elaboração da atividade projetual houve uma ampla abordagem
sobre o design paramétrico e capacitação no uso de programas computacionais pa-
ramétricos, como meio de transmitir as especificidades e dinâmicas desse processo,
através de demonstrações contínuas de exemplos de formas geométricas comple-
xas, seus princípios de concepção e produção, entre outras ações, para construção do
pensamento sistêmico e desenvolvimento de habilidades para produção de projeto
de arquitetura com geometrias complexas. Destaque para o uso de uma página no
Facebook para registros e diálogos dos participantes com alternância de interação
entre digital e presencial durante todo o processo (TRAMONTANO ET. AL, 2014;
PENAFORT, 2016), possibilitando o desenvolvimento de uma atividade dialógica,
como propõe a Teoria da Conversação (PASK, 1969; PASK, 1980 apud PASCHOA-
LIN, 2012).
Os estudos produzidos investigaram possíveis traduções, em arquitetura, de
elementos da vida amazônica, como a dinâmica da população ‘urbana’, que dialoga
com os rios e mantém intima relação com o patrimônio vegetal da cidade e das ilhas
circundantes, os quais serviram como parâmetros iniciais para o sistema projetual.
Todos os projetos partiram desse sistema comum parametrizado e foram sendo de-
senvolvidos a partir da inserção de informações específicas do sítio, em que cada
proposta foi implantada, e das decisões de cada equipe, resultando em três projetos
distintos, que ao final do workshop foram apresentados à comunidade acadêmica da

125
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPA (TRAMONTANO ET. AL, 2014). A


equipe do LEDH-UFPA desenvolveu proposta para o Trapiche Brilhante.

4. PROJETO TRAPICHE BRILHANTE

O projeto arquitetônico do Trapiche Brilhante foi elaborado pelas estudan-


tes2 de pós-graduação e de iniciação cientifica, vinculadas ao Laboratório Espaço e
Desenvolvimento Humano – LEDH/UFPA, sob a coordenação da Profa. Dra. Ana
Klaudia Perdigão, e consistiu em solução que buscou atender aos aspectos técnicos e
funcionais de um porto, mas também da fruição, com espaço de lazer, adotando uso
de materiais locais, principalmente a madeira. Até a escolha dos parâmetros locais,
foram exploradas inúmeras possibilidades através do mergulho na dinâmica da re-
gião amazônica, sendo a definição do movimento das águas o parâmetro norteador
da proposta.
O processo de concepção do Trapiche Brilhante teve início com a elaboração
de um croqui que demarcava a localização dos principais pontos turísticos da área, o
Mercado do Sal, as habitações em palafitas vizinhas e os outros dois portos que servi-
ram de sítios para o Trapiche do Carmo e o Trapiche do Sal, desenvolvidos pelas duas
outras equipes, a fim de visualizar os parâmetros iniciais pré-estabelecidos.
A didática realizada incluiu conteúdos ministrados e conteúdos pesquisados
pelos estudantes, os quais passaram a pesquisar diversos tutoriais sobre a utilização dos
softwares grasshoper e rhinocerus, assim como compartilhar as informações na página
do Facebook com base nas descobertas e reflexões, em tempo real, durante o workshop.
A doutoranda do IAU-USP, Cynthia Nojimoto, assessorou constantemente as
equipes para o desenvolvimento das propostas. Inicialmente, o destaque foi dado
à organização dos scripts. Após vários estudos, a equipe considerou os dois portos
comerciais existentes, Brilhante e Palmeraço, assim como a área de estacionamento,
ao lado do mercado do Porto do Sal, a qual se conecta a ambas as entradas de portos,
como os pontos iniciais de atração do projeto, devido à sua forte influência na dinâ-
mica da região. Esses três pontos resultaram em uma malha de influência em duas
dimensões, nos eixos x e y, a qual a equipe sobrepôs a uma imagem, coletada no
Google Earth, sobre a área de estudo, a fim de visualizar como a malha poderia ser
manipulada, observando que a variação numérica nos scripts fazia com que os pontos
mudassem de lugar e de altura. A Figura 1 mostra a postagem feita pela equipe sobre
o desenvolvimento inicial da proposta e a Figura 2 mostra sua evolução.

