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CAMPINA GRANDE
08/07/2022
Resenha:
A cidade, como paisagem artificial criada pelo homem, é composta por ruas, praças,
avenidas, casas, edifícios, parques e praças, constituída por objetos e imagens
influenciados pela dinâmica entre a vida pública e privada, onde se articulam
tempo/espaço, política, trabalho, cultura, consumo, lazer, entre outras dimensões. É
neste sentido que se entende que as grandes cidades contemporâneas constituem-se em
múltiplas práticas sociais. Para Santos (1988), assim como o espaço para o lazer é o
espaço urbano, as cidades são os grandes espaços e equipamentos de lazer. A partir
desta concepção, pode-se afirmar que pensar o lazer pressupõe considerar o espaço
como categoria de análise, que apresenta relevância para a compreensão da realidade, ao
ponto que o espaço é determinado pelo sujeito, assim como pode determinar as ações
dos sujeitos. Dessa forma, lazer e espaço são indissociáveis e complementares no
contexto atual.
Atualmente no país há diversos autores que discutem a categoria lazer, e espaço, mas
poucos são aqueles que buscam articular essas duas concepções, como no caso de
Magnani (2015), Rechia (2003). Diante desse quadro, no artigo em questão, buscar-se-á
compreender a relação entre o lazer na cidade e os espaços públicos, permeada
principalmente pelas diferentes estratégias de apropriação pela sociedade, utilizando-se
de levantamento bibliográfico de autores considerados clássicos como Dumazedier
(1979), Elias e Dunning (1992), Gomes (2004), Marcellino (2007), Mascarenhas
(2003), Pimentel (2010), Gutierrez e Almeida (2008), Gomes (2014), Santos (1988-
2006), Magnani (2015), Rechia (2003), de alguma forma associados à discussão desta
temática. Ressalta-se no entanto, que o presente artigo não pretende esgotar autores que
abordam o lazer, espaço e a articulação entre eles, mas apontar num estudo exploratório
pistas de como iniciar a compreensão destas categorias.
É válido ressaltar que esta discussão está inserida dentro da tese de doutoramento em
desenvolvimento intitulada “Lazer e o direito à cidade: o caso das assessorias esportivas
nos parques públicos de Curitiba/Pr”, a qual busca analisar as práticas desenvolvidas
por assessorias esportivas, no Parque Barirgui em Curitiba/Pr, e sua relação com a
cidadania enquanto direito à cidade. Durante o processo de construção da referida tese,
tem sido constatada a necessidade de avaliação das estratégias de apropriação dos
espaços públicos, e é neste contexto que a discussão entre o lazer na cidade e os espaços
públicos assume relevância.
O conceito de lazer é debatido por diversas correntes teóricas, e em função do lazer
ser um fenômeno multifacetado e inserido nas transformações que ocorrem na
sociedade, há inúmeras concepções acerca do mesmo. Algumas características
apontadas por diferentes autores, mesmo que divergentes, podem auxiliar na busca pela
compreensão deste fenômeno em uma perspectiva sociológica.
Partindo da dicotomia entre lazer e trabalho, Dumazedier (1979) define o lazer como
o conjunto de ações escolhidas pelo sujeito para diversão, recreação e entretenimento,
num processo pessoal de desenvolvimento, em oposição ao trabalho. Apesar de
possuírem características distintas, o trabalho e o lazer compõem a mesma dinâmica
social e se relacionam. Nesse âmbito, o autor identifica três funções do lazer:
divertimento, liberação do tédio e expressão do poder criativo.
Dessa maneira, o autor coloca o lazer em oposição ao conjunto das necessidades e
obrigações da vida cotidiana, especialmente do trabalho profissional. Tem caráter
voluntário e é contraponto ao trabalho urbano-industrial. O lazer, nessa concepção, é o
conjunto de atividades, individuais e coletivas, voltado para a satisfação de
determinados interesses (no plano de criação, formação e aprimoramento pessoal,
entretenimento, descanso, dentre outros), realizado no tempo livre das obrigações
impostas pelo trabalho profissional e por responsabilidades sociais.
Sob uma outra ótica da relação entre trabalho e lazer, Norbert Elias e Eric Dunning
(1992) compreendem o lazer como uma atividade que se insere no tempo livre,
colocando o indivíduo como transformador da sua realidade. E este, enquanto sujeito
social, pode dotar de sentido a atividade de lazer e aproximá-la da busca da excitação ou
do prazer. Assim, pensam o lazer por seu caráter decisional.
O lazer, para os autores, tem como função fazer oposição às rotinas da vida social,
dentre as quais se encontram as ocupações profissionais. O tempo livre, na compreensão
moderna, segundo Elias e Dunning (1992), é o tempo liberto das ocupações de trabalho,
bem como apenas uma parte deste pode ser voltado para as atividades de lazer. Algumas
das atividades de lazer modernas, partindo da concepção dos autores, são um meio de
produzir um “descontrole” controlado de emoções agradáveis, possibilitando a vivência
em público de fortes emoções. O elemento principal em grande parte das atividades de
lazer, portanto, é a excitação, a criação de tensões e não o relaxamento.
