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CAPÍTT]LO VII

o rNeuERrIo poR euEsTroNÁnlo NA coNS-


TRUÇAO DE DADOS SOCTOLOGICOS

Virgínia Ferreira *

Toute la science dc I'observatíon se réduit pour noi à deux


poi tnres.

Joseph-Étienne Jouy, 1815

l.OIN NA PRÁTICA SOCIOLÓGICA

Toda a acção de pesquisa se traduz no acto de pergunta! Isto é válido para todo o
questionamento científico. Por isso todas as regráôTiê6?lõtrõlicas têm como objecti-
vo exclusivo o de esclarecer o modo de obtenção de respostas.
Tudo se resume a saber fazer perguntas e a identificar os elementos constituintes
da resposta. E isto não é nada pouco, contrariamente ao que possa parecer à primeira
vista. Em primeiro lugar, obriga ao controlo da inteligibilidade da pergunta em toda a
sua extensáo e multiplicidade de dimensões e, em segundo lugar, exige a fixação de
critérios para distinguir o que é ruído do que é sinal de resposta à pergunta formu-
lada. Assim, a" aÍÍe de bem perguntar" reside na capacidade de controlar as implica-
ções dos enunciados das perguntas e das condições por estas criadas, no seio das
quais emergem os enunciados classificados de respostas.
O inquérito, tal como as restantes, é uma técnica de perguntar que teve a sua géne-
(*) Quero expressar o meu reconhecimenio a Boaventura de Sousa Santos, Carlos Fortuna, Clara
Gonçalves, José Reis, Maria Manuel L. Marques e Pedro Hespanha, pelos seus comentários a uma pri-
meira versão do texto.
166 VIRGÍNIA FERREIRA

se fora do âmbito da prática sociológica de pesquisa. Sendo uma técnica de pergun-


tar, é lógico que os seus múltiplos nascimentos tenham tido lugar no seio de instân-
cias interessadas em obter respostas imprescindíveis à prossecuçáo de determinadas
finalidades, geralmente de controlo, e com a possibilidade de se arrogarem da le-
gitimidade para perguntar. Assim, inicialmente, o inquérito começou por ser lançado
pelo Estado, como instrumento de administração, sob a forma de Censos da Popula-
çâo e com objectivos de controlo político. Depois, foi a vez dos Inquéritos Sociais,
T promovidos no século passado pelas correntes filantrópicas e socialistas dos países
mais industrializados da Europa, interessadas em, através da fria "objectividade dos
números", retratar o estado de pobreza em que viüam vastas camadas da populaçáo
I e, deste modo, fazeracreditar as suas exigências de reformas sociais e económicas. Fi-
nalmente, nas primeiras décadas deste século, nascem nos Estados Unidos da Amé-
rica os Inquéritos de Atitudes e Opiniáo no quadro de estudos psico-sociais sobre
opçóes de voto e prospecçáo de mercados, sob encomenda de organizações políticas,
I
empresas e jornais, todos eles interessados em conhecer os mecanismos de formaçáo
de opiniáo, com üsta à sua manipulação (t).
As sequelas destas diferentes origens chegam até nós sob a forma de imagens in-
formadas por cada um desses tipos de inquéritos. Essas imagens continuam a colar-
-se viscosamente ao acto de inquirir. Dificilmente o sociólogo consegue evitar que o
seu inquérito seja identificado com objectivos de controlo estatal, reforma social ou
manipulação de opiniões e comportamentos. De facto, o inquérito só tardiamente co-
meça a ser objecto de uso extensivo na prática sociológica. Nos anos 30, num quadro
de crise económica profunda, a escola de Chicago que, sob a direcção de Robert
Park, dominaÍa atéentâo a sociologia norte-americana, começou a perderprestígio. A
sua problemática ficou completamente ultrapassada e a metodologia qualitativa que
dominava o seu ecletismo metodológico tornou-se desadequada face ao carácter
massivo dos problemas sociais e económicos, principalmente o desemprego, que
afectavam vastos sectores da população e não apenas os marginais e os imigrantes.

(1) Veja-se STEPHEN ACKROYD e JOHN A. HUGHES, Data Collectíon in Cora, l,ondres e

- tau
Nova lorque, Longman, 1981, cap. 3; GERARD LECLERC, L'observation de I'l1on1ntc histoí-
re des en4uêtes sociales, Paris, Seuil, 1979,Parte, II. Os censos da população só se tomam periódicos
nos começos do século XIX, nos grandes paÍses da Europa Ocidental e nos EUA. No entanto, a preo-
cupação de recertsear as populações com fins de controlo militar e fiscal recua atÉ ao tempo dos antigos
impérios (Augustus Caesar, por exemplo, foi um dos imperadores a ordenar um r@enseamento). Mas
só no princípio do século XVIII encontramos práticas de recenseamento jápróximas dos procedimentos
modemos. ROLAND PRESSAT fala-nos dos recenseamentos feitos na Islândia em 1703 e aa Suécia
em L749, in PALIL CIÁVAL et aL., Population et Dérnographie, PaÍis, Librairie Larousse, L976, p.
69.
Quanto aos inquériüos sociais, o primeiro foi levado a cabo em l.ondres por Charles Booth em
1889, tendo depois a técnica sido afinada por Arthur Bowley, que intoduziu as técoicas de amostra-
gem, e por Seebohn Rowntree, que recorreu pela primeira vez a inquiridores.
Os inquéritos de atitudes e opinião começaram a ser utilizados, por volta de 1910, enquanto insku- \
meütos de prospecção de mercado e só depois, em 1924, foi feita a primeira sondagem pré-eleitoral.
Em 1936, a eleição de Roosevelt, não prevista pela Literary Digest Pool, ficou a assinalar o primeiro
grande falhanço da história das sondagens.
O INQUÉRITO POR QUESTIONÁRIO 167

Os sociólogos viraram-se para a economia, a macro-sociologia e as análises estads-


ticas (2).
No campo cienúfico, por outro lado, assistia-se a uma forte pressão no sentido da
profissionalização, tanto na sociologia como nas ciências sociais em geral. Indícios
dessa institu cionalização eÍam a crescente exigência de doutoramentos e a imposiçâo
cadavez mais aberta de ortodoxias teóricas (funcionalismo, que recentemente triun-
fara sobre o behaviorismo) e metodológicas (inquérito por questionário) (:). A adesáo
aos critérios de produtividade quantitativa mostrava-se inapelavelmente condenatória
da morosidade peculiar dos métodos qualitativos.
Assim, aprá,aca sociológica do inquérito ocoÍre pioneiramente nos EUA. A sua
inte Estado,
aquando da união de esforços reclamada pelas necessidades decorrentes da última
gueÍra mundial. Desde então esse estreitamento tem vindo a dar-se também noutros
países e as ciências sociais mnstituiram-se em instrumentos indispensáveis à admi-
nistração doWelfare State. Tal deve-se, em parte, à efi ciência revelada precisa-
mente na um
através das amostragem, se torna de
um conJunto mais vasto.
E neste quadro que podemos enrender que, para o público pm,gg1ql, a_imag§F d,
ryryggqqglglggg ps§g p9!g_l!q!g!41!. Que outra técnica de investigação acompa-
ffi ou ããê§ãvo l-v-i mmio Eôilco -e s tâmd co e i nform ático táo valo ri iado no ro..o
tempo? Que outra técnica é capaz de conferir ao cientista social um "ar" simultanea-
mente mais profissional e especializado? O inquérito é, de facto, a técnica de constru-
ção de dados que mais se compatibiliza com a racionalidade instrumental e técnica.
que tem predominado nas ciências e na sociedade em geral.
Deste modo se compreenderá o uso extensivo do inquérito apesar de todas as limi-
tações apontadas ao seu valor intrínseco enquanto técnica de investigaçáo empírica. A
sua natureza quantitativa e a suagpacidaés dç_ebigçlivaf' informaaão conferem-lhe
o estatuto máximo de excelência e autoridade científica no quadro de umà sociedade e
de uma ciência dominadas pela lógica formal e burocrático-racional, mais apropriada

(2) Cf. ALVARO PIRÉS, "La méthode qualitative en Amérique du Nord: un débat manqué (1918-
-1960)", Sociologie et Sociétés, vol. XIV, I, pp. 15-29. O autor situa o ponto de viragem para os mé-
todos quantitativos na tese de douüoramento de Samuel Stouffer, Num trabalho intitulado "An experi-
mental comparison of statistical and case hislory methods of atitude research", Stouffer dava como de-
monstrado que uma investigação quantitativa e outra qualitativa sobre o mesmo objecto produziam os
mesmos resultados. Desta conclusâo foi dado relevo às vantagens do método quantitativo, uma vez que
se aplicava mais fácil e rapidamente. Stouffer viria a desenvolver uma extensa obra no campo da socio-
.cgia quantitativ4 tendo sido um dos responsáveis pela monumental obra The Antcrican Soldier
.9.í9), tomada, durante muiüo tempo, referência obrigatória na pesquisa empírica sociológica.
(3) Cf. ACKROYD e HUGHES, op. cit..
(4) Pode fazer-se uma ideia mais rigorosa desta afirmaçâo se se tiver em conta que 907o dos textos
:-:l:cados pela American Sociological Review epelo Arnericanlournal of Sociology, durante os anos
-: .965 e 1966, baseados empesquisa empírica, utilizavam inquéritos ou enEevistas (ou ambos) (cf.
iCKROYD e HUGHES, op. cit.).
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à captação dos aspectos contabilizáveis dos fenómenos. Nestes termos, torna-se di-
fícil contrapor as capacidades de outras técnicas que se afastam de tal lógica, ainda
que a sua operacionalização mobilize recursos financeiros menos vultosos. Frequente-
mente, os cientistas acabam por propor ou aceitar realizar inquéritos com o objectivo
de aplicar parte dos fundos angariados noutras pesquisas dificilmente subvencioná-
veis, que náo raramenüe sáo as mais rclevantes do -ponto de üsta teórico (5). Assim,
dada a necessidade de mobilizar recursos humanos e financeiros que excedem, em
regra, as disponibilidades dos cientistas, o uso sociológico do inquérito por questio-
niírio restringe-se frequentemente à análise secundária de dados recolhidos com ou-
tros objectivos que não os decorrentes da teoria social. Esta utilização, por seu turno,
I t. acaÍÍeta dificuldades de vária ordem, primordialmente as que se ligam à impossibili-
dade de conhecer as práticas de recolha de dados, às quais estes devem estar forçosa-
mente referenciados (6).
Delimitados deste modo os usos sociológicos do inquérito, o presente texto de-
tém-se no inquérito por questionáLio e amostragem, quando associado auma qualquer
problematizaçãoteóricaE@sondagensdeopiniãoeosinqué-
ritos estadstico-administrativos. Além disso, apenas serão considerados os inquéritos
de administraçáo indirecta, ou seja, aqueles em que oj.nguiUdpf_y-e1alggg@e§_.d§gla-
_{g9gg!_" medida que estas lhe vão sendo prestadas pelo inquirido. Daí que muitas das
observações que se seguem sejam igualmente pertinentes para o caso da entrevista es-
truturada.

2. PRrNCÍPrOS DO rNQUÉRrTO

O atomismo, o psicologismo, o liberalismo e o individualismo são comummente


apresentados como pressupostos do inquérito. Vejamos quais os princípios em que
este se baseia que podem denunciar a existência daqueles pressupostos.
I (5) Veja-se IRVING L. HOROWTIZ, Foundations of Political Sociology, Nova Iorque, Harper &
Row, 1972. O autor chama a atenção para o importante papel das fundaçôes privadas norte-anrcricanas
na orientação das ciências sociais para a investigação empírica, ao custeaÍem pesquisas aplicadas aos
problemas sociais para os quais desejavam reformas, na boa tadição, aliÍis, dos movimentos filantópi-
cos do século passado. PIERRE BOURDIEU, por seu tumo, refere-se à generalização, nas instituiçôes
científicas, de projectos de pesquisa baseados em técnicas quantitativÍls como o inquérito por estas car-
rearcm subvençôes importantes e sereÍÍL assim, garantes indispensáveis à sobrevivência dessas insti-
tuições. Cf. "k Chanp Scientifique", Actes de la Reclerche en Sciences Sociales,2-3, 1976, pp. 8E-
-104, p. 90.
(6) Não raramente estas práticas são, por assimdizcr, "despachadas" em breves palavras de abeÍura
dos relatórios de pesquisa, ou entáo descritas numa linguagem pomposamente técnica e subsüancialmen-
te vaa4 cuja finalidade parece ser mais a de as escamotear do que a de as esclarecer.
o rNSuÉRrTo PoR QUESTTONARTO 169

a) O iuqué-rito-ap-lica-se a unidades sociais. Uglgo quando a unidade é a família


ou a unidade de alojamento, tende-se a considerá-la cõmo uma identidade sem se to-
marem atenção a sua estruturação interna. Todas as dimensões da estrutura social, co-
*mõ
ó sexo ou a classe social, sáo apropriadas como características pessoais dos indi-
víduos. Os padróes de atitude e comportamento são tratados de modo semelhante e
não como modos de inserção numa determinada'situação hierarquizada.
b)dggnidades inquiridas são tomadas como equivalentes. Este é um princípio in-
dispensávei-ãIõ§i-cà clá quantificaçáo, ao ciflculo de médias, quadros de distribuiçáo,
análises de correlaçáo e de regressão, etc.. Corresponde à transposição da lógica do
sufrágio universal para a estruturação das práticas e da formaçáo de opinião sem aten-
der ao facto de neste processo as diferentes unidades contarem também muito diferen-
temente umas das outras.
c) Qq fe!ó-Uenos sociais existem independentemente das relações sociais que os
determinam. Os fenómenos sociais são considerados como algo exterior ao indivíduo
{G$dê Ser verbalizado e cuja estabilidade possibilita a súa apreensão em cortes
transversais.

