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Offenbach no Rio
A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado
Nos anos 1860, uma febre de novo tipo parece ganhar o Rio de Janeiro:
Offenbach e suas óperas buffa, representadas em francês, traduzidas em
português ou parodiadas por autores brasileiros, dominam a cada dia mais os
teatros da cidade, para desgosto dos defensores da moral, do bom gosto e da
literatura nacional. A origem da epidemia encontra‐se em Mlle Aimée e a trupe
parisiense do Alcazar lyrique, nas paródias de Vasques no Phenix Dramatica e
nos espetáculos do Gymnasio, que apresentam os charmes da opereta a um
público numeroso, socialmente diversificado e majoritariamente masculino,
como testemunha a série de caricaturas publicadas pela revista satírica A Vida
Fluminense em março de 1869 sob o título “Offenbach no Rio” 1.
1 A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 13/03/1869.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
Unicamp/IEL, 2014, p. 311-324
O sucesso de Offenbach na capital imperial é mencionado em numerosos
estudos sobre a história do teatro e da música brasileira. Alguns autores veem
nesse fenômeno um sinal do afrancesamento das elites latino‐americanas e da
dominação de um novo modelo de divertimento fundado no tríptico opereta,
cocotes e café‐concerto2. Outros preconizam uma abordagem mais crítica da
presença das trupes estrangeiras na capital brasileira, insistindo no
desenvolvimento da competição internacional no ramo do espetáculo3. Outros
ainda encontram nas operetas francesas, rapidamente seguidas pelas zarzuelas
espanholas, uma das origens do teatro musical brasileiro e da aparição de novas
formas artísticas, como a revista do ano e a burleta4. Além do mais, a figura de
Offenbach foi associada à biografia de alguns atores como Vasques, a estrela do
Phenix Dramatica, e às polêmicas sobre o teatro nacional que agitaram a crítica
brasileira ao longo do século XIX5.
No entanto, as modalidades de apropriação das obras de Offenbach pelo
público brasileiro são ainda hoje pouco conhecidas. Na realidade, os autores
mencionam frequentemente apenas um número reduzido de espetáculos ‐
2 TINHORÃO, José Ramos História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34,
p. 213‐215.
3 Ver, entre outros, MERCARELLI, Fernando Antonio, « O eclectismo e as companhias
musiquais », in FARIA, João Roberto (dir.), História do teatro brasileiro. São Paulo: SESC, t. 1.
p. 253‐275.
4 Cf. LOPES, Antônio Heculano, « Da Tirana ao maxixe : a “décadencia” do teatro nacional », in
Música e historia no longo século XIX,.Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011. p. 239‐
261 ; BRITO Rubens José Souza, « O teatro cômico e musicado : operetas, mágicas, revistas de ano
e burletas », in FARIA João Roberto (dir.), História do teatro brasileiro. São Paulo: SESC, t. 1.
p. 219‐233.
5 Cf. MARZANO Andrea, Cidade em cena. O ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839 1892).
Rio de Janeiro: Faperj, 2008 ; SOUZA, Sivia Martins de, As noites do Ginásio – teatro e tensões
culturais na corte (1832 1868). Campinas: Editora da Unicamp, 2002.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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Orphée aux enfers, La Belle Hélène, Barbebleue e, eventualmente, La Grande
Duchesse e Les Brigands –, o que é muito pouco em relação às 141 criações do
maestro levantadas por Jean‐Claude Yon e ao levantamento feito na imprensa
brasileira da época. Sobretudo, o estudo da recepção foi frequentemente feito
em detrimento da análise das circulações transatlânticas, que incluem os
espetáculos e as trupes, mas também a música impressa e as traduções, e
inscrevem‐se num contexto econômico (gênese de uma cultura de massa) e
político (censura) em constante mutação.
Partem de tais constatações as questões que estão na origem deste projeto:
como medir a difusão das obras de Offenbach no Brasil para além de um discurso
voluntariamente metafórico sobre a febre tomando de assalto a capital e as
marés de espectadores se apressando para as portas do Alcazar6? Quais foram as
modalidades de circulação dos espetáculos, mas também da música, cuja difusão
não se limitava às portas dos teatros e incluía também os salões das famílias
mais respeitáveis da capital? Como analisar as interpretações e as diferentes
significações atribuídas ao repertório de Offenbach no Brasil, assim como as suas
consequências sobre a produção nacional? O programa é vasto e eu não pretendo
percorrê‐lo integralmente neste artigo. Eu gostaria simplesmente de apresentar
as primeiras conclusões da pesquisa em diálogo com a contribuição de Orna
Levin sobre “Offenbach e o público brasileiro”.
