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UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE - UNIVALE

FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E


ECONÔMICAS - FADE
CURSO DE DIREITO

O CRIME ORGANIZADO E O ESTADO DESORGANIZADO

DANIELLE NEGREIROS DOS SANTOS


10º PERÍODO

GOVERNADOR VALADARES, NOVEMBRO DE 2010


1

UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE - UNIVALE


FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E
ECONÔMICAS - FADE
CURSO DE DIREITO

O CRIME ORGANIZADO E O ESTADO DESORGANIZADO

Monografia apresentada
como requisito indispensável
para a graduação em Direito.

DANIELLE NEGREIROS DOS SANTOS


10º PERÍODO

ORIENTADOR: Prof. Evandro dos Santos Costa

GOVERNADOR VALADARES, NOVEMBRO DE 2010


2

UNIVERSIDADE VALE DO RIO DOCE – UNIVALE


FACULDADE DE DIREITO, CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS E
ECONÔMICAS – FADE
CURSO DE DIREITO

DANIELLE NEGREIROS DOS SANTOS

O CRIME ORGANIZADO E O ESTADO DESORGANIZADO

Monografia apresentada ao Curso de Direito da


UNIVALE como requisito parcial para a
obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovado ( )

Aprovado com louvor ( )

Aprovado com restrições ( )

Reprovado ( )

Professor:
Evandro dos Santos Costa - Orientador
Professor:

Professor:

GOVERNADOR VALADARES, NOVEMBRO DE 2010


3

AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente a Deus pela benção e força para alcançar


esse objetivo.
Aos meus pais, pelo apoio e confiança depositados em mim nesses
5 (cinco) anos de caminhada, por toda a dedicação e amor, pela
oportunidade de poder concretizar meu sonho na condição de futura
operadora do direito.
Ao meu orientador Evandro dos Santos Costa.
E a todos que indiretamente contribuíram para a confecção da
mesma.
4

Se os ricos e os poderosos podem escapar a preço de


dinheiro às penas que merecem os atentados contra a
segurança do fraco e do pobre, as riquezas, que sob a
proteção das leis são a recompensa do trabalho, tornar-se-ão
alimento da tirania e da iniquidade.”

CESARE BECCARIA, DOS DELITOS E DAS PENAS.


5

RESUMO

SANTOS, Danielle Negreiros dos. O crime organizado e o estado desorganizado.


2010. Monografia (Graduação em Direito). Faculdade de Direito, Ciências
Administrativas e Econômicas da UNIVALE, Governador Valadares, MG.

Na feroz tentativa de combater o crime organizado necessário se faz abrir


os olhos da população brasileira para a histeria criada por certos setores em relação
a esse tema. Nota-se que esse discurso político-governamental é apenas uma
satisfação simbólica que visa esconder as verdadeiras causas da criminalidade
urbana e mascarar a incompetência do Estado no combate à violência.
A falta de programas destinados a mitigar as graves desigualdades
sociais e o crescente desemprego, são causas atraentes aos jovens dos grandes
centros urbanos na prática de ilícitos. É por isso que ilusória presença do Estado
como garantidor da lei e da ordem não passa de uma falácia. Posto que é
fundamental e de extrema urgência que se proceda a uma reestruturação do
sistema, promovendo o crescimento econômico, geração de empregos,
investimentos em educação e melhoria das condições de vida da população.
Todas essas medidas em termos de segurança pública só surtirão efeitos
se acompanhadas de ações de alcance social. Em longo prazo, o investimento em
políticas sociais trará mais resultados do que aquisições de viaturas e armamentos,
criação de delegacias especializadas, promulgação de leis ineficazes, construção de
novos presídios e discursos inflamados da lei e da ordem.

PALAVRAS-CHAVE

Ministério Público; Crime Organizado; Segurança Pública; Estado.


6

SUMÁRIO

O CRIME ORGANIZADO E O ESTADO DESORGANIZADO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................................. 08

2 DO CRIME ORGANIZADO: FATOS HISTÓRICOS E


DESENVOLVIMENTO....................................................................................... 10
2.1 O Crime Organizado e suas Características............................................... 13
2.2 Do Crime Organizado e sua Tipificação no Direito
Penal.................................................................................................................. 15
2.3 O Crime Organizado e suas Conseqüências no Plano Processual
Penal.................................................................................................................. 16
2.4 Tutela Processual do Crime Organizado..................................................... 19
2.5 Atuação Restritiva do Estado e seus Limites.............................................. 21
2.6 Procedimento Probatório............................................................................. 24
2.6.1 Da Obtenção da Prova para Apuração do Crime Organizado................. 24
2.6.2 Proposição e Admissão da Prova nos Processos de Criminalidade
Organizada........................................................................................................ 27
2.6.3 Produção da Prova em Face do Crime Organizado................................. 27
2.6.4 Valoração da Prova nos Processos Relativos a Criminalidade
Organizada........................................................................................................ 29
2.7 Das Organizações Criminosas no Brasil..................................................... 30
2.8 O Terrorismo................................................................................................ 34
2.9 Crime Organizado e a Globalização............................................................ 35
2.10 Crime Organizado e Tráfico de Substâncias Entorpecentes..................... 36
2.11 Crime Organizado e Lavagem de Dinheiro............................................... 38
7

3 O CRIME ORGANIZADO E O ESTADO...................................................... 43


3.1 Caracteres do Crime Organizado.............................................................. 43
3.2 Conexões com o Poder Público................................................................. 45
3.2.1 Estratégias de Infiltração......................................................................... 47
3.2.2 Formas Indiretas de Conexão................................................................. 47
3.2.3 Formas Diretas de Conexão.................................................................... 49
3.3 Conexões entre Particulares e Agentes Públicos....................................... 52
3.4 O Estado e o Crime Organizado................................................................. 53

4 O CRIME ORGANIZADO E A PERDA DA EFICÁCIA DE PARTE DA LEI


9.034/95............................................................................................................ 55
4.1 Da Perda de Eficácia de Vários Dispositivos da Lei 9.304/95.................... 55
4.2 Da Falta de Definição de Ordenação Criminosa........................................ 56
4.3 Conteúdo Atual sobre o Significado de “Crime Organizado”...................... 57
4.4 Características da Organização Criminosa................................................. 58
4.5 A Autonomia do Legislador......................................................................... 58

5 SUGESTÕES PARA O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO.................. 59


5.1 Estratégias.................................................................................................. 59
5.1.1 Base Ético-Política................................................................................... 60
5.1.2 Extermínio da Promiscuidade.................................................................. 60
5.1.3 A Corrupção e o Crime Organizado......................................................... 62
5.2 O Estado Forte............................................................................................ 64

6 CONCLUSÃO................................................................................................ 65

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 67
8

1 INTRODUÇÃO

Neste trabalho será abordada a complexa problemática do Crime


Organizado, iniciando o estudo a partir de sua origem, narrando brevemente as
semelhanças existentes na formação de algumas organizações criminosas, assim
como seus tipos e ramos de atuação. Em segundo plano, serão analisadas as
principais características do crime organizado, que se constituem em acumulação de
poder econômico, alto poder de corrupção, necessidade de legalizar lucro obtido
ilicitamente, alto poder de intimidação, conexões locais e internacionais,
criminalidade difusa e, finalmente, estrutura das organizações criminosas e sua
relação com a comunidade. A importância dos tópicos supra citados reside na
identificação e no enquadramento das infrações penais cometidas como de crime
organizado.
Ainda, indubitável é a relevância de seu conceito, baseado em colocações
doutrinárias. Atente-se à dificuldade em se conceituar crime organizado, frente ao
número e à complexidade de condutas que o compõem. Nesta vereda, é de verificar-
se que a Lei n° 9.034/95 foi omissa quanto à concei tuação de crime organizado,
comparando-os aos crimes de associação criminosa e quadrilha ou bando, já
tipificados no ordenamento jurídico brasileiro. Em derradeiro, o artigo 1° do
mencionado dispositivo legal foi revogado pela Lei n° 10.217/01, contudo esta não
solucionou o problema apontado, apenas declarando a distinção entre os crimes de
quadrilha ou bando e de associação criminosa do crime organizado.
Como se há verificar, o modelo processual penal vigente apresenta-se como
ineficiente na obtenção de variados tipos de provas, em face da sólida estrutura do
crime organizado e de seu poderio econômico, impossibilitando que a atuação dos
agentes, assim como as conseqüências de suas ações sejam rastreadas,
comprovadas e devidamente punidas. Diante do quadro exposto, a doutrina e a
jurisprudência têm considerado a aplicação de medidas restritivas os direitos
individuais, garantidos pela Carta Magna, quando o caso concreto exigir sua
imposição, atentando-se aos limites de sua aplicação e ao Princípio da
Proporcionalidade.
Também será abordado o procedimento probatório, partindo do conceito de
prova e de procedimento probatório, analisando seus momentos e importância para
a adequada avaliação do caso concreto pelo magistrado, não se olvidando a
9

obtenção de provas a fim de se apurar o crime organizado, sua admissibilidade no


processo e sua valoração. Ademais, será verificada a atuação das organizações
criminosas no Brasil, assim como suas conseqüências para a sociedade civil e para
o Estado brasileiro. Ainda, será discutida a importância do Terrorismo como ameaça
à comunidade internacional, além de sua correlação com o crime organizado.
Também merece atenção o crime de tráfico de entorpecentes, já que se configura
como objeto de ação de inúmeras organizações criminosas.
Cabe salientar a questão da lavagem de dinheiro, relevante crime
econômico de profunda conexão com o crime organizado. Não há olvidar-se a
jurisprudência emanada pelos Egrégios Tribunais Brasileiros, relatando a opinião
das instâncias superiores quanto à questão do crime organizado. Ao ensejo da
conclusão deste trabalho, serão apontadas soluções plausíveis, em consonância
com o ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se combater um dos maiores
desafios da atualidade.
10

2 DO CRIME ORGANIZADO: FATOS HITÓRICOS E DESENVOLVIMENTO

Inicialmente tratar-se-á da complexidade existente quanto à origem das


organizações criminosas, face às diferenças circunstanciais apresentadas por cada
país. Note-se que1:

No Reino Unido e na Espanha, por exemplo, a existência de uma


regulamentação sobre o consumo de drogas, o jogo e a prostituição faz com
que os grupos organizados sejam de caráter distinto dos existentes no
Japão, onde as organizações que se dedicam ao controle do vício e da
extorsão têm uma grande proeminência. Em muitos países do Terceiro
Mundo, além da exploração da droga, o crime organizado se dedica à
corrupção de funcionários públicos e políticos.

Interessante se faz comentar que algumas organizações, como as Máfias


italianas, a Yakuza japonesa e as Tríades chinesas são organizações que
apresentam traços comuns, uma vez que surgiram no início do século XVI como
uma maneira de defesa contra os abusos cometidos por aqueles que detinham o
poder. Ademais, para o crescimento de suas atividades contaram com a conivência
de autoridades corruptas das regiões onde ocorriam movimentos político-sociais2.
Outrossim, foi relatado que o primeiro caso de Terrorismo, vertente do crime
organizado, ocorreu em 1855, ocasião em que anarquistas franceses atentaram
contra Napoleão III, tendo esses se refugiado na Bélgica, cujos governantes
recusaram-se lhes conceder a extradição. Tal fato originou a Lei Francesa de 28 de
julho de 1894. Registre-se, ainda, que no Brasil a associação criminosa derivou do
movimento conhecido como cangaço, cuja atuação deu-se no sertão do Nordeste,

1
Princípios de Criminologia. Valência: Tirant lo Blanch, 1999. p. 648. Apud, GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 outubro de 2004.

2
SILVA, Eduardo Araújo da: Crime Organizado. 2003. p. 20, Apud, GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 de outubro de 2004.
11

durante os séculos XIX e XX, como uma maneira de lutar contra as atitudes de
jagunços e capangas dos grandes fazendeiros, além de contestar o coronelismo3.

Personificados na figura de Virgulino Ferreira da Silva, “O Lampião”, (1897-


1938), os cangaceiros tinham organização hierárquica e com o tempo
passaram a atuar em várias frentes ao mesmo tempo, dedicando-se a
saquear vilas, fazendas e pequenas cidades, extorquir dinheiro mediante
ameaça de ataque e pilhagem ou seqüestrar pessoas importantes e
influentes para depois exigir resgates. Para tanto, relacionavam-se com
fazendeiros e chefes políticos influentes e contavam com a colaboração de
policiais corruptos, que lhes forneciam armas e munições.

Verifica-se que a primeira infração penal organizada no Brasil consistiu na


prática do jogo do bicho. Relatou-se que o Barão de Drumond criou o jogo com o
intuito de arrecadar dinheiro para salvar os animais do Jardim Zoológico do Estado
do Rio de Janeiro. Contudo, a idéia popularizou-se e passou a ser patrocinada por
grupos organizados, os quais monopolizaram o jogo, corrompendo policiais e
políticos.
Nas décadas de 70 e 80, outras organizações criminosas surgiram nas
penitenciárias da cidade do Rio de Janeiro, como a Falange Vermelha, que nasceu
no presídio da Ilha Grande e é formada por quadrilhas especializadas em roubos a
bancos, o Comando Vermelho, originado no presídio Bangu 1 e comandado por
líderes do tráfico de entorpecentes e o Terceiro Comando, dissidente do Comando
Vermelho e idealizado no mesmo presídio por detentos que discordavam da prática
de seqüestros de crimes comuns praticados por grupos criminosos. Já na década de
90, no Estado de São Paulo4, surgiu no presídio de segurança máxima anexo à
Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, a organização criminosa denominada

3
SILVA, Eduardo Araújo da: Crime Organizado. 2003, p. 25 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 outubro de 2004.

4
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado, 2003, p 26. GONÇALEZ, Alline Gonçalves; BONAGURA,
Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004.
12

PCC (Primeiro Comando da Capital), com atuação criminosa diversificada em


diversos Estados. Com o fim de patrocinar rebeliões e resgates de presos; roubar
bancos e carros de transporte de valores; praticar extorsão de familiares de
detentos, extorsão mediante seqüestro e tráfico de entorpecentes, possuindo
conexões internacionais; e conseqüentemente assassinar membros de facções
rivais, tanto dentro como fora dos presídios.
Em 17 (dezessete) de junho de 2002, a organização não governamental
World Wild Fund (WWF)5, divulgou relatório, onde o crime organizado, incluindo a
Máfia russa e os cartéis de entorpecentes, estão adentrando o tráfico ilícito de
animais, devido ao seu caráter lucrativo (de até 800%), ao baixo risco de detenção e
à falta de punição. Estima-se que, no Brasil, 40% dos carregamentos ilegais de
drogas estejam relacionados com o tráfico de animais. Nos Estados Unidos, mais de
1/3 (um terço) da cocaína apreendida em 1993 provém da importação de animais
selvagens. Nota-se que, em alguns casos, os animais são levados juntamente com
as drogas; em outros, são usados como moeda de troca e lavagem de dinheiro.
Pode-se relatar que as pesquisas biológicas clandestinas, o comércio
irregular de madeiras nobres da região amazônica e da mata atlântica, em especial o
mogno, extraído dos Estados do Pará e sul da Bahia, com a suposta conivência de
funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), também são
consideradas relevantes áreas de atuação do crime organizado no território
nacional, com conotações transnacionais. Segundo relatório final da CPI da
Biopirataria6, divulgado em 3 (três) de fevereiro de 2003, o comércio ilegal de
animais movimenta aproximadamente R$2 bilhões por ano e, a comercialização
ilegal de madeira, R$4 bilhões.
Há, no entanto, a existência de organizações criminosas especializadas em
desvio de extraordinários montantes dos cofres públicos para contas de particulares,
as quais são abertas em paraísos fiscais no exterior. Tal prática envolve escalões
dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, resultando no impeachment do

5
World Wild Found. Organized gangs move into wildlife trafficking. Disponível em:
http://www.wwf.org.uk/news/n_0000000589.asp. Acesso em 20 de agosto de 2004.