Estes princípios, como dissemos, são inerentes à lógica própria do inquérito por
questioúrio e por amostragem. As_reqpoqtas__qb -
rio são tratadas como artefactos equivalentes. Isto é uma exigência da operaçáo de
agregafro dãquããs*reffira alcançar aÍase de caracterização
de vastos grupos sociais. Esta agregagão só se torna possível quando se postula um
único e determinado protótipo de inquirido. Este define-se, em primeiro lugar, por
uma competência linguística e uma capacidade de estruturação dos problemas análo-
gas, ou pelo menos próximas, das implicadas no protocolo de observaçáo e, em se-
gundo lugar, poruma autodeterminação racional que o torna consciente das razões do
seu comportamento e dos fundamentos das suas opiniões e, ainda, por uma hones-
tidade e uma vontade de cooperaçáo suficientes para evitar mentir ao inquiridor. De
facto, 4gglleglloggg.strq!áqofnrplica postularuma sociedade de_lggSlsrlgg9§@-
Írqgnte ú
qplgglrger aq 4Lfgp$qrS qs_lqUqêgEas sociais. Na verdade, sendo o questioruário ge-
ralmente constituído quase só por pgfgg4q§.&Éadas, a esmagadora maioria das res-
postas vai cingir-se às hipóteses previstas e são raros os casos em que as pessoas in-
dicaráo "outras" hipóteses, afinal residuais na opinião de quem elaborou o questioná-
rio. DC acordo com estudos recentes, sáo precisamente os grupos sociais mais distan-
tes dos investigadores aqueles cujas respostas se
junto das hipóteses previstas. Mais, esses estudos mostram ãêIg[afmõõ que offi-
mero de categorias em que se agrupam as Íespostas é muito mais amplo no caso de re-

(7) Cf. AARON V. CICOUREI. Method and Measwement in Sociology, Nova lorque, The Free
Press, 1964, cap. IV e DEREK PHILLIPS, Abandoning Metltod Sociological Studies in Methodo-
Iogy, S, Francisco, Jossey-Bass, 1973., cap.3. -
170 VIRGÍNIA FERREIRA (

sultarem da análise de conteúdo das a abertas. Assim, devemos


concluirque a imposiçáo da problemática é muito maiorno caso das perguntas fecha-
das e incide especialmente nos grupos mais longínquos do universo social e cultural
dos próprios investigadores (8).

O problema da imposigão de problemática pelo questionário é consequência do


facto de se colocar o inquirido face a uma estruturação de problemas que não é a sua
e ainda de se estimular a produçáo de respostas meramente reactivas às hipóteses pre-
vistas. Os inquiridores tendem a abstrair-se das diferenças existentes entre eles e a po-
pulação, e entre os diversos grupo -
-dà§p-orsi ifrõàtÍõstlife-
rentes a uma mesma pergunta €).
Qual podeú ser então a validade teórica da agrega$o das respostas, operação na
qual se pretende que esses efeitos são reduzidos ou mesmo anulados? Sem dúvida
que a solução não parece estar na redução do universo da populaçáo a questionar
àquele que partilha os sistemas de refer€ncia dos cientistas sociais. Tão pouco estiá
em eliminar a estruturação dos problemas, impossível de concretizar mesmo quando ,
se trate das técnicas menos directivas, como as antropológicas, que náo deixam toda-
via de estar inelutavelmente sujeitas aos quadros analíticos do investigador A única
atenuar os efeitos da directividade tem aÍ
auto-reflexão do as sua e,
esses nas no sua
!A§eg,-
Não basta, contudo, ficarmo-nos por esta última observação. Há que ter também
a consciência dos obsúculos à sua concretização. Quanto à auto-reflexão porparte do
investigador, são coúecidas as dificuldades que se oferecem à sua realização e, so-
bretudo, à sua assunçáo (10). Por outro lado, levanta-se uma dificuldade adicional, no
caso do inquérito por questionário e por amostragem. Esta dificuldade decone do
facto desta técnica, contrariamente às restantes, envolver uma vasta e heterogénea

(8) Cf. HOWARD SCHUMAN e STANLEY PRESSER, Qncstioru and An*tters in Attbude Sur-
vers Eryeritrcnts on Qrcstions Form, Wording and Cota, Orlando, Academic Press, 1981, pp.
-
79-112, Na experiência realizada por estes autores a Ínesma pergunta é formulada de duas forrnas, tendo
existido a preocupação de manter o contexto e a amostra. Verificou-se que as 9 (8 + "outra") hipóteses
de resposta prcvistas na pergunta fechada compreendiam 96,8% da amostra, enquanto úa versão aberta
as mesmas categorias só abarcavam 59Vo da amosta e o total de categorias tinha passado a 19 (op. cit.,
pp. 81-82). Analisadas enhetanto as características das pessoas cujas respostas cairiam fora do campo
de hipóteses previstas na pergunta fechad4 os autores concluiram que se tralava sobretudo de responden-
tes do sexo feminino (p. 91) e de menor grau de instrução (p. 110). Ou seja, precisamente aqueles cu-
jas características sócio-culturais mais se afastavam das dos produüores de ciência social.
(9) Cf. PIERRE BOURDIEU et al, I* Métier de Sociologue, Paris, Mouton/Bordas, 1968, pp.
59-85. Para uma crítica concreta à ausência de relativismo cultural em interpretações de resultados for-
necidos pelo inquérito, veja-se JEAN-PIERRE COT e JEAN-PIERRE MOUNIER, Para utn Sociolo-
gia Política, Lisbo4 Bertand, 1976, cap. XI; ainda PIERRE BOURDIEU, "L'Opinion Publique nbxis-
te pas", lzs Temps Modemes, 3l8, L973, pp. 1292-130/..
(10) Bastará que atentemos às objecioes suscitadas pela sociologia reflexiva de ALVIN GOLJL-
DNER, Tlv Coming Crisis of Western Sociology, Nova Iorque, Basic Books, 1970.
o r N QU ÉRrro P oR gu E srro NÁRro 171

equipa de pessoas. O elevado número de inquéritos feitos obriga o(s).investig4{qf


(es)a@dores,supervisores,codificadores,técnicosdein-
foqnática, d qne-activo
na modelação da resposta. Efectivamente, desde o niomento em que o inquiridor
enuncia a pergunta e anotâ a resposta (da forma que, em seu entender, parece mais
ajustada àquilo que o inquirido disse, e apesar de ter sido instnrído no sentido de
anotar a resposta tal e qual como foi formulada), ou o momento em que o supenrisor
"ajusta" ainda a resposta em funçáo da reinquirição ol da reinterpretação das res-
postas, ou mesmo aqueloutro momento em que o codificador traduz os enunciados
das respostas para números de código, até ao momento em que o cientista se depara
com um conjunto de distribuições estatísticas resultantes do tratamento estatístico-in-
formático das respostas, desenrola-se um sem número de operações, sendo certo que
se vai "psrdgrdq" iq[ennaçáo e, mais grave ainda, "acrescentando outra" ao longo de
cada uma delas.
O que é que um gráfico de colunas nos pode dizer, se as respostâs utilizadas na
sua construção só dificilmente deixaram de serprofundamente afectadas pela série de
operações náo controladas de filtragem que sobre elas se frzeram?
Imaginemos agoÍa a interpretação das respostas assim reificadas, como se não ti-
vesse existido nenhuma daquelas operações ou, no caso extremo, como se náo se ti-
vesse procedido à análise secundária de respostas acerca das quais não se tem qual-
quer ideia sobre a forma como foram obtidas.
Pode dizer-se que nos deparamos com uma espécie de círculo fechado, delimita-
do, por um lado, pela necessidade de fazer muitos inquéritos, como consequência da
lógica quantitativa e, por outro lado, pela obrigatoriedade de definir um questionário
muito rígido e elaboraruma apertada normatlizaçâo de procedimentos porforma a al-
cançar o máximo possível de uniformização dos critérios que devem presidir a todo o
apuramento e tratamento de respostas, como consequência da necessidade de partilhar
o trabalho com um conjunto heterogéneo de pessoas e especialidades. Tudo isto em
prejuízo da "sensibilidade" dos dados produzidos e em resultado da necessidade de
delegar funções essenciais no processo de produção dos dados sociológicos (11). Ora,
em nenhuma outra técnica esta delegaçáo é tÁo absoluta e tão diffcil de controlar,
como, de resto, em neúuma outra é tão grande arigidez do protocolo de observa-
çáo.
Escapar à trama desse círculo e minorar os efeitos da directividade e da ausência
de controlo das rotinas de recolha e apuramento de informação não sáo objectivos fá-
ceis de cumprir. Flexibilizar o questionário acarreta um maior descontrolo e reduzir
este ao mínimo implica rigidificar aquele. na fase actual da ciência social, o ca-
minhomais ausível o da e investi-
o análise de obser-
AS Yez e de de-

(11) Cf. YANNICK LEMEI. "[.e sociologue des pratiques du quotidien entre I'approche ethnogra-
phique et l'enquête statisüque", Economie a Statistiquc,168, 1984, pp. 5-ll.
172 VIRGLNIA FERREIRA
OI

senvolver a aruálise sociológica dos actos de obsewação e de classificação socioló-


3.(
gicas se se quiser caminhar no sentido de um pluralismo metodológico mais funda-
mentado (12). A verdade, porém, é que tal tarefa se defronta com um problema deci-
sivo que podemos formular com Derek Philips do seguinte modo:
A
"Um problema fundamental em sociologia é que aquilo que sabemos do
compoÍulmento social (e mesmo da generalidade dos fenónemos sociais) depende
dos métodos usados para o estudar, enquanto que os métodos para o estudaÍ depen-
dem do que sabemos do comportamenls social" (13) . ͧ[
Íes(
Os trabalhos produzidos sob a égide das sociologias compreensivas, como ã86ó:
nâÍt
metodologia, a Sociologia Cognitiva e o Interaccionismo Simbólico, constituem um
contributo decisivo paÍa a superação desse problema. Com eles, aprendemos a com-
plexidade da forma como as pnáticas linguísticas e os conceiüos moldam a realidade
do
social; despertiámos para a centralidade da interpretação e da compreensáo em qual-
quer teoria social; revalorizámos a auto-interpretação da acção na constituição dos su-
jeitos; percebemos a interdependência e o que há de comum nos procedimentos inter-
pretativos a que a ciência social e o senso comum ÍecoÍrem para tornar o mundo
social inteligível e, finalmente,rclativizâmos e contextualizámos os sistemas de refe-
rência que presidem a estes procedimentos e o carácter social e simbólico da sua parti-
lha e da sua construçfl6 (la).
_&pOfs de Auas aecadas de I
vjqtigeg{o,j!3qo é possível o retomq.
-cg-nÍa-a§--cpmpe_qentp§-interpr:lAüfês, situgcionais. relativistas e micro-sociais do pró-
prio_ processo dq qbsqrua Como tal, os tennos da discussão actual são
outros. Já náo se trata de criticar as técnicas quantitativas mas antes de problematizar
a possibilidade do seu emprego e de saber como interpretar os resultados produzidos
por elas, de forma a controlar os efeitos de mediaçáo decorrentes da sua aplicação.
Assim, o primeiro passo nesse sentido, ao falar do inquérito por questionário, come-
ça pela capacidade de controlo da multiplicidade de sentidos e de referências, porven-
tura concatenados com os enunciados das perguntas e das respostas.

(12) Em Portugal, JOSÉ MADUREIRA PINTO tem sido o cientista social que mais tem veicula-
do esta preocupação. Veja-se, por exemplo, o seu trabalho "Questões de Metodologia Sociológica I, II
e lll, Cadenros fu Ciêrcias Sociais, 1,2 e 3, respectivamente em Junho de 1984, Dezembro de 1984 e
Juúo de 1985.
(13) DEREK PHILUPS, op. cit., p. 78.
(14) Para uma reflexão do confibuto das sociologias compreênsivas, veja-se, por exemplo, AN-
THOi{Y GIDDENS, Novas regras do método sociológico, Rio de Janeiro,Z,aha, 1978; RICHARD J.
BERNSTEIN, The Restructwing of Social and Political Theory, Filadelfi4 University of Pennsylva-
nia Press, 1978; BENETTA JULES-ROSETTE, "L: sociologie compéhensive aux Etats-Unis: Paradi-
gmes et perspectles", Cahicrs Intenationaux de Sociologie, vol. D(XVIII, 1985, pp. 9l-101.
o rN QUÉ,RLTO POR QUESTTONÁRrO 173

3. O PROTOCOLO DE OBSERVAÇÃO

A. Perguntar o quê?

É logicamente a questáo essencial em qualquer pesquisa. O momento de definir


as perguntas a incluir num questionário foi, entretanto, antecedido de um conjunto de
resoluçóes (15). Estas dizem respeito a aspectos absolutamente fundamentais e determi-
nantes da qualidade dôs resultados da pesquisa e reportam-se ao problema-mor da ar-
ticulação entre teoria social e pesquisa empírica (veja-se cap. II), mas também se rela-
cionam com os problemas da explicação'e da causalidade nas ciências sociais (objecto
do caP. XI) (16).

