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COMENTÁRIO DE LIVRO

Saúde Mental no trabalho:


da teoria à pratica
Organizadores: Debota Miriam Raab Glina
e Lys Esther Rocha.
Editora Roca, São Paulo, 2010

Zacaria Borges Ali Ramadam1

As relações humanas com o trabalho sempre fo- balho pelo capital, que serviu para a exploração
ram conflitivas, muitas vezes até desastrosas. dos proletários pela burocracia soviética, além de
No expressivo mito bíblico, o primeiro homem revoluções e guerras durante o século XX.
foi sentenciado a “comer o pão com o suor do seu A ideia de que “o trabalho dignifica o homem”
rosto”, isto é, trabalhar para sobreviver. difundiu-se a partir do século XVIII, no auge da
Não por acaso, em todas as línguas latinas, a Revolução Industrial, quando operários ingleses
palavra originou-se de tripalium, instrumento de trabalhavam, em média, 18 h por dia e, seus fi-
tortura construído com três estacas. lhos menores, 12 h.
Conforme o Oxford Dictionary of English Coincidentemente, é a partir dessa época que
Etymology, ‘work’ originou-se do grego érgon (fa- a Psiquiatria obteve impulso no seu desenvolvi-
zer força), através do germânico antigo werkam, mento e ganhou foros de ciência, dada a impor-
e assinala seu significado em contraste com jogos tância de estabelecer responsabilidades e compro-
e diversão. var a capacidade para o trabalho.
A escravidão, sob diversas formas, explícita ou Sendo fonte de tribulações e conflitos entre os
disfarçada, sempre esteve presente na história da seres humanos, o trabalho inspirou ao filósofo in-
humanidade, sancionada pelos poderes políticos glês Bertrand Russell um notável livro, “O elogio
e religiosos, resultando em guerras e revoluções. ao ócio”, onde o pensador defende a importância
Na aristocracia de todas as épocas e culturas, o do lazer para a vida, o bem-estar e a criatividade,
trabalho sempre foi considerado tarefa indigna, mostrando que o dever de trabalhar não é neces-
destinada à plebe e aos menos favorecidos. sariamente a vocação humana.
Karl Marx, que durante anos viveu à custa de Assim, estudar essa relação conflagrada, sujeita
seu amigo capitalista Friedrich Engels, denun- a constantes transformações, é tarefa de grande
ciou, em sua famosa obra, a exploração do tra- envergadura e, sobretudo, trabalhosa.

Recebido em: 10/01/2012 – Aprovado em: 06/03/2012


Professor Associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) – São Paulo (SP), Brasil.
1

Endereço para correspondência: Zacaria Borges Ali Ramadam – Rua Dr. Ovídio Pires de Campos, 785, 1º andar – Cerqueira César – CEP: 05403-903 – São Paulo (SP), Brasil – E-mail: zramadam@usp.br
Ramadam ZBA / Rev Bras Med Trab.2012;10(1):132-3

As organizadoras deste livro são docentes do Depar- Ressalte-se que os textos foram redigidos com
tamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina elogiável isenção, sem qualquer matiz ideológico.
do Trabalho, da Faculdade de Medicina da Universi- Mesmo assim, confirmando a natureza conflitiva do
dade de São Paulo e têm um invejável currículo profis- tema, na abertura do livro, em destaque consta a se-
sional e acadêmico. guinte nota:
Para a elaboração dos 22 capítulos do livro, reuni-
ram 27 professores universitários da mais alta qualifi- A Editora, as Organizadoras e os colaboradores não se
cação e das mais destacadas Universidades do País, de responsabilizam por quaisquer consequências advindas
diversos estados da Federação. A obra, de 444 páginas, do uso das informações contidas neste livro. É respon-
consta de 3 partes: aspectos conceituais; métodos de sabilidade do profissional, com base em sua experiência
investigação e intervenção em Saúde Mental e no tra- e no conhecimento do paciente, determinar a melhor
balho; e apresentação de casos clínicos. aplicação do conteúdo desta obra.
Na primeira parte, em seis capítulos, são apresenta-
dos, criticamente, modelos teóricos de estresse, estres- Seria desnecessário tecer outros comentários, porém
se no trabalho e repercussões na saúde do trabalhador; a terceira parte do livro, com a apresentação e discus-
segue-se a questão do assédio moral e nexo com o tra- são exaustiva de casos clínicos, é igualmente notável,
balho; aspectos periciais em saúde mental no trabalho como todos os demais capítulos do livro.
e avaliação da capacidade mental para o trabalho; re- São casos exemplares, que ilustram, de maneira
abilitação profissional e saúde mental e, por último, clara, as questões principais analisadas nos capítulos
prevenção do estresse no trabalho. precedentes.
A segunda parte, em 11 capítulos, trata de alguns Comentários finais: é importante destacar o alto
temas específicos: questionário de avaliação dos aspec- nível e a excelência dos autores. Todos os capítulos
tos psicossociais no trabalho; Síndrome de Burnout são ricos de informações e os temas tratados com
ou esgotamento profissional; trabalhadores expostos a profundidade, apoiados em referências bibliográficas
substâncias tóxicas; pesquisas com professores da rede abundantes; entretanto, a bibliografia, com predo-
pública; trabalho de caixas bancários e lesões por esfor- minância de trabalhos estrangeiros, reflete uma con-
ço repetitivo; patologias osteomusculares em diferen- siderável pobreza de pesquisas nacionais nessa área.
tes contextos; saúde mental dos analistas de sistemas, Não é demérito, já que se trata de campo incipiente
organização do trabalho e prática do assédio moral. no Brasil.
Esses 11 capítulos contemplam um panorama Considerando-se a complexidade dos temas e a pro-
abrangente das condições de trabalho mais representa- fundidade com que foram tratados, seria recomendá-
tivas da atualidade; contudo, não esgotam (e seria hu- vel que, em edições posteriores, cada capítulo apresen-
manamente impossível) a imensa variedade de tarefas tasse um quadro sinótico dos aspectos mais relevantes,
e trabalhos conhecidos. para orientar o leitor, de forma didática.
Observa-se que o livro trata, basicamente, da esfera A estrutura da obra é bastante satisfatória, mérito
do trabalho formal, legalmente reconhecido; o traba- das organizadoras.
lho informal e a tirânica exploração de trabalhadores Sendo o trabalho – como assinalamos no início –
à margem da lei não foram considerados, até porque uma das questões mais relevantes na história humana,
não era o objetivo da obra e demandaria a produção de a leitura desse livro é necessária, não só para os pro-
outro livro, talvez de maiores dimensões. fissionais da área: também os psiquiatras, psicólogos,
Mas é possível perceber, nas entrelinhas, o sacrifício assistentes sociais, intelectuais em geral; governantes,
e a opressão sub-reptícia presente em todas as ativi- sindicalistas e militantes de partidos ditos trabalhistas;
dades – legais – analisadas pelos autores, permitindo todos nós, enfim, temos pela frente muito trabalho
inferir outras variáveis não explicitadas. para tentar solucionar as vicissitudes do trabalho.

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