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Universidade Federal da Bahia - UFBA

IPSC49 - Clínica Psicossomática


Docente: Cristiane Oliveira
Discente: Bárbara Borges e Francinai Gomes

Relatório Prática na HUPES

Em uma cartilha lançada em 2018, o Ministério da Saúde reconhece a


vulnerabilidade e a iniquidade às quais a população negra está exposta e aponta
que dos 150 mil usuários dos serviços SUS, 67% são pessoas negras. Falamos
sobre isso aqui principalmente por identificar, durante a visita, que a maioria das
pessoas presentes no espaço eram pessoas negras e boa parte delas apresentava
algum tipo de queixa relacionada à impossibilidade de acessar com dignidade e
qualidade os serviços SUS.
Existem muitos elementos que podem ser abordados aqui, primeiramente
começaremos com o processo de apagamento da raça dessas pessoas. É sabido
que existe um movimento de desracialização que impossibilita pessoas negras de
existir e serem pensadas em suas complexidades no Brasil. Não foi difícil observar
que em todos os relatos feitos em sala, ninguém mencionou a prevalência de
pessoas negras no espaço, por exemplo. Maria Aparecida Silva Bento, escreve
sobre o lado oculto do discurso sobre o negro e pontua que umas das coisas que
mais a incomoda enquanto intelectual e mulher negra é o silêncio que gira em torno
de questões que envolvem o sujeito negro.
Quando isso se relaciona com o lugar da saúde ou do cuidado, esses corpos
são ainda mais silenciados. Sobre isso, Angela Davis afirma:
Um médico que clinicava na Geórgia por volta da metade do século XIX
percebeu que abortos e abortos espontâneos eram muito mais comuns entre
suas pacientes escravas do que entre as mulheres brancas que ele tratava.
De acordo com o médico, ou as mulheres negras realizavam trabalhos
pesados demais, ou como proprietários de terras acreditam, as negras são
possuidoras de um segredo por meio do qual destroem o feto no início da
gestação [...] Todos os clínicos do país estão cientes das reclamações
frequentes dos proprietários de terras [sobre a] [...] tendência antinatural da
mulher africana em destruir a sua prole (Davis, 1981/2016, p. 207)
O racismo na produção científica brasileira e internacional ainda é muito comum, e
se expressa desde a ausência da racialização até produção de estudos que
universalizam a experiência branca como ser desracializado. A ausência dessas
discussões fortalece crenças que guiam muitos estereótipos sobre mulheres negras,
a exemplo da força. Estas crenças mobilizam afetos e orientam comportamentos,
como o evidenciado em pesquisa recente, mostrando que mulheres negras recebem
dose menor de anestesia durante o parto. Do mesmo modo, a desresponsabilização
com o corpo, e até a violação deste no ambiente hospitalar, como partes dos seus
corpos amputadas sem consentimento e autorização do responsável legal, como um
caso que observamos na visita à UTI. Todos estes episódios, são consistentemente
justificados sobre o discurso médico-científico, autoritário e pouco acolhedor, de
proteção da vida.
Além disso, existe um clima nesses espaços que não podemos deixar de
citar aqui. A atmosfera enlutada nos fez pensar em como o processo de luto para
muitas pessoas, principalmente para os familiares, começa ali na UTI. Como pontua
Jeane Tavares, a morte não é democrática, ela é política. O tempo de vida que
temos e a forma como a população negra morre são marcadores de um sistema
extremamente descuidado, violento e executor de uma política de extermínio.
Quando falamos em luto, falamos também sobre o lugar da permissão e
reconhecimento. Existe uma “autorização social” para expressar a dor e o luto que
nos é negada, seja pelas obrigações da rotina ou pelos estereótipos que
inviabilizam o reconhecimento do sofrimento.
Durante a visita, acompanhamos a história de uma mulher que foi informada
que o quadro da mãe havia piorado, acompanhada de uma tia, ela (a filha) era
“amparada” de uma forma que nos fez refletir, a tia falava coisas do tipo “Ela é forte,
vai ficar bem” ou “Você é forte, não precisa chorar”. Um processo citado por Jeane
Tavares diz justamente sobre a impossibilidade que algumas redes de apoio
(família, SUS, escola etc) têm em acolher pessoas negras em situações como
essas. Pensando nos instrumentos oferecidos pelo espaço, percebemos que não
existe uma sala ou um lugar mais reservado onde as pessoas são solicitadas para
receber informações sobre seus parentes. O “pátio” cheio de estímulos visuais e
sonoros é o local utilizado para informar e dialogar com os parentes,
impossibilitando um acolhimento mais próximo e direcionado, bem como
informando, numa mensagem subliminar, que não há tempo nem espaço para
expressão da dor.
O caso da mulher que teve uma parte do corpo (perna) amputada sem aviso
prévio nos fez refletir por um tempo. A autorização para acessar o corpo de pessoas
negras é oferecida pelo estado e ciência, instituições ainda regidas pelas mesmas
teorias que deram base para o darwinismo, colonialismo, teorias raciais e
eugenistas que determinam e veem o indivíduo negro como um corpo sem posse,
sem dono, sem sujeito. É um delito ético não racializar esses corpos e não permitir
que em situações de vulnerabilidade sejamos acolhidos e compreendidos em
nossas complexidades.
Citamos também uma discussão sobre viabilização do acesso à serviços de
saúde que achamos bem interessante. É suficiente possibilitar o acesso a estes
serviços quando boa parte da população fica transitando de um serviço para o outro
sem acesso a realização de exames ou tratamento qualificado? O acesso não é
suficiente quando não temos políticas que garantam o funcionamento desses
serviços. Na visita, observamos um senhor que estava há três meses tentando
fazer um exame específico e não tinha sucesso porque os dois aparelhos que
realizavam o exame estavam quebrados. Ele reclamava e pontuava ser do interior
da Bahia, que cada vez se tornava mais difícil para ele se locomover e não ter
nenhum sucesso na realização do exame.

