Você está na página 1de 14

AULA 1

SAÚDE, TRABALHO E
ADOECIMENTO NAS
ORGANIZAÇÕES

Prof.ª Silvia Helena Brandt


TEMA 1 – CONCEITO DE TRABALHO

Crédito: JESADAPHORN/ESTEBAN DE ARMAS/SHUTTERSTOCK

O conceito de trabalho não é algo abstrato, tão pouco distante do


entendimento do homem. Talvez seja um dos primeiros do mundo relacional a
ser conhecido ainda na infância. Frases como “o que você quer ser quando
crescer?”, bem como brincadeiras de polícia e ladrão, médico, vendedor, babá,
escolinha... Todas representam o universo do trabalho.
Dias (2009, p. 33) afirma que

Nos referimos ao trabalho de diversas formas, como uma atividade,


uma tarefa, um ambiente, ou contexto físico, como uma técnica ou
método de produção, como um significado subjetivo (tenho que
trabalhar), como uma crença (é bom trabalhar), como um resultado (fiz
um bom trabalho), como um valor (o trabalho é o mais importante em
minha vida), como uma estruturação temporal (é hora de trabalhar),
como um símbolo social e cultural (os japoneses são bons
trabalhadores), como um intercâmbio social e econômico (tendo
recebido, a troca de trabalho, vive do seu trabalho), como ética (o
trabalho redime).

O trabalho pode ser compreendido como o processo de transformação da


natureza, no qual faz uso dos recursos nela disponíveis e os transforma
conforme sua demanda, desde a própria sobrevivência até pilares mais
elevados, como instrumentos para relacionamentos sociais, autoestima e
autorrealização.
Os animais também transformam a natureza, mas a diferença é que ao
relacionar-se com os produtos finais, além do significado da coisa, o homem
também atribui sentido, transformando não apenas o meio em que vive como
também a si próprio. Enquanto satisfaz a demanda original, cria novas
demandas e planeja novas transformações. Essa capacidade cognitiva de

2
observar o passado, produzir o presente e planejar o futuro caracteriza-se pelo
processo dialético que humaniza a natureza, humanizando a si mesmo.
Para além da sobrevivência, o ser humano, nesse processo dialético de
transformação, inicia a busca por algo a mais, que pode ser representado por
meio da pirâmide de Maslow, criada pelo psicólogo norte-americano Abraham H.
Maslow para demonstrar a hierarquização das necessidades humanas ao longo
da vida.

Figura 1 – Pirâmide de Maslow

Fonte: adaptado pelo autor

Dias (2009) informa que o trabalho ocupa um lugar central na vida das
pessoas, pois permite desenvolver uma atividade que lhe desenvolve a
capacidade criativa e lhe traz identificação social com base no papel profissional.
A autora complementa dizendo que o trabalho “permite situar o lugar de quem
fala, e descrever-se por meio de sua ação, ao falar daquilo que se é como
pessoa o referente do trabalho constitui-se como um dos principais processos de
identificação” (Dias, 2009, p. 30).
A transformação da matéria-prima fornecida pela natureza, que se torna
um produto repleto de significado social, é vista pelo mundo capital como uma
mercadoria, cujo objetivo é gerar lucro.
É importante ressaltar que na contemporaneidade não falamos apenas
em emprego, mas na expressão mundo do trabalho, que para Dias (2009, p. 24)

3
"refere-se a um conjunto de situações histórico culturais extremamente
dinâmicas e não deve evocar a ideia de algo fechado em si, autônomo em
relação às demais esferas da vida social. Significa que relações de trabalho
estão se transformando a cada movimento da macroeconomia e se constituem
como mediações objetivas e subjetivas".
Para a autora, "o mundo do trabalho surge desintegrando profissões e
perspectivas de futuro ao mesmo tempo que (re)cria novas formas e novas
maneiras do sujeito se relacionar com o processo produtivo", atribuindo sentido
tanto ao trabalho quanto à própria vida.
Justamente pelo fato de o trabalho praticamente confundir-se com a
existência humana, ele esteve presente ao longo de toda a história da
humanidade, como veremos no próximo item.

