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Dentadura Mista

A fase do desenvolvimento da oclusão conhecida como


“dentadura mista” caracteriza-se pela presença simultânea de dentes decíduos e
permanentes nos arcos dentários, numa transição para a dentadura permanente,
que perdura dos 6 anos 12 aos de idade, em média. Ao contrário das dentaduras
decídua e permanente, de certa forma estáveis, a dentadura mista constitui um
estágio de caráter dinâmico, trazendo consigo a noção de brevidade, de
transitoriedade. Aliás, as considerações descritas não oferecem grande novidade
e nem pretendem inovar, visto que têm sido amplamente discutidas. Todavia,
toma-se o cuidado de abordá-las sob uma ótica sobretudo clínica, tomando como
ponto de partida o ortodontista holandês Van Der Linden146 (1986) cuja filosofia
mostra a intimidade de dentadura mista e responde às expectativas do clínico no
tocante à oportunidade de mecanoterapia. Sua classificação da dentadura mista
baseia-se exclusivamente no aspecto clínico da irrupção dentária, encerrando 3
estágios: primeiro período transitório, período intertransitório e segundo período transitório
(quadro sinóptico).
Com efeito, a grande vantagem dessa classificação é que ela por si
já representa um referencial biológico, a idade dentária, usada na maioria das más
oclusões como um referencial para época de tratamento
QUADRO SINÓPTICO:
Classificação da dentadura mista em consonância com a época de irrupção dos
dentes permanentes (segundo Van der Linder59, 1986)
1º período transitório: Irrupção dos primeiros molares permanentes Esfoliação
dos incisivos decíduos
Irrupção dos incisivos permanentes
Período intertransitório: Primeiros molares permanentes
Incisivos permanentes
Caninos e molares decíduos
2º período transitório: Esfoliação dos caninos e molares decíduos
Irrupção dos caninos, pré-molares e segundos molares
permanentes

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Primeiro Período Transitório

Representando o período inicial da dentadura mista, o primeiro


período transitório caracteriza-se pela irrupção dos primeiros molares
permanentes, esfoliação dos incisivos decíduos e irrupção dos incisivos
permanentes. É um período importante para a criança, do ponto de vista
psicológico, uma vez que a chegada dos dentes permanentes, em especial os
incisivos, faz com que a infância fique para trás.
Os primeiros molares permanentes não tem predecessores,
irrompendo no final do arco dentário decíduo. Com o deslocamento posterior
do ramo ascendente e com o alongamento distal da tuberosidade maxilar,
mecanismos de crescimento ósseo basal, o espaço para a irrupção desses molares
foi conquistado ao longo da dentadura decídua. Esses dentes irrompem por
distal dos segundos molares decíduos, os quais servem de guia para a irrupção
daqueles (Figs. 38, 39, 40). Em decorrência disto, é consenso unânime entre os
odontólogos que a integridade dos segundos molares decíduos adquire
importância suprema no comprimento dos arcos dentários, principalmente no
primeiro período transitório da dentadura mista.

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Figs. 38, 39, 40 – Os primeiros molares permanentes, em seu processo ativo de irrupção,
toma como guia de deslocamento a superfície distal dos segundos molares decíduos.

A cronologia de irrupção não constitui fator de relevância neste


período. A ordem de irrupção entre os primeiros molares e incisivos centrais
permanentes não acarreta implicações de significado clínico. O que mais importa
neste período é a emergência dos dentes na cavidade bucal.
Mesmo depois de alcançado o plano oclusal, a relação sagital
entre os primeiros molares permanentes pode não ser definitiva. Nem sempre
neste estágio ela é representativa da real relação sagital entre os arcos dentários e
entre as bases apicais. Neste período os molares podem apresentar-se numa
relação definitiva de classe I ou podem mostrar-se numa relação de topo a topo.
Portanto, a chave oclusal decisiva para a determinação da real relação sagital entre
os arcos dentário continua sendo a relação de caninos. Não damos importância
para a relação de molares isolada sem a confrontação com a relação dos caninos
pois, com freqüência, ela ainda vai sofrer ajustes sagitais no segundo período
transitório, com a ocupação do Leeway Space (espaço disponível de Nance).
Um aspecto que polariza as atenções do ortodontista e,
principalmente, do odontopediatra neste primeiro período transitório da
dentadura mista diz respeito ao alinhamento dos incisivos permanentes em