Uma dessas resoluções é a de que vamos fazer um inquérito. Por isso, já assumi-
mos que aquilo que nos pode ser dito num contexto marcadamente artificial, como o
é a situação de inquérito, é teoricamente pertinente em relação ao problema que moti-
va a pesquisa. Na verdade, as respostas a um inquérito não encerram a "Realidade",
que náo existe, aliás, mas a descrição e avaliaçâo de uma certa realidade, determina-
das pelo contexto de interacção entre inquiridor e inquirido e referenciadas ao con-
juntô de representações e catégorizações que presidem a essa interacção.É,portanto,
necessário: saber quais as informações que "não são obtidas" ou qual o sentido em
que sobre elas se farão sentir os efeitos naturalmente desencadeados pelos processos
psico-sociais desse contexto de interacção; dominar a linguagem utilizada pelo ques-
tionário e pelos inquiridos; e, principalmente, controlar em absoluto os sistemas de
categoização na base dos quais se fecham as perguntas quer tal se faça antes ou
depois de obtidas as respostâs.
Nestes tennos, uma pergunta eficiente, bem como aliásum contextode interacçáo
bem sucedido, deve proporcionar o máximo possível de clarificação das categorias
abcionadas pelo inquirido, de modo a que estas possam ser contrastadas com as de
outros e com as do próprio inquiridor/investigador. Daí que a problematização das

(15) Nao queri4 de modo algunl dar a ideia de que partilho uma concepção etapista do processo de
investigação. Penso, ao contrário, que o desenho da pesquisa surge de imediato como um todo, no qual
as hipóteses de equaçâo de um problema a submeter ao teste empírico são solidárias da técnica de cons-
truçáo dos dados que as hão-de (in)validar. Qualquer investigação é um vaivém constante entre estes
actos do qual váo resultando sucessivas reconstruções. E assim que, por exemplo, náo fará sentido falar
da elaboração do questionário e perder de vista a codificacão, ou do plano de amostragem sem ler em
conta o plano de apuramento final de resultados. Cf. PIERRE BOURDIEU et at, op. cit-, pp.88-101.
(16) Concretamente, essas resolüções são relativas a:
Definição do problema e do objecto de análise;
- Explicitaçáo das hipóteses a invesügar;
- Decisão sobre os contextos eskuturais pertinentes para a análise do objecto;
- Ponderaçâo das potencialidades e ümitaçôes de cada técnica de investigação para produzir
-
a informação pretendida, tendo em conta os meios logísticos disponíveis.
174 VIRGÍNIA FERREIRA o I§l

categorias sociológicas e da sua articulação com outros sistemas de categorização se


revista da máxima importância, no momento de decidiro que vamos perguntar (17).
A primeira preocupação deve, então, ser dirigida no sentido de explicitar o modo
de interpenetraqão e articulação dos sistemas de categorias rqciológicas com os de ca-
tego:iar adminióúá à6-so1üto
das rupturas entre senso comum e teoria e entre procedimentos interpretativos prá-
t
ticos e científicos, não bastará afirmar que o sistema de categorias sociológicas deve
I ser rigorosamente referenciado à teoria. Como também nâo constituirá solução sim-
plesmente não pré-categorizar as perguntas ç fazêJas abertas. Porque como não há
pureza teórica nas categorias utilizadas pelos investigadores, também não há esponta-
neísmo ou naturalismo nas utilizadas pelos rcspondentes para se auto-classificarem.
Não será forçoso pensar necessariamente nos inquiridos já treinados e designados
pela comunidade para esse papel e que se encontram em lugares privilegiados para o
controlo da informaçáo, possuindo a qualidade de "facilitarem" tremendamente a
tarefa do investigador porquejá sabem o que é que este procura e até jâ adquiriram a
competência linguística adequada. Bastará antes pensar apenas que o inquirido encara
a tarefa de responder ao inquérito como um repto a replicar com um bom desem-
penho._As expectativas e as projecções do trabalho do investigadorconstituirão, para
o inqúrido, o referencial aferidor do nível do seu desempenho (18). Assim, a carac-

(17) Para se operacionalizar a problemática teórica que configura a inyestigação, procede-se à selec-
ção/consftução de variáveis nas quais os conceitos são "traduzidos". Cada pergunta corresponderá, por-
tanto, a um indicador dos retidos para detectar a prcsença e medir a intensidade das variáveis a que o
objecto de análise foi operacionalmente reduzido. Este é um passo central no desenho da pesquisa que
implica o salto teoteador da superaçáo do hialo entre teoria e análise empírica. Para uma problemati-
zação, conduzidarigorosaepertinentemente, da exigênciaedapossibilidade de taduzirconceitos emva-
riáveis operacionalizadas e do carácter indirecto da medida, vé;a-se o trabalho de JOSÉ MADUREIRA
PINTO, já citado, "Questões de Metodologia Sociológica". Sobre o processo de construção de va-
riáveis de Lazarsfeld, cf. RAYMOND BOUDON e PAUL LAZARSFELD, Metodologia de las Cien-
cias Srciales, Barcelona, l,ai4 1973, vol. I, pp. 35-46 [ed. orig. 1965] e MARINÚS PIRES DE LI-
MA, O Inqwito Sociológico: Problerus dc metodologia, Lisboa, GIS, 1973, pp. 45-54. Para uma
análise círica desse processo, cf. JoÃo FERREIRA DE ALMEIDA e JOSÉ MADUREIRA PINTO,
A Investigação nas Ciências Sociais, Lisbo4 Presença e Martins Fontes, 1976, pp. l3l-149; CAR-
LOS MOYA, Teoria Sociológica, Madrid, Taurus, 1982 (2!. ed.), pp. 208-226 e, aind4 RENATE
MAYNTZ et ú, InÍroducción a los Métdos de la Sociologia Enpírba, Madrid, ÁJianzq 1980, pp. 13-
-32!ed' orig. alemá, 19691.
(18) A sofisticação com que por vezes esse papel de inquirido treinado é desempeúado e o modo
como tal treino é a Éplica ao "cientista social enquanto estereótipo vivo que reproduz um horizonte de
expectativas" são evidenciados por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS no seu trabalho "Science
and Politics: Doing Research in Rio's Squatter Settlements", in ROBIN LLJKHAM (ed.), Law and So-
cial hquiry: Case Studies of Research, Uppsala e Nova Iorque, Scandinavian Institute of Americao
Studies e Intemational Center for Law in DevelopmenÇ 1981, pp. 261-289. Gostaria de chamar a
ateução para a importância de que se revesüe a reflexão feita nesse trabalho. A verdade é que grande parte
do enriquecimeulo metodológico legado pelas duasÍltimas décadas ficou também a dever-se a kabalhos
que como est€ conferem estatuto de objecto tórico ao auto-questionamento do cientista na sua relação
com os sujeitos sociais, objecto do questionamento cientÍfico, e com as próprias rotinas das práticas de
investigação, e advertem par_a a necessidade do uso transgressivo e profano das regras metodológicas.
o rNSaÉRrro PoR QUESTTONÁ,RrO NA CONSTRUÇÃO DOS DADOS 175

terizagião que cada um daú de si estiá indiscutivelmente do lado "oficial"_da sua visibi-
lidade social. A uma pergunta aberta sobre qualquer rlas srras características-as pes-
soas responderão na base de um qualquer sistema dg categorizaçãe incqrperado. tal
como se incorporam as tipificações sociais e os esquemas de percepção estnrturado-
res de sentido, indispensáveis à comunicação social e que se cristalizam nas púticas
de expressão. Geralmente, o sistema de categorização incorporado tende a coÍrespon-
der a um dos utilizados na sociedade pelas instâncias de objectivação e classificaçáo
dos sujeitos biologia, escola, empÍego, administração, direito civil e canónico.
-
Esta profunda imbricação remete-nos para a necessidade de apertado controlo das
categoriàs práticas accionadas nas respostas e, antes de mais, das categorias socioló-
gicas e sua relevância teórica (1e). Assim, devemos prevenir o automatismo e a inércia
intelectualque nos levam a retomarreconentemente as mesmas variáveis independen-
tes, sem que seja assumido de forma explícita o sentido em que as outras variáveis de-
pendem delas. Este automatismo funda-se na ilusáo de acumulaçáo e comparação de
dados apenas justificada pela volumosa informação disponível sobre essas variáveis e
que é juitamente produzida pelas agências de contabiliáade social. É esta ilusáo e não
o poder explicativo recoúecido a essas variáveis que esuí na base da sua persistente
inclusão nos questionários. Sempre que esta inclusão se faz desprevenidamente, está-
-se a transpor para a investigação a sociologia espontânea ancorada à maneira como a
sociedade classifica os sujeitos sociais e explica os seus comportamentos. Lutar con-
tra esta transposiçáo passa por, no momento de elaborar a codificação que deve
aliás ser sempre pÉ-codificação -
referenciar o sentido teórico de cada respostâ, de
-
modo a explicitar o modo como esta se relaciona com as hipóteses (20).
Vejamos o que se passa em concreto com as variáveis independentes, relativamen-
te às quais esse automatismo paÍece mais acentuado.
As variáveis independentes recebem comummente uma das seguintes designa-
ções: clássicas, sócio-demográficas, sócio-económicas ou objectivas. Pretende-se
através delas captar caracteústicas pessoais (como sexo, idade, raça, local de residên-
cia, naturalidade, escolaridade, estado civil, profissão, rendimento, filiação partidária
e religiosa, etc.) ou elementos de identificaçáo de pessoas ligadas ao inquirido (cate-
goria social ou residência dos pais, instrução e profissão dos filhos) ou ainda do
meio em que este vive(u) ou trabalha(ou), etc..
Porque são ditas objectivas é-se levado a pensar, por um lado, que são de fácil
resposta e, por outro lado, que são de imediata cawgoização, bastando pois adoptar,
sem mais, as categorias administrativas, jurídicas, práticas ou outras. E por isso que
são daquelas perguntas que custam menos a fechar, que suscitam menos hesitações
na interpretação e que, consequentemente, promovem uma maior reificação das res-

(19) Tal como nos adverte AARON CICOUREL, Method and Measwement in Sociology, op. cit"
cap. IV.
(20) Cf. CICOUREI. op. cit., p. 109, e ainda BENJAMIN MATAI,ON, "la Psychologie et
l'Explication des Faits Sociaux. I Problêmes Epistémologiqtes", L'Année Socíologiqw,31, 1981,
pp. 125-185. -

I
176 VIRGÍNIA FERREIRA OL

postas. Mais, surgem inapelavelmente em quase todos os inquéritos e com a mesma


formulação.
O sexo e a idade, por exemplo, são veículos privilegiados das classificações bioló-
gico-fisiológicas adoptadas acriticamente sem uma correspondência inequívoca a ti-
pificações sociológicas das diferenças entre mulheres e homens e entÍe jovens e ve-
lhos, nas diferentes sociedades. No entanto, serão o sexo e a idade dados meramente
biológicos? Ou não corresponderão antes a representações sociais fortemente associa-
das a condições concretas de úda? Neste caso, qual a pertinência teóicade as tomar
enquanto variáveis independentes (21)? O estado civil, por seu tumo, é utilizado sem
se especificar em que é que o estado de viuvez pode determinar práticas e atitudes di-
ferentes das de divórcio ou celibato. Mais do que o estado civil, não será sociologica-
mente mais importante saber se as pessoas vivem sós, ou na companhia de quem vi-
vem?
Com o rendimento passa-se algo semelhante. Trata-se de uma das questões que,
conjuntamente com a sexualidade e a política, enfrenta maior resistência, registando
as mais elevadas taxas de náo-resposta Q2). Além disso, surge sempre a dúvida sobre
se se deve tomar o "chefe de famflia" ou o agregado familiar como unidade. É claro
que a opção não é indiferente, dependendo das concepções implicadas no esquema in-
terpretativo adoptado e dos objectivos específicos de cada investigação. Se, porexem-
plo, estivermos interessados na determinaçáo de níveis de consumo, entáo devere-
mos procurar saber o rendimento total do agregado familiar. Mas a objecção da
relevância teórica não poderá deixar de estar presente. Até que ponto as práticas e as
atitudes podem ser entendidas em funçáo de um continuurn escalonado de rendi-
m6il6s (23)f
Nestes termos, será talvez melhor não incluir questões sobre rendimentos nos in-
(21) Quanto ao sexo, por exerrplo, corno deveremos proceder no caso dos transexuais? E como de-
veremos lidar com o escalonamento etário feito pelas diversas instâncias adminisfrativas? Os jovens
têm menos de 14 anos (limite da escolaridade obrigatória) ou menos de 18 (idade de aquisição de capaci-
dade eleitoral) ou de 20 (idade normal da incorporação militar) ou de 35 (ümite de idade de ingresso na
função pública) ? Ora a adopção de um destes escalonamentos deve ser precedida de uma reflexão teórica
que nos indique o modo como os fenómenos variam em função dos níveis etários. O mesmo pode ser
dito da adopção dos grupos quinquenais utilizados nas análises demográficas.
(22) Convém lembrar que em nenhum ouEo momento do inquérito o inquiridor está mais póxi- f
mo da imagem de funcionário do Estado ao serviço da fiscalização de impostos que os inquiridos ten-
dem a colarJhe. É por isso qüe se recomenda a inclusão das questôes sobre rendimentos no final do in-
quérito. Embora na verdade essaprecaução não consigaimpedir que a concepção da actividade sociológi-
cq enquanto actividade de controlo social, seja chamada pelo inquirido a presidir ao aclo dê inquirição.
A presença dessa concepçáo é inelutável, ainda que em grande tensão com a concepção reformadora-
(23) E que critérios usar nesse escalonamento? Os da Direcção Geral das Contribuiçôes e Impos-
tos? Além desta dificuldade, há a referir uma outra igualmênte importante que explica também as altas
taxas de não-resposta, geralmente verificadas na p€rgunta sobre rendimentos e que não deixa de ser reve-
-2
ladora da adequàção das categorizaçõês à lógica iacionalizada e burocrática das sociedades modemas. É
que grande parte das não-respostas vem de pessoas cujos rendimentos provêm das actividades autóno-
mas (agricultores, comerciantes, artesãos e profissionais überais) ou não+apitalistas típicas (rentistas,
trabalhadores familiares não remunerados), das quais está ausente arelaçáo salarial. Assi4 qualquerren-
dimento que não provenha dos salários, directos ou indirectos, é exhemarnente dificil de conhecer.
,RA
o rNQUÉRrTO POR QUESTTONARTO NA CONSTRUÇÃO DOS DADOS 177

