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Artigo original
Efraime Nhabanga
Escola Superior de Ciências do Desporto, Universidade Eduardo Mondlane (UEM),
Moçambique
RESUMO: Tendo como pressuposto orientador o postulado da antropologia da diversidade cultural, este artigo tem
a valência de reiterar a ideia de educação como um processo complexo, presente nas várias manifestações humanas.
Desta feita, a partir da análise das manifestações desportivas, expõe-se um conjunto de elementos que mostram o
quão a prática do desporto pode implicar todo um processo de socialização, educação dos corpos. A concepção deste
artigo, que é de carácter exploratório, foi com base na revisão bibliográfica de dois tipos de literatura. Uma primeira
literatura que propõe analisar a prática do desporto. E uma segunda, de carácter antropológico, que desafia-se a
problematizar o corpo como objecto de socialização. O contacto com esta literatura possibilitou estabelecer uma
relação entre o desporto e os processos de educação dos corpos. Ao se estabelecer esta relação constatou-se que,
dado ao seu carácter processual, a educação ocorre em todos grupos humanos, em todas as relações sociais. Assim, a
prática do desporto é uma relação social que implica determinada postura, técnica, significados e representações
sociais relacionadas com os corpos dos indivíduos que praticam as mais diversas manifestações desportivas. Como
pode-se entender, o desporto é um contexto cultural que pensa e socializa os corpos de forma a atenderem as lógicas
do desporto.
Palavras-Chave: Corpo, Desporto e Contexto, Educação.
instrumentos para trabalhar o corpo, polícia, é uma arte que adquire-se, suas técnicas, por
algemias, […]” (p. 232). Desta feita, fica meio de repetições” (p. 214). Neste sentido,
explícito neste autor o porquê da existência um determinado acto (do corpo) pode ter
da lei. A lei visa educar os corpos, valores diferentes dependendo do contexto
actividade que é desenvolvida através de porque em cada grupo social há educação de
instituições como polícia, igreja, escola ou movimentos específicos para seu posterior
qualquer grupo humano pois, sempre emprego (uso) facto que pode implicar uma
verifica-se lógicas relativas ao corpo. transformação completa da técnica. Esta
forma de pensar relações sociais a partir do
Nesta ordem de ideias enquadra-se a ideia de
corpo, pode ajudar a pensar contextos sociais
conceber o corpo como um elemento com
em que um determinado grupo de actores
inscrições simultaneamente sociais e
sociais, dedica-se a prática de manifestações
individuais. Por via disso, “os homens têm
desportivas.
sempre uma maneira de servir-se por isso,
recorrem aos seus corpos usando desta Estas manifestações desportivas são
forma as técnicas corporais que implicam a transmitidas de uma geração à outra. Ideia
socialização dos indivíduos” (MAUSS 1934: similar é defendida por De Almeida et al.
211). (2010, p. 68) ao referir que “as corridas
transmitem a noção de elo entre os mundos
Este pressuposto ajuda a justificar o
físico e espiritual, ao mesmo tempo, fazem
entendimento que se tem, segundo o qual o
parte da cosmologia das sociedades
desporto constitui uma das manifestações
indígenas e são transmitidas dos mais velhos
humanas que possibilita analisar os
aos mais novos’.
processos de educação dos corpos. Penso
nesta associação entre desporto e educação Nesta lógica, os professores de educação
dos corpos por entender o desporto como física, por serem um dos autores
uma prática social que instrui os actores responsáveis por essa passagem de
sociais, desde as suas mais diversas posturas, testemunho dos mais velhos aos mais novos,
técnicas do corpo, modos de usar os são vistos como indivíduos incumbidos de
membros superiores e inferiores, corrigir práticas corporais. Por isso são
ornamentação do corpo, modos de dançar e actores no processo de educação dos corpos
outras manifestações que podem ser uma vez que, ordenam o corpo, fazem o
experienciadas no contexto da prática do corpo de alguém, assim como dizem quais
desporto. são os movimentos correctos em torno de
uma determinada prática cultural
Educação dos Corpos no Desporto
(BOURDIEU, 1988, p. 160).
As ciências sociais têm uma tradição de
Por sua vez, Focault (1995) ao analisar a
interesse em analisar problemáticas relativas
problemática da educação dos corpos, faz
ao corpo. O interesse de alguns clássicos das
uma distinção entre corpos que acatam a
ciências sociais nesta matéria é um dos
educação que lhes é transmitida e os que não
indicadores desse pressuposto. São exemplos
acatam. Esta distinção faz com que conceba-
os interesses de Mauss (1934), Focault
se os primeiros “corpos como sendo dóceis e
(1995) e Bourdieu (1988) em analisar o
úteis”. Corpo que pode ser sujeito, usado,
corpo como elemento que possibilita
transformado e melhorado, porque o corpo
compreender relações sociais diversas.