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irrupção (Figs. 41 e 44). Sabemos que a somatória do diâmetro mediodistal dos
incisivos permanentes é maior do que a dos seus correspondentes decíduos,
motivo pelo qual cerca de 50% (Silva Filho et al.124, 1990) das crianças no estágio
de dentadura mista exibem uma irregularidade na região anterior que é conhecida
como apinhamento primário. Fica padronizada a partir de agora a nomenclatura
“apinhamento primário” para definir toda e qualquer irregularidade dos incisivos
surgida durante o seu processo de irrupção.
Por outro lado, uma série de fenômenos compensatórios diluem
essa citada discrepância entre o tamanho dos dentes decíduos e permanentes.
Além da presença de diastemas na dentadura decídua e a maior vestibularização
dos incisivos permanentes em relação aos decíduos, contamos ainda com o
aumento na largura intercaninos, uma importante mudança na morfologia do
arco dentário que ocorre exatamente no primeiro período transitório, mais
especificamente com a irrupção dos incisivos permanentes. Tudo indica que o
aumento transversal do arco dentário na região de caninos está condicionado à
presença física dos incisivos permanentes.

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Figs. 41 a 44 – Apinhamento primário temporário: diagnosticado como aquela irregularidade
momentânea dos incisivos permanentes, durante o primeiro período transitório da dentadura
mista. A condição de transitoriedade é determinada pela irrupção dos incisivos na linha do
rebordo alveolar. A rotação dos incisivos corrige-se espontaneamente ao longo do seu
processo de irrupção ativa e passiva.

O aumento da distância intercaninos na passagem da dentadura


decídua para a permanente representa um comportamento unanimemente aceito
pelos clínicos e comprovado pelo pesquisadores (Barrow & White6, 1952’;
Burson17, 1952; Chapman19, 1935; Cohen23, 1940; Clinch22, 1951; Gianelly42, 1972;
Lewis & Lehman73, Rossato & Martins107, 1993). Esse aumento, que gira em
torno de 3 mm para a população brasileira (Rossato & Martins107, 1993), embora
imprevisível, constitui um dos mecanismos biológicos de compensação para
providenciar o espaço necessário para alinhamento dos incisivos. A Tabela I
mostra os estudos longitudinais que quantificaram esse aumento e a faixa etária
ou o estágio dentário em que ele tende a ocorrer. No entanto, o que se depura

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de parte da literatura (Cohen23, 1940; Clinch22, 1951; Moorrees85, 1958; Moorrees
& Reed86, 1965; Gianelly42, 1972) e igualmente da vivência clínica, é a coerência
em abandonar a idade cronológica e relacionar o aumento da largura intercaninos
com a idade dentária. Portanto, podemos admitir que o aumento transversal na
região anterior dos arcos dentários ocorre no primeiro período transitório da
dentadura mista, estimulado pela irrupção dos incisivos permanentes. A
literatura também tem noticiado não só o aumento na largura mas também o
aumento no perímetro anterior do arco dentário inferior na transição da
dentadura decídua para a permanente (Rossato & Martins107, 1993, Speck131,
1950).

Tabela I – Compilação dos estudos longitudinais que preocuparam-se em mensurar o


aumento da distância intercaninos inferiores e sua relação com a idade cronológica ou
biológica.
Autor Ano “ n ” Magnitude do aumento e idade de
ocorrência
LEWIS & LEHMAN 1929 170 2,4 mm após 06 anos
CHAPMAN 1935 8 1,5 mm a 2 mm entre 05 e 08 anos
COHEN 1940 28 3,2 mm entre 3 e 13 anos
CLINCK 1951 61 2,6 mm durante a irrupção II
BURSON 1952 24 3,5 mm entre 05 e 08 anos
BARRON & WHITE 1952 51 3 mm entre 05 e 09 anos
MOORREES 1958 184 3 mm entre 05 e 10 anos
MOORREES & REED 1965 232 3 mm durante irrupção II
KNOTT 1972 35 2,8 mm entre decídua e mista
ROSSATO & MARTINS 1993 78 2,84 mm entre decídua e permanente

A irrupção dos incisivos permanentes nem sempre se dá de


forma totalmente alinhada. Não raros são os casos em que presenciamos uma
irregularidade que, desde que os incisivos irrompam na linha do rebordo alveolar,