ma
quéritos sociológicos. Até porque é muito mais pertinente, teoricamente, uma varjâvel
como a categoria sócio-profissional. Trata-se de um índice agregado que, depen-
úó- dendo do quadro teórico e analítico que preside a cada investigação, pode integrar
r ti- vários indicadores, sendo que a profissão e as suas condições de exercício sáo os
ve- mais importantes. Dada a centralidade da categoria sócio-profissional nos esquemas
nte analíticos preponderantes na sociologia, vale a pena determo-nos um pouco mais
ia- detalhadamente sobre as dificuldades que a sua operacionalização suscita.
nar A pergunta relativa à profissão é quase sempre aberta. Geralmente, as respostas
em não descrevem um trabalho, mas limitam-se a dar-lhe um nome empregada de es-
di- -
critório, chefe de equipa numa empresa industrial, economista, notário, escultor, tipó-
L.d-
grafo, etc.. Portanto, quando se trata de codificar as profissões, o codificador/investi-
vi- gador não está perante trabalhos reais mas perante respostas referenciadas a categori-
zações incorporadas e pelas quais as pessoas estão habituadas a ser ideritificadas.
Uê'
Ora, o que é que podemos observar no pequeno número de exemplos apontados? Al-
do gumas designaçóes remetem-nos para cargoc (notário), outros para certificados es-
bre
colares (economista), outros para o dorn de uma arte (escultor), outros para uma arte
xÍo
aprendida (tipografo), outros para designações genéricas de empregos (empregada de
in-
escritório) e outros aindaparapostoshierarquicos (chefe de equipa). O codificador/in-
m-
vestigador depara-se corn urna sariedade de designaçóes que tanto podem ser nomes
Íe-
de ofícios ou de empregos, como de níveis de qualificação ou títulos de formaçáo,
da
que devem ser traduzidas numa nomenclatura em princípio organizada com base num
as
único critério, capaz de expressar categorias com certa homogeneidade sócio-profis-
úi-
5l6n2l (24).
,r!. A dificuldade começa precisamente na pretensão de definir categorias sócio-pro-
fissionais em função de um critério únicà. É que, parafraseando Boaue.rtu.á de
b- Sousa Santos, a estruturação geológica da realidade remete-nos indelevelmente para
[s vários estratos de categorizaçóes, nem sempre bem concatenados, que relevam de ob-
si-
BA
jectivos e condições sociais diferentes (ã). Daqui a indispensável complexidade das
çÀ categorias e perfis sociológicos com que devemos operar. Assim, a plJrncipal razáo
ET para a falta de univocidade na designaçáo das profissões deve-se ao desfasamento
dos sistemas de categorização relativamente às transformaçóes dos processos de tra-
G
F' (24) Veja-se o excelente tatamento dado à articulação das várias instâncias na construção das iden-
D.
tidades sócio-profissionais por LAURENT THEVENOT no pontro II de "Un Emploi a quel tire; l' iden-
i. üÉ professionnelle dans les questionnaires statistiques", Archives et Dxurneüs,38, INSEE, 1981,
D.
pp. 9-39. Gostari4 aliás, de chamar a atenção para o conjunto de lextos publicados neste volume, pois
constitui um contributo importante para a reflexão sobre o registo estatÍstico das categorias sócio-pro-
t-
fissionais e que capitaliza os resultados do intenso debate verificado em França, durante os anos seten-
I ,a. É possível encontrar expressões desse debate em outras publicaçoes como ConsommaÍion e Econo-
mie et Statistique. Como resultado desse debate surgiu uma nova nomenclatura de cujo processo de
É
construção nos dão conta ALAIN DESROSIERES et al, em "L'Identité sociale dans le tavail stâtisti-
que La nouvelle nomenclature des professions et catégories professionneles", Ecoramie et Statisti-
-
que, 152, 1983, pp. 55-81.
(25) BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, "O Estado e a Sociedade na Semi-Periferia do Siste-
;:ra lvíundial: O Caso Português'], Arúlíse Social 87-88-89, pp. 869-901.
178 VIRGÍNIA FERREIRA oA

balho, aos quais estáo directamente referenciados. Como estes processos se imbri-
cam uns nos outros e coexistem entre si, dado que a transformaçáo afecta de forma
desigual os vários sectores de actividade, encontramos os sistemas de categoizaçáo
de igual modo imbricados..De'facto, o processo de trabalho industrial taylorista não
eliminou totâlmente o artesanal, assim como não atingiu uniformemente todos os sec-
tores de actividade. Da mesma maneira também o prcsente processo de automatização
náo eliminará por completo o modelo taylorista nem incidirá em todos os sectores eco-
nómicos coma mesma expressão. E assim que, num corte transversal da realidade, é
possível encontrardesignações profissionais tributárias de lógicas diferentes consoan-
te os modelos de trabalho em que se inspirem (26).
Apesar de imbricados náo significa que não haja predomínio de um sobre os res-
tantes. Há-o efectivamente porparte do processo industrial e do sistema de categorias
nele inspirado. Só assim se compreende que, por exemplo, as taxas mais elevadas de
não-resposta à questáo da qualificação profissional e as maiores flunraçóes na forma
como a mesma pessoa designa a sua profissão em diferentes momentos ocorram
justamente nos sectores de actividades artesanais exercidas em pequenas unidades de
produção, onde as grelhas de classificação são mal conhecidas, ou nos sectores onde
a introduçáo de máquinas diminuiu a intervenção do operário (27).
Também a relação mantida com a profissão influencia as designações usadas.
Quanto mais distanciada foressa relação mais ambígua, imprecisaeva9aserá a for-
ma escolhida paÍa designar a profissão. Esse distanciamento, por seu turno, será
tantÕ maior quanto mais a relação se afastar da tipicamente capitalista e do operário-
-tipo - assalariado indus.trial, masculino, maior de l8 anos. E neste quadro que se
compreende não só o facto de os trabalhadores independentes apresentarem uma taxa
média de não-resposta às questões sobre categoria sócio-profissional superior à dos
assalariados, e dentro destes serem os empregados e as mulheres quem mais frequen-
temente recusa respondeç mas também o carácter vago das declaraçóes sobre a profis-
sáo dosjovens operários que exercem de forma instável actividades indiferenciadas
e, ainda, a inexactidão das declarações das mulheres que se apresentam como "em-
pregada na fábrica" quando são operárias, ou como "domésticas" quando trabalham
em unidades familiares de produção (28).

(26) Cf . ALAIN CHENU, "La Classe Ouwiêre en Mouvement; Repàres Statistiques", La Peraée,
233, 1983, pp.22-36.
(27) THEVENOT, op. cir.. O autor formula estas conclusóes a partir da análise das não-respostas
à pergunta sobre qualificação dos operários no recenseamento de 1975 em França e quanto às flutuações
nas designações da profissão, através da reinquirição, num pequeno intervalo de tempo, de 17600 pes-
soas activas, cuja situação plofissional nâo se tinha alterado desde a data do recgrseamento. Veja-se
ainda, do mesmo autor, "L'Economie du Codage Social", Critiques dc l'Ecorwkb Politique,23-24, E
1983, pp. 188-222 e, especificamente sobre a questão da qualificação nas empresas no espaço rural e
no urbano, FRANÇOIS EYMARD-DLIVERNAY, "Qualification, Poste, Salaire; étude sur I'industrie
horlogêre", Archives et Doctunetús,38, 1981, pp.82-104.
(28) Veja-se THEVENOT, op. cit., e ainda MARYSE HUET, "[,es catégories statistiques utili-
sées pour classer les épouses et enfants d'agriculteurs; des principes à I'usage effectif', Archives et Do-
cunlcnts, 38, 1981, pp. 4l-82.
R.{ o rNgaÉRrro PoR guESTroNÁRro 179

bri- Esse distanciamento não é, portanto, meramente subjectivo. É também o reflexo


ma da incapacidade e da inadequação revelada pelas categorias estatísticas e sociológicas
;áo para captar e classificar os trabalhos que fogem à relação padronizada pelo salário. As
rão razões de tal incapacidade advêm da desvalorização económica e social de trabalhos
ec- que náo se enquadrem estritamente naquele quadro.
$o E bem conhecida a subavaliaçáo estatística da população activa feminina no sector
co- da agricultura familiar. Em Pornrgal, mais do que noutros países em que o peso deste
?,é sector é menor e os instrumentos estatísticos mais sensíveis. A maior parte das mulhe-
an- res que trabalha nas exploraçóes'agrícolas familiares são integradas nas categorias es-
tatísticas dos "trabalhadores familiares não remunerados" e da "população inactiva"
es- (domésticas e reformadas) (2e).
ias Mas náo só à inadequação das categorias se fica a dever esta subavaliação. Tam-
de bém os métodos de inquirição podem ter influência. No inquérito auto-administrado,
ma a interferência das representações não-estatísticas ou não-sociológicas é quase absolu-
am ta e não passível de controlo por parte do inquiridor/investigador. Na inquirição feita
de directamente por entrevista, a possibilidade de controlo é muito maior e consegue-se
de um maior grau de coincidência entre as categorias accionadas nas respostas e as
categorias estaísticas ou sociológi@s G0). É esta diferença nos métodos de inquiriçao
16. que justifica a disparidade dos valores para a população activa feminina no sector agú-
br- colano RecenseamentoGeral daPopulação (auto-administrado) e no InquéritoPerma-
.Íá nente ao Emprego (administração indirecta).
'to-
Para além da inadequação das categorias e do método de inquirição, as respostas
se dependem também de quem responde ao inquérito. Efectivamente, algumas impre-
xa cisóes podem resultar do facto de não ser a própria pessoa a designar a sua profissão.
bs Isto pode perfeitamente acontecer, sem qualquer possibilidade de controlo por parte
Ír- do investigador, nos inquéritos auto-administrados. Observando-se em Pornrgal uma
'ts-
taxa de analfabetismo superior entre as mulheres, será lógico esperar que sejam estas
as quem mais frequentemente se vê substituido no seu lugar de respondente. Eviden-
n- temente que nem só o analfabetismo pode fundamentâr esse acto de subsütuição.
m Também o conjunto de práticas e representaçóes que fazem do homem o elemento
por excelência de ligação da famflia com o exterior concoÍre para que tal aconteça.
Mesmo em inquéritos dirigidos às mulheres, é comum ao inquiridor ver-se interrom-
b, pido pelo marido da inquirida para afirmar a ignorância desta relativamente aos assun-
tos ou parafazer correcções às suas declaraçóes. Mesmo que se trate de campos tra-
às
es
3. (29) EDGAR ROCHA estima serem cerca de 300.000 as mulheres "activas desaparecidas" do
3C secüor agrícola em Portugal no Recensearnento de 198 1, que eram dadas como activas no Inquérilo Per-
t, manente ao Emprego do INE. Veja-se, do aulor, "Notas sobre a população activa agrícola do sexo femi-
e nino, segundo o Recenseamento e segundo o Inquérito Permanente ao Emprego: em busca de 300.000
ie mulheres", Anál ise S oc iaL, 84, 1 984, pp. 7 01-7 05.
(30) É por esta mesma razâo quJas perguntas sobre a categoria sócio-profissional náo devem ser
ti fechadas. Doutro modo, estaríamos a impor o nosso sistema de caüellorizaçâo e ficaríamos sem qual-
D- querpossibilidade de controlo sobre as categorias implicadas nas respostas. Comparando as várias res-
postas dadas a perguntas abertas, será sempre possível fazer ajustamen0os na codificação.
180 VIRGÍNIA FERREIRA o I§Q