Outra concepção relevante em relação ao lazer, são as delineadas por Habermas. O
lazer e o trabalho, a partir de uma visão influenciada pelo autor, conforme afirma
Gutierrez e Almeida (2008) situam-se em marcos conceituais distintos, ou seja,
enquanto o lazer encontra-se no mundo da vida, o trabalho está nos sistemas orientados
pelos meios poder e moeda. Baseado nas concepções de Habermas, o lazer estaria
fundamentado e definido a partir da sociabilidade espontânea, determinado
historicamente e caracterizado pela busca do prazer.
Destaca-se, nesse sentido, que as discussões delineadas por Gutierrez (2001; 2008), o
qual se apóia na Teoria da Ação Comunicativa de Habermas 1, auxiliaram o
desenvolvimento da temática lazer, especialmente quando analisada na
contemporaneidade. O autor compreende o lazer, enquanto objeto de pesquisa, pela
busca do prazer, perpassado, ao mesmo tempo, em uma dimensão subjetiva e social, e
inserido no contexto das relações econômicas e de realização do lucro. Para Gutierrez
(2001), há algumas características marcantes das atividades de lazer, podendo estas ser
determinadas por meio de características como: liberdade de escolha, atividade não
lucrativa, opção pessoal, tempo livre e busca do prazer.
Mais recentemente, outro autor tem apresentado significativa contribuição para o
entendimento de lazer, Christianne Luce Gomes (2004). A autora compreende que
trabalho e lazer, apesar de possuírem características distintas, integram a mesma
dinâmica social e estabelecem relações dialéticas. O lazer, para Gomes (2004), é uma
dimensão cultural construída socialmente a partir de quatro elementos inter-
relacionados: tempo, espaço-lugar, manifestações culturais e ações (ou atitude). O lazer,
então, não deve ser compreendido como um fenômeno isolado, pois está inter-
relacionado com o contexto no qual está inserido. A partir de sua concepção de lazer,
Gomes (2004) sugere uma ampliação do olhar sobre a temática, compreendido como
um fenômeno complexo, permeado por conflitos, tensões e contradições.
Com base na reflexão das concepções expostas, pode-se afirmar que o lazer é uma
categoria em constante construção (Marinho e Pimentel, 2010). Dessa forma, para
compreender o significado do fenômeno do lazer, é necessário recorrer à cultura,
política, economia, diferentes formas de saber, crenças, mas, acima de tudo, ao
momento histórico vivido. No mesmo sentido, para compreender o espaço que estamos
inseridos, é necessário apreender o contexto em que o mesmo está inserido. O conceito
de espaço, então, se atrela ao conceito de lazer, visto que as práticas de lazer são
condicionadas pelo espaço, assim como o espaço está condicionado às formas de
apropriação do mesmo.
A compreensão do espaço no início das produções científicas, segundo Elias (1994),
era concebida apenas pela forma concreta, definida pela largura, profundidade e altura.
No entanto, com o avanço dos estudos, esse conceito foi ampliado e associado à
categoria tempo. Segundo o autor, a localização de um fato em um espaço não é
possível a menos que ela esteja acompanhada de sua localização no tempo. Nessa
perspectiva, os acontecimentos devem estar situados não só no espaço, mas também no
tempo para que tenham sentido. Conforme Santos (1988), é a própria sociedade que se
faz e se pensa espacialmente. Nas palavras do autor,
O espaço não é um pano de fundo impassível e neutro. Assim, este não é apenas um
reflexo da sociedade nem um fato social apenas, mas um condicionante condicionado,
tal como as demais estruturas sociais. O espaço é uma estrutura social dotada de um
dinamismo próprio e revestida de uma certa autonomia, na medida em que a evolução
se faz segundo leis que lhe são próprias. Existe uma dialética entre forma e conteúdo,
que é responsável pela própria evolução do espaço. (Santos, 1988, p. 14)
Dessa maneira, o espaço deve ser considerado um conjunto indissociável em que
participam objetos geográficos, naturais e sociais, bem como a sociedade em
movimento. Ou seja, o espaço deve ser considerado como fator social, instância da
sociedade, e não um reflexo social. Para Santos (2006), os espaços são reflexos dos
acontecimentos, fenômenos, ações e relações realizadas pelos sujeitos que os planejam,
constroem, e que deles se apropriam. O espaço deve ser visto como um importante
instrumento para a compreensão da realidade e não como um “palco inerte” 2 onde os
indivíduos executam suas ações.
Nesse âmbito, Luchiari (1996) afirma que as sociedades se articulam no espaço e no
tempo, sendo que no espaço elas se inscrevem criando lugares singulares, produtos de
desenvolvimentos e processos sociais desiguais. O espaço, concomitante com o tempo e
o ser social, para Luchiari (1996), é composto por dimensões existenciais abstratas que
são dotadas de vida como uma construção social, bem como moldam a realidade
empírica e são simultaneamente moldadas por ela.
Pode-se afirmar, então, que o processo da produção da vida ocorre através das formas
de apropriação do espaço. E seu uso envolve o indivíduo e seus sentidos, seu corpo. É
por meio dele que o sujeito marca sua presença, que constrói e se apropria do espaço. A
análise da vida cotidiana abarca o uso do espaço pelo corpo, o espaço imediato da vida,
das relações cotidianas mais finas: as relações de vizinhança, o ato de ir às compras, os
jogos, o caminhar, as brincadeiras, o encontro. As práticas cotidianas compostas por
pequenos atos corriqueiros, e aparentemente sem sentido, criam laços profundos de
identidade, habitante-habitante, e habitante-lugar, marcadas pela presença.