Você está na página 1de 5

JUVENTUDE / YOUTH

Maputo, 4 de Maio, 2020 Número 1 Português I www.cddmoz.

Créditos: O País

Casamentos Prematuros e a Lei:


uma Coabitação Inaceitável

E
m Julho de 2019, o Parlamento Moçambica- da Criança, que claramente proíbem e criminalizam
no aprovou a Lei de Prevenção e Combate às actividades sexuais com menores, esta lei, se não for
Uniões Prematuras, aumentando as esperan- aplicada, fará muito pouco para proteger e resgatar
ças de que o país esteja a caminho de erradicar as as raparigas de casamentos prematuros1.
uniões prematuras. No entanto, assim como outras De acordo com a lei moçambicana, a actividade se-
leis aprovadas, como o Código Penal, a Lei da Famí- xual com um(a) menor de idade, definida como qual-
lia e a Lei para a Promoção e Protecção dos Direitos quer pessoa com menos de 18 anos, é um crime e é

1
Para permitir uma melhor compreensão por parte de muitos leitores, preferimos usar a expres-
são “casamento prematuro” em detrimento de “união prematura” por constituir uma expres-
são padrão internacionalmente aceite e mais usada no nosso contexto nacional.
Créditos: DW
punida com prisão e multas. Embora a Lei da Família qualquer promessa de casamento feita por um(a) me-
de 2004 tenha previsto o casamento de menores aci- nor (número 2, do artigo 21) e qualquer casamento
ma de 16 anos, quando existirem circunstâncias ex- que envolva um(a) menor, com excepção do que está
cepcionais e conhecidas de interesse público e fami- previsto acima (na alínea a) do artigo 32). Com base
liar, e quando haver consentimento dos pais (número na Lei Modelo da SADC sobre Erradicação dos Ca-
2 do artigo 30), o mesmo artigo anula, enfaticamente, samentos Prematuros e Protecção da Criança em Ca-
qualquer casamento que envolva menores de idade, samento”, a Lei de Prevenção e Combate às Uniões
por qualquer motivo que não sejam as excepções Prematuras é o documento legal específico e robusto
mencionadas acima (alínea a) do número 1 do arti- que o país possui, o qual promete desencadear gol-
go 30). Na verdade, o artigo 19, da mesma lei, anula pes decisivos contra os casamentos prematuros.
qualquer promessa de casamento feita por qualquer As leis anteriores à Lei de Prevenção e Combate
pessoa com menos de 18 anos de idade. Por sua vez, às Uniões Prematuras tinham o poder de prevenir e
o Código Penal não abre espaço para o casamento combater os casamentos prematuros, não obstante,
com menores de 16 anos, pois o seu artigo 220 pune as evidências do seu impacto são, na melhor das hi-
a quem cometer qualquer acto sexual com um(a) me- póteses, frágeis. Segundo o Índice Demográfico e
nor de 16 anos, com ou sem o seu consentimento. de Saúde de 2011 (IDS 2011), publicado em 2013,
O país tomou medidas para melhorar o ambiente 14% das raparigas casadas entre os 20 e os 24 anos
legal e adoptou estratégias para travar uma guerra vi- casaram-se antes dos 15 anos e 48% das raparigas
toriosa contra os casamentos prematuros. Em seu sé- casaram-se antes dos 18 anos, colocando Moçambi-
timo capítulo sobre crimes contra a liberdade sexual, que na 10ª posição entre os países com a maior taxa
o novo Código Penal, aprovado em 2014, chamou de casamentos prematuros no mundo. Segundo os
atenção à protecção de menores contra o abuso se- dados da Pesquisa de Imunização, Malária e HIV/
xual, práticas e crimes modernos, como a pornografia SIDA de 2015 (IMASIDA 2015) em Moçambique,
(artigo 226). Em 2015, o Conselho de Ministros apro- publicada em 2018, os casamentos prematuros es-
vou a “Estratégia Nacional de Prevenção e Combate tão a aumentar. 12,9% das raparigas entre os 15 e
ao Casamento Prematuro” para o período de 2016- 19 anos casaram-se antes dos 15 anos e 52,9% das
2019. A Lei da Família de 2019 manteu a nulidade de raparigas entre os 20 e 24 anos casaram-se antes dos

2 Juventude / Youth I www.cddmoz.org


18 anos de idade. O Censo Populacional de 2017, Moiane, uma adolescente de 16 anos que escapou
em Moçambique, revelou que, no seu todo 4,04% das algemas do casamento prematuro, em Janeiro
das raparigas entre os 12 e 14 anos eram casadas de 2020, mencionou 27 nomes de raparigas com
ou tinham estado em casamento; 40,98% das rapa- menos de 18 anos, e até mesmo com 14 anos, com
rigas entre os 15 e 19 anos eram casadas ou tinham as quais costumava ir à escola e brincar, em Nhanale,
estado em casamento e 74,54% das raparigas entre que, desde 2018, viveram alguma forma de vida ma-
os 20 e 24 anos eram casadas ou tinham estado em trimonial. Numa entrevista telefónica para este artigo,
casamento. funcionários-chave do Estado em Nhanale, incluindo
Dados desagregados, por área de residência, mos- o chefe da Polícia, o director da Escola Primária, e o
tram que o casamento prematuro é maior nas áreas chefe da localidade, descreveram os casamentos pre-
rurais, onde 5% das raparigas dos 12 a 14 anos eram maturos e a gravidez na adolescência como o maior
casadas ou tinham estado em casamento; 49,13% desafio ao empoderamento da rapariga em Nhanale.
das raparigas dos 15 a 19 anos eram casadas ou ti- O chefe da localidade realizou um estudo, ainda não
nham estado em casamento, e 82,43% das raparigas publicado, sobre os casamentos prematuros em Nha-
dos 20 a 24 anos eram casadas ou tinham estado em nale, como parte do seu projecto final de Licenciatu-
casamento. ra. Segundo ele, 17 adolescentes não regressaram ao
Igualmente, evidências anedóticas e dados de co- novo ano lectivo em 2019 e 2020, após as férias do
munidades locais sustentam a tendência crescente final de ano, devido aos casamentos prematuros. Os
dos casamentos prematuros no país. Nhanale, a maior dados do PE1 e PE2 local, que também albergam um
comunidade de Chigubo, um dos dois distritos com programa de ensino secundário à distância, desde
as maiores taxas de casamentos prematuros em Gaza 2017, mostram o seguinte número de raparigas, com
(Arnaldo et al., 2016), tem vários casos de casamen- menos de 18 anos, que não regressaram para o novo
tos prematuros e a tendência está a aumentar. Neusa ano lectivo desde 2015.