Antes de entrar propriamente no assunto, um comentário sobre as fontes
se faz necessário. A imprensa brasileira oferece informações preciosas para o
estudo da difusão do repertório de Offenbach no Rio de Janeiro e nas províncias
do Império. Os jornais diários publicam os anúncios dos espetáculos do dia na
última página, em meio a diferentes publicidades de produtos capilares ou de
venda de escravos, resenhas dos espetáculos parisienses, assim como algumas
críticas teatrais. É possível, assim, encontrar abundantes referências a Offenbach
no Diário do Rio de Janeiro (1822‐1878), no Correio Mercantil (1848‐1868), n’A
Actualidade (1859‐1864), no Jornal da tarde (1869‐1872) e na Reforma (1869‐
1879). A primeira aparição de Offenbach na imprensa carioca identificada até
esta etapa da pesquisa é um anúncio para Les Deux Aveugles, “bouffonerie
musicale en un acte” apresentada pelo “théâtre français” na sala S. Januário,
publicado no dia 15 de novembro de 1856 no Correio Mercantil. As revistas
ilustradas possibilitam igualmente acompanhar a programação dos teatros,
graças às seções especializadas que se multiplicam ao longo desse período. Além
da Vida Fluminense (1868‐1874), Offenbach está presente nas colunas do Bazar
6 Ver, por exemplo : « Acerca dos Theatros », A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 06/03/1869, p.
2‐3.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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Volante (1863‐1868) e da Revista Illustrada (1876‐1898), que publicam resenhas
dos espetáculos acompanhadas de charges satíricas. Muitas revistas em francês
são igualmente editadas no Rio nos anos de 1860 e 1870, dentre as quais
encontra‐se Bataclan. Chinoiserie francobrésilienne (1867‐1871), fundada por
Charles Berry em junho de 1867, algumas semanas após a estreia da opereta
epónima de Offenbach no Alcazar lyrique 7 . Animada pelo jornalista francês
Alfred Michon e pelo caricaturista J. Mill, a revista critica a política do governo
imperial, mas dedica também longas páginas à avaliação dos méritos
comparados das atrizes do Alcazar: as alcazalianas 8 . Esboçadas na capa,
evocadas nas crônicas teatrais, essas últimas eram igualmente objeto de uma
seção especial intitulada “L’Alcazar en robe de chambre” e redigem artigos para a
revista à moda Jeanne de Bar, chamada “bébé rose”.
As partituras conservadas no departamento de música da Fundação
Biblioteca Nacional (FBN) do Rio de Janeiro completam de forma muito útil os
dados da imprensa: editadas no Brasil ou na França, em formato integral ou em
números separados, elas atestam da pluralidade dos vetores de difusão da obra
de Offenbach no Brasil. O acervo do Conservatório Dramático Brasileiro (CDB),
instituição encarregada da censura teatral entre 1843 e 1897, constitui
igualmente uma fonte de primeira importância: conservado na FBN para o
período de 1843‐1864 e no Arquivo Nacional para a sequência 1871‐1897, ele
apresenta no entanto o inconveniente de não cobrir os anos 1865‐1870, que
marcaram justamente o começo da febre de Offenbach no Brasil.
Esse conjunto de fontes permite a formulação de uma primeira série de
hipóteses sobre a difusão do repertório de Offenbach no Rio, que poderão em
seguida ser completadas por um estudo das modalidades de circulação em escala
brasileira.
Uma feijoada?
O sucesso das operetas de Offenbach inspirou diversas metáforas na
imprensa brasileira: além da febre e da maré humana anteriormente evocadas, o
Alcazar é comparado a uma “caixa de sardinhas de Nantes9” nas noites de
7 Em maio do mesmo ano. Sobre esta revista, ver o estudo pioneiro de VELLOSO, Mônica Pimenta,
« Haute bicherie no Rio de Janeiro reconfigurações do olhar iluminista no imaginário franco‐
brasileiro », in FLÉCHET Anaïs, COMPAGNON Olivier e CAPANEMA Sílvia (orgs.), Os franceses não
tomam banho ? Imagens e imaginário da França no Brasil (sec. XIXXX). Rio de Janeiro, Fundação
Casa de Rui Barbosa, [no prelo].
