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MARIA DO ROSARIO VALENCISE GREGOLIN


Universidade Estadual Paulista - Araraquara

O JECA NACIONAL: MÚLTIPLOS


OLHARES DO INTERDISCURSO

Abstract algum tempo, insistindo na importância de incorpo-


rarem-se diferentes gêneros discursivos, reconhecen-
This paper discusses research results about do o seu papel de produtores de sentidos na socieda-
language learning from the perspective of discourse de contemporânea. Mas, do mesmo modo que não há
analysis, focusing on the meaning construction as a clareza sobre como trabalhar com a “literatura”, tam-
result of intertextual strategies. It proposes that tex- bém em relação a essa incorporação não existem
tual interpretation is a linguistic and historical definições claras. O propósito deste trabalho é apon-
process. tar alguns caminhos, direcionados pelas aquisições
da Análise do Discurso, que possam evidenciar a
Palavras-chave: discurso; interpretação; ensino; importância da leitura plural, da leitura dos inter-
interdisciplinaridade. discursos que atravessam os diferentes gêneros
discursivos e que, nesse deslocamento, constróem os
sentidos sociais.
Leitura e interpretação da leitura
na escola O gênero literário e a produção social
do sentido
A história da leitura no mundo ocidental foi
construída ao longo de um demorado processo histó- Segundo Bakhtin (1994), as modalidades da
rico em que os homens acostumaram-se com uma nova enunciação estão constitutivamente articuladas aos
forma de pensar e transmitir o conhecimento gêneros discursivos pois cada esfera da atividade
(Manguel, 1997; Chartier, 1998). Com a vinculação social possui formas textuais cristalizadas. Os efei-
da leitura à instituição escolar, ela transformou-se em tos de sentido que circulam nos discursos produzi-
uma atividade social e a sociedade passou a entendê- dos em uma sociedade, constróem, com as formas
la como signo de prestígio, de distinção entre os letra- discursivas típicas de cada um desses diversos gêne-
dos e os iletrados. Do mesmo modo, a escola, espaço ros, as representações do imaginário de uma certa
de institucionalização da leitura, tornou-se uma ins- época.
tância de julgamento e valoração de textos. Desde sua O discurso cristaliza as práticas de textualização
origem, a instituição escolar dita, subrepticiamente, em formas textuais. Essas práticas ocorrem em luga-
qual deve ser o gosto do leitor através da seleção de res sociais organizados e reconhecidos como porta-
materiais que considera “positivos” e da expulsão dores de fala: o campo literário, o campo científico,
daqueles considerados “negativos”. o campo político, etc. As regras do modo de dizer
Focalizaremos, neste trabalho, um gênero dis- condicionam todos os atos de fala sociais. Assim, toda
cursivo sobre o qual a escola pensa ter certezas: o produção de sentidos deve dar-se no interior desses
gênero literário. Tradicionalmente, considera-se que campos institucionalmente constituídos como “luga-
a escola é o lugar institucional de leitura e aprendiza- res de onde se fala”. Falar do interior desses campos
do do literário. Ocorre, mesmo, que a maioria de nos- significa inserir-se em uma formação discursiva que
sa população só tem contato com a literatura nos ban- determina os modos de dizer e aquilo que se pode e
Revista
cos escolares. Como instância de julgamento sobre a se deve dizer em certa época (Foucault, 1985).
“boa” e a “má” leitura, a escola valoriza os textos lite- Esses campos não são, entretanto, fechados. Ao do GELNE
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rários a partir de um vago conceito de “literatura”, e contrário, uma formação discursiva é “constantemen-
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expulsa os textos considerados “maus”, como, por te invadida por elementos que vêm de outro lugar 2000
exemplo, aqueles ligados à cultura de “massa”. No (isto é, de outras formações discursivas) que se re-