2015 2016 2017 2018 2019

3 2 4 6 5
Falando de Xai-Xai, onde actualmente reside, antigo quanto a sua cultura. Nisto, lutar de cabeça
Neusa questionou o porquê dos polícias afectos erguida contra esta prática pode gerar inimigos.
em Nhanale não prenderem todos os adultos que É necessária, portanto, uma nova abordagem
dão e recebem menores em casamento. Em Nha- para uma guerra vitoriosa contra os casamentos
nale e, certamente, na maioria das comunidades prematuros. Trata-se de uma abordagem que deve
em todo o país, as leis contra o casamento prema- estar centrada na mudança de valores e atitudes
turo não são aplicadas e isto explica a tendência sociais pró-casamentos prematuros a partir das
crescente dos casamentos prematuros, apesar da crianças e do jovem. A nova abordagem deve pro-
existência de leis contra esta prática. teger meninos e meninas adolescentes de valores
Sabendo que o casamento prematuro é um crime e atitudes pró-casamentos prematuros e equipá-
público, nós, como a Neusa, podemos questionar -los de valores e atitudes demasiado fortes para
por que estes funcionários do Estado, por exemplo, tolerar os casamentos prematuros. O país precisa
não denunciam aos órgãos de justiça todos e os de uma nova geração de líderes transformacionais
muitos casos de casamentos prematuros que acon- cujos valores e atitudes são suficientemente fortes
tecem sob o seu olhar. Será que o seu desejo de para vencer o medo de perturbar o status quo da
combater os casamentos prematuros é mais fraco sociedade, em busca da justiça social para todos.
do que o medo de perturbar o status quo da socie- O casamento prematuro e a lei contra esta prática
dade? Afinal, o casamento prematuro afigura-se tão não devem coabitar!

Juventude / Youth I www.cddmoz.org 3


Referências

ARNALDO, C., et al., (2016). Casamentos Prematuros em Moçambique: Que distritos estão mais afectados?
Disponível em: https://cepsamoz.org/casamentos-prematuros-que-distritos-estao-mais-afetados/
Lei n.º 22/2019. Lei da Família. (Publicada a 11 de Dezembro de 2019). Boletim da República, I Série – Nú-
mero 239. (Quarta-feira, 11 de Dezembro de 2019)
Lei n.º 19/2019. Lei de Prevenção e Combate às Uniões Prematuras. (Publicada a 22 de Outubro de 2019).
Boletim da República, I Série – 203 (Terça-feira, 22 de Outubro de 2019).
Lei n.º 35/2014. Lei da Revisão do Código Penal. (31 de Dezembro de 2014). Boletim da República, I Série
– Número 105. (Quarta-feira, 31 de Dezembro de 2014)
Lei n.º 10/2004. Lei da Família. (25 de Agosto de 2004). Boletim da República, I Série – Número 34. (Quar-
ta-feira, 25 de Agosto de 2004)
Ministério da Saúde & Instituto Nacional de Estatística (2018). Inquérito de Indicadores de Imunização,
Malária e HIV/SIDA em Moçambique (IMASIDA) 2015. Disponível em: https://dhsprogram.com/publications/
publication-ais12-ais-final-reports.cfm
Estratégia Nacional De Prevenção e Combate aos Casamentos Prematuros em Moçambique (2016-2019)
(publicado em 2015). Disponível em: https://www.unicef.org/mozambique/relatorios/estrat%C3%A9gia-na-
cional-de-preven%C3%A7%C3%A3o-e-combate-dos-casamentos-prematuros-em-mo%C3%A7ambique
Instituto Nacional de Estatística & Ministério da Saúde (2013). Inquérito Demográfico e de Saúde de 2011.
Disponível em: http://www.ine.gov.mz/operacoes-estatisticas/inqueritos/inquerito-demografico-e-de-saude

4 Juventude / Youth I www.cddmoz.org


Créditos: Global Voices
INFORMAÇÃO EDITORIAL

Propriedade: CDD – Centro para a Democracia e Desenvolvimento


Director: Prof. Adriano Nuvunga
Editor: Emídio Beula
Autor: CDD

Equipa Técnica: Emídio Beula , Agostinho Machava, Ilídio Nhantumbo, Isabel Macamo, Julião Matsinhe, Janato Jr.
e Ligia Nkavando
Layout: CDD

Contacto:
CDD_moz
Rua Eça de Queiroz, nº 45, Bairro da Coop, Cidade de Maputo - Moçambique
E-mail: info@cddmoz.org
Telefone: 21 41 83 36
Website: http://www.cddmoz.org

PARCEIRO PROGRAMÁTICO PARCEIROS DE FINANCIAMENTO

Comissão Episcopal de Justiça


e Paz, Igreja Católica

Você também pode gostar