Você está na página 1de 4

Ref.

Resposta da RELE-CIDH à consulta formulada por parlamentares brasileiros sobre o PL


2630/2020

Excelentíssimos Senhores Deputados,

Em 23 de Março de 2022, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão


Interamericana de Direitos Humanos (RELE-CIDH) recebeu uma comunicação firmada pelos deputados
federais Paulo Gomes, Tiago Mitraud, Vitor Lippi, Kim Kataguri, Rodrigo Coelho e Emidinho Madeira. Nela,
as autoridades parlamentárias requereram desta Relatoria o seguinte:

1. Ante a iminente votação do PL 2630/2020, a Lei Brasileira de Liberdade,


Responsabilidade e Transparência na Internet, solicitamos ao Sr. Pedro Vaca Villareal,
Relator Especial de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH), nos brinde com sua opinião sobre o impacto que o PL 2630/2020 poderá
ter sobre os direitos fundamentais de liberdade de expressão, pensamento e acesso à
informação no marco do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
2. Pela relevância do tema e em atenção aos “standards interamericanos para uma
internet livre, aberta e inclusiva” editados pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), vimos respeitosamente
solicitar um posicionamento sobre a propositura e sua compatibilidade aos direitos
humanos e aos princípios elencados na Carta da Organização dos Estados Americanos,
ratificada no Protocolo de Buenos Aires e seguintes.

Incialmente, a Relatoria agradece e valora positivamente à disposição de autoridades do Poder


Legislativo brasileiro para receber a opinião técnica deste Escritório que, entre outros, tem o mandato de
monitorar e estimular os estândares sobre Liberdade de Expressão nas Américas e entabular um diálogo
constante com Estados para contribuir com que suas normativas internas estejam de acordo com os
estândares emanados da Declaração Americana de Direitos Humanos e da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos.

Este Escritório tem acompanhado com atenção a tramitação do Projeto de Lei 2630/2020 desde seu
início. Muitas dessas preocupações foram endereçadas nas tramitações legislativas que se seguiram, em
especial no seio da Câmara dos Deputados. A Relatoria congratula a criação do Grupo de Trabalho que
visa ao aperfeiçoamento da legislação Brasileira referente à Liberdade, Responsabilidade e Transparência
na Internet (GTNET) e as amplas jornadas de audiência pública levadas a cabo no seio deste Grupo de
Trabalho e que contaram com a participação de múltiplas partes interessadas, inclusive da RELE.

A Relatoria avalia que os pareceres substitutivos do Grupo de Trabalho e do seu relator (i) detalharam
mecanismos de transparência e rendição de contas, (ii) preocuparamu-se com o devido processo legal na
moderação de conteúdos e (iii) limitaram propostas que alavancariam a rastreabilidade de conteúdos
produzidos por pessoas usuárias (em especial em aplicativos de mensageria). A atual versão do texto
também detalha a figura do representante legal das plataformas abrangidas pelo PL e que devem estar
presentes no país, o que pode facilitar a cooperação judicial e a criação de mecanismos de cooperação
entre plataformas e autoridades públicas no combate à desinformação deliberada e aos discursos
proibidos pelo art. 13.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ainda que alguns desses temas
possam apresentar desafios em sua implementação, a Relatoría adverte que, de maneira geral, foram
resultados de debates multisetoriais detalhados e aprofundados.

Em contraste, persistem pontos do projeto que mereceriam a reavaliação de sua inclusão por parte
da Câmara dos Deputados, especialmente porque este Escritório nota que se referem a artigos que não
contaram com um nível de discussão equivalente aos mencionados. Entre eles, os que se referem à
remuneração da atividade jornalística, a imunidades parlamentares, à regulação de cruzamento de dados
com fins publicitários e à alteração do art. 15 do Marco Civil da Internet.