TEMA 2 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO TRABALHO – A TRANSFORMAÇÃO


DO SIGNIFICADO

CRÉDITO: MICROONE/SHUTTERSTOCK

Segundo Dias (2009, p. 32), “as discussões contemporâneas sobre o que


é ou não trabalho não podem estar desconectas de uma história pré-industrial,
da transição das formas feudais de trabalho para as indústrias, da importância
das mudanças ocupacionais, da intervenção do estado, do aparecimento dos
sindicatos, do impacto das guerras e das políticas trabalhistas.”
Nesta aula, veremos de forma breve o caminho percorrido pelo conceito
de trabalho ao longo da história e as transformações da relação de trabalho
quando do surgimento do sistema capitalista.
É necessário nos aprofundarmos na história dos movimentos sociais, do
surgimento das primeiras leis trabalhistas, das políticas do trabalho, bem como

4
de toda a transformação que esta relação vem sofrendo no momento atual da
política, em especial no Brasil, com as propostas de reformas e imigrações etc.
Ressalta-se também a relevância de não estudar a história e a política do
trabalho de forma recortada, mas entender que ela faz parte da rede política, a
qual envolve também a educação e a saúde. Todas as transformações pelas
quais as políticas de educação passam afetam diretamente o mundo do
trabalho, e, consequentemente, a saúde do trabalhador e a política de saúde.
Ao aprofundar-se no estudo, deve-se perceber que toda e qualquer
mudança em qualquer que seja a política afeta o indivíduo e, de forma dialética,
a cultura e sociedade na qual ele está inserido.

TEMA 3 – O TRABALHO NA PRÉ-HISTÓRIA

Crédito: LEREMY/SHUTTERSTOCK

A Pré-História é o período que compreende o surgimento do homem até o


aparecimento da escrita, por volta de 4000 a.C. Com base nas investigações
antropológicas, é possível observar que o trabalho sempre esteve presente na
vida do homem, desde o papel de um rude caçador até tornar-se um primitivo
agricultor.
A Pré-História é dividida em três períodos:

1. Paleolítico ou Idade da Pedra Lascada, quando o homem caçava e


coletava alimentos na natureza.
5
2. Neolítico ou Idade da Pedra Polida (10.000 a 4.000 a.C.), quando o
homem desenvolveu a agricultura, domesticou animais (boi, cavalo,
ovelha, entre outros), passou a confeccionar roupas com fibras vegetais
(linho e algodão), usar o barro para fazer potes, panelas, bacias e outros
utensílios domésticos, construir casas de palafitas, e utilizar o osso, a
madeira e a pedra polida para fabricação de instrumentos diários e armas.
3. Idade dos Metais, quando o homem passou a usar metais (cobre, ouro e
estanho) para fabricar instrumentos, ferramentas e armas.

Os avanços na agricultura e a descoberta da escrita marcam o fim da Pré-


História e início da História.

TEMA 4 – O TRABALHO NA HISTÓRIA

Ao longo da História, observa-se que o conceito de trabalho se


transformou muito. Se hoje ele é cunhado sob o aspecto positivo, que dignifica o
homem, nem sempre foi assim.
Na Bíblia (1964), Adão e Eva viviam felizes até que o pecado os expulsa
do paraíso e sua condenação é o trabalho. Já em Eclesiástico, 34,6, há a
exposição sobre o comportamento dos escravos, em que a orientação dada é: “o
trabalho contínuo torna o escravo dócil; para o escravo malévolo a tortura e os
ferros, manda-o para o trabalho para que ele não fique ocioso” (Bíblia, p. 927).

Crédito: ANELINA/SHUTTERSTOCK

6
Na Grécia Antiga, todo trabalho manual era desvalorizado e relegado aos
escravos, não tanto pelo fato de ser manual, já que a atividade teórica era
considerada, para a sociedade de então, a mais digna do homem, mas por não
exigir qualificação teórica, e sim longas horas de atividade repetitiva. Tal fato
impedia a contemplação das ideias, o que era considerado por Platão a
finalidade do homem livre.

Crédito: AKANE1988/SHUTTERSTOCK

Também na Roma escravagista o trabalho era desvalorizado. Como


afirma Dias (2009, p. 31), “é significativo o fato de a palavra negotium indicar a
negação do ócio: ao enfatizar o trabalho como ‘ausência de lazer’, distingui-se o
ócio como prerrogativa dos homens livres”.

Crédito: Illustrations from The Robe by Lloyd C. Douglas, 1948.

7
A aversão ao trabalho não era privilégio da elite grega, também assim
consideravam os povos egípcios e persas.

Foi na Idade Média que o conceito de trabalho manual começou a


transpor o paradigma pejorativo. São Tomás de Aquino afirmava que todos os
trabalhos se equivalem, não obstante, ele próprio construiu todo o seu
pensamento embasado na teoria grega. Carmo (1992) nos informa que

este pensador passa a falar do trabalho a partir de um prisma moral e


teológico, criando uma complexa e consistente concepção de um
universo cristão no qual a lei humana é parte do sistema da lei divina e,
assim, o indivíduo é conclamado a ocupar seu lugar especialmente na
economia das coisas, para ele, haveria na sociedade uma troca de
serviços que contribuiria para o seu funcionamento.