“Eu sou de Cruz das almas, já vim aqui duas vezes e não consigo fazer o
exame.. aí gasto com passagem, alimentação… e chego aqui e ainda é isso, nem
sei como vou voltar pra casa”

Falar do sistema de saúde e relacionar isso com a experiência das pessoas


negras exige observar os diversos aspectos da vida desses indivíduos. Por sermos
seres biopsicossociais, não dá pra colocar todos os pontos como sendo
responsabilidade do sistema de saúde. Nesse exemplo da fala do senhor, existem
uma série de instituições que são mobilizadas, o fato de ele não ter como pagar
passagem para voltar para casa, a questão da alimentação, fora a impossibilidade
de realizar o exame. São muitas instâncias que constroem o lugar do abandono e
do desamparo.
O processo de desumanização que vem junto a isso é bem perceptível, como
se houvesse uma impossibilidade de acessar e oferecer acolhimento de forma
individual e única para esses indivíduos que também são únicos e individuais.
As instituições, de modo geral, buscam despessoalizar pessoas negras,
tratando-as como seres que fazem parte de um bloco único. Em "Manicômios,
prisões e conventos”, Goffman fala sobre o processo de deterioração da identidade
social como um movimento socialmente desempenhado pelas instituições para
construir uma sociedade disciplinar. Desse modo, adestrando e produzindo corpos
coletivamente dóceis. Trata-se de uma modalidade de poder produtivo, e não
essencialmente restritivo, mutilador ou repressivo, que liga as forças para
multiplicá-las e utilizá-las em sua totalidade, apropriando-se delas ainda mais e
melhor. A ação do poder disciplinar é essencialmente produção de subjetividade
moderna.
Compartilhamos estas percepções e análises com o objetivo de nos convocar
a pensar estratégias, nos campos individuais e coletivos, bem como compartilhar
inquietações que tem nos movimentado profissionalmente. Desejamos, com isso,
poder somar forças na luta social e também conscientização sobre a necessidade
de também nos expressarmos em nossa subjetividade, como seres dignos do
suporte, acolhimento e reconhecimento necessários a contextos de vulnerabilidade.

Referências

Davis, A. Mulheres, raça e classe. 1981. Editora Boitempo 2016.

Goffman, E. Manicômios, prisões e conventos. Editora perspectiva, 9ª edição. 2019

Tavares, J. Por uma política de saúde mental da população negra no SUS. 2020

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