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ganha uma conotação transitória. Essa irregularidade temporária denominamos
de apinhamento primário temporário, uma vez que apresenta grande
probabilidade de alinhamento espontâneo devido ao crescimento da largura do
arco dentário, aumento este estimulado pela própria irrupção dos incisivos na
linha do rebordo alveolar (Moorrees & Chadha84, 1965). A vivência clínica tem
demonstrado que a discrepância dente-osso, a bem verdade sutil, deve ser
encarada como uma circunstância de momento e não uma condição estrutural
definitiva. Do ponto de vista prático, isto significa que, se os incisivos
permanentes estão irrompendo na linha do rebordo alveolar, mesmo com
rotações, não devemos nos antecipar com procedimentos que visem o ganho de
espaço, como desgaste ou extração de caninos decíduos (Figs. 45 a 66). Isso só
deve acontecer se os incisivos permanentes estiverem irrompendo fora da linha
do rebordo alveolar, geralmente por lingual, caracterizando o apinhamento
primário persistente.
Embora o aumento transversal na região anterior dos arcos
dentários tenha conquistado maior notoriedade nas pautas acadêmicas da
literatura ortodôntica, e isto justifica-se pela grande freqüência do apinhamento
primário neste estágio do desenvolvimento, o aumento da largura do arco
dentário também se manifesta na região posterior, correspondente aos molares
decíduos (Cohen23, 1940; Knott66, 1972; Lewis & Lehman73, 1929; Meredith &
Hopp81, 1956; Pinzan et al.96, 1072).
A particularidade mais importante que marca o primeiro período
transitório diz respeito à irrupção, quase sempre irregular em seu início, dos
incisivos permanentes, em especial no arco dentário inferior, porque ela dá a
medida do duro duelo que irá se travar entre a força irruptiva e o potencial de
crescimento alveolar. Por outro lado é motivo do contínuo interrogar dos pais
quanto à normalidade deste e dos estágios vindouros da oclusão.

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Figs. 45 a 66 - Primeiro período transitório da dentadura mista. A fusão de várias alterações
dentoalveolares, tais como o aumento da distância intercaninos e a vestibularização dos
incisivos permanentes, resulta no alinhamento espontâneo dos incisivos permanentes. Em
tese, a regularização dos incisivos ao longo da linha do rebordo alveolar reflete o caráter
efêmero deste apinhamento: o chamado apinhamento primário temporário.

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Período Intertransitório

O período intertransitório, diferentemente do primeiro e segundo


período transitório, retrata um estágio pacífico da dentadura mista, isento de
alterações dimensionais clinicamente perceptíveis nos arcos dentários. Neste
período encontram-se distribuídos nos arcos dentários os primeiros molares e os
incisivos permanentes, juntamente com os caninos e molares decíduos. A
irrupção dos primeiros molares permanentes na distal dos segundos molares
decíduos imprime na dentadura mista um arco dentário de contorno mais
parabólico em comparação com o arco decíduo mais circunferencial (Figs. 67 a
71.)
Quais as características de normalidade neste estágio de
desenvolvimento oclusal?
A relação sagital entre os arcos dentários continua sendo
determinada pela chave de canino, como nos estágios anteriores (dentadura
decídua e primeiro período transitório da dentadura mista). A chave de canino
normal é estabelecida quando a ponta de cúspide do canino superior assenta na
ameia entre o canino e primeiro molar decíduos inferiores. Neste estágio, os
primeiros molares permanentes encontram-se em oclusão, mas a relação sagital
entre eles pode alterar após a esfoliação dos segundos molares decíduos, no
segundo período transitório. Motivo pelo qual podemos encontrar uma relação
de classe II entre os molares permanentes quando a relação de caninos é de
classe I. Prevalece a leitura da relação de caninos para o diagnóstico sagital entre
os arcos dentários. Na relação de incisivos, é imperativo o trespasse horizontal
positivo, em torno de 2 mm, e o trepasse vertical positivo, com o terço incisal do
inferior sobreposto pelo incisivo superior. Pequenas irregularidades no
alinhamento dos incisivos permanentes, tais como rotações ou diastemas, não
suscitam tratamento dado a sua provável transitoriedade (Figs. 67 a 71).

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Figs. 67 a 71 – Oclusão normal no estágio de dentadura mista: período intertransitório. A
presença simultânea dos incisivos e primeiros molares permanentes com caninos e molares
decíduos, imprime uma conformação parabólica aos arcos dentários superior e inferior. A
relação sagital entre os arcos dentários ainda é definida pela relação de caninos: ponta de
cúspide do canino superior assenta na ameia entre o canino e primeiro molar decíduos
inferiores.