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entanto, o próprio discurso oficial da escola vem, há petem nela, fornecendo-lhe suas evidências discur-
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sivas fundamentais – por exemplo, sob a forma de enraizadas na História, constituem o nacional como
pré-construídos e de discursos transversos” uma fala transversa.
(Pêcheux,1990; 314).
O interdiscurso, domínio comum de figuras, de O Jeca-Tatu e a constituição da
estereótipos, de maneiras de imaginar, é, ao mesmo nacionalidade
tempo, uma região de confronto de sentidos em que
idéias contrárias se digladiam. A interpretação, como Na construção do imaginário coletivo brasileiro,
construção de uma representação coletiva, é alimen- o “outro” (contraponto identidade/alteridade) ora é o
tada exatamente por essa contradição: ao mesmo tem- Primeiro Mundo - horizonte de chegada a ser atingido -
po em que os discursos se confraternizam eles se con- ora são os “subalternos”, os marginais que revelam os
frontam no campo social. Os gêneros, materialização problemas não resolvidos. Desde a primeira geração da
textualizada dos discursos, estão, por isso, em cons- literatura “nacional”, nos momentos pós-Independên-
tante redimensionamento e reconfiguração e a inter- cia, os intelectuais viram-se diante do problema de for-
pretação de um texto deve ser feita dentro do amplo mular uma identidade em uma sociedade herdeira de
domínio dos campos discursivos que o circundam pois um colonialismo que se desagregara. Esse movimento
nenhum texto esgota-se em si mesmo (Gregolin, 1997). resultou em um esforço de auto-conhecimento (Sodré,
O que caracteriza o “modo de dizer do literá- 1995) . Assim, desde os primórdios a literatura brasi-
rio” nesse complexo movimento discursivo de que se leira estava marcada pelo compromisso com a vida
alimentam (e se reproduzem) as representações do nacional. Mas os confrontos com a alteridade demora-
imaginário coletivo? Como a fala literária se articula ram a serem equacionados e resolvidos. A busca da iden-
com outros gêneros em determinada época? tidade vai dar-se, nesses primeiros tempos, pelo olhar
Ao pensarmos a obra literária inserida na ques- ilustrado de formação européia. Estudiosos da
tão do “gênero discursivo”, pensamos nos usos so- historiografia literária brasileira, como Schwartz (1977)
ciais da literatura, na sua função dentro de uma deter- mostram que a transplantação de idéias européias re-
minada sociedade. Função não imediatamente tardou, nos escritos literários do Brasil, a resolução dos
utilitária, já que a mimesis não é a cópia da realidade, conflitos e a construção de uma “mentalidade verda-
mas a atividade de reconhecimento, no “mundo da deiramente nacional”. Tanto o discurso literário quanto
obra”, dos mundos verossímeis. Buscar a relação en- o histórico (de que Varnhagaen era a voz “oficial”) mi-
tre obra literária e sociedade significa tentar desven- ravam a Europa como modelo ao mesmo tempo em que
dar o que ela propicia enquanto portadora de um co- índios e negros - idealizados em verso e prosa - consti-