2
Danielli Felisbino, Tainá Menezes, Jordana Caminha, Rosineide Trindade e Ana Carolina Penafort.

126
PROJETO E LUGAR: PECULIARIDADES LOCAIS DA ARQUITETURA EM DESIGN PARAMÉTRICO AMAZÔNICO

Figuras 1 e 2 – Imagens postadas sobre o avanço projetual da equipe do Trapiche Brilhante.

Fonte: Acervo LEDH

Após a definição dos scripts iniciais, os quais geraram a forma bidimensional,


a equipe inseriu novos scripts, com múltiplos atratores, para atuar diretamente na
forma, transformando-a em tridimensional. A visualização de vídeos que ensinavam
a distribuir os pontos na malha de maneira que gerasse pontos atratores facilitou a
tomada de decisão, que foi priorizar a geração de uma forma que demonstrasse a
atração que o fluxo de pessoas, as palafitas localizadas na proximidade do terreno,
os serviços ofertados, como a bilheteria, e a vazante das águas da Baía do Guajará
exerciam como pontos de segunda ordem.
Por meio de operações que levaram a aproximações entre scripts e espacialida-
des a manipulação culminou em uma forma tridimensional ondulante, o que a equipe
viu como um resultado favorável, visto que um dos objetivos da proposta era demons-
trar a relação que o fluxo das pessoas nessas áreas tem com a movimentação de cheias e
vazantes da maré. A Figura 3 ilustra este momento do desenvolvimento da proposta.
Figura 3 – Espacialidade definida por forma ondulante resultante da modelagem do porto
Brilhante.

Fonte: Acervo LEDH

127
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

A solução formal complexa, gerada no software rhinocerus, foi então ex-


portada para o Sketch Up, levando a equipe ao detalhamento do espaço concebido a
partir da representação gráfica. O professor Marcelo Tramontano sugeriu que a forma
ondulante fosse a cobertura do espaço em concepção, indicando algumas referências
projetuais semelhantes para auxiliar o desenvolvimento da proposta. A partir desses
repertórios e discussões em equipe, buscou-se maneiras de adequar a forma geomé-
trica complexa elaborada aos condicionantes do programa de necessidades de um
trapiche em porto amazônico e às soluções pretendidas. Alguns estudos sobre a estru-
tura de sustentação da cobertura foram desenhados em croquis e depois repassados
para o software Sketch Up, como ilustra as Figuras 4 e 5.

Figuras 4 e 5 – Croquis de estudos da Cobertura (detalhes e sistema construtivo).

Fonte: Elaborado pelas autoras

128
PROJETO E LUGAR: PECULIARIDADES LOCAIS DA ARQUITETURA EM DESIGN PARAMÉTRICO AMAZÔNICO

Após vários estudos para ampliação de repertório e indicações do professor,


a equipe optou por elaborar uma cobertura habitável, que cumprisse o papel de pro-
teção às áreas de espera e embarque de passageiros, mas permitindo também a cir-
culação de pedestres e o uso como lazer, oferecendo pontos de vista totalmente dife-
rentes a partir das diversas alturas das ondulações. Buscou-se também diversificar as
referências para as soluções de detalhes construtivos, sistemas estruturais e materiais
a serem empregados, optando-se por um piso retilíneo, como um longo deck de ma-
deira, em contraponto à forma complexa da cobertura, conectando água e terra firme,
em analogia às estivas existentes na orla.
O resultado final consta de um trapiche com três acessos: dois nas extremida-
des que ligam o usuário à cobertura e o outro na plataforma flutuante. Os materiais
e sistemas construtivos adotados intercalam entre naturais, como a madeira, e indus-
triais, como o concreto, o metal e o asfalto. A circulação descoberta do pavimento
térreo acompanhará o piso retilíneo em madeira do trapiche e o guarda-corpo em
perfil tubular, e a escada, localizada na lateral da área de espera, possibilita o acesso
ao embarque e desembarque dos veículos aquáticos de pequeno porte. Os demais
equipamentos, que compõem a rede de infraestruturas do trapiche, como banheiros,
galeria de serviços e bilheteria ficam dispostos abaixo da cobertura ondular. As Figu-
ras 6, 7 e 8 ilustram a proposta final apresentada.
Figuras 6, 7 e 8 – Projeto Trapiche Brilhante.