foi sempre objecto de investimento
Mauss (1934,) entende que “o uso do corpo
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Desporto como meio de educação dos corpos
imperioso e pressão em todas sociedades Almeida et al. (2010, p. 70) defende que,
(FOCAULT, 1995, p. 136). “[…], compreende-se o treinamento como
uma forma de manipulação regrada ou
Esta ideia de corpos doceis pode ser
intencional sobre o corpo…”.
analisada no desporto a partir do momento
que discute-se as motivações para a prática Este aspecto dá a entender que o desporto é
do desporto, nestas motivações consta a uma cultura e as suas divisões constituem
necessidade de cuidar da imagem, o que leva subculturas. Por isso, no desporto de
com que rendimento observa lógicas próprias do
[...] mulheres e jovens pratiquem, cada corpo, que dizem respeito a um treinamento
vez mais, actividades físico- específico do corpo.
desportivas. Neste tipo de práticas,
verifica-se o culto do corpo, as
Uma outra pertinência desta discussão
motivações de natureza estética e busca relativa à educação dos corpos por meio do
de melhor saúde, constituem os desporto reside no facto de possibilitar
principais motivos de realização destas analisar a história de um determinado país e,
actividades (GONÇALVES, 2011, p. por via disso de determinados corpos. Estou
23).
a fazer referência a relação de dominação
Como se pode entender, alguns corpos das dos corpos promovida no contexto da
mulheres e jovens podem ser considerados colonização que implicou que as potências
como corpos dóceis pois acatam os europeias “civilizassem”, “educassem” os
processos de socialização, que partilha-se povos de África. Nesta relação, usou-se o
significados e representações em torno do desporto como forma de educar o outro. Este
corpo. mesmo desporto, depois de ser apropriado,
Este processo de socialização é responsável foi depois usado pelo colonizado para
pelo facto de, em cada agrupamento cultural, mostrar o quão o colonizador estava
promover-se mais a prática desportiva para equivocado. Foi desta forma que mostrou-se
determinados grupos em relação aos outros. que não existe povo primitivo, cada um tem
É neste contexto que, suas capacidades e especificidades.
[...] os diferentes papéis sociais e Ao abordar um assunto similar, Rocha
familiares atribuídos às mulheres e (2013) entende que, na óptica dos teóricos
homens promovem uma desigualdade do colonialismo português, “mais do que
de género em relação às práticas de prática desportiva, a educação física era a
lazer e hábitos desportivos. Por isso, as
claras diferenças que existem entre os
actividade que melhor se ajustava aos
níveis de actividade física dos rapazes e negros, por poderem aí desenvolver a
das raparigas parecem poder ser mais estética das danças guerreiras e dos seus
explicadas pelo processo de movimentos rítmicos cheios de elementos
socialização do que por factores gímnicos de execução e poses atléticas” (p.
biológicos (GONÇALVES, 2011, p.
25-24).
70). Não obstante o facto de estar evidente
que o desporto foi usado como meio de
Sendo assim, Mauss (1934, p. 215) ajuda a socialização, fica claro que está forma de
pensar que, faz sentido considerar que cada pensar estava ancorada à perspectiva
sociedade tem hábitos que lhe são próprios. evolucionista que tem um carácter
Estes hábitos que são próprios de cada etnocêntrico, por isso despreza as lógicas
sociedade inscrevem-se no corpo. alheias.
Colaborando do mesmo entendimento De
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E Nhabanga
Por sua vez Domingos e Nascimento (2013, pelo qual os corpos envolvidos no desporto
p. 9) analisam a mesma problemática e alcançam o rendimento desportivo. Nesta
defendem que “o processo de educação do lógica, estes mesmos corpos vão observar
“outro” tinha como fim, mostrar o quão performance apropriada, uma lógica
inferior é o colonizado, ao mesmo tempo específica. Por isso a ideia de Mendes et al.
vincar a superioridade do colonizador”. (2009, p. 95) segundo a qual, “no desporto
Como consequência disso, poder-se-ia há o corpo-próprio, o corpo que o atleta
conceder oportunidade a alguns nativos de instrui como sendo seu, mas também há um
chegar ao estágio de civilizado. corpo reflexo, o corpo que os outros vêm
como sendo o corpo do atleta”.
Os dois autores prosseguem e referem que,
pode-se perceber melhor este fenómeno de Esta citação reitera a ideia de um processo
educação dos corpos quando analisa-se “o de socialização em torno de um corpo
percurso de jogadores moçambicanos que destinado ao desporto. Contudo, seria
saíram das suas zonas de origens, chegaram problemático conceber essa concepção do
aos centros urbanos e tiveram o êxito de corpo para o desporto como imutável pois,
jogar na metrópole e adaptar-se numa estar-se-ia a negligenciar todo um conjunto
realidade urbana e desportiva. Estes atletas de aspectos que concorrem para a existência
tivessem um determinado tipo de dessa concepção do corpo. Tal como
relacionamento com os dispositivos de defende Gonçalves (2011, p. 23) “a
controlo colonial” (DOMINGOS e concepção de cultura física tem sofrido uma
NASCIMENTO, 2013, p. 9). evolução, surgindo novos valores assentes
em estilos de vida mais dinâmicos, em que o
Esta ideia de que o corpo, ao cumprir com
corpo desempenha importante papel
alguns pré-requisitos, adapta-se a
enquanto produto de um sujeito activo”.