Em primeiro lugar, este Escritório observou a inclusão do atual artigo 38 do parecer substitutivo. O
artigo teria o objetivo de garantir a remuneração às empresas jornalísticas pelos seus direitos de autor,
quando tais conteúdos sejam utilizados pelos provedores. A RELE reconhece a importância da
remuneração jornalística, a fim de que se garanta a sustentabilidade da profissão. O jornalismo
profissional vive momento crítico, tanto por razões de seguridade econômica, em um panorama que situa
o horizonte da imprensa entre sua sobrevivência, extinção ou captura. Além disso, a CIDH reiterou em
distintas oportunidades que a proteção do direito do autor tem um objetivo legítimo. No entanto, como
a CIDH também já assinalou que “é importante repensar nesses momentos o papel que cumpre na
internet a proteção do direito do autor e a eficácia desses regimes na concretização de seus objetivos
legítimos” (OEA/Ser.L/V/II CIDH/RELE/INF.17/17, parr. 114).

Por essas razões, ainda que se possa valorizar os esforços de incluir e, na última versão do parecer
substitutivo, especificar e detalhar o tema – com a alegada justificativa de fornecer garantias de
sustentabilidade econômica da profissão –, a remuneração jornalística merece debate mais aprofundado.
Prova disso é que a própria proposta atual menciona que a remuneração será acordo com regulamentado
por decreto. Ainda, a RELE foi informada de que que este tema não foi debatido com a profundidade
merecida nas mesas de trabalho e jornadas de audiência pública levadas à cabo no GTNET . Dada a
transcendência democrática deste desafio e sua grande importância para o futuro do jornalismo, a critério
desta Relatoria seria bem-vinda uma proposta legislativa formal, que regulasse a matéria de forma mais
extensa e detalhada, adequada e completa, com discussão profunda mediada pela participação de
jornalistas e distintas partes interessadas.

Em segundo lugar, a Relatoria valora o esforço legislativo para identificar as contas com atuação sobre
poder público, de forma a lhes conferindoprincípios e mecanismos específicos para sua manutenção e
para a moderação de seus conteúdos. Isso incluiria os princípios da Administração Pública e o dever de as
plataformas disponibilizarem ampla e publicamente as razões e fundamentos pela qual determinado
conteúdo foi restringido. Também é ponto de destaque a proibição de que contas consideradas de
atuação de poder público bloqueiem outros usuários, o que garantiria o direito de acesso à informação.

A fim de se tenha um modelo coeso e de fácil compreensão para essas contas, a RELE convida as
autoridades parlamentárias a avaliarem a redação atual do capítulo IV do projeto de lei, com o intuito de que:
(i) a aplicação dos distintos termos para se referir à agentes públicos – incluindo “servidores”, “agentes
políticos”, ocupantes de “cargos públicos” – seja cautelosa, deliberada e intencional, unificando-se termos
quando possível; (ii) seja especificado, tendo em vista a atual redação do art. 22, se há contas
automaticamente consideradas como de interesse público ou se toda conta que seria considerada de
interesse público deve ser indicada pelas pessoas e entidades mencionadas no próprio artigo; (iii) seja
revisado se somente agentes políticos devem se submeter ao procedimento descrito no art. 22, §5º ou se ele
se aplica também a outros agentes públicos mencionados no caput do art. 22.

No entanto, chama a atenção desta Relatoria a atual redação do art. 22, §7º do Projeto – segundo o
qual “a imunidade parlamentar material estende-se às plataformas mantidas pelos provedores de
aplicação de redes sociais”. A proposta legislativa não especifica os efeitos que essa interpretação sobre
a imunidade parlamentar poderia ter sobre a moderação de conteúdo online. Ainda que os discursos
sobre temas políticos são considerados especialmente protegidos no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos, a Convenção também estabelece discursos que não devem ser permitidos.
Por exemplo, são discursos proibidos pelo art. 13.5 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos
toda “propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que
constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”, um estândar que deve ser
interpretado de acordo com o recente Plano de Ação de Rabat das Nações Unidas. Outros discursos não
protegidos, identificado pela CIDH no Marco Jurídico Interamericano sobre a Liberdade de Expressão, são a
incitação direta e pública ao genocídio e a pornografia infantil.