É importante pensar aqui no ritmo de trabalho. Carmo (1992) relata que

Neste período, não havia relógios, o controle mecânico do tempo


começa a surgir por meio dos monastérios, que exigiam de seus
monges disciplina de acordar cedo, orar e trabalhar. Nesta sociedade
pré-mecânica, o ritmo de trabalho era ditado pela alternância do dia e
da noite e pelas condições climáticas, não podendo, portanto, atrelar a
lentidão de produção à indolência.

Já nas sociedades aristocráticas, segundo Carmo (1992), “preocupadas


em destacar os títulos de nobreza, o trabalho não fica restrito apenas à atividade
manual, considerando-se o trabalho em sua totalidade, como indigno para o
homem de qualidade, cujas atividades eram dedicadas ao pensamento, à
direção dos negócios políticos e religiosos, à gestão de bens e, eventualmente, a
transações financeiras”, e essas atividades não eram consideradas trabalho.

Crédito: HAPPY 1ST OF JUNE! HERE’S ITS ENTRY IN THE TRÈS RICHES HEURES, A 15TH-CENTURY BOOK OF
HOURS

À medida que o homem se vê livre e migra para os centros urbanos, as


cidades se desenvolvem e vão sendo criadas as primeiras fábricas, é necessário
8
valorizar o trabalho para que a mão de obra seja vendida ao capital. Então, aos
poucos, o conceito de trabalho foi ficando mais próximo do paradigma positivo
rascunhado por São Tomás de Aquino.
A Idade Moderna chega marcada pela transição do feudalismo para o
capitalismo, quando as cidades começam a retomar seu poder no âmbito
econômico, sendo ponto de encontro fundamental no mercantilismo que surge.
As revoluções burguesas trazem consigo os conceitos de liberdade e
igualdade, passando a dedicar-se ao comércio, imprimindo outra concepção ao
conceito do trabalho.

Crédito: ROBERT FRIEDRICH STIELER (1847–1908), WERK LUDWIGSHAFEN 1881, GEMÄLDE.

Uma nova elite nasce a partir da Revolução Industrial, os donos das


fábricas, e os antes agricultores compelidos a migrar para o centro urbano se
veem agora obrigados a vender a única coisa que possuem: sua força de
trabalho.

Crédito: EVERETT HISTORICAL/SHUTTERSTOCK

9
Essa nova elite passa a buscar novos mercados, o que não se dá
somente por meio terrestre, mas também impulsiona a exploração marítima. No
século XV, os grandes empreendimentos marítimos culminam com a descoberta
do novo caminho das Índias e das terras do Novo Mundo. A preocupação de
dominar o tempo e o espaço faz com que sejam aprimorados os relógios e a
bússola. Com o aperfeiçoamento da tinta e do papel, bem como a descoberta
dos tipos móveis, Gutenberg inventa a imprensa.
No século XVII, Pascal inventa a primeira máquina de calcular; Torricelli
constrói o barômetro; aparece o tear mecânico. Galileu, ao valorizar a técnica,
inaugura o método das ciências da natureza, fazendo nascer duas novas
ciências: a física e a astronomia.
“A máquina exerce tal influência sobre a mentalidade do homem moderno
que Descartes explica o comportamento dos animais como se fossem máquinas,
e vale-se do mecanismo do relógio para explicar o modelo característico do
universo” (Aranha; Martins, 1993).

Crédito: CHAPLIN/UNITED ARTISTS / ALBUM/ FOTOARENA

10
TEMA 5 – O TRABALHO NA IDADE MODERNA

Crédito: Cercamentos, Inglaterra, séculos XVI-XVIII

No sistema feudal, os camponeses regulavam seu trabalho com a


alternância do dia e da noite e com as mudanças climáticas, o que não era viável
aos trabalhadores das fábricas, que trabalhavam em um rígido regime de
trabalho entre 16 a 20 horas por dia, em um trabalho repetitivo, sem nenhum
cuidado com a sua saúde. Isto gerava uma alta recusa em ingressar no
emprego. Porém, nos centros urbanos, sem produtos para vender, os novos
capitalistas, donos da produção, se colocam na posição de filantropia, usando a
oferta de emprego como caridade.
A mão de obra em grande escala, que tornaria o capitalismo viável, não
apareceu de forma espontânea. Foi necessária intervenção estatal a pedido da
nova classe burguesa, que expulsava os camponeses das terras cedidas pela
coroa. Isso pode ser visto na Lei do Cercamento, da Inglaterra, no séc. XVIII.
Foi assim que as indústrias fizeram uso do crescente número de
camponeses e artesãos arruinados, oriundos da destruição da sociedade pré-
capitalista medieval: expulsos das terras e das aldeias, desenraizados e sem
uma situação segura na sociedade, infestavam as estradas, pilhando e matando.
É esse melancólico exército de decaídos, mendigos, vagabundos e mercenários
que forma os primeiros proletários.
Carmo (1992) afirma que