dicionais das mulheres, como é o caso, por exemplo, dos cuidados dispensados às
crianças com menos de um ano de idade, ou que a declaração verse sobre a profissão
da própria mulher. Neste caso, por exemplo, elas dizem-se "padeira" ou "trabalha-
dora na terra" e eles corrigem para "doméstica" ou "ajudante". As correcções dos
homens, mais do que reveladoras da situação profissional das mulheres, são indica-
doras da natureza das relaçóes entre homens e mulheres e da adesão aos estereótipos
sociais do duplo papel da mulher como esposa e mãe (adesão que se verifica, aliás,
nas próprias mulheres, como é evidente).
A natureza das tarefas desempenhadas pelas mulheres na empresa familiar tam-
bém é importante para a determinação das respostas. Quanto mais elas fazem traba-
thos diferentes ou complementares dos dos homens, mais facilmente estes trabalhos
serão corlsiderados uma extensão das actividades domésticas e, daí, as designaçóes
de "doméstica" ou "ajudante" €l). Por esse motivo, também não é suficiente recorrer
ao critério do número de horas semanais de actividade paÍa definir a situação profis-
sional das mulheres (15 horas, no caso do INE).
em concretizar certos aspectos à categoria só-
têm a com o
mas com :r
e como :t

outras so-
desempenhadas e o sector e ramo de actividade. No ca-
será necessário acrescentar algumas perguntas que aju-
dem a especificar as condições de exercício profissional, como o recurso a ajudantes,
familiares ou não, regularidade de venda ou compra de força de trabalho, investimen-
tos, tipo e quantidade de produtos colocados no mercado, número de clientes, ho-
rário de trabalho, etc.. Tendo em vista as actividades camponesas deve-se incluir
ainda perguntas sobre áreas cultivadas, forma de exploração da terra, aluguer de má-
quinas, trocâ de trabalho, inputs industriais, etc..
Chegados aqui, não se resistirá a julgar excessivo o número de perguntas. São
.perguntas a que a generalidade das pessoas, particularmente as que mais fogem às si-
tuações padronizadas, não gosta de responder. Por isso é grande a tentaçáo de as eli-
minar. Não são raras as vezes em que os investigadores cedem a essa tentação, lamen-
tando mais tarde tê-lo feito, face a Íespostas vagas e imprecisas que só com muita
"força de vontade" podem ser enquadradas numa das categorias. Entáo a reacçáo ten-
de a ser a de incluir essas respostas nas categorias intermédias. De modo a "náo for-
çar muito". Imaginemo-nos depois a correlacionar os fenómenos com uma estrutura
em que essas categorias foram artificialmente empoladas (32). Esm é, precisamente,
uma das grandes limitaçoes ao uso sociológico do inquérito. A extensão que este aün-

(31) THEVENAI, op. cir., pp. 13-16.


(32) Cf. JEAN-PIERRE BRIAND, "Sur quelques conséquences des différents emplois du code des
caÉgories socioprofessionnelles", Ecorwmie et Stuistique,168, 1984, pp.45-58.
{ o rNSuÉRrTo PoR UL\ESTTONÁRnO 181

s giria se cada um dos aspectos conceptuais envolvidos nas hipóteses fosse traduzido
em perguntas afectaria irremediavelmente a sua exequibilidade, por razóes de ordem
l logística, financeira e prâttca. De ordem prâtica também porque se tem que contar
com outra face da moeda. Qualquer inquérito demasiado extenso e desde que a en-
: trevista ultrapasse os 45/60 minutos, pode ser classificado como - tal provoca a
S
renitência e o enfado dos inquiridos, reacções que podemos facilmente- entender se
pensarmos na intromissão que o inquérito representa no seu dia-a-dia. De todas as
maneiras não se pode falarem terÍnos absolutos da duração do inquérito. Tudo depen-
de dos temas,,do tipo de perguntas e, fundamentalmente, como o percebera o publi-
cista Joseph-Ethienne Jouy hájá quase dois séculos, de quem sáo os inquiridos. São
conhecidas as dificuldades dos investigadores em "porem a falar" as pessoas su-
perocupadas do mundo dos negócios ou aquelas cujas funçóes profissionais passam
por "fazer falar os outros". E o caso dos advogados, juízes, assistentes sociais, mé-
dicos e... investigadores (policiais ou sociais). Em'consequência destas limitações,
acaba-se por optar pela redução do número de perguntas, com claro prejuízo para a re-
levância teórica dos resultados.
1 Estas observa$es sáo importantes para a elaboração do questionário, mas são-
-no, sobretudo, para a contextualizaçáo dos resultados, imprescindível para fundar
S
teórica e empiricamente a interpretação. A justificação para a extensão rlas observa-
çóes feitas ultrapassa em muito a importância reconhecida às questóes relacionadas
com as categorias sócio-profissionais. Com efeito, estas funcionaram como pretexto
para referir uma série de situações correntes na aplicação do questionário e abordar a
questão da utilização sobreposta e descontrolada de diversos sistemas de categorias
das características ditas "objectivas". Efectivamente, para qualquer aspecto das práti-
cas sociais que se considere é muito amplo o espectro de categorizaçóes existente e
muito variadas as suas fontes de inspiraçáo €3),

B. Perguntar como?

A formulação das perguntas não pode evidentemente perder de vista as caracterís-


--.is da populaçáo a inquirir. Nunca é demais chamar a atenção paÍaa impossibi-
:;de de formalizar e isolar "momentos" e "operações" do inquérito. Como saber se
: :rais aconselhável abrir ou fechar uma pergunta ou que terminologia usar se não se
' .:r em conia aquilo que já se sabe, ou se pensa saber, sobre essa população? Pro-
. . . 3lmente não faria sentido fazer a investigaçáo sejá se soubesse o necessário. E de

- - :r-'-'savantes: les objets de consommation et leur classement", Revue Française de Sociologie,Xl,


Só para nomear alguns exemplos, veja-se LUC BOLTANSKI, 'Taxinomies populaires, taxi-

;: !-14 e NICOLAS HERPIN, "Comment les gens qualifient-ils les tenues vestimentaires?".
-. -i €: Sratistique, 168, 1984, pp.3744.
VIRGÍNIA FERREIRA o
182

novo o ensombramento do problema enunciado anteriorÍnente através das palawas de 7


Derek Phillips. !
Nos últimos dez anos, alguns passos têm sido dados no sentido de uma socio-
logi a de observaçáo sociológica e algumas linhas de investigaçáo extremamente úteis I
têm sido desenvolvidas, se náo Para a resolução pelo menos para o reequacionamento t
dos problemas. Estas pistas têm resultado de análise às respostas atípicas, isto é, !
àquelas que só muito residualmente sáo bmadas em conta na interpretação dos resul- t
t
tados, como sejam as recusas de resposta, as respostâs "não sei", "náo tenho opi- i
i
niáo" ou "outras" (3a). Outro tipo de experiências incidido sobre o modo como a i
das afecta as e sobre os I
vels serem t
ado óptimos conffibutos para a formulaçáo das per-
guntas, mas também para a contextualizaçáo e ineviúvel complexificação da interpre- C

tação das respostas. Se forem conhecidas as tendências de certo grupo social para rea- d
girde determinada forma às perguntas abertas, por exemplo, poder-se-á tentar contra- d
riá-las fechando essas perguntas. Mas se o inquérito for também dirigido a outro gru- C

po social, com tendências contrárias, não será possível contomar igual e simultanea- I
mente ambas as tendências. Esta dificuldade constitui, aliás, mais uma limitaçáo ao q
uso sociológico do inquérito porquestionário e amostragem aleatória aplicado indife-
renciadamente a vários grupos sociais. Se se souber que a amostra contém grupos I
que reagem de maneira diferente à mesma pergunta, a operação de agregação das res- q
postas não pode ser feita desprevenidamente e estar-se-á pouco confiante parafazet Í
análises comparati vas entre as Íespostas dadas pelos diferentes grupos. Deste modo t
rito é muito mais eficaz se for a um só grupo. No t
caso de o objectivo ser a comparação inter-grupos, as no (
podem significar alteraçáo na inteligibilidade das perguntas e, deste modo, retirar le-
gitimidade formal à comparação. Contudo, essa alteraçáo pode não diminuir a legi-
timidade teórica da comparação, tudo depende da possibilidade de anular essas alte-
raçóes através de equivalências teóricas estabelecidas sob o comando de um sistema
integrador de referênci as.
A primeira hesitação que surge no momento de traduzir questões em perguntas é
r estas devem ser fechadas ou abertas. As fechadas condicionam mais as res-
postas de certos grupos, no da imposição da problemá-
tica. Em contrapartida, facilitam enorrnemente a anotação no acüo de inquirire o apu-
ramento dos resultados. Já o proporcionarem maior comparabilidade dos dados, van-
tagem que lhe é geralmente atribuída, pode serobjecto de alguma dúvida, face ao que

(34) Veja-se, por exemplo, FRANÇOIS DE SINGLY, "La gestion sociale des silences", Corxorn-
maÍion, 4, 1982; NICOLE TABARD, "Refus et approbation systématiques dans les enquêtes par son-
dage", Consonunation,4, 1975, pp. 59-76.
(35) Por exemplo, SCHUMAN e PRESSER, obra já citada, e NICOLAS J. MOIENAAR, "Non-
Experimental Research on the effects of the wording of questions in survey interviews", Quality and
Quantity, 16, 1982, PP. 69-90.
A o rN QUÉRrro PoR SUESTTONÁRÚO 183

le já se disse acerca do modo diferente como os grupos sociais podem reagir à mesma
pergunta.
)- Dado o elevado número de inquéritos exigido pela representatividade estadstica,
is as vantagens das perguntas fechadas acabam por vingar e as desvantagens por ser mi-
o nimizadas. Para minoraros seus efeitos
., verá ser construída a da análise de a uma
I. ta aberta um ou um e
i_
a as ãVãnÇãdãSter-ad"-u-Írason€spon-dência
a @namentosmaiscorrentesepoderãoenquadraramaioriados
inquiridos. Embora, especialmente nas questões relativas a atitudes e opiniões, não
possa existir nunca a pretensão de exaustividade.
A sujeição às regras do jogo propostas é uma práticacomum e são raras as vezes
)- em que são assinaladas hipóteses não previstas. Mesmo que náo se trate de uma atiru-
t- de expressa de sujeição, pode simplesmente emergir um certo comodismo, pois não
t-
deixa de ser mais fácil tomar posição sobre enunciados do que fazer o esforço da
t- enunciação. Ou então dar-se um efeito de atracção pela resposta que parece socialmen-
I- te mais desejável ou atraente aos olhos do respondente, simplesmente porque pensa
o que "fica ou soa bem".
Os mesmos efeitos podem, aliás, determinar as respostas a perguntas abenas. Às
§ vezes responde-se aquilo que se afigura mais simples de enunciar, de acordo com o
)- que se pensa que deve ou pode ser respondido. Esta renúncia a expor a própria posi-
)r
ção pode sobrevir à percepção de que esta é "muito complicada". Tal sensação advém
o geralmente do facto de se julgar a própria posição pouco comum. Estaremos, assim,
o perante mais uma das razões pelas quais se afirma que o inquérito por questionário
o captaa reprodução, mas não a transgressão, da "normalidade" social. Apesarda reco-
)- mendação de fechar as perguntas a partir da análise de respostas a perguntas abertas
i- em pré-inquérito serconstantemente feita nos manuais, são raras as investigações em
:- que é seguida. Umas vezes por alegada falta de tempo ou de meios, outras, talvez as
a mais frequentes, porque os investigadores náo lêem os manuais, como desconfia Gal-
tung, ou porque, como alvitra Cicourel, as pÍEocupaçôes de rigor so surgem com a
necessidade de interpretar os resultados.
A inclusão das alternativas "náo sei" e "não tenho opinião" é outra das questóês
suscitadasporalgunseStudosex@,sabendocomoesSaS
alternativas podem funcionar como refúgio em certas perguntas, evitam incluí-las e
OS são aconselhados no sentido de só as aceitarem depois de alguma in-
o
nas em que as aparecem em média, mais de 22Vo das respos-
tas. Na opiniáo dos autores, se se quiser uma opinião fundamentada sobre um pro-
blema em particulaq deve-se recoÍÍer a uma perguntâ filtro que contenha as hipóteses
"náo sei" e "não tenho opinião". Se, no entanto, se pretender antes detectar valores,
ideologias e atitudes, então poder-se-á eliminar a questão filtro e incluir essas hipote-
ses nas próprias questões. Relativamente às posições intermédias, do tipo "-nem con-
cordo, nem discordo", os mesmos autores são de opinião que deveriam passar a ser
184 VIRGÍNIA FERREIRA ol.

qrais expliciqdas deixarem de ser apenas respostas cómodas, de rejeiçáo a res-


postas Polares (so).
As opçóes relativas à formulação das perguntas deverão ser tomadas em função
de cada situaçáo e objectivos concretos. Em termos absractos, nenhuma fórmula é
melhor do que a outra. Contudo, como já foi sublinhado, a natureza quantitativa do
tratamento das respostas do inquérito e o elevado número de inquiridos obrigam a pri-
vilegiar a inclusão de perguntas fechadas._Uqq {o_ryy q9 ultrapassar algumas das li-
rylllçóe§ 4"rt§, sugerida em 1957 por Cannell e Kahn, consisté êm peígúntai sem--
p_re as rá1õ9q de
lgdas.qq_qEltgg.s_fglTu]a!.a1pg1Ou9 gejl possível captar o
quadro'
de re férê úi 㧠(ue*pre§idiuã-au a 6rmul açáo cT. -
-.- Tãiúbám
-
üúâ cãrtâlnéiõiã, alinierÍÉdà"peld úóntade indistinta de análises compara-
tivas, faz com que as perguntas fechadas tendam a passar de uns inquéritos para
outros. Esta passagem é feita, na maioria das vezes, sem que seja relativiz ada aeficá-
cia dessas perguntas em contextos sociais e históricos diferentes e em grupos sociais
distintos. Ora, além do mais, o conjunto de interrogaçóes em que se insere uma ques-
táo assim como as próprias palavras podem ser factores decisivos da validade da com-
paração. Nesse sentido, haverá que evitar que uma só pergunta seja retirada do con-
texto ou que uma só palavra seja mudada, o que pode constituir um problema algo
complicado em inquéritos já extensos ou muito separados no tempo.
Por maior que seja o esforço de controlo, no final, coÍne_gelrcordam Shuman e
tryȍl-
"quando escrutinadas, quase todas as perguntas do questionário são criticá-
veis" (38).