nhecimento que vai ser interpretado pelos leitores e tuíam o “outro” incômodo a lembrar à elite sua dívida
levá-los ao reconhecimento da identidade/alteridade; com o passado colonial.
entender o seu papel cognitivo e pragmático de levar O “nacionalismo” do período romântico - essa
o leitor a estabelecer laços imaginários com o “outro” primeira tentativa organizada de constituir uma “men-
e reconhecer-se, já que “não é por si mesma que a talidade nacional”- buscava a supervalorização do exó-
obra literária significa, mas sim pelos processos de tico e, com isso, idealizava o espaço nacional por meio
interpretação variados que colocam em ação as múlti- de figuras que, como na literatura indigenista de
plas dimensões do jogo com o real” (Leenhardt, 1998). Alencar, dissumulavam as mazelas nacionais. A gera-
Tomando como baliza essa relação fundamen- ção seguinte, já no final do século XIX, com as mu-
tal entre a literatura e a história na construção do danças histórico-sociais brasileiras, expressa uma
imaginário de uma sociedade, propomos entender as maneira de pensar o “nacional” que coloca mais ex-
formas de representação do imaginário social no dis- plicitamente a Europa como o centro da alteridade:
curso literário e compará-las com outros discursos pensar a identidade passa a ser a busca de um método
com os quais a literatura dialoga no contexto históri- científico de ordenar o caos. Os modelos científicos
co-social. da época (principalmente Darwin, Comte e Spencer)
Para pensarmos essas questões, que envolvem dão a tônica da resolução das diferenças: o meio e a
a reflexão, ao mesmo tempo, da especificidade do li- raça são responsáveis pelo atraso brasileiro, já que -
terário e de sua função em um contexto histórico, pro- cientificamente - nossa sociedade está condenada à
pomos tratar a construção da representação imaginá- mestiçagem. Apesar da visão enviesada pelo cienti-
ria do “nacional” como um tema que atravessa a ficismo positivista, assiste-se, nesse final de século,
História brasileira e que encontra na Literatura um a vários gêneros discursivos que buscam a interpreta-
fértil terreno de combates. ção histórica e social da vida brasileira. Principalmente
A fim de tratar dessa representação, tomamos a com Euclides da Cunha na literatura, Sílvio Romero
figura do Jeca Tatu, criada por Monteiro Lobato em na crítica e Oliveira Viana na história, acontecia um
Urupês (1918), na qual o homem, a história e o espa- movimento geral, uma tentativa ainda desordenada
Revista
ço geográfico estão entrelaçados. Com a leitura do de formulações culturalmente brasileiras” (Sodré,
do GELNE diálogo que essa figura estabelece com outros gêne- 1995; 403-428).
Vol. 2 ros discursivos do mesmo período, analisaremos o Nesse movimento de representação do nacio-
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interdiscurso em que os sentidos transitam, se digla- nal, a grandeza do meio físico é a figura que recobre
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diam e se solidarizam. Nesses discursos, diferentes a busca de afirmação: a fascinação pelo meio geográ-