8 O termo era empregado frequentemente pela imprensa da época para descrever as atrizes do
Alcazar. Cf. MENEZES Lená Medeiros, « (RE)inventando a noite: o Alcazar Lyrique e a cocotte
comédienne no Rio de Janeiro oitocentista », Revista Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, UERJ/ Faperj,
n. 20‐21, 2007, p. 90.
9 « Teatrologia », A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 25/04/1868.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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representação de La Grande Duchesse de Gérolstein em 1868 e a opereta torna‐se
uma feijoada na linguagem dos empresários de espetáculo no anos 187010. Que
realidades quantitativas escondem‐se atrás desse discurso crítico?
Em primeiro lugar, é interessante sublinhar a diversidade dos espetáculos
representados no Rio de Janeiro. Nesta altura da pesquisa, eu contabilizei 60
títulos diferentes para o período de 1856‐1889 reunidos no quadro a seguir.
Título Data de criação Língua Lugar
Les Deux Aveugles 1856 F S. Januario
Estive no Circulo ant. 1857 P S. Januario
Monsieur va au cercle 1857 F S. Januario
Une Nuit blanche 1858 F Salão do Paraíso
Les Trois Troubadours 1858 F S. Januario
Le Violoneux 1859 F Alcazar
Vent du soir ou l’horrible festin 1859 F Alcazar
L’Apothicaire et le perruquier 1863 F Alcazar
Une Demoiselle en loterie 1863 F Alcazar
Orphée aux enfers 1865 F Alcazar
Monsieur Choufleury restera chez lui le… 1865 F Lyrico Fluminense
Un Mari à la porte 1865 F Lyrico Fluminense
Les Géorgiennes 1865 F Alcazar
Les Bavards 1866 F Alcazar
Le Mariage aux lanternes 1866 F Lyrico Fluminense
La Bonne d’enfant 1866 F Théâtre des Variétés
Le Contrebandier 1866 F Théâtre des Variétés
Ba-Ta-Clan 1867 F Alcazar
Barbe-Bleue 1867 F Alcazar
Daphnis et Chloé 1867 F Alcazar
Jeanne qui pleure, Jean qui rit 1867 F Alcazar
La Belle Hélène 1867 F Alcazar
La Vie parisienne 1867 F Alcazar
Le Pont des soupirs 1867 F Alcazar
Les Trois Baisers du diable 1867 F Alcazar
Geneviève de Brabant 1867 F Théâtre des Variétés
Le 66 1867 F Théâtre des Variétés
Les Deux Vieilles Gardes 1867 F Théâtre des Variétés
La Grande Duchesse de Gerolstein 1868 F Alcazar
Le Château à Toto 1868 F Alcazar
Les Dames de la Halle 1868 F Alcazar
Mr et Mme Diniz 1868 F Alcazar
Orfeu na roça 1868 P Phenix
10 L. Odoro « Resenha teatral », Revista illustrada, 26/08/1876, p. 3.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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vezes, a versão em português antecede mesmo a original: Monsieur va au Cercle é
assim apresentado em francês no teatro São Januário em 1857, mas o relatório
da censura indica que essa peça já havia sido montada em português sob o título
Estive no círculo11. Convém acrescentar ainda ao repertório de Offenbach stricto
sensu as obras que lhe são atribuídas, assim como as paródias que se multiplicam
na segunda metade dos anos 1860. Desse gênero, a criação mais conhecida é
Orfeu na roça, uma paródia de Orphée aux enfers criada por Vasques e pela trupe
do Phenix Dramatica, que atinge as 400 representações e constitui um marco na
história do teatro no Rio12. Mas nós poderíamos citar ainda a Baroneza de
Cayapó, “immitation de la Grande Duchesse de Gérolstein”, criada pela
companhia de Furtado Coelho no Gymnasio em dezembro de 1868; Barba de
milho e Tragamoças, paródias de Barbe Bleue criadas no Phenix e no Gymnasio
em fevereiro e maio de 1869; Orfeu na cidade montada no Phenix em 1870; ou
Abel, Helena assinada por Artur Azevedo.
