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Somos todos ciborgues

Ao ouvir a palavra «ciborgue», talvez a primeira coisa que


venha à mente seja uma fusão de humano e máquina.
Nossa imaginação pode até derivar para uma imagem do
monstro de Frankenstein ou uma representação como a
Major Mira Killian no anime Ghost in the Shell. Um ciborgue
é na verdade apenas um híbrido – parte mecanismo, parte
organismo. O ciborgue, como conceito, está associado ao
cientista, inovador e músico Manfred Clynes, que o
implantou em seu artigo de 1960 Cyborgs and Space, onde
defendia a alteração do corpo humano para torná-lo
adequado para viagens espaciais.

Podemos, assim, perceber este conceito como estando no


futuro, longe do aqui e agora. No entanto, Donna Haraway,
bióloga e feminista americana, afirma o contrário. Ela
acredita que, já hoje, somos todos ciborgues. Mais
significativamente, ela postula que o advento da cibernética
pode ajudar na construção de um mundo capaz de desafiar
as disparidades de gênero, uma proposta que ela fez em
seu ensaio de 1985 intitulado A Cyborg Manifesto.

Como, então, a noção de cibernética contribuiria para uma


compreensão pós-gênero do mundo? E como seria uma
ferramenta para as mulheres minarem os papéis que lhes
são impostos pela sociedade?

Ciborgues e a natureza humana

A investigação da natureza humana sempre foi uma busca


essencial para as escolas de filosofia e um pressuposto
básico das ideologias políticas. A resposta à pergunta “o
que significa ser humano?” determina a orientação de um
movimento político ou de uma ideologia. As sociedades
patriarcais historicamente adotaram uma interpretação
essencialista da natureza humana, de modo a justificar a
dominação masculina sobre as mulheres. Afirma que cada
um dos sexos tem um papel específico a desempenhar e,
em última análise, considera o feminino secundário ao
masculino e, assim, subjuga as mulheres. Em tais
sociedades, conjuntos predeterminados de valores e
padrões de comportamento são estritamente aplicados em
ambos os sexos.

Em A Cyborg Manifesto, Haraway explora a história da


relação entre humanos e máquinas, e ela argumenta que
três fronteiras foram quebradas ao longo da história
humana que mudaram a definição do que é considerado
cultural ou natural.

A primeira fronteira desse tipo foi entre humanos e


animais, e foi quebrada no século 19 após a publicação de
A Origem das Espécies de Charles Darwin. À medida que a
conexão biológica entre todos os organismos foi descoberta
e divulgada neste livro, serviu como uma rejeição das
noções de excepcionalidade e superioridade humana,
transformando a evolução do organismo em um quebra-
cabeça. Também introduziu o conceito de evolução como
necessário para a compreensão do significado da existência
humana.

O segundo evento de quebra de fronteiras diz respeito à


relação entre máquinas e organismos (sejam eles humanos
ou animais). Com a chegada da revolução industrial, todos
os aspectos da vida humana tornaram-se mecanizados. À
medida que a dependência humana das máquinas
aumentou, as máquinas tornaram-se uma parte inseparável
do que é ser humano; uma extensão da capacidade
humana.

Quanto ao terceiro limite, diz respeito ao avanço


tecnológico que produziu máquinas cada vez mais
complexas, que podem ser minúsculas ou, no caso do
software, totalmente invisíveis. Primeiro vieram os
desenvolvimentos em chips semicondutores de silício que
agora permeiam todos os domínios da vida. Como essas
máquinas são praticamente invisíveis, fica difícil decidir
onde a máquina termina e os humanos começam. Esta
máquina representa, assim, a cultura que se intromete
sobre a natureza, entrelaçando-se com ela e mudando-a no
processo. Como resultado, as fronteiras entre o cultural e o
natural tornaram-se cada vez mais intangíveis.

Nesse contexto, Haraway usa o ciborgue como modelo para


apresentar sua visão de um mundo que transcende as
diferenças sexuais, expressando sua rejeição às ideias
patriarcais baseadas em tais diferenças. Porque um
ciborgue é um híbrido da máquina e do organismo, ele
funde natureza e cultura em um corpo, borrando as linhas
entre elas e eliminando a validade de entendimentos
essencialistas da natureza humana. Isso inclui alegações de
que existem papéis sociais específicos reservados para cada
um dos sexos que se baseiam em diferenças biológicas
entre eles, além de outras diferenças como idade ou raça.

Você é ciborgue!