6
ROTA BRASIL OESTE. CPI da Biopirataria aprova relatório final. Disponível em:
http://www.brasiloeste.com.br/noticia.php/442. Acesso em 20/03/2004.
13

Presidente Collor em 1992, a renúncia de alguns deputados da Câmara Federal, os


quais manipulavam verbas públicas e ficaram conhecidos como "anões do
orçamento", além da cassação do senador Luís Estevão e da prisão do presidente
do Tribunal Regional do Trabalho, Nicolau dos Santos, devido ao superfaturamento
na construção da sede do referido tribunal.
Registre-se que:

A criminalidade organizada não é apenas uma organização bem feita, não é


somente uma organização internacional, mas é, em última análise, a
corrupção da Legislatura, da Magistratura, do Ministério Público, da Polícia,
ou seja, a paralisação estatal no combate à criminalidade... é uma
criminalidade difusa que se caracteriza pela ausência de vítimas
7
individuais.

2.1 O CRIME ORGANIZADO E SUAS CARACTERÍSTICAS

Dentre as características que identificam a atuação do crime organizado


pode ser apresentada inicialmente a acumulação de poder econômico dos
integrantes das organizações criminosas, estes atuam no vácuo de alguma proibição
estatal, o que lhes possibilita auferir extraordinários lucros8. Aliás, estima-se que o
mercado do crime organizado movimenta mais de ¼ (um quarto) do dinheiro em
circulação no mundo. Salienta-se que as Máfias italianas9 são consideradas
verdadeiras potências financeiras do mundo: o volume anual de seus negócios

7
ROTA BRASIL OESTE. CPI da Biopirataria aprova relatório final. Disponível em:
http://www.brasiloeste.com.br/noticia.php/442. Acesso em 20/03/2004.

8
CONCEIÇÃO, Mário Antônio. O crime organizado e propostas para atuação do Ministério Público, 1999,
Apud, GONÇALEZ, Alline Gonçalves; BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi,
Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004. Disponível em:<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>.
Acesso em: 24 Agosto de 2004.

9
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado, 2003, p. 28 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004
14

alcança US$50 bilhões e estima-se que seu patrimônio seja superior a US$100
milhões.
Percebe-se que a acumulação do poder econômico deriva da necessidade
de legalizar o lucro obtido ilicitamente, acarretando na lavagem de dinheiro auxiliada
pelos paraísos fiscais (Panamá, Ilhas Cayman, Uruguai, Ilhas Virgens Britânicas,
Andorra, dentre outros). Em derradeiro, o alto poder de corrupção configura-se como
fator relevante no incentivo ao crime organizado, uma vez que é direcionado a várias
autoridades das três esferas estatais, na medida em que são compostas pelas
instâncias formais de controle do Direito (Polícia Judiciária, Ministério Público e
Poder Judiciário), pelas altas esferas do Poder Executivo, além de integrantes do
Poder Legislativo. Assim, a participação de agentes estatais cria uma sensação de
segurança nos criminosos, na medida em que contribui para a continuidade das
ações delituosas e para o agravamento do problema da impunibilidade.
Registre-se que a criminalidade difusa decorre da ausência de vítimas
individuais, conhecidas, determinadas, configurando-se como obstáculo à reparação
dos danos causados pelas organizações criminosas, uma vez que no momento em
que se descobre a infração, os danos são imensos e irreparáveis, restando ao Poder
Público o rastreamento do valor apropriado, tarefa esta de difícil concretização,
frente à morosidade, dificuldade e aos resultados mínimos. Vale lembrar que as
organizações criminosas possuem característica mutante, pois se utilizam de
empresas de fachada, terceiros (laranjas) e contas bancárias específicas como
meios impeditivos de visibilidade de sua atuação pelo Poder Público. E com o
tempo, alteram sua estrutura administrativa, mudando as empresas, removendo as
pessoas para lugares diversos e criando outras contas bancárias.
Outra característica a ser verificada é o alto poder de intimidação que
também se perfaz em um fator considerável, já que a "lei do silêncio" imposta aos
membros do crime organizado, assim como às pessoas estranhas à organização é
mantida devido ao emprego de meios cruéis de violência. Assim sendo, os membros
de tais facções podem atuar na clandestinidade, a fim de evitar a responsabilização
penal. Outro fator consiste nas conexões locais e internacionais e na divisão de
territórios para a atuação. No âmbito internacional, os criminosos não encontram
grandes obstáculos para se integrarem, notadamente após o desenvolvimento do
processo de globalização da economia, que contribuiu para a aproximação das
nações, possibilitando aos grupos que ainda operavam paralelamente um novo
15

impulso em suas relações com maiores perspectivas de expandirem mercados


ilícitos.
Não se pode deixar de analisar a estrutura das organizações criminosas e
sua relação com a comunidade, onde estes grupos possuem uma estrutura
empresarial, possuindo na base soldados que realizam diversas atividades
gerenciadas por integrantes de média importância. E como consequência, ganham
simpatia da comunidade em que atuam e facilitam o recrutamento de seus
integrantes, realizam ampla oferta de prestações sociais, aproveitando-se da
omissão do aparelho do Estado e criam uma prática de um verdadeiro Estado
paralelo.

2.2 DO CRIME ORGANIZADO E SUA TIPIFICAÇÃO NO DIREITO PENAL

A tipificação das condutas delitivas individuais é incompatível com o


problema do crime organizado, devido ao número variado e complexo de condutas
que o compõem. A sua conceituação normativa faz-se possível mediante a
aproximação de três critérios: “Estrutural (número mínimo de integrantes), finalístico
(rol de crimes a ser considerado como de criminalidade organizada) e temporal
(permanência e reiteração do vínculo associativo)”. 10
Assim sendo, é possível conceituar crime organizado como aquele praticado
por, no mínimo, três pessoas, permanentemente associadas, que praticam de forma
reiterada determinados crimes a serem estipulados pelo legislador, em consonância
com a realidade de cada País11. Necessário se faz verificar que a Lei n° 9.034/95
procurou tutelar o crime organizado, não se atentando ao Projeto n° 3.519/89, cujo
artigo 2° estipulava que 12:

10
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado – aspectos gerais e mecanismos legais. 1º ed. São Paulo:
Ed. Juarez de Oliveira, 2002.

11
MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime Organizado – aspectos gerais e mecanismos legais. 1º ed. São Paulo:
Ed. Juarez de Oliveira, 2002.

12
GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
16

Para efeitos desta lei, considera-se organização criminosa aquela que, por
suas características, demonstre a existência de estrutura criminal, operando
de forma sistematizada, com atuação regional, nacional e/ou internacional.

E, no entanto, essa conceituação não partiu de uma noção de organização


criminosa, não definiu crime organizado por seus elementos essenciais, não arrolou
as condutas que constituiriam criminalidade organizada nem procurou aglutinar
essas orientações para delimitar a matéria. Optou somente, num primeiro momento,
por equiparar a organização criminosa às ações resultantes de quadrilhas ou
bandos, de acordo com seu artigo primeiro.

2.3 O CRIME ORGANIZADO E SUAS CONSEQUENCIAS NO PLANO


PROCESSUAL PENAL

Já no plano processual, o crime organizado, devido ao seu caráter


multiforme, também requer o desenvolvimento de estratégias diferenciadas dos
crimes comuns, na medida em que se busca uma maior eficiência penal. Nesta
vereda13:
A evolução da criminalidade individual para a criminalidade especialmente
organizada, que serve de meios logísticos modernos e está fechada ao
ambiente exterior, em certa medida imune os meios tradicionais de
investigação (observações, interrogatórios, estudos dos vestígios deixados),
determinou a busca de novos métodos de investigação da polícia.

E assim:

A criminalidade organizada, especialmente a narcocriminalidade, tem


evoluído extraordinariamente nos últimos tempos, adquirindo estruturas
complexas que dispõem de ingentes meios financeiros de origem ilícita e
cuja capacidade operativa supera as das clássicas organizações de

13
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado, 2003, p. 42, Apud, GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004.
17

delinqüentes, razão pela qual os meios tradicionais de investigação se


mostram insuficientes, ao menos para chegar ao coração das organizações
14
e aproximar-se dos seus chefes e promotores .

As organizações criminosas se utilizam de meios eficazes para a destruição


de provas de autoria delitiva e possuem mecanismos modernos, sendo estes mais
sofisticados que os da Polícia às vezes, para que possam afastar sua culpabilidade.
Como se pode verificar no caso do homicídio, a arma de fogo utilizada é destruída
para evitar vestígios; o automóvel utilizado para fins ilícitos é incendiado; os locais
de atuação são desconhecidos; as testemunhas são assassinadas ou ameaçadas;
no interior dos grupos criminosos as informações são restritas. Ademais, os
integrantes de algumas organizações criminosas passaram a adquirir equipamentos
eletrônicos, geralmente com tecnologia superior àqueles utilizados pela polícia, que
facilmente identificam a presença de microfones ocultos ou microcâmeras instaladas
nos ambientes por eles frequentados (moradias, escritórios, hotéis etc),
comprometendo, assim, a obtenção da prova15.
Em decorrência da dificuldade em se adquirir provas contundentes no caso
do crime organizado, medidas como interceptações telefônicas e ambientais, quebra
de sigilo bancário e fiscal dos denunciados, têm sido permitidas pelo ordenamento
jurídico de vários países. Note-se que a recomendação nº 10 do VIII Congresso das
Nações Unidas, realizado em Havana, no ano de 1991, dispõe que "a interceptação
das telecomunicações e o uso de métodos de vigilância eletrônicos são também
importantes e eficazes" 16 para a apuração do crime organizado.

14
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado. 2003, p. 46 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004.

15
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado. 2003, p. 47 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004.

16
GARRIDO, Vicente e t al, Apud, GONÇALEZ, Alline Gonçalves; BONAGURA, Anna Paola et al. Crime
organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004.
18

Conclui-se que essas estratégias de busca de prova têm se mostrado


eficientes para o rastreamento das operações financeiras, muitas com conexões
internacionais, resultantes na lavagem de dinheiro. Saliente-se que tais métodos
devem ser utilizados com cautela, a fim de evitar lesão aos direitos personalíssimos
garantidos aos cidadãos.
Atente-se à lição de J. C. Viera de Andrade, segundo o qual17:

O fundamento teórico dessa tendência restritiva está no fato de que, assim


como os direitos fundamentais do cidadão, o bem-estar da comunidade e a
preservação e repressão criminal também possuem assento constitucional e
não podem ser sacrificados por uma concepção puramente individualista.
Os direitos fundamentais, enquanto valores constitucionais, não são
absolutos nem ilimitados, visto que a comunidade não se limita a
reconhecer o valor da liberdade: liga os direitos à idéia de responsabilidade
e integra-os no conjunto de valores comunitários, afigurando-se
constitucionalmente lícito ao legislador ordinário restringir certos direitos de
indivíduos pertencentes a organizações criminosas que claramente colocam
em risco os direitos fundamentais da sociedade.

Verifica-se, que existem controvérsias na doutrina a respeito da questão


acima suscitada. Doutrinadores como Sergio Moccia e Mario Chiavario18, afirmam
que os Direitos Individuais não devem ser sacrificados pelo Estado, pois eminente é
o perigo de um retrocesso na história de consagração desses direitos, podendo,
inclusive, acarretar em retornos autoritários ou ditatoriais. E com intuito de preservar
os direitos personalíssimos, segundo o mesmo autor, o legislador previu regras para
colher a prova, disciplinando um procedimento secreto para o juiz colher a prova que
comportar em violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, cujo ato de

17
ANDRADE, J. C. Viera de. Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 1983. p. 213, 244
e 245 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves; BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi,
Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>.
Acesso em: 24 Agosto de 2004

18
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado. 2003. p. 50 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004
19

diligência será conservado fora do processo, em lugar seguro, sem intervenção de


cartório e servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes
legítimas da causa, que não poderão ele servir-se para fins estranhos à mesma (art.
3º, §3º, da Lei 9.034/95).
E na mesma linha de raciocínio, têm-se concedido dilação dos prazos de
prisão cautelares e previsão da incomunicabilidade dos investigados por algumas
horas. Quanto ao legislador brasileiro, em se tratando de crimes de lavagem ou
ocultação de bens, direitos e valores provenientes direta ou indiretamente de
diversos crimes, entre eles os praticados por organização criminosa, dispôs que o
juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou
seqüestrados apenas quando comprovada a ilicitude de sua origem pelo investigado
ou acusado.
Registre-se que o Supremo Tribunal Federal, por meio de ação direta de
inconstitucionalidade nº 1570, ajuizada pela Procuradoria Geral da República,
decidiu a inconstitucionalidade do art. 3º da Lei 9.034/95, alegando que a Lei
Complementar nº 101/01, norma esta superveniente e de hierarquia superior,
regulou a questão do sigilo bancário e financeiro nas ações praticadas por
organizações criminosas, revogando, por incompatibilidade, a lei 9.034/95. Ao
magistrado incumbe analisar as provas, atendo-se ao Princípio da Imparcialidade,
sendo incompatível com a sua função diligenciar pessoalmente a obtenção de
provas, sem o auxílio da Polícia e do Ministério Público.
Segundo a Procuradoria Geral da República, o referido dispositivo legal
transformou o juiz em investigador, violando o Princípio do Devido Processo Legal,
comprometendo, assim sua imparcialidade. Contudo, a lei mencionada continua em
vigor, ao tratar da obtenção de informações fiscais e eleitorais, implicando na
violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei.

2.4 TUTELA PROCESSUAL DO CRIME ORGANZADO

O legislador criou a Lei nº 9.034/95, que dispõe sobre a utilização de meios


operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações
criminosas, tutelando a ação controlada por policiais, o acesso as informações
bancárias, financeiras, fiscais e eleitorais, além de criar procedimento específico. A
20

Lei nº 9.296/96, por sua vez, regulamentou a violabilidade das comunicações e do


fluxo das mesmas em sistemas de informática e telemática. Ainda, a lei nº 9.613/98
que dispõe sobre lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores e a prevenção da
utilização do sistema financeiro. Estipulou, em seu art. 4º, §2º, que o juiz só permitirá
a liberação dos bens apreendidos ou seqüestrados se provada sua origem lícita.
Já a medida provisória nº 1.713/98 alterou a redação do art. 34 da Lei nº
6.368/76, estipulando processo cautelar para o perdimento de bens. A alienação
desses bens deve ser requerida pelo representante do Ministério Público, podendo o
juiz determinar sua venda por meio de leilão, desde que comprovado o nexo de
causalidade entre os delitos e o risco de perda de valor econômico pelo decurso do
tempo. Ao término do leilão, a União será intimada para oferecer, em títulos do
tesouro, caução equivalente ao montante do valor arrecadado, cabendo ao juiz
decidir sobre a perda definitiva dos bens e valores ou sobre o levantamento da
caução.
E não se pode deixar de relatar sobre a Lei nº 9.807/99 que estabeleceu
normas para a organização manutenção de programas especiais de proteção às
vítimas e testemunhas ameaçadas (arts. 7º, 8º e 9º), estendendo aos réus
colaboradores (art. 15). A Lei nº 10.217/01, por sua vez, introduziu os incisos IV e V
no art. 2º da Lei 9.034/95, disciplinando a interceptação ambiental de sinais
eletromagnéticos e a infiltração de agentes policiais ou da inteligência da Polícia
quanto à investigação, mediante prévia e expressa autorização judicial.
Nessa vereda, a jurisprudência tem se manifestado no sentido de corroborar
com a restrição aos direitos individuais em prol da sociedade e eficiência ao combate
do crime organizado. Atente-se à decisão do E. Superior Tribunal Federal 19:

Os Direitos e Garantias Individuais não têm Caráter Absoluto. Não há, no


sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de
caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou
exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam,
ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de
medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que

19
BRASIL. Superior Tribunal Federal. Mandado de Segurança, Relator: Ministro Celso de Mello. Julgamento:
16 de setembro de 1999.
21

respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto


constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que
estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa -
permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de
um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a
assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou
garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com
desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.