A maior parte dessas paródias funciona segundo um esquema similar: a
ação é transportada para o cenário brasileiro (paisagem, personagens) e
incrementada com diversos efeitos cômicos; a música, quanto a ela, permanece
idêntica e estabelece o elo com a obra original, podendo, ao mesmo tempo,
incluir certas variações. Assim, o final de Orfeu na roça inclui um fadinho
brasileiro ao longo do qual todos os personagens se entregam ao prazer de uma
dança sincopada.
Para os “puristas”, estas variações eram um suplício, como testemunham as
caricaturas que apareceram na imprensa da época13.
11 Arquivo CDB (FBN) : I‐8‐14, 112.
12 Cf. SOUZA, Silvia Cristina Martins de. « Um Offenbach tropical: Francisco Correia Vasques e o
teatro musicado da segunda metade do século XIX », História e Perspectivas, Uberlândia, 2006, n.
34, p. 225‐259.
13 A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 13/03/1869.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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Elas constituem, no entanto, vetores de difusão eficazes do repertório de
Offenbach, do qual elas propõem uma primeira modalidade de abrasileiramento
que seria conveniente estudar mais profundamente. Como percebeu
judiciosamente Antônio Herculano Lopes, essa estratégia de criação se baseia na
deformação cômica, mas procede também a uma busca de legitimação
retomando o repertório francês tão apreciado pelas elites brasileiras14. Mais do
que “paródia”, é o termo de “imitação” que a imprensa emprega para anunciar os
espetáculos, o nome de Offenbach servindo, de uma certa maneira, como apelo.
14 Op. cit., p. 255.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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15 A Reforma, Rio de Janeiro, 19 /06/1869 [citado por Orna Levin]
16 SOUZA, Silvia Cristina Martins de. « O teatro de São Januário e o “corpo caixeiral”: teatro,
cidadania e construção de identidade no Rio de Janeiro oitocentista », Associação Nacional de
História – ANPUH XXIV Simpóqio nacional de história, 2007.
17 Revista illustrada, Rio de Janeiro, 17/06/1876, p. 3; n. 255 07/1881, p. 3 ; n. 693, 08/1895, p. 6‐
7.
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de “papa Arnaud”. Afim de alimentar o seu viveiro, esse último desloca‐se
regularmente a Paris, onde ele seleciona peças e contrata atores. Suas viagens
são objeto de numerosos comentários na imprensa brasileira, ávida por
descobrir as novidades de Paris, como testemunha esta nota publicada na Vida
Fluminense em dezembro de 1872:
“A chegada do Sr. Arnaud e da troupe parisienne só poderá efetuar‐se a 23 do
corrente. Exultai, habitués ! Exultai ! É fora de duvida que o fino diretor fez a
mais acertada aquisição, e que, graças a ela, em breve voltarão as noites cheias do
teatro francês. Para estreia da troupe vai entrar em ensaios a ópera buffa de
Offenbach, sob o título de : Les Brigands ! 18”
Estabelecer a galeria de atores do teatro francês e retraçar suas idas e
vindas entre Paris e Rio constitui um dos objetivos maiores da pesquisa futura.
Uma primeira análise da distribuição realizada a partir dos anúncios publicados
na imprensa permite, no entanto, afirmar que, como um todo, os atores franceses
que se produzem no Rio não são “celebridades” das buffas parisienses, para
retomar a expressão do cronista teatral da Vida Fluminense: “Mathilde
Lafourcade, embora não seja a celebrité de la famille, é inquestionavelmente a
melhor cantora, que até hoje tem pisado as taboas do teatro francês. 19” A única
artista de peso a se produzir no Brasil ao longo desse período é Zulma Bouffar,
que interpreta uma seleção de cenas de La Vie Parisienne no Gymnasio em agosto
de 187220.
No entanto, os atores franceses são facilmente apresentados como
“estrelas” pela imprensa brasileira: Mlle Aimée é “estrela parisiense”, “Mlle
Dauran, estrela marselhesa”, Mlle Arsène, “a pérola lionesa”, etc21. O charme
dessas atrizes foi frequentemente interpretado como a chave do sucesso de
Offenbach, que teria assim tido êxito em seduzir os críticos mais sépticos.