a dificuldade de mão de obra é inerente ao caráter estático da vida


econômica medieval. Com a produção voltada para a demanda

11
tradicional e não para ganhos ilimitados, a mão de obra não estava
preparada para a nova ordem econômica emergente. Dotar a
sociedade de um novo ideal é uma questão que exige longo tempo;
assim, enquanto fosse possível usar a terra ou fazer artesanato,
ninguém iria querer trabalhar para outrem, submetendo-se a um salário
irrisório e a todo tipo de opressão. A solução, então, foi impor leis que
forçassem as pessoas livres a trabalhar, utilizando-se o sutil argumento
de que eram vadias. Na Inglaterra, o operário que abandonasse a
fábrica arriscava-se a ser preso. A classe produtora emergente, ao
condenar a indolência, construiu uma nova moral, poderosa e eficiente
aliada para a exploração das forças trabalhadoras necessárias,
impondo penalidades severas a mendigos e vagabundos.

12
REFERÊNCIAS

ANTUNES, R. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a


centralidade do mundo do trabalho. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000.

______. Os sentidos do trabalho. Ensaios sobre a afirmação e a negação do


trabalho. 7. ed. São Paulo: Boitempo, 2005.

Aranha, M. L; Martins, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. 2. ed. São


Paulo: Moderna, 1993.

BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. São Paulo: Jorge


Zahar, 1998.

BEHRING, E. R. Fundamentos de política social. In: MOTA, A. E. et al. Serviço


social e saúde: formação e trabalho profissional. São Paulo: OPAS, OMS,
Ministério da Saúde, 2006. p. 13-39.

BÍBLIA SAGRADA. Antigo Testamento. Livro do Eclesiastes. 5. ed. São Paulo:


Ave Maria, 1964.

CARMO, P. S. História e ética do trabalho no Brasil. São Paulo: Moderna,


2003.

______. A ideologia do trabalho. São Paulo: Moderna, 1992.

CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.


Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

______. A insegurança social: o que é ser protegido? Petrópolis, RJ: Vozes,


2005.

CASTELLS, M. A sociedade em rede. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da


mudança cultural. 14. ed. São Paulo: Loyola, 2005.

LANE, S. M.; CODO, W. Psicologia social – o homem em movimento. São


Paulo: Brasiliense, 2012.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo: Hucitec,


2002.

MORIN, E. M. Os sentidos do trabalho. In: WOOD, T. (Org.). Gestão


empresarial: o fator humano. São Paulo: Atlas, 2002.

13
______. Conference. The meaning of work in modern times. 10th World
Congress on Human Resources Management, Rio de Janeiro, 20 ago. 2004.
Disponível em: <https://uiamaket.files.wordpress.com/2015/03/estelle-2004-the-
meaning-of-work-in-modern-times-pdf.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2019.

MONTAÑO, C.; DURIGUETTO, M. L. Estado, classe e movimento social. São


Paulo: Cortez, 2010.

PÉREZ, J.; BÁRBARA, A. J. O conceito de liberdade nas teorias políticas de


Kant, Hegel e Marx. In: BORON, A. A. (Org.). Filosofia política moderna: de
Hobbes a Marx. Buenos Aires: CLACSO; São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2006.

SENNET, R. A corrosão do caráter. Rio de Janeiro: Recorde, 1999.

SILVA, M. L. L. Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno


população em situação de rua no Brasil 1995-2005. Dissertação (Mestrado
em Serviço Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

TEIXEIRA, F. J. S. O capital e suas formas de produção de mercadorias: rumo


ao fim da economia política. Crítica marxista, (10), 1999.

TEIXEIRA, E. C. O papel das políticas públicas no desenvolvimento local e


na transformação da realidade. Associação dos Advogados de Trabalhadores
Rurais (AATR-BA), Salvador, 2002.

VIEIRA, E. Democracia e política social. São Paulo: Cortez; Autores


Associados, 1992.

VYGOTSKY, L. Mind in society: the development of higher psychological


processes. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:


Pioneira, 1996

14

Você também pode gostar