Fonte: Tramontano (2014)

O objetivo final da proposta era transformar as formas resultantes em modelos


passíveis de serem fabricadas digitalmente. Não houve tempo hábil para envia-los à
USP de São Carlos para serem produzidos na cortadora a laser, conforme cronograma
inicial, devido às diversas dificuldades encontradas pelas equipes para realização das
propostas nos moldes do processo de projeto paramétrico. Mas ainda sim, manteve-

129
CULTURA, SOCIEDADE E ESPACIALIDADES NA AMAZÔNIA

-se o objetivo de visualizar a forma gerada em formato que pudesse ser fabricado e
montado como uma peça industrial.
A experiência de elaboração do projeto Trapiche Brilhante registrou o primei-
ro contato prático da equipe com o pensamento sistêmico e com o processo de projeto
paramétrico. Inicialmente, houve a dificuldade em lidar com as ferramentas compu-
tacionais paramétricas, assim como a de entender sobre um novo modo de pensar
o projeto de arquitetura, recorrendo-se, em alguns momentos, aos mecanismos do
processo de projeto tradicional, como o uso de croquis e a busca pela solução formal
da proposta, ou seja, em se antecipar uma forma pré-estabelecida, o que anula todo o
processo de concepção paramétrico.
Ao longo do desenvolvimento da atividade projetual, foi sendo construído e
melhor compreendido um novo modo de atuação profissional, através da familiarida-
de da equipe, dia após dia, com o processo cíclico, próprio do pensamento sistêmico,
a entrada e saída de informações que influenciam diretamente o desenvolvimento
da proposta, vistos automaticamente nas alterações nos scripts que modificavam a
solução como um todo, assim como a quebra de paradigma do enfoque aos aspectos
geométricos no processo de concepção ao utilizarem-se de relações espaciais do lu-
gar e entorno como norteadores da forma final.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do Workshop Trapixe em 2014, no PPGAU-UFPA teve grande


relevância em oferecer um ambiente didático-experimental, diferente do tradicional
ensino de projeto, inaugurando novas perspectivas de ensino-aprendizagem por meio
do conhecimento de excelência produzido pelo IAU-USP.
Em sala de aula, a desconstrução do paradigma atual do ensino de projeto,
baseado unicamente em pensamento rígido e formal, passa então a assumir novas
posturas mais adequadas ao contexto da complexidade envolvida entre demanda e
solução de projeto. Contudo, admite-se, a formação do arquiteto fundada em pensa-
mento tradicional, baseado em sistemas euclidianos, mostra-se incompatível com as
ferramentas computacionais associadas à criação arquitetônica com uso de sistemas
abertos, que são próprios do pensamento sistêmico. Por isso, o conteúdo ministrado
no Workshop TrapiXe, mesmo pautado em novos paradigmas do pensamento e da
ação, se mesclou, em parte, à força do pensamento tradicional, e na sua distorção
também, que via de regra leva o projetista ao pretenso controle da forma final.
Pelo exposto, destaca-se a importância das tecnologias no ensino de projeto e
escolha por uma didática híbrida entre o novo e o tradicional como uma oportunidade

130
PROJETO E LUGAR: PECULIARIDADES LOCAIS DA ARQUITETURA EM DESIGN PARAMÉTRICO AMAZÔNICO

para contribuir com a revisão do ensino de projeto, considerando as crises nos para-
digmas vigentes. Para tanto, é necessário enfrentar a crise com atenção à complexi-
dade e à profundidade da cultura arquitetônica construída por milênios, assumindo a
medida de como as tecnologias entram no processo, admitindo que seja catalizadoras
de um pensamento sistêmico, pois ofereceram a possibilidade de operacionalizá-lo
dentro do escopo de projeto, o que cria diversas possibilidades pedagógicas, novas
práticas e espacialidades no ofício da profissão.
Embora o que tenha sido desenvolvido no workshop não tenha sido puramen-
te um projeto paramétrico, de acordo com o que determina a bibliografia, a prática
de ações próprias do pensamento tradicional em um processo paramétrico fez com
que os participantes refletissem criticamente a respeito e gerassem possibilidades de
construção de um pensamento sistêmico e mesmo de mudanças dos paradigmas de
pensamento, ensino e prática atuais.
Do ponto de vista educacional, contribuiu com o desenvolvimento de habilida-
des cognitivas baseadas no pensamento sistêmico e construção de uma autonomia de
pensamento crítico, segundo Panet Barros (2013), “com a aceitação da complexidade
e incompletude das soluções e com posturas que questionem as visões reducionistas,
verdadeiras e fragmentadas dos problemas” e com a criação de bases propícias para a
experimentação: preparação anterior do aluno para que este saiba o que deve buscar
e observar.

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