Cada pergunta contém viírios sentidos semânticos, suscita graus de interesse dife-
renciados e pode resultar em alguma confusáo ou, mesmo, em algumas não-res-
postas. A ocorrência e intensidade destas contingências serão tanto mais acentuadas
quanto mais heterogénea for a populaçáo que constitui a amostra.

CS
C. Perguntar a quem?
q.t
Depois de uma elaboraçáo incorrecta do problema da pesquisa e uma formulaçáo
náo pertinente ou capciosa do questionário poderá suceder-lhe um erro de amostra- IÍi
I gem A defini da amostra deverá ser feita em estreita ligação com os objectivos teó-
ricos. O mals grave, e o mals raro, perguntas não sabe as respos-
-
ü
à
Er
(36) Cf. SCHUMAN e PRESSER, op. cit., caps. 4 e 6.
(37) C. F. CANNELL e R.L. KAHN, Tle dyrwmics of intervbwing, Nova Iorque, John Wiley,
1957, cit. em CICOUREI' op. cit..
(38) Op. cit.,p.12.
o rNQUÉRrro PoR guESTroNÃRro 185

tas ou cujas respostas não nos interessam. Menos raro, poÉm, é o erro que resulta
da escolha da técnica de amostragem menos adequada para "encontrar" a população a
inquirir. Neste sentido, a amostragem totalmente aleatória e simples écada vez menos
usada em inquéritos sociológicos pois fomece uma visão muito atomística e fragmen-
tát',a da população abrangida. Assim, tem-se vindo a intensificar o recurso à amostra-
gem po! áreas. Em primeiro lugar, porque exlge um ume
ções contexruais básicas sobre as populaçóes das áreas. Estas são definidas a priori e
de acordo com critérios teóricos e informaçóes gerais. Para o universo rural basta a
relação de lugares do INE, por freguesias, enquanto que para o urbano será necessá-
rio um bom mapa da cidade e, se possível, os índices de ocupação de cada quartei-
rão. O concelho ou a freguesia podem funcionar como unidades primárias de amostra-
gem (3e).
Por outro lado, esta técnica permite a ualizaçáo de diferentes métodos de selecção
em diferentes fases do processo de amostragem. Pode começar-se por uma amostra
teoricamente qualificada, definindo uma área,depois uma amostra proporcionalmente
estratificada em função do volume populacional ou de qualquercaracterística da popu-
lação de cada aglomerado em que a área foi dividida (concelho ou freglesia) e, final-
mente, a selecção probabilística ou sistemática das unidades a inquirir. E fundamental-
mente por esse motivo que, para além de reduzir os custos, este processo de amostra-
gem pode oferecer-nos uma amostra mais homogénea, do ponto de vista da perti-
nência teóica,uma yez que os elementos que a compóem sáo escolhidos por grupos
e não individu2lrnsnE (40).

Vejamos, entretanto, como é complicado o problema da amostra. Quando nos re-


ferimos ao inquérito por questionário, estamos forçosamente a falar de uma técnica
quantitativa. Doutro modo não faria sentido, pois nesse caso estaríamos quando
muito afalar de entrevista estruturada, o que é substancialmente diferente. Por isso, a
aplicaçáo da expressáo "inquérito por questionário", em toda a sua propriedade,
remete necessariamente para um tratamento quantitativo dos resultados. E então que
se levanta o problema da amostra e da sua representatividade. Aqui confrontam-se
dois pontos de vista diferentes, embora não necessariamente opostos: os da técnica
estatística e os da interpretação sociológica.
- -Paraõl-riinêiro, umã arnos-tra á iépresentativa de um determinado universo desde
que esteja garaniida a aleafôriedâdê-do pioꧧó-clã sua co-nrit'iniiÇâôl 0u seja, dêsde

(39) Uma questão completamente diferente será a delimitação dos espagos rurais e urbanos. Os cri-
térios adoptados podem ou não coincidir com os utilizados pela administração para a classificação dos
aglomerados em cidades, vilas e aldeias ou das freguesias em urbanas e rurais. Os critérios sociológicos
devem derivar da pertinência teórica atribuída a qualquer característcia evidenciada pelos aglomerados.
Essa propriedade tanto pode ser o volume da população como a localização no aglomerado de cerüos
equipamentos colectivos ou, ainda, o facto da população se dedicar predominantemente a certas activi-
dades.
(40) Veja-se o processo de constituição da amostra por áreas no inquérito aos padrões de aleitamen-
to maúemo no diskito de Coimbra, in World Health Organization, Hospital Pediátrico e Faculdade de
Economia, "Breast-Feeding Survey Preliminary Report", W.H.O., no prelo.
-
186 VIRGÍNIA FERREIRA OI:

que a populaçáo daquele universo não tenha sido enviesadamente seleccionada por
via da acção de um qualquer factor ou critério. Mesmo no caso de uma amostia estra-
tificada, apenas se definem proporçóes das subamostras, garantindo-se todavia que
estas sejam casuisticamente constituídas. Portanto, a aleatoriedade é a base de suporte
de toda alógicade inferência estatística que se vai aplicar aos dados apurados. Além
disto, a rqpresentatividade estatística da amostra está também relacionada com o plano
de exploraçáo dos dados , definido pelo investigador.-A_alrostra deve ser suficiente-
tt
ii tir a análise multivariada com a dé@s
que se deseje. , coITe-se o SE que
tos, face à não representati vidade do escasso número de casos apurados. Por esta
razão se referiu, logo no início, que o plano de exploração e de análise dos dados
deve ser definido em paralelo à determinaçáo da amostra e ao desenho do plano de
amostragem.
Para o segundo daqueles pontos de vista (a interpretação sociológica), uma amos-
VA se contiverelementos qu@dadês e as
nuances socrals AS

ser enüsta apenas captar um leque táo


amplo quanto possível dos aspectos dos fénomenos ou das populaçóes que analisa,
para que possa descobrir novas categorias (e suas características) e a sua relevância
paÍa a teoria que procura desenvolver.
Náo esquecer as existentes entre a amostra es-
e
r descubra
novas
O riiesmo se poderá dizerdos'testes de significância estatística. Com efeito, como
afirma Galtung, correlaçóes estatisticamente fracas podem ser extraordinariamente
relevantes do ponto de vista da teoria. Portanto, a relevância estatística e a teórica náo
têm que ser coincidentes. Por vezes perseguem-se infatigavelmente interpretaçóes
para correlações, náo raras vezes, perfeitamente espúrias. Outras vezes, ignoramos
pistas potencialmente ricas apenas por se mostrarem estatisticamente irrelevantes.
Não há dúvida, no entanto, que, no fundo, em ambos os casos nos limitamos a per-
correr os trilhos abertos pelas nossas perspectivas teóricas. Se as correlações esta-
tísticas confirmam as nossas expectativas, o questionário utilizado é óptimo, foi par-
ticularmente bem administrado"e os instrumentos estatísticos adequados às neces-
sidades. Se, ao contrário, aquelas correlaçóes se mostram totalmente inesperadas,
então as perguntas estavam mal formuladas, as entrevistas foram mal conduzidas, ou
então as técnicas eram estatisticamente limitadas por náo permitirem manusear os
dados como desejamos porque, por exemplo, a amostra não é suficientemente grande
para nos permitir fazer os cruzamentos que nos ocorrem (geralmente à "última da
hora", ou seja, quando face a um cruzamento com resultados (não) sugestivos nos pa-
rece que, afinal, teria sido mais interessallte crllzar isto com aquilo e mais...).Em
suma, tende a ver-se em resultados esperados o uso de técnicas óptimas, mas também
o seu inverso em resultados inesperados, o efeito de técnicas limitadas e
-
O INQUÉRITO POR QUESTIONARIO 187

ineficientes. Todos lemos Kuhn e sabemos que é na procura de soluçóes para estas
"anomalias" que se forjam as revoluçóes científicas. Porém, falta-nos a confiança na
técnica de inquérito por questionário para enfrentar tal desafio. Esta falta de confiança
prende-se, ao que julgo, com o facto de esta técnica ser daquelas em que o inves-
tigador mais delega funções.
Definida a amostra, o inquérito ensaia os primeiros passos fora da alçada do in-
vestigador, por assim dizer. Chegou a vez de testar o questionário e os inquiridos,
tanto na sua capacidade de rnquirir como na de encontrar coÍrectamente as pessoas
que, de acordo com a amostragem, devem ser inquiridas. A partir daqui o investi-
gador delega funções e até responsabilidades de controlo (supervisor). Mesmo que,
do ponto de vista teórico, a pesquisa tenha sido coÍrectamente perfilada até este mo-
mento, será a partir de agora que se vão multiplicar as fontes de incorrecções, seja na
recolha, seja no tratamento dos dados.

t
I
)
4.INTERACÇÃO INQ urRrD o R/TNQIjERITO/INQUTRID O
t
I

Nesta fase, as recomendaçóes dos manuais recaem sobre o rigor exigido relativa-
mente aos critérios de recrutamento de inquiridores e sobre o grau da sua preparação
para obterem boas entrevistasjunto das pessoas certas, de acordo com os objectivos
da pesquisa e as exigências do plano de amostragem.
Vejamos, por exemplo, tudo o que é aconselhado para o trabalho de campo no
texto de A. Campbell e Katona:

ue se recoÍre ao método de entrevistas é necessário freinar


OS tanto nas como
aos em uestão. devem re-
um que ue os da pesquisa e o
sentido de cada pergunta. Deverão ser tomadas as disposiçóes necessárias de modo
a garantir-se que as operaçóes de entrevista sejam cuidadosamente supervisiona-
d35" (41).

Trata-se, de apresentar cuidadosamente o inquérito aos inquiridores, ex-


porrnenonza o com cada pergunta em particular e
com o inquérito em geral; de os familiartzar com as técnicas necessárias ao-o-om-de=
sempenho da entrevista, que passam pelos artifícios a usar desde o momento da abor-