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modos de dizer, são construídas representações que, fico subtende o discurso ideológico que pressupõe
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que “o meio físico molda a criatura e a coletivida- do em nossa cultura desde o início da colonização.
de”. É o discurso geográfico dominante no final do Sua origem está na resistência do indígena ao traba-
século XIX, que tem na base as idéias do lho escravo e justificou a escravidão dos negros tra-
“determinismo geográfico” e da “teoria do espaço zidos da África para sustentarem as culturas da cana-
vital” de Ratzel, que se deixa entrever nesse regiona- de-açúcar e do café. Fundou-se, com a justificativa
lismo (Moreira, 1984). A busca de um conceito de desse mito, uma sociedade de senhores versus es-
nacionalidade vai ser feita pelo viés de um cravos, em que a população que não se encaixava em
descritivismo realista, em que o espaço físico e cul- nenhuma dessas categorias tornou-se marginalizada
tural de uma região representa a interpretação confi- pois trabalhar, para quem não era nem escravo nem
gurada do Brasil. A descrição realista aproxima a lite- senhor, era a mais aviltante das atividades. Com essa
ratura da arte figurativa ao mesmo tempo que acentua representação de que o trabalho era coisa de escra-
o valor documental do literário. vos, criou-se uma massa desorganizada que recusava
Com Urupês (1918), Monteiro Lobato demons- trabalhar, considerando-a uma experiência aviltante.
tra a consciência crítica das mazelas nacionais. O per- O mito da preguiça justificou também o incentivo à
sonagem Jeca Tatu, que figurativiza o caboclo do in- vinda dos imigrantes europeus, que substituíram os
terior paulista, fotografa o atraso de parcela da escravos logo após a abolição da escravidão, e fo-
sociedade e o descaso dos governantes com as condi- ram sujeitados ao mesmo tipo de exploração
ções de vida dessa gente. A famosa preguiça do Jeca escravista. Os colonos europeus só podiam possuir
delineia o retrato do fatalismo e da ignorância a que a terra se trabalhassem por um período, em regime
essa população está submetida: de escravidão, para o senhor proprietário das terras.
Essa oposição entre o imigrante trabalhador e
“Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance o Jeca, brasileiro caboclo preguiçoso, aparece no
e feio na realidade! Jeca marcador, Jeca lavra- Urupês, e vai circular em grande escala na sociedade
dor, Jeca filósofo... Seu grande cuidado é es- quando Lobato transforma o personagem em “garo-
premer todas as conseqüências da lei do menor to-propaganda” dos laboratórios Fontoura por meio
esforço – e nisto vai longe. Começa na mora- do folheto Jeca-Tatuzinho, distribuido gratuitamente
da. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bi- nas farmácias do país:
chos que moram em toca e gargalhar ao
joão-de-barro. Pura biboca de bosquímano. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não
Mobília nenhum. A cama é espipada esteira era com ele. Perto morava um italiano já bas-
de peri posta sobre o chão batido. Às vezes se tante arranjado, mas que ainda assim trabalha-
dá ao luxo de um banquinho de três pernas – va o dia inteiro. Por que Jeca não fazia o mesmo?
para os hóspedes. Três pernas permitem o equi- Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:
líbrio, inútil, portanto, meter a Quarta, o que - Não paga a pena plantar. A formiga
ainda o obrigaria a nivelar o chão. (...) Seus come tudo.
remotos avós não gozaram maiores comidades. - Mas como é que seu vizinho italiano não
Seus netos não meterão Quarta perna ao ban- tem formiga no sítio?
co. Para quê? Vive-se bem sem isso. (Jeca-Tatuzinho, 1927; pag. 03)