determinadas realidades, é também objecto
Desta feita, a construção assim como a
de análise em De Almeida et al. (2010, p.
educação do corpo são processos marcados
70) ao referir que “a lógica da competição
por um conjunto de transformações,
faz com que sejam utilizados diferentes
dinâmicas sociais.
métodos de treinamento que servem para a
adaptação do corpo exclusivamente à Concepção do Corpo no Desporto
actividade física”. É importante abordar as formas pelas quais
Ao abordar-se a possível adaptação do concebe-se o corpo no desporto pelo facto de
corpo, promove-se um debate relativo à o debate poder servir de elemento para
educação dos corpos, um processo que melhor compreender como é educado o
implica a mudança do corpo. Esta mudança corpo no seio desta manifestação humana, o
é metaforicamente designada de “fabricação desporto. De igual modo, o debate sobre as
do corpo que ocorre devido à assimilação concepções do corpo possibilitam reiterar a
das técnicas corporais desportivas que se dão característica dinâmica das relações sociais e
por meio de treinamento, com o objectivo de a partir daí evidenciar a ideia segundo a
proceder a um aumento gradual do qual, o desporto é uma das esferas sociais
rendimento para a participação nessas em que educa-se os corpos.
competições” (DE ALEMIDA et al., 2010, Pode-se pensar no corpo como um dos
p. 71). elementos de socialização para o atleta poder
Pode-se entender o treinamento como meio ter acesso ao contexto da prática do
um repositório de memórias e experiências cada modalidade, por isso o corpo deve ser
individuas e colectivas dos atletas e demais educado para atender a esse efeito. Quem
actores sociais. Nesta ordem de ideias Silva argumenta melhor este pressuposto é Braga
(2014, p. 11) entende que “há uma relação (2008, p. 11) ao referir que “alguns
de afecto com roxos, os quais são desportos, por sua regulamentação,
relacionados a expressões marcas de permitem jogadas mais rápidas e violentas,
batalhas, saudades e orgulho […]”. Pode-se apresentam maiores riscos de lesões do que
entender aqui a concepção do corpo como outros desportos cuja dinâmica é mais suave.
repositório de memórias dos momentos do Como pode-se entender, estas práticas
jogo ou prática da actividade física, facto implicam uma educação própria”.
que pode servir de elemento de promoção de Esta ideia de conceber o corpo como
diversas relações sociais. elemento a ser educado para atender cada
De referir que, seja qual for a concepção do modalidade, por isso tem uma concepção
corpo, esta é dinâmica, toma formas e própria, é usada para estudar contextos mais
sentido de acordo com as circunstâncias amplos e até colectividades humanas. É
sociais. Por isso o entendimento de exemplo disso, a ideia De Almeida et al.
Bourdeau (1988) segundo o qual “as leis e (2010, p. 60) segundo a qual “as práticas
regras vigentes numa determinada corporais – jogos de brincadeiras - são
modalidade desportiva são dinâmicas” (p. entendidas como elementos da cultura
158). Com um entendimento semelhante corporal de cada etnia indígena portanto
Vilhema (2015, p. 131 - 133) advoga a ideia assume sentidos e significados de acordo
segundo a qual “o corpo é uma construção com o contexto social no qual são
social historicamente datada […] e o hábito vivenciados”.
de o homem submeter às práticas de Esta preocupação com o contexto social em
transformação dos corpos é milenar […]”. que estão inseridos os corpos é também
De referir que, se por um lado, verifica-se objecto de reflexão quando analisa-se as
uma educação para um corpo envolvido em diferenças entre categorias sociais (homens e
qualquer actividade desportiva por outro, mulheres, jovens e idosos) no acesso e
verifica-se também uma educação específica prática do desporto. Neste contexto
para os corpos envolvidos em cada Gonçalves (2011, p. 23) refere que
modalidade. Bourdeau (1988, p. 160) analisa “mulheres e jovens praticam cada vez mais,
a educação mais ampla dos corpos actividades físico- desportivas em que o
envolvidos em actividades desportivas ao culto pelo corpo, as motivações de natureza
referir que, os professores de educação estética e busca de melhor saúde constituirão
física, “[…] começaram a analisar o que os principais motivos de realização destas
significa para o técnico ou professor de actividades”.
música, ordenar o corpo, fazer o corpo, A mesma problemática é discutida por
corpo de alguém ou como este movimento é Mauss (1934) ao referir que
correcto”.
[...] as técnicas corporais são
Está explícita a ideia de que o corpo é transmitidas de geração em geração,
educado para ter movimentos correctos, seja são dinâmicas e dizem respeito a uma
qual for o contexto. O mesmo acontece no tradição. Por isso dividem-se em sexo e
contexto das práticas desportivas. De forma, idade assim como podem ser
classificadas em relação ao seu
há movimentos, posturas e técnicas para
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Desporto como meio de educação dos corpos