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Embora o período intertransitório seja pontuado pela ausência de
alterações clínicas expressivas, os caninos, pré-molares e segundos molares
permanentes encontram-se em pleno processo de odontogênese intra-óssea,
preparando-se para a sua cavidade bucal durante o segundo período transitório.
A partir desse estágio é possível aplicar as análises de estimativa do diâmetro
mesiodistal dos caninos e pré-molares não irrompidos, as consagradas análises
da dentadura mista, que tem por metodologia a mensuração do tamanho
mesiodistal dos incisivos inferiores (Moyers91, 1979; Staley & Kerber133, 1980;
Tanaka & Jonhnston139, 1974).
Uma alteração importante na região anterior superior, identificada
pela mudança na posição dos incisivos laterais, tem sido no período
intertransitório e recebe o nome de “Fase do Patinho Feio” (Garner41, 1973;
Chapman19, 1935; Broadbent16, 1941). A magnitude e a direção desta
movimentação dos incisivos laterais durante esta fase depende da trajetória de
irrupção intra-óssea dos caninos permanentes. Nos seus movimentos irruptivos
intra-ósseos em direção à cavidade bucal, a coroa do canino permanente
superior tangencia a raiz do incisivo lateral devido à anatomia desta região,
provocando a convergência apical dos incisivos laterais com conseqüente
abertura de diastema entre o incisivo lateral e o central, o que caracteriza o que
denominamos “Fase do Patinho Feio” (Figs. 72, 73, 74). Em função dessa
proximidade, o exame radiográfico dessa região nesta fase específica pode
mostrar inclusive ausência da lâmina dura na raiz do incisivo lateral (Ericson &
Kurol31, 1986; Ericson & Kurol32, 1987). Essa fase prolonga-se até o segundo
período transitório quando o canino aflora na cavidade bucal, deixando de
comprimir a raiz e passando a pressionar a coroa do incisivo lateral.

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Figs. 72, 73 e 74 – O movimento irruptivo intra-ósseo do canino superior aproxima-o da raiz
do incisivo lateral, reduzindo o espaço físico e provocando a mudança na posição do incisivo
lateral adjacente (convergências das raízes dos incisivos laterais). Essa situação inicia-se no
período transitório, quando o canino permanente emerge na cavidade bucal.

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O progresso da irrupção dos caninos permanentes superiores a
partir do final do período intertransitório da dentadura mista pode ser avaliado, a
princípio, clinicamente pela palpação digital na área alveolar correspondente
(Ericson & Kurol34, 1986). A palpação positiva, simétrica em ambos os lados,
reflete um bom prognóstico para a irrupção deste dente. A incapacidade em
apalpar o canino (palpação negativa) nesta idade dentária, ou mesmo a palpação
assimétrica, pode ser indicativo de tendência para um distúrbio da dentadura
mista.
O canino permanente merece uma atenção especial por
representar no arco dentário o dente mais susceptível às irregularidades
irruptivas, excetuando os terceiros molares. A irrupção ectópica dos caninos
superiores pode ocorrer numa proporção aproximada de 2% das crianças
(Ericson & Kurol31, 1986), com trajetória de irrupção em 85% das vezes por
lingual (Ericson & Kurol32, 987; Rayne 99, 1969). E de 10% a 12% dos casos de
irrupção ectópica, o que equivale a uma prevalência de 0,7% das crianças, pode
vir acompanhado de graus diferentes de reabsorção radicular no terço médio

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apical do incisivo lateral adjacente (Ericson & Kurol32, 1987; Ericson & Kurol35,
1988), e de difícil diagnóstico pelos métodos radiográficos convencionais, motivo
pelo qual, embora pouco discutida na literatura, a tomografia computadorizada,
pelo menos na Europa, vem ganhando espaço nessa área (Ericson & Kurol33,
1988). Lappin69 (1951) comenta sobre a possibilidade de atuar preventivamente
na impacção dos caninos permanentes superiores com a extração precoce dos
caninos decíduos correspondentes, citando essa conduta como sendo uma
orientação pessoal de Broadbent. Um estudo longitudinal tem sugerido que a
extração precoce dos caninos decíduos influencia positivamente, com possível
normalização, o trajeto de irrupção palatina do canino superior (Ericson &
Kurol30, 1988).

Segundo Período Transitório

O segundo período transitório retrata o último estágio de


dentadura mista, quando os caninos e molares decíduos dão lugar aos caninos
permanentes e aos pré-molares e, por fim, os segundos molares permanentes
complementam os arcos dentários. Como se vê, a oclusão readquire neste
período o seu caráter dinâmico perdido no período intertransitório (Figs. 75 a
90).

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Figs. 75 a 90 – O segundo período transitório reúne as últimas e não menos importantes
alterações irruptivas da dentadura mista em direção à dentadura permanente. Os caninos, pré-
molares e segundos molares permanentes surgem na cavidade bucal.

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