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Artigo | Agora que mudou o ano, a gente

vai lembrar da solidariedade para 2021?1


“A ‘ordem’ social injusta é a fonte geradora, permanente, desta
‘generosidade’ que se nutre da morte, do desalento e da miséria.” —
Paulo Freire

2020 foi um ano de muitos aprendizados. Uma frase atribuída a Dalai

Lama diz que “A tragédia deve ser utilizada como uma fonte de força”,

pois bem, a força que surgiu da tragédia do coronavírus foi a

solidariedade.

O último ano nos ensinou a importância do cuidado com o próximo. Nos

reconectou com o coletivo, nos ensinou que cuidar do outro é cuidar de

si. Que não existe “EU”, isolado. Mostrou, de forma nem um pouco

amigável, até para os mais individualistas que não é possível superar o

caos sozinho, que viver em sociedade é pensar no outro. Foi um ano que

ressignificou a existência em coletivo.

Nos primeiros meses, viralizou nas redes sociais vídeos de pessoas

chamando atenção de outras por não utilizarem máscaras em espaços

públicos. O medo, pelo eu e pelo nós, fez com que, inclusive, a

1
Artigo de opinião veiculado no jornal Brasil de Fato RS -
https://www.brasildefators.com.br/2021/01/04/artigo-agora-que-mudou-o-ano-a-gente-vai-lembrar-da-soli
dariedade-para-2021
responsabilização e cobrança sobre desconhecidos passasse a ser

socialmente aceita.

No entanto, aos poucos a relativização da tragédia foi ganhando espaço.

Primeiro com mentiras, remédios e curas milagrosas. Depois com a

desvalorização de quem está na linha de frente lutando para que o caos

termine o mais breve possível, afinal, “essa vacina é coisa de

esquerdopata”, esses cientistas “são tudo vagabundos comprados pela

China”. De pouquinho em pouquinho o individualismo vai ganhando pé

outra vez e se sobrepondo à coletividade.

A tentação de um “rolê” passa a ser cogitada e, aos poucos,

experimentada, afinal “já me expus em tantas outras ocasiões, indo no

mercado, no ônibus, indo trabalhar…”. Só ver minha família no final de

semana, e de pai e mãe, passa a ser um churrasco com tios e primos. Fim

de ano então, reúne vó, vô, talvez até aquele amigo que ia passar

sozinho…

Quando percebemos, estamos xingando o influencer bolsominiom na

internet enquanto no cotidiano promovemos nossas próprias

aglomerações, sem perceber que já acabamos aderindo a esse movimento

negacionista. Quando a gente já cansou de todo aquele ritual de

higienizar tudo o que vem do mercado, de trocar a roupa ao chegar em

casa e colocar a roupa que usou na rua pra lavar. Quando a gente passa a

usar a máscara somente em espaços fechados em que é obrigatório

(lojas, supermercados, farmácias, ônibus), ou para falar com pessoas que


a gente sabe que se cuida mas na primeira oportunidade de tirar a

máscara, tiramos! Ninguém aguenta mais a máscara, isso é certo. A

gente sequer se importa mais com o manuseio correto dela. Aquele,

ensinado lá no início da pandemia, lembram? Higienizar as mãos antes

de tocá-la para não contaminar, trocar as descartáveis a cada duas horas,

botar a de pano para lavar cada vez que for utilizada, não deixá-la

pendurada na orelha ou em baixo do queixo e cobrir bem o nariz.

Pois é… parece que com a naturalização do caos e das mortes, perdemos o

medo, parece que sequer nos importamos mais. A narrativa do “ano

perdido” é algo que parece já estar impresso em nossas mentes.

Obviamente não busco aqui, nem de longe, romantizar a pandemia pelos

seus “aprendizados”. Agora que mudou o ano, é preciso, no entanto,

olharmos para as contradições que se acirraram nesse processo e que

ficaram expressas no comportamento da população: O caos veio, a

solidariedade e as saídas coletivas foram o que apontou um sul para a

crise nos primeiros meses, aos poucos, conforme o caos foi deixando de

ser novidade a narrativa do individualismo veio com força em disputa à

hegemonia.

A luta pela redução dos efeitos econômicos se sobrepondo a luta pela

redução dos efeitos sociais. Ainda que no sistema em que vivemos não

deveria surpreender que o dinheiro se sobreponha à vida. A pandemia

deixou isso ainda mais explícito, ressaltou que o Estado e o

Empresariado tratam a vida humana como descartável, nesse sentido se


torna necessário que se fomente ações coletivas de solidariedade como

os movimentos sociais vem fazendo. É importante que se cultive a

construção de valores comuns de solidariedade visto que o

individualismo não resolve problemas coletivos.

A solidariedade em 2020 nos mostrou que com muito pouco, mas com

boa vontade, é possível fazer muito. O cuidado com o próximo nos fez ter

paciência para nos cuidarmos. Essa solidariedade, no entanto, não pode e

não deve tomar o lugar do poder público. A solidariedade deve ser laços

comuns entre o povo para enfrentarmos a crise juntos. Etapas, da

construção coletiva de um novo mundo. Não pode ser confundida com a

filantropia individualista, para aplacar a consciência pequeno burguesa.

É importante que seja lembrado que ação individual não substitui política

pública. A luta contra a fome passa por políticas de distribuição de renda,

somente através dessas políticas - Bolsa família, auxílio emergencial, a

tão sonhada renda básica, universal, de cidadania, - que é possível

alterar a ordem social injusta, para que a “generosidade” não precise

existir. A solidariedade ativa passa por essas lutas. A filantropia alimenta

o ego, mas é a solidariedade ativa que liberta.

O novo ano chegou e a pandemia não acabou só porque o calendário

mudou quando o relógio deu meia noite. O coronavírus ainda está

circulando, sofrendo mutações. A vacina não chegou, e para termos

previsão de chegada precisamos contar com a boa vontade de prefeitos e

governadores, já que o Presidente virou chacota internacional por

declarações de que a vacina transformaria as pessoas em jacaré.


Os tempos difíceis não se extinguirão sem o cuidado coletivo, sem a

solidariedade. Não a solidariedade assistencialista, mas a solidariedade

ativa, política.

É preciso que os laços que nos uniram quando a pandemia começou,

sejam mais fortes que o individualismo, o cansaço e o descaso. É preciso

lembrar constantemente que a "boa ação", a "generosidade" de ocasião,

não resolvem o problema da desigualdade e da fome. O que resolve é

política pública, e nesse momento, ser solidário é lutar por sua

implementação.

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* Maria Eduarda Carneiro da Silva


Bacharela em Ciências Sociais - UFRGS;
Mestranda em Estado Gobierno y Políticas Públicas - Flacso.

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