(41) Citado da p. 52 de "L'ênquete sur échantillon, technique de recherches socio-psychoiogi-


ques", in L. FESTINGER e D. KATZ, lts rnéthodes de recherche dans les sciences sociales, Pans,
PUF, t. 1, pp.23-67,19'74,31. ed. [ed orig., Nova Iorque, 1953].
188 VIRGÍNIA FERREIRA OL

dagem aos inquiridos até às diversas siruaçóes-problema que podem ocorrer durante
a entrevista (razóes da escolha do entrevistado, formas de convencer os renitentes a
responder, modos de superar as falhas de memória, as respostas "não sei" ou as re-
cusas de respostas a perguntas concretas); de os instruir com técnicas de anotação e,
finalmente, de os supervisar.
Todos estes aspectos são importantes no treino dos inquiridores, mas não restam
l! dúvidas que todos os manuais sublinham a imprescindibilidade de estes possuirem
boas capacidades de entrevistador. Quanto a saber quais sáo essas capacidades, as
opinióes oscilam, por um lado, entre a neutralidade e a impessoalidade como aliadas
privilegiadas de uma atitude prôfissional (L. Festinger, por exemplo) e, por outro 1a-
do, a capacidade de estabelecer uma boa relação com o entrevistado (H. Hyman, W.
Goode e P. Hatt). Ou seja, devem ser pessoas de trato fácil e treinadas no diagnós-
tico e na superação de todo o tipo de tensóes. Capazes de conquistar o entrevistado,
mas também de manter a distanciaçáo técnica e competente relativamente a este.
Poder- se- á as si m di zer q ue na re l ação de entre vilta Íegg:t tggg_É gli gr-q_o. gq 9!!Ig
-
yisja{gy qu_e_conquiste a cag_pggglg. ig_ent_r9y_ist49_9.que, durante o decorrer da-
quela, evite o envolvimen g_qbslry À sUggq!ão-e à ln_duçãg de
respostas e a contrariar os fenómenos psico-sociais (identificaçáo, manipulaçáo e
outros) deseircadeadó§ pela siiüação'de iÀquirição.
O pressuposto de todos os manuais, e é isso que interessa realçar, é que o entre-
vistadorcompetente e bem treinado, munido de um questionário correctamente elabo-
rado e preparado para evitar os múltiplos mecanismos psicológicos da distorção, é ca-
paz de obter a informação desejada, apesar dos obstáculos suscitados pelo facto de a
entrevista ser um processo de interacçáo social (42).
A longevidade deste pressuposto é tanto mais de estranhar quanto, desde os anos
quarenta, têm vindo a ser feitos trabalhos que nos fornecem elementos que levam a
pensar não haver maneira de tomear aqueles obstáculos, pois eles referem-se a aspec-
tos inerentes a qualquer situação de interacção social. A verdade porém é que os resul-
tados daqueles trabalhos acabaram por figurar nos manuais da técnica de inquérito a
tín-rlo de mera advertência e geralmente relamdos com estatuto anedótico. Foi na dé-
cada de sessenta que aqueles problemas passaram a ser objecto de investigaçáo pró-
pria, sem carácter ad hoc, e os seus resultados começaram, já nos anos setenta, a ser
seriamente incorporados no sabef sociológico acerca da pesquisa empírica.
Ao longo do texto, tem-se vindo a configurar a ideia de que não há questionários
perfeitos. Vimos como pequenas alteraçóes na ordem das perguntas e na sua formula-
çáo afectam significativamente as respostas dadas. Assim, foi possível problematizar
os critérios dessa suposta perfeição em si mesmos. Mas perfeição relativamente a
quê? A capacidade de produzir um relato fidedigno da realidade que se pretende co-
nhecer? Mas nós não podemos coúecer "a Realidade" ! Em contrapartida, temos re-
presentafres da realdade. De duas realidades, melhor dizendo. Uma respeita à reali-

(42) A título de mero exemplo, cf. WILLIAM GOODE e PAUL HATT, Mérodos em Pesquisa So-
cial, S:ero Paulo, Comp. Ed. Nacional, 1968, pp. 237-268,21 eÁ.,Íed. orig., Nova Iorque, 19521.
o rN gu ÉRrr o P oR 8u E srIO NÁRIO 189

dade que queremos configurar com as respostas que obtivemos e sobre as quais
temos hipóteses e pistas que procurámos seguir e armadilhas com que tentámos cap-
turá-las. A outra refere-se à realidade resultante da própria situação da entrevista que
é geradora de sentidos muito ambivalentes e relativamente aos quais não possuimos
elementos suficientes paÍa a sua denotação (a não ser que a pesquisa se transforÍne
em algo incomportável, como seja uma análise de caso para cada respondente). Esta
falta de controlo das representações accionadas durante a entrevista acaba inelutavel-
mente por afectar a fiabilidade com que podemos encarar a realidade resultante das
respostas obtidas nesse quadro.
Em suma, confrontamo-nos com a necessidade de fazer mediar a nossa leitura
das respostas pela representação que o inquirido constrói da situação. O problema re-
side no facto de náo termos acesso directo às linhas gerais dessa representação e ficar-
mos limitados a conjecturálas. Neste sentido, considero que falarda perfeiçáo de um
questionário implica hipostasiar uma situaçáo de entrevista. Será no prolongamento
desta linha de raciocínio que se chega à rejeição da expressão enviesamento das res-
postas, geralmente usada nos manuais para designar o efeito de desvio entre a res-
posta dada e aquela que corresponderia "à verdadeira situaçáo, ao real comporta-
mento e à efectiva opinião" do inquirido. O recurso a essa expressáo é revelador da
adesão a uma versão intimista e substantiva "da verdade dos inquiridos". Como se
existissem, de um lado, as declarações prestadas no quadro da entrevista e, do outro,
os actos e os pensamentos as reais manifestações daquilo que os inquiridos são
verdadeiramente. -
O conceito de representaçáo social e, mais especificamente, de função adaptativa
da representação, propostos por Moscovici, podem ser de grande utilidade na contes-
taçáo do substancialismo. Segundo o autor, a função adaptativa da representação,

'lno processo de interacÇão, leva o suieito a acentuar na sua apresentacãops-lspec-


qqs qq,e the Parecem ada
cuÍso".

E, evidentemente isso não acontece por

"umq_.f91_qq!g autencidade ou uma atitude maquiavélica destinada a esconder a ver-

mas por simples desejo de resolver rápida e eficientemente a srtuação em que se viu
envolvido. Nestes casos, resolverefi cazeefrcientemente a situação traduz-se em pres-
tar a informação que lhe é solicitada o melhor possível, medido em termos dos seus
próprios objectivos e das suas projecçôes da actividade científica. Isto implica a
apreensão dos objectivos do inquiridor e a definição de uma estratégia adequada. Ou

(43) SERGE MOSCOVICI, Ia Psychanalyse son inuge et son publíc, Paris, PUF, L976, 2c
ed p. 48. -
190 VIRGÍNIA FENNNMI, o r-\

sej a, figurar qual a imagem que melhor lhe serve e tentar transmiti-la de um modo coe-
rente e de molde a escusar-se aos juízos negativos do entrevistador.
Em face desta análise torna-se incongruente continuar a falar de enviesamento ou
distorção das respostas. Aquilo que uma pessoa declara numa entrevista é o conteúdo
da imagem que pretende sua naquele contexto e tanto quanto é capaz de configurar.
Assim, a verdade é sempre pragmática e referenciada a um contexto de interacçáo.
il Sendo outro o contexto situacional, será outra a informação produzida (44)'
Galtung coloca a questão em termos ligeiramente diferentes. Para ele a coffespon-
dência entre atitudes e comportamentos, pensamento e verbalização e entre acção e
verbalização pode sermera questão de ordem moral, cultural e individualmente situa-
da. O guiáo de observação que hoje acompanha frequentemente o questionário, e que
deve ser preenchido pelo inquiridor durante ou no final da entrevista, representa uma
tentativa de complementar a informação dada pelo inquirido e de a corroborar ou não.
E considerado particularmente importante para verificar a correcção dos rendimentos
e níveis de consumo declarados ou para contextualizar de uma forma mais abrangente
o universo inquirido ou a situação de entrevista. No fundo, é uma tentativa de com-
promisso entre a técnica de inquérito e a observação participante, que acaba por susci-
tar alguns problemas. Suponhamos que os dados da observação contrariam as decla-
rações verbais do inquirido. O que é que se deve fazer? Decide-se que este mentiu
com a prática ou com apaTavra? E se essa discrepância for apenas fruto dos critérios
de categorização da observação? Que confiança podem merecer, aos olhos do investi-
gador, as categorizaçóes feitas pelo inquiridor? Finalmente, qual o dado que vai ser
reificado no computador? Tudo leva a crer que será a informaçáo dada pelo in-
quiridor. Galrung sugere que se privilegie as declaraçóes do inquirido. Na sua opi-
nião, o que interessa é o facto de este ter sentido a necessidade de responder de certo
66d6 (as). O importante é pois a compreensão da força simbólica atribuída pelo inqui-
rido à situação social representada nas suas respostas. Isto não significa que o guiáo
de observação seja inútil. Pelo contrário, doutro modo não conseguiríamos detectar
as discrepâncias. Quanto mais diversificadas forem as técnicas, mais finos serão os
dados obtidos e todos representam diferentes dimensóes das práticas sociais e todos
têm a sua validade própria. Nestes tennos, as respostas ao inquérito não devem ser

(44) Além disso, a representação do objectivo do inquérito e a do inquiridor estão intimamente arti-
culadas com o papel a que o inquérito apela, e as respostas dependerão também da representação desse
papel. Não será indiferente inquirir a mesma pessoa enquanto pai ou mãe, profissional, munícipe, ci-
dadã(o), ou trabalhador(a) na empresà X. Com efeito, se adoptarmos o conceito de papel com a actuali-
zação proposta por ERVING GOFFMAN, de acordo com a qu41 o papel, para além de um conjunto de
comportamentos normativizados, é também uma ocasião para cada pessoa se exprimir, teremos várias
identidades para papéis diversos. A própria ideia de que a identidade pessoal e social náo tem um estatu-
to ontológico, mas se revela a cada instante na sua plasticidade às relações sociais, constitui um dos
contributos importantes do autor para a compreensâo dos fçnómenos da interacção social. Veja-se, do
auior, principalmenteThe Presentation of Self in Everyday Life,Nova Iorque, Anchor Book, 1959.
(45) Cf. JOHAN GALTUNG, Teoria y Método de la Investigación Social, Buenos Aires, Eudeba,
1973, t. 1, caps. V e VI [ed. orig., Nova Iorque, 1966].

-J
o rNOUÉRrro poR euEsTroxÁnto 191

encafadas como "pedaços da realidade", mas remetidas às condiçóçs da sua produçáo


e compreendidas no quadro de interacção que determinou essas condições.
No final dos anos sessenta, as correntes da sociologia fenomenológica e interac-
I cionista trouxeram o indivíduo weberiano para primeiro plano da análise sociológica.
Este indivíduo está constantemente a negociar livremente decisões face às escolhas
com que é confrontado. As suas opçóes resultam da ponderação de oportunidades de
acção e das constrições que pesam sobre ela. Claro que não se trata das oportunida-
des e constriçóes objectivamente existentes mas da sua percepção subjectiva que é en-
formada precisamente pelos sentidos que ele atribui à sua acção e à dos outros. Em
suma, a acção social é finalizada e subjectiva. Aprofundando esta linha de análise, a
pouco e pouco aquelas correntes sociológicas promoveram a substituição da visáo
normativa por uma outra cognitiva da ordem social.
Novas interrogaçóes vieram assim recolocar os parâmetros de validade das res-
postas no inquérito. Afasúmo-nos das concepçóes behavioristas e positivistas em
que as condutas humanas eram interpretadas como respostas a estímulos, sendo que
a um mesmo esdmulo corresponderia sempre e só uma resposta. Tomar em contaãs
dimensóes cognitiva e simbólica da conduta humanaimplica infringiresse determinis-
mo e passar a considerar que nem os estímulos nem as reacções têm uma natureza
ontológica independente dos contextos sociais e dos indivíduos concretos. Antes são
construções que utilizam, como matéria-prima, as representaçóes sociais dos indiví-
duos. Depois desta formulação, a pergunta do inquérito de administração indirecta ou
da entrevista náo pode deixar de estar ancorada nas concepçóes próprias de quem a
elaborou e definiu a grelha de análise a que vai ser sujeita, nem pode ser abstraída da
situaçáo em que um indivíduo concÍEto afaz a outro. Por seu turno, a resposta dada a
tal pergunta não pode deixar de estar referenciada a um todo, simultaneamente con-
sistente e contingente, que é o resultado da identidade pessoal e da identidade social
estratégica que o Íespondente definiu como adequada à situaçáo.
O mesmo se poderia dizerdas outras modalidades de inquérito em que não há en-
treüsta. Nos parcialmente auto-administradog no primeiro momento do trabalho de
campo o contâcto com os inquiridos â interacçáo inquiridor/inquirido define
- os elementos estruturais de sentido
igualmente -, que irão ser accionados por este últi-
mo para interpretar a situação de inquérito e adoptaruma estratégia adequada à sua in-
terpretaçáo. As diferenças fundamentais desta modalidade relevam do facto de as res-
postas serem fomecidas fora do quadro de interacçáo face-a-face com o inquiridor.
No entanto, não se poderá dizer que os seus efeitos desaparecem na totalidade. O in-
quirido dará respostas suscitadas pelo inquiridor conc.eio (ou imaginário, no caso do
inquérito enviado pelo correio), a quem atribui um determinado esquema de pertinên-
cias de sentido. As respostas são assim peças de diálogo figurado com uma represen-
taçáo de inquiridor. Simplesmente este náo está presente para discutir, confirmar,
reestruturar ou actualizar essa representação (46).