Desde que começou a praticar a agricultura, usando


ferramentas para aumentar a produção e desenvolvendo a
linguagem e a escrita, os humanos foram capazes de
aumentar suas capacidades e expandir seu potencial. Hoje,
a implantação de órgãos artificiais tem sido um
desenvolvimento vital no campo da medicina, enquanto o
smartphone, por exemplo, serve como uma extensão da
memória humana, dos nossos sentidos e também das
nossas funções mentais. Os avanços feitos no GPS e nas
tecnologias de comunicação permitem-nos estar presentes
remotamente e ainda nos conferem a capacidade de existir
fora das limitações dos nossos enquadramentos temporais
e espaciais. Todos esses aspectos da tecnologia são uma
expansão dos seres humanos e um aumento de nossas
habilidades físicas e cognitivas.

Levando tudo isso em consideração, o ciborgue parece


presente aqui e agora. Em entrevista à revista Wired,
Haraway disse que ser um ciborgue não significa
necessariamente ter chips de silício implantados sob a pele
ou peças mecânicas adicionadas ao corpo. A implicação é,
sim, que o corpo humano adquiriu características que não
poderia desenvolver por conta própria, como aumentar a
expectativa de vida. De fato, em nosso estado atual, a
cibernética existe ao nosso redor e em formas mais simples
do que as visões futuristas. Até mesmo a manutenção de
nossa aptidão física é hoje cibernética, desde o uso de
máquinas de exercícios até os muitos suplementos
alimentares disponíveis, bem como roupas e calçados
projetados para atividades atléticas. Além disso, a cultura
em torno do fitness não poderia existir sem ver o corpo
humano como uma máquina de alto desempenho cujo
desempenho pode ser melhorado ao longo do tempo.

Por outro lado, um ciborgue é “uma criatura de realidade


social, bem como uma criatura de ficção” de acordo com o
manifesto de Haraway. A internet trouxe profundas
mudanças na consciência humana e na psicologia humana.
A realidade virtual não apenas nos cerca, mas também nos
envolve em seus próprios processos. A dimensão social da
tecnologia desempenha um papel na construção de nossas
identidades, seja por meio de jogos online, fóruns de
discussão ou mídias sociais, onde nossas identidades
podem ser tão múltiplas quanto as plataformas online que
usamos.

Portanto, já podemos dizer que somos todos ciborgues,


pois a tecnologia “não é neutra. Estamos dentro do que
fazemos e está dentro de nós”, como Haraway formula. Na
vida moderna, a ligação entre humanos e tecnologia
tornou-se inexorável na medida em que não podemos dizer
onde terminamos e onde as máquinas começam.

Cibernética e feminismo

As questões feministas estão no cerne do conceito de


cibernética, pois as perspectivas desta última apagam
grandes contradições entre natureza e cultura, de modo
que não é mais possível caracterizar um papel como
natural. Quando as pessoas usam coloquialmente a palavra
“natural” para descrever algo, isso é uma expressão de
como elas veem o mundo, mas também uma afirmação
normativa sobre como deveria ser, bem como uma
declaração sobre o que não pode ser mudado.

Nesse contexto, a cibernética apaga as fronteiras de


gênero. Por gerações, as mulheres foram informadas de
que sua “natureza” as torna fracas, submissas,
excessivamente emocionais e incapazes de pensamentos
abstratos, que estava “em sua natureza” apenas serem
mães e esposas. Se todos esses papéis são “naturais”, eles
são imutáveis, disse Haraway.

Por outro lado, se o próprio conceito de humano é


“antinatural” e, em vez disso, é socialmente construído,
então homens e mulheres também são construções sociais,
e nada sobre eles é inerentemente “natural” ou absoluto.
Todos nós somos [re]construídos quando dadas as
ferramentas certas. Em suma, a cibernética permitiu uma
nova distinção de papéis, baseada nem no sexo nem na
raça, pois proporcionou aos humanos a liberdade e a
agência para se construir em todos os níveis.

Portanto, por meio de sua noção de ciborgue, Haraway


clama por um novo feminismo que leve em conta as
mudanças fundamentais que a tecnologia traz para nossos
corpos, para rejeitar os binários que representam a
epistemologia do patriarcado —binários como corpo/psique,
matéria/ espírito, emoção/mente, natural/artificial,
masculino/feminino, self/outro, natureza/cultura. A
tecnologia é simplesmente um dos meios pelos quais as
fronteiras entre identidades são apagadas. Os ciborgues,
além de serem híbridos, transcendem os binários de gênero
e podem, assim, constituir uma saída do pensamento
binário usado para classificar nossos corpos e nossas
máquinas e, portanto, “levar à abertura e incentivar o
pluralismo e a indefinição”.

A ideia de Haraway baseia-se no pleno conhecimento da


capacidade da tecnologia de aumentar o alcance da
limitação humana e, assim, abrir oportunidades para que os
indivíduos se construam longe dos estereótipos. E enquanto
Haraway descreve A Cyborg Manifesto como um mito
político irônico que zomba e ridiculariza a sociedade
patriarcal, ela ainda afirma que a cibernética estabelece as
bases para uma sociedade na qual estabelecemos nossas
relações não com base na semelhança, mas na harmonia e
no acordo.

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