Machado de Assis, ainda que fervoroso defensor do teatro nacional, descreve
assim Mlle Aimée: « É um demoninho louro, uma figura esbelta, graciosa, meio
angélica, uns olhos vivos, um nariz como o de Safo, uma boca amorosamente
fresca, que parece ter sido formada por duas canções de Ovido, enfim, a graça
parisiense, toute pure 22 ». Porém, a admiração dos críticos brasileiros não
envolve de forma incondicional o conjunto da trupe parisiense, algumas
“estrelas” caindo rapidamente do seu firmamento. Em 1876, a partida de Mme
Henry é festejada por estes comentários severos na Vida Fluminense: “Bem
18 A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 10/12/1872, p. 6.
19 « Acerca dos Theatros », A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 06/03/1869, p. 2‐3.
20 « Rapadura teatral », A Vida Fluminense, Rio de Janeiro, 31/08/1872, p. 3.
21 Ver, por exemplo, Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 20/03/1868, p. 4.
22 Citado por BRITO, Rubens José Souza, op. cit., p. 222.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
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grossa deve ser a nuvem em que tem de sumir esta ultima estrela, que se não é
de primeira grandeza é com certeza de primeira gordura23”.
Apesar de tais reservas, os itinerários dos atores constituem um indicador
de primeira importância para acompanhar a circulação das obras não somente
entre Paris e Rio, mas também entre a capital imperial e as outras cidades do
Brasil. Para além dos espetáculos no Alcazar lyrique, a trupe parisiense efetua
turnês nas Províncias do Império durante a qual ela entusiasma o público, como
no Maranhão em fevereiro de 186824. Ela visita também em diversas ocasiões a
Argentina, assim como a companhia do teatro Phenix25 – estabelecendo um eixo
Rio / Buenos Aires cujo peso deve ser considerado para o estudo das circulações
transatlânticas. Vem acrescentar‐se a circulação das trupes entre o Brasil e
Portugal, que se acentua a partir dos anos de 1880, graças à atividade de certos
dramaturgos e empresários do espetáculo como Antônio de Sousa Bastos26.
As partituras constituem um segundo vetor de difusão do repertório de
Offenbach no Brasil. Algumas são editadas na França e distribuídas pelos
editores brasileiros como indicam os carimbos apostos sobre a primeira página
dos libretos. A partitura de La Chanson de Fortunio, conservada na FBN,
apresenta assim dois carimbos: o primeiro indica o editor parisiense Au
Ménestrel, Heugel & Cie, situado no 2 bis rue Vivienne; o segundo, o distribuidor
brasileiro, no caso “o estabelecimento imperial Narciso & Artur Napoleão, Pianos
e Músicas” instalado no 60‐62, Rua dos Ourives no Rio de Janeiro. Da mesma
forma, Le Fille du tambour major, editada por Choudens père et fils em Paris,
apresenta o carimbo do estabelecimento de “piano e músicas” de Isidoro
Bevilacqua situado no 43, Rua dos Ourives, no Rio27. Ademais, essa partitura
apresenta a vantagem de conter várias menções escritas. Nela encontramos
assim a seguinte indicação: “representado pela primeira vez em Português no
Théâtro das Novidades, 1˚ de julho de 1883, Rio de Janeiro. Direção: Sousa
Bastos.” – assim como a distribuição dos diferentes papéis. Longas passagens do
libreto são igualmente traduzidas diretamente na pauta musical – o que permite
acompanhar de perto o procedimento de apropriação. A partitura de Pont des
soupirs, conservada na FBN, contém igualmente longas passagens traduzidas à
23 L. Odoro, « Resenha theatral », Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 13/04/1876, p. 2‐3.
24 « Correspondência. Maranhão », Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29/02/1868, p. 2.
25 L. Odoro, « Resenha theatral », Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 07/12/1876, p. 3.
26 Não obstante um caráter voluntariamente romanceado, encontra‐se preciosas indicações sobre
as carreiras transatlânticas dos atores (principalmente coadjuvantes) nos escritos de Sousa
Bastos sobre o teatro. Cf. Carteira do artista. Apontamentos para a historia do teatro português e
brasileiro. Lisboa: José Bastos, 1898.