A figura do Jeca Tatu dialoga com outros dis-


cursos, históricos e sociológicos, do período, que dis-
cutem o mito da preguiça do povo brasileiro. Esse
mito está presente na memória discursiva(1), alimenta-
da pelo discurso da História oficial do colonizador e
pela voz dos viajantes:

“O caipira, se não anda nas suas aventurosas


excursões, encontra-lo-eis sentado à porta do
lar, fumando seu cigarro de fumo mineiro e
olhando o seu cavalo, que rumina, tão pre-
guiçoso como ele, a grama da estrada. Essa
gente, mais guerreira do que agricultora, não
trabalha, não lida, e a sua atividade não pro-
duz, consome-se.” (A. E. Zaluar. Peregrinação
pela província de São Paulo – 1860-61)
Revista
Sérgio Buarque de Hollanda, em Raizes do Lobato foi um dos maiores criadores da in- do GELNE
Brasil, trata desse mito que esteve sempre enraiza- dústria cultural. Durante o longo período de sua Vol. 2
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É possível ver o mito materializado, por exemplo, na tela O caipira de Almeida Júnior.
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distribuição, o folheto Jeca Tatuzinho chegou a 29 paço real” e o transformam em “espaço romanesco”.
milhões de exemplares. Com essa estrondosa circu- Ao construir essa representação, a literatura articula-
lação, foi responsável pela desmistificação da repre- se com outros textos e participa do processo históri-
sentação do “caboclo” como preguiçoso, desanimado co da inserção do homem na sociedade.
e sem forças: Pensando a escola como espaço onde deve ser
exercitada a leitura plural, a leitura capaz de deslocar
Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, o olhar para os diferentes gêneros de discurso que
numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em compõem os sentidos sociais, propomos, neste traba-
companhia da mulher, muito magra e feia, e de vári- lho, a leitura das figurações do nacional na obra de
os filhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os Monteiro Lobato como um interdiscurso que retoma
dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de pa- textos históricos e geográficos. O que se propõe, nes-
lha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. (...) Um dia te texto , a partir da do instrumental da AD, é o deslo-
um doutor portou lá por causa da chuva e espantou- camento do olhar para a articulação entre a literatura
se de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e e as representações culturais, buscando as inter-rela-
magro, resolveu examiná-lo. ções entre os vários discursos que subjazem ao literá-
– Amigo Jeca, o que você tem é doença.(...) Você so- rio como produto da História.
fre de ancilostomíase ... amarelão.
Referências Bibliográficas
A modernidade de Lobato está no fato de que a
preguiça do Jeca não é justificada por um discurso BAKHTIN, Mikail. Os gêneros do discurso. In: Esté-
ideológico do mito da preguiça nacional. Acompa- tica da criação verbal. São Paulo: Martins Fon-
nhando a evolução da ciência do início deste século, tes, 1994.
Lobato desvenda as causas do desânimo do homem FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio
do campo, mostrando que as suas condições de vida de Janeiro: Forense Universitária, 1985.
eram responsáveis pela desnutrição e pelas doenças GREGOLIN, Maria do Rosario V. Discurso e me-
como o “amarelão”. A propaganda dos produtos dos mória: movimentos na bruma da História. In:
Laboratórios Fontoura vem justamente mostrar – POSSENTI, S. & CHACON, L. Análise do
didaticamente - que era a ignorância a principal causa Discurso. Marília: FCF-UNESP, 1997, pp.
daquilo que sempre fora pintada como sendo a “pre- 45-58.
guiça” do caboclo.
LEENHARDT, Jacques & PESAVENTO, Sandra
Lobato revela, com a figura do Jeca que a visão
Jatahy (1998). Discurso Histórico e Narra-
determinista do mito da preguiça era usada para justi-
tiva Literária. Campinas: Editora da Uni-
ficar que não houvesse educação para o povo. Nesse
camp, 1998.
sentido, ele promove uma “redescoberta do interior
LOBATO, Monteiro. Urupês. São Paulo: Brasili-
do Brasil” e revela a necessidade da mudança da men-
ense, 1959 (1ª ed. 1918).
talidade para acompanhar as profundas transforma-
ções político-sociais por que passava o Brasil no iní- LOBATO, Monteiro. Jeca Tatuzinho. São Paulo:
cio do século XX. Com esse desvelamento, Lobato Bloch Editores, 29ª ed., 1959 (1ª ed. 1927).
ajudou a construir uma nova representação da identi- MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad.
dade nacional. Essa releitura do Brasil inspira-se na Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das
diversidade, na multiplicidade, nos contrastes entre o Letras, 1997.
velho e o novo, entre o rural e o urbano. A complexi- CHARTIER, Roger. A aventura do livro. Do leitor ao
dade da sociedade multirracial e multicultural dese- navegador. São Paulo: Editora da Universidade
nhada na obra de Lobato coloca em cheque a supre- Estadual Paulista, 1998.
macia do olhar europeu. MOREIRA, Ruy. Geografia. São Paulo: Brasi-
liense, 1994.
Por um ensino interdisciplinar: lendo PÊCHEUX, Michel. Análise do Discurso: três épocas.
a materialidade do interdiscurso In: GADET, F & HAK, T. (org.). Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra
A percepção do tempo e do espaço permitiu ao de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da
Homem tornar-se histórico. Compreendendo-se nes- Unicamp, 1990.
sa coordenada espácio-temporal, pôde desenvolver a SCHWARZ, Roberto. As idéias fora de lugar. In:
memória e representar-se na história. O espaço é uma Ao vencedor as batatas. Campinas: Duas Ci-
construção imaginária coletiva por meio da qual o “eu” dades, 1977.
Revista estabelece identidades e diferenças, subjetividades e SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura
do GELNE alteridades. Os textos literários participam dessa cons- Brasileira. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Vol. 2 trução na medida em que as obras transfiguram o “es- Brasil, 1995.
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