Dessa forma, não se deveria obrigar as plataformas a se absterem de eliminar conteúdo à toda
evidência ilegal ou violador direitos humanos, sob o argumento de se garantir a liberdade de expressão
ou da imunidade parlamentar. No recente caso Barboza de Souza e Outros vs. Brasil (Série C, n.º 435), a
Corte Interamericana de Direitos Humanos reiterou que as imunidades parlamentares exercem
importantes garantias no exercício autônomo do mandato para o qual o parlamentar foi eleito
democraticamente, mas que elas devem ser ponderadas com outros interesses e direitos também
protegidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Em terceiro lugar, esta Relatoria foi reportada por distintas entidades sobre a possível limitação
excessiva ao modelo de negócio de plataformas digitais e de empresas brasileiras. Especificamente, isso
resultaria de propostas de proibição de cruzamento de bancos de dados pessoais dos serviços dos
provedores com os de serviços prestados por terceiros, quando tiverem como objetivo exclusivo a
exploração direta e indireta no mercado em que atua ou em outros mercados. Este escritório observa que
a versão mais recente do parecer substitutivo não proíbe tal cruzamento, senão o condiciona à
observância da Lei Geral de Proteção de Dados do Brasil.

Essa discussão reforça a relação intrínseca entre a proteção de dados e o exercício da liberdade de
expressão online. A economia da atenção é um desafio em matéria de direitos humanos em sociedades
democráticas, que lutam contra a deterioração do espaço cívico e do debate público. No entanto, nada
disso deixa de reconhecer que, de forma geral, o uso de dados pessoais com fins publicitários é permitido
nos distintos sistemas legais, que é parte considerável do modelo de negócios online e que, quando feito
de forma adequada e de acordo com princípios de proteção de dados, o modelo poder até mesmo
fomentar o acesso de pessoas usuárias à conteúdos diversos e plurais. A RELE considera que esta
discussão faz parte de um difícil ponto de equilíbrio, no qual devem estar incluídas (i) as salvaguardas à
proteção de dados pessoais; (ii)a apropriação por parte das pessoas usuárias de seus direitos e controle
de utilização dados pessoais; e (iii) o cuidado para que nenhuma medida seja desproporcional e, ao final,
afete o funcionamento da internet, o seu potencial inovador e as distintas operações online legítimas
levadas a cabo pela cidadania. Parte do debate sobre a busca por este ponto de equilíbrio foi refletido no
Guia para Garantir a Liberdade de Expressão frente a Desinformação Deliberada em Contexto Eleitoral
(OEA/Ser.G CP/CAJP/INF.652/19), da CIDH e sua RELE.

Em quarto lugar, a Relatoria observa que o parecer substitutivo propõe uma reforma ao art. 15 do
Marco Civil da Internet, de maneira que os provedores sejam “obrigados manter os respectivos registros
de acesso a aplicações de internet, inclusive os registros que individualizem o usuário de um endereço IP
de maneira inequívoca, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de um (um) ano,
nos termos do regulamento”. Atualmente, de acordo com a redação vigente do Marco Civil, os provedores
devem manter apenas os registros de acesso a aplicações, sem obrigatoriedade de individualização das
pessoas usuárias pelo endereço IP, e tal registro deve ser feito somente pelo prazo de seis meses.

Em outras oportunidades, a RELE já expressou que “o Marco Civil da Internet do Brasil, adotado em
2014 depois de distintas rodadas de debates no Congresso Nacional, representa um símbolo do avanço
de marcos regulatórios protetores do direito à liberdade de expressão e à privacidade na internet, tanto
nas Américas como no mundo” (CP R237/21). Por sua vez, a CIDH também já expressou sua preocupação
pelos riscos de utilização da direção única de Protocolo de Internet (IP), que permite identificar um
dispositivo específico e até mesmo rastreá-lo, em mecanismos de vigilância individualizada, muitas vezes
amparados em processos penais ou investigações (OEA/Ser.L/V/II CIDH/RELE/INF.17/17, parr. 210).