27 Sobre este editor, ver LEME, Mônica Neves, « Isidoro Bevilacqua e Filhos : radiografia de uma
empresa de edição musical », in LOPES et alii, Música e historia no longo século XIX. Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011, p. 117‐160.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
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mão para o português, assim como passagens riscadas que oferecem preciosas
indicações sobre os processos de seleção da obra na criação de espetáculos além‐
mar. Por ora, eu não identifiquei com precisão o autor de tais traduções, mas
pode tratar‐se de Eduardo Garrido, que traduziu diversas operetas de Offenbach
para o português, inclusive Orphée aux enfers, La Grande Duchesse de Gerolstein e
Le Voyage dans la lune28.
Para além das traduções, partituras são editadas no Brasil. Trata‐se, na
maioria dos casos, de números separados para piano. O editor musical Filippone
e Tornhaghi, situado no 101 da Rua do Ouvidor no Rio, publica assim uma série
de quadrilhas sobre temas de Offenbach, como Les Bavards, Toto e La Belle
Hélène com arranjo de E. Kelterer. A casa de piano Buschman e Guimarães,
situada no 52, Rua dos Ourives, publica a quadrilha de Orphée aux enfers por
Strauss; J. C. Meirelles & Cie põe à venda números separados das Géorgiennes no
58, Praça da Constituição (atual Praça Tiradentes); enquanto que a casa de
música A Lyra de Apollo, situada no 111, Rua do Ouvidor, propõe uma quadrilha
do Roi Carotte e a valsa de La Belle Hélène por Strauss. Essas partituras são
interessantes sob diversos aspectos. Por um lado, elas lembram a importância do
impresso nas circulações musicais numa época onde as técnicas de gravação
ainda são balbuciantes – a primeira apresentação do fonógrafo de Thomas
Edison data de dezembro de 1877. Por outro lado, elas indicam que a difusão das
obras de Offenbach transbordam largamente as salas de espetáculo. Assim, se o
Alcázar é proibido às meninas de boa família, elas constituem o principal alvo
dos comerciantes de piano e dos editores de partitura, o que convida a repensar
não somente a questão do gênero, mas também a dimensão social da difusão do
repertório de Offenbach.
À guisa de conclusão, eu evocarei brevemente a questão da recepção –
estudada mais detalhadamente por Orna Levin. O nome de Offenbach foi
frequentemente associado às noções de crise e de decadência no Brasil: crise do
teatro nacional em concorrência com trupes estrangeiras, decadência do gosto
do público buscando unicamente a diversão, degenerescência dos costumes
sobretudo – o reino das cocotes ameaçando a perenidade da família patriarcal e
anunciando o desregramento das relações de gênero. A consulta das fontes da
época na sua diversidade convida, entretanto, a nuançar essas afirmações. Até
hoje, eu não encontrei nenhuma indicação de obra censurada nos arquivos do
Conservatório Dramático Brasileiro. Para o período de 1843‐1864, existem
relatórios sobre as seguintes peças: L’Apothicaire et le perruquier, Le 66 !, Le
28 Cf. Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 13/ 04/1876, p. 2‐3 ; 20/10/1877, p. 2.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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29 Rio, 9 de maio de 1859. Archives CDB (FBN) : I‐08.16.003.
30 Segundo A. Gil no editorial da Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 28/07/1877.
31 « Resenha theatral », Revista Illustrada, Rio de Janeiro, 20/05/1876, p. 3.
Offenbach no Rio. A febre da opereta no Brasil do Segundo Reinado. In. Abreu Márcia, Deaecto
Marisa Midori (Org.). Conexões. A Circulação Transatlântica dos Impressos. São Paulo: Edusp,
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traduzimos como devíamos, o público não entenderia”. O público tem as costas
largas32”.
Para concluir, parece‐me que numerosas pistas se apresentam a nós para
estudar a presença de Offenbach no Brasil: os lugares, os homens, as partituras,
mas também a censura e a crítica formam um conjunto complexo e por vezes
contraditório que convida a pensar no plural e em diferentes escalas as
modalidades de circulação da opereta francesa entre as duas margens do
Atlântico.
Anaïs Fléchet
Université de Versailles Saint‐Quentin‐en‐Yvelines
Centre d’Histoire Culturelle des Sociétés Contemporaines
32 JULY, Daniel, « Pelos Teatros », Revista Illustrada, Rio de Janeiro, n. 351 08/1883, p. 6‐7.