(46) Uma especificidade deste tipo de inquériüc reside na dificuldade em fazer funcionar certas estra-
tégias de ordenaçâo de perguntas. Dá-se o caso de o inquirido poder, uma vez perante o questionário,
192 VIRGÍNIA FERREIRA o L\Qt

A partirdesta concepção de inquirido, o que é que se pode dizer do papel de inqui-


ridor? Que por mais treinado que esteja há algo cuja influência ele náo pode evitar-
ele mesmo. Por isso a melhor preparação com que um inquiridor pode munir-se é a
dupla qualidade de investigador/inquiridor. Só assim será possível perfilar a repre-
sentaçáo da situação por parte dos inquiridos, identificar os objectivos e as cons-
triçóes à sua acçáo e os recursos de que dispõem. Só assim se consegue uma unifi-
cação de critérios para avaliar as diferenças contextuais das entrevistas.
li
É claro que só um reduzido número de inquéritos é compatível com essa dupla
funçáo de investigador/inquiridor. Noutros casos, a ênf.ase recairâ sobre a preparação C )
teórica dos inquiridores. A condição ideal é que eles próprios participem desde o
I início em todos os trabalhos relativos à preparação do questionário e acompanhem a
codificação das respostas. O objectivo será a uniformizaçáo das soluções e das inter-
pretações ao longo de toda a cadeia de levantamento e de tratamento de dados, que
têm um caráctermuito menos teórico do que os próprios investigadores estáo dispos-
tos a admitir, não passando muitas vezes de assunções taken-for-granted, para usar
os termos dos etnometodólogos.
De resto será inevitável que o inquirido responda de acordo com a sua própria al-
quimia individual da situação. Assim, sabe-se que é influenciado pelas peculiaridades
pessoais do inquiridor, até nos inquéritos por telefone, mas não é bem conhecido o
sentido em que essa influência se verifica. Isto porque é completamente impossível
controlar a paralinguagem (ritmo, tom de voz, intensidade, hesitaçóes, silêncios) e a
linguagem cinética (olhares, movimentos, postura corporal, gestos) (47). Esta pro-
priedade torna o inquérito e a entrevista dificilmente reprodutíveis. Daí também os
problemas levantados pela reinquirição, usualmente feita por um supervisor.
A necessidade de aprovação social e a tendênci a para a aquiescência, responden-
do afirmativamente, sáo outros dos efeitos passíveis de condicionar as respostas de
inquiridos particularmente intimidados ou reverentes com o acto social de inquirição
científica. Estes efeitos incidem mais intensamente nas questóes relativas a opinióes e
atitudes. Se abandonarrnos a concepção determinista que concebe a atitude como a
causa de comportamentos e a considerarmos como indicador de preferências, de ob-
jectivos e intençôes, isto é, de predisponentes para a acção dos sujeitos, então a inter-
ferência daqueles efeitos perderá a relevância que lhe é conferida por muitos dos au-
tores críricos do inquéri6 (48). Para tanto bastará, como já foi largamente referido, re-
ler, estudar e definir (às vezes até com outras pessoas) uma linha de coerência de respostas. Deste mo-
do, os efeitos procurados pelas técnicas de ordenação são praticamente anulados. A incidência desta par-
ticularidade estende-se até à análise dos resultados, por criar a necessidade de postular um contexúo de
preenchimento do questionário. Além disso, náo sendo embora tao difícil cumprir o plano de amostra-
gem como quando o inquérito é enviado pelo correio (cujas taxas de não-resposta chegam a registar va-
lores da ordem dos 907o), não deixa de ser um obstáculo ingrato conseguir a disponibilidade do inquiri-
do e constitui um facüor frequente de atraso no cumprimento do plano de execução. Cf. RODOLPHE
GHIGLIONE e BENJAMIN MATAION, Les Enquêtes Sociologiques et Pratique, Pais,
A. Colin, 1978, pp. 4l-50 e 143-144. -Théories
(47) Cí. D. PHILLIPS, op. cit., cap. 4 e ACKROYD e HUGHES, op. cit., pp. 87-88.
(48) Cf. MATALON, op. cit., pp. 178 e segs.

I _it
o rNQaÉRrro PoR QUESTTONÁRÚO 193

conhecer às respostas apenas a validade decorrente do contexto em que foram produ-


zidas. Um contexto isolado das experiências quotidianas descritas e avaliadas nessas
respostas, e aftificial no sentido de seruma experiência só vagamente relacionável ao
quotidiano.

5. COM QUE RESIILTADOS?

Trata-se agora de reconduzir atÉcruca de inquérito aos limites de validade que as


suas características lhe demarcam. Sendo muito mais adequada aos interesses teóri-
cos das correntes compreensivas, interessadas no ponto de vista dos sujeitos sociais
observados, não foi, contudo, por mero acaso ou fruto de qualquer inconsistência
que o seu uso se generalizou no seio das correntes positivistas da sociologia, cujo pa-
radigma postula que os investigadores devem começar por teorias abstractas, das
quais se derivam umas hipóteses que devem ser operacionalizadas e testadas empirica-
mente.-.1O :!gg14jto, impedindo por completo o vaivém entre teoria.e dados, durante a
pesquisa, que outras técnicas proporcionam, acaba por ser a que mais reifica o dado,
-s
sas enfo rm ada s e m tabêl-as qüànti tatiü âTque dío-áIü§ãõ dê e -
rem nte porque, uma vez
çado, é como se um corte separasse o que presidira ao seu
nascimento. Com efeito não pode mais ser alterado em função do diálogo com a rea-
lidade, com riscos de prejudicar a agregação e o tratamento quantitativo dos dados.
Na actual reapreciação do inquérito, um dos problemas metodológicos e epistemo-
lógicos que continua em aberto é a forma de articularo tratamento quantitativo com as
observações de ordem qualitativa que contextualizam a informagão. Este problema tra-
duz-se em questões muito concretas como a enunciada a propósito das discrepâncias
porventura detectadas entre as respostas fornecidas pelo inquirido e as informaçóes
lançadas no guiáo de observação pelo inquiridor. Na altura disse-se que era impor-
tante o acto da descoberta de discrepâncias em si mesmo. Mas tal náo abarca toda a
complexidade da questão. Fica por decidir qual o estatuto a atribuir a essas discre-
pâncias. Ignoram-se no quadro numérico de resultados e chama-se a atenção paÍa a
sua existência em tímida nota de rodapé? Ou dá-selhes igualmente um tratamento es-
tatístico e confere-se-lhes um estatuto semelhante ao dos erros de amostragem? Ou
seja, como é possível idtegraro conhecimento sobre o contexto e as condições de pro-
dução dos dados no tratamento quantitaüvo destes? Se se souber pela reinquirigão
que os adolescentes, por exemplo, patenteiam, em geral, uma taxa média de incon-
sistência de respostas da ordem dos lSVo em perguntas relativas à sexualidade, como
é que este conhecimento pode ser incorporado na leitura e na interpretação dos
quadros de resultados? De forma semelhante, se se souber que as mulheres exibem
194 VIRGÍNIA FENNNN,E

um comportamento mais aquiescente, como deverão ser lidos os quadros de res-


postas a perguntas em que se pede a concordância ou a discordância relativamente a
certa ideia? De facto, as dificuldades parecem ser de natüÍeza similar quer se pense
que os fenómenos afectam indiferenciadamente (aleatoriamente?) a população inqui-
rida (caso dos adolescentes) ou que incidem especialmente numa parcela particular e
identificada desta (caso das mulheres).
A encruzilhada em que desembocámos no final da travessia do tempo de crítica ao
!t positivismo, impõe-nos atitudes e práticas científicas marcadas pelo pluralismo meto-
dológico, cujo desafio principal consiste, como já foi realçado, no aprofundamento
do conhecimento da observaçáo sociológica. Na técnica de inquérito sobrevém espe-
cificamente a dificuldade em potenciareste conhecimento no quadro da análise quan-
titativa. Embora as técnicas de análise de dados, com a análise multivariada, acoÍÍe=
laçáo ou a regressão, terlham alcançado um grau de sofisticação inusitado, se compa-
rado com o das técnicas de recolha, a verdade é que elas foram construídas e desen-
volvidas para o tratamento de certo tipo de dados. Hoje trata-se de constnrir técnicas
que correspondam às novas perspectivas teóricas. Trata-se concretamente de poder
pensar o tempo de um outro modo e a escalas diferentes e de encarar a multicausali-
dade e a contingência sociais de um modo mais complexo (4e)'
uérito continua a ser fecundo na elploraÇáo dos fenómenos e, por seu inter-
médio, é possível entrever ligaçóes e interpretaçóes antes insuspeitadas. Por outro
lado, é uma das vias de acesso às racionalizaçóes que os sujeitos fazemdas sua§ esCó:
lhas e das suas práticas.
Mas para que a sua eficácia teórica seja potenci ada,haveút que diminuir a delega-
ção de funções. Isso obriga não só à reduçáo das unidades inquiridas, mas também à
qualificaçáo teórica das amostras. Antes do mais, potém, trnpliça.egqglgúqE3g dg
qryL4áÉle investigadgr com inqujldor, de modo a diminuir a cadeia de filtra-
ge i2rofundarne.nto da uniformizaçáo controlada das
decisões que dirigem o processo de produção de dados. Doutra maneira, dificilmente
poderemos considerar a sua utilidade na exploração dos fenómenos, uma vez que nos
falta a confiança necessária para perseguir as sugestóes que os seus resultados pos-
sam insinuar. Além disso, dada a particularidade do inquérito nos fornecer agregados

(49) DANIEL BERTAUX tem vindo a desenvolver esforços que caminham neste sentido, procu-
rando integrar atécnica de inquérito com a abordagem biográfica. Na sua perspectiva a dificuldade
maior vem precisamente da inexistência de técnicas de análise adequadas aos dados longitudinais, uma
vez que as desenvolvidas até aqui se destinavam a analisar dados produzidos por cortes transversais na
população. Este tipo de corte, que tem dominado a prática sociológica do inquérito, reflecte um certo
estado mas não um processo. É conveniente nâo confundir a técnica de painel introduzida por ta-
zarsfeld com os inquéritos longitudinais. Enquanto através da primeira é possíiel avaliar variações em
estados separados no tempo, os segundos permitem reconstituir um processo em função de um estado
do tempo presente. Veja-se, do autor, Histoires deVie- Ou Récits de Pruiques? Méthodologie de l'ap-
proche bbgraphique en Sociologie, Paris, Centre d'Efude des Mouvements Sociaux, 1976, mimeogra-
fado.

_.t
A o rNQUÉRrro PoR SUESTIONÁRIO 195

s- de informaçáo, o investigador deve fazer prec*der e suceder arcalizaçâo deste de uma


a cuidada pesquisa de tipo qualitativo.
;e Ao fim e ao cabo, no momento presente, parece metodológica e epistemologi-
i- camente razoável afirmar que o uso sociológico do inquérito deve ser feito em aú-
e culação com outras técnicas. Mas o mesmo é igualmenterazoá,vel afirmarem relaçáo
a estas. Só a multiplicidade de fontes empíricas, cada uma com a validade que lhe é
ro pópria, pode devolver-nos a multidimensionalidade das relaçóes sociais. .
)-
to

n-
ORTENTAÇÃO nrnlrocRÁFrca
a-
l-
ls Seria eúdentemente impensável fazer do presente texto um manual sobre inquérito. Por
variadíssimas razóes, dentre as quais não serádespiciendaaquedecorre daexisênciade umle-

que razoável de manuais que podem ser usados de forma complementar. Nenhum deles é
i- perfeito ou coÍresponde na essência ao que cada um dos possíveis utilizadores exigiri4 mas
cada um pode ser de consulta mais proveitosa quanto a certos aspectos. Nesse sentido é difí-
r- cil encontrff o Manual de Inquérito, mas é possível usar com proveito alguns dos existen-
ro tes. Pelo menos de um ponto de vista estritamente pessoal, que é sempre o que prevalece em
,: assunüos relativos a roteiros bibliográficos.
Se me fosse sugerido que elegesse o melhor manual talvez apontasse a obra de RODOL-
a- PIIE GHIGLIONE e BENJAMIN MATALON, Les Enquêtes Sociologiques et
Pratique, Paris, Armand Colin, 1978, 301 páginas. -Théoies

Trata-se de um trabalho marcadamenrc reflexivo que, apesar disso, não perde nunca de
!.u vista os aspectos práticos. O capítulo 2 contém uma boa abordagem das questões relativas à
a- amostragem; o cap. 3 coloca pertinentemente as implicaçóes da interacção entre inquiridos e
as inquiridores e o cap. 4 em indicações de grande utilidade na constnrção do questionário.
.te Há no entanto que Íe,correr a ouüas obras:
]S MADELEINE GRAWTIZ, Méthodes des Sciences Sociales, Paris, Dalloz, 19'15,2
s- -
volumes. Existe uma edição em Espanha, também em 2 volumes, publicada pela Editorial
)S Hispano Europea de Barcelon4 com o título Métodos y Técnicas de las Ciencias Sociales.
E uma obra especialmente útil no planeamento do inquérito (Cap. 11 do 20 Vol.), na for-
mulação de perguntas e na análise dos problemas suscitadas pelo trabalho de campo (Cap.
14-Secção I também do 2a Vol.).
u- CLALIDE JAVEAU, L'Enquête par Questionnaire Manuel à l'Usage du
de - -
Practicien, Bruxelas, Éditions de lUniversiÉ de Bruxelles, 1978, 157 páginas.
D'I
Contém indicaçóes práticas quanto à economia do questionário (Secção C), do confiolo
na
do rabalho de campo e do apurameno dos dados (Secção D).
to
JOHN GALTUNG, Teoia y Método de la Investigacián Social, Buenos Aires, Edio-
a- -
rial Univenitária de Buenos Aires, 1966, 2 volumes (5t ed. 1978). Um tano formalista
m
lo
-
mas com uma perspectiva interessante e pouco simplista de cerúos procedimentos práticos.
p' Tem boas abordagans dos problemas com que nos defrontamos na recolha de informação
a- (Caps. V e VI do 10 Vol.) e dos testes estatísticos para análise de resultados (Caps. IV e V
do 20 Vol.).

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