A RELE convida as autoridades parlamentárias a avaliar sempre os possíveis impactos da


determinação de guarda de IP no exercício da liberdade de expressão e a considerar a pertinência de se
alterar o Marco Civil da Internet nesse ponto, amplamente debatido quando da adoção do Marco.
Novamente, a transcendência da regulação desse tema impõe debates específicos sobre a necessidade
de reforma ou não do art. 15 do Marco Civil da Internet e sua extensão.

A Relatoria também aproveita esta oportunidade para advertir que as medidas que limitam a
liberdade de expressão online devem estar submetidas a um “estrito juízo de proporcionalidade e estar
cuidadosamente desenhada e claramente limitadas de forma tal que não alcance a discursos legítimos
que merecem proteção” (OEA/Ser.L/V/II CIDH/RELE/INF.17/17, parr. 88). A Relatoria nota que, além de
outras sanções penais, administrativas e civis conforme a Lei, o parecer substitutivo propõe as seguintes
sanções contra plataformas, conforme teste de razoabilidade de proporcionalidade: (i) advertência, com
prazo para adoção de medidas corretivas de até 30 (trinta) dias; (ii) multa de até 10% (dez por cento) do
faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício ou, ausente o faturamento, multa de
R$ 10,00 (dez reais) até R$ 1.000 (mil reais) por usuário cadastrado do provedor sancionado; (iii)
suspensão temporária das atividades; ou (iv) proibição de exercício das atividades. É importante que a
necessidade de proporcionalidade da sanção seja reforçada sempre, pois o principal incentivo das
empresas intermediarias na moderação de conteúdo é não ser sancionada. Esse incentivo pode controlar
controla suas ações, ora incentivando a restrição de circulação de conteúdo legítimo, ora incentivando
com que inclusive deixem de dar baixa a conteúdos que, a todas as luzes, poderiam enquadrar-se em
discursos proibidos pelo direito internacional dos direitos humanos. Esse fenômeno foi identificado não
só pela CIDH, como também pela Relatora Especial das Nações Unidas sobre a promoção e proteção do
direito à liberdade de opinião e expressão (A/HRC/47/25, parr. 58).

Finalmente, a Relatoria reitera alguma das reflexões apresentadas durante o ciclo de audiências
públicas no GTNET e que se revelam importantes no momento de votação a que se chega: (i) não se deve
adotar medidas legislativas sobre a internet baseadas em excessos regulatórios, pois o art. 13 da
Convenção Americana exige que toda normativa que possa restringir o exercício da Liberdade de
expressão atenda simultaneamente não só aos critérios de legalidade, como também de atendimento a
um fim legítimo, necessidade em sociedade democrática e proporcionalidade da medida. Nesse marco, o
direito penal é medida de ultima ratio e a “penalização de qualquer tipo de expressão só pode ser aplicada
em circunstâncias excepcionais, nas quais exista uma ameaça evidente e direta de violência anárquica”
(OEA/Ser.L/V/II CIDH/RELE/INF. 2/09, parr. 114); (ii) não se pode depositar uma fé-cega nos modelos de
autorregulação e a transparência das plataformas resulta crucial para que as melhores soluções
normativas continuem sendo tomadas, baseadas no respeito ao princípio da neutralidade da rede e para
a manutenção do desenvolvimento e funcionamento da internet de acordo com todo seu potencial de
inovação; (iii) recomenda-se tomar distância de soluções intuitivas, muitas vezes tomadas em um espírito
de urgência. Os debates multisetoriais sempre permitirão que se adotem soluções normativas que
estejam mais adequadas com as complexidades da internet e que não sejam herméticos, para que se
atualizem conforme as inovações da rede.

Você também pode gostar