No mesmo sentido:

Processual – Habeas Corpus – Quebra de Sigilo Bancário, Fiscal e de


Comunicações Telefônicas (ART. 5º, X E XII DA CF) – I. Os direitos e
garantias fundamentais do indivíduo não são absolutos, cedendo em face
de determinadas circunstancias, como, na espécie, em que há fortes
indícios de crime em tese, bem como de sua autoria. II. Existência de
interesse público e de justa causa, a lhe dar suficiente sustentáculo. III.
Observância do devido processo legal, havendo inquérito policial
regularmente instaurado, intervenção do parquet federal e prévio controle
20
judicial, através da apreciação e deferimento da medida .

2.5 ATUAÇÃO RESTRITIVA DO ESTADO E SEUS LIMITES

É preciso buscar um equilibro entre a restrição aos direitos personalíssimos


e os limites da atuação estatal, sendo vedada a prática abusiva praticada por esse,
razão pela qual o risco de um descontrole no binômio eficiência penal/garantia
individual em desfavor do cidadão deve sempre ser ponderado pelo legislador e pelo
juiz em sua atividade prática, o que determina que essa relação dicotômica seja
sempre marcada pela excepcionalidade21.
Ao propósito, a questão que se coloca gira em torno da medida em que as
restrições devem ser ocorrer, a fim de se buscar um equilíbrio entre a garantia dos

20
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. 2ª R – Hábeas Corpus nº 95.02.22528-7 – RJ 3 ª T. – Rel. Dês. Fed.
Valmir Peçanha – DJU 13 de fevereiro de 1996.
21
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado, 2003, p. 53.
22

direitos individuais e a restrição de tais direitos pelo Estado. Neste passo, é preciso
examinar o Princípio da Proporcionalidade, o qual se destina a22:

(...) regulamentar a confrontação indivíduo-Estado. De um lado, os


interesses estatais na realização da investigação criminal e da persecução
penal em juízo; de outro, o cidadão investigado ou acusado, titular de
direitos e garantias individuais (...).

Tem-se, no entanto, o objetivo de evitar a violação dos direitos fundamentais


de cada indivíduo e o comprometimento da atividade estatal no combate e repressão
à criminalidade. Atente-se ao acórdão emanado pelo Min. Nelson Jobim, segundo o
qual23:

A Constituição não trata a privacidade como direito absoluto (art. 5º, X, XI e


XII). Há momento em que o direito à privacidade se conflita com outros
direitos, quer de terceiros, quer do Estado (...). Deve-se buscar o critério
para a limitação. O princípio da Proporcionalidade é o instrumento de
controle. Deve-se ter conta a proporcionalidade em concerto. Na mesma
linha, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que "pelo princípio da
proporcionalidade, as normas constitucionais se articulam num sistema, cuja
harmonia se impõe que, em certa medida, tolere-se o detrimento de alguns
direitos por ela conferidos, no caso, direito à intimidade.

Pode-se citar como exemplo da aplicação do Princípio da Proporcionalidade,


a admissibilidade e utilização de prova ilícita, na hipótese de a mesma ter sido obtida
para o resguardo de outro bem protegido pela Constituição, de maior valor que
aquele a ser resguardado. A doutrina criou critérios quanto à aplicação do Princípio
da Proporcionalidade24, devendo o juiz observa-los ao deparar-se com o caso
concreto. São eles: idoneidade, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

22
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado, 2003, p. 57.

23
Supremo Tribunal Federal: Hábeas Corpus nº 75.338/98 – Rel. Min. Nelson Jobim – 11 de março de 1998.

24
FERNANDES, Antônio Scarance. Constituição da República, p.72. citação por GOMES, Luiz Flávio .in
Crime Organizado. p. 121. 2ª Ed.Revista dos Tribunais.
23

Verifica-se que o conceito de idoneidade25 refere-se à necessidade de adequação


qualitativa (aptidão para alcançar fins previstos na lei processual) e quantitativa
(duração e quantidade compatíveis com a finalidade buscada) da medida de
restrição dos direitos fundamentais, além da necessidade de adequação de
determinação do âmbito subjetivo de sua aplicação, individualização dos sujeitos
passivos que serão atingidos.
Desses procedimentos que conceituam a idoneidade, a necessidade,
intervenção mínima, alternativa menos gravosa ou subsidiariedade devem ser
analisadas pelo legislador e o magistrado, diante de um caso concreto, todas as
outras formas admitidas por lei como meio de obtenção de resultado satisfatório,
aplicando imposição de medidas restritivas de direitos apenas em casos de real
necessidade. De acordo com o subprincípio da Proporcionalidade, o legislador,
assim como o juiz, deve analisar se o interesse estatal é proporcional à violação dos
direitos individuais constitucionalmente garantidos, que deve ser aplicada em casos
excepcionais. A fim de se evitar a inconstitucionalidade das medidas impostas, os
operadores do direito devem atentar-se aos critérios de conseqüência jurídica;
importância da causa; grau de imputação e êxito previsível da medida.
Registre-se, ainda, que o critério da conseqüência jurídica dispõe que a
restrição de qualquer direito ou garantia individual deve ser proporcional à pena
prevista para a infração penal apurada. O critério da importância da causa versa
sobre a importância da análise do grau de gravidade da infração penal cometida,
devendo esta ser confrontada com a restrição do direito individual. O grau de
imputação relata a ponderação a respeito da força da suspeita sobre a autoria ou a
participação do fato investigado, o que permite avaliar a probabilidade de uma futura
condenação. E por fim, o critério do êxito previsível da medida impõe ao juiz a
previsibilidade de êxito da imposição da medida restritiva. conclui-se, ao magistrado,
que a medida restritiva será irrelevante para o andamento processual adequado e
poderá indeferir a pretensão neste sentido.

25
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado. 2003. p. 58 Apud GONÇALEZ, Alline Gonçalves;
BONAGURA, Anna Paola et al. Crime organizado. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 392, 3 ago. 2004.
Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5529>. Acesso em: 24 Agosto de 2004
24

2.6 DO PROCEDIMENTO PROBATÓRIO

Num primeiro momento será analisado o conceito de prova, que pode ser
definida como "instrumento por meio do qual o juiz forma sua convicção a respeito
26
da ocorrência ou inocorrência dos fatos controvertidos no processo" . O
procedimento probatório, por sua vez, pode ser definido como "atividade composta
por um conjunto de atos, sucessivos e coordenados, pelo qual o juiz procura
reconstituir os fatos noticiados no processo pelas partes" 27.
A atividade probatória, após estudo analítico das suas etapas, é composta
por cinco momentos distintos: Obtenção da prova que consiste na busca dos
elementos probatórios; Propositura da prova pela qual se indica ao magistrado os
meios de provas utilizados pelas partes; Admissão da prova consistente no
deferimento ou não, pelo juiz, das provas apresentadas; Produção da prova que se
configura como o meio pelo qual o objeto da prova é introduzido no processo;
Valoração da prova segundo a qual o juiz avaliará os meios de prova.

2.6.1 – DA OBTENÇÃO DA PROVA PARA A APURAÇÃO DO CRIME


ORGANIZADO

Denominada de processo cooperativo, a colaboração processual, ocorre na


fase investigativa criminal, fase em que o acusado confessa seus crimes para as
autoridades e evita que infrações venham a consumar-se (colaboração preventiva),
assim como auxilia concretamente a polícia em sua atividade de recolher provas
contra os demais co-autores, possibilitando suas prisões (colaboração repressiva).
Instituto de direito material, de iniciativa exclusiva do juiz, com reflexos
penais, tem como efeito a possibilidade de diminuição da pena ou a concessão do
perdão judicial. No Brasil, a Lei nº 10.409/02 disciplinou o Instituto da colaboração
processual decorrente de acordo entre representante do Ministério Público e o
investigado que deseja colaborar na fase pré-processual. O artigo 37 prevê a

26
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo, GRINOVER, Ada Pellegrini, e DINAMARCO, Cândido R. Teoria geral
do processo. 2002. p. 348.

27
SILVA, Eduardo Araújo da. Crime Organizado, 2003, p. 62.
25

possibilidade em não se propor ação penal, de forma justificada, contra os agentes


ou partícipes do delito que venham a colaborar com a Justiça. E os representantes
do Ministério Público devem observar os seguintes requisitos para a efetuação dos
acordos: Voluntariedade da iniciativa do colaborador - imperiosa é a necessidade de
os agentes estatais respeitarem o livre arbítrio do investigado em relação a uma
eventual delação na fase pré-processual; Relevância das declarações do
investigado - deve-se guardar um nexo de causalidade com os resultados positivos
produzidos na investigação criminal em curso; Colaboração feita de maneira efetiva -
o acusado precisa colaborar de forma permanente com as autoridades, colocando-
se integralmente à sua disposição para a elucidação dos fatos investigados;
Personalidade do colaborador, natureza das circunstâncias, gravidade e
repercussão social do fato criminoso sejam compatíveis com o instituto.
A proposta para a aplicação da colaboração premiada deve ser reservada a
um sujeito que desenvolva funções assemelhadas àquelas hoje desenvolvidas pelo
Ministério Publico no processo penal. Cabe salientar que, a infiltração de agentes da
polícia ocorre quando um agente do Estado, mediante prévia autorização judicial,
infiltra-se numa organização criminosa, simulando a condição de integrante, para
obter informações a respeito de seu funcionamento.
Para tal fim, deve apresentar três características: a dissimulação, ou seja, a
ocultação da condição de agente oficial, o engano, que permite ao agente obter a
confiança do suspeito e a interação, uma relação direta e pessoal entre o agente e o
autor potencial. A exemplo das leis consagradas em outros países, o legislador
exigiu prévia autorização judicial, como forma de assegurar o controle judicial sobre
essa atividade. Todavia, a lei nacional não disciplinou um procedimento próprio para
seu processamento.
Atente-se que o procedimento deverá ser marcado pelo sigilo, podendo ter
acesso aos autos apenas o juiz e o representante do Ministério Público, para o qual
o elemento de prova é produzido. A análise da proporcionalidade entre a conduta do
policial infiltrado e o fim buscado pela investigação é o caminho a ser trilhado,
limitando-se apenas à busca dos elementos de provas.
É de ser relevado que a prática tem demonstrado que, é mais vantajoso,
num primeiro momento, evitar a prisão de integrantes menos influentes de uma
organização criminosa, para monitorar suas ações e possibilitar a prisão de um
número maior de integrantes ou mesmo a obtenção de prova em relação a seus
26

superiores na hierarquia da associação. A ação controlada por policiais, denominada


de flagrante prorrogado ou retardado, visa possibilitar maior êxito na colheita dos
elementos de prova. A Lei nº 9.034/95 exige dois requisitos: a existência de um
crime em desenvolvimento praticado por organização criminosa ou a ela vinculado; e
a observação e acompanhamento dos atos praticados pelos investigados até o
momento mais adequado para a formação da prova e a colheita de informações.
Em consonância com anteriormente mencionado, a Constituição Federal
resguarda o direito à intimidade e à vida privada e tem como regra a inviolabilidade
das comunicações telefônicas, salvo por ordem judicial. Nesta vereda, objetivando
apurar o crime organizado, a utilização da interceptação telefônica tem-se mostrado
eficiente. Os requisitos para o deferimento da interceptação telefônica estão
previstos no art 2º, incisos I a III, da Lei nº 9.296/96, de maneira a afirmar que se
qualquer dos meios pesquisados for menos gravoso e suficiente para a finalidade
pretendida pela investigação, a violação dos direitos referidos será considerada
desnecessária, no sentido de buscar aquela mais idônea para a finalidade
pretendida com a investigação criminal.
Após análise do parágrafo único do art 2º da Lei nº 9.296/96, conclui-se que
a "decisão judicial que deferi-la deve esclarecer os seus exatos limites, evitando
assim eventuais abusos na apuração de fatos desconexos como objeto da
investigação ou relacionados a terceiros estranhos à apuração criminal, e somente
será possível sua admissão para a persecução de crimes em andamento, não se
prestando a medida para a investigação de infrações que sequer tiveram início de
execução, sob pena do direito à intimidade, que deve ser entendido como regra,
restar demasiadamente vulnerado".
Além disso, a vigilância eletrônica também tem possibilitado uma atuação
mais eficiente dos agentes estatais na apuração do crime organizado, atentando-se
à observação do princípio da proporcionalidade. Assinale, ainda, que o legislador
brasileiro limitou-se a exigir prévia e motivada decisão judicial para seu deferimento.
Outrossim, a quebra dos sigilos fiscal, bancário e financeiro, meios de obtenção de
prova, abrangem, além do crime organizado, outras infrações penais, podendo
revelar detalhes sobre a intimidade e a vida privada do cidadão investigado ou
acusado, direitos que naturalmente devem ser preservados, salvo se conexos com
alguma infração penal, situação em que deve prevalecer o interesse público na
apuração criminal.
27

2.6.2 PROPOSIÇÃO E ADMISSÃO DA PROVA NOS PROCESSOS DE


CRIMINALIDADE ORGANIZADA

Os meios mais eficientes de obtenção da prova vulneram direitos


fundamentais, razão pela qual exigem prévia autorização judicial, sob pena de
ilicitude da prova obtida. O magistrado deve realizar um juízo preliminar sobre a
idoneidade, a necessidade e a proporcionalidade do meio de busca da prova
requerida, com vista em autorizar sua adoção. Posteriormente, deve verificar sua
pertinência e relevância, à luz dos elementos de prova colhidos durante a
investigação criminal e, por fim, fazer uma valoração da prova ante a completa visão
do quadro probatório.
O instituto da colaboração processual não prevê a participação do juiz na
celebração do acordo (fase pré-processual). Entende o juiz que a colaboração foi
irrelevante, não efetiva ou ainda que a personalidade do colaborador e as
conseqüências do crime mostram-se incompatíveis com o instituto, poderá o
magistrado, de maneira fundamentada, desconsiderar o acordo.
Deve-se verificar a licitude da conduta desempenhada pelo policial infiltrado
de maneira que seu depoimento se torne o principal meio de prova, tendo ele sido
arrolado como testemunha da denúncia. Atente-se que, quando a interceptação
telefônica parecer ser o único meio disponível de obtenção da prova, a autorização
será lícita e não perderá essa característica ante a constatação da possibilidade de
utilização de provas colhidas por outros meios não aventados pelo juiz. A lei
brasileira não veda o aproveitamento desse material probatório em relação ao crime
incidentalmente apurado, desde que também esteja contemplado no critério de
proporcionalidade.

2.6.3 PRODUÇÃO DA PROVA EM FACE DO CRIME ORGANIZADO

A audiência telemática possibilita que os acusados participem do ato


processual em local diverso de sua realização, podendo comunicar-se oral e
visivelmente com o juiz e com os demais participantes do ato processual, pelos
meios de comunicação colocados à sua disposição. Assim, tem como finalidade a
busca da eficiência processual, embora haja falta de segurança no deslocamento
dos acusados e excessivo dispêndio de recursos públicos para tanto.
28

Como pontos problemáticos, configuram-se a constituição inegável de uma


atenuação à ampla defesa do acusado, a dificuldade econômica de se constituir dois
advogados para participar simultaneamente do ato no juízo e a ausência de absoluto
sigilo nas conversações. Aliás, A tendência contemporânea acerca do tema,
portanto, é no sentido de se tolerar uma atenuação do direito de defesa do acusado
quando confrontado com outros valores de igual magnitude, onde a decisão sobre
sua utilização deve sempre ser marcada pela excepcionalidade.
Convém notar, que em razão do alto poder de intimidação, geralmente
imposto pelas organizações criminosas, os depoimentos de testemunhas arroladas
em processo tendem a serem colhidos à distância, a fim de se buscar a eficiência
processual. Todavia, a lei brasileira não tutela a possibilidade da colheita do
testemunho a distância para preservar sua integridade ou para proteger a
testemunha. Vale ressaltar que a proteção à testemunha tem a finalidade de
assegurar a inteireza da prova oral a ser produzida em juízo, de se proporcionar uma
efetiva proteção para vítimas testemunha e co-réus colaboradores.
No Brasil, as medidas de proteção abrangem a segurança na residência,
incluindo o controle de telecomunicações, escolta e segurança nos deslocamentos
da residência e transferência de residência ou acomodação, preservação da
identidade, imagem e dados pessoais, ajuda financeira para promover as despesas
necessárias à subsistência, suspensão temporária das atividades funcionais, apoio e
assistência, social, médica e psicológica, sigilo em relação aos atos praticados em
virtude da proteção concedida, apoio para o cumprimento das obrigações civis e
administrativas, alteração de nome completo e concessão de outras medidas
cautelares compatíveis com a proteção da testemunha e seus familiares.
Com a finalidade de se preservar a integridade física e psicológica de
vítimas e testemunhas, bem como de seus familiares, é prevista a participação
anônima nos processos que apuram a criminalidade organizada, fazendo com que a
identidade da testemunha seja desconhecida do juízo e/ou da defesa. Trata-se de
verdadeira prova acusatória a incriminação do co-réu colaborador, referente à
natureza jurídica da delação do co-réu.
29

2.6.4 VALORAÇÃO DA PROVA NOS PROCESSOS RELATIVOS À


CRIMINALIDADE ORGANIZADA

Ao analisar as declarações incriminadoras do co-réu, deve-se observar que


o acusado não presta o compromisso de falar a verdade em seu interrogatório e está
em situação de beneficiário processual, podendo figurar como beneficiário penal. Em
consonância com o acatado, o magistrado deverá considerar os seguintes
elementos para a valoração desse meio de prova: a verdade da confissão, a
inexistência de ódio em qualquer das manifestações, a homogeneidade e coerência
de suas declarações, a inexistência da finalidade de atenuar ou mesmo eliminar a
própria responsabilidade penal e a confirmação da delação por outras provas. Deve,
ainda, o juiz considerar, na valoração do depoimento prestado por pessoa protegida,
as seguintes presunções: a) Se os sentidos não enganaram a testemunha; b) Se a
testemunha não que enganar o juízo.
Em relação à percepção e à transmissão do percebido, devem ser
analisados o desenvolvimento e a qualidade das faculdades mentais da testemunha,
o funcionamento dos sentidos das testemunhas, as condições em que se produziu a
percepção, sob o plano físico e psíquico, as características do objeto percebido, as
percepções do tempo, da distância e do volume, além das condições de transmissão
do percebido. No tocante à sinceridade do depoimento, é preciso observar a
presença ou não de algum interesse que possa exercer influência consciente ou
inconsciente sobre a vontade do depoente, a existência de relatos dúbios e a
consideração individual de cada testemunho.
A valoração de depoimento policial, por sua vez, deve atender a dois
elementos: a inexistência de interesse em afastar eventual ilicitude em suas
diligências e a comprovação de seu depoimento por outros meios de prova, salvo
impossibilidade de fazê-lo. Tais requisitos devem ser observados devido à
possibilidade do temor presente nas investigações influenciar a imparcialidade das
palavras dos policiais envolvidos. Ressalve-se que, nos últimos anos, nos processos
instaurados para apuração dos crimes organizados, nota-se uma acentuada
tendência quanto à valoração da prova indiciária.
O primeiro dos requisitos a ser considerado pelo juiz é a certeza de
existência do fato indiciante. Já o segundo, trata da exclusão de hipótese de azar,
pois existindo a possibilidade de falsa conexão entre o indício e o fato apurado, o
30

juiz não deverá fundamentar seu convencimento. Ainda, tem-se a hipótese de


falsificação do fato indicador. Também é preciso atentar-se à análise da inexistência
de contra-indícios. Por fim, o juiz deverá considerar a existência de relação de
causalidade entre o fato indicador e o indicado, a pluralidade de indícios e a
convergência ou concordância destes.

2.7 DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS NO BRASIL

Cabe consignar a existência de uma série de organizações criminosas


atuantes no território brasileiro, configurando numa situação alarmante e
preocupante a todos os setores da sociedade. Ademais, a impotência dos órgãos
governamentais em relação ao efetivo controle do crime organizado e, em
decorrência dos motivos expostos ao longo deste trabalho, os agentes criminosos
atuam de forma desembaraçada, enfrentando o Estado de Direito e impondo suas
regras, leis e condições, dominando, assim, uma parcela da sociedade que se vê
coagida pelo medo.
Uma das organizações mais conhecidas e temidas denomina-se Comando
Vermelho, cuja criação deu-se em razão da união de alguns reincidentes da facção
Falange Vermelha, no final dos anos 70, no presídio localizado em Ilha Grande no
Rio de Janeiro, objetivando lutar contra o grupo de poderio da época e dominar o
tráfico de entorpecentes no Estado. Consta que os presos Williams da Silva Lima, o
"Professor", agora com 59 anos de idade e 35 de prisão em Bangu III, Paulo César
Chaves e Eucanã de Azevedo eram os líderes do grupo quando de sua criação.
Ao longo dos anos, novos adeptos juntaram-se ao Comando Vermelho,
ampliando seu poder e possibilitando o investimento em armamentos pesados e a
distribuição de substâncias entorpecentes. Atualmente, essa organização domina
cerca de 70% do tráfico no Rio de Janeiro e atua em outras áreas, como tráfico de
armamentos, crime organizado, roubos, seqüestros e homicídios.
Williams da Silva Lima28, conhecido como o Professor, no livro:

28
GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1.997.
31

Comando Vermelho – A História Secreta do Crime Organizado, de autoria


de Carlos Amorim, declarou: "Conseguimos aquilo que a guerrilha não
conseguiu: o apoio da população carente. Vou aos morros e vejo crianças
com disposição, fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas serão
três milhões de adolescentes que matarão vocês - a polícia - nas esquinas.
Já pensou o que serão três milhões de adolescentes e dez milhões de
desempregados em armas?”.

Verifica-se que os líderes atuais dividem-se por regiões e morros. Embora a


maioria esteja na prisão, principalmente cumprindo pena no presídio Bangu I, as
ordens são repassadas de dentro das celas e as principais decisões são discutidas
por uma espécie de colegiado do comando da organização. Registre-se que em
junho de 2.000 foi divulgada uma letra de uma música do grupo de rap Facção
Central, referente à atuação do Comando Vermelho. Segue um trecho da música:
"Quem enquadra a mansão, quem trafica. Infelizmente o livro não resolve/O Brasil
só me respeita com o revólver/ O juiz ajoelha, o executivo chora/ Para não sentir o
calibre da pistola/ Se eu quero roupa, comida, alguém tem de sangrar/ Vou
enquadrar uma burguesa/ E atirar para matar/ Vou furtar seus bens/ E ficar bem
louco/ Seqüestrar alguém no caixa eletrônico/ A minha quinta série só não adianta/
Se eu tivesse um refém com o meu cano na garganta/ Ai não tem gambé para
negociar/ Vai se ferrar, é hora de me vingar".
Devido aos conflitos internos e às constantes discórdias, muitos integrantes
afastaram-se do Comando Vermelho e fundaram uma nova facção, denominada
"Terceiro Comando". Esta organização domina, atualmente, 12 comunidades na
Zona Norte do Rio de Janeiro, de forma estratégica devido à proximidade com a
Bahia de Guanabara. Seus principais líderes são Linho, Gangan e Miltinho do
Dendê. A partir de sua criação, muitos conflitos com o Comando Vermelho foram
registrados, em decorrência da disputa pelo controle de morros e favelas.
Ainda no Estado do Rio de Janeiro, formou-se, no final dos anos 90, uma
outra organização, "Amigos dos Amigos (ADA)", cujo objetivo era o de controlar
"bocas de fumo" e fugir do domínio do Comando Vermelho. Diferentemente dos
outros grupos, o ADA não repassa o dinheiro obtido pelo comércio ilegal de
entorpecentes, não sustenta as famílias dos traficantes presos e não interfere em
planos de fuga de membros da quadrilha. Atualmente, controlam as favelas do
complexo de São Carlos, Adeus/Juramento, Caju e Vila Vintém.
32

No Estado de São Paulo, no ano de 1993, surgiu o PCC – Primeiro


Comando da Capital, organização criminosa que tinha como objetivo inicial extorquir
presos e seus familiares, assassinar presos a fim de dominar o sistema carcerário e
traficar substâncias entorpecentes dentro dos presídios. Com o passar dos anos, o
PCC passou a cometer outros tipos de infrações penais fora do aludido sistema.
Ressalte-se que o Primeiro Comando da Capital possui uma estrutura
piramidal, cujo topo é formado por líderes conhecidos como "fundadores" e por
aqueles que alcançaram posição de prestígio, denominados "batizados".
Atualmente, na posição de liderança, no denominado "primeiro escalão", encontram-
se Marcos Williams Herbas Camacho, vulgo "Marcola" ou "Playboy" e Júlio César
Guedes de Moraes, conhecido como "Julinho Carambola". Ainda, tal organização
assumiu as ações praticadas, embora sem identificar seus membros e ganhou a
atenção da mídia, principalmente com a maior rebelião já registrada no mundo, a
chamada Mega rebelião. De feito, em vários presídios foram realizadas rebeliões
simultâneas sendo que os detentos gravaram, no chão do pátio do presídio
Carandiru, o símbolo da organização.
É de verificar-se que os membros recebem cópias do estatuto da sociedade
criminosa, no qual são determinadas as regras de conduta. Nesta linha, no final de
1996, o Estatuto do Primeiro Comando da Capital foi divulgado, contendo os
seguintes itens:
1 - Lealdade, respeito e solidariedade acima de tudo ao Partido; 2 - A luta
pela liberdade, justiça e paz; 3 - A união na luta contra as injustiças e a opressão
dentro da prisão; 4 - A contribuição daqueles que estão em liberdade com os irmãos
dentro da prisão, por meio de advogados, dinheiro, ajuda aos familiares e ação de
resgate; 5 - O respeito e a solidariedade a todos os membros do Partido para que
não haja conflitos internos - porque aquele que causar conflito interno dentro do
Partido, tentando dividir a irmandade será excluído e repudiado pelo Partido; 6 -
Jamais usar o Partido para resolver conflitos pessoais contra pessoas de fora.
Porque o ideal do Partido está acima dos conflitos pessoais. Mas o Partido estará
sempre leal e solidário a todos os seus integrantes para que não venham a sofrer
nenhuma desigualdade ou injustiça em conflitos externos; 7 - Aquele que estiver em
liberdade "bem estruturado", mas esquecer de contribuir com os irmãos que estão
na cadeia, será condenado à morte sem perdão; 8 - Os integrantes do Partido têm
de dar bom exemplo a serem seguidos e, por isso, o Partido não admite que haja
33

assalto, estupro e extorsão dentro do Sistema; 9 - O Partido não admite mentiras,


traição, inveja, cobiça, calúnia, egoísmo e interesse pessoal, mas sim a verdade, a
fidelidade, a hombridade, solidariedade e o interesse comum de de todos porque
somos um por todos e todos por um; 10 - Todo o integrante terá de respeitar a
ordem, a disciplina do Partido. Cada um vai receber de acordo com aquilo que fez
por merecer. A opinião de todos será ouvida e respeitada, mas a decisão final será
dos fundadores do Partido; 11 - O Primeiro Comando da Capital - PCC - fundado no
ano de 1993, numa luta descomunal, incansável contra a opressão e as injustiças do
campo de concentração "Anexo da Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté",
tem como lema absoluto "A Liberdade, a Justiça e a Paz."; O Partido não admite
rivalidade interna, disputa de poder na liderança do Comando, pois cada integrante
do Comando saberá a função que lhe compete de "acordo" com sua capacidade
para o exercício; 13 - Temos de permanecer unidos e organizados para evitarmos
que ocorra novamente um massacre semelhante ou pior ao ocorrido na Casa de
Detenção em 2 de outubro de 1992, onde 111 presos foram covardemente
assassinados, massacre esse que jamais será esquecido na consciência da
sociedade brasileira. Porque nós do Comando vamos sacudir o sistema e fazer
essas autoridades mudar a política carcerária, desumana, cheia de injustiça,
opressão, tortura e massacres nas prisões; A prioridade do Comando no momento é
pressionar o governador do Estado a desativar aquele campo de concentração
Anexo à casa de Custódia e Tratamento de Taubaté de onde surgiu (sic) a semente
e as raízes do Comando por meio de tantas lutas inglórias e tantos sofrimentos
atrozes; Partindo do Comando Central da Capital do KG do Estado, as diretrizes de
ações organizadas e simultâneas em todos os estabelecimentos penais do Estado
são uma guerra sem trégua, sem fronteiras, até a vitória final; O importante de tudo é
que ninguém nos deterá nesta luta porque a semente do Comando espalhou por
todos os Sistemas Penitenciários do Estado e conseguimos nos estruturar também
do lado de fora com muitos sacrifícios e muitas perdas irreparáveis, mas nos
consolidamos a nível estadual e a médio e longo prazo nos consolidaremos a nível
nacional. Em coligação com o Comando Vermelho - CV e PCC iremos revolucionar o
país de dentro das prisões e o nosso braço armado será o Terror dos Poderosos,
opressores e tiranos que usam o Anexo de Taubaté e o Bangu I do Rio de Janeiro
como instrumento de vingança da sociedade na fabricação de monstros.
34

Conhecemos a nossa força e a força de nossos inimigos Poderosos, mas estamos


preparados, unidos. E um povo unido jamais será vencido. Liberdade, Justiça e Paz.
O Quartel general do PCC, Primeiro Comando da Capital, em coligação com
o Comando Vermelho - CV. "Unidos Venceremos" – Ademais, os líderes conseguem
obter, de forma ilícita, telefones celulares, normalmente pré-pagos, que são
introduzidos nos presídios, com os quais são efetuadas ligações às "centrais" (linhas
telefônicas instaladas em locais quaisquer, programadas com o escopo de
efetuarem a transferência de chamadas ou o que se denomina "teleconferência" –
três pessoas falando ao mesmo tempo, que transferem as chamadas para os locais
desejados. Além disso, há sérios indícios de que as organizações Comando
Vermelho e Primeiro Comando da Capital uniram-se a fim de destituir o Estado de
Direito, realizando uma série de ações coordenadas. Também apura-se a ligação
dessas organizações com outras de nível internacional, formando uma rede de
conexão do crime organizado.

2.8 O TERRORISMO

Embora o terrorismo e organização criminosa sejam, tecnicamente, distintos,


uma vez que os grupos terroristas não participam, necessariamente, no comércio de
produtos ilícitos, assim como as organizações criminosas não agem de acordo com
motivações étnicas, religiosas ou políticas, é preciso encará-lo como uma ameaça a
toda comunidade internacional.
O terrorismo pode ser dividido em dois grandes grupos: o primeiro refere-se
àquelas organizações independentes, que agem por motivações políticas e
ideológicas contra uma população específica ou um determinado governo; o
segundo grupo está relacionado com o chamado terrorismo de Estado, que age
patrocinado por governos interessados em desestabilizar e aniquilar nações rivais ou
grupos populacionais específicos. Em ambos os casos, o terrorismo é considerado
um crime político e uma afronta à humanidade, devendo ser combatido por toda
comunidade internacional.
Segundo especialistas no assunto, as motivações iniciais dos grupos
terroristas consistiam em questões étnicas e religiosas. Devido à continuidade
desses conflitos, assim como à falta de solução, essas ações vêm recrudescendo a
cada ano. Consta que, na segunda metade do século XX, com o fim da Guerra Fria,
35

as atividades terroristas potencializaram-se devido a motivações políticas, surgindo


grupos terroristas em diversos países, aproveitando-se de um certo vácuo político
pós Guerra Fria para atingir seus objetivos até então reprimidos.
Atente-se que o problema em questão nunca foi exclusividade do mundo em
desenvolvimento, já que grupos terroristas com perfis separatistas perpetraram
ataques significativos na Espanha e na Grã-Bretanha. Dentro do contexto político, o
terrorismo atingiu duramente as sociedades italiana, francesa, grega e japonesa.
Registre-se que grupos de narcotraficantes estão associando-se a movimentos
terroristas que, por sua vez, têm no comércio ilegal de drogas uma importante fonte
de recursos para financiar suas operações. Constata-se, portanto, uma combinação
literalmente explosiva, o que torna essa questão mais complexa e preocupante.

2.9 CRIME ORGANIZADO E GLOBALIZAÇÃO

Cabe salientar que o fenômeno da globalização encontra-se presente nas


práticas ilícitas, tais como no crime organizado. Gomes e Cervini29 afirmam que:

(...) talvez seja a ‘internacionalização’ (globalização) a marca mais saliente


do crime organizado, nas duas últimas décadas. Já não é mais correto
apontar a conexão norte-americana-italiana (Máfia siciliana e Cosa Nostra)
como uma singular manifestação dessa modalidade criminosa. Inúmeras
são as organizações criminais já mundialmente conhecidas. Podemos citar,
dentre tantas outras ainda não tão destacadas, a camorra italiana, na
drangheta calabresa, a sacra corona pugliesa, a boryokudan e a yakuza
japonesas, as tríades chinesas, os jovens turcos de Cingapura, os novos
bandos no Leste Europeu, os cartéis da droga, os contrabandistas de armas
etc.
As organizações criminosas beneficiam-se da globalização da economia, do
livre comércio, desenvolvimento das telecomunicações, sistema financeiro
internacional etc. "Alguns já chegaram a formar um verdadeiro
´´antiestado´´, isto é, um ´´estado´´ dentro do Estado, com uma pujança
econômica incrível, até porque existe muita facilidade na ´´lavagem do
dinheiro sujo´´, e grande poder de influência (pelo que é válido afirmar que é
altamente corruptor(...).

29
GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1.997.
36

E complementam que:

O narcotraficante atual está cada vez mais diferente daqueles jovens


com pulseiras de ouro, cintos largos, anéis brilhantes... tornou-se um
executivo, um empresário moderno, que se dedica a um negócio
altamente lucrativo. Estão participando ativamente da vida econômica
de vários países, assim como da vida política. Marcam presença
principalmente nos processos de privatização, não só para lavar
dinheiro, senão, sobretudo, para incorporar-se na vida econômica
lícita. Estão integrando o narcotráfico na vida institucional de cada país
e desse modo buscam uma convivência pacífica, evitando-se a guerra
30
fratricida e sangrenta .

Argemiro Procópio31 revela a influência dos costumes e valores sobre uso de


substâncias entorpecentes e seu conseqüente tráfico ilícito, enfatizando a entrada
cada vez maior de menores no crime organizado. Onde no Rio de Janeiro e em São
Paulo, menores de 18 anos ocupam postos de comando no mundo dos narcóticos.
Essas funções no passado pertenciam exclusivamente aos maduros e considerados
experientes. As organizações criminosas empregam diretamente, sem salários fixos,
milhões de pessoas, sendo parte constituída por crianças e adolescentes. A
recompensa cresce nas funções de mando.

2.10 CRIME ORGANIZADO E O TRÁFICO DE SUBSTÂNCIAS ENTORPECENTES

Um dos seguimentos mais lucrativos do crime organizado é o tráfico de


drogas, sobretudo cocaína, heroína, ecstasy e anfetamina. Estima-se que esse
negócio movimenta cerca de US$300 bilhões a US$500 bilhões por ano. Nota-se
que o crime em questão está relacionado com outros, como os de tráfico de armas,
seres humanos para fins de prostituição, órgãos, trabalho escravo etc. Atente-se que
esses segmentos funcionam como uma holding, já que grupos que traficam drogas

30
GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

31
PROCÓPIO, Argemiro, Narcotráfico e segurança humana. São Paulo: LTR, 1999.
37

freqüentemente vinculam-se a outros responsáveis pelo tráfico de armas, na medida


em que o negócio não envolve somente dinheiro, mas também mercadorias. Assim,
consegue-se armas em troca de substâncias entorpecentes e vice-versa.
Verifica-se que o Brasil, além de rota de tráfico de entorpecentes, configura-
se como um grande mercado consumidor. Dados do Cebride (Centro Brasileiro de
Informações sobre Drogas Psicotrópicas) mostram que, de 87 a 97, os estudantes
de ensino médio e fundamental passaram a consumir seis vezes ou mais:
anfetaminas (150% a mais), maconha (325%), cocaína (700%). Criou-se no Brasil
um mercado interessante para os traficantes, porque eles não precisam pagar com
dinheiro os serviços que prestam aos seus colegas na Europa e nos EUA. Em um
carregamento de 100 kg de cocaína que entra no Brasil, os brasileiros se
encarregam de despachar 80 kg para fora e ficam com 20 para distribuir aqui. A
droga no Brasil é barata.
A base do crime organizado no Brasil está enraizado em políticas de governo
passados que não imaginaram que grupos criminosos pequenos poderiam se
desenvolver e se tornar mais importantes. Nas grandes cidades, em setores onde
não há a presença do poder público, criaram-se situações em que há um Estado
formal e um não-formal. Havia um pacto entre o asfalto e as favelas, no qual um não
mexia com o outro. Só que isso mudou. O traficante já não precisa mais da
comunidade, só quando a polícia chega. Agora ele é temido pela população. A
comunidade ajuda porque tem medo da vingança. Não dá só para fazer força-tarefa,
entrar, comandar operação e sair, porque você não consegue apoio da população.
Outrossim, a crescente utilização de complexas estruturas corporativas e
intrincadas transações negociais envolvendo bancos, trust companies, empresas
imobiliárias e outras instituições financeiras, por traficantes e seus associados,
trouxe dificuldade adicional à apreensão de ativos originados pelo tráfico de drogas.
Em razão das variações nacionais existentes na legislação bancária, fiscal e
financeira, traficantes e seus cúmplices encontram brechas legais, conseguindo, de
maneira rápida, para adaptar seus esquemas de lavagem e técnicas para esconder
seus ganhos ilícitos.
38

2.11 CRIME ORGANIZADO E LAVAGEM DE DINHEIRO

A característica mais marcante e comum ao crime organizado é a lavagem


de dinheiro. Nenhuma organização criminosa destina-se a ideologias políticas ou
sociais, mas especificamente à obtenção de dinheiro e de poder. É de se dizer que
nem sempre a criminalidade organizada vincula-se à criminalidade econômica,
contudo os grandes delitos econômicos requerem uma estrutura para sua
32
organização . Assim sendo, o crime organizado e o crime de lavagem de dinheiro
possuem uma estreita ligação, já que as características deste delito requerem a
presença de requisitos identificáveis na estrutura das organizações criminosas. Foi
em decorrência desta certeza que surgiu a Lei 9.613/98 que estabelece, em seu
artigo 1°, que "ocultar ou dissimular a natureza, o rigem, localização, disposição,
movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores direta ou indiretamente:
(...) - inciso VII: "praticado por organização criminosa".
De modo geral, qualquer conduta de ocultação de bens e valores obtidos,
por meio de conduta criminosa anterior, praticada por Organização Criminosa, é
classificada como crime de lavagem. Enquanto os seis incisos anteriores do mesmo
dispositivo indicaram determinados crimes, este estabelece que "qualquer crime"
praticado por organização criminosa poderá caracterizar lavagem.
No entanto, só haverá conduta típica de lavagem se os bens tiverem origem
num dos crimes previstos na Lei dos Crimes de Lavagem de Dinheiro. A
enumeração do Art. 1° incisos I a VII é taxativa, o que significa que somente aqueles
crimes podem dar origem ao delito de lavagem. A ocultação ou dissimulação
proveniente de qualquer outro delito ainda que grave, não caracteriza lavagem.
Assim sendo: Terrorismo: Não há figura típica no direito brasileiro que defina o crime
de terrorismo. Encontramos menção na CF/88 e na Lei dos crimes hediondos, mas
sem a identificação de quais seriam os atos de terrorismo. Desta forma, mesmo que
o sujeito pratique atos de terrorismo e com isso obtenha bens e dinheiro, as
condutas de omitir ou dissimular a natureza deles não poderá configurar crime de
lavagem, pois o legislador não caracterizou o terrorismo como crime antecedente;
Contrabando ou tráfico de armas: Este delito está definido no art. 334 do Código
Penal. A inclusão deste crime como delito antecedente deve-se à informação da

32
CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. p. 27.
39

ONU, segundo a qual o tráfico de armas proporciona um enorme movimento de


dinheiro, sendo que esses valores passam a integrar o sistema econômico do país;
Extorsão mediante seqüestro: Este crime está previsto no Art. 159 do Código Penal.
É considerado crime hediondo, de prática muito comum no Brasil, o qual não possui
controle do destino desse dinheiro. Destarte, os montantes acabam circulando no
mercado financeiro através da aquisição de propriedades; Crimes contra a
administração pública: Os crimes contra a administração pública estão previstos no
título XI, Arts. 312 a 359 do Código Penal. Somente alguns desses crimes podem
caracterizar o tipo antecedente do crime de lavagem. Dentre eles, alguns são de
33
prática exclusiva de funcionários públicos. Para André Luis Callegari , é acertada a
inclusão deste dispositivo pelo legislador, tendo em vista que muitos funcionários
que exercem função pública têm facilidade em receber dinheiro de bens de
organizações criminosas, reingressando-os no mercado econômico com aparência
de licitude; Crimes contra o sistema financeiro nacional: São 21 tipos contidos na Lei
7492/86. Como um dos bens tutelados pela lei dos crimes de lavagem é a
segurança do sistema financeiro nacional, qualquer crime praticado contra este pode
ser considerado antecedente ao delito de lavagem, desde que haja a ocultação da
origem ilícita dos bens, direitos ou valores; Crimes praticados por uma organização
criminosa: Estão previstos na Lei 9034/95. Porém, mais uma vez a lei não faz
menção específica do significado de organização criminosa para efeitos penais.
Assim, só haverá crime de lavagem se ocorrer também um dos delitos enumerados
na lei e praticados por uma dita organização.
Marcelo B. Mendroni, em "Crime Organizado – aspectos gerais e
mecanismos legais" 34, cita algumas técnicas para a lavagem de dinheiro no Brasil:

Estruturação (smurfing): o agente divide o dinheiro obtido em muitas


quantias pequenas, e o transfere no limite permitido da lei;

33
CALLEGARI, André Luís, Direito Penal Econômico e Lavagem de Dinheiro – aspectos criminológicos. 2ª
ed. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2.003.

34
MENDRONI, Marcelo Batlouni, Crime Organizado – aspectos gerais e mecanismos legais. 1º ed. São Paulo:
Ed. Juarez de Oliveira, 2.002.
40

Mescla (commingling): o agente mistura os recursos ilícitos com os lícitos


de uma empresa verdadeira e depois apresenta o volume total como sendo
proveniente da atividade lícita da empresa;
Empresa de fachada: constitui-se empresa legalmente registrada na Junta
comercial, que aparenta participar de atividade lícita com imóvel destinado
às suas atividades. Contudo, na verdade seu objetivo é diverso do fim
estabelecido no estatuto ou contrato social;
Empresa fictícia: a empresa existe somente no papel. Não há qualquer
imóvel destinado às atividades registradas na junta comercial. A empresa
movimenta dinheiro em seu nome, mas não existe fisicamente.
Compra de bens: o agente adquire bens. Ex: compra por 100, declara ter
comprado por 20 e vende por 100;
Contrabando de dinheiro: transporte físico de dinheiro para outro país,
aplicando-o em banco estrangeiro e rompendo a ligação dinheiro / negocio
ilícito;
Compra, troca de ativos ou instrumento monetários: Primeiramente, os
agentes compram cheque administrativo, posteriormente trocam por
traveller-cheque e, por fim, permutam por dinheiro novamente;
Venda fraudulenta de propriedade imobiliária: o agente compra imóvel e
declara valor infinitamente menor. Depois vende o imóvel por preço normal,
transformando a diferença em lucro.

Nos últimos anos, registrou-se um eminente crescimento das atividades


criminosas geradoras do crime de "lavagem de dinheiro" ou ocultação de bens,
objetos e valores provenientes de crimes, em decorrência, primordialmente, do
tráfico de entorpecentes. Em derradeiro, os grandes impérios da droga fazem
circular seus benefícios através dos mercados financeiros nacionais e internacionais,
sendo prioridade dos criminosos retirar o montante do país onde foi produzido e
misturá-lo com o imenso volume de dinheiro sem nacionalidade que circula
eletronicamente ao redor do mundo, a fim de se obter maior segurança e
rendimento.
Outrossim, a lavagem de dinheiro move cifras elevadas, sendo de difícil
averiguação o volume de capitais procedentes de atividades ilícitas. Por
conseguinte, como os montantes gerados pelo tráfico de entorpecentes e por outros
delitos estão à margem do conhecimento das autoridades, só é possível realizar
estimativas indiretas, mesurando-se alguma cifra discutível e confiável.
41

Segundo André Luís Callegari:

A característica da internacionalização da lavagem de dinheiro


relaciona-se com a própria natureza dos bens ou serviços que
constituem objeto do delito, cujo lugar de origem pode encontrar-se a
35
uma distância enorme de seus destinatários finais . Também
possuem essa característica as redes dedicadas ao tráfico de armas,
36
pedras preciosas, animais exóticos etc.

Essa característica oferece aos lavadores de dinheiro, segundo André Luís


Callegari, três vantagens. A primeira delas é a possibilidade de elidir a aplicação de
normas estritas e, com isso, a jurisdição de paises que mantêm políticas severas de
controle da lavagem de dinheiro. A segunda é a captação de vantagens pelos
"problemas de cooperação judicial internacional e de intercâmbio de informações
entre paises que possuem leis diferentes", bem como peculiaridades distintas tanto
na área penal quanto nos procedimentos administrativos de cada país. Por fim,
André Luís Callegari 37 afirma que:

Permite aos lavadores que se beneficiem das deficiências da regulação


internacional de sua aplicação, desviando os bens objetos da lavagem
àqueles paises com sistemas débeis de controle e persecução do dinheiro.

Em consonância com o acatado, a fórmula essencial para obtenção de


dinheiro é a mescla de atividades lícitas com atividades ilícitas. Quase toda
organização criminosa vale-se dessa fórmula para lavar o dinheiro, utilizando-se de
empresas e comércios lícitos dos mais diversos. A saber, a lavagem de dinheiro
exige um tratamento profissionalizado, com a utilização de técnicas e procedimentos
sofisticados, a fim de dirimir os agentes dos riscos da persecução criminal e de
expandir seus negócios. Ainda, são empregados membros profissionalizados e
profissionais externos 38

35
CALLEGARI, André Luís.Direito penal econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. p. 39.
36
CALLEGARI, André Luís.Direito penal econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. p. 40.
37
CALLEGARI, André Luís.Direito penal econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. p. 40.
38
CALLEGARI, André Luís.Direito penal econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. p. 41.
42

Em resposta às medidas de combate ao crime em questão, adotadas pelos


paises, as organizações criminosas são obrigadas, conforme entendimento de André
39
Luiz Callegari, "a desenvolver novas técnicas para tratar de elidi-las" . Ressalve-se
que as organizações criminosas conseguem adaptar-se rapidamente às mudanças e
desenvolver novas técnicas, as quais superam, muitas vezes, aquelas empregadas
pelos Estados, tornando, assim, mais difícil controlar e, até mesmo, descobrir
operações criminosas realizadas, neste âmbito.
As operações de lavagem de dinheiro efetivam-se de forma massiva ou em
grande escala, requerendo, desta maneira, uma organização profissional, uma
estrutura, uma rede de colaboradores e de cúmplices nos mais variados escalões,
além de um conjunto internacional de empresas e entidades em diversos países,
incluindo as “entidades financeiras próprias que operam sob aparência de
legalidade" 7. Como se observa, daí decorre a ligação entre o crime de lavagem de
dinheiro e o crime organizado.

39
CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro – aspectos criminológicos. p. 42.
43

3 O CRIME ORGANIZADO E O ESTADO

3.1 CARACTERES DO CRIME ORGANIZADO

Um dos pontos mais complexos no estudo e sistematização do crime


organizado tem sido o estabelecimento de seu conceito, como fora verificado acima,
o que passa, ademais, pelo questionamento sobre a sua real existência como
fenômeno criminológico. No tocante à existência deste fenômeno, entretanto,
superada parece estar a controvérsia no campo da melhor doutrina, sendo certo
que, tanto no Brasil como no exterior, autores de peso manifestam-se, no sentido do
reconhecimento da existência do crime organizado como realidade à qual não mais
podem estar alheias as disciplinas e ciências encarregadas de seu estudo.
E tão real é o fato, que estudiosos do tema chegam a conceber uma
verdadeira economia criminal, capaz de movimentar, através de um mercado comum
próprio, quantias estimadas em cerca de um quarto do dinheiro em circulação no
mundo. Face a essa realidade, diversos países passaram a estudar o fenômeno, em
todos os seus aspectos, ao mesmo tempo em que deram inicio à busca da produção
de leis e atos normativos capazes de enfrentá-lo, como também ocorre no Brasil.
Deparou-se, então, com a primeira dificuldade importante inerente ao estudo
e tipificação do crime organizado, que foi a elaboração de um conceito preciso, que
superasse eventuais problemas no momento da seleção do bem jurídico, com a
conseqüente elaboração do tipo legal, bem como no enquadramento de determinada
conduta na norma voltada à sua proibição. Entretanto, alguns pontos parecem
comuns à maioria dos autores, quando se entregam à tarefa de elaborar o conceito
de crime organizado, sendo o primeiro deles o fato de que suas atividades se
destinam a oferecer à sociedade produtos ou serviços proibidos, normalmente
repelidos ou escassos, tudo dentro de um contexto que tem como objetivo a
obtenção de lucro e o acúmulo de riqueza cada vez mais proeminente, e que estão
diretamente ligados às características daqueles produtos ou serviços, cuja
dificuldade na obtenção é exatamente o que os torna preciosos. (GOMES, PRADO,
DOUGLAS, 2000).
Outro ponto comum, é o que diz respeito à associação de um número
determinado de pessoas, à qual pode ocorrer de forma circunstancial ou estável e
44

permanente, agindo em comunhão ou através da divisão de tarefas, dentro de uma


estrutura hierarquizada verticalmente, ou mediante ações decididas através de uma
estrutura horizontal, o que, neste caso, não invalida a hierarquia, do momento em
que sempre constata-se que um ou alguns dos integrantes deste estrato horizontal
possuem status de maior relevo, através da idade, antiguidade, influência,
inteligência ou qualquer outra manifestação de poder.
No tocante ao nível de organização da associação, alguns autores não
exigem o cunho sofisticado, contentando-se com uma articulação mínima entre seus
integrantes, para o desempenho das tarefas, ao passo que outros frisam o
planejamento empresarial, mesmo que não-formal, mas distinto de um mero
programa delinqüêncial, próprio das quadrilhas ou bandos comuns. Assumem,
ainda, importante destaque, com traços característicos do crime organizado, a
utilização de meios de violência para a intimidação de pessoas ou exclusão de
obstáculos, com a imposição do silencio que assegure a clandestinidade, ocultação
e impunidade das ações delituosas praticadas e o que de maior relevo para o objeto
deste trabalho: a conexão estrutural ou funcional com o poder público ou seus
agentes, bem como possibilitar o alcance de outros de seus objetivos, a obtenção,
manutenção e ampliação de poder. (GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000).
É possível encontrar, ainda, uma série de outros elementos aos quais faz-se
referência como inerentes ao crime organizado, tais como a ilicitude própria de suas
empreitadas, por vezes imbricadas com algumas atividades lícitas, clandestinidade,
clientelismo, controle territorial, uso de meios tecnológicos sofisticados, suprimento
de ofertas sociais onde o Estado se faz ausente e especialização profissional. Do
que acaba-se de ver, há que se comungar da idéia de que o crime organizado, como
fenômeno real, é produto da existência e da atividade de uma organização
criminosa, que passa a ser o ente que lhe dá vida e movimento, e sobre o qual se
apóia funcionalmente, jamais se confundindo com as meras quadrilhas constituídas
para a prática de crimes, cujo potencial ofensivo à sociedade distingue-se, desde
logo, pelo grau inferior que lhes é inerente.
As organizações são associações minimamente organizadas de pessoas,
qualificadas, sobretudo, pela busca cada vez maior de penetração social e
econômica, assim como pela obtenção sempre mais ampla de poder, infiltrando-se e
confundindo-se com as estruturas do poder público, não mais atuando
paralelamente ao Estado ou com ele disputando posições, senão passando a agir
45

livremente através dele. Definindo esse contorno básico das organizações


criminosas como ente, e do crime organizado como fenômeno criminológico, surge
uma segunda dificuldade, agora, ligada às estratégias de neutralização e combate a
esta criminalidade específica.
Com razão, aborda Raúl Cervini, com base na criminologia norte-americana,
o estudo a respeito do crime organizado, com vistas a qualquer finalidade, só terá
eficácia se tomar como ponto de partida uma abordagem analítica do fenômeno,
examinando-se cada uma de suas faces, sucessivamente, buscando conjugá-las, ao
final, para atingir uma visão mais precisa do todo.
Ressalta-se que é através da pesquisa em torno dos tópicos ameaça,
agressividade, rede e vulnerabilidade, que se poderá atingir aquele desiderato. A
ameaça, como sendo o custo direto ou indireto do crime organizado para a
sociedade, a agressividade, representando as tendências do desenvolvimento do
fenômeno (conservadora, inovadora ou expansionista), a rede, caracterizada pelas
ligações, enlaces e conexões diversas entre membros e grupos do crime organizado
e de fora dele e, finalmente, a vulnerabilidade, na esteira da determinação de pontos
de fragilidade destas organizações, para a elaboração de ações preventivas e
repressivas em sua direção (GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000).
Não se objetiva estabelecer um conceito preciso de crime organizado, mas
apenas definir alguns pressupostos comuns de sua caracterização, porquanto o
objeto do presente trabalho é a abordagem em torno da conexão estrutural e
funcional do crime organizado com o poder público, e a sugestão de uma estratégia
de neutralização deste fator, ou seja, um exame mais voltado aos aspectos da rede
e da vulnerabilidade, como passamos a fazer nos próximos capítulos.

3.2 CONEXÕES COM O PODER PÚBLICO

A conexão das organizações com o poder público é uma das características


comuns apontadas por diversos autores, que procuram estabelecer os contornos do
fenômeno crime organizado. De alguma forma, seja em associações criminosas com
um grau mais requintado de organização, ou naquelas onde exista um nível mais
elementar de articulação para o desempenho profícuo de suas atividades, sempre
46

haverá uma estratégia minimamente estabelecida previamente ou na medida em


que as circunstancias o exigirem, para que seus negócios escusos se desenvolvam.
Todos os estudiosos do tema são unânimes em afirmarem que, dentro desta
estratégia ou plano diretor, insere-se, como imprescindível ao objeto das
organizações criminosas, um certo grau de conexão com autoridades e órgãos de
vários setores do poder público. Com o fito de exemplificar, temos que Tigre Maia
destaca o incremento da corrupção em detrimento do uso da violência, na atuação
das organizações criminosas modernas, e, ao passo que Faria Costa salienta a
cultura da corrupção pública conectada com a do crime organizado, Joan Queralt
realça o fenômeno da corrupção política a este atrelado.
A necessidade destas conexões na rede que caracteriza o crime organizado
finca-se nos vários escopos que este persegue, mas que se resumem na obtenção
de poder e o alcance de um mercado de reciprocidade e impunidade ou manutenção
da clandestinidade de seus negócios. O importante, sem dúvida alguma, parece ser
a adoção de medidas que impeçam os mecanismos formais de prevenção e
repressão à criminalidade organizada, e tudo o mais que ela faça girar de ilícito em
torno de si, de agir a contento no seu combate (GOMES, PRADO, DOUGLAS,
2000).
A estratégia é bem lógica, pois, se uma das características do crime
organizado é a obtenção do lucro através da oferta de bens e serviços escassos,
proibidos ou moralmente repelidos, tendo como campo mais propício o da
clandestinidade, nada mais favorável que a manutenção de uma rede de conexões
que assegurem a discrição de seu empreendimento. A força e a violência são meios
que não interessam a principio, pois acabem por atrair indesejável atenção da
imprensa, de parte das autoridades e da própria população, que sempre exerce
influencia nas iniciativas dos políticos, se ambas, de alguma forma, possuem
inegável aptidão para intimidar, por outro lado, podem gerar repulsa, revolta
imponderável e conseqüente ação inesperada e contrária.
Assim sendo, é muito mais adequado que as organizações criminosas
adotem medidas menos drásticas, optando por interferências mais sutis e discretas,
em prol da manutenção de sua operacionalidade. Agredir e matar, até mesmo sob o
prisma jurídico-penal, acaba resultando em materialidade, um corpo de delito, a
existência de um cadáver ou de uma pessoa lesada, ao passo que a infiltração, a
troca de favores, o oferecimento de vantagens e outras técnicas mais amenas
47

findam por ter o mesmo efeito prático, sem deixar pistas tão aparentes. A corrupção
e a infiltração, em órgãos ou autoridades do poder público, parece ser um dos
pontos vitais das organizações criminosas, que tanto podem fazer parte integrante,
direta ou indiretamente, como podem se favorecer das benesses, conivência e
cobertura que ele pode oferecer.

3.2.1 ESTRATÉGIAS DE INFILTRAÇÃO

Embora não haja uma sistematização e reunião de dados a respeito das


várias formas através dos quais o crime organizado vem se manifestando no cenário
jurídico e social nos últimos tempos, procuraremos identificar, pela pesquisa em
esparsos trabalhos que já abordaram o tema, algumas das estratégias por ele
utilizadas para a obtenção e manutenção da conexão com o poder público.

3.2.2 FORMAS INDIRETAS DE CONEXÃO

Em primeiro lugar, destaque-se o financiamento de campanhas políticas,


através do qual se procura o estabelecimento de um sistema de reciprocidade, onde
a oferta de recursos financeiros para que um determinado candidato possa
desenvolver sua campanha deverá retornar, na forma de apoio irrestrito às
atividades da organização criminosa, manifestada de acordo com o cargo político ao
qual o candidato ascendeu (GOMES, PRADO e DOUGLAS, 2000)..
A reciprocidade, nesta área, parece estar adstrita a um raciocínio muito
simples, que foi resumido por Marcos Bezerra40, na forma: “fiz um favor a um
homem de governo e este ficou me devendo”. Em razão desta dívida, advirá tudo
aquilo que o homem público puder restituir, em termos de benesses, para possibilitar
a tranqüila permanência dos negócios escusos, desde a elaboração de leis e atos
normativos favoráveis ou que não prejudiquem, até uma diretriz administrativa que
não interfira na área de operação da organização criminosa.

40
BEZERRA, Marcos Apud GOMES, Abel Fernandes, PRADO, Geraldo e DOUGLAS, William.Crime
organizado e as conexões com o poder público. 2000.
48

Se, por um lado, a ascensão política pode ser motivação de determinadas


pessoas para aceitar ou solicitar o apoio financeiro do crime organizado a uma
campanha, por outro, o simples interesse financeiro é o que move alguns agentes
públicos, que passam a perseguir o ganho de dinheiro a qualquer custo,
independentemente da fonte da qual promana. Trata-se da segunda modalidade de
infiltração indireta do crime organizado no poder público, pela corrupção que se dá
através do pagamento em dinheiro de suborno ou propina, para a obtenção de atos
favoráveis, por parte do funcionário público, e que são estranhos ao dever legal que
a situação obrigaria.
Em meio a uma verdadeira cultura da venalidade, parte dos funcionários
públicos, de diversos setores, passa a dar vazão a uma ânsia cada vez maior de
obter lucros, pela utilização do cargo público na satisfação de interesses pessoais,
numa sociedade que prima por prestigiar a ostentação, o consumismo e a posse
abastada de bens materiais, em detrimento de valores morais e espirituais, como se
não houvesse limites naturais, no ocaso da vida, para tamanha ganância.
E note-se que nem é mais possível estabelecer um liame entre este tipo de
atitude e a satisfação de necessidades materiais básicas entre as camadas pior
remuneradas do serviço público, em que poderia se apresentar como justificativa
para a corrupção econômica. Na verdade, o que se constata é um problema sócio-
cultural, que tanto leva funcionários mal remunerados, como os mais bem pagos à
prática da corrupção econômica, indistintamente.
E aproveitando-se desta depreciação de valores éticos, cada vez mais
fomentada pela ideologia do ter, e da primazia do ganho fácil e sucesso rápido, que
o crime organizado passa a oferecer através de vantagens econômicas para a
obtenção de benefícios às suas atividades. Em estudo realizado sobre o roubo de
veículos e cargas, chama-se atenção para o resultado das investigações da
Comissão Parlamentar de Inquérito do Crime Organizado, da Assembléia Legislativa
do Estado de São Paulo, do ano de 1995, que acabou por constatar, no “caixa dois”
de organização criminosa investigada, uma série de pagamentos a policiais e
cheques pré-datados, destinados ao órgão público encarregados da fiscalização do
desmanche de automóveis, no eixo Rio - São Paulo, frisando que, praticamente,
todas as oficinas de desmanche apuradas tinham ligações ou recebiam proteção de
policiais.
49

Neste caso, os servidores públicos da polícia recebiam o dinheiro para


fornecer o tipo de abertura aos negócios daquela organização criminosa, sem que
se pudesse concluir, diferentemente do que veremos adiante, pela sua integração
direta na própria organização. Não se pode cerrar os olhos à evidente proliferação
de esquemas de corrupção semelhantes, em diversos setores do poder público,
como ponto fundamental no qual se fulcra o sucesso do crime organizado.
Observa-se que, num momento de economia globalizada, as organizações
criminosas mais ampliam o seu poderio no país, realçando que, nos Estados
Amazônicos, acentua-se a interligação de órgãos policiais encarregados da
repressão ao tráfico de entorpecentes com este mesmo segmento do crime
organizado. Até mesmo na Itália, um dos fatores que ensejou o início da serie de
investigações judiciais que se denominou Operações Mãos Limpas foi exatamente a
simples descoberta de um caso de corrupção de um funcionário público, fio que
quanto mais era puxado, mais desnudava uma verdadeira rede de tangenti
(propinas), cujo alcance subiria até os mais altos escalões da política italiana, em
prejuízo da vida econômica do país.
Conclui-se, portanto, que uma das estratégias do crime organizado para
obter e manter suas conexões com o poder público, e neutralizar os mecanismos de
controle de atividades proibidas e órgãos de repressão do Estado se dá através da
corrupção em seu sentido jurídico, qual seja a oferta ou promessa de qualquer
vantagem, econômica ou não, para que o funcionário público titular de mandato,
cargo, emprego ou função pública atue contrariamente ao dever funcional.

3.2.3 FORMAS DIRETAS DE CONEXÃO

As pesquisas e estudos sobre a rede, como elemento da tipologia do crime


organizado, permitem, ainda, identificar formas diretas das suas conexões com o
poder público. A primeira delas é a inserção de determinados profissionais em áreas
específicas das estruturas do Estado, cujas finalidades variam de acordo com as
circunstâncias. Trata-se de uma estratégia que possibilita um contato próximo entre
a esfera privada e a pública, que acaba por munir estes homens de conhecimentos a
respeito do funcionamento da máquina administrativa, fornecendo, ademais, uma
50

gama ampla de contatos e relações com autoridades públicas, tudo a reverter em


favor dos interesses da empresa privada delinquêncial.
Em alguns casos, a presença do sujeito na estrutura do Estado apenas visa
a obtenção de informações privilegiadas, em termos de momento ou de conteúdo,
capazes de possibilitar uma prévia adoção de medidas ao crime organizado, de
modo a adaptar suas atividades, rapidamente, à conjuntura político-econômica ou ao
ato de repressão que lhe é dirigido, respectivamente. Muito comum, aliás, tem sido a
promiscuidade na ocupação de cargos importantes nos governos, por homens que
ostentam verdadeiros interesses pessoais em detrimento das áreas econômicas em
que atuam particularmente, e que são escolhidos e aprovados pelos poderes
constituídos, para desempenharem funções reguladoras, fiscalizadoras ou de
controle das atividades do setor onde operam suas empresas privadas, e para o
qual acabam por retornar após o mandato.
Em outras hipóteses, este braço de ligação permite o desenvolvimento de
atividades ilícitas, em favor do crime organizado dentro do próprio Estado, tais como
à adjudicação de objetos de licitação de cartas marcadas a um concorrente já
definido, desvio de verbas em proveito particular, obtenção de financiamentos
obscuros e adoção das ditas soluções de mercado, que são negociadas como
únicas alternativas para satisfazer o interesse público, mas que, na verdade,
objetivam atender a interesses privados.
No último caso, tais soluções são freqüentemente encontradas em
escândalos envolvendo o sistema financeiro nacional, merecendo de Ela Wiecko de
Castilho41 a observação de que em nenhum outro setor da criminalidade constata-se
tão boa vontade em encontrar soluções menos traumáticas para os infratores em
nome do interesse público, sendo certo que, no âmbito dos crimes do colarinho
branco, as diversas violações da lei penal encontram fartas evidencias de
delinquência organizada.
Muitas vezes, a estratégia de conexão entre o crime organizado e os órgãos
do Estado se dá através do intermediário, figura aparentemente neutra, que faz a
intermediação dos interesses, encaminha os negócios, apresenta as propostas de
vantagens, recebendo ou pagando, conforme o caso. A vantagem do intermediário é

41
CASTILHO, Ela Wiecko de. GOMES, Abel Fernandes, PRADO, Geraldo e DOUGLAS, William. Crime
organizado e as conexões com o poder público. 2000.
51

a aparência de naturalidade e legalidade que dá à negociata. Quase sempre um


profissional do direito, advogado, técnico de uma área especifica ou despachante.
Passa ele a ser visto como agente neutro, natural e necessário, num processo que
envolvam aspectos ligados à sua área profissional ou que esteja incluído dentro de
uma burocracia intrincada do Estado, às vezes, criada exatamente para apresentar a
dificuldade e ensejar a venda da facilidade.
O intermediário não chega a integrar a estrutura orgânica do Estado, mas
sua participação pode ser considerada um meio direto de conexão d crime
organizado com aquele, na medida em que sua atuação é exercida pelo imediato
acesso e o livre trânsito, dos quais se beneficia para colocar a estrutura oficial em
movimento, rapidamente, em favor dos interesses da organização.
Entretanto, é pela formação da organização criminosa dentro do próprio
poder público que se identifica a mais nociva estratégia de conexão, levando autores
a afirmarem que sua existência deriva do poder que se lhe permitiu assumir, a ponto
de não mais se conceber um paralelismo com o Estado, senão um verdadeiro braço
criminoso deste Estado, a popularmente denominada banda podre. Com efeito,
tomando-se por orientação que o crime organizado tem como característica o
fornecimento de bens ou serviços de difícil obtenção, pela sua natureza proibida ou
escassa, não será difícil concluirmos que, dentro das funções desempenhadas pelos
diversos órgãos do Estado, iremos encontrar inúmeras, senão quase todas, que
dependem de critérios estritos da moralidade, impessoalidade e legalidade para
serem deferidas ao particular, o que reveste estes atos públicos daquele caráter de
dificuldade e preciosidade, diretamente ligados aos pressupostos e trâmites
necessários para sua obtenção.
Ocorre que, cientes disto, não é incomum que, em alguns setores, possa
encontrar uma verdadeira organização criminosa, composta, imprescindível e
predominantemente por agentes públicos, voltados à atividade de fornecer serviços
ou bens indevidos e ilícitos, em troca de vantagem quase sempre econômica. São
estruturas organizadas e integradas por funcionários públicos, incrustadas dentro do
organismo estatal, seguindo uma hierarquia vertical ou horizontal de decisões
execução de ações, com a finalidade de obter vantagens, através da prática de atos
administrativos ou judiciais impróprios para a situação legal e jurídica específica,
cuja ilegitimidade está, exatamente, na finalidade com a qual são praticados, qual
52

seja a de atender a outros interesses pessoais destes agentes públicos, de obtenção


de riqueza ou poder.
As ocorrências noticiadas são diversas, assim como os arquivos de
processos de apuração administrativo-disciplinar e judicial estão repletos de
exemplos deste tipo de criminalidade organizada e interna. Encontra-se desde o
fornecimento de documentos, papéis e certidões negativas diversas, até a venda de
decisões judiciais e desvio de dinheiro público, tudo possibilitando pela existência do
crime organizado dentro do próprio Estado. Muitas vezes, o modo de atuação destas
estruturas delinqüenciais organizadas, contidas dentro do Estado, assume caráter
de verdadeira concussão, na medida em que é a função pública e seu espectro de
atuação que passam a ser a moeda de troca. Quanto mais distante a vitima estiver
de pagar o preço pelo ato público desejado, mais sujeita estará a que se lhe aplique
o indesejado, e é pelo temor das conseqüências contrarias da atuação do agente
público que cede aos objetivos da organização criminosa institucionalizada no
aparelho estatal.

3.3 CONEXÕES ENTRE PARTICULARES E AGENTES PÚBLICOS

Não obstante a sistematização de algumas das principais e mais comuns


estratégias utilizadas pelo crime organizado para manter conexão estrutural com o
Estado ou dele fazer parte, por vezes, observa-se que elas podem estar interligadas
e direcionadas para o atendimento de finalidades distintas de mais de uma
organização criminosa. Com efeito, há ocasiões em que a atuação de uma
determinada organização criminosa depende dos serviços ou bens que outros
possam oferecer.
Guaracy Mingardi42 revela a necessária conexão entre as organizações
dedicadas ao roubo de cargas, com organizações policiais de corrupção ou
concussão, justamente para que as primeiras possam assegurar a impunidade de
seus atos, enquanto as segundas adquirem riqueza, através da cobertura que
oferecem aos primeiros. Esta relação de simbiose poderá ser encontrada em

42
MINGARDI Guaracy Apud GOMES, Abel Fernandes, PRADO, Geraldo e DOUGLAS, William, Crime
organizado e as conexões com o poder público. 2000.
53

diversos outros setores e, hipoteticamente, não será difícil imaginar o mercado das
importações e exportações irregulares com cobertura de autoridades aduaneiras, o
contrabando de armas ou tráfico de drogas, em que o transporte ocorre dentro de
veículos oficiais, ou a liberdade, o arquivamento de processos e a absolvição de
criminosos pertencentes aos diversos tipos de máfia, pelas agencias encarregadas
da prevenção e repressão ao crime. Este aspecto das relações intrincadas entre
organizações criminosas é muito bem notado por Pedro Juan Mayor M.43, que chega
a identificar grupos organizados que assumem a função de provedores de meios
ilícitos, necessários à prática dos delitos-fim de outras organizações criminosas.

3.4 – O ESTADO E O CRIME ORGANIZADO

Percebe-se, do panorama traçado, que, sem duvida alguma, de nada valeria


uma estrutura meramente operacional das atividades das organizações criminosas,
sem uma estratégia para a articulação de conexões com o poder público, de modo a
impedir sua atuação em todas as áreas de regulamentação, fiscalização, prevenção
e repressão de condutas e atividades contrarias ao interesse público, ao bem estar e
paz social e à tutela de bens jurídicos.
Deriva daí a inolvidável atuação de agentes públicos, em favor do crime
organizado, que se manifesta ora pela simples inércia, ora pela troca de favores,
conivência, proteção, apoio, participação e gerenciamento de atividades ilícitas, isto,
quando o fenômeno não está estruturado dentro do próprio Estado. Afinal, se o
produto oferecido pelo crime organizado é o escasso e difícil, o proibido, ilícito e
indevido, não se pode ignorar que, em muitas ocasiões, o que se quer do Estado é
aquilo a que não se tem direito, produto este que pode constituir fonte bastante
rentável para estruturas de funcionários públicos, que se organizam em torno da
corrupção e concussão que passam a praticar permanentemente.

43
MAYOR M., Pedro Juan. GOMES, Abel Fernandes, PRADO, Geraldo e DOUGLAS, William, Crime
organizado e as conexões com o poder público. 2000.
54

Como muito propriamente abordou Eugênio Zaffaroni44, ao que tudo indica,


a principal fonte do crime organizado é o próprio Estado, cujas estruturas acabam
por cair, acidentalmente ou não, nas mãos dos corruptos, que passam a delas se
valer para, de forma esporádica, sistemática ou institucionalizada, atender, aderir ou
constituir a própria organização criminosa. No momento em que, se for encarado
verdadeiramente esta realidade, acreditamos que será dado um passo firme, no
sentido do seu combate, bastando que passemos a avaliar os pontos vulneráveis
destas conexões, adotando contra-estratégias preventivas e repressivas.

44
ZAFFARONI, Eugênio. GOMES, Abel Fernandes, PRADO, Geraldo e DOUGLAS, William, Crime
organizado e as conexões com o poder público. 2000.
55

4. O CRIME OORGANIZADO E A PERDA DA EFICÁCIA DE PARTE DE LEI


9.034/95

A única lei que regia o crime organizado no Brasil, até pouco tempo, era a de
n. 9.034/95. Em abril de 2001 ingressou no nosso ordenamento jurídico um novo
texto legislativo (Lei 10.217/01), que modificou os artigos 1º e 2º do diploma legal
acima citado, além de contemplar dois novos institutos investigativos: interceptação
ambiental e infiltração policial. Nosso legislador, sem ter a mínima idéia dos
(geralmente nefastos) efeitos colaterais de toda sua (intensa e confusa) produção
legislativa, talvez jamais tenha imaginado que, com o novo texto legal, como
veremos logo abaixo, estaria eliminando a eficácia de inúmeros dispositivos legais
contidos na Lei 9.034/95. Dentre eles (arts. 2º, II, 4º, 5º, 6º, 7º e 10º) acha-se o art.
7º, que proíbe a liberdade provisória "aos agentes que tenham tido intensa e efetiva
participação na organização criminosa".

4.1 DA PERDA DA EFICÁCIA DE VÁRIOS DISPOSITIVOS DA LEI 9.034/95

A Lei 9.034/95, que dispõe "sobre a utilização de meios operacionais para a


prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas", não
definiu o que se deve compreender por "organizações criminosas". Foi feita para
cuidar desse assunto, mas juridicamente continuamos sem saber do que se trata.
O Art. 1º citado, com a redação da Lei 10.217/01, passou a dizer o seguinte:
"Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que
versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou
organizações ou associações criminosas de qualquer tipo".
Observe-se que antes a lei só mencionava "crime resultante de ações de
quadrilha ou bando"; agora fala em "ações praticadas por quadrilha ou bando ou
organizações ou associações criminosas de qualquer tipo". O texto anterior permitia,
no mínimo, tríplice interpretação: (a) a lei só vale para crime resultante de quadrilha
ou bando; (b) a lei vale para o delito de quadrilha ou bando mais o crime daí
resultante (concurso material); (c) a lei só vale para crime resultante de organização
criminosa (que não se confunde com o art. 288).
56

Pelo texto atual a lei incide nos ilícitos decorrentes de: (a) quadrilha ou
bando; (b) organização criminosa; (c) associação criminosa. Como se percebe, com
o advento da Lei 10.217/01, estão perfeitamente delineados três conteúdos diversos:
organização criminosa (que está enunciada na lei, mas não tipificada no nosso
ordenamento jurídico), associação criminosa (ex.: Lei de Tóxicos, art. 14; art. 18, III;
Lei 2.889/56, art. 2º: associação para prática de genocídio) e quadrilha ou bando
(CP, art. 288). Quadrilha ou bando (CP, art. 288); associações criminosas (ex.: Lei
de Tóxicos, art. 14; art. 18, III; Lei 2.889/56, art. 2º)

4.2 DA FALTA DE DEFINIÇÃO DE ORDENAÇÃO CRIMINOSA

Cuida-se, portanto, de um conceito vago, totalmente aberto, absolutamente


poroso. Considerando-se que (diferentemente do que ocorria antes) o legislador não
ofereceu nem sequer a descrição típica mínima do fenômeno, só nos resta concluir
que, nesse ponto, a lei (9.034/95) passou a ser letra morta. Organização criminosa,
portanto, hoje, no ordenamento jurídico brasileiro, é uma alma (uma enunciação
abstrata) em busca de um corpo (de um conteúdo normativo, que atenda o princípio
da legalidade).
Se as leis do crime organizado no Brasil (Lei 9.034/95 e Lei 10.217/01), que
existem para definir o que se entende por organização criminosa, não nos
explicaram o que é isso, não cabe outra conclusão: desde 12.04.01 perderam
eficácia todos os dispositivos legais fundados nesse conceito que ninguém sabe o
que é. São eles: arts. 2º, inc. II (flagrante prorrogado), 4º (organização da polícia
judiciária), 5º (identificação criminal), 6º (delação premiada), 7º (proibição de
liberdade provisória) e 10º (progressão de regime) da Lei 9.034/95, que só se
aplicam para as (por ora, indecifráveis) "organizações criminosas". É caso de perda
de eficácia (por não sabermos o que se entende por organização criminosa), não de
revogação (perda de vigência). No dia em que o legislador revelar o conteúdo desse
conceito vago, tais dispositivos legais voltarão a ter eficácia. Por ora continuam
vigentes, mas não podem ser aplicados.
57

4.3 CONTEÚDO ATUAL SOBRE O SIGNIFICADO DE "CRIME ORGANIZADO"

A lei n°10.217/2001 alterou a redação do art. 1° d a lei n° 9.034/95, e mesmo


assim, não solucionou o problema da conceituação de crime organizado. Nota-se
que45:

Pelo texto atual a lei incide nos ilícitos decorrentes de: (a) quadrilha ou
bando; (b) organização criminosa; (c) associação criminosa. Como se
percebe, com o advento da Lei 10.217/01, estão perfeitamente delineados
três conteúdos diversos: organização criminosa (que está enunciada na lei,
mas não tipificada no nosso ordenamento jurídico), associação criminosa
(ex.: Lei de Tóxicos, art. 14; art. 18, III; Lei 2.889/56, art. 2º: associação para
prática de genocídio) e quadrilha ou bando (CP, art. 288).

E na mesma linha de raciocínio, Gomes e Cervini46, diz que o conceito de


crime organizado abrange:

1 - a quadrilha ou bando (288), que claramente (com a Lei 10.217/01)


recebeu o rótulo de crime organizado, embora seja fenômeno
completamente distinto do verdadeiro crime organizado;
2 - as associações criminosas já tipificadas no nosso ordenamento jurídico
(art. 14 da Lei de Tóxicos, art. 2º da Lei 2.889/56 v.g.) assim como todas as
que porventura vierem a sê-lo e
3 - todos os ilícitos delas decorrentes ("delas" significa: da quadrilha ou
bando assim como das associações criminosas definidas em lei).

E conclui os mesmos autores47, em conseqüência, de outro lado e


juridicamente falando, que o crime organizado não abrange:

45
GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl, Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

46
GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl, Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
58

1 - a "organização criminosa", por falta de definição legal;


2 - o concurso de pessoas (os requisitos da estabilidade e permanência
levam à conclusão de que associação criminosa ou quadrilha ou bando
jamais podem ser confundidos com o mero concurso de pessoas (que é
sempre eventual e momentâneo).

4.4 CARACTERÍSTICAS DA ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA

A ciência criminológica, de qualquer modo, já conta com incontáveis estudos


sobre as organizações criminosas. Dentre tantas outras, são apontadas como suas
características marcantes: hierarquia estrutural, planejamento empresarial, claro
objetivo de lucros, uso de meios tecnológicos avançados, recrutamento de pessoas,
divisão funcional de atividades, conexão estrutural ou funcional com o poder público
e/ou com o poder político, oferta de prestações sociais, divisão territorial das
atividades, alto poder de intimidação, alta capacitação para a fraude, conexão local,
regional, nacional ou internacional com outras organizações etc.

4.5 A AUTONOMIA DO LEGISLADOR

Ao legislador incumbe a tarefa urgente de definir, em lei, o que devemos


entender por ela. Enquanto isso não ocorrer, como vimos, boa parte da Lei 9.034/95
passou a ser letra morta. A não ser que algum magistrado venha a usurpar a tarefa
do legislador e diga do que se trata. Mas até onde vão os limites da Constituição
vigente, não se vislumbra a mínima possibilidade de qualquer juiz desempenhar
esse anômalo papel

47
GOMES, Luiz Flávio; CERVINI, Raúl, Crime Organizado: enfoque criminológico, jurídico (Lei nº 9.034/95)
e política-criminal. 2ª ed. Revista, atualizada e Ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
59

5 SUGESTÕES PARA O COMBATE AO CRIME ORGANIZADO

Várias têm sido as sugestões de medidas para o combate do crime


organizado. No Brasil, por exemplo, algumas já estão sedimentadas na Lei nº 9.034,
de 03.05.95, enquanto outras são discutidas em projetos de lei, doutrina debates
sobre o tema. Entretanto, tomando por base o ponto do qual parte o objeto deste
estudo, entende-se que nenhuma delas chegará próximo da eficácia, caso ignore-se
a relevante característica de conexão do crime organizado com o poder público.
Realmente, se tivermos em mente este ponto de sua estratégia é
fundamental para assegurar o desempenho, ocultação e impunidade de suas
atividades, qualquer medida que se imagine será facilmente neutralizada, do
momento em que a organização possua uma eficiente rede de conexão com órgãos
públicos, capaz de amortecer, de alguma forma, a atuação das agencias de
combate. Reside na conexão com o Estado, um dos pontos fundamentais do
sucesso do crime organizado, sendo certo que um dos principais enfoques
criminológicos sobre o fenômeno é o estudo de sua vulnerabilidade para estabelecer
estratégias de enfrentamento (GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000)
Se assim é, o que se deve procurar é a pedra angular da conexão, em suas
diversas formas, para criar mecanismos preventivos e repressivos de controle.
Obviamente, que tudo isto passa por uma grande vontade política em estabelecer as
diretrizes e carrear recursos de todo gênero para torná-las efetivas. O que não se
sabe é até que ponto esta mesma vontade já não se encontra contaminada pelos
resíduos da infiltração das organizações criminosas nos órgãos superiores,
encarregados de manifestá-la.

5.1 ESTRATÉGIAS

Seja como for, partindo de alguns pontos abordados no tópico anterior,


procura-se apresentar algumas sugestões, ainda que de modo limitado e
enunciativo, no sentido de minorar aquelas estratégias de conexão relacionadas.
60

5.1.1 – BASE ÉTICO-POLÍTICA

Num primeiro momento, considerando que nenhum programa poderia se


sustentar sem um apoio cultural e um conteúdo ético, seria necessário o
desenvolvimento de uma política educacional que viesse a estimular a luta pela
defesa de direitos fundamentais inseridos na Constituição, sobretudo, aqueles que
mais diretamente se relacionam com os princípios fundamentais da República
Federativa do Brasil, de raízes éticas. A dignidade da pessoa humana e o valor
social do trabalho e da livre iniciativa seriam fundamentos sobre os quais deveria se
apoiar toda a política sócio-econômica nacional, de modo que se privilegiasse,
valorizasse e recompensasse os bens e valores à sociedade, de forma prática e
efetiva, que é nestes aspectos que reside o cerne da prioridade política.
Por outro lado, urge que o Estado passe a ocupar os espaços dos quais se
afastou durante longos anos, deixando que parcela significativa da população
passasse a se defender sozinha, sem os mais essenciais direitos que lhes deveriam
ter sido assegurados, como saúde e educação, o que, em grande parte, tem
contribuído para a formação de uma mentalidade voltada à ênfase a posturas e
atividades marginais, que mais aproximam as camadas sociais da exploração pelas
indústrias da criminalidade organizada. Em suma, seria mesmo o estabelecimento
de uma política educativa e de luta contra o crime organizado, voltada para toda a
sociedade, passando pela valorização do homem e da cidadania (GOMES, PRADO,
DOUGLAS, 2000).

5.1.2 – EXTERMÍNIO DA PROMISCUIDADE

No tocante às conexões que se realizam através da promiscuidade entre


sujeitos com interesses privados, em posições estratégicas do setor público, seria
interessante adotar medidas de natureza preventiva, capazes de detectar o conflito
de interesses privado-público, numa mesma pessoa-situação, atuando para
neutralizá-lo. A primeira diretriz seria o estabelecimento de critérios mais rígidos de
indicação, nomeação e aprovação, de modo a evitar que uma determinada pessoa,
em determinadas circunstâncias de notória interligação de suas atividades privadas
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com o setor público para o qual estaria sendo cogitada, viesse a ser efetivamente
empossada.
Não se pode conceber que um agente estabelecido no setor privado, por
mais competente que seja, venha a exercer cargo voltado ao controle de atividades
de sua própria área de negócios, sobretudo, em determinadas situações que
implicam conflito de interesses do homem privado que foi, com o homem público que
passa a ser. A criação de um código de ética, ou mesmo de normas proibitivas, no
sentido de punir a infração ao dever de abster-se de fornecer informações
privilegiadas para determinadas pessoas, também seria outra medida acertada,
sobretudo, no campo do sistema financeiro.
Além disso, seria imprescindível um permanente acompanhamento dos atos
do agente público mandatário, oriundo da esfera privada, no concernente às suas
conseqüências no setor privado ao que se destinam, não só durante o exercício da
função pública, mas também durante algum tempo após deixá-la, para avaliar a real
finalidade com que desempenhou o munus. Outro aspecto importante, seria o
controle mais preciso das doações de verbas de campanha para políticos, tornando
transparente este sistema, e estabelecendo normas que impeçam empresas e
empresários doadores para campanhas políticas de celebrarem novos contratos com
a Administração Pública, temporariamente, durante o mandato do candidato apoiado
(GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000).
Afinal, ou a doação corresponde a uma contrapartida do poder público após
a eleição do político, o que deixa já evidente sua afronta aos princípios
constitucionais do art. 37, da Constituição da República, ou ela tem caráter altruísta
e desinteressado, razão pela qual, quem a dá pode muito bem assumir o ônus da
vedação. Todos estes tópicos poderiam ser incluídos dentro do principio da
transparência, através do qual se procura conhecer, controlar e participar o máximo
possível da elaboração dos atos públicos e sua aplicação ao particular, ponto para o
qual convergem o trabalho da imprensa responsável e séria, os diversos tipos de
participação popular, devidamente esclarecida, e o próprio controle administrativo
interno e externo.
62

5.1.3 A CORRUPÇÃO E O CRIME ORGANIZADO

No combate amplo à corrupção e o crime organizado instituído dentro dos


órgãos públicos, uma serie de medidas preventivas e repressivas podem ser
enunciadas. Antes, porém, frise-se que, neste ponto, o que se busca é atingir os
vários tipos de conexão existentes, seja através da corrupção ocasional, seja pela
habitual.

a) Controle Preventivo

O recrutamento do servidor público efetivo ou vitalício, além de prestigiar o


conhecimento técnico, deverá apurar a formação moral e os antecedentes do
candidato, o que já vem sendo feito nos concursos, mas, ao que parece, de forma
bastante burocrática.
Necessário se faz estabelecer alguma finalidade nos dados que se reúnem a
respeito do perfil moral e social do candidato, para que sirva de fonte de consulta
num processo de acompanhamento e reciclagem de seu desempenho profissional,
no serviço público. Não se prega um monitoramento meramente policial do servidor,
mas um trabalho de apoio e constante avaliação de seu desempenho, de acordo
com as vicissitudes do cargo.

b) Controle Repressivo.

Já na linha repressiva, as ouvidorias parecem ter sido uma importante


iniciativa de alguns setores. Entretanto, é importante que se estabeleça uma
sistemática para a reunião, cruzamento e triagem das notícias, passando a adotar
uma linha mais direta de investigação, em casos nos quais se repitam denúncias
sobre fatos reiterados, contra um mesmo órgão ou servidor, ou numa mesma zona
geográfica, ou mesmo dentro de uma área comum de atividade (GOMES, PRADO,
DOUGLAS, 2000).
É fundamental resguardar este serviço da má utilização, da desmoralização,
do escárnio e da ineficácia custosa. Identificado um ponto da corrupção,
imediatamente estabelecer a investigação em torno das denúncias e da situação
sócio-econômica do funcionário, confrontando seus rendimentos com o padrão de
63

vida ostentado, já à vista de todos os elementos constantes de seu arquivo, desde o


ingresso na carreira.
De modo a confirmar denúncias e suspeitas, fundamental é estabelecer um
organograma de ligações do servidor com pessoas que tenham merecido sua
atenção e companhia ou a prática de atos públicos favoráveis a determinados casos,
repetidamente, num mesmo sentido. A análise comparativa de todos estes
elementos tornará possível concluir pela real ligação do servidor com uma
determinada pessoa integrante de organização criminosa; ou uma linha de conduta
na prática de atos públicos que revelem pessoalidade ou benefício para alguém, o
que ainda se cotejará com os sinais exteriores de riqueza, não razoavelmente
explicada (GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000).
Da mesma forma que o crime organizado procura se infiltrar nos órgãos do
estado, se faz mister a criação de uma espécie de contra-infiltração, adotando
técnicas capazes de identificar os agentes infiltrados ou os focos de corrupção,
comunicando o fato a uma outra estrutura, já encarregada de neutralizar a infiltração.
Todavia, o que nos parece bastante problemático é superar as inevitáveis
dificuldades impostas pelo corporativismo e pusilanimidade dos órgãos internos de
apuração, correição e punição.
Afigura-se intransponível a idéia de órgãos externos a cada setor do poder
público, encarregados deste controle de moralidade e legalidade da atuação de seus
agentes. Ocorre que estes órgãos também serão compostos por homens, e seu
recrutamento e controle também será necessário fazendo deparar com o impasse de
definir a quem, finalmente, caberá o controle de tudo isto. Por derradeiro, sob o
prisma da dogmática jurídico-penal, parece relevante que se enfrente a questão da
conexão agente público – crime organizado sob o prisma da teoria do concurso de
agentes, na medida em que, como muito precisamente abordou Andrea Castaldo,
não meramente eventual, às atividades-fim das organizações criminosas, por parte
de agentes públicos, ainda que estes não estejam integrados substancialmente às
estruturas daquelas associações. A relevância causal e finalística destas ações,
revestidas do requisito da habitualidade com que se dão, implicam a punição do
extrameus, não só por delitos funcionais, eventualmente praticados, mas também
pela co-autoria na integração das organizações criminosas e suas atividades ilícitas
(GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000).
64

5.2 – O ESTADO FORTE

Do que se viu, todas as medidas enunciadas ensejam a idéia de um Estado


Forte e organizado, com ênfase na excelência de seus serviços e servidores, desde
o processo de seleção, passando pelo acompanhamento do exercício da função
pública, até chegar à avaliação das conseqüências dos atos praticados pelo agente
público temporário ou não. Importa uma mudança radical de mentalidade, com vistas
a construir um verdadeiro espírito público num perfil de homem público, através do
constante reforço dos valores do bem comum (GOMES, PRADO, DOUGLAS, 2000).
Evidentemente, que não se pode relegar a segundo plano a remuneração
condigna, as condições de trabalho e o apoio institucional, ao mesmo tempo em que
não se pode transigir com o controle, a apuração e a punição dos desvios.
Finalmente, convém destacar que o inicio da tarefa deve-se focar nas mais altas
estruturas educativo-cultural parte de um exemplo que vem de cima, daqueles que
tem-se por mais fortes e poderosos e onde parecem estar as raízes mais densas da
corrupção.
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6 CONCLUSÃO

Conclui-se que, várias têm sido as medidas propostas para, além de definir
um conceito de crime organizado, passar a enfrentá-lo como um fenômeno real, que
cada vez mais se assanha. Dentre estas diversas propostas, surgem as ações
controladas da polícia, o perdão judicial e a redução de penas dos colaboradores, a
proteção de testemunhas, a ampliação das hipóteses de interceptações telefônicas e
escutas ambientais e a infiltração de policiais no seio das organizações.
Compreendeu-se a validade de todas as idéias e tentativas de alcançar o
mesmo grau de ousadia e sofisticação de meios dos quais se valem as organizações
criminosas, tudo isto sem olvidar, é lógico, o respeito à proporcionalidade que advém
dos direitos e garantias fundamentais, insculpidos na Constituição da República, em
sua função de tutela do cidadão. Entretanto, somos impelidos a raciocinar em torno
da mesma indagação proposta por vários autores e resumida por Percival de Souza,
no sentido de que parece evidente haver algo de errado no cenário criminológico,
quando se constata o triunfo do crime organizado, não obstante a existência de uma
série de aparatos legais à disposição das agências encarregadas de seu controle.
Buscou-se, através deste trabalho monográfico, gerenciar um rumo nos
estudos a respeito de sua tipologia, onde se foi encontrado na rede aquilo que
parece ser a razão fundamental desta vitória permanente. As conexões com o poder
público, manifestadas através das mais diversas estratégias, imobilizam ou, de
qualquer forma, neutralizam as ações dos órgãos encarregados da fiscalização e do
controle de atividades ilícitas, impedem a repressão das condutas delituosas e
garantem a impunidade e a liberdade de ação das organizações criminosas.
Considera-se que aos órgãos do poder público – espalhados verticalmente
nas diversas esferas de centros da decisão e atuação, assim como ordenados
horizontalmente nos vários setores funcionais – é que cabe toda a iniciativa e
manutenção de atividades preventivas e repressivas ao crime organizado e suas
ações, é inquestionável que a estes órgãos também devem ser destinadas medidas
de saneamento, oxigenação e manutenção de integridade.
Se qualquer medida contra o crime organizado, necessariamente, tenha que
ser dirigida e executada por órgão do poder público, mas as estratégias de infiltração
daquele, neste último, avançam e se tornam eficazes e desprovidas de controle e
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contenção, por óbvio que serão inócuas todas as medidas que se imaginem neste
sentido. Diante deste quadro real e realçado por todos os estudiosos do tema,
concluí-se que a questão da criação de medidas eficazes de combate ao crime
organizado deve ser enfrentada e analisada, partindo-se do estabelecimento de
diretrizes de profilaxia interna, com a finalidade precípua de cortar ou minorar os
efeitos das conexões com o poder público, de modo que este possa atuar com a
finalidade pública, específica desta matéria, livre de qualquer empecilho, influência
ou infiltração